Dossiê: A história das mercadorias no mundo pré-industrial: potencialidades e limites de uma abordagem - Vol 29, n. 1 (2023)

2022-03-07

A riqueza das sociedades em que domina o modo-de-produção capitalista apresenta-se como uma "imensa acumulação de mercadorias". Assim Marx abriu o primeiro capítulo d’O Capital, publicado em 1867, centrado na decomposição analítica e histórica da mercadoria enquanto forma social. Ao longo deste e dos demais capítulos, algumas mercadorias figuram como exemplos, em especial os tecidos e a força de trabalho dos operários ingleses. As mercadorias, assim, eram uma via de acesso a realidades ocultas, ou, mais precisamente, reificadas, cuja revelação demandava a crítica lógica e histórica. Seriam as mercadorias úteis, também, para o desvelamento das sociedades anteriores ao capitalismo e à industrialização?

Apenas no final do século XX que as histórias centradas nas mercadorias, em suas múltiplas dimensões temporais, espaciais e sócio-culturais, tomaram fôlego, a ponto de poder se falar em “História das Mercadorias” como um campo ou abordagem distinta. Histórias do açúcar, do ouro, do café, do chá, dos navios, do mármore, do incenso, do petróleo, do milho, do marfim, do chocolate, do dinheiro e do algodão, para ficarmos em alguns exemplos, ganharam proeminência tanto em contextos acadêmicos quanto não-acadêmicos. Tais histórias permitiram o acesso a conexões efetivas, das quais os agentes nem sempre tinham  consciência, tais como aquela entre o chá adoçado dos operários ingleses e a escravidão nas fazendas de cana caribenhas na primeira modernidade, ou entre o consumo de incenso árabe no Império Romano e o desenvolvimento de imitações em Madagascar na Antiguidade.

Histórias centradas em mercadorias permitiram a análise empírica de contextos de imbricação entre economia e política, de articulação entre múltiplas formas de trabalho e de interação entre padrões culturais e arranjos ecológicos, promovendo jogos de escala que ultrapassaram as fronteiras temporais e espaciais tradicionais da historiografia. Entre os métodos mais profícuos, destacam-se a reconstituição de cadeias mercantis, que articula as diferentes etapas que conectam a produção, a circulação e o consumo de mercadorias e a análise simbólica das mercadorias em determinadas culturas, aferindo o jogo entre constrangimentos ambientais e respostas culturais.

O campo é múltiplo e em franco crescimento; no entanto, raras vezes as pesquisas empíricas deram ensejo a reflexões teóricas mais apuradas, e diversas questões permanecem candentes, tais como:

 

  1. Pode a mercadoria ser considerada uma categoria de análise trans-histórica? É possível falar em história das mercadorias na Mesoamérica pré-colombiana, no Egito Antigo ou na Europa Medieval?
  2. Como a história das mercadorias pré-industriais se relaciona com as outras histórias políticas, sociais e/ou culturais? A periodização de histórias de mercadorias específicas corresponde aos períodos consagrados da história de impérios e estados? Seu escopo espacial reforça ou transtorna as fronteiras das unidades de análise tradicionais?
  3. A história das mercadorias pré-industriais reforça ou enfraquece os modelos explicativos mais gerais para cada contexto?
  4. Como as mercadorias se relacionam com os bens não mercantilizados, e como esta relação esclarece os mecanismos e o papel do comércio em sociedades pré-industriais?
  5. A história das mercadorias em sociedades pré-industriais tem algo a ganhar - e a oferecer - com o diálogo com abordagens da História Global e da História do Capitalismo?

 

Os organizadores do presente dossiê convidam autores/as dispostos/as a refletir sobre as dimensões teóricas e metodológicas da história das mercadorias. As contribuições podem seguir múltiplos caminhos, de análises centradas em uma ou em um conjunto de mercadorias específicas (mas que preferencialmente dialoguem com as questões que animam este dossiê), à reflexões teóricas e historiográficas acercas dos métodos, conceitos e abordagens da histórias das mercadorias pré-industriais. Igualmente, incentivamos reflexões em torno das possibilidades e limites do ensino de História (da Educação Básica à Superior) a partir da história das mercadorias pré-industriais, assim como sobre os usos e sentidos da produção não-acadêmica sobre o tema. Em contraposição ao recorte espacial global, restringimos o limite temporal até antes do século XIX, quando a industrialização e o capitalismo alteram, com inaudita profundidade, o lugar do mercado e das mercadorias na reprodução social.