A memória resgatada e a disputa da tradição

O lugar das quimbandas no movimento de ialorixás trans no campo afro-religioso brasileiro

Autores

  • Ava Cruz Universidade Federal da Bahia

DOI:

https://doi.org/10.34019/2236-6296.2025.v28.48523

Palavras-chave:

Religiões Afro-brasileiras, Travestilidade, Memória, Tradição, Xica manicongo

Resumo

Neste artigo, debruço-me sobre as transformações em torno da noção de “quimbanda” e a maneira como sua memória é mobilizada politicamente no campo afro-religioso contemporâneo por lideranças transgênero. Para isso, retomo dois momentos de descontinuidade nos sentidos atribuídos ao termo: de um lado, os relatos de missionários e viajantes no universo luso-africano dos séculos XVI e XVII, e, de outro, os processos de legitimação da umbanda no século XX por parte de intelectuais umbandistas. Com base nas teorizações sobre monstruosidade, examino como o termo "quimbanda" foi historicamente ressignificado, ora associado à figura do “feiticeiro sodomita passivo”, ora mobilizado como contraponto moral e demonizado frente à umbanda, revelando disputas em torno de sua significação. Debruçando-me sobre os movimentos de resgate da memória de Xica Manicongo, mostro como essa retomada articula noções de pertencimento, ancestralidade e tradição no combate a discursos trans excludentes nos espaços afro-religiosos.

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Biografia do Autor

Ava Cruz, Universidade Federal da Bahia

Ava Cruz é travesti, doutoranda em Antropologia Social pela USP e artista visual. Sua pesquisa investiga a presença de pessoas trans em espaços afro-religiosos na região metropolitana de São Paulo, a fim de compreender como saberes e práticas de terreiro atravessam processos de transição de gênero e são, ao mesmo tempo, reinventados por esses sujeitos. É mestra pela UFBA, onde analisou cartazes de serviços espirituais colados em postes de Salvador por cartomantes, videntes, pais e mães de santo. Ao longo dos últimos anos, vem ministrando minicursos em instituições como UFMG, USP e MASP, abordando as intersecções entre religiosidade afro-brasileira, gênero e sexualidade. Como artista, desenvolve trabalhos na área da performance, instalação e artes gráficas, tendo publicado trabalhos tanto em nível nacional (Belo Horizonte/Salvador), quanto internacional (Nova York/Londres), com foco nas relações entre corpo, ritual e espiritualidade sob uma perspectiva transcentrada.

   

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Publicado

2025-07-29

Como Citar

CRUZ, A. A memória resgatada e a disputa da tradição: O lugar das quimbandas no movimento de ialorixás trans no campo afro-religioso brasileiro. Numen, [S. l.], v. 28, n. 1, p. 146–165, 2025. DOI: 10.34019/2236-6296.2025.v28.48523. Disponível em: https://periodicos.ufjf.br/index.php/numen/article/view/48523. Acesso em: 5 dez. 2025.

Edição

Seção

Dossiê: Monstros e monstruosidades nas expressões religiosas