v. 28 n. 2 (2024): “UMA NOVA REGIÃO DO MUNDO”? AS LITERATURAS FRANCÓFONAS PÓS-COLONIAIS E O BRASIL
No Brasil, as culturas originadas do “trato dos viventes” (Alencastro) e relacionadas à história da escravidão têm hoje um papel importante na construção e renovação dos saberes. O trabalho de Abdias do Nascimento foi determinante, tendo criado pioneiramente, em 1944, o “Teatro Experimental do Negro” e organizado, em 1950, o primeiro congresso afrobrasileiro. No campo da etnologia, as pesquisas de Pierre Verger e de Roger Bastide contribuíram para o desenvolvimento da área; no campo da teoria literária, os trabalhos de Diva Damato, Zilá Bernd e Eurídice Figueiredo, entre outros, provaram-se essenciais. Em termos políticos, fortes medidas contribuíram para a ampliação do conhecimento e para uma melhor inclusão das populações marginalizadas: primeiro, a Lei 10.639, promulgada em 2003, que torna obrigatório o ensino da história afrobrasileira e da história da África; segundo, a implementação no ensino superior, em 2012, de uma política de cotas baseada em critérios ligados à origem étnico-racial combinados com fatores sociais e de percurso escolar. Embora não sejam algo totalmente adquirido e continuem a sofrer ameaças, tais avanços sociopolíticos provocaram uma mudança de paradigma. Outrora subalternizadas, as culturas afrodiaspóricas suscitam agora um interesse intelectual crescente por parte de um grande número de pesquisadoras e pesquisadores.
No campo de estudo das literaturas de língua francesa, percebe-se um verdadeiro entusiasmo pelas obras francófonas ligadas ao "Atlântico negro" (Gilroy), quer provenham de lugares como a Guiana Francesa (que faz fronteira com o Brasil), do Caribe insular e da África subsariana francófona, quer sejam criadas por escritores ligados de algum modo a tais lugares. Trata-se, provavelmente, de um momento histórico determinante: a produção francófona pós-colonial encontra - e por vezes renova - um horizonte de expectativa brasileiro que dá mostras da sua hospitalidade (Diagne), reconhece nela convergências geográficas, históricas, antropológicas e culturais, e revela-se propício a releituras que adotam uma perspetiva transatlântica e transcontinental. Assim, a consagração de escritores francófonos, sobretudo haitianos, nas mais altas instituições da República francesa - Dany Laferrière foi eleito para a Academia Francesa em 2013, Yannick Lahens ocupa a cátedra Mondes Francophones no Collège de France entre 2018 e 2019 - vai ao encontro, no Brasil, de uma notável atividade de traduções, retraduções, produção de obras teóricas, antologias, prefácios, além de prêmios literários, colóquios e festivais de literatura. Entre os muitos livros publicados desde 2020, podemos citar a antologia Estilhaços - antologia de poesia haitiana contemporânea, organizada e traduzida por Henrique Provinzano Amaral, e as traduções do teatro de Aimé Césaire: Uma temporada no Congo [Une saison au Congo], em 2022, de João Vicente, Juliana Estanislau de Ataíde Mantovani e Maria da Glória Magalhães dos Reis, posfaciada pelo antropólogo Kabengele Munanga; Uma tempestade [Une tempête], de 2024, de Margarete Santos, com prefácio de Eurídice Figueiredo. Do lado francês, podemos mencionar ainda as Éditions Anacaona, editora especializada em traduções de textos brasileiros.
Na esteira das pesquisas dedicadas à produção de uma história literária transatlântica, este número da revista Ipotesi pretende examinar as dinâmicas em jogo entre as literaturas francófonas, consideradas em toda a sua diversidade, e o “Brasil literário”. De fato, no contexto dos Atlânticos, nem todos os espaços geoculturais e literários gozam do mesmo tratamento crítico, e alguns permanecem ainda submetidos a modos de circulação desiguais, razão pela qual a dimensão luso-americana do “Atlântico negro” merece maior consideração. Estaria sendo desenhada, na conjugação do sonho e da política, uma “nova região do mundo”, para retomar as palavras de Glissant? De que “lugares-comuns” ela se nutre e que imaginários suscita? De que maneira participa da renovação dos discursos epistemológicos, das teorias da tradução e da emergência de novas estéticas? Para responder a essas perguntas, poderíamos olhar para a “matéria brasileira” (Bonnet) de que se nutrem obras francófonas - poesia, ensaio e ficção - como as de Césaire, Depestre, Glissant, Monénembo, Alem, Couao-Zotti etc. Uma reflexão em especial poderia ser explorada a partir da relação de Depestre com a literatura brasileira, já que ele mesmo se define como “filho do Caribe, homem do Brasil profundo”. É possível investigar também as formas de diálogos transatlânticos feministas. Por exemplo, Lettres à une Noire (1978), de Françoise Ega, conjunto de cartas ficticiamente dirigidas a Carolina Maria de Jesus. Merece destaque também o interesse de Conceição Evaristo por Maryse Condé, cuja retradução de Moi, Tituba, sorcière noire de Salem (2019) prefaciou. Podemos apontar também o encontro entre Conceição Evaristo e Scholastique Mukasonga, que produziu um entendimento mútuo. Que tipo de convergências feministas surgem a partir daí? Que interação se estabelece entre política, ideologia e estética? Que lugar é dado a gêneros há muito ignorados, como a literatura infantil e o romance ilustrado? Será dada especial atenção, por fim, à circulação e à relação entre conceitos como Negritude, mestiçagem e crioulização.