V. 25 | Nº 1  
JAN/JUN 2025  
Dossiê  
Realidade  
Brasileira e  
Serviço  
Social  
e-ISSN 1980-8518  
e-ISSN 1980-8518  
Revista da Faculdade de Serviço Social - UFJF  
Programa de Pós-Graduação em Serviço Social  
R E V I S TA  
Revista de Serviço Social  
Programa de Pós-Graduação em Serviço Social  
Curso de Graduação em Serviço Social  
Universidade Federal de Juiz de Fora  
ISSN 1980-8518  
DOSSIÊ:  
Realidade Brasileira e  
Serviço Social  
VOLUME 25  
NÚMERO 1  
JANEIRO/JUNHO  
ANO 2025  
EXPEDIENTE  
FOCO E ESCOPO  
CONSELHO EDITORIAL  
A revista Libertas, criada em 2001, é uma  
publicação semestral da Faculdade de Serviço  
Social e do Programa de Pós-Graduação em  
Serviço Social da Universidade Federal de Juiz de  
Fora. Seu objetivo é estimular o intercâmbio da  
produção intelectual, de conteúdo crítico,  
produzida a partir de pesquisas empíricas e  
teóricas, no âmbito brasileiro e internacional,  
sobre temas atuais e relevantes da área do  
Serviço Social e das Ciências Sociais e Humanas,  
com as quais mantem interlocução.  
Alcina Maria de Castro Martins, Instituto  
Superior Miguel Torga, Portugal; Carina Berta  
Moljo, Universidade Federal de Juiz de Fora,  
Brasil; Caterine Reginensi, Ecole Nacionale  
Superieure Agronomique de Toulouse, França ;  
Elizete Menegat, Universidade Federal de Juiz de  
Fora, Brasil; Íris Maria de Oliveira, Universidade  
Federal do Rio Grande do Norte, Brasil; José  
Paulo Netto, Universidade Federal do Rio de  
Janeiro, Brasil; Margarita Rozas Pagaza,  
Universidad Nacional de La Plata, Argentina;  
Maria Aparecida Tardim Cassab, Universidade  
Federal de Juiz de Fora, Brasil; Maria Beatriz  
Abramides, Pontifícia, Universidade Católica de  
São Paulo, Brasil; Maria Patricia Fernandes Kelly,  
Princeton University, EUA; Maria Rosangela  
Batistoni, Universidade Federal de São Paulo,  
Brasil; Marilda Vilella Iamamoto, Universidade  
Estadual do Rio de Janeiro, Brasil; Nicolas Bautes,  
Universite de Caen Normandie, França; Olga  
Mercedes Paez, Universidad Nacional de  
Córdoba, Argentina; Roberto Orlando Zampani,  
Universidad Nacional de Rosário, Argentina;  
Rosangela Nair Carvalho Barbosa, Universidade  
Estadual do Rio de Janeiro; Brasil; Silvia  
Fernandes Soto, Universidad Nacional de Tandil,  
COMISSÃO EDITORIAL  
Drª. Alexandra Aparecida Leite Toffanetto Seabra  
Eiras, Faculdade de Serviço Social, Universidade  
Federal de Juiz de Fora, Brasil. Editora-chefe.  
Drª. Isaura Gomes de Carvalho Aquino,  
Faculdade de Serviço Social, Universidade  
Federal de Juiz de Fora, Brasil. Editora-adjunta.  
Dr. Bruno Bruziguessi Bueno, Faculdade de  
Serviço Social, Universidade Federal de Juiz de  
Fora, Brasil. Editor-adjunto.  
Luciano Cardoso de Souza, Faculdade de Serviço  
Social, Universidade Federal de Juiz de Fora,  
Brasil. Editor-executivo.  
Argentina;  
Xabier  
Arrizabalo  
Montoro,  
Universidad Complutense de Madri, Espanha.  
Universidade Federal de Juiz de Fora  
Faculdade de Serviço Social  
Programa de Pós-graduação em Serviço Social  
Editores:  
Alexandra Aparecida Leite Toffanetto Seabra Eiras (editora-chefe);  
Isaura Gomes de Carvalho Aquino (editora-adjunta);  
Bruno Bruziguessi Bueno (editor-adjunto);  
Luciano Cardoso de Souza (editor-executivo).  
Editor de Leiaute:  
Luciano Cardoso de Souza.  
IMAGEM DA CAPA: KELLY, Bruno. Desmatamento e Queimadas 2020, 12 ago. 2020. (Licença CC BY 2.0).  
IMAGEM DA CONTRACAPA: SOUZA, Luciano Cardoso de. Sem título, 2019.  
ARTE CAPA E CONTRACAPA: Luciano Cardoso de Souza.  
Juiz de Fora/MG, junho, 2025.  
FICHA CATALOGRÁFICA  
Libertas / Universidade Federal de Juiz de Fora, Programa de Pós-graduação em Serviço Social,  
Curso de graduação em Serviço Social. n. 1 (abril, 2001) .  
Juiz de Fora, ano 2025 –  
v. 25, n. 1.  
Semestral  
Resumo em português e inglês  
Vinculada ao Programa de Pós-graduação em Serviço Social e ao Curso de Graduação em  
Serviço Social.  
Versão online ISSN 1980-8518  
1. Serviço Social. 2. Periódico. I. Universidade Federal de Juiz de Fora, Programa de Pós-Graduação em  
Serviço Social. II. Universidade Federal de Juiz de Fora, Curso de Graduação em Serviço Social.  
Publicação indexada em:  
Sumário  
VIII  
Editorial  
Dossiê temático:  
Realidade Brasileira e Serviço Social  
Ofensiva da direita, crise da democracia e  
1
ameaças às conquistas civilizatórias  
Ana Elizabete Mota  
Da espontaneidade à direção consciente:  
18  
a potencialidade das lutas sociais na realidade brasileira  
Ivete Simionatto  
Edinaura Luza  
Fabiana Negri  
Raví Calseverini de Toledo  
Burguesia dependente e crise de hegemonia no Brasil  
Isabela Ramos Ribeiro  
33  
58  
76  
Neoliberalismo: da direita à esquerda na política brasileira  
Daniel Carvalho Silva  
A função mistificadora do Produto Interno Bruto brasileiro e o  
aumento da taxa de mais-valor  
Artur Bispo dos Santos Neto  
Escravidão e construção do Estado Nacional: implicações sobre a 100  
generalização do trabalho assalariado no Brasil  
Alcione Ferreira da Silva  
Particularidades do capitalismo no Brasil: superexploração da força de 115  
trabalho, racismo e mito da democracia racial  
no capitalismo dependente  
Lívia Cintra Berdu  
Flávia Saragiotto Magalhães do Valle  
A superação do obstáculo epistemológico do mulato: 135  
método e ambiguidade  
Erykah Rodrigues dos Santos Iturriet  
Rafael Cardiano  
Formação das sociedades angolana e brasileira: 157  
dominação e resistências dos povos originários  
Boás dos Santos  
Edna Maria Goulart Joazeiro  
Capitalismo dependente e questão social: 180  
apontamentos sobre eugenia e serviço social  
Larisse Miranda de Brito  
A ofensiva conservadora ao pensamento de Antonio Gramsci 204  
e o Serviço Social brasileiro  
Eliana Andrade da Silva  
Gestão social no Brasil de 1988 a 2021 223  
Maria Suelen Santos  
Mariana de Ávila Santos  
Proteção social na realidade brasileira: 247  
a assistência social em questão  
Ana Carolyna Ribeiro Sales  
Vera Núbia Santos  
Maria da Conceição Vasconcelos Gonçalves  
A questão ambiental e destrutividade capitalista: 272  
o desastre ambiental no Rio Grande do Sul  
Letícia Soares Nunes  
Paula Algeri Roithmann  
Reassentamento involuntário e desenvolvimento urbano 295  
em Belém Pará  
Gizele Cristina Carvalho dos Santos  
Hisakhana Pahoona Corbin  
Desigualdade no acesso ao saneamento básico no Brasil: 320  
questão social e a dimensão de gênero  
Isabel Jardin do Nascimento Andrade  
Atualidade do pensamento educacional de Florestan Fernandes 338  
Raí Vieira Soares  
Tema Livre  
A recepção do direito à centralização de capital no contexto da 363  
produção do espaço urbano  
Murilo Amadio Cipollone  
Educação e trabalho: considerações sobre 388  
o processo de formação humana  
Luiz Carlos de Souza Junior  
As implicações da organização do trabalho para a 413  
interprofissionalidade na saúde mental  
Karina Faustino de Carvalho Tetéo  
Edla Hoffmann  
Do chão à tela: dimensões da proteção social de jovens 439  
na pandemia de covid-19  
Bruna Carolina Silva dos Reis  
Sônia Regina Nozabielli  
Júlia Bezerra Nunes do Amaral  
Patrícia Leme de Oliveira Borba  
As teses do VI CBAS de 1989 nas trincheiras da luta antirracista do 463  
serviço social brasileiro: legado e atualidade  
André Henrique Mello Correa  
O invisível salta aos olhos: saúde mental e 480  
residência multiprofissional no Hemorio  
Bruna Alves da Motta  
Keiza da Conceição Nunes  
Ingrid de Assis Camilo Cabral  
Judicialização da saúde pública e trabalho profissional: 505  
de estratégia a fluxo institucional  
Clara Stephanie Andrade Pereira  
Entrevista  
Filha de Xica Manicongo: entrevista com Adriana Lohanna dos Santos 528  
Entrevistador: Samuel Francisco Rabelo  
Tradução  
Considerações sobre o conceito gramsciano de "classes subalternas" 544  
Massimo Modonesi  
Tradução por:  
Ana Lívia Adriano  
Emilie Faedo Della Giustina  
Editorial  
Realidade Brasileira e Serviço Social  
É com grande entusiasmo que publicamos a nova edição da revista Libertas, 2025-1,  
que traz o dossiê temático “Realidade Brasileira e Serviço Social”.  
A complexidade e a diversidade dos estudos da realidade brasileira, particularmente no  
campo da teoria crítica marxista, nos levaram à elaboração deste dossiê, buscando contribuições  
acerca dos diferentes temas que tratam do Brasil, retomando dilemas históricos e questões  
latentes da contemporaneidade.  
Os estudos que tratam da realidade brasileira têm sido vastamente desenvolvidos nas  
Ciências Humanas e Sociais há muito tempo, com diferentes recortes e abordagens. Tanto os  
dilemas mais amplos da formação social brasileira e os debates em torno do pensamento social  
brasileiro, quanto os enfoques em especificidades da realidade social, tais como os aspectos  
econômicos, políticos, culturais, sociais e territoriais, são sempre postos e repostos para estudo,  
análise e interpretação, pois, como disse Ianni (2004, p. 41) “uma das singularidades da história  
do Brasil é que este é um país que se pensa contínua e periodicamente”.  
Os desafios postos na contemporaneidade são amplos e extrapolam a realidade nacional,  
basta pensar no contexto de crise mundial do capitalismo, na ofensiva ultraneolibreral, nos  
preceitos conservadores e fascistas que assombram o mundo; porém, tais questões podem se  
apresentar de formas particulares em uma sociedade como a brasileira, o que abre espaço para  
formulações para entender esta realidade e as possibilidades de lutas e resistências da classe  
trabalhadora. Novamente invocando Ianni (2004, p. 41), a reflexão sobre a realidade se dá de  
forma sistemática “no contexto de conjunturas críticas ou a partir de dilemas e perspectivas que  
se criam quando ocorrem rupturas históricas”.  
Nestes últimos anos percebemos que há um aprofundamento dos estudos sobre a  
realidade brasileira no Serviço Social, onde pesquisas e publicações vêm abordando tal  
temática, resgatando interpretações clássicas e contemporâneas acerca do Brasil para a  
compreensão dos processos atuais e para pensar os rumos do trabalho e da formação  
DOI: 10.34019/1980-8518.2025.v25.49255  
Esta obra está licenciada sob os termos  
Recebido em: 27/06/2025  
Aprovado em: 27/06/2025  
Editorial  
profissional.  
Pensamos que tais estudos e pesquisas respondem ao reconhecimento, já consagrado  
nas Diretrizes Curriculares do Serviço Social, de 1996, do núcleo de “formação sócio-histórica  
da sociedade brasileira” como um dos três pilares de fundamentação constitutivos da formação  
profissional. Neste conjunto de pesquisas, vem ganhando aprofundamento nos últimos anos, o  
debate étnico-racial na formação em Serviço Social, em que a discussão tem partido da premissa  
de que “o conceito de raça/etnia é fundamental para a compreensão da questão social na  
dialética da formação social brasileira” (ABEPSS, 2018, p. 13), estabelecendo uma relação  
estrutural entre raça/etnia e classe para a compreensão do racismo na particularidade histórica  
do Brasil.  
Para além disso, grupos de estudo e pesquisa, projetos de pesquisa e extensão, trabalhos  
de conclusão de curso de graduação e pós-graduação dedicados ao estudo da realidade brasileira  
vêm munindo o Serviço Social de importante arcabouço teórico-analítico para compreender o  
Brasil contemporâneo, que demanda, por vezes, retomar o passado para encontrar “as raízes do  
presente, com intuito de delinear as perspectivas do futuro” (Ianni, 2004, p. 43).  
Assim, apresentamos um conjunto de textos que buscam jogar luz sobre vários aspectos  
e dilemas da realidade brasileira.  
Abrimos o dossiê com a análise de Ana Elizabete Mota no artigo “Ofensiva da direita,  
crise da democracia e ameaças às conquistas civilizatórias". Trata-se de um texto que  
problematiza a ofensiva da extrema direita no plano mundial, no âmbito da reação burguesa à  
crise do capitalismo. A autora indica a emergência de conservadorismos de novo tipo, assim  
como uma mudança no modo de operar a democracia burguesa. Expõe a hipótese de redefinição  
das modalidades estratégicas de enfrentamento às manifestações da questão social, envolvendo  
o empreendedorismo e o trabalho por conta própria, “como mecanismos de enfrentamento do  
desemprego, ajustamento às mudanças do trabalho e esvaziamento das políticas de trabalho e  
renda, com a centralidade da sobrevivência e a captura da superação da pobreza pelas políticas  
de transferência de renda, na esfera da assistência social”.  
IX  
O texto de Ivete Simionatto, Fabiana Luiza Negri, Edinaura Luza e Ravi  
Calseverini Toledo, “Da espontaneidade à direção consciente: a potencialidade das lutas  
sociais na realidade brasileira”, apresenta o quadro das lutas sociais no Brasil dos anos 2000,  
trazendo reflexões sobre seu campo de articulação, perspectivas e estratégias de ação,  
destacando a importância do processo de formação de uma consciência crítica e a construção  
de um projeto emancipatório.  
Estudos que abordam a conformação das classes sociais e as particularidades da classe  
Realidade Brasileira e Serviço Social  
trabalhadora no Brasil contemporâneo ganham destaque no dossiê. Dentre eles está o artigo  
Burguesia dependente e crise de hegemonia no Brasil”, de Isabela Ramos Ribeiro, que se  
utiliza de pesquisa bibliográfica para tratar do papel da burguesia na composição do bloco no  
poder e na crise de hegemonia estabelecida em 2013 no Brasil, bem como as características  
dessa crise que perpassa diversos governos. Ainda nesta abordagem, Daniel Carvalho Silva  
apresenta o texto “Neoliberalismo: da direita à esquerda na política brasileira”, analisando de  
forma breve os governos neoliberais de Collor, FHC, Lula, Dilma, Temer e Bolsonaro e a  
particularidade da classe trabalhadora em face do ordenamento da sociedade de classes no  
Brasil. Artur Bispo dos Santos Neto, em “A função mistificadora do Produto Interno Bruto  
brasileiro e o aumento da taxa de mais-valor”, parte da realidade brasileira em um debate atual  
e necessário acerca da mistificação dos dados do PIB (Produto Interno Bruto) no ocultamento  
da força de trabalho no processo de produção de mais-valor. Apresenta contribuições  
importantes acerca da apreensão da lógica produtiva e reprodutiva do capital na fonte do  
pensamento de Marx e de outros autores marxistas.  
Também se destacam os trabalhos que relacionam a conformação da classe trabalhadora  
e a questão étnico-racial no Brasil, sob diferentes enfoques, constituindo um importante  
acúmulo em torno do debate da relação entre classe e raça na realidade brasileira. O texto  
Escravidão e construção do Estado Nacional: implicações sobre a generalização do trabalho  
assalariado no Brasil”, de Alcione Ferreira da Silva, apresenta uma discussão relevante que  
instiga reflexões acerca da formação da classe trabalhadora no Brasil. Tem como proposta  
debater a escravização da população originária da África e de seus ascendentes na relação com  
a constituição do Estado Nacional brasileiro. Já o artigo de Lívia Cintra Berdu e Flávia  
Saragiotto Magalhães do Valle, “Particularidades do capitalismo no Brasil: superexploração  
da força de trabalho, racismo e mito da democracia racial no capitalismo dependente”  
apresenta importantes reflexões sobre o desenvolvimento do modo de produção capitalista no  
Brasil, sobretudo no que tange ao processo de conformação da classe trabalhadora no país,  
enfatizando a superexploração da força de trabalho, o racismo e o “mito da democracia racial”  
como elementos estruturais de sua consolidação.  
X
Ainda na abordagem sobre o tema da questão étnico-racial, Erykah Rodrigues dos  
Santos Iturriet e Rafael Cardiano apresentam “A superação do obstáculo epistemológico do  
mulato: método e ambiguidade”. Através de densa pesquisa bibliográfica, abordam a maneira  
pela qual se construiu a classificação parda na sociedade brasileira “com variações que precisam  
ser organizadas partindo de um ponto de vista político-revolucionário, questionando as  
maneiras antigas de percepção aguerridas pelas ciências sociais, sem esquecer o prisma das  
Libertas, Juiz de Fora, v. 25, n. 1, p. VIII-XIV, jan./jun. 2025. ISSN 1980-8518  
Editorial  
estruturas sociais que influem na percepção de leitura dos sujeitos negros brasileiros”. O artigo  
Formação das sociedades angolana e brasileira: dominação e resistências dos povos  
originários”, de autoria de Boás dos Santos e Edna Maria Goulart Joazeiro, apresenta um  
estudo de natureza conceitual, a partir de pesquisa bibliográfica, que evidencia o protagonismo  
dos povos originários nas formações das sociedades brasileiras e angolanas. Com foco na  
educação, cultura e identidade, destaca-se a participação das mulheres no processo de  
resistência ao apagamento cultural em face da colonização.  
Dois textos tratam diretamente do Serviço Social na realidade brasileira, o primeiro é  
Capitalismo dependente e questão social: apontamentos sobre eugenia e serviço social”, de  
Larisse Miranda de Brito, que problematiza a emersão da questão social e da profissão de  
Serviço Social na realidade do capitalismo dependente. Para tanto, apreende historicamente o  
surgimento do trabalho livre (e assalariado) na constituição da particularidade da sociedade de  
classes e das políticas eugênicas e higienistas na consolidação do Serviço Social e da questão  
social no Brasil. O outro, “A ofensiva conservadora ao pensamento de Antonio Gramsci e o  
Serviço Social brasileiro”, de Eliana Andrade da Silva, analisa como a atual ofensiva  
conservadora sobre a teoria e o legado de Gramsci impactam o Serviço Social brasileiro, que  
se aproxima das elaborações do pensador sardo na década de 1970, através de questionamentos  
à “direção social estratégica da profissão”.  
XI  
No âmbito do debate de Estado, políticas sociais e direitos humanos na realidade  
brasileira, o dossiê conta com as contribuições de Maria Suelen Santos e Mariana de Ávila  
Santos, que no artigo “Gestão social no Brasil de 1988 a 2021”, apresentam importante  
reflexão teórica e histórica sobre os antagonismos que perpassam a gestão social no Brasil no  
período demarcado. O trabalho fundamenta-se em pesquisa bibliográfica no âmbito do Serviço  
Social e o resultado do estudo aponta para o caráter antidemocrático e conservador da gestão  
social brasileira principalmente a partir do golpe parlamentar de 2016. Também com o artigo  
Proteção social na realidade brasileira: a assistência social em questão”, escrito por Ana  
Carolyna Ribeiro Sales, Vera Núbia Santos e Maria da Conceição Vasconcelos Gonçalves,  
aborda a política de assistência social através da formação social brasileira, marcada, de forma  
estrutural, pela relação de dependência com os países de capitalismo central e pela herança  
colonialista, compreendendo-a como parte de contradições e lutas sociais mais amplas. As  
autoras indicam os óbices estruturais como o clientelismo, o patrimonialismo e a mediação do  
favor que permeiam a política de assistência social e o campo de disputa na atualidade, o que  
“exige, mais do que nunca, a articulação das lutas coletivas em defesa dos direitos sociais”.  
O dossiê também conta com contribuições que passam pelo eixo temático da questão  
Realidade Brasileira e Serviço Social  
agrária, urbana e ambiental, sob enfoques variados, como o texto de Letícia Soares Nunes e  
Paula Algeri Roithmann, “A questão ambiental e destrutividade capitalista: o desastre  
ambiental no Rio Grande do Sul”, que traz uma reflexão sobre os desastres ambientais no  
estado do Rio Grande do Sul, ocorridos em 2024, indicando que tais acontecimentos se dão  
pelas características próprias da sociedade capitalista, agravando a desigualdade social e a  
destrutividade ambiental. Já Gizele Cristina Carvalho dos Santos e Hisakhana Pahoona  
Corbin, no artigo “Reassentamento involuntário e desenvolvimento urbano em Belém - Pará”,  
discutem o reassentamento involuntário em decorrência de Programas de Desenvolvimento  
Urbano, tendo como enfoque a experiência do Programa de Saneamento da Bacia da Estrada  
Nova I, em Belém. Naquele contexto, o reassentamento de 92 famílias gerou a ruptura de  
vínculos com o território de origem e o encarecimento do custo de vida no novo território,  
situação que reforça a importância das ações de geração de emprego e renda, visando evitar o  
empobrecimento de famílias reassentadas.  
No campo de debate dos direitos humanos no Brasil, temos o artigo “Desigualdade no  
acesso ao saneamento básico no Brasil: questão social e a dimensão de gênero”, de autoria de  
Isabel Jardin do Nascimento Andrade, que estende a compreensão de direitos humanos ao  
acesso à água e ao saneamento básico. Em contrapartida, a ausência desse direito é debatida  
como uma expressão da questão social. O tema amplia-se ao trazer para o debate a dimensão  
de gênero e de pessoas LGBTQIAPN+.  
XII  
Para fechar o dossiê temático nada mais justo que um artigo centrado em um dos maiores  
intérpretes da realidade brasileira: Florestan Fernandes. No artigo “Atualidade do pensamento  
educacional de Florestan Fernandes”, Raí Vieira Soares trata do pensamento educacional  
deste intelectual-militante, problematizando os desafios da educação pública na  
contemporaneidade e as múltiplas possibilidades de diálogo com sua obra.  
Continuamos recebendo artigos em fluxo contínuo e este número traz, na seção Tema  
Livre, importantes contribuições que fazem parte do escopo da revista. Das quais, discussões  
teóricas como as trazidas no artigo “A recepção do direito à centralização de capital no contexto  
da produção do espaço urbano”, Murilo Amadio Cipollone, que sustenta a reflexão teórica na  
crítica da forma jurídica estruturada por Evgeni Pachukanis, com a modalidade procedimental  
que lhe atribui Edelman. O autor investiga o processo de recepção do direito à centralização de  
capital no contexto da produção do espaço. “Cuida-se, assim, da crítica do modo pelo qual a  
forma jurídica reproduz e torna eficaz a infraestrutura econômica pós-fordista, no sentido de  
expandir as taxas de exploração da classe trabalhadora”. Outra contribuição teórica é  
apresentada por Luiz Carlos de Souza Junior no artigo intitulado “Educação e trabalho:  
Libertas, Juiz de Fora, v. 25, n. 1, p. VIII-XIV, jan./jun. 2025. ISSN 1980-8518  
Editorial  
considerações sobre o processo de formação humana”, que busca refletir sobre o processo de  
formação humana através da ontologia marxista, relacionando o debate da educação com a  
categoria trabalho, elementos fundamentais para pensar a construção do ser social.  
Contribuições que tem como central a área da saúde, contamos com três artigos. O  
primeiro, de Karina Faustino de Carvalho Tetéo e Edla Hoffmann, intitulado “As  
implicações da organização do trabalho para a interprofissionalidade na saúde mental”,  
analisa como as transformações do mundo do trabalho influenciam na materialização do  
trabalho interprofissional na área da saúde. Os resultados apontam que grande parte dos  
dispositivos de saúde mental pesquisados se encontra pautada no trabalho multiprofissional,  
sem o exercício da interprofissionalidade, pois permanecem centrados em ações individuais,  
sem trocas e ações integradas entre os(as) profissionais. Ainda sobre saúde mental, o artigo de  
Bruna Alves da Motta, Keiza da Conceição Nunes, Ingrid de Assis Camilo Cabral, “O  
invisível salta aos olhos: saúde mental e residência multiprofissional no Hemorio”, apresenta  
os resultados de uma pesquisa realizada em 2023 com residentes do programa multiprofissional  
do Instituto Estadual de Hematologia Arthur de Siqueira Cavalcanti (Hemorio), tratando sobre  
a percepção destes em relação à experiência no programa e as implicações na sua saúde mental.  
Por fim, dentro da área da saúde temos o artigo “Judicialização da saúde pública e trabalho  
profissional: de estratégia a fluxo institucional”, sob autoria de Clara Stephanie Andrade  
Pereira, realiza um estudo teórico e reflexivo sobre o tema, indicando que o recurso da  
judicialização é utilizado frequentemente como estratégia de garantia à acesso dos usuários do  
Sistema Único de Saúde (SUS) a bens e serviços em saúde. A autora aborda as contradições do  
uso deste recurso no campo do trabalho profissional que indicam a necessidade da defesa  
coletiva pelo efetivo financiamento do SUS.  
XIII  
Para fechar a seção Tema Livre apresentamos dois artigos. O primeiro, de Bruna  
Carolina Silva dos Reis, Sônia Regina Nozabielli, Júlia Bezerra Nunes do Amaral e  
Patrícia Leme de Oliveira Borba, “Do chão à tela: dimensões da proteção social de jovens  
na pandemia de covid-19”, apresenta o resultado de uma pesquisa realizada com seis jovens do  
ensino médio do município de Santos-SP durante a pandemia da Covid-19, buscando evidenciar  
os impactos da ausência da escola presencial na proteção social destes sujeitos. O segundo é de  
André Henrique Mello Correa: “As teses do VI CBAS de 1989 nas trincheiras da luta  
antirracista do serviço social brasileiro: legado e atualidade”, que apresenta o legado e a  
atualidade das teses apresentadas no VI CBAS de 1989, evidenciando o pioneirismo de  
assistentes sociais negras no tensionamento deste debate já em idos dos anos 1980/1990.  
Neste número contamos ainda com a entrevista feita por Samuel Francisco Rabelo  
Realidade Brasileira e Serviço Social  
intitulada “Filha de Xica Manicongo: entrevista com Adriana Lohanna dos Santos”, que  
aborda a trajetória social e política de Adriana Lohanna dos Santos enquanto uma mulher  
transexual negra e nordestina, primeira assistente social transexual do estado de Sergipe, seus  
desafios e estratégias de resistência, luta e militância.  
Para fechar este número, a Libertas traz o texto “Considerações sobre o conceito  
gramsciano de ‘classes subalternas’”, de Massimo Modonesi, traduzido pelas docentes da  
Universidade Federal Fluminense (UFF) Ana Lívia Adriano e Emilie Faedo Della Giustina.  
Aimagem de capa retrata a destruição da floresta amazônica por uma queimada ocorrida  
nas proximidades da cidade de Porto Velho, capital de Rondônia, em agosto de 2020,  
expressando a dimensão de destruição implacável da natureza exercida no âmbito das relações  
sociais capitalistas, além de nos remeter ao que ainda precisa ser feito para enfrentar os dilemas  
do nosso tempo histórico. Registrada pelo fotógrafo Bruno Kelly, a foto – que estampou  
inúmeras reportagens sobre desmatamento, corrupção e o desmonte de políticas ambientais no  
Brasil – foi divulgada pela agência de jornalismo independente Amazônia Real, uma  
organização sem fins lucrativos que busca dar visibilidade às populações e às questões da  
Amazônia, defendendo a equidade, a igualdade e a diversidade. Agradecemos ao Bruno e à  
Amazônia Real pela permissão do uso da imagem.  
Encerramos este editorial agradecendo às várias contribuições que reforçam a  
diversidade de enfoques na análise crítica da realidade brasileira e no crescimento do estudo  
das particularidades da formação social brasileira nos últimos anos, especialmente no Serviço  
Social. Desejamos uma boa leitura!  
XIV  
Juiz de Fora, 30 de junho de 2025.  
Bruno Bruziguessi, Luciano Souza, Alexandra Eiras e Isaura Aquino.  
Referências bibliográficas  
ABEPSS. Subsídios para o debate sobre a questão étnico-racial na formação em Serviço  
Social. ABEPSS: Vitória, 2018.  
IANNI, Octávio. Pensamento social no Brasil. Bauru/São Paulo: EDUSC/ANPOCS, 2004.  
Libertas, Juiz de Fora, v. 25, n. 1, p. VIII-XIV, jan./jun. 2025. ISSN 1980-8518  
Ofensiva da direita, crise da democracia e  
ameaças às conquistas civilizatórias1  
Right-wing offensive, crisis of democracy and threats to civilizing  
achievements  
Ana Elizabete Mota*  
Resumo: Neste artigo discorro sobre a ofensiva  
da extrema direita mundial no âmbito da reação  
burguesa à crise do capitalismo e identifico a  
emergência de conservadorismos de novo tipo,  
assim como uma mudança no modo de operar a  
democracia burguesa. A cultura política de  
enfrentamento dessa crise é mediada por  
ideologias fascistas (Matos, 2020), diretrizes  
neoliberais, contrarreformas do Estado e  
estratégias de controle e exploração do trabalho  
que afetam as condições de vida e a  
sociabilidade das classes trabalhadoras e  
subalternas e suas estratégias e táticas possuem  
significativas diferenciações com o fascismo  
clássico. Elenco tendências do que estou  
denominando de conservadorismos de novo tipo  
(Mota; Rodrigues, 2020) e, ao final, apresento  
hipóteses que sinalizam os desafios de nosso  
tempo histórico.  
Abstract: In this article, I discuss the global far-  
right offensive in the context of the bourgeois  
reaction to the crisis of capitalism and identify  
the emergence of new types of conservatism, as  
well as a change in the way bourgeois  
democracy operates. The political culture  
addressing this crisis is mediated by fascist  
ideologies (Badaró Matos, 2020), neoliberal  
guidelines, state counter-reforms, and strategies  
of control and exploitation of labor that affect  
the living conditions and sociability of the  
working and subalterns classes, with their  
strategies and tactics showing significant  
differences from classic fascism. I outline  
trends that I am referring to as new types of  
conservatism (Mota and Rodrigues, 2020) and,  
in the end, present hypotheses that indicate the  
challenges of our historical time.  
Palavras-chaves: Capitalismo; Ofensiva da  
direita; Neofascismo; Crise da democracia;  
Classes subalternas.  
Keywords: Capitalism; Right-wing offensive;  
Neofascism; Crisis of democracy; Subalterns  
classes.  
1 As ideias centrais deste ensaio foram originalmente apresentadas por ocasião da Aula Inaugural do Programa de  
Pós-graduação em Políticas Públicas, vinculado ao Departamento de Serviço Social da Universidade Federal do  
Maranhão em abril/2025; igualmente, contém extratos do exposição realizada no VII Seminário Internacional de  
Política Social (VII SIPS): desafios para a política social e a democracia no capitalismo tardio: tecnologia,  
corporações, desinformação e o avanço da direita, promovido pelo Programa de Pós-graduação em Política Social  
em julho/2024. Para esta publicação, adaptamos à versão escrita a linguagem oral de ambos, fazendo revisões e  
acréscimos nos materiais.  
* Universidade Federal de Pernambuco. E-mail: bmota@elogica.com.br  
DOI: 10.34019/1980-8518.2025.v25.49127  
Esta obra está licenciada sob os termos  
Recebido em: 16/06/2025  
Aprovado em: 23/06/2025  
Ana Elizabete Mota  
Introdução  
Neste artigo abordo a ofensiva da extrema direita mundial no âmbito da reação burguesa à  
crise do capitalismo e identifico a emergência de conservadorismos de novo tipo, assim como  
uma mudança no modo de operar a democracia burguesa. Refiro-me à crise de 2008  
considerando sua dimensão global e a existência de elementos compatíveis com a teorização  
gramsciana de crise orgânica, referindo-se à realidade italiana dos anos 1920, período que  
desaguou no fascismo italiano sob o regime de Mussolini (Konder, 2009). A cultura política de  
enfrentamento dessa crise é mediada por ideologias fascistas (Matos, 2020), diretrizes  
neoliberais, contrarreformas do Estado e estratégias de controle e exploração do trabalho que  
afetam as condições de vida e a sociabilidade das classes trabalhadoras e subalternas. Ressalto  
o peso da formação de culturas, sociabilidades e práticas que afetam direitos, descuram dos  
avanços civilizatórios do pós-segunda guerra e fomentam constrangimentos sócio-políticos e  
morais na tentativa de construir consensos de classe, legitimadores dos projetos da extrema  
direita, ainda que enfrentando resistências e tensões. Entendo que as estratégias e táticas que  
orientam os mecanismos de dominação em processamento na realidade brasileira possuem  
marcas de ideologias neofascistas, mas são significativas as suas diferenças em relação ao  
fascismo clássico (Matos, 2020). Elenco tendências do que estou denominando de  
conservadorismos de novo tipo (Mota; Rodrigues, 2020) presentes nas hostes burguesas, na  
atuação do Estado classista, na instrumentalização da democracia e na correlação de forças  
entre as classes. Concluo com algumas hipóteses que sinalizam os desafios do nosso tempo  
histórico.  
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Os cenários da ofensiva da extrema direita mundial e no Brasil  
Os mecanismos de enfrentamento das crises capitalistas a partir dos anos 1970 expõem  
os paradoxos e contradições da sociedade regida pelo capital, cujos desequilíbrios,  
instabilidades e incertezas geram a tendência histórica, cíclica, de queda tendencial das taxas  
de lucros. Qualificadas como crise de acumulação, seus determinantes imediatos nem sempre  
revelam sua verdadeira origem, porém, invariavelmente, suas particulares manifestações  
mobilizam a unidade das estratégias de classe para seu enfrentamento e superação. Esse enredo,  
aqui genericamente referido, nos motivou a refletir sobre os atuais mecanismos de  
enfrentamento da crise capitalista, particularmente a de 2008, com destaque para as políticas de  
austeridade implementadas pelas classes dominantes (Mattei, 2023, p. 397-420) através das  
contrarreformas do Estado e das mudanças na correlação de forças com a emergência da  
extrema direita mundial e suas manifestações no Brasil.  
Libertas, Juiz de Fora, v. 25, n. 1, p. 1-17, jan./jun. 2025. ISSN 1980-8518  
Ofensiva da direita, crise da democracia e ameaças às conquistas civilizatórias  
Ao tempo em que abordo a relação entre a ofensividade da extrema direita, as ideologias  
fascistas e o ultraneoliberalismo no enfrentamento da crise de subprime de 2008 - que a partir  
dos Estados Unidos atingiu todas as economias centrais e periféricas, entendo, como Avelãs  
Nunes (2021, p. 511), que “os ventos que provocaram a maior crise do capitalismo desde 1929  
tornaram claro o papel do Estado capitalista, enquanto ditadura do grande capital financeiro”  
(Nunes, 2021, p. 521); crise que foi agravada pela pandemia mundial do corona vírus.  
As mediações desses processos dizem respeito às estratégias das frações dominantes,  
através dos seus aparelhos privados de hegemonia e da ação do Estado que, implementam  
medidas de austeridade “fascistas ou democráticas” (Mattei, 2023 p. 377). Historicamente, as  
classes proprietárias têm, em última instância, o propósito de redefinir diretrizes que favoreçam  
a retomada do crescimento econômico e o controle das insurgências dos subalternos que  
apontem projetos para além do capital. Fato é que, nos países centrais e periféricos, a atuação  
da direita e extrema direita expande-se nas últimas décadas e seu foco é a passivização das  
classes trabalhadoras e subalternas. Sem menosprezar o uso de violências de toda ordem, o  
objetivo da burguesia é obter adesão ao projeto da classe exploradora, opressora e dominante,  
tornando-o universal – constitutivo de hegemonia dos grupos dominantes.  
Nessa conjuntura, a reeleição de Donald Trump robusteceu a extrema direita com o seu  
ufanismo personalista, ao afirmar, no discurso de posse que a era de ouro da América começa  
agora mesmo com a retomada radical da prosperidade americana, argumento que justificaria –  
modo contínuo – a violência contra os migrantes (América para os americanos), o desmonte  
das instituições de direitos humanos e solidariedade internacional e o deslanchar de uma guerra  
comercial imperialista. Na realidade latino-americana – lembradas as suas abissais diferenças  
em relação ao contexto americano, são emblemáticos os casos do Brasil e da Argentina, cujos  
mandatos do ex-presidente Jair Bolsonaro (2019/2022) e de Millei, em andamento, revelam  
filiações à extrema direita e organicidade com as propostas trumpistas.  
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Há, todavia, registros de rebeldias na realidade brasileira: o ano 2013 foi palco de  
manifestações de descontentamento estudantil e popular, sem filiação partidária explicitas, mas  
dando sinais de alerta do que estaria por vir: o surgimento de movimentos e organizações de  
direita e extrema direita, com protagonismo de jovens lideranças que capitanearam os interesses  
e insatisfações daquelas manifestações espontâneas, politizando-as à direita. Essa  
processualidade avança com o golpe jurídico-parlamentar de 2016 – o impeachment da  
presidenta Dilma Rousseff; segue-se a criação da Operação Lava Jato, sob a ideologia midiática  
da anticorrupção que evolui para a defesa da militarização do Estado, com desqualificações da  
esquerda, culminando com a prisão e inelegibilidade do ex-presidente Luís Inácio Lula da Silva.  
Ana Elizabete Mota  
Ao mesmo tempo se inicia a campanha eleitoral e a eleição do candidato da extrema  
direita para a presidência da República, cujo mandato estendeu-se de 2018 a 2022. Em face da  
derrota da reeleição de Jair Bolsonaro em 2022 e a posse de Lula da Silva em 2023, a fração  
bolsonarista implementa uma tentativa fracassada de golpe de Estado, objeto de criminalização  
da militância vinculada ao ex-presidente Bolsonaro. O atual governo Lula da Silva, um mandato  
de coalizão que vai do centro-direita ao centro esquerda, enfrenta um ambiente parlamentar  
ultraconservador e, a despeito de implementar algumas medidas de cunho social, mantém-se  
fiel à austeridade fiscal. Politicamente aposta no poder judiciário e na capilaridade popular dos  
processos ético-políticos referentes ao julgamento dos golpistas de 2023 que se tornaram  
objetos de uma acirrada disputa parlamentar e entre eleitores e militantes à esquerda e à direita,  
na antessala da eleição presidencial de 2026.  
Se o pós-primeira guerra mundial, como pesquisou Clara Mattei (2023, p. 84-85),  
evidenciou uma nova contextualidade política, protagonizada pela ação dos trabalhadores,  
particularmente na Itália e Grã-Bretanha, com a emblemática criação dos comitês de fábrica  
nos anos 1920, afirma a autora que, em face dessa ação organizada dos trabalhadores, “o  
establishment desperta seus maiores temores e consolidou um bloco antissocialista entre  
liberais, nacionalistas e conservadores [....] que se fundiram na ofensiva armada do fascismo e  
na ampla agenda da austeridade [...] a nova paladina do capitalismo para excluir qualquer  
alternativa a ele, quando a classe dominante impõe o seu domínio” (Mattei, 2023, p. 184-185).  
Em síntese: a lição histórica e teórica da emergência de conservadorismos de inspiração  
fascista tem orgânica relação com as crises do capital, a luta de classes, as crises de hegemonia  
e a ofensividade da burguesia na tentativa de restaurar a ordem capitalista. Essa conjuntura  
como já aventado, pode ser problematizada com os aportes da categoria gramsciana crise  
orgânica2 em função das ranhuras na hegemonia das classes dominantes e das limitadas  
perspectivas de superação dessa crise. Isto é: trata-se de um período em que crise econômica e  
poder político de classe deságuam em processos de transição, nos quais determinado padrão de  
dominação de classes foi abalado (porém, não cancelado), mobilizando processos políticos cuja  
remissão ao campo da hegemonia obriga-nos a situá-los no âmbito das relações de força entre  
as classes. Essa abordagem, ao situar os processos de transição no âmbito da hegemonia,  
permite tematizar medidas de austeridade como parte do processo e projeto da burguesia que  
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Uma das características da crise orgânica é a concomitância entre a crise econômica (de acumulação) e a  
emergência de uma crise política, determinada pelo acirramento dos conflitos entre as classes e, no seu interior,  
entre as frações de classe. Na concepção de Gramsci, essa crise orgânica afeta o conjunto das relações sociais e é  
a condensação das contradições inerentes à estrutura social. Para uma síntese do conceito cf. VOZA, P.; LIGUORI,  
G. Dicionário Gramsciano. São Paulo, Boitempo, 2017, p. 162-164.  
Libertas, Juiz de Fora, v. 25, n. 1, p. 1-17, jan./jun. 2025. ISSN 1980-8518  
Ofensiva da direita, crise da democracia e ameaças às conquistas civilizatórias  
exigem nova direção ideopolítica, ancorada em ideologias fascistas e em novos usos da  
democracia burguesa, afinando questões atinentes às situações de relação de forças. Nesse  
campo, as estratégias de dominação adquirem particularidades, a exemplo da criação de modos  
de operar a democracia burguesa e de novas mediações culturais ultraconservadoras. Aconselha  
Gramsci:  
§ 17. Análises das situações: relações de força. É o problema das relações  
entre estrutura e superestrutura que precisa ser posto e resolvido para que se  
possa chegar, com exatidão, a uma análise correta das forças que atuam na  
história de um determinado período e determinar a relação entre elas. É  
necessário mover-se no âmbito de dois princípios: 1) o de que nenhuma  
sociedade se põe a tarefas para cuja solução ainda não existam as condições  
necessárias e suficientes ou que pelo menos não estejam em vias de aparecer  
e se desenvolver; 2) e o de que nenhuma sociedade se dissolve e pode ser  
substituída antes que se tenham desenvolvido todas as formas de vida  
implícitas em suas relações (verificar a exata enunciação destes princípios).  
(Gramsci, 2024, CC 13, p. 716)  
Ao fortalecer a necessidade de rigorosa contextualização econômica e ideopolítica, em  
consonância com as particularidades do capitalismo em cada país e região, Álvaro Bianchi,  
referindo-se ao estudo das ideologias fascistas, sugere que (...) “o estudo da ideologia não pode  
ser separado das realidades políticas e sociais nas quais ela se afirma” (Bianchi, 2024 p. 56).  
Nessas realidades, são a correlação de forças que determinam a atualização das ideologias, suas  
tendências e novas configurações. Esse parece ser um dos maiores desafios que a realidade  
coloca para a pesquisa concreta de situações concretas.  
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Nova fase de dominação burguesa  
Como referido em outra ocasião, está em andamento, desde a crise de 2008, uma espécie  
de atualização das estratégias de dominação burguesa, caracterizada por “um conservadorismo  
de novo tipo” (Mota; Rodrigues, 2020), reacionário, de caráter neofascista e neoliberal,  
protagonizado pela direita e extrema direita, com pretensões de tornar-se universal – enquanto  
ideário burguês que deve pautar os modos de ser e viver das classes subalternas. As medidas de  
austeridade requerem a instrumentalização da democracia burguesa: mantem-se o sufrágio  
eleitoral, mas as regras das campanhas eleitorais são flexibilizadas. De um lado, o  
financiamento multimilionário, privado, das eleições. De outro, a mediação das mídias digitais  
(redes sociais e fake news) na criação de candidatos outsiders políticos da extrema direita,  
apoiados por celebridades, influencers e youtubers em torno de temas como anticomunismo e  
pautas libertárias. Manobras jurídicas são acionadas para manter limitados os controles públicos  
das mídias. O fundamental é manter o instituto democrático do sufrágio, mas permitir as novas  
modalidades de campanhas eleitorais, manipulando e reificando o senso comum: a nova  
Ana Elizabete Mota  
política antissistêmica, sem conluios parlamentares, anticorruptivel, de inspiração religiosa, sob  
acirrada guerra cultural e pautada pelo conservadorismo moral e reacionário.  
As classes subalternas - onde estão incluídos assalariados, trabalhadores por conta  
própria, segmentos pauperizados e precarizados -, subsumidos formal e realmente ao capital,  
sob relações de exploração e dominação, são o alvo dessa ofensiva que é adensada por opressões  
e discriminações em face da sua composição de classe e diversidade de raça, gênero, geração e  
sexualidades.  
Parece-me inconteste que a ofensiva da extrema direita espraia-se como cultura  
autoritária e anticivil, eivada de violências e ressignificações da democracia liberal,  
particularmente com a negação de direitos políticos, sociais e civis sob a narrativa da  
inauguração de uma nova era. Em recente artigo, Bianchi faz uma síntese dos estudos sobre o  
fascismo e endossa a afirmação de que “historicamente o aspecto central da ideologia fascista  
expressava-se por meio da recorrente afirmação de um recomeço, ou de uma nova ordem, que  
permitiria a superação de uma fase de crise ou declínio” (Griffin, 1991, p. 32-33 apud Bianchi,  
2024, p. 53). Segundo Bianchi, (2024, p. 60),  
a ideologia do fascismo é ultranacionalista, estatólatra, antidemocrática,  
anticomunista e atribui à violência a capacidade redentora de criar uma ordem  
política para promover o renascimento nacional. É essa ideologia que conecta  
o fascismo do entreguerras aos novos movimentos neofascistas.  
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Em outros termos: essa ideologia deriva da programática econômica e direção  
ideopolítica socializadora dos requerimentos do capital. Dentre outras linhas de ação, a  
burguesia movimenta-se nesse processo com a defesa da centralidade do mercado em  
detrimento da esfera pública e estatal e do apagamento dos controles sociais públicos,  
empenhada na formação de uma cultura neoliberal em que a democracia ajusta-se à liberdade  
mercantil.  
Como refletido em outro momento, para as classes trabalhadoras e subalternas, a  
conjuntura de crise e de contrarreformas do capital, antes que tudo, incidem nas suas condições  
de vida e na sua cultura política. No Brasil, desde o exaurimento da ditadura empresarial-militar,  
com a restauração democrática, na década de 1980, o movimento organizado dos trabalhadores  
comportava lutas e reivindicações sociais por condições de trabalho, salários, direitos políticos,  
sociais e civis, ademais de demandas por serviços sociais protetivos públicos, dentre outros.  
Essa processualidade continha dimensões ideopolíticas e impactos econômicos que  
imprimiam, tendencialmente, características anticapitalistas, ao confrontar o genético  
antirreformismo burguês, tanto em termos legais e constitucionais, como na definição de  
recursos para o financiamento de políticas sociais públicas como atestam muitos dos artigos da  
Libertas, Juiz de Fora, v. 25, n. 1, p. 1-17, jan./jun. 2025. ISSN 1980-8518  
Ofensiva da direita, crise da democracia e ameaças às conquistas civilizatórias  
Constituição de 1988. Como ocorreu com a Emenda Constitucional 95/2016, que submeteu os  
gastos sociais às rígidas regras de controle do chamado teto de gastos, esses parâmetros vêm  
modificados.  
Na atualidade, a fragmentação partidária, sindical e político-organizativa dos  
trabalhadores e trabalhadoras afeta profundamente o campo das esquerdas em resultado das  
diferenciações de pautas, táticas e estratégias. Sejam elas resultantes da ofensividade das  
medidas econômicas, sejam elas afetadas pelas ressignificações teórico-políticas de valores,  
princípios, diretrizes e modos de vida.  
Segundo Lukács, o principal trunfo fascista para formar nas massas as suas ideias “é a  
manipulação da ontologia do cotidiano no contexto capitalista” (Lukács, 2013, p. 561).  
Poderíamos, na trilha do pensador húngaro, falar dessa condição de “desideologização”  
(Lukács, 2013, p. 268) do cotidiano [...] “para exercer uma influência motivadora somente sobre  
o entendimento e os instintos dessa particularidade” (Lukács, 2013, p. 268). Trata-se, sem  
dúvidas, do peso da categoria “ideologia” no processo de produção e reprodução social, tema  
fundamental neste debate3.  
Assim posto, entendo que as ideologias “neofacistas” confrontam-se diretamente com  
a direção progressista das lutas sociais classistas, quer no horizonte da emancipação política  
(conquista e exercício de direitos), quer no das lutas libertárias e/ou anticapitalistas (dos e das  
trabalhadoras, dos e das ambientalistas, das feministas, das liberdades sexistas e antirracistas),  
operando inflexões em todas as esferas da vida social – econômica, política, social, ambiental  
e cultural, ainda que não elimine contradições, nem resistências.  
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Os conservadorismos de inspiração fascista possuem diversas vertentes e muitos  
historiadores, filósofos e pensadores são cuidadosos em nominar o fenômeno como  
“neofascismo, protofascismo ou pós-fascismo, todavia suas determinações – como já referido  
– remontam à relação entre a crise capitalista e a recomposição do capitalismo financeiro global.  
Traverso (2023a), autor que possui significativa produção intelectual sobre o tema,  
assim como Bianchi (2024), problematizam essa conjuntura, nominando-a de pós-fascismo.  
Traverso afirma sua dimensão global e o despertar da memória do fascismo, todavia em um  
contexto histórico que desautoriza analogias stricto sensu. Para ele, o pós-fascismo deve ser  
entendido tanto em termos cronológicos como políticos: “não são totalmente fascistas no  
sentido dos anos 20/30 do século XX, nem são totalmente distintos” e aponta algumas  
3 Seja na abordagem lukácsiana, sobre o capitalismo manipulatório, seja na vertente gramsciana, da crise orgânica,  
a ideologia se constitui num dos principais pilares ideopoliticos que media, contraditória e dialeticamente, a relação  
entre a base material e as superestruturas jurídico-políticas, formadoras de sociabilidades classistas.  
Ana Elizabete Mota  
características: relaciona-se com as derrotas revolucionárias do século XX, com a governança  
neoliberal mundial, aposta em forças ditas antissistêmicas e na aversão à esquerda (Traverso,  
2023a). “É nacionalista, antifeminista, homofóbico, xenófobo e alimenta uma clara hostilidade  
contra a ecologia, arte contemporânea e o intelectualismo” (Traverso, 2023a, p. 23). Integram-  
se tanto às lógicas e às tecnologias deste século, como recorrem a estratégias utilizadas pelo  
fascismo clássico que, ao fim e ao cabo, recriam o anticomunismo, cortejam o presentismo,  
apoiam-se em teorias conspirativas e em práticas xenófobas (Traverso, 2023a). Para Judith  
Butler (2023, p. 59-60), feminista de esquerda, o eixo ideopolítico da extrema direita é o  
antifeminismo, dado que reconstituem o patriarcado e renegam as denominadas políticas de  
gênero. Segundo a pensadora, esse é um elemento novo em relação ao fascismo do século XX  
e argumenta que, os ataques à “ideologia de gênero(Butler, 2023, p. 60) têm crescido em todo  
o mundo, mobilizado pelas redes sociais e pelo pensamento conservador das igrejas católicas e  
evangélicas, sob a justificativa da defesa da família tradicional. É nacionalista, transfóbico,  
misógino e reacionário. Ao atacar o gênero, se opõem a liberdade reprodutiva das mulheres e o  
direito das famílias monoparentais, a proteção das mulheres vítimas de violência doméstica,  
dentre outros. Para Stefanoni (2022), pesquisador e periodista argentino, trata-se de uma direita  
que se apresenta como “rebeldesob o discurso de pseudo-práticas antissistêmicas, com a  
centralidade do discurso da “nova política”. Essa rebeldia, segundo o pensador, também é um  
traço novo das estratégias da extrema direita: são rebeldes na forma, mas reacionárias no  
conteúdo. “Para além dos resultados eleitorais [...] as direitas conduzem sua batalha cultural em  
vários níveis” (Stefanoni, 2022, p. 23). Comenta, ainda, que a nova direita utiliza espaços como  
a Internet em todo o mundo e “está disputando o sentido comum do momento, travando  
sua batalha cultural antiprogressista. Essa batalha antiprogressista une pessoas de diferentes  
direitas, mas o inimigo comum e principal é o progressismo. Trata-se de um antiprogressismo  
de novo tipo” (Stefanoni, 2022, p. 27).  
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Nesse diapasão, Feierstein et al. (2023) destacam a capacidade da nova direita de apropriar-  
se das insatisfações e desalentos dos jovens, como um dos traços dessa investida mundial e na  
América Latina. O historiador Badaró Matos (2020) utiliza as categorias “neofascismo” e  
“autocracia burguesa” para tratar as ideologias da extrema direita e a particularidade da  
formação social brasileira, tendo como universo o “bolsonarismo” no Brasil. Como ele, assumo  
a categoria neofascismo, entendendo-a como uma ideologia e prática portadora de traços  
fascistas que não são uma reprodução do passado - não se trata de uma reedição do fascismo da  
primeira metade do século XX.  
Libertas, Juiz de Fora, v. 25, n. 1, p. 1-17, jan./jun. 2025. ISSN 1980-8518  
Ofensiva da direita, crise da democracia e ameaças às conquistas civilizatórias  
Em resumo: a ofensividade da extrema direita incide na esfera econômica, sociocultural,  
ambiental e de costumes sob uma suposta ameaça do comunismo e no combate moral e legal  
às lutas sociais contra todas as formas de exploração, discriminação e opressões originárias dos  
trabalhadores e trabalhadoras, especialmente as afetas às mulheres (a exemplo do aborto), aos  
jovens das periferias, às pautas étnico-raciais, sexistas, anticapacitistas, dentre outras. Segundo  
Traverso (2023a), ponderando sobre as diversas categorias utilizadas para denominar as  
ideologias e práticas da direita, é importante destacar que, nesse momento, o fascismo é mais  
que uma área de estudos históricos, é uma questão da agenda contemporânea mundial.  
Em outra publicação, (Mota; Rodrigues, 2020, p. 2), afirmamos tratar-se de um  
“conservadorismo de novo tipo”, hipótese também presente no livro de Jamerson Souza (2024),  
dados os instrumentos, meios e propósitos presentes na sua difusão. Sob nosso ponto de vista,  
esse conservadorismo não contém um sistema coerente de ideias, mas apresenta “ideários  
comuns, de cunho moral, político e de fundamentalismo religioso que tratam de santificar a  
família, a propriedade e o mercado, assim como, de demonizar conquistas e costumes relativos  
aos direitos individuais, sociais e do trabalho” (Mota; Rodrigues, 2020, p. 5). Afirmamos que:  
Essencialmente antimoderno no conteúdo, mas moderno na forma, esse novo  
conservadorismo de tipo reacionário faz uso de ferramentas e estratégias high  
techs e de inovações tecnológicas, como a utilização intensa das redes sociais  
e robôs. Essas novas dinâmicas digitais surgem como meio de ampliação de  
sua capilaridade social e da defesa de ideias retrógradas, através de um  
discurso sintonizado com as premissas neoliberais de desregulamentação,  
privatização, mercantilização e apelo ao empreendedorismo (Mota;  
Rodrigues, 2020, p. 6).  
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Concordamos com Badaró Matos (2020, p. 79), quando diz que “é possível pensar que  
os neofascismos ganham fôlego, na média duração, com a crise social decorrente das políticas  
neoliberais do século XX, e sua ascensão ganha novas dimensões após a crise capitalista global  
em 2008”.  
Em síntese, considero que, na atual conjuntura, as ideias conservadoras têm capacidade  
de mobilização de massas (nacionalismo, anticomunismo, anti-intelectualismo, militarismo,  
com traços de racismo, machismo e heterossexismo) e tendem a despertar motivações nos  
médio-assalariados, profissionais liberais e segmentos das classes subalternas. Comenta  
Casimiro (2020, p. 23):  
A classe burguesa moderna, nessa linha, se perpetua através de operações de  
hegemonia – isto é, por meio de atividades e iniciativas de uma ampla rede de  
organizações culturais, movimentos políticos, instituições educacionais,  
meios midiáticos e as próprias redes sociais on-line (cada vez mais eficazes e  
sedutoras), que difundem e naturalizam capilarmente pela sociedade sua  
concepção do mundo e seus valores, constituindo-se como alicerces,  
Ana Elizabete Mota  
trincheiras da dominação de classe.  
Sua natureza mundializada e seus traços de unidade, contudo, não eliminam suas  
particularidades nos Estados Unidos, Europa, América Latina e Caribe, onde se inclui o Brasil.  
Na América Latina, segundo recente artigo, intitulado A onda neoconservadora no cenário  
ocidental: revisão histórica, social e política (Vieira; Rebelatto; Almeida, 2024), esse  
movimento foi influenciado principalmente pelos EUA, tanto nos setores políticos e sociais  
quanto culturais. As ideias e suas manifestações estão ligadas à ascensão das igrejas (tanto  
evangélicas como da renovação carismática) a partir de fins dos anos 1970, orientadas pelo  
contexto da Guerra Fria (1945-1989): competiram com os movimentos sociais que se formavam  
nos países da região em torno de bandeiras neoconservadoras, contrapondo-se à Teologia da  
Libertação, surgida no seio da Igreja católica progressista na década de 1960 (El Salvador,  
México, Equador, Peru, Brasil e Uruguai), com o apoio da Casa Branca de Reagan. Conforme  
explica Carvalho (2023), esses cristãos, através das missões evangélicas, fomentaram a agenda  
norte-americana e tentavam desaconselhar as pessoas a entrarem em movimentos sociais.  
Acreditavam que seu trabalho na região era uma missão bíblica: conquistar o mundo para o  
cristianismo.  
Articulada em escala transnacional, desde o final da guerra fria, como brilhantemente  
tratou Clara Mattei (2023) no seu livro A ordem do capital: como economistas inventaram a  
austeridade e abriram o caminho para o fascismo, publicado pela Boitempo, a direita ganhou  
amplitude e novas dimensões com a crise de 2008, criando outros meios de restaurar lucros  
capitalistas e avançando na implementação de políticas que operaram novas expropriações  
(Mota, 2018; Fontes, 2018), ampliando a pilhagem do fundo público (Behring, 2018),  
avançando na “supercapitalização”, segundo a perspectiva mandeliana com a criação de novos  
mercados, à custa das privatizações, parcerias público/privadas, entidades de direito privado  
e/ou terceiro setor, inclusive através das privatizações atípicas de bens e serviços originalmente  
públicos (educação, saúde, previdência, energia, extrativismo, comunicações), transformados  
em grandes negócios (Fontes, 2018).  
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Essa conjuntura, marcada por iniciativas que atingem as condições de vida e o acesso  
aos meios de sobrevivência das classes trabalhadoras e segmentos pauperizados, revela a  
ofensiva do capital, levada a efeito pelas classes proprietárias e dominantes, em resposta aos  
seus interesses, plenas de apelos ideológicos, culturais e religiosos, utilizando-se de mídias  
corporativas, do discurso das igrejas conservadoras, das fake news, das redes sociais, blogs e  
youtubers, num verdadeiro espetáculo de mentiras, anti-intelectualismo, reacionarismo e  
comunicação popular. Uma espécie de contrarrevolução midiática e reacionária para atingir  
Libertas, Juiz de Fora, v. 25, n. 1, p. 1-17, jan./jun. 2025. ISSN 1980-8518  
Ofensiva da direita, crise da democracia e ameaças às conquistas civilizatórias  
jovens, pequenos comerciantes, trabalhadores autônomos, lumpemburguesia (Demier, 2020) e  
segmentos médio-assalariados insatisfeitos.  
Conservadorismos, sociabilidade e subjetividade das classes subalternas.  
A permeabilidade que esse conservadorismo reacionário tem junto às classes subalternas  
tem uma importância fundamental nesse avanço da extrema direita. E isso não é fortuito, trata-  
se de um processo socialmente determinado que não podemos deixar de historicizar. Como  
tratou Jamerson Souza (2020, p. 78):  
Em momentos de crise do capital, o conservadorismo termina por ganhar  
fôlego e expressão entre as classes dominadas e no senso comum, pois  
concentra esforços no sentido de dar vazão ao ressentimento generalizado  
entre as frações menores da pequena burguesia, dos trabalhadores e do  
lumpemproletariado, por meio da indicação abstrata de razões para a crise e  
as dificuldades práticas do cotidiano.  
Com a agudização das contradições do próprio capitalismo, a insatisfação da classe  
trabalhadora se amplifica e torna-se essencial estabelecer novas formas de obtenção do  
consenso social, para além, é claro, da coerção e violência. São necessários elementos  
irracionais e uma visão fatalista e conformista da vida, para manter os sujeitos passivos e fiéis  
à ordem. Trata-se de valorizar o presente, sem pretensões futuras, apenas adaptadas às  
condições existentes, generalizando-se o medo do desemprego, o trabalho a qualquer custo, o  
fim do horizonte das aposentadorias, a convivência com a precariedade dos serviços públicos  
etc. A prioridade é garantir a sobrevivência, afastando os sujeitos de quaisquer perspectivas  
mais amplas e significativas de ação e inserção política e social (Castro, 2021).  
11  
A subjetividade da classe trabalhadora deve ater-se à sua sobrevivência imediata e  
cotidiana, ajustando-se – objetiva e subjetivamente – aos imperativos da sociabilidade  
capitalista, amparada que é pela genética desigualdade social e pelos interesses antagônicos e  
contraditórios entre capital e trabalho. Parametrada pela consciência individual de consumidor  
e do “salve-se quem puder”, por vezes essa subjetividade nega a “organização da classe  
trabalhadora e a sua mobilização para os embates, embora também a precarização da sua vida  
possa atingir limites concretos de sobrevivência ao ponto de insurgirem-se” (Castro, 2021, p.  
45). Essa insurgência pode nascer desorganizada e espontaneamente, como no caso das  
denúncias contra a escala de trabalho 6x1, no Rio de Janeiro e São Paulo, até alcançar  
organicidade e unidade nacional, mediada pela ação de sindicatos e partidos políticos.  
Ana Elizabete Mota  
Considero pertinente recuperar a categoria cultura da crise4 (Mota, 1995), por entender  
que a formação da cultura (como forma de ser e ideologia) é um processo social que estabelece  
o nexo entre crise, sociabilidade e constituição de hegemonia no interior das estratégias das  
classes dominantes e da resistência e/ou consentimento das classes trabalhadoras e subalternas.  
Pode-se aventar que, nessa nova etapa de ofensiva regressiva, o neofascismo impõe  
novos elementos à cultura da crise e, com algum êxito, conseguem legitimar medidas e  
iniciativas que respondem positivamente à remoção de todos os obstáculos à expansão do  
capital. É nesse ambiente que as classes dominantes tentam tornar universal o seu projeto  
societal que se pretende hegemônico. Tem incidência no mundo do trabalho, nos mecanismos  
de proteção social públicos e no cotidiano e senso comum das classes subalternas. O cenário é  
de expropriações de direitos, mercantilização de serviços, precarização das relações e condições  
de trabalho. Aspectos duplamente afetados, particularmente, pelo racismo e outras opressões de  
gênero.  
Não se pode menosprezar o potencial de capilaridade dessa “nova cultura regressiva na  
sociedade” brasileira (Mota, 2018), uma vez que seu discurso reacionário e de ódio converge  
com as particularidades de uma formação social marcada pela desigualdade social, pelo  
patrimonialismo, patriarcado, racismo, machismo, misoginia, homofobia e antirreformismo  
radical.  
12  
Essa contextualidade também está presente no atual governo brasileiro: no limite,  
representou a resistência ao neofascismo na conjuntura de 2022 e ainda contém os embriões  
desta, mas são complexas suas contradições. De um lado, o peso das coalizões de centro-direita  
e a força parlamentar das bancadas conservadoras, assim como os arranjos econômicos,  
particularmente para alinhar-se à ortodoxia da administração do déficit público e dos ajustes  
fiscais que atingem frontalmente o orçamento e o financiamento das políticas sociais; de outra  
parte, a fragmentação das esquerdas (partidos, sindicatos, movimentos) e as expressões de  
consentimento passivo das classes subalternas, ora mediado pelos novos perfis dos jovens das  
classes trabalhadoras nos serviços, dos trabalhadores autônomos e de aplicativos e das  
populações pauperizadas e sobrantes, fruto das mudanças no trabalho, da regressão de direitos  
4
A categoria cultura da crise foi por mim construída como um artifício reflexivo para tratar das ideologias  
formadoras de consensos de classe quando da reforma da previdência social brasileira nos anos 1990, tratada  
originalmente na minha tese de doutoramento, publicada em 1995. Desde então venho sistematicamente  
enriquecendo e identificando os significados dessa cultura, saturada de ideologias que passivizam a consciência  
social e a luta dos trabalhadores e trabalhadoras, sob determinadas condições históricas. Por suposto, contando  
com a necessária atualização histórica, a tese central me parece válida para compreender criticamente as estratégias  
e táticas da burguesia para realizar suas contrarreformas, inclusive mediadas por ideologias conservadoras. Sobre  
o tema, consultar MOTA, Ana Elizabete. Cultura da Crise e Seguridade Social: um estudo sobre as tendências da  
previdência e assistência social brasileira nos anos 80 e 90. São Paulo: Cortez, 1995.  
Libertas, Juiz de Fora, v. 25, n. 1, p. 1-17, jan./jun. 2025. ISSN 1980-8518  
Ofensiva da direita, crise da democracia e ameaças às conquistas civilizatórias  
e da ofensiva ideopolitica da direita, cujo espraiamento no cotidiano das classes trabalhadoras  
é fato.  
Note-se, por exemplo, a reorientação do tratamento de temas que tiveram visibilidade  
em todo o mundo desde os anos 60 do século XX, demandantes de políticas e direitos civis,  
sociais e políticos, operando uma espécie de restauração conservadora que se espraia como  
despolitização e negação de conquistas sociais.  
Em postagem no Blog da Boitempo Editorial, Leda Paulani (2024) analisando o Novo  
Arcabouço Fiscal, referência a hipótese de que o regime republicano brasileiro sempre teve  
características patrimonialistas que operam determinações históricas. Utiliza a metafórica  
expressão “fina camada de gelo” para apontar as fragilidades e dificuldades por onde caminha  
o governo Federal, materializadas nos super poderes do Banco Central, no conservadorismo do  
Congresso Nacional e no fato do fascismo estar à espreita.  
A rigor, como comenta Demier (2024), o capitalismo monopolista enfrenta uma  
crescente dificuldade política de efetivar a acumulação capitalista, “o que exige cada vez mais  
contrarreformas, austeridade e espoliações, por meio do regime democrático-blindado, e o  
crescimento do neofascismo talvez seja a melhor expressão disso”.  
Assim, é possível dizer que, frente à crise do capital, à hipertrofia do capital financeiro  
e à ofensiva ultraconservadora e ultraneoliberal, as classes dominantes – nacional e  
internacionalmente – promoveram as condições materiais e subjetivas para a passivização das  
classes subalternas aos seus interesses materiais e políticos. E o fazem na tentativa de exercitar  
sua dominação direta, malgrado a resistência de importantes setores da esquerda. Além de  
classe dominante, a burguesia investe em tornar-se classe dirigente (sob o signo do seu projeto)  
e, para isso, precisa passivizar as classes subalternas, ao tempo em que arregimenta meios  
institucionais e materiais de coerção. Consoante com a histórica postura antirreformista,  
patrimonialista e autoritária da burguesia brasileira, as classes trabalhadoras devem assimilar,  
como seus, os costumes e as ideias propagandeadas pelos aparelhos privados de hegemonia da  
direita (Mota; Rodrigues, 2020).  
13  
Do meu ponto de vista, o momento permite repor a célebre formulação gramsciana em  
função do atual momento, “no qual o velho não morreu e o novo não nasceu”, explico-me:  
transita entre o espólio de um dado modo “de ser e viver” – a herança fordista-keynesiana (o  
ethos da integração pelo trabalho e do Estado Social) que devem ser particularizados na  
periferia capitalista, e a peleja para parir o novo que está encapsulado pelas novas  
determinações da acumulação (supercapitalização dos serviços, financeirização, apropriação do  
fundo público, mercantilização da esfera pública, uberização do trabalho e expropriações de  
Ana Elizabete Mota  
toda ordem), afetando diretamente o trabalho e os trabalhadores, a divisão social, internacional,  
generificada e racializada do trabalho e a eversão de mecanismos civilizatórios e de proteção  
social, numa avassaladora criação de meios e estratégias de dominação que tem por objetivo a  
destruição de resistências e o impulso para as classes exploradas assumirem os projetos da  
classe que os explora e domina. São atravessados pela pequena e grande política no âmbito das  
propostas e ideias das classes dominantes que ao inventarem formas modernas de comunicação  
e manifestação popular, apresentam-se sob um suposto novo modo de fazer política que  
detonam resistências à esquerda.  
Esses meios, condições e estratégias têm tamanha incidência objetiva que podem, e por  
vezes conseguem, tornar subjetiva a objetividade da ordem burguesa (note-se que jovens  
trabalhadores consideram impossível ter o direito à aposentadoria; assim como desconhecem a  
formalização do trabalho com carteira assinada e os mecanismos legais de proteção social ao  
trabalhador), assumindo como imutáveis e definitivas as novas formas de ser do trabalho e da  
seguridade social.  
A unidade classista, sempre ameaçada pela natureza estrutural e diversa da exploração  
do trabalho e das opressões raciais, étnicas, anticapacitistas, geracionais, etárias, de gênero e  
sexualidade, são socialmente reproduzidas via postulações culturais que contribuem para  
fraturar a unidade das lutas sociais e as ideologias insurgentes à ordem. Fazem-no:  
ressignificando questões estruturais que afetam as modalidades de exploração do trabalho e o  
desemprego, sob a defesa do empreendedorismo, da formalização dos MEI, das loas à liberdade  
dos que não tem patrões, mas estão formal e realmente subsumidos às relações capitalistas;  
sugerindo medidas complementares privadas, como planos de saúde e de aposentadorias para  
fazer frente à precarização das políticas públicas. Também tematizam a destruição dos recursos  
naturais como uma questão de sustentabilidade e tratam as diversidades como multiculturalismo  
cujos conteúdos são negadores das pelejas políticas dos subalternos, em prol de um novo que é  
reprodução ampliada da velha ordem.  
14  
Considerações finais  
A conjuntura atual é marcada por uma nova fase de dominação burguesa em prol do  
projeto político das classes dominantes. Sob diretrizes econômicas, sociais, culturais e morais  
– de caráter neoliberal e neofascista, liderado pela direita e extrema direita (ainda que com  
tensões intraburguesas), alimentam a unidade do seu projeto dominante. Através de modernas  
e supostamente rebeldes manifestações de rua, do uso das redes sociais e da atuação de  
youtubers, difundem fake news e pedagogizam a difusão do pensamento conservador,  
Libertas, Juiz de Fora, v. 25, n. 1, p. 1-17, jan./jun. 2025. ISSN 1980-8518  
Ofensiva da direita, crise da democracia e ameaças às conquistas civilizatórias  
ressignificando formas de opressões étnico-raciais, de gênero, sexistas e religiosas que deverão  
pautar a sociabilidade dos trabalhadores, da pequena burguesia e do lumpemproletariado  
(Demier, 2020).  
Esse processo – em andamento – requereu a instrumentalização da democracia liberal  
burguesa (parlamentar e eleitoral), refinando a sua “decadência ideológica” (Coutinho, 2010) e  
cimentando novos meios de exercício de dominação, onde se incluem as benesses do poder  
legislativo (de que é exemplar no Brasil a subordinação do financiamento público às emendas  
parlamentares), as representações institucionais (a exemplo da autonomia do Banco Central) e  
de novas lógicas argumentativas, reveladoras de interesses privados, sob o beneplácito da  
democracia eleitoral (mediante financiamentos multimilionários das campanhas eleitorais).  
Suas implicações imediatas e mediatas na derruição de conquistas civilizatórias são  
concretizadas em violações de direitos civis, políticos e sociais. Conquistas de cunho libertário  
são desqualificadas, assim como são suprimidos direitos do trabalho e da proteção social. As  
políticas sociais, responsáveis pela oferta de serviços sociais, são objeto de contrarreformas que  
traduzem a austeridade requerida pela redução e desfinanciamento do serviço público e das  
carreiras de Estado, generalizando o estímulo ao consumo privado e à produção de novas  
mercadorias no campo dos serviços.  
Avento a hipótese de que são redefinidas as modalidades estratégicas de enfrentamento  
às manifestações da questão social, de que são exemplos: o já referido empreendedorismo e o  
trabalho por conta própria, como mecanismos de enfrentamento do desemprego, ajustamento  
às mudanças do trabalho e esvaziamento das políticas de trabalho e renda. São novas estratégias  
para tornar produtivo o exército industrial de reserva e rebaixar o valor da força de trabalho.  
Note-se a centralidade da sobrevivência e a captura da superação da pobreza pelas políticas de  
transferência de renda, na esfera da assistência social. Comenta Casimiro (2020, p. 23) que,  
15  
a classe burguesa moderna, nessa linha, tenta se perpetuar através de  
operações de hegemonia – isto é, por meio de atividades e iniciativas de uma  
ampla rede de organizações culturais, movimentos políticos, instituições  
educacionais, meios midiáticos e as próprias redes sociais on-line (cada vez  
mais eficazes e sedutoras), que difundem e naturalizam capilarmente pela  
sociedade sua concepção do mundo e seus valores, constituindo-se como  
alicerces e trincheiras da dominação de classe.  
Nesse ponto, vale retomar a questão da crise orgânica...ora, “as condições necessárias  
para o romper da crise orgânica são duas: a) o fracasso da política da classe dirigente; b)  
organização das classes subalternas, sem o que a crise não causará repercussões no seio da  
primeira (Liguori; Voza, 2017, p. 163). Refletindo sobre a citação gramsciana, Demier (2024)  
afirma que, se houve fracasso em algum grande empreendimento político para o qual [a classe  
Ana Elizabete Mota  
dominante] pediu ou impôs pela força o consenso das grandes massas” (Gramsci, 2007 apud  
Demier, 2024), pode-se apontar o fracasso do projeto neoliberal com a “promessa de que, com  
a redução dos gastos sociais do Estado e a privatização de alguns setores e serviços públicos,  
haveria crescimento econômico e o mercado se encarregaria de melhor alocar os recursos  
segundo as necessidades dos cidadãos” (Demier, 2024).  
Eis uma questão que nos desafia: na sua fase “gloriosa”, o capitalismo necessitava da  
democracia para consolidar o pacto de classes do pós-guerra; na atualidade, ele compatibiliza  
a democracia às necessidades da acumulação financeirizada, razão maior dos laivos  
antidemocráticos da direita sob formas modernas e arrojadas para contrarreformar o Estado,  
adotando como universal uma espécie de pensamento único: menos Estado para os interesses  
dos subalternos, mais mercado, menos emprego, mais empreendedorismo, menos proteção e  
mais auxílios focais. Isso porque as ideologias conservadoras, ao tempo em que funcionam  
como uma frente de atuação de setores dominantes, oferecem um sistema de crenças coerente  
o suficiente para dar suporte ideológico e valorativo aos setores dominados, num arrojado apelo  
para obtenção do consenso das massas.  
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Da espontaneidade à direção consciente:  
a potencialidade das lutas sociais na realidade  
brasileira  
From spontaneity to conscious direction:  
the potential of social struggles in the Brazilian reality  
Ivete Simionatto*  
Edinaura Luza**  
Fabiana Luiza Negri***  
Raví Calseverini de Toledo****  
Resumo: O artigo oferece uma análise dos  
processos de mobilização e organização de  
quatro sujeitos políticos que tiveram destaque  
nas lutas sociais brasileiras nas duas primeiras  
décadas dos anos 2000. O foco recai sobre a  
busca por direitos e políticas sociais nas áreas  
de moradia, educação, saúde e assistência  
social, temas cruciais para a construção de uma  
sociedade mais justa e igualitária. Através de  
uma pesquisa bibliográfica e documental, o  
estudo revela as dinâmicas de mobilização e  
organização adotadas por esses sujeitos  
políticos, bem como suas perspectivas e  
estratégias de ação. A formação de uma  
consciência crítica é um elemento central neste  
processo, pois permite uma articulação mais  
Abstract: The article provides an analysis of  
the mobilization and organization processes of  
four political subjects that stood out in Brazilian  
social struggles during the first two decades of  
the 2000s. The focus is on the pursuit of rights  
and social policies in the areas of housing,  
education, health, and social assistance, which  
are crucial themes for building a fairer and more  
equal society. Through bibliographic and  
documentary research, the study reveals the  
dynamics of mobilization and organization  
adopted by these political subjects, as well as  
their perspectives and action strategies. The  
formation of a critical consciousness is a central  
element in this process, as it allows for broader  
articulation with other popular struggles,  
enhancing collective strength and the visibility  
of demands. The conclusion of the study is  
particularly relevant as it reaffirms the  
importance of these political subjects not only  
in their specific actions but also in the role they  
play within civil society as a whole. This  
analysis is essential for understanding the  
dynamics of social struggles in contemporary  
Brazil, as well as the challenges that remain in  
the fight for rights and the construction of an  
ampla  
com  
outras  
lutas  
populares,  
potencializando a força coletiva e a visibilidade  
das reivindicações. A conclusão do estudo é  
particularmente relevante, pois reafirma a  
importância desses sujeitos políticos não apenas  
em suas ações específicas, mas também no  
papel que desempenham na sociedade civil  
como um todo. Essa análise é fundamental para  
compreender as dinâmicas das lutas sociais no  
Brasil contemporâneo, os desafios que ainda  
* Universidade Federal de Santa Catarina. E-mail: ivetesimionatto57@gmail.com  
** Universidade Estadual de Maringá. E-mail: edinauraluza@yahoo.com.br  
*** Universidade Federal de Santa Catarina. E-mail: fabianaluizanegri@yahoo.com.br  
**** Universidade Federal de Santa Catarina. E-mail: calsevtoledo@gmail.com  
DOI: 10.34019/1980-8518.2025.v25.47274  
Esta obra está licenciada sob os termos  
Recebido em: 01/02/2025  
Aprovado em: 08/04/2025  
Da espontaneidade à direção consciente: a potencialidade das lutas sociais na realidade brasileira  
permanecem na luta por direitos e na construção  
de um projeto de sociedade emancipatório.  
emancipatory social project.  
Palavras-chaves:  
Sujeitos  
políticos;  
Keywords: Political subjects; Mobilization;  
Mobilização; Organização; Vontade coletiva.  
Organization; Collective will.  
Introdução  
O artigo tem como foco o resgate dos processos de mobilização e organização das lutas  
sociais de quatro sujeitos políticos1 em destaque na realidade brasileira nas duas primeiras  
décadas do século XXI. A escolha destes sujeitos está relacionada às suas práticas sociais,  
atuação, abrangência e capilaridade em âmbito nacional na organização das classes e grupos  
subalternos vinculados aos direitos e políticas sociais, nas áreas da moradia, educação, saúde e  
assistência social, a saber: 1) Movimento dos Trabalhadores Sem-Teto (MTST): movimento de  
caráter social, político e popular fundado em 1997, que advoga principalmente o direito à  
moradia, a reforma urbana e a diminuição da desigualdade social. Com dimensão territorial,  
destaca-se pela atuação na organização dos trabalhadores urbanos a partir do local em que  
vivem - os bairros periféricos; 2) Rede Emancipa: movimento social de Educação Popular,  
criado em 2007, voltado à luta pela democratização do acesso à universidade a partir de um  
projeto político-pedagógico de educação transformadora e emancipadora para a juventude  
periférica em todo o Brasil. Integram a Rede: estudantes secundaristas, universitários,  
professores do ensino básico e superior, famílias e associações de bairro; 3) Frente Nacional  
contra a Privatização da Saúde (FNCPS): criada em 2010, tem por objetivo defender o SUS  
público, estatal, gratuito e universal, lutar contra a privatização da saúde e pela defesa dos  
pressupostos da Reforma Sanitária formulada nos anos 1980; 4) Frente Nacional em Defesa do  
Sistema Único de Assistência Social SUAS - e da Seguridade Social (FNDSUAS): criada em  
2016, é uma organização plural de trabalhadores, usuários, gestores, entidades, instituições não-  
governamentais, professores, pesquisadores e pessoas interessadas em defender a Assistência  
Social e a Seguridade Social brasileiras2.  
19  
1
Sujeito político é compreendido aqui na relação com a concepção gramsciana de sujeito coletivo. Ao mesmo  
tempo em que luta por interesses específicos de camadas de classe, tais lutas não se desvinculam da construção de  
um projeto societário, de uma “reforma intelectual e moral” que tem no partido político a sua máxima expressão.  
Para Gramsci (2000, p.15), só o partido político poderá construir uma vontade coletiva, agregar as vontades  
singulares, sendo “a primeira célula na qual se sintetizam germes de vontade coletiva que tendem a se tornar  
universais e totais”.  
2 O artigo é parte do resultado da pesquisa em andamento: Organização política, lutas sociais e vontade coletiva  
no Brasil entre 2010 e 2020 financiada pelo CNPq e desenvolvida junto ao Programa de Pós-Graduação em Serviço  
Social da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC).  
Ivete Simionatto; Edinaura Luza; Fabiana Luiza Negri; Raví Calseverini de Toledo  
A dinâmica de mobilização e organização destas agregações apresenta características e  
princípios político-ideológicos que as singularizam no âmbito da sociedade civil (Souza, 2002),  
tais como: formas e bases da organização, perspectiva política, formação da consciência crítica,  
articulação com outras lutas populares, táticas e ações prático-políticas. Para investigar tais  
particularidades, utilizou-se da pesquisa qualitativa documental, por meio de materiais  
elaborados pelos próprios sujeitos investigados, bem como da literatura produzida sobre o tema,  
fundamentando-se na perspectiva histórico-dialética.  
Em diálogo com o pensamento de Gramsci, os conceitos de mobilização, organização  
política e vontade coletiva, destacam-se como suportes teóricos na presente análise e guardam  
intrínseca relação com a filosofia da práxis, a permanente dialética entre teoria e prática,  
indivíduo e coletivo, pensamento e ação. Organizar cientificamente as massas populares,  
transformar a espontaneidade em direção consciente, superar a relação entre dominantes e  
dominados, dirigentes e dirigidos, constituem-se temas centrais desenvolvidos por Gramsci  
(2004, 2004a, 2000) ao longo de sua obra, denotando a preocupação do marxista sardo com a  
organização política da classe trabalhadora pautada pelo princípio associativo e solidário, na  
perspectiva emancipatória e revolucionária.  
Destaca-se a relevância do tema na produção de conhecimentos voltados à compreensão  
da dinâmica das lutas sociais no capitalismo contemporâneo, bem como as formas de  
organização e práticas políticas no contexto atual de crise orgânica (econômica e política), de  
retrocessos da democracia, da necessidade de transformar o Estado diante da erosão de  
conquistas sociais e políticas, de fortalecimento do processo de construção de uma vontade  
coletiva capaz de disputar hegemonia na presente conjuntura. Ressalta-se, ainda, a relevância  
do tema pela centralidade que ocupa no debate teórico marxista, com grandes implicações para  
o Serviço Social, seja na dimensão de seu compromisso ético-político, seja na reflexão relativa  
à prática profissional vinculada aos processos de mobilização e organização popular  
(Duriguetto, 2014; Abreu, 2002).  
20  
Movimentos em movimento: as bases da organização  
Os sujeitos políticos eleitos para o estudo em tela apresentam trajetórias que se  
entrecruzam nas diferentes conjunturas entre o final dos anos 1990 e as duas primeiras décadas  
dos anos 2000. Pretende-se destacar os elementos comuns que os caracterizam, especialmente  
no que tange aos processos de mobilização, organização e perspectiva política.  
Na conjuntura dos anos 1990, sob o governo de Fernando Henrique Cardoso e a  
implementação mais direta das medidas neoliberais, com a retirada de direitos e enxugamento  
Libertas, Juiz de Fora, v. 25, n. 1, p. 18-32, jan./jun. 2025. ISSN 1980-8518  
Da espontaneidade à direção consciente: a potencialidade das lutas sociais na realidade brasileira  
dos papéis e funções do Estado, verifica-se o crescimento exponencial das periferias urbanas e  
o agravamento dos problemas de infraestrutura e de moradia. É neste contexto que nasce o  
Movimento dos Trabalhadores Sem Teto (MTST). Fundado em 1997, é um movimento social  
classista que advoga principalmente o direito à moradia digna, mas, igualmente, um projeto  
político anticapitalista. Inicialmente organizado como um setor urbano do Movimento dos  
Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST), o MTST surgiu em decorrência da explosão dos  
problemas nas periferias urbanas, especialmente com a falta de moradia adequada numa época  
em que a população brasileira se concentrava cada vez mais nas cidades (MTST, 2024). A partir  
dos anos 2000, com a atuação na grande São Paulo, o movimento ganha expressão política,  
sendo reconhecido nacionalmente. Dados mais recentes apontam que o MTST organiza 55 mil  
famílias em 14 estados do Brasil (Simões; Campos; Rafael, 2017).  
Em vários estados, os agrupamentos do MTST surgem da atuação do movimento  
comunitário, dos comitês de bairro, de organizações espontâneas nos bairros e periferias das  
grandes cidades (MTST, 2024). “O comitê de bairro” – conforme escreve Gramsci (2004a, p.  
248) – “deveria ser a emanação de toda a classe trabalhadora que habita o bairro, emanação  
legítima e dotada de autoridade, capaz de fazer respeitar uma disciplina”. Daqui surge o trabalho  
coletivo. O elemento “espontaneidade”, contudo, “não é suficiente para a luta revolucionária”.  
Não é suficiente para que as classes subalternas questionem e superem os limites da democracia  
burguesa: “É necessário o elemento ‘consciência’, o elemento ‘ideológico’, ou seja, a  
compreensão das condições em que se luta, das relações sociais”, suas tendências fundamentais  
e os antagonismos existentes em seu seio (Gramsci, 2004a, p. 294).  
21  
E, para tal, o MTST desenvolveu uma pedagogia junto à população, que “participando  
do Movimento se politiza” (Simões; Campos; Rafael, 2017, p. 87-88) e no curso do processo  
forma a consciência de classe, buscando superar a espontaneidade para chegar à direção  
consciente. A consolidação de uma metodologia de atuação, articulando o trabalho de base e a  
dimensão territorial no espaço urbano, a autonomia política e o horizonte de construção do  
poder popular a partir dos de baixo, com pessoas que habitavam um barraco de lona preta,  
contribuíram decisivamente para construir a história do movimento no país.  
Um dos primeiros desafios no processo organizativo foi como lidar com a lógica urbana  
de empoderamento da especulação imobiliária, da indiferença dos governos estaduais e  
municipais, por meio do poder judiciário. A resposta do movimento deu-se com a constituição  
dos núcleos territoriais, necessários para manter a organização de base, para além dos terrenos  
ocupados através de reuniões periódicas em locais públicos. As mobilizações a partir dos  
Ivete Simionatto; Edinaura Luza; Fabiana Luiza Negri; Raví Calseverini de Toledo  
territórios contribuem, desse modo, para caracterizar o MTST como uma referência nas lutas  
das periferias das grandes cidades (Simões; Campos; Rafael, 2017).  
A estadualização foi sempre uma das metas do movimento, tendo em vista que o  
processo de mobilização e de organização em um país de dimensões continentais, exige  
estratégias diferenciadas, através de uma metodologia de ação que articula o trabalho de base e  
a dimensão territorial no espaço urbano. Desse processo, construiu-se a estrutura organizativa  
do MTST em três tipos de instâncias: a) coletivos políticos compreendem a coordenação  
nacional e as coordenações estaduais; b) coletivos organizativos responsáveis por atividades  
específicas nas ocupações; c) coletivos territoriais compreendem desde a coordenação de  
ocupações, passando por núcleos nas comunidades, até os chamados coletivos regionais  
(MTST, 2013).  
Para além das lutas por moradia, no campo popular urbano, o MTST impulsionou a  
criação, em 2007, da Resistência Urbana - Frente Nacional de Movimentos , uma articulação  
em âmbito nacional que congrega movimentos populares urbanos, pautados nos princípios da  
ação direta e a autonomia perante partidos e governo. Desde então, a Frente tornou-se o  
principal polo combativo dos movimentos populares urbanos, cuja direção política tem em vista  
a superação dos interesses econômico-corporativos, transformá-los em “interesses de todos”,  
buscando, “além da unicidade dos fins econômicos e políticos, também a unidade intelectual e  
moral [...] criando assim a hegemonia de um grupo social fundamental sobre uma série de  
grupos subordinados” (Gramsci, 2000, p.41).  
22  
Não obstante, as ações e a direção do movimento também sofreram alterações nas  
diferentes conjunturas e no contexto das relações de força que dela emergem. Nesse sentido, é  
importante retomar os novos direcionamentos, táticas e estratégias adotadas com a chegada do  
Partido dos Trabalhadores (PT) ao poder, no início dos anos 2000, desencadeando uma nova  
relação entre governo e movimentos sociais. A perspectiva ativista e de corte socialista que  
sempre caracterizou o PT, transmutou-se em estilo de gestão, frustrando em grande medida, a  
expectativa dos movimentos sociais. De 2003 a 2013, os governos Lula e Dilma, embora  
simpáticos e defensores das demandas populares, nem sempre agiram em favor delas. Nessa  
conjuntura o MTST partiu para a ação direta contra o “latifúndio urbano” ocupando prédios e  
terrenos nas grandes cidades. A ação direta através da ocupação de bens imóveis que não  
atendem à sua função social é a principal forma de atuação do MTST. As táticas incluem ainda,  
ocupações de terrenos, prédios públicos ou privados abandonados, obstrução de rodovias e  
avenidas e ações transgressivas como a ocupação de Ministérios e órgãos públicos, ferramentas  
decisivas na negociação com os governos e pressão junto ao Estado (Alonso, 2023).  
Libertas, Juiz de Fora, v. 25, n. 1, p. 18-32, jan./jun. 2025. ISSN 1980-8518  
Da espontaneidade à direção consciente: a potencialidade das lutas sociais na realidade brasileira  
Registra-se ainda, entre 2013 e 2014, as mobilizações contra os impactos dos  
megaeventos em que o MTST se destacou como um dos principais atores, a participação nas  
Jornadas de Junho, os embates sobre a Copa do Mundo e o Plano Diretor da cidade de São  
Paulo. Em 2015 lança a Frente Povo Sem Medo (2015) como expressão da reconfiguração do  
campo popular da esquerda, aglutinando organizações que estavam ao lado do governo petista,  
como a Central Única dos Trabalhadores (CUT) e a União Nacional dos Estudantes (UNE), e  
movimentos autônomos e críticos ao petismo, revelando a sua capacidade mobilizadora. A  
estratégia que pautou o manifesto da Frente foi a retomada dos protestos de rua, com grandes  
manifestações populares. O movimento também buscou fortalecer o trabalho de base,  
principalmente nas periferias urbanas, contra a ofensiva conservadora, a intolerância, a  
criminalização dos pobres e das lutas sociais (MTST, 2015).  
Mesmo diante das ações repressivas do Estado, da perseguição e de sua criminalização,  
o que se observa de comum no movimento é a resistência e a exigência do direito constitucional  
de ter onde morar. Assim, das crises e retrocessos também nascem as possibilidades de  
resistência. Com a organização, “forma-se um novo hábito, ou seja, o de não ter medo do fato  
novo: num primeiro momento, porque pior do que está não pode ficar; em seguida, porque surge  
a convicção de que as coisas vão melhorar” (Gramsci, 2004 p. 108).  
Outro ponto a destacar é a preocupação com a preparação política das bases, através de  
cursos de formação e sua função decisiva na construção de um novo modo de pensar, como  
evidenciam os depoimentos de militantes: “Através do curso, aprendi o que era mais valia,  
como os patrões adquirem suas riquezas, que na verdade foram tiradas dos outros”. E ainda: “O  
processo de luta foi moldando outra mentalidade acerca do movimento de moradia. A visão de  
mundo é transformada, e vem a compreensão de que só se chega à vitória com lutas” (Simões;  
Campos; Rafael, 2017, p.81). Para além das ações imediatas, a capacidade de organização e a  
determinação militante do MTST têm impulsionado importantes conquistas agregadoras de um  
pensamento crítico estratégico sobre questões do Brasil, da sociedade, do capitalismo, da  
conjuntura internacional.  
23  
Se para Gramsci (2000a, p.15) não há organização sem intelectuais, destaca-se aqui o  
papel formativo deste movimento, e também dos demais discutidos neste artigo, na criação dos  
próprios quadros, de “camadas de intelectuais que lhe dão homogeneidade e consciência da  
própria função, não apenas no campo econômico, mas também no social e no político”. Os  
intelectuais, exercendo função análoga à do partido político contribuem, com sua ação, para  
preparar a hegemonia da classe a que está vinculado sobre o conjunto dos seus aliados.  
Ivete Simionatto; Edinaura Luza; Fabiana Luiza Negri; Raví Calseverini de Toledo  
Enquanto perspectiva política, o MTST (2013) está comprometido com a construção  
de alternativas populares para combater a mercantilização da moradia, construir o poder  
popular, articular a luta por teto com outros direitos, combater a fome, além da reforma urbana e  
da diminuição da desigualdade social. Partindo do lema “teto, trabalho e pão”, a proposta do  
movimento está intimamente relacionada à busca por uma transformação mais profunda da  
sociedade brasileira, na perspectiva anticapitalista e emancipatória.  
Outro movimento estudado é a Rede Emancipa. Criada em 2007, é resultado da luta de  
professores universitários e estudantes pelo resgate do Cursinho da Poli, do Grêmio Politécnico  
da Universidade de São Paulo (USP), que, desde 1987, se constituía em um espaço público de  
preparação de jovens para o vestibular. A partir de 2000, contudo, por meio de manobras  
jurídicas de ex-presidentes e diretores, o cursinho foi transformado em uma proposta de  
mercado. Apesar das inúmeras tentativas de recuperação da proposta inicial, o processo não foi  
revertido. É nesse contexto que surge a Rede Emancipa, com o objetivo de agrupar pessoas na  
luta pela democratização do acesso ao ensino superior e à educação de qualidade em todos os  
níveis, com vistas a inserir estudantes nas escolas e universidades públicas, especialmente os  
de baixa renda, “lutar contra a lógica excludente e meritocrática do vestibular; construir uma  
educação popular transformadora e emancipadora” (Carvalho, 2017).  
Inspirado no conceito de educação popular de Gramsci e Paulo Freire, o nome  
“Emancipa” expressa o pressuposto da educação para emancipar os sujeitos sociais e  
possibilitar o acesso das classes subalternas ao ensino superior. É a partir dessa orientação  
teórica e política que a Rede busca construir o que denomina de “Pedagogia da Esperança”.  
A base social da Rede Emancipa é composta pelos cursinhos populares, por alunos e ex-  
alunos de escolas públicas de cursos regulares, como o Educação para Jovens e Adultos (EJA),  
trabalhadores em geral das mais diferentes idades, professores, militantes de partidos de  
esquerda e estudantes universitários comprometidos com os princípios que defende. Seus  
professores são voluntários e militantes, majoritariamente alunos ou ex-alunos da USP e  
ativistas do movimento estudantil, organizados em torno do coletivo Romper o Dia, que exercia  
à época hegemonia no Diretório Central dos Estudantes (DCE) da USP, empreendendo uma  
disputa qualitativa na pauta e na agenda do movimento estudantil no Brasil (Carvalho, 2017).  
A organização e a mobilização dos estudantes são os principais motores da história da  
Rede. Eles garantem a “vida do cursinho” [...] organizam o café, os círculos, a grade de aula, o  
Sarau, os passeios e os grupos de estudos” (Carvalho, 2017 p. 8). Até 2019, a Rede contava  
com mais de 60 unidades em 10 estados e no Distrito Federal, sendo 27 no estado de São Paulo.  
Localizados nas periferias, os cursinhos têm como base física escolas, residências e espaços  
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Libertas, Juiz de Fora, v. 25, n. 1, p. 18-32, jan./jun. 2025. ISSN 1980-8518  
Da espontaneidade à direção consciente: a potencialidade das lutas sociais na realidade brasileira  
públicos, como praças e bibliotecas. Do mesmo modo que o MTST, a Rede constitui-se em  
uma ferramenta para a organização da juventude, especialmente nas regiões mais afastadas e  
negligenciadas dos grandes centros urbanos.  
A direção política assumida pela Rede é a compreensão do cursinho e da escolha de uma  
profissão como um projeto individual. Não obstante, as escolhas sinalizam para o tipo de pessoa  
e de trabalhador que se pretende ser. A Rede entende que as escolhas pessoais e as visões  
individuais de mundo podem se articular a um projeto mais amplo, contribuindo tanto para  
reproduzir os problemas e as desigualdades como para resolvê-los (Mendes, 2011; Carvalho,  
2017). Para Gramsci (2004, p.152), “o princípio da organização [...] é superior ao da liberdade  
pura e simples”. Se a classe burguesa reduz a “afirmação dos direitos do indivíduo à liberdade  
e à iniciativa” [...], a classe proletária luta pela afirmação dos “direitos da coletividade, do  
trabalho coletivo, contrapondo à liberdade individual, à iniciativa individual, a organização das  
iniciativas, a organização das liberdades”. Nesse sentido, a proposta político-pedagógica da  
Rede busca oferecer uma educação “que ajude a devolver o poder instituinte ao povo, que  
permita à maioria tomar em suas mãos as rédeas do próprio destino” (Carvalho, 2017, p. 6). As  
propostas pedagógicas transcendem, assim, seus objetivos propedêuticos, tendo como horizonte  
a formação e o desenvolvimento da consciência crítica por parte dos estudantes frente à  
realidade social e política em que estão inseridos.  
25  
No que se refere à mobilização, a Rede participou ativamente, em todo Brasil, das  
manifestações de 2013, incluindo pautas como transporte público, moradia e saúde, além da  
educação. Entre 2015 e 2016, frente ao anúncio do governo do estado de São Paulo, de forma  
autoritária e sem diálogo, de que centenas de escolas públicas seriam fechadas, a Rede  
mobilizou mulheres, jovens e estudantes secundaristas, que ocuparam mais de 200 escolas,  
culminando em centenas de atos contra as medidas, com amplo apoio da sociedade. As  
mobilizações se estenderam a outros estados, a despeito da repressão e da violência exercidas  
pelos aparelhos coercitivos do Estado. Destes eventos, surgiram dois dos principais canais de  
informação e mobilização das ocupações nas redes sociais – “Não fechem minha escola” e o  
Manual de Mobilização e Ocupação de Escolas”, inspirados nas ocupações secundaristas  
chilenas (Carvalho, 2017).  
A mobilização também ocorre na luta por espaços públicos coletivos e aulas inaugurais  
unificadas, como no vão do Museu de Arte de São Paulo Assis Chateaubriand (MASP) e no  
Vale do Anhangabaú, em São Paulo. Além disso, a voz da periferia se faz presente em fóruns,  
mesas de discussões, congressos e eleições estudantis, que ocupam praças, quadras e centros de  
juventude.  
Ivete Simionatto; Edinaura Luza; Fabiana Luiza Negri; Raví Calseverini de Toledo  
A necessária articulação com outros movimentos sociais, como o MST, MTST e  
partidos políticos levou a Rede a substituir em seu nome a expressão “Movimento social de  
cursinhos populares” por “Movimento Social de Educação Popular”. Sua direção política se  
expressa no tripé: luta pelo acesso à universidade, ação dentro das escolas públicas, o direito à  
cidade e a supressão das relações desiguais estabelecidas pela opressão de classe (Castro, 2011).  
Novas trincheiras de luta: a articulação das Frentes  
No final do segundo mandato de Lula, em 2010, com o agravamento dos processos de  
descaracterização do Sistema Único de Saúde (SUS), especialmente por meio do repasse da  
gestão de serviços para Organizações Sociais (OSs), foi articulada a Frente Nacional Contra a  
Privatização da Saúde (FNCPS), como protagonista no resgate e na defesa do projeto de saúde  
pública pleiteado pelo Movimento da Reforma Sanitária e na luta contra a privatização da saúde  
pública no Brasil. É uma frente “suprapartidária, de esquerda e anticapitalista”, que, desde sua  
criação, vem construindo, por meio de um esforço coletivo, a articulação de diversas lutas em  
defesa do SUS de caráter público, 100% estatal e de qualidade, contra os processos de  
privatização e a favor de melhorias das condições salariais e de trabalho dos profissionais de  
saúde (FNCPS, 2023).  
Seu surgimento vincula-se à mobilização dos Fóruns de Saúde dos estados do Rio de  
Janeiro, Alagoas e Paraná contra a transferência dos serviços de responsabilidade do Estado  
para as Organizações Sociais (OSs) e a privatização da saúde. Uma das principais ações  
desencadeadas por meio dos Fóruns foi a luta a favor da Ação Direta de Inconstitucionalidade  
(ADIn) 1923/1998, contra a Lei 9.637/1998, aprovada no governo Fernando Henrique Cardoso  
no bojo da Reforma do Estado, que dispõe sobre a qualificação de entidades como organizações  
sociais e a criação do Programa Nacional de Publicização. Tendo essa articulação e mobilização  
como ponto de partida, foi realizado o Seminário Nacional 20 anos de SUS: Lutas sociais  
contra a privatização e em defesa da saúde pública estatal”, com a presença de movimentos  
sociais, sindicatos, centrais sindicais, núcleos e/ou setoriais de partidos políticos, professores e  
estudantes vinculados à saúde, totalizando 400 participantes. Seu objetivo foi o de fortalecer a  
articulação nacional entre os fóruns de saúde dos diversos estados com outras entidades, bem  
como ampliar a mobilização em todos os estados brasileiros. Na plenária deste Seminário teve  
lugar a criação oficial da FNCPS, com uma coordenação nacional e o propósito de articular as  
ações, ampliar o debate e estimular a criação de fóruns nos estados (Bravo, 2011).  
No que tange à organização, a FNCPS (2024a) é composta por um total de 38 Fóruns,  
sendo 20 estaduais, um no Distrito Federal e 17 municipais. Em sua organização interna, opta  
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Da espontaneidade à direção consciente: a potencialidade das lutas sociais na realidade brasileira  
pela horizontalidade, não havendo funções ou cargos estabelecidos e as decisões são baseadas  
no consenso dos membros do colegiado. Ademais, a divisão de tarefas ocorre a partir da  
formação de comissões temporárias, de acordo com as demandas que surgem na luta pela saúde  
pública e contra sua privatização.  
As principais ações da FNCPS compreendem: a) no campo sociojurídico: ações civis  
públicas de inconstitucionalidade contra leis municipais e estaduais e suas implementações; b)  
no âmbito do parlamento: articulação e pressão junto aos parlamentares, por meio de  
manifestações nas câmaras municipais, assembleias legislativas e Congresso Nacional, quando  
da votação de projetos privatizantes; c) no conjunto da sociedade: realização de debates sobre  
a privatização junto aos trabalhadores da saúde e usuários do SUS; d) nos espaços de controle  
social: realização de ações de pressão sobre os mecanismos institucionais (conselhos e  
conferências) para adoção de posicionamentos contra os “novos modelos de gestão”; e) no  
âmbito da formação: realização de cursos de atualização, debates, incentivo a pesquisas e  
trabalhos de extensão em torno da saúde pública; f) nos meios de comunicação: produção de  
material para divulgação nas entidades, partidos, sindicatos e na grande imprensa, bem como  
nas redes sociais (Bravo; Menezes, 2014; Luza, 2018).  
Retomando os princípios da Reforma Sanitária, a FNCPS compreende a saúde no  
contexto mais amplo das lutas antineoliberais e anticapitalistas para a supressão das  
desigualdades sociais, com prospecção socialista, abarcando as necessárias mediações do  
processo do cotidiano das práticas de saúde, articuladas às lutas gerais dos trabalhadores  
(Bravo; Menezes, 2014). Pode-se dizer que a FNCPS é um movimento social com  
posicionamento político demarcado, embora não homogêneo, que tem como eixo comum a luta  
contra a privatização da saúde (Nascimento, 2023).  
27  
As principais bandeiras de luta da FNCPS (2024b, 2024c): são: a Defesa incondicional  
do SUS público, estatal, universal, de qualidade e sob a gestão direta do Estado; contra todas  
as formas de privatização, incluindo quaisquer parcerias público-privadas; garantia de no  
mínimo 10% do Produto Interno Bruto (PIB) para a saúde, mediante investimento público e  
financiamento exclusivo da rede pública estatal de serviços de saúde; fim da Desvinculação das  
Receitas da União (DRU); auditoria da dívida pública; posicionamento contra os subsídios  
públicos aos planos privados de saúde; luta contra a entrada de capital estrangeiro nos serviços  
de assistência à saúde; defesa de concursos públicos pelo Regime Jurídico Único (RJU) e da  
carreira pública de Estado para o pessoal do SUS; defesa da implementação da reforma  
psiquiátrica e contra as internações e recolhimentos forçados; luta contra a “higienização social”  
e despejos provocados pela organização de megaeventos; luta pela efetivação do controle social  
Ivete Simionatto; Edinaura Luza; Fabiana Luiza Negri; Raví Calseverini de Toledo  
democrático; mobilização para encaminhamento de projeto de lei de iniciativa popular que  
revogue a EC 95/2016.  
A atuação da FNCPS vem se constituindo no cenário nacional brasileiro em uma  
importante estratégia para a mobilização e organização não somente em torno da saúde, mas  
das demais demandas da classe trabalhadora. São as correlações e equilíbrios de forças  
produzidas pelas classes sociais que determinam a distribuição de bens, serviços e direitos.  
Além disso, é por meio da mobilização de classe e da correlação de forças que a política social  
se afigura muito mais do que um meio para atenuar malefícios sociais no capitalismo (Pereira,  
2013), mas como estratégias para a construção de uma nova sociabilidade.  
Em termos de articulação política, a Frente congrega sindicatos, partidos políticos,  
conselhos profissionais, conselho nacional de saúde e movimentos sociais dentre outros,  
podendo-se elencar: Partido Socialismo e Liberdade (PSOL), Partido Comunista Brasileiro  
(PCB), Partido dos Trabalhadores (PT), Unidade Popular (UP), Partido Socialista dos  
Trabalhadores Unificado (PSTU); entidades de categorias profissionais: Conselho Federal de  
Serviço Social (CFESS), Associação Brasileira de Ensino e Pesquisa em Serviço Social  
(ABEPSS), Associação Brasileira de Enfermagem (ABEN); Sindicato Nacional dos Docentes  
das Instituições de Ensino Superior (ANDES), Federação Nacional de Sindicatos de  
Trabalhadores em Saúde, Trabalho, Previdência e Assistência Social (FENASPS), Fundação  
dos Sindicatos dos Trabalhadores das Universidades Públicas Brasileiras (FASUBRA).  
Destacam-se ainda, Executivas de Estudantes de Serviço Social, Farmácia, Medicina e  
Nutrição, Fórum dos Residentes em Saúde, MST, MTST. Durante o segundo mandato da  
presidente Dilma Rousseff, a FNCPS somou-se à luta de outros movimentos sociais contra o  
golpe de 2016, através da participação em diversas manifestações populares e da elaboração de  
documentos divulgados nos meios de comunicação da própria Frente (Bravo; Pelaez; Pinheiro,  
2018; Nascimento, 2023).  
28  
Ao colocar-se no campo da luta de classes e na defesa de um novo projeto societário, a  
aliança da FNCPS com outros sujeitos políticos, a exemplo do MTST e da Rede Emancipa,  
configura-se como imprescindível para que as reivindicações e necessidades particulares de cada  
movimento sejam mais amplamente articuladas em instâncias de universalização, a exemplo dos  
partidos políticos, enquanto síntese dos interesses de classe e propulsores da formação de uma vontade  
coletiva nacional-popular.  
Outro sujeito político foco deste estudo é a Frente Nacional em Defesa do Sistema Único  
de Assistência Social SUAS e da Seguridade Social. (FNDSUAS). Criada em 2016, a Frente  
nasceu em protesto ao quadro político e econômico instalado no Brasil após o golpe jurídico-  
Libertas, Juiz de Fora, v. 25, n. 1, p. 18-32, jan./jun. 2025. ISSN 1980-8518  
Da espontaneidade à direção consciente: a potencialidade das lutas sociais na realidade brasileira  
parlamentar sofrido pela presidente Dilma Roussef. Selado o processo de impeachment, Michel  
Temer assume o poder e dá início a um novo ciclo de contrarreformas, mediante a retomada do  
projeto neoliberal ortodoxo dos anos 1990, vinculado aos interesses de frações da burguesia  
nacional e do capital internacional. Tais contrarreformas pautaram-se no corte de investimentos  
em políticas sociais, no desmonte de direitos sociais, previdenciários e trabalhistas, com grande  
impacto sobre a população mais pobre. As propostas do então governo ganharam materialidade  
com a aprovação da Emenda Constitucional (EC) 95/2016 (Teto de Gastos) e a reforma  
trabalhista Lei 13.467/2017, com incidência direta nas políticas sociais, dentre elas a  
assistência social.  
Essa conjuntura mobilizou diversos setores e entidades atuantes no campo da assistência  
social para criar um movimento de resistência em defesa das políticas públicas e dos direitos  
sociais. É nesse contexto que surge a FNDSUAS, uma organização plural de trabalhadores,  
usuários, gestores, entidades, instituições não-governamentais, professores, pesquisadores,  
parlamentares e pessoas interessadas em defender a Assistência Social e a Seguridade Social  
brasileiras. Sua organização foi sendo constituída através da criação de frentes estaduais,  
comitês regionais e locais. Conta com uma coordenação nacional executiva e as respectivas  
coordenações estaduais e locais (FNDSUAS, 2022a).  
Por meio de suas coordenações, a Frente articula-se tanto com pessoas envolvidas  
diretamente na política de assistência social quanto com diferentes entidades e movimentos  
sociais defensores dos direitos sociais, levantando questionamentos e provocando debates que  
reafirmam sua direção política, seu compromisso com a justiça social, a democracia, a  
cidadania, na luta e resistência contra o desmonte dos direitos e da proteção social.  
As estratégias adotadas pela Frente partem desde a elaboração de documentos e  
informes de orientação aos/às trabalhadores/as e usuários/as do SUAS até mobilizações de rua  
em defesa dos programas, projetos, serviços e benefícios. Outra estratégia adotada são as  
conferências, encontros e seminários, atividades coletivas que abordam os mais variados temas  
dentro do espectro de defesa da política pública de assistência social e da Seguridade Social.  
Na pesquisa realizada, foi possível constatar cerca de 40 atividades realizadas no período de  
2016 a 2020, incluindo lives, notas de manifestação em protesto e repúdio aos cortes de  
investimentos na política de assistência social, promoção de atos públicos, com a participação  
de trabalhadores/as do SUAS, de usuários/as e entidades sociais. Para a mobilização e a  
articulação popular das entidades e dos diversos segmentos que integram a Frente, as  
coordenações se utilizam de ferramentas como as mídias sociais, viabilizadoras tanto da  
29  
Ivete Simionatto; Edinaura Luza; Fabiana Luiza Negri; Raví Calseverini de Toledo  
comunicação como do posicionamento político e da direção do movimento (FNDSUAS,  
2022b).  
A linha política da FNDSUAS se coloca contra a criminalização da pobreza e dos  
movimentos sociais, o machismo, a homofobia, o racismo, a violência contra indígenas,  
quilombolas e o extermínio da juventude pobre e negra das periferias, luta pela supremacia do  
atendimento às necessidades sociais sobre as exigências da rentabilidade econômica e luta pela  
primazia da responsabilidade do Estado na condução e execução da Seguridade Social  
(FNDSUAS, 2022b). As pautas e temas que compõem a agenda Frente incluem, portanto, além  
da defesa das políticas sociais, a preocupação com demandas gerais das classes subalternas não  
desvinculadas a um projeto classista. As ações prático-políticas desenvolvidas por estas novas  
institucionalidades, a despeito das contradições e ambiguidades que lhe são inerentes,  
constituem-se em espaços de disputa, desempenhando um papel decisivo na construção de  
resistências, na defesa de direitos conquistados e no tensionamento do Estado para a ampliação  
de políticas públicas.  
Conclusões  
O estudo aqui apresentado permite concluir que a luta pela organização dos  
trabalhadores é resultado de um longo processo, de um intenso trabalho capilar que envolve as  
diversas instâncias organizativas: conselhos, comissões, sindicatos, movimentos, fóruns e  
frentes diretamente inseridos nos territórios, bem como uma rica articulação de instituições e  
formas participativas diversas. A organização, portanto, “não tem um fim em si mesma”, mas,  
a partir de uma linha política, tende a romper o isolamento, conquistar na luta cotidiana a  
hegemonia da classe trabalhadora, buscando assegurar as alianças de classe necessárias para  
fazer avançar a luta, tendo no partido político o elo aglutinador (Fresu, 2020; Del Roio, 2015).  
Os movimentos objetos da pesquisa, embora tenham em suas origens a vinculação a  
uma pluralidade e diversidade de demandas da classe trabalhadora, denotam em suas trajetórias,  
objetivos e direção política a preocupação com a construção de um projeto societário  
abrangente e classista. Evidencia-se, igualmente, a potencialidade dessas expressões  
organizativas da sociedade civil, arenas de exercício e aprendizado políticos, de aglutinação de  
forças, essenciais à elevação da consciência crítica e à preparação prático-política dos grupos  
subalternos na construção de uma contra hegemonia. É forçoso reconhecer, ademais, a  
necessidade de fortalecer o horizonte da luta política mais ampla, integrando as reivindicações  
e ações emergidas nessas diferentes trincheiras de luta de classes em uma proposta totalizadora,  
30  
Libertas, Juiz de Fora, v. 25, n. 1, p. 18-32, jan./jun. 2025. ISSN 1980-8518  
Da espontaneidade à direção consciente: a potencialidade das lutas sociais na realidade brasileira  
imperativo ao enfrentamento da “grande política” e à edificação de uma sociedade  
verdadeiramente justa e emancipada.  
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Burguesia dependente e crise de hegemonia no  
Brasil1  
Dependent bourgeoisie and crisis of hegemony in Brazil  
Isabela Ramos Ribeiro*  
Resumo: O artigo em tela trata do papel da  
burguesia dependente na composição do bloco  
no poder e na crise de hegemonia estabelecida  
em 2013 no Brasil, bem como as características  
dessa crise que perpassa diversos governos.  
Para isso, foi realizado levantamento  
bibliográfico em artigos, teses, dissertações e  
livros que tratam do tema. São apresentados  
pressupostos acerca da dependência e da  
hegemonia no contexto brasileiro, para  
posteriormente compreender a crise econômica  
a partir de 2011, a crise de hegemonia  
estabelecida em 2013, durante o governo Dilma,  
e os embates posteriores entre as frações  
burguesas que permitem afirmar que a crise  
ainda está em curso, mesmo após os ajustes  
internos no bloco no poder.  
Abstract: This article deals with the role of the  
dependent bourgeoisie in the composition of the  
power bloc and in the crisis of hegemony  
established in 2013 in Brazil, as well as the  
characteristics of this crisis that has affected  
several governments. To this end,  
a
bibliographical survey was carried out in  
articles, theses, dissertations and books that deal  
with the subject. Assumptions about  
dependence and hegemony in the Brazilian  
context are presented, in order to subsequently  
understand the economic crisis since 2011, the  
crisis of hegemony established in 2013, during  
the Dilma government, and the subsequent  
clashes between the bourgeois fractions that  
allow us to affirm that the crisis is still ongoing,  
even after the internal adjustments in the power  
bloc.  
Palavras-chaves: Dependência; Bloco no  
poder; Crise de hegemonia; Frações burguesas;  
Estado.  
Keywords: Dependence; Power bloc; Crisis of  
hegemony; Bourgeois fractions; State.  
Introdução  
Este artigo trata da organização da burguesia dependente brasileira na conformação da  
hegemonia no período recente, e compõe um esforço de compreensão da realidade a partir do  
“prisma latino-americano”2, o qual permite não apenas acoplar uma nova teoria aos  
1
O artigo revisita e atualiza as discussões provenientes da tese de doutorado “Burguesia dependente, bloco no  
poder e a conformação da hegemonia no Brasil entre 2003 e 2018” (Ribeiro, 2020).  
* Universidade de Brasília. E-mail: ramosribeiro.isabela@gmail.com  
2
Nos termos de Paiva, Rocha e Carraro (2010, p. 168), “o prisma latino-americano [...] reporta à tentativa de  
contribuir para o desenvolvimento de uma perspectiva autônoma e crítica do modo de perceber o mundo, ou seja,  
DOI: 10.34019/1980-8518.2025.v25.46230  
Esta obra está licenciada sob os termos  
Recebido em: 10/10/2024  
Aprovado em: 20/01/2025  
Isabela Ramos Ribeiro  
conhecimentos produzidos, mas subverter o ponto de partida. As categorias de hegemonia e  
bloco no poder, pautadas no estudo de Gramsci e Poulantzas, devem ser consideradas como  
aportes teórico-metodológicos na medida em que auxiliam na compreensão de nossa realidade  
concreta. Da mesma forma, aquelas contribuições fundamentais deixadas pelo conjunto de  
autores vinculados à Teoria Marxista da Dependência (TMD) só passam a ter sentido quando  
postas em movimento, no exercício constante de análise e transformação do existente.  
Com os pés neste solo político e teórico se pretende avançar para apreender como a  
burguesia dependente exerce o poder no Brasil, a partir da construção da hegemonia – entendida  
como a organização da dominação burguesa que varia de acordo com cada formação social e  
conjuntura. No caso do desenvolvimento capitalista no Brasil, a burguesia nasce atrelada a  
interesses externos, e com a necessidade de se articular ao capital internacional no processo de  
industrialização (Marini, 2012a; Bambirra, 2012). Nesse sentido, conforma-se a questão sobre  
a natureza histórica da burguesia brasileira e o papel que cumpre na articulação da hegemonia,  
considerando suas diversas frações e a contínua transferência de valor da periferia para o centro.  
Tem especial importância o papel do Estado, que condensa as relações entre as classes  
(Poulantzas, 2015; Osorio, 2014), inclusive as de subordinação da burguesia local frente ao  
imperialismo. Sob tal determinação, o aparelho estatal desenvolve inúmeros mecanismos que  
garantem a transferência de valor e a superexploração da força de trabalho, favorecendo e  
priorizando determinadas frações da burguesia, as quais explicitam suas necessidades ao  
Estado.  
34  
Nesse sentido, o objetivo traçado é evidenciar o papel da burguesia dependente na crise  
de hegemonia estabelecida em 2013 no Brasil, bem como as características dessa crise. A  
pesquisa se pautou em aproximações sucessivas para elucidar a estrutura e dinâmica do objeto,  
(Netto, 2011), nesse caso, a relação da burguesia brasileira dependente com a crise, indo além  
de sua aparência. Para isso, foi realizado levantamento bibliográfico em artigos, teses,  
dissertações e livros que tratam do tema, com foco nas discussões sobre bloco no poder, crise  
de hegemonia, crise econômica, frações burguesas, dependência, governos Lula, Dilma, Temer  
e Bolsonaro.  
Em síntese, o texto se organiza da seguinte forma: na primeira seção são retomadas as  
análises da TMD para caracterizar a burguesia dependente. Posteriormente, são apresentados  
especialmente partindo da concreticidade de um espaço/tempo que nos pertence, que encerra determinadas  
contradições por ter uma peculiaridade histórica que deve ser resgatada, defendida e analisada, buscando-se  
apreender as veias mais entranháveis do continente, o cerne que nos faz a todos - povos de distintas nações - latino-  
americanos”.  
Libertas, Juiz de Fora, v. 25, n. 1, p. 33-57, jan./jun. 2025. ISSN 1980-8518  
Burguesia dependente e crise de hegemonia no Brasil  
alguns pressupostos com relação ao debate sobre hegemonia e bloco no poder para então  
discutir a crise econômica a partir de 2011, a crise de hegemonia estabelecida em 2013, durante  
o governo Dilma, e os embates posteriores que permitem afirmar que a crise ainda está em  
curso.  
Por que a burguesia brasileira é dependente?  
Gunder Frank (1978), em seu texto “Lumpenburguesía: lumpendesarollo”, trabalha as  
classes sociais na relação entre imperialismo e dependência. Para o autor, a dependência não é  
só externa; é também condição interna que determina e satisfaz a burguesia dependente, a qual  
cria políticas de desenvolvimento do subdesenvolvimento, sendo caracterizada como  
lumpenburguesia. Assim, a lumpenburguesia para Frank (1978) é a própria burguesia  
dependente, que em sua concepção e estrutura precisa manter o subdesenvolvimento para  
sobreviver enquanto classe dominante.  
De acordo com Frank (1978), a relação colonial condicionou as estruturas de classes  
nos países latino-americanos, e quanto maior a riqueza disponível para ser explorada, mais  
pobre e subdesenvolvida se tornava a região. Portanto, o desenvolvimento só foi possível onde  
não havia condições – geológicas, climáticas e de população indígena como força de trabalho  
– para instaurar a estrutura do subdesenvolvimento. Nesse sentido, dada a dinâmica do mercado  
mundial e seu interesse no açúcar como mercadoria ao longo do século XVII, as regiões com  
potencial para produção açucareira requeriam amplas extensões de terra e uma grande oferta de  
força de trabalho. A partir dessa demanda, as colônias que antes se organizavam em pequenas  
propriedades passam a dispor de latifúndios, determinando a organização do território – esse  
era o caso do Brasil. As classes dominantes que se conformavam eram dirigidas por  
latifundiários e exportadores, sem qualquer interesse no desenvolvimento interno.  
As independências políticas inseriram as nações latino-americanas na divisão  
internacional do trabalho, configurando a dependência, “entendida como uma relação de  
subordinação entre nações formalmente independentes, em cujo marco as relações de produção  
das nações subordinadas são modificadas ou recriadas para assegurar a reprodução ampliada da  
dependência” (Marini, 2011, p. 134). Com a revolução industrial, as economias das nações  
latino-americanas passam a gravitar em torno da Inglaterra, por meio da exportação de bens  
primários, e o imperialismo exigiu mudanças internas que uma vez mais condicionaram a  
estrutura econômica e de classes. Nesse projeto imperialista, a lumpenburguesia é a sócia menor  
do capital estrangeiro, que para atender ao seu senhor cria políticas, por meio do Estado, que  
sustentam as economias no lugar do subdesenvolvimento (Frank, 1978). Isso é condição de  
35  
Isabela Ramos Ribeiro  
existência para a burguesia dependente, incluída aí a burguesia brasileira.  
Nesse sentido, a caracterização do Brasil enquanto país dependente no sistema  
capitalista mundial se deve ao processo histórico específico que constituiu o povo e a nação  
brasileiros, que desde sua conformação estiveram subordinados aos interesses estrangeiros, e  
cuja dependência continua a se reproduzir sob novas formas. Em acordo com Darcy Ribeiro  
(2012, p. 61), “uma característica singular da América Latina é sua condição de um conjunto  
de povos intencionalmente constituídos por atos e vontades alheios a eles mesmos".  
É nesse viés que se constitui a hegemonia comprometida mencionada por Vânia  
Bambirra (2012). O desenvolvimento industrial de parte da América Latina, embora voltado  
aos interesses dos países imperialistas e dos setores oligárquicos minerador, latifundiário e  
comercial exportador, contava com uma estrutura interna com dinâmica relativa própria. As  
condições internacionais como as grandes guerras e a crise econômica mundial de 1929  
estimulam o processo de substituição de importações nos países dependentes, que puderam  
aproveitar essas oportunidades quando tinham um mercado nacional já estruturado, bem como  
um processo produtivo baseado majoritariamente em relações capitalistas. Para a autora, “é no  
seio desse sistema de dominação oligárquico – como parte do contexto do capitalismo mundial  
– que surgirá e se desenvolverá uma burguesia vinculada à indústria” (Bambirra, 2012, p. 76).  
A indústria surge impulsionada pelas necessidades do setor exportador, mas desenvolve sua  
própria dinâmica e uma independência relativa deste setor, pois precisa dele para sua  
sobrevivência e expansão. Nesse sentido, as duas frações da classe dominante coexistem3, sem  
que haja um processo revolucionário com transformação radical das relações de produção, tal  
qual realizado por parte da burguesia europeia. Por isso, não se pode dizer que este processo  
seja uma revolução burguesa no sentido tradicional do termo, mas certamente expressa o  
compromisso entre as frações de classe no bloco no poder, com hegemonia da fração industrial.  
Bambirra (2012, p. 92) afirma que “é esta hegemonia burguesa comprometida que  
define o caráter e o modo de funcionamento do capitalismo dependente nesses países da  
América Latina, e define também suas possibilidades e limites”. Tais limites referem-se, por  
exemplo, à ausência de reforma agrária, o que ampliaria o mercado interno e, portanto,  
beneficiaria a indústria nacional. Além disso, a autora destaca a intervenção do Estado em  
especial nos períodos de crise do setor exportador, por meio de uma série de medidas em favor  
das oligarquias, ainda que isso tenha ocorrido para proteger os interesses do sistema em seu  
36  
3 “Tal interpendência se reflete de forma muito nítida na medida em que os capitais gerados no setor exportador  
são transferidos ao setor industrial (direta ou indiretamente, como, por exemplo, através do sistema bancário ou  
mediante subsídios estatais) e possibilitam sua expansão” (Bambirra, 2012, p. 79).  
Libertas, Juiz de Fora, v. 25, n. 1, p. 33-57, jan./jun. 2025. ISSN 1980-8518  
Burguesia dependente e crise de hegemonia no Brasil  
conjunto, posto que a indústria só se desenvolve a partir dessa base.  
No período pós Segunda Guerra, os Estados Unidos conseguiram tirar proveito da  
situação mundial em razão de sua participação vitoriosa na guerra, do bloqueio do campo  
socialista e do Plano Marshall de reconstrução da Europa, afirmando-se como centro  
hegemônico imperialista. Esse elemento muda as relações com os países latino-americanos, em  
especial com aqueles que já tinham consolidado uma base de industrialização, pois tornam-se  
terreno para a expansão das grandes empresas multinacionais. No caso do Brasil, “tratava-se de  
impossibilitar o acesso da burguesia brasileira a recursos que lhe permitissem superar com  
relativa autonomia os pontos de estrangulamento surgidos no processo de industrialização e  
forçá-la a aceitar a participação direta dos capitais privados estadunidenses” (Marini, 2012a, p.  
145). Assim, de acordo com Bambirra (2012, p. 98-99) a desnacionalização dos meios de  
produção trouxe consigo a desnacionalização da própria burguesia, e “a nova expansão do  
imperialismo conseguiu frustrar de modo definitivo essa hegemonia historicamente efêmera”.  
Nesta fase de integração monopólica, Bambirra (2012) explicita os novos mecanismos  
de subordinação das burguesias latino-americanas ao capital estrangeiro, posto que este conduz  
a industrialização e orienta o mercado de consumo com a mediação dos Estados nacionais.  
Deste modo, “o imperialismo era um elemento constitutivo interno do sistema de dominação”  
(Bambirra, 1977, p. 8) e sua contraface, a dependência4, condiciona as estruturas internas dos  
países dependentes, possibilitando a perpetuação das condições de domínio e subordinação.  
A expansão capitalista apoiada cada vez mais no capital internacional agrava as  
contradições deste período até que, diante das limitações impostas pela dependência, a classe  
dominante lança mão do autoritarismo para reconfigurar o bloco no poder, desfazendo a  
institucionalidade anterior e criando o “Estado de Contrainsurgência” (Marini, 2018). O bloco  
no poder conforma-se, então, com a subordinação das demais frações burguesas à burguesia  
monopolista, “mediante os investimentos diretos de capital estrangeiro, a subordinação  
tecnológica e a penetração financeira” (Marini, 2018, p. 4). De acordo com Osorio (2014), este  
novo arranjo de classes lança as bases para o neoliberalismo na América Latina5.  
37  
4 Para Bambirra (1977, p. 18), “a teoria do imperialismo de Lenin deve ser ampliada com novos elementos, a partir  
da associação com a teoria da dependência, resultando em uma unidade teórica, fruto da unidade histórica  
concreta”.  
5
Destaca-se que, de acordo com Marini (2012b), embora a concentração e centralização de capitais seja uma  
característica geral do capitalismo na era dos monopólios, o ciclo do capital na economia dependente, em razão  
do elevado número de empresas estrangeiras operando em seu interior com maior grau de tecnologia implicada no  
processo de produção e menor custo de produção, tende a acumular mais-valia extraordinária em maior proporção  
que as empresas nacionais. Dessa maneira, as empresas menores, sem condições de competir da mesma forma na  
segunda fase da circulação – realização das mercadorias –, são destruídas ou incorporadas às multinacionais ou  
demais empreendimentos com aporte de investimento estrangeiro. Por isso, a tendência à monopolização é ainda  
maior nos países dependentes.  
Isabela Ramos Ribeiro  
A particularidade do ciclo do capital nas economias dependentes tem seu ponto de  
partida essencialmente na transferência de valor aos países centrais. Isso decorre do que Marini  
(2011) caracteriza como troca desigual. Em decorrência das diferenças entre as capacidades  
produtivas dos países dependentes e imperialistas – que se expressa em compra e venda de  
produtos com preços maiores ou menores no mercado mundial –, há uma transferência de valor  
contínua da periferia para o centro. Por isso, embora apareça como um problema na circulação,  
pois suas principais formas se concretizam pela remessa de lucros, pagamento de juros e serviço  
da dívida, a transferência de valor decorre das condições de produção. Nos termos de Marini  
(2012a, p. 52), “uma parte variável da mais-valia que aqui se produz é drenada para as  
economias centrais, pela estrutura de preços vigente no mercado mundial, pelas práticas  
financeiras impostas por essas economias, ou pela ação direta dos investidores estrangeiros no  
campo da produção”.  
Tal mecanismo gera, por sua vez, a ruptura entre produção e necessidade de consumo  
das massas, fazendo com que o mercado interno não seja diretamente vinculado ao  
desenvolvimento da economia nacional (Marini, 2011). A burguesia local, então, se utiliza da  
superexploração da força de trabalho como mecanismo de compensação das perdas decorrentes  
da transferência de valor, caracterizando-se como o princípio fundamental da economia  
subdesenvolvida pautada pela troca desigual (Marini, 2011, 2012b). Isto significa que, para a  
garantia da acumulação de capital em escala mundial e para a manutenção da taxa de lucro das  
burguesias locais, desenvolve-se uma forma peculiar de extração da mais-valia, a qual remunera  
a força de trabalho abaixo de seu valor, violando estruturalmente o valor da força de trabalho.  
Nas palavras de Marini (2012a, p. 62), “o desenvolvimento capitalista integrado reforça  
o divórcio entre a burguesia e as massas populares, intensificando a superexploração a que estas  
estão submetidas e negando-lhes sua reivindicação mais elementar: o direito ao trabalho”. Isso  
desencadeia o crescimento do que Marini (2012a, p. 68) denomina populações marginais  
urbanas ou subproletariado, parcela da população “sem uma posição definida no sistema de  
produção e vivendo de trabalhos ocasionais”, fortemente atingida pela violência estatal – não  
somente em períodos de exceção, mas como elemento constitutivo do controle político-  
econômico sobre a população e a pobreza. No mesmo sentido, mas por outro lado, este  
capitalismo subordinado conforma também uma burguesia sui generis a qual precisa articular  
mecanismos, em conjunto com o Estado, para manter a superexploração e suas justificativas. O  
pagamento de juros, encargos e amortização da dívida pública, as metas de superávit primário,  
a não limitação de remessa de lucros, a transferência de recursos para empresas estrangeiras, a  
apropriação dos conhecimentos tradicionais, as isenções e desonerações tributárias e a abertura  
38  
Libertas, Juiz de Fora, v. 25, n. 1, p. 33-57, jan./jun. 2025. ISSN 1980-8518  
Burguesia dependente e crise de hegemonia no Brasil  
comercial cada vez mais adequada aos interesses do imperialismo são formas de participação  
do Estado na manutenção da dependência, e por consequência de sustentação da  
lumpenburguesia. Em especial nos momentos de crise aguda do capitalismo, a burguesia avança  
sobre padrões civilizatórios e direitos sociais considerados básicos em outras latitudes,  
dificultando as condições para sustentação da hegemonia, como é possível observar no período  
mais recente.  
Hegemonia e bloco no poder no Brasil  
Considerando as particularidades explicitadas anteriormente, a burguesia brasileira  
dependente se constitui e sobrevive graças a uma configuração específica de subordinação ao  
imperialismo, acarretando a superexploração como fundamento da economia dependente. Tais  
aspectos colocam mediações diferenciadas daquelas dos países centrais para a configuração da  
sociedade civil, do Estado e para a construção da hegemonia. Nesse escopo, sociedade civil  
corresponde à “hegemonia política e cultural de um grupo social sobre toda a sociedade, como  
conteúdo ético do Estado” (Gramsci, 2019, p. 228), que se materializa no conjunto das  
organizações assim chamadas privadas. Já a sociedade política está relacionada ao aparato  
governamental e aparato coercitivo. A hegemonia se agrega ao aparato coercitivo, alargando o  
Estado, o qual “tem e pede o consenso, mas também ‘educa’ este consenso através [...] dos  
organismos privados” (Gramsci, 2019, p. 121).As organizações privadas da burguesia brasileira  
componentes da sociedade civil, embora supostamente autônomas, são altamente influenciadas  
por interesses externos, demandando do Estado condições de manutenção do  
subdesenvolvimento e da superexploração, como anunciado por Frank (1978).  
39  
Ainda nos termos de Gramsci (2019, p. 335), “o Estado é todo o complexo de atividades  
práticas e teóricas com as quais a classe dirigente não só justifica e mantém seu domínio, mas  
consegue obter o consenso ativo dos governados”. Dessa forma, o domínio é garantido com  
coerção, aspecto sobressaltado no capitalismo dependente, mas sem prescindir da capacidade  
de direção, assegurada com a permanente construção de hegemonia. Não se pode esquecer sua  
organicidade, posto que as relações econômicas são perpassadas pela regulação de caráter  
estatal e a economia capitalista não está excluída da sociedade civil. Segundo o autor, “todo o  
grupo social, nascendo no terreno originário de uma função essencial no mundo da produção  
econômica, cria para si, organicamente uma ou mais camadas de intelectuais que lhe dão  
homogeneidade [...] não apenas no campo econômico, mas também social e político” (Gramsci,  
2000, p. 15). Daí surge o conceito de Estado integral, no sentido de sua ampliação, no qual os  
intelectuais orgânicos da burguesia atuam ativamente para o convencimento do conjunto da  
Isabela Ramos Ribeiro  
população sobre os “benefícios” gerados a partir da implementação de suas demandas. Isso é  
perceptível quando as confederações e organizações patronais – tais quais federações e  
confederações da agricultura, indústria, comércio e bancos – colocam suas demandas para o  
desenvolvimento do país exaltando interesses particulares de reprodução de seus capitais, sob  
hegemonia do imperialismo.  
Dessa forma, as diversas frações e setores da burguesia6 têm seus interesses acomodados  
no Estado e por ele unificados, e podem alternar-se na ocupação de determinados espaços de  
decisão e definição das políticas econômicas e sociais, conforme a correlação de forças internas  
à própria burguesia, no que Poulantzas (1971) caracteriza como bloco no poder. Para o autor, a  
separação formal entre o econômico e o político no capitalismo é ponto de partida para a  
autonomia relativa do Estado em relação às classes sociais, uma vez que é possível a satisfação  
de alguns interesses econômicos das classes dominadas contanto que o poder político e o  
aparelho de Estado permaneçam intactos7. Na mesma direção, Mascaro (2013, p. 24) afirma  
que “a forma política estatal é fundamental à reprodução da sociabilidade do capitalismo, mas,  
ao se assentar como forma de um poder separado dos próprios agentes econômicos, ela pode  
até mesmo, eventualmente, ser disfuncional e contrária aos interesses de valorização do valor”.  
Em síntese, o Estado capitalista expressa a hegemonia da classe burguesa, e é a  
sociedade civil o espaço privilegiado de construção de hegemonia, conforme o nível de  
organização das classes e frações de classes. Embora seja possível afirmar que tais relações se  
condensam no Estado, isso não ocorre em uma projeção espelhada ou copiada para o aparelho  
estatal. A passagem de um momento a outro abre brechas e permite alterações que desembocam  
em novas relações e, portanto, as flutuações da política não são expressões imediatas da  
estrutura econômica (Gramsci, 2013). Conforme Liguori e Voza (2017, p. 263), “os processos  
não são unívocos, o Estado constitui também o terreno do conflito de classe, é, ao mesmo  
tempo, instrumento (de uma classe), mas também lugar (de luta hegemônica) e processo (de  
unificação das classes dirigentes)”.  
40  
O grau, extensão e formas da autonomia relativa só pode ser examinado em referência  
6
Quando associadas às entidades representativas que congregam determinado ramo de atividade da burguesia e  
suas práticas políticas, podemos falar em frações (industrial, agrária, comercial e bancário-financeira). Em geral,  
quando se trata de um ramo de atividade do capital como forma de existência, não necessariamente organizado  
como fração de classe, referimo-nos ao setor, tratando-se apenas dessa forma de existência do capital setorizado e  
sem prática política comum.  
7
De acordo com Mascaro (2013, p. 44), “tomado a partir da forma política, o Estado revela-se relativamente  
autônomo em relação à totalidade social [...]. Mas tal autonomia se exerce justamente numa cadeia de relações  
específicas, capitalista”. Assim, a autonomia do Estado é relativa pois ao mesmo tempo em que há uma  
diferenciação entre agentes do Estado e agentes econômicos, essa autonomia depende da forma política capitalista  
de reprodução social para se perpetuar.  
Libertas, Juiz de Fora, v. 25, n. 1, p. 33-57, jan./jun. 2025. ISSN 1980-8518  
Burguesia dependente e crise de hegemonia no Brasil  
a um dado Estado concreto e à conjuntura da luta de classes (Poulantzas, 2008), o que justifica  
a frequente tentativa de apreender tais condições na conjuntura brasileira atual. Por considerar  
que “a classe burguesa apresenta-se, no modo de produção capitalista, constitutivamente  
dividida em frações de classe” (Poulantzas, 1971, p. 61), é crucial compreender as formas com  
que exercem sua prática política e como buscam a hegemonia. As frações de classe são  
determinadas pelas formas de existência do capital que representam – lugar na produção – mas  
também pelas práticas políticas que desenvolvem nas relações sociais, englobando o conjunto  
das instâncias política, econômica e ideológica. Assim, o bloco no poder indica “a unidade  
contraditória de classes e frações politicamente dominantes sob a égide da fração hegemônica”  
(Poulantzas, 1971, p. 68).  
Ademais, a diferenciação de Poulantzas (1971) entre a função de hegemonia no bloco  
no poder e a função de hegemonia em relação às classes dominadas gerou algumas elaborações  
que procuram nomear tais processos. Nessa linha, Teixeira e Pinto (2012, p. 919) estabelecem  
uma diferenciação entre hegemonia restrita e hegemonia ampla. A primeira refere-se à  
capacidade de uma das frações da burguesia direcionar conforme seus interesses as demais  
frações que compõem o bloco no poder; em outras palavras, é a hegemonia dentro do próprio  
bloco no poder. Já quando a hegemonia alcança e obtém consenso do conjunto da sociedade, é  
considerada pelos autores como ampla. Entretanto, os autores referendam a afirmação de  
Poulantzas de que, em geral, “a fração ou classe dominante a exercer a hegemonia restrita ao  
bloco no poder também é aquela que assume a hegemonia ampla” (Teixeira; Pinto, 2012, p,  
919). Osorio (2014) caminha no mesmo sentido, nomeando estes processos como hegemonia  
política e hegemonia social, respectivamente.  
41  
Essa diferenciação é ressaltada aqui pois importa sobremaneira na análise da realidade  
brasileira a partir dos anos 2000. Desde a instituição do Plano Real, vinculado aos pressupostos  
do projeto neoliberal, os interesses foram acomodados em torno da hegemonia da fração  
bancário-financeira da burguesia. Ainda que a década de 2000 tenha apresentado rearranjos no  
bloco no poder e ajustes no discurso, com a disseminação de ideias como o social-liberalismo  
ou o neodesenvolvimentismo, a hegemonia social em sentido amplo não foi abalada. Na  
transição do governo FHC para o governo Lula, desenharam-se fissuras no bloco no poder8,  
8
Durante o segundo mandato de FHC (1998-2002), as perdas decorrentes dos abalos na economia trouxeram  
protestos dos empresários, posto que “as possibilidades de distribuição no interior das diferentes frações do capital  
dos ganhos financeiros diminuíram” (Bianchi, 2001, p. 163). Nesse contexto, segundo estudo de Bianchi (2001),  
os industriais passaram a elevar o tom nas disputas por políticas que os beneficiassem, resultando em abalos na  
hegemonia no interior do bloco no poder, ainda que esta não tenha gerado uma crise de hegemonia visto a reeleição  
de FHC.  
Isabela Ramos Ribeiro  
com a insatisfação de algumas frações que conseguiram ampliar seu espaço após a vitória  
eleitoral do PT. Todavia, o pacto de classes do Plano Real (Ouriques, 2014; Rocha, 2019;  
Barcellos, 2021) não foi alterado. Tem especial relevância a definição desenvolvida por Rocha  
(2019, p. 445), para quem “o pacto de classes de 1937 a que se refere Marini [...] foi renovado  
com o Plano Real em 1994”, momento em que a burguesia financeira é estabilizada no poder.  
Isso não quer dizer que as disputas intraburguesas ou delas com o restante da sociedade foram  
encerradas, posto que permanecem em constante reconfiguração.  
Nessa esteira, Ouriques (2014, p. 169) reitera que “a partir de 1994 a política econômica  
em curso no Brasil expressa um pacto de classes que a mantém substancialmente inalterada até  
os dias de hoje”. Com a estratégia de controle inflacionário todas as frações da burguesia  
tiveram assegurados “lucros fantásticos”, e o Plano Real se consolida sob a ideologia da  
estabilidade burguesa. Desde então, as sucessivas disputas eleitorais apenas legitimam o pacto  
e reproduzem a estratégia de dominação.  
Conclui-se, pois, que nos anos 2000 a burguesia soube reconfigurar-se de forma a obter  
novamente o consenso do bloco no poder, por meio da mediação do Partido dos Trabalhadores  
(PT), o qual serviu como uma espécie de muro de contenção da hegemonia. Dessa forma, o  
pacto de classes do Plano Real foi incrementado com alguns elementos até então ausentes, por  
meio da implementação de uma série de medidas que favoreceram frações da burguesia  
parcialmente insatisfeitas com os governos anteriores, ao passo em que foram criados  
programas sociais focalizados que contemplaram também as classes subalternas. Tudo isso foi  
realizado em consonância com os pressupostos econômicos que deram vida ao Plano Real, com  
a respectiva manutenção e aprofundamento da dependência especialmente pelo mecanismo da  
dívida pública (Ouriques, 2014).  
42  
Boito Jr. (2018) acerta ao afirmar que a grande burguesia interna9 brasileira ganha força  
nesse período, com apoio das políticas econômicas e sociais estatais, ainda que não haja  
concordância com a tese do autor de que essa fração passa a ser hegemônica no bloco. Isso não  
quer dizer que o capital financeiro fica em segundo plano, pois a conciliação de classes  
orientada pelos governos petistas se deu também no interior do bloco no poder. A ampla  
concessão a tais frações pôde ocorrer em razão de uma escolha política condicionada pelo  
cenário econômico efemeramente favorável, sendo inegável a participação ativa do Estado  
9 Na síntese de Farias (2009, p. 88), “a burguesia interna se define pelo comportamento ambíguo diante do capital  
estrangeiro: ora se opõe a ele, ora o apoia. Isso se dá em razão das formas de dependência – financeira ou  
tecnológica – do capital nativo em relação ao capital externo”, diferente da burguesia nacional anti-imperialista ou  
da burguesia associada totalmente integrada ao capital estrangeiro.  
Libertas, Juiz de Fora, v. 25, n. 1, p. 33-57, jan./jun. 2025. ISSN 1980-8518  
Burguesia dependente e crise de hegemonia no Brasil  
brasileiro no processo de valorização financeira, mesmo quando atua no fortalecimento da  
burguesia interna. Esta, por sua vez, esteve composta por setores da economia como parte da  
indústria, mineração, construção pesada, construção naval, parte do agronegócio e bancos  
nacionais, os quais reivindicavam proteção do Estado para tornarem-se competitivos no  
mercado internacional e interno. Não se trata de burguesia nacional, pois como já ressaltado  
por Bambirra (2012) na seção anterior, a integração subordinada ao imperialismo frustrou a  
hegemonia da burguesia industrial e qualquer projeto nacional-burguês. Importante ressaltar  
que a grande burguesia interna não corresponde a toda a burguesia brasileira. É uma parte dela.  
A fração associada é outra parte da burguesia brasileira. E há também uma gama de outras  
pequenas e médias empresas cujos proprietários e administradores também são parcela da  
burguesia brasileira, mas que não possuem forças econômico-social, organizativa e  
programática próprias e, por essa razão, não entram na disputa pela hegemonia (Boito Jr., 2018).  
Portanto, não há contradição entre as duas categorias (burguesia interna e burguesia brasileira),  
visto que representam grandezas e características distintas. O que nos importa aqui é que  
aqueles setores vinculados a burguesia interna foram favorecidos por meio de variadas políticas  
econômicas no período petista, como expressão do projeto de conciliação viabilizado pelo  
momento macroeconômico peculiar.  
Até 2013, tal projeto parecia caminhar sem maiores entraves. Discursos de exaltação de  
Lula, da nova classe média, de acesso ao ensino superior, dentre outros aspectos, caminhavam  
lado a lado com elogios por parte das entidades representativas da burguesia. Todavia, as  
fissuras no bloco no poder num momento de crise internacional e do encerramento do ciclo  
econômico expansivo de exportação, associadas à insatisfação popular por distintas razões  
culminaram nas manifestações de junho de 2013, fenômeno determinante para a compreensão  
do período de crise de hegemonia10.  
43  
Crise econômica, crise de hegemonia e o eterno retorno  
Primeiramente, para compreender a relação entre a crise econômica e a crise de  
hegemonia, cabe uma referência a Barcellos (2021), que explicita a definição mais ampla de  
crise não somente como condensação de contradições, chamando atenção para a diferença entre  
a contradição como possibilidade – o que está posto a todo momento no capitalismo, tendo em  
10 Nos termos de Gramsci (2019, p. 60, grifo nosso), “em um certo ponto de sua vida histórica, os grupos sociais  
se separam de seus partidos tradicionais, isto é, os partidos tradicionais naquela dada forma organizativa, com  
aqueles determinados homens que os constituem, representam e dirigem, não são mais reconhecidos como sua  
expressão por sua classe ou fração de classe”. No caso do não reconhecimento como direção por outras frações  
da classe burguesa no interior do bloco no poder, configura-se a crise de hegemonia restrita/política.  
Isabela Ramos Ribeiro  
vista a dinâmica de dominação e exploração entre as classes – e sua existência como realidade.  
De acordo com o autor, a crise capitalista remete à impossibilidade de “produzir e realizar o  
mais-valor em escala crescente. O momento específico em que as contradições se manifestam  
como crise, portanto, é aquele em que todos os fatores concretos se concentram na determinação  
de uma massa de mais-valor reduzida” (Barcellos, 2021, p. 124).  
Barcellos (2021) relaciona, ainda, a crise econômica com a crise política e o papel do  
Estado na manutenção das condições normais para a produção e reprodução do capital. Para o  
autor,  
Se a crise pode ser delimitada em gênero como a incapacidade de reprodução,  
a crise política como espécie se refere à incapacidade de reprodução da  
dominação de classes. [...] O conceito de Estado, portanto, está intimamente  
ligado com o conceito de crise. É o Estado que permite que as contradições  
entre as classes sociais possam se reproduzir e a crise seja mera possibilidade,  
não realidade (Barcellos, 2021, p. 124-125).  
Tais considerações são relevantes na medida em que permitem observar a centralidade  
do Estado e do bloco no poder nos momentos de desenvolvimento e superação das crises por  
parte das classes dominantes, para que a totalidade capitalista se mantenha. Nesse sentido, são  
necessárias reorganizações e recomposições de forças no âmbito do bloco no poder, para  
garantir a retomada da reprodução do capital11.  
A crise de 2008 teve impactos expressivos para a economia mundial. Embora, num  
primeiro momento, o Brasil tenha segurado as taxas de lucro e o crescimento, isso não se  
mantém ao longo do primeiro mandato de Dilma, quando a piora nas condições do comércio  
internacional12 passa a pautar alterações na linha para a política econômica. O próprio peso  
acentuado das commodities na economia brasileira evidencia sua condição dependente.  
Internamente, as condições desencadeadas pela crise internacional reconfiguram  
dialeticamente a dinâmica da economia brasileira. Conforme elucidado por Aruto (2019), no  
decorrer do primeiro governo Dilma há uma diminuição do nível de produção em razão da  
redução relativa dos gastos do governo, associada ao conflito distributivo gerado pela redução  
da taxa de desemprego e aumento do salário real. De acordo com Serrano e Summa (2015, p.  
2), “após crescer à uma taxa média de 8% entre 2004 e 2010, com pico de 18% em 2010, a  
formação bruta de capital fixo [investimentos] cresceu apenas 1,8% em média no período 2011-  
44  
11  
“No campo econômico há desvalorização dos capitais, desemprego dos trabalhadores, etc, para que se  
estabeleçam novas condições de acumulação. No campo político isso exige a dissolução de blocos políticos e a  
formação/recomposição de novos blocos capazes de dar nova estabilidade à relação entre as classes ou a alteração  
dos meios pelos quais se realiza a dominação” (Barcellos, 2021, p. 125).  
12  
O minério de ferro, por exemplo, era vendido por 180 dólares por metro cúbico no primeiro mês do governo  
Dilma e passa a valer cerca de 100 dólares em setembro de 2012, chegando a 40 dólares em dezembro de 2015  
(Index Mundi, 2020).  
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Burguesia dependente e crise de hegemonia no Brasil  
2014”. Dessa forma, os autores sustentam que a forte redução do crescimento do investimento  
explica a desaceleração do crescimento da produção industrial desde 2011.  
As preocupações acerca da desindustrialização explicitadas pela fração industrial da  
burguesia foram apresentadas ao governo e a partir de 2012, propagou-se o que se convencionou  
chamar “nova matriz econômica”. As decisões de desvalorização do real e redução dos juros  
por meio dos bancos públicos pressionaram os bancos privados a reduzirem suas taxas, gerando  
uma série de manifestações públicas das entidades representativas dos bancos. As medidas  
tomadas por Dilma13 causaram tensionamentos internos no bloco no poder, no entanto, nota-se  
um consenso em torno do fracasso da “nova matriz econômica”, que revelou novas medidas  
sem se desprender do velho aperto fiscal neoliberal (Serrano; Summa, 2015; Aruto, 2019). Além  
disso, Aruto (2019, p. 95) destaca que “os empresários utilizaram as políticas de desonerações  
e diminuição de alíquotas para recompor a margem de lucro”. Paralelamente, a queda dos  
investimentos públicos diminuiu a margem para continuar as políticas de incentivo ao crédito  
e ao consumo, tão louvadas pelo petismo até então. Como já tratado anteriormente, não há  
pretensão reformista na burguesia brasileira dependente, posto que ela se sustenta na  
superexploração da força de trabalho para compensar a transferência internacional de valor, e,  
portanto, para se sustentar enquanto classe.  
Nesse contexto de certa instabilidade já denotada no interior do bloco no poder, Singer  
(2018) destaca que Dilma ainda contava com alta popularidade frente a população em geral  
(65%, Datafolha) até o primeiro semestre de 2013. Entretanto, as manifestações de junho de  
2013 invertem a tendência, no pontapé inicial do “levante da classe média”, que depois associa-  
se à Lava Jato em 2014 (Singer, 2018, p. 28). Boito Jr. (2018) se aproxima da análise de Singer  
nesse aspecto, ao considerar que as manifestações surgem quando o ataque das frações  
burguesas já havia se iniciado. Os protestos começam com a pauta da redução da tarifa de  
ônibus em São Paulo, com protagonismo do Movimento Passe Livre (MPL), mas isso muda  
drasticamente, quando os setores médios – camada mais qualificada e melhor assalariada da  
classe trabalhadora – aderem e mudam o caráter dos atos, com apropriação e forte influência da  
grande mídia orientando os atos para o discurso genérico contra a corrupção. O que de fato se  
45  
13 De acordo com a síntese de Singer (2018, p. 26), destacaram-se as seguintes ações: 1. Redução dos juros; 2. Uso  
intensivo do BNDES; 3. Política industrial, por meio do Plano Brasil Maior; 4. Desonerações; 5. Plano para  
infraestrutura, com lançamento do Programa de Investimentos em Logística (PIL) em 2012 para estimular as  
concessões; 6. Reforma do setor elétrico, cujas alterações nas regras para as concessionárias de energia gerou  
perdas a investidores; 7. Desvalorização do real; 8. Controle de capitais, em especial com a alteração das alíquotas  
do IOF para investimentos estrangeiros em carteira e empréstimos intercompanhias; 9. Proteção ao produto  
nacional, principalmente por meio do Programa de Compras Governamentais, que visava estimular compras  
públicas dos produtos nacionais.  
Isabela Ramos Ribeiro  
altera com as gigantes manifestações é a hegemonia no sentido amplo, incluindo as classes  
subalternas e espraiando a insatisfação da burguesia para o conjunto da sociedade. Aí tem início  
a crise de hegemonia (social), quando parece predominar o “ziguezague da política” (Farias,  
2009; Singer, 2018).  
Em acordo com Iasi (2017), a burguesia precisa de estabilidade institucional, e o  
governo petista se tornara incômodo ao capital, especialmente por não ser mais capaz de  
garantir a estabilidade. Mesmo desorientado, o governo mantinha a direção de atender as  
frações burguesas, a exemplo das alterações das regras para o acesso ao seguro-desemprego,  
pensão por morte e abono salarial14 (Salvador, 2015), dentre outras medidas (Pinto et al., 2019).  
Houve um ponto, contudo, que Dilma não conseguiu aprovar: a contrarreforma  
trabalhista, com destaque para a terceirização irrestrita e a flexibilização da CLT15. Em especial  
para o capital interno, seja nos serviços e comércio, indústrias ou nos bancos, a contrarreforma  
trabalhista é fundamental para a recuperação das taxas de lucro, via maior exploração dos  
trabalhadores. Dilma, por sua resistência em aceitar essa pauta, parece ter perdido  
definitivamente o apoio da burguesia, em especial da grande burguesia interna. A reforma da  
previdência, por outro lado, embora seja uma demanda de todas as frações e setores da  
burguesia, certamente interessa ainda mais ao capital financeiro e ao capital internacional,  
justamente aqueles que não têm necessidade de remunerar diretamente a força de trabalho.  
Essas frações desejam se apropriar do fundo público por meio do volumoso montante de  
recursos disponibilizados pela previdência social pública, bem como com a conformação de  
conglomerados e fundos de pensão privados. A essa pauta, o governo Dilma sinalizava  
positivamente16. Fica evidente, então, que do ponto de vista dos interesses da burguesia a  
contrarreforma da previdência seria aprovada em qualquer circunstância, com ou sem o golpe  
parlamentar a que Dilma foi submetida no processo de impeachment em 2016.  
46  
Assim, para os setores que acumulam internamente, a contrarreforma trabalhista era  
absolutamente necessária para a retomada das taxas de lucro. Isso expressa um limite e uma  
fissura da grande burguesia interna com o governo Dilma, fenômeno que não corresponde à  
tese de Boito Jr. (2018) de que o principal sujeito do golpe teria sido o capital internacional.  
14 “Tal ajuste proposto é também resultado das escolhas econômicas feitas no mandato anterior da presidenta, que  
acarretaram perda de arrecadação de recursos sem os resultados esperados no crescimento econômico, em que  
pese o expressivo aumento dos gastos tributários, o que causou perdas de recursos para as políticas sociais”  
(Salvador, 2015, p. 38).  
15 Lei nº 13.429, de 31 de março de 2017 e Lei nº 13.467, de 13 de julho de 2017, respectivamente.  
16  
O ministro Nelson Barbosa anunciava que seria enviada proposta de reforma da previdência no primeiro  
semestre de 2016. Também indicava a necessidade de criação de um teto para as despesas públicas (Máximo,  
2015).  
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Burguesia dependente e crise de hegemonia no Brasil  
Post-festum, contudo, todas as frações e em especial o capital financeiro e o capital  
internacional17 se beneficiaram com a queda de Dilma e o avanço do capital sobre o fundo  
público. Ahegemonia do capital financeiro, afinal, se revela/impõe com mais força no momento  
de resolução da crise econômica.  
A crise de hegemonia estava em processo desde 2013, e o PT não mais apresentava  
capacidade de representar nenhuma das classes fundamentais e suas frações. Se os rearranjos  
realizados no bloco no poder da década de 1990 para a década de 2000 não abalaram a  
hegemonia social, em sentido amplo, o mesmo não se pode dizer das reconfigurações ocorridas  
no final do governo Dilma. A queda do petismo, que anos antes parecia surfar na realidade sem  
grandes problemas, evidenciou que o muro de contenção construído e sustentado pelo PT não  
foi capaz de conter a crise econômica e política e dar estabilidade à acumulação. Temer, por sua  
vez, não foi cambaleante ou desorientado, mas seguiu certeiro na direção das contrarreformas,  
permitindo uma retomada do crescimento da massa de mais-valia18 no Brasil (Aruto, 2019),  
ainda que a crise econômica não tenha sido resolvida19, dado que não houve recuperação do  
investimento público e a taxa de desemprego se manteve alta (Pinto et al., 2019). Foi um  
período de lutas intensas, repressão policial mais violenta sobre as manifestações políticas,  
censura nos meios acadêmicos e artísticos e ataques reiterados aos direitos e políticas sociais.  
Diversos autores tratam do período pós-golpe fazendo menção ao aprofundamento do  
neoliberalismo. Aqui optamos por utilizar neoliberalismo ortodoxo (Simionatto, 2018),  
considerando que o período anterior, dos governos petistas, pode ser sintetizado como  
neoliberalismo com mescla de ortodoxia e heterodoxia econômica. Dessa forma, o que parece  
diferir daquele formato é um projeto neoliberal sem as políticas econômicas heterodoxas  
presentes no segundo mandato de Lula e primeiro de Dilma. Portanto, um neoliberalismo  
ortodoxo, inclusive defendido por todas as frações burguesas no momento que antecedeu o  
47  
17  
Um exemplo disso é o fim da obrigatoriedade da participação da Petrobras na exploração do pré-sal, o que é  
referendado por Boito Jr. (2018, p. 257) ao comentar que Temer abre espaço para um “alinhamento passivo com  
os Estados Unidos”. Entretanto, outros movimentos anteriores já denotavam a relação da Petrobras com o capital  
estrangeiro, por meio da abertura de capital da empresa, que em 2010 ampliou ações e atraiu investidores  
estrangeiros. Com base em dados divulgados pela própria empresa sobre o relacionamento com investidores, é  
possível observar que 13,6% das ações preferenciais da Petrobrás eram detidas por estrangeiros em 2002. Em  
2012, os estrangeiros esse percentual sobe para 16,4%, e chega a 31,12% em abril de 2018.  
18 Com base nos dados levantados por Aruto (2019), de 2014 para 2015 houve uma queda em termos reais de 9%  
na variação da massa de mais-valia, que desde 2011 já vinha crescendo menos que nos anos anteriores (2003-  
2010). Este movimento de queda é revertido em 2017, durante o governo Temer.  
19  
Barcellos (2021, p. 141) evidencia que o golpe não garantiu a retomada do superávit primário, tampouco do  
crescimento econômico: “ano a ano o déficit público aumenta: eram R$ 32 bilhões em 2014 e atingem R$ 95  
bilhões em 2019 (STN, 2021). [...] o PIB teima em crescer menos de 2% a cada ano e o PIB per capita de 2018 era  
inferior ao PIB per capita de 2014 (IBGE, 2021). Neste sentido parece que ainda não foi possível resolver a crise  
que foi colocada em 2015”.  
Isabela Ramos Ribeiro  
golpe. Essa distinção, entretanto, remete mais à conjuntura do que aos projetos de  
desenvolvimento nacional implementados, posto que a ideologia neoliberal se perpetuou,  
deixando vigente o pacto de classes do Plano Real.  
Nas eleições de 2018, Temer não foi o candidato da burguesia. Inclusive, um aspecto  
relevante foi a quantidade de candidaturas que representavam a direita brasileira: Jair Bolsonaro  
(PSL), Geraldo Alckmin (PSDB), João Amoedo (Novo), Henrique Meirelles (PMDB) e Álvaro  
Dias (Podemos). Nas eleições anteriores, desde 2002, houve maior unidade da burguesia em  
torno dos candidatos do PSDB – José Serra, GeraldoAlckmin eAécio Neves. Essa pulverização  
em 2018 expressa a falta de capacidade da classe dominante em apresentar-se como dirigente.  
Para Bianchi (2001, p. 21, grifo nosso),  
a crise de hegemonia é uma crise do Estado e das formas de organização  
política, ideológica e cultural da classe dirigente. Seus aspectos mais visíveis  
são a dificuldade de formar uma maioria parlamentar duradoura; a perda de  
capacidade dirigente dos partidos tradicionais; e a consequente crise dos  
partidos e multiplicação destes, tentativas desordenadas de superação da  
crise [...]. A crise não se limita, entretanto, aos partidos e ao governo. Ela é  
uma crise do Estado em seu conjunto, ou seja, processa-se, também, no nível  
da sociedade civil, onde as classes dirigentes tradicionais passam a manifestar  
sua crescente incapacidade de dirigir toda a nação.  
As questões apontadas por Bianchi (2001) parecem corresponder ao período pós 2016,  
como tentativas desordenadas de superação da crise de hegemonia social, em sentido amplo. A  
pulverização de candidatos demonstra que não havia um vazio de representação, mas uma  
multiplicidade delas. Não é simples para a burguesia encontrar soluções, e em períodos de crise  
“partidos alinham-se e realinham-se, blocos são formados e dissolvidos. Líderes são criados e  
depostos. A velocidade desse processo pode surpreender, o ritmo é rápido e fulminante se  
comparado com os tempos normais” (Bianchi, 2001, p. 23).  
48  
Com base nos elementos elucidados, é possível afirmar que a hegemonia restrita ao  
bloco no poder foi resolvida com o golpe e o governo Temer, restaurando a acumulação para  
todas as frações da burguesia. Todavia, nas eleições de 2018, Bolsonaro foi capaz de ocupar o  
vácuo deixado pela incapacidade das classes dirigentes em apresentar um projeto que abarcasse  
benefícios também para as classes subalternas. O discurso contra o sistema ou “contra tudo que  
está aí” ter tido adesão da população expressa a insatisfação popular com as condições de vida  
no momento de crise. Isso é importante para que a análise não se paute apenas em questões  
morais, mas sim materiais. Nessa direção, Barcellos (2021, p. 141) afirma que Bolsonaro  
“conseguiu construir uma imagem – independente de ser ou não – de único candidato de fora  
do sistema político e que estaria disposto a lutar contra o sistema político. Neste sentido, ele é  
uma expressão da crise e da exigência que fazem os grupos sociais por uma alternativa”.  
Libertas, Juiz de Fora, v. 25, n. 1, p. 33-57, jan./jun. 2025. ISSN 1980-8518  
Burguesia dependente e crise de hegemonia no Brasil  
O governo Bolsonaro (2019-2022) representou um retrocesso em diversas políticas  
econômicas, sociais e ambientais, inclusive com certa desorganização institucional das  
possibilidades de participação no aparelho do Estado. Embora tenha apresentado novidades  
aparentes no discurso e na forma de governar, Bolsonaro é fruto do movimento de tentativa de  
resolução de uma crise de hegemonia que já vinha se construindo desde 2011, e que não chegou  
a ser resolvida com seu governo. Pelo contrário, a instabilidade se estende por todo o período,  
ainda que as frações burguesas tenham permanecido unificadas em torno das reformas  
almejadas e das privatizações20 (Valle; Passo, 2021).  
Pinto et al. (2019) afirma que a instabilidade econômica e a desconfiança generalizada  
nas instituições e nos partidos tradicionais criada pela Operação Lava Jato permitem a eleição  
de Bolsonaro, com amplo apoio de parte das Forças Armadas, dos setores médios e até mesmo  
das classes subalternas afetadas pela crise e pela queda no emprego e aumento da pobreza.  
Entretanto, isso ocorre de forma desorganizada, como um efeito colateral da crise, no que os  
autores denominam “consenso da insensatez”, que agrega os interesses imediatos das frações  
burguesas sem necessariamente indicar um projeto coerente e dialogado (Pinto et al., 2019). De  
acordo com Pinto et al. (2019, p. 144), a estratégia do Governo Bolsonaro envolvia “manter e  
ampliar a instabilidade para se manter no poder”.  
Conforme Boito Jr (2021), em resgate da obra de Togliatti, o fascismo é um movimento  
reacionário das massas, em geral direcionado pela pequena burguesia e classes médias. Para o  
caso brasileiro, esse autor apresenta o conceito de neofascismo, em que a alta classe média  
lidera um movimento reacionário que culmina na eleição de Bolsonaro em 2018, sem, contudo,  
alterar o regime político. De acordo com Valle e Passo (2021), o “núcleo duro” da base social  
de Bolsonaro, com destaque para parte das forças armadas, proprietários rurais, pequena  
burguesia comercial e a já citada alta classe média, se mantém vinculada ao governo mesmo  
durante a crise sanitária causada pela pandemia da COVID-19. Já os aliados que passaram a  
compor sua base social logo antes da eleição, pois não visualizaram alternativas eleitorais  
viáveis na direita tradicional, foram se afastando do apoio e tensionaram o governo durante a  
pandemia, ainda que sem legitimar qualquer processo de impeachment em decorrência dos  
ganhos que obtiveram com as reformas e privatizações (Valle; Passo, 2021).  
49  
20 Sobre as privatizações, destaca-se o Programa de Parcerias de Investimentos (PPI), que “foi criado, no âmbito  
da Presidência da República, pela Lei nº 13.334, de 2016 com a finalidade de ampliar e fortalecer a interação entre  
o Estado e a iniciativa privada por meio da celebração de contratos de parceria e de outras medidas de  
desestatização” (Brasil, 2016, grifo nosso). O Programa se manteve durante o governo Bolsonaro – o qual foi  
responsável por importantes privatizações como da Eletrobrás e da BR Distribuidora – e segue vigente no terceiro  
governo de Lula.  
Isabela Ramos Ribeiro  
Nos termos de Valle e Passo (2021, p. 22), “houve uma relação de unidade e de conflito  
entre as frações burguesas e o governo21: unidade em torno de aspectos da política econômica  
e conflito em torno da política sanitária e do movimento golpista insuflado diretamente pelo  
presidente”. A relação de unidade e conflito sugerida pelos autores significa que as políticas  
econômicas implementadas no período podem não ter atendido de maneira igual todas as  
frações da burguesia, implicando possíveis disputas e hierarquias no bloco no poder. Para os  
autores, as desregulamentações trabalhistas e as privatizações agradaram o conjunto da  
burguesia, mas as desregulamentações financeiras e a abertura econômica afetaram de forma  
distinta as frações burguesas, causando insatisfações (Vale; Passo, 2021).  
O cenário que surge com Bolsonaro tem uma base material que se construiu ao longo  
de todo o período anterior, desde o pacto de classes do Plano Real, em que os projetos coletivos  
da classe trabalhadora foram se enfraquecendo, colocando para a burguesia e seus aparelhos  
privados de hegemonia a tarefa de dar respostas aos problemas nacionais, obviamente, à sua  
maneira. O liberalismo como princípio dá respostas voltadas ao fortalecimento do mercado e a  
busca individual por soluções frente à crise. Conforme Barcellos (2021), 30 anos de políticas  
liberais fortaleceram o comércio e o agronegócio, com incentivos de importação associados à  
desindustrialização e direcionamento das exportações para bens primários, com destaque para  
a Lei Kandir22.  
50  
As frações comercial e agrária, não por acaso, são as frações burguesas mais volumosas,  
em número de pessoas/capitais23, já que a indústria e os bancos são mais concentrados nas mãos  
de poucos capitalistas. Soma-se a isso, a vinculação que o agronegócio e o comércio possuem  
com o mercado estrangeiro para exportar bens agropecuários e importar produtos que são  
comercializados internamente, respectivamente, o que implica também uma adesão maior e  
com menos ressalvas ao imperialismo, pois dependem diretamente do capital internacional e  
21 “Os proprietários de terra foram aqueles que se posicionaram mais alinhados ao negacionismo e às manifestações  
golpistas do bolsonarismo, seguidos por frações regionais da burguesia industrial e da burguesia comercial  
varejista. Por outro lado, os principais setores do grande capital, sobretudo os grandes bancos nacionais e o capital  
financeiro associado, mas também as tradings do agronegócio, setores da grande indústria e do grande comércio,  
exerceram papel ativo e dirigente nas iniciativas em defesa das medidas de isolamento social, da compra de vacinas  
e contrárias à escalada golpista” (Vale; Passo, 2021, p. 39).  
22 O autor se refere à Lei Complementar nº 87 de 13 de setembro de 1996, que introduziu mudanças significativas  
no sistema tributário brasileiro. Uma delas “diz respeito à ampliação do rol de mercadorias sobre as quais não  
incide o ICMS [Imposto sobre Circulação de Mercadorias e Serviços] no caso de exportação. [...] Se antes o Estado  
deveria impulsionar a exportação de produtos industrializados, agora já não o devia mais. Bastava que o produto  
fosse exportado e trouxesse dólares ao país, pouco importando a que classe de mercadorias correspondesse”  
(Barcellos, 2021, p. 44-45).  
23 De acordo com Barcellos (2021, p. 141), “das 3,8 milhões de empresas que responderam ao Relatório Anual de  
Informações Sociais (RAIS) - excetuando as que responderam RAIS negativa - nada menos que 3,2 milhões fazem  
parte destes setores”.  
Libertas, Juiz de Fora, v. 25, n. 1, p. 33-57, jan./jun. 2025. ISSN 1980-8518  
Burguesia dependente e crise de hegemonia no Brasil  
das relações exteriores imediatas para se manter.  
Por outra via e no campo das possibilidades, a indústria e os bancos nacionais podem  
apresentar tensionamentos com o capital estrangeiro em determinados momentos conjunturais.  
Por exemplo, as reinvindicações por fortalecimento da indústria nacional em detrimento da  
valorização do real que favorece as importações, ou a limitação da entrada de capital bancário-  
financeiro estrangeiro que afeta a centralização do mercado financeiro brasileiro24. Além disso,  
“os setores de comércio e serviços são setores de baixa composição orgânica do capital e para  
os quais, portanto, os encargos trabalhistas exercem maior peso na estrutura de custos”  
(Barcellos, 2021, p. 141), o que significa uma dependência maior da superexploração da força  
de trabalho para reprodução de seus capitais, ainda que todas as frações se beneficiem com o  
rebaixamento geral do valor da força de trabalho no contexto latino-americano.  
Tais elementos da conjuntura evidenciaram novas fissuras no bloco no poder, ainda que  
não tenham aberto novamente uma crise de hegemonia política, referente às disputas internas  
ao bloco no poder. Se Temer havia avançado na unificação dos interesses das frações burguesas  
nesse âmbito, os constantes tensionamentos após 2020 empurram parte das classes dominantes  
para a busca de reconfigurações que melhor respondam aos seus interesses. De acordo com  
Valle e Passo (2021, p. 35), a crise no governo Bolsonaro foi “uma crise de representatividade  
aguda, já que ela elevou de patamar a crise de representatividade criada pela Operação Lava  
Jato”, estabelecendo tentativas de articulação e negociação para as eleições de 2022, por parte  
das frações burguesas vinculadas à direita tradicional. Assim se conforma a nova candidatura  
de Lula, agora com Geraldo Alckmin – antigo opositor25 – como vice-presidente, em uma chapa  
de ampla coalizão26.  
51  
Botão (2023) trata dos interesses apresentados pelas frações burguesas industrial e  
agrária às candidaturas presidenciais durante o período eleitoral. Lula teve apoio de parte da  
indústria, bancos e do capital internacional, apoio expresso principalmente na mídia, e em  
alguns casos em cartas abertas pela democracia, assinadas por entidades burguesas como a  
Federação Brasileira de Bancos (Febraban) e a Federação das Indústrias do Estado de São Paulo  
(Fiesp) (Botão, 2023). Até mesmo uma pequena parcela do agronegócio, majoritariamente base  
social/eleitoral de Bolsonaro, teve parte de seus representantes no apoio à candidatura de Lula,  
24  
Vale e Passo (2021, p. 28-29) comentam a autorização do Banco Central para abertura ao capital estrangeiro  
durante o governo Bolsonaro.  
25  
Tal junção, embora com a aparência de improvável, remete ao “petucanismo”, termo cunhado por Gilberto  
Vasconcelos (2014) acerca dos compromissos similares firmados pelos grandes partidos políticos brasileiros até  
2016.  
26  
Fontes (2022, n.p.) destaca que “o antifascismo mostrava uma força fenomenal, reduzindo os sectarismos e  
permitindo um encontro entre forças diversas”.  
Isabela Ramos Ribeiro  
principalmente por citarem a necessidade de uma boa imagem do Brasil frente ao mercado  
internacional na gestão ambiental, o que é crucial para manter as exportações e um ambiente de  
negócios que garanta a lucratividade para o capital agroindustrial (Botão, 2023).  
Tais apontamentos permitem inferir que a burguesia se reorganizou, ao final do governo  
Bolsonaro, em torno da candidatura de Lula, corroendo o espaço das frações que apoiaram  
Bolsonaro durante todo o seu governo, em especial as frações comercial e agrária. Os bancos  
nacionais e a indústria parecem recuperar forças no interior do bloco no poder, ainda que a  
hegemonia política ou restrita não tenha sido de fato quebrada durante esse período.  
O terceiro governo de Lula iniciado em 2023 foi marcado por uma série de negociações  
relacionadas ao orçamento público e aos interesses extremamente diversos que permearam sua  
vitória eleitoral. Com uma votação apertada, eleito com 50,90% dos votos, Lula iniciou as  
negociações logo após o segundo turno das eleições. A mídia e a grande burguesia o  
pressionavam explicitamente por “responsabilidade fiscal” e outras demandas dessa natureza,  
já velhas conhecidas.  
Salvador (2024) em análise pertinente acerca do Novo Arcabouço Fiscal (NAF)27  
implantado no governo Lula 3, sob condução do ministro da Fazenda, Fernando Haddad –  
afirma que essa lei substituiu a EC 95/2016, a qual estabelecia um teto de gastos com baixas  
possibilidades de execução. Assim, “durante o ano eleitoral de 2022, várias medidas legislativas  
foram aprovadas, flexibilizando a regra constitucional do teto dos gastos” (Salvador, 2024, p.  
10). O NAF surge nesse contexto, para responder às novas demandas colocadas pelo capital28,  
mantendo os mecanismos que limitam a expansão dos gastos sociais no orçamento público, ao  
passo em que continua a priorizar o pagamento de juros e amortização da dívida pública  
(Salvador, 2024).  
52  
O autor explica, ainda, que o Novo Arcabouço Fiscal e seus dispositivos  
obrigam que as despesas primárias do orçamento fiscal e da seguridade social  
da União fiquem abaixo do crescimento das receitas primárias em cada ano.  
Caso ocorra um excedente acima do previsto e após a obtenção da meta de  
resultado primário da União, a sobra poderá ser usada exclusivamente para as  
despesas com investimentos (Salvador, 2024, p. 11).  
As diretrizes apresentadas remetem às limitações de investimentos públicos presentes  
27  
Novo Arcabouço Fiscal (NAF) é o apelido da Lei Complementar 200/2023, a qual "institui regime fiscal  
sustentável para garantir a estabilidade macroeconômica do País e criar as condições adequadas ao crescimento  
socioeconômico" (Brasil, 2023).  
28 De acordo com Salvador (2024, p. 10), “cabe registrar que a proposta não foi, em nenhum momento, discutida  
com a classe trabalhadora e com os movimentos sociais e sindicais. Os interlocutores preferenciais do Ministério  
da Fazenda, para além do Congresso Nacional, foram a Federação Brasileira de Bancos (Febraban), a Federação  
das Indústrias do Estado de São Paulo (Fiesp), além dos representantes do mercado financeiro”.  
Libertas, Juiz de Fora, v. 25, n. 1, p. 33-57, jan./jun. 2025. ISSN 1980-8518  
Burguesia dependente e crise de hegemonia no Brasil  
desde 2011, quando a taxa média de formação bruta de capital fixo passou a cair em relação ao  
período anterior, como já tratado anteriormente. Os prejuízos aos investimentos e às políticas  
sociais são justificados pela necessidade de cumprimento das metas de superávit primário, um  
instrumento que garante a segurança e confiança perante o capital financeiro, com relação à  
capacidade da economia nacional de “honrar seus compromissos” com o pagamento da dívida  
e seus juros. Esse aspecto tem especial relevância pois é mais um mecanismo utilizado pelo  
capital imperialista, que mantém as economias dependentes nessa condição.  
Dessa forma, o aumento das receitas, que em geral variam de acordo com o PIB, não  
garante o crescimento do gasto público, e sim do superávit primário, “priorizando a referida  
estabilização da relação dívida pública/PIB” (Salvador, 2024, p. 14). Permanecem também as  
ameaças na hipótese da não obediência a tais orientações. Como destacado por Salvador (2024,  
p. 14), “caso o governo não realize o contingenciamento de gastos necessários para o  
cumprimento da meta de resultado primário e não obedeça às vedações previstas na LC  
200/2023 incorrerá em infração contra a LRF”. Ademais, Bastos (2023, n.p.) evidencia que esse  
conjunto de medidas restritivas pode levar a economia à uma “espiral de baixo crescimento”,  
além de “ampliar o conflito distributivo entre beneficiários de rubricas do orçamento público,  
enfraquecendo a popularidade do presidente Lula”, o que implicaria novos elementos para  
análise da crise de hegemonia em um futuro próximo.  
53  
Toda essa digressão evidencia que a prioridade do governo segue a premissa pactuada  
com o Plano Real, que é assegurar a estabilidade econômica, mas também política e social  
(Ouriques, 2014). Se na análise de Pinto et al. (2019) o governo Bolsonaro apresenta um  
discurso “contra a ordem” e a valorização da instabilidade como atributo político, Lula sempre  
demonstrou apreço e competência na garantia da estabilidade, o que permite sua aprovação por  
parte da grande burguesia, incluída sua fração financeira hegemônica desde 1994.  
Cabe ressaltar que a crise econômica demonstrou sinais de melhora, o que não significa  
que as condições de vida das classes subalternas tenham dado saltos qualitativos, mas que as  
condições para acumulação de capital estão mais favoráveis em relação ao período anterior,  
inclusive por conta dos vários ataques aos direitos e ao trabalho sofridos nos últimos anos. O  
Brasil foi a 6ª economia que mais cresceu até a metade do ano de 2024 (Carrança, 2024).  
Entretanto, a queda da taxa de desemprego29, o crescimento do PIB e outros indicadores não  
29  
“A taxa de desemprego no trimestre encerrado em julho recuou para 6,8%, com 7,4 milhões de desocupados.  
Este é o menor nível de desemprego registrado para o período desde o início da série histórica do instituto [IBGE],  
em 2012” (Carrança, 2024, n.p.). Todavia, devem ser observados os tipos e a qualidade dos empregos gerados, em  
especial após a contrarreforma trabalhista que impacta diretamente as formas de inserção no mercado de trabalho.  
De acordo com o Índice da Condição do Trabalho do DIEESE referente ao segundo trimestre de 2024, houve  
Isabela Ramos Ribeiro  
necessariamente são atribuídos às decisões políticas, mas sim aos ciclos econômicos variantes  
e instáveis, característica estrutural do capitalismo que gera crises constantes para se  
reestruturar. Têm destaque os ajustes necessários para que o ciclo do capital nas economias  
dependentes assegure as taxas de lucro internamente e as transferências de valor ao exterior  
(Marini, 2012b).  
A crise de hegemonia aberta em 2013, em sentido amplo, parece caminhar para um  
momento de novos arranjos sociais e recomposições burguesas, ainda que com as dificuldades  
de perpetuação da hegemonia no contexto de dependência e restrições fiscais que dificultam a  
conciliação de classes nos termos logrados nos anos 2000.  
Considerações finais  
O presente artigo buscou entender o papel da burguesia dependente na crise de  
hegemonia iniciada em 2013 no Brasil. Foram apresentados os pressupostos históricos e  
teóricos sobre dependência, hegemonia e bloco no poder, bem como as principais características  
da crise econômica pós 2008, articulando-a com a crise de legitimidade que abala a hegemonia  
burguesa e se estende até a atualidade.  
A crise de hegemonia política ou restrita, no interior do bloco no poder, foi  
temporariamente resolvida, pois o governo Temer (2016-2018) unificou os interesses da classe  
dominante e os representou no Estado (em sentido restrito). No entanto, o golpe não foi capaz  
de resolver a crise de hegemonia social ou ampla, na medida em que a burguesia se unificou  
em torno dos interesses econômicos imediatos, mas não em torno de uma representação política  
que reestabelecesse uma direção para o conjunto da sociedade.  
54  
Tampouco durante o governo Bolsonaro essa crise de hegemonia é resolvida, pois as  
condições de vida da classe trabalhadora permanecem impactadas pelo alto desemprego,  
diminuição do poder de compra, aumento da pobreza e as dificuldades inéditas referentes à  
sobrevivência durante a pandemia da COVID-19. Destaca-se que as frações agrária e comercial,  
mais imbricadas ao capital imperialista e mais dependentes da superexploração da força de  
trabalho estiveram lado a lado ao governo por todo o período. A péssima gestão de Bolsonaro  
ao longo da crise sanitária abalou novamente o bloco no poder, cuja insatisfação de parte das  
frações burguesas com o governo federal levou a um agrupamento extremamente diverso em  
torno da candidatura de Lula em 2022.  
elevação na Inserção Ocupacional (de 0,42 para 0,46), na Desocupação (de 0,70 para 0,78) e Rendimento (de 0,58  
para 0,65). Contudo, de acordo com o documento, observou-se “piora na distribuição dos rendimentos do trabalho,  
o que prejudica o consumo das famílias, uma das poucas alavancas atuais do dinamismo da economia” (DIEESE,  
2024, p. 2).  
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Burguesia dependente e crise de hegemonia no Brasil  
Tem destaque a utilização do Estado e seus instrumentos de política econômica, assim  
como as políticas sociais, por parte da burguesia dependente, que para se manter no poder e  
com altas taxas de lucratividade se aproveita de quaisquer oportunidades políticas. Os  
princípios democráticos podem ser flexibilizados de acordo com seus interesses econômicos  
imediatos. O capital imperialista, por sua vez, aponta dedos e faz sugestões, mas sem nunca  
deixar de receber sua parcela neste latifúndio.  
A hegemonia social, em sentido amplo, continua demonstrando sinais de crise, e o  
retorno de Lula ao governo federal em 2023 elucida o pragmatismo e o oportunismo desta  
burguesia dependente, que se expressa em sucessivas recomposições do bloco no poder para  
garantir a manutenção da hegemonia burguesa e a sustentação do pacto de classes do Plano  
Real.  
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57  
Neoliberalismo: da direita à esquerda na  
política brasileira  
Neoliberalism: from the right to the left in brazilian politics  
Daniel Carvalho Silva*  
Resumo: Esta pesquisa propõe uma abordagem  
crítica ao debater sobre a política neoliberal  
brasileira, analisando de forma sucinta as  
conjunturas históricas dos governos Collor,  
FHC, Lula, Dilma, Temer e Bolsonaro. Em um  
contexto de governanças assimiladas ao  
neoliberalismo, o capital amplia seus lucros  
enquanto a classe trabalhadora permanece  
subjugada. O resgate da historicidade e dos  
eventos contemporâneos é essencial para  
aprofundar a compreensão das dinâmicas do  
sistema capitalista e suas implicações. A  
metodologia adotada é de cunho histórico-  
dialético, fundamentada em bibliografias e  
documentos.  
Abstract: This research proposes a critical  
approach to the debate on brazilian neoliberal  
policy, briefly analyzing the historical  
conjunctures of the Collor, FHC, Lula, Dilma,  
Temer and Bolsonaro governments. In a context  
of governance assimilated to neoliberalism,  
capital expands its profits while the working  
class remains subjugated. The rescue of  
historicity and contemporary events is essential  
to deepen the understanding of the dynamics of  
the capitalist system and its implications. The  
methodology adopted is of a historical-  
dialectical nature, based on bibliographies and  
documents.  
Palavras-chaves: Neoliberalismo; Estado;  
Keywords: Neoliberalism; State; Working  
Classe trabalhadora; Capital.  
class; Capital.  
Introdução  
A ideologia neoliberal configura-se como o modelo predominante na política  
contemporânea, sendo amplamente adotada tanto em países centrais quanto periféricos. Mesmo  
diante das diferentes estruturas políticas, culturais e orientações ideológicas — que variam da  
direita à esquerda —, a adesão a essa concepção é notável e de grande abrangência.  
Friedrich Hayek é eminentemente reconhecido como um dos precursores do  
neoliberalismo. Uma de suas obras mais influentes é “O Caminho da Servidão”, publicado em  
1944. Nesse livro, ele argumenta de forma vigorosa contra a intervenção estatal na economia e  
* Universidade do Estado de Minas Gerais. E-mail: daniel.carsilva2001@gmail.com  
DOI: 10.34019/1980-8518.2025.v25.45065  
Esta obra está licenciada sob os termos  
Recebido em: 28/06/2024  
Aprovado em: 22/01/2025  
Neoliberalismo: da direita à esquerda na política brasileira  
o coletivismo. Essa perspectiva foi extensivamente disseminada nas instituições acadêmicas,  
especialmente entre os economistas. O neoliberalismo consolidou-se como ideologia  
proeminente nos países centrais a partir da década de 1970, resultado da crise econômica e do  
colapso dos fundamentos keynesianos1.  
Com a crise do petróleo em 1973, o Welfare State dos países centrais encerrou o ápice  
do aparente “equilíbrio” do capitalismo, conforme argumentado por diversos estudiosos. Os  
chamados “anos dourados” foram interrompidos pela crise estrutural e inevitável do sistema  
hegemônico, abrindo caminho para uma nova fase, a barbárie neoliberal.  
Em 1974, Hayek foi reverenciado com o Prêmio Nobel de Economia, consolidando-  
se como um modelo para a orientação política e ideológica da sociedade capitalista.  
Para os detratores do modelo keynesiano, era o momento de propor uma nova  
ordem para o desenvolvimento do capitalismo, centrada na hegemonia do  
mercado. Em plena Guerra Fria e em um clima de anticomunismo radical,  
aqueles economistas, sociólogos e cientistas políticos que haviam sido  
ridicularizados por defender o mercado como fonte de equilíbrio político e  
social foram alçados a salvadores do capitalismo (Rosenmann, 2016, p. 4).  
Representantes políticos dos países centrais, como a primeira-ministra Margaret  
Thatcher no Reino Unido em 1979 e o presidente Ronald Reagan nos Estados Unidos em 1980,  
entre outros, efetivaram a abordagem neoliberal através do Estado, deixando um rastro de  
privatizações e austeridade fiscal.  
59  
Os trabalhadores desses países, que haviam desfrutado do Estado de bem-estar social  
com base nas políticas keynesianas de investimento em políticas sociais, expansão do crédito,  
regulação do mercado e proteção dos direitos trabalhistas, viram a classe dominante promover  
“[...] a erosão das regulações estatais visando claramente à liquidação de direitos sociais, ao  
assalto ao patrimônio e ao fundo públicos [...] liberando-a da tutela do “Estado protetor” (Netto,  
2012, p. 214).  
A restauração do capital incidiu em altos índices de desemprego, na redução do poder  
aquisitivo das famílias, no surgimento de empregos precários e na flexibilização das proteções  
trabalhistas, resultando no empobrecimento dos trabalhadores e no enriquecimento desenfreado  
das elites. Segundo Netto (2012, p. 214), “a desqualificação do Estado tem sido, como é notório,  
a pedra-de-toque do privatismo da ideologia neoliberal: a defesa do “Estado mínimo” pretende,  
fundamentalmente, o “Estado máximo para o capital”.  
1A teoria de John Maynard Keynes, conhecida como keynesianismo, embora inserida nos moldes do mercado,  
defendia o investimento social por meio do Estado. Essa abordagem incluía medidas como a promoção do pleno  
emprego, a oferta de salários indiretos, o estímulo ao consumo em massa e a implementação de políticas sociais  
abrangentes.  
Daniel Carvalho Silva  
No Brasil, o neoliberalismo emergiu durante a década de 1990, contrastando com os  
direitos sociais conquistados na promulgação da Constituição Federal de 1988 (CF/1988). O  
país não experimentou um Estado de bem-estar social devido à sua condição periférica e à  
submissão a países imperialistas, tendo também atravessado longos períodos de repressão sob  
regimes ditatoriais. A consolidação dos direitos sociais no país ocorreu somente em 1988 com  
a Constituição. No entanto, os governos subsequentes adotaram uma perspectiva neoliberal que  
contrariava as conquistas sociais estabelecidas.  
Este estudo analisa concisamente a política incorporada pelos representantes políticos  
brasileiros, focando no contexto político do país na década de 1990, abordando os governos de  
Fernando Collor de Mello, Fernando Henrique Cardoso (FHC), os 14 anos do Partido dos  
Trabalhadores (PT) sob a liderança de Luiz Inácio Lula da Silva e Dilma Rousseff, e os  
governos de orientação ultraliberal2 de Michel Temer e Jair Messias Bolsonaro. O objetivo  
desta pesquisa é explorar a ideologia neoliberal que permeia tanto a direita quanto a esquerda  
brasileira.  
O neoliberalismo nos governos Collor e FHC  
O Brasil ingressou na década de 1980 imerso em um contexto de lutas pela  
redemocratização e pela garantia de direitos sociais. Em 1985, o país alcançou a tão esperada  
democratização, após duas décadas sob o jugo da ditadura militar burguesa. Esse cenário foi  
marcado por significativas mobilizações dos movimentos sociais, onde as demandas por  
democracia se entrelaçavam com a busca por políticas sociais.  
60  
A promulgação da nova Constituição em 1988 representou a esperança de um Brasil  
que priorizasse a assistência social, educação, saúde, trabalho, habitação, lazer, segurança,  
previdência, proteção à maternidade e a infância. Organizações como a Articulação Nacional  
de Entidades pela Mobilização Popular na Constituinte desempenharam um papel fundamental  
ao introduzir o conceito de seguridade social3, além de estender os benefícios previdenciários  
aos trabalhadores rurais e estabelecer o Benefício de Prestação Continuada (BPC)4. Além disso,  
ocorreram iniciativas de descentralização do Estado Federal, propiciando maior autonomia e  
2
O ultraliberalismo se caracteriza radicalmente pela liberalização da economia, redução do papel do Estado,  
privatizações, abertura ao mercado internacional, governança alinhada ao mercado financeiro e retrocesso nas  
políticas sociais. Trata-se, assim, de uma versão pura do neoliberalismo.  
3
O tripé da seguridade social se concretiza da seguinte forma: previdência de caráter contributivo, assistência  
destinada a quem dela necessitar, saúde para todos.  
4 A previdência destinada aos trabalhadores rurais é viabilizada pelas precariedades do setor rural, enquanto o BPC  
atende pessoas idosas ou com deficiência que estão impedidas de exercer atividade laboral para garantir sua  
sobrevivência.  
Libertas, Juiz de Fora, v. 25, n. 1, p. 58-75, jan./jun. 2025. ISSN 1980-8518  
Neoliberalismo: da direita à esquerda na política brasileira  
participação para os “municípios como entes federativos autônomos, os conselhos paritários de  
políticas e de direitos e a instituição de um ciclo orçamentário que passa a comportar um  
orçamento da seguridade social” (Behring; Boschetti, 2016, p. 144).  
Nessa conjuntura, o Brasil havia conquistado importantes garantias sociais por lei,  
porém frequentemente o que estava estabelecido na legislação não se concretizava na prática.  
O processo de elaboração da Constituição foi marcado por uma complexidade decorrente da  
multiplicidade de ideologias políticas em jogo, combinando progresso com conservadorismo.  
Apesar de terem sido assegurados aspectos como seguridade social e direitos humanos  
e políticos, a persistência da militarização, da dependência econômica e da ausência da  
implementação da reforma agrária apontava para a manutenção da predominância de ideias  
conservadoras na sociedade brasileira.  
Em 15 de março de 1990, Fernando Collor de Mello, identificado com as tendências  
mais à direita do espectro político, assumiu o cargo de 32º presidente do Brasil. Com um  
discurso modernizador, prometia reconstruir um novo Brasil por meio de uma liderança jovem  
e audaciosa. Ele ficou conhecido por sua luta contra os privilégios dos chamados "marajás",  
termo utilizado para se referir aos funcionários públicos. Sua postura de "caçador de marajás"  
conquistou apoio da ala empresarial e da opinião pública.  
Novas medidas de redução dos gastos do estado de Alagoas com os “marajás”  
despertaram a atenção dos órgãos de imprensa das grandes cidades,  
especialmente de São Paulo e do Rio de Janeiro, para o nome de Collor. [...]  
As mesmas pesquisas apuraram que a maioria dos eleitores preferia um  
candidato jovem, com experiência administrativa e que fosse claro opositor  
do presidente José Sarney (Lemos, 2009, p. 7).  
61  
Seguindo as diretrizes do Consenso de Washington, que reuniu em novembro de 1989  
o Fundo Monetário Internacional (FMI), o Banco Mundial e o Banco Interamericano de  
Desenvolvimento (BID), foram propostas medidas que se concentravam em três pilares:  
a retirada do Estado das atividades econômicas; a liberalização dos mercados  
nacionais para a importação de bens e serviços e a entrada de capitais de risco;  
e a obtenção da estabilidade monetária, por meio do combate intransigente à  
inflação, ainda que à custa de recessão, aumento do desemprego, contenção  
salarial e diminuição dos investimentos públicos na área social (Lemos, 2009  
p. 9).  
Ao assumir a presidência, o governo Collor simbolizou o neoliberalismo na gestão  
pública. Logo de início, junto à ministra da Economia Zélia Cardoso de Mello, o governo  
implementou a polêmica medida de bloquear os saldos em conta corrente e cadernetas de  
poupança por um período de um ano e meio.  
Para muitos, era a motivação para se viver, o meio para se atingir um sonho  
ou a esperança de cura de uma doença grave. Era garantia de uma velhice  
Daniel Carvalho Silva  
digna ou a chance de ajudar um ente querido em dificuldade. E o governo  
tinha ciência disso: as campanhas publicitárias dos bancos inclusive dos  
públicos, naquela época exploravam os desejos e necessidades das pessoas,  
apontando a caderneta de poupança como caminho para a felicidade, que por  
meio dela seria possível a realização de todos os sonhos (Andozia, 2019, p.  
141).  
Assim, o chamado Plano Collor foi lançado com o objetivo de:  
[...] combater a inflação e reduzir o déficit público, criando, segundo seus  
mentores, as condições para o Brasil ingressar no chamado Primeiro Mundo.  
As principais medidas adotadas foram: a extinção de 24 empresas estatais,  
com a demissão dos respectivos funcionários que não estivessem protegidos  
pelas regras da estabilidade; a elevação do Imposto sobre Produtos  
Industrializados (IPI); o aumento da taxação sobre os lucros do setor agrícola  
e o fim dos subsídios à exportação não garantidos no texto constitucional; a  
reintrodução do cruzeiro como moeda nacional, em substituição ao cruzado  
novo, criado no governo anterior; o congelamento de preços e salários, que  
passariam a ser reajustados conforme índices de inflação prefixados; o fim dos  
títulos ao portador e dos cheques ao portador de valores acima de um teto  
determinado; a flutuação do câmbio segundo as tendências do mercado; a  
redução da presença do Estado na economia, por meio da privatização de  
empresas estatais; e a abertura econômica para o exterior, com a redução  
progressiva das alíquotas de importação (Lemos, 2009, p. 10).  
O Brasil rapidamente mergulhou em volatilidade, conduzido pelos Planos Collor I e  
II, a economia estava em declínio, a inflação disparava atingindo 400%, e o Produto Interno  
Bruto (PIB) sofria uma redução de 4,6%. A crise se aprofundava ao longo do governo, deixando  
a classe trabalhadora imersa na pobreza, com o desemprego atingindo níveis recordes de 5,23%  
ao ano (Lemos, 2009, p. 10).  
62  
Fernando Collor de Mello governou por dois anos até sofrer impeachment, em meio a  
uma intensa desaprovação popular e dos setores empresariais. Seu governo ficou marcado pela  
instabilidade, escândalos de corrupção, uma economia desequilibrada com altas taxas de  
inflação, desemprego em massa e um aumento significativo do empobrecimento.  
Após o impeachment, o vice Itamar Franco assumiu a presidência, tornando-se o 33º  
presidente do Brasil. Em meio a uma crise econômica, ele designou Fernando Henrique  
Cardoso (FHC) para os cargos de Ministério das Relações Exteriores e Ministério da Fazenda,  
nos quais ele lançou o Plano Real em 1994. As ações políticas resultantes levaram à redução da  
hiperinflação herdada da ditadura militar e do governo Collor. Esse resultado positivo aumentou  
a popularidade de FHC entre capitalistas e setores populares.  
Fez do “Plano Real”, como instrumento de estabilização monetária, o primeiro  
passo para uma inteira abertura do mercado brasileiro (de bens e serviços) ao  
capital internacional. Essa desregulamentação implicava um outro  
movimento, diretamente referido ao Estado e com dupla face: de uma parte,  
uma forte redução do papel empresarial estatal – donde a selvagem  
dilapidação (privatização) do patrimônio público; de outra, a pretexto da  
Libertas, Juiz de Fora, v. 25, n. 1, p. 58-75, jan./jun. 2025. ISSN 1980-8518  
Neoliberalismo: da direita à esquerda na política brasileira  
redução do déficit público e em nome do “ajuste estrutural”, a redução dos  
fundos públicos para o financiamento das políticas sociais voltadas para a  
massa dos trabalhadores. Mais precisamente, o projeto político do grande  
capital concentrou-se na reforma do Estado (enquadrada, como se vê, numa  
perspectiva neoliberal) – “reforma” que só poderia ser conduzida contra o  
espírito da Constituição de 1988 (Netto, 1999, p. 80 apud Cassin, 2015, p. 80).  
Em 1995, Fernando Henrique Cardoso tornou-se o 34º presidente do Brasil. O governo  
de orientação direitista e neoliberal, liderado pelo Partido da Social Democracia Brasileira  
(PSDB), iniciou sob a gestão do então ministro Bresser Pereira - que estava à frente do  
Ministério da Administração e da Reforma do Estado (MARE) - um processo de reestruturação  
do Estado visando aliviar a crise fiscal. As chamadas "reformas" visavam, principalmente, a  
contenção dos gastos públicos, por meio de privatizações e redução de investimentos sociais,  
com objetivo de alcançar superávit primário e promover a “eficiência do Estado”.  
As medidas de austeridade fiscal, incidiam sobre áreas vitais como educação, saúde e  
direitos trabalhistas, prejudicando significativamente as condições de vida da classe  
trabalhadora. Conforme aponta Castelo (2013, p. 244) [...] as taxas de crescimento econômico  
continuaram estagnadas, o desemprego cresceu, os empregos gerados foram de baixa  
qualificação e, principalmente, os índices de pobreza e desigualdade aumentaram”.  
O prolongado processo de empobrecimento e redução dos direitos sociais levou a  
classe trabalhadora a demonstrar descontentamento em relação ao governo, o que resultou em  
respostas de políticas seletivas. FHC introduziu iniciativas como Bolsa Escola, Bolsa  
Alimentação, Vale Gás e Cartão Alimentação para famílias. Essas políticas foram de natureza  
paliativa e visavam principalmente a sustentação do governo, do capital e da ideologia  
neoliberal.  
63  
Nesse sentido, o FMI e o BIRD propuseram medidas corretivas de promoção  
de reformas estruturais, onde o Estado passaria a ter uma função reguladora,  
operacionalizando, juntamente com o setor privado, políticas sociais  
focalizadas, assistencialistas e emergenciais destinadas ao alívio imediato das  
expressões mais perversas da questão social (Cassin, 2015, p. 56).  
O governo, apesar dos escassos investimentos em políticas sociais, buscou atenuar a  
situação da classe trabalhadora por meio da implementação de programas de transferência de  
renda. No entanto, ao invés de adotar políticas sociais eficazes de alcance universal, optou por  
políticas sociais seletivas e fragmentadas, transformando-as, de fato, em auxílios de curto prazo.  
O social-liberalismo é tido não como uma conscientização humanista e social  
da burguesia, mas como uma ideologia de manutenção da ordem capitalista  
que embasa uma série de intervenções políticas nas expressões da “questão  
social”, como ações do voluntariado, da filantropia empresarial, da  
responsabilidade social, do terceiro setor e de políticas sociais assistencialistas  
e fragmentadas, que não questionam as bases da acumulação capitalista,  
Daniel Carvalho Silva  
produtora de riqueza no topo e de miséria na base da hierarquia social  
(Castelo, 2013, p. 276-77).  
O trinômio neoliberal de privatização, focalização e descentralização, sob a  
perspectiva de Behring e Boschetti (2016), culminou em agravamento das expressões da  
“questão social”. As conquistas previstas na Constituição, que buscavam garantir um sistema  
de saúde de qualidade, educação, assistência social e direitos abrangentes, foram sucateadas  
pela predominância do ideário neoliberal.  
Da direita à esquerda: os 14 anos dos governos do Partido dos Trabalhadores  
Fernando Henrique Cardoso ocupou a presidência do Brasil de 1995 a 2002. Durante  
esse período, o país chegou ao início do século XXI com uma taxa de pobreza de 38,3%. O  
coeficiente de Gini, que mensura o nível de desigualdade social, atingiu 0,59, superior ao  
registrado em 1992, durante o governo de Fernando Collor de Mello (Zimmermann; Silva,  
2012). A disparidade social se acentuava, e a economia, que gerava lucros significativos para o  
empresariado, resultava contraditoriamente em escassez nos recursos materiais dos  
trabalhadores.  
O modelo neoliberal da direita brasileira já não se mostrava viável, e a população  
clamava por direitos sociais eficazes. Em 2002, no pleito eleitoral, um nordestino de origem  
operária e líder sindical dos metalúrgicos, emergiu como a figura da esperança de um novo  
modelo político que melhorasse as condições sociais dos trabalhadores.  
64  
Dessa forma, Luiz Inácio Lula da Silva assumiu a presidência do Brasil como o 35º  
presidente, representando o Partido dos Trabalhadores (PT). Seu mandato, que abrangeu os  
anos de 2003 a 2010, foi um período crucial em que ele se destacou como uma figura  
proeminente no cenário político da esquerda nacional.  
As políticas implementadas pelo seu governo tiveram um impacto significativo no  
progresso social brasileiro. Em 2003, foi criado o Programa Fome Zero. Em 2004, foi  
implementado o Bolsa Família, que unificou programas federais anteriores, como Bolsa Escola,  
Bolsa Alimentação, Vale Gás e Cartão Alimentação. Em 2005, houve o pagamento de 23  
bilhões da dívida externa com o FMI. Em 2007, foi instituído o Programa de Aceleração do  
Crescimento (PAC), voltado de moradia para a população de baixa renda. Em 2009, Programa  
Minha Casa Minha Vida, além de significativos investimentos na política de Assistência Social  
(Cassin, 2015). O percentual de pobreza em 2009 caiu para 24,3% e o índice Gini para 0,54  
(Zimmermann; Silva, 2012).  
Libertas, Juiz de Fora, v. 25, n. 1, p. 58-75, jan./jun. 2025. ISSN 1980-8518  
Neoliberalismo: da direita à esquerda na política brasileira  
Esses programas sociais contribuíram para a melhoria social da classe trabalhadora,  
acompanhados por aumentos salariais acima da inflação e baixos índices de desemprego.  
Segundo Pochmann (2013, p. 154), “[...] a pobreza caiu mais de 30% desde 2003 e o Brasil  
conseguiu voltar a permitir a mobilidade social para milhões de brasileiros, após mais de duas  
décadas de congelamento das oportunidades educacionais, de renda e de ocupação”. Os  
trabalhadores experimentaram um avanço social significativo, com redução na desigualdade de  
renda devido às políticas de transferência, crescimento salarial e uma relativa ascensão social.  
Os avanços alcançados são inegáveis, no entanto, é essencial analisar que tais  
progressos não têm sido direcionados para uma efetiva transformação social, mas sim para  
medidas temporárias. A maneira de abordar o combate à desigualdade social tem se baseado em  
transferências de renda focalizadas e seletivas, em detrimento de políticas sociais universais.  
Lula ampliou os “gastos sociais”5 em comparação ao seu antecessor, mas manteve a lógica  
rentista da ideologia neoliberal.  
Essa, por suas próprias características, mas também pelo caráter do benefício  
com que é agraciada, não tem motivos para contestar o governo Lula.  
Enquanto tais políticas tiverem prosseguimento, a população de baixa renda  
verá em Lula aquele que mudou sua vida para melhor. Para eles, o fato de a  
estrutura social, econômica e política do país reproduzir sem cessar os fatores  
que criam a pobreza onde se encontram não se constitui um problema, desde  
que o fluxo das transferências não seja interrompido. Como visto, embora  
beneficie parcela significativa da população brasileira, a manutenção dos  
programas de transferência de renda não envolve valores tão expressivos. Isso  
significa que sua continuidade e aprofundamento não apresentam maiores  
problemas, não indo contra as demais propostas do governo Lula. Pelo  
contrário, programas desse tipo, de caráter assistencial e por isso  
compensatório, fazem parte de qualquer agenda neoliberal, a começar pela do  
Banco Mundial (Marques; Mendes, 2006, p. 15).  
65  
O neodesenvolvimentismo, frequentemente caracterizado por alguns intelectuais  
como a abordagem governamental adotada pelo PT, configura-se como uma versão atenuada  
da concepção neoliberal.  
O desafio do neodesenvolvimentismo consiste, portanto, em conciliar os  
aspectos “positivos” do neoliberalismo — compromisso incondicional com a  
estabilidade da moeda, austeridade fiscal, busca de competitividade  
internacional, ausência de qualquer tipo de discriminação contra o capital  
internacional — com os aspectos “positivos” do velho desenvolvimentismo  
— comprometimento com o crescimento econômico, industrialização, papel  
regulador do Estado, sensibilidade social (Sampaio Jr., 2012, p. 679).  
5
O texto utiliza a expressão “gastos sociais” como nomenclatura técnica, mas ressalta que, embora comumente  
empregada de forma pejorativa no discurso midiático, é fundamental compreender que esses supostos “gastos”  
são, na verdade, investimentos essenciais para uma sociedade mais justa. Trata-se de aportes direcionados a áreas  
como educação, saúde, assistência social, previdência e direitos trabalhistas, entre outras, que promovem o bem-  
estar coletivo e o desenvolvimento social.  
Daniel Carvalho Silva  
Como aponta Castelo (2013, p. 344), “a economia vulgar derrotou a Economia Política  
desenvolvimentista, que viu alguns de seus intelectuais mais influentes aderirem às teses  
neoliberais na sua versão social-liberal”. Mesmo que o neoliberalismo tenha sido  
implementado de forma moderada, sua abordagem continuava a ser prejudicial, uma vez que  
não considerava a proveniência das expressões da "questão social" e falhava em reduzi-las de  
maneira eficaz. As políticas sociais são limitadas a benefícios de curto prazo refletindo uma  
postura paternalista. Segundo Sampaio Jr. (2012, p. 685):  
Existe, portanto, uma incongruência absoluta entre  
o
que  
o
neodesenvolvimentismo pensa ser — uma alternativa qualitativa de  
desenvolvimento capaz de resolver os problemas renitentes da pobreza e da  
dependência externa — e o que é de fato: apenas uma nova versão da surrada  
teoria do crescimento e da modernização acelerada como solução para os  
problemas do Brasil. Nada mais do que isso. Além de seu papel nas lutas  
intestinas da burocracia que comanda  
a
política econômica,  
o
“neodesenvolvimentismo” cumpre uma dupla função como arma ideológica  
dos grupos políticos entrincheirados nas estruturas do Estado: diferencia o  
governo Lula do governo FHC, lançando sobre este último a pecha de  
“neoliberal” e reforça o mito do crescimento como solução para os problemas  
do país, iludindo as massas.  
A busca pela legitimidade política por parte de Lula vem desde 1989, e apenas foi  
conquistada em 2002, quando ele suavizou seu discurso, buscando a conciliação de classes e se  
aproximando dos interesses do capital. Ao optar por seguir a perspectiva de mercado e dar  
continuidade às políticas econômicas do governo FHC, como o superávit primário, a  
Desvinculação de Receitas da União (DRU), o controle das taxas de juros pela Selic, o constante  
pagamento de juros, encargos e amortizações da dívida pública, e o aumento da arrecadação da  
União, o governo perpetuou a política neoliberal, em busca de “manter o equilibro financeiro  
do Estado"6.  
66  
Acada derrota eleitoral (em 1989, 1994 e 1998), a meta socialista inicialmente  
inscrita nos documentos do partido apresentava-se cada vez mais vazia, o  
programa se tornava mais moderado e a relação com a classe trabalhadora e  
os movimentos sociais, mais distante e formal (Cassin, 2021, p. 173).  
O partido que poderia ter orientado novos rumos para a política nacional acabou por  
se tornar apenas mais um partido burocrático, abandonando a perspectiva expressa no seu  
Congresso Nacional em 1981:  
Nós, do PT, sabemos que o mundo caminha para o socialismo. OS  
trabalhadores que tomaram a iniciativa histórica de propor a criação do PT já  
sabiam disto muito antes de terem sequer a ideia da necessidade de um partido.  
6 É contraditório defender o equilíbrio do Estado enquanto se reduzem os direitos dos trabalhadores e se ampliam  
as concessões ao capital. O Estado, que deveria atender aos interesses públicos da classe trabalhadora, concentra  
seus esforços em beneficiar os setores privados da burguesia, resultando no aumento dos lucros e no agravamento  
da desigualdade social.  
Libertas, Juiz de Fora, v. 25, n. 1, p. 58-75, jan./jun. 2025. ISSN 1980-8518  
Neoliberalismo: da direita à esquerda na política brasileira  
(...) Os trabalhadores são os maiores explorados da sociedade atual. Por isso  
sentimos na própria carne e queremos, com todas as forças, uma sociedade  
que, como diz o nosso programa, terá que ser uma sociedade sem  
exploradores. Que sociedade é esta senão uma sociedade socialista? (Lula,  
1980, p. 66 apud Iasi, 2012, p. 387).  
Ao final do seu segundo mandato, Lula conservava sua popularidade entre amplos  
setores da sociedade, com uma taxa de aprovação de 87%, de acordo com dados do Ibope em  
2010. O apoio tanto das camadas populares quanto da conciliação com segmentos capitalistas  
permitiu a candidatura de sua sucessora, Dilma Rousseff, que se tornou a primeira mulher  
presidente do Brasil.  
A gestão da 36º presidente foi marcada pela expansão do programa Bolsa Família,  
juntamente com a criação de outros programas sociais, como o Brasil Sem Miséria (BSM),  
lançado em junho de 2011. Segundo o relatório de 2015, “[…] as ações do BSM retiraram 22  
milhões de pessoas da situação de extrema pobreza” (Brasil, 2015). Em paralelo, o Brasil  
Carinhoso “[…] consistia na transferência automática de recursos financeiros para custear  
despesas com manutenção e desenvolvimento da educação infantil, contribuir com as ações de  
cuidado integral, segurança alimentar e nutricional” (Brasil, 2015). Outro importante programa  
foi o Pronatec (Programa Nacional de Acesso ao Ensino Técnico e Emprego), que visava  
ampliar o acesso ao ensino técnico e à qualificação profissional, promovendo a inclusão social.  
Segundo Oliveira (2013, p. 324):  
67  
São exemplos a Política Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional  
consubstanciada no programa Fome Zero; a Política de Promoção da  
Igualdade Racial, coordenada pela Secretaria de Políticas de Promoção da  
Igualdade Racial (Seppir); a Política da Promoção da Igualdade de Gênero,  
impulsionada pela Secretaria de Políticas para as Mulheres (SPM). Essas  
políticas têm sido ampliadas no governo da presidenta Dilma, com destaque  
para o Brasil sem Miséria, Bolsa Família – no qual mais de 70% dos  
beneficiários são mulheres que afirmam ter adquirido autonomia e poder de  
escolha desde o que comprar no supermercado até se continuam com suas  
relações afetivas.  
Dilma implementou medidas como a redução do Imposto sobre Operações  
Financeiras (IOF) no crédito pessoal, a ampliação dos programas sociais e a valorização do  
salário mínimo acima da inflação. De acordo com Corsi (2016, p. 6), "Dilma caminhava no  
sentido de modificar a política macroeconômica neoliberal herdada de FHC, particularmente  
ao reduzir a taxa de juros e flexibilizar a forma de combate à inflação”. Todavia, desagradou os  
interesses do mercado financeiro, que passaram a pressionar por ajustes fiscais.  
A narrativa de instabilidade econômica, construída em torno da necessidade de o  
Estado equilibrar suas contas, foi amplamente disseminada, reforçando a ideia de que os “gastos  
sociais” poderiam comprometer o desempenho econômico, embora o verdadeiro impacto  
Daniel Carvalho Silva  
tivesse sido a redução do papel do Estado em relação à população, com a priorização do  
mercado. Nesse contexto, o mercado financeiro reagia de forma positiva a políticas que  
favorecessem o setor privado e reduzissem o papel do Estado, enquanto demonstrava  
desconfiança diante de investimentos sociais direcionados aos trabalhadores, em sua busca  
incessante pelo aumento da mais-valia.  
Como foi claramente demonstrado por Marx, na incessante procura pelo  
aumento da taxa de mais-valia, quando a jornada de trabalho, produto das lutas  
de classes historicamente desenvolvidas, encontra-se limitada legalmente,  
caminha, o capitalista, para a exploração da mais-valia relativa; isto é, a  
substituição do prolongamento do dia de trabalho (mais-valia absoluta) pela  
contração do tempo de trabalho necessário para a reprodução da força de  
trabalho, aumentando o tempo de trabalho excedente (Montanõ; Duriguetto,  
2010, p. 166).  
Sob pressão do capital, Dilma adotou medidas alinhadas à ideologia neoliberal,  
intensificando-as em comparação ao governo de Lula. Como resultado, segundo Cassin (2021,  
p. 180):  
O abandono das promessas de campanha e a aplicação do programa  
econômico de seu adversário fez com que Dilma Rousseff se isolasse de seus  
eleitores, o que minou as possibilidades de organização de um movimento  
amplo de resistência popular às ofensivas da direita reacionária.  
O partido abandonou sua base ideológica e, na prática, tornou-se um facilitador dos  
interesses dos capitalistas. A gestão dos governos petistas não adotou uma política  
fundamentada na consciência de classe, contribuindo efetivamente para a despolitização dos  
setores populares. A política do Partido dos Trabalhadores culminou no apassivamento da  
classe trabalhadora (Cassin, 2015), o que posteriormente contribuiu para legitimar a direita  
brasileira. Uma das consequências foi o impeachment da presidente Dilma Rousseff,  
considerado por muitos como um golpe institucional.  
68  
Golpe que depôs a presidente Dilma pode ser caracterizado como um golpe  
jurídico-parlamentar, uma vez que foi orquestrado por um arranjo entre  
diferentes setores do poder burguês: o Legislativo, o Judiciário e a Polícia  
Federal, com o suporte ideológico da grande imprensa (Cassin, 2021, p. 183).  
A partir desse momento, o cenário político nacional abriu espaço para o avanço do  
ultraliberalismo e a ascensão da extrema-direita.  
Aprofundamento neoliberal: de Michel Temer a Jair Bolsonaro  
Os governos de Luiz Inácio Lula da Silva e Dilma Rousseff levaram o Brasil a alcançar  
os melhores índices sociais de sua história. Contudo, a complexidade de um país periférico,  
subordinado aos países centrais e inserido em um sistema marcado por crises cíclicas, somada  
Libertas, Juiz de Fora, v. 25, n. 1, p. 58-75, jan./jun. 2025. ISSN 1980-8518  
Neoliberalismo: da direita à esquerda na política brasileira  
às contradições do próprio partido ao adotar diretrizes neoliberais, resultou em um progresso  
social limitado. Conforme afirmado por Corsi (2016, p. 10):  
O governo perdeu rapidamente a iniciativa política devido a um conjunto de  
fatores, dentre os quais cabe destacar: deterioração da situação econômica,  
persistência da crise internacional, onda de casos de corrupção, campanha  
diuturna da impressa contra o governo e a implosão da base de sustentação  
política no Congresso, reflexo do desmoronamento da instável aliança de  
classes que sustentava os governos do Partido dos Trabalhadores (PT). Nestas  
circunstâncias, Dilma, optou pelo aprofundamento da política recessiva e  
nomeou Joaquim Levy, indicado diretamente pelo capital financeiro, para  
comandar o Ministério da Fazenda. Ao optar por essa estratégia ela queimou  
a possibilidade de tentar um amplo apoio popular contra a austeridade.  
Como supracitado no capítulo anterior, Dilma persistiu com as políticas neoliberais,  
ampliando os ajustes para acalmar o mercado. No entanto, o grande capital já não contava mais  
com o Partido dos Trabalhadores para gerir a política de Estado. De acordo com Demier (2017,  
p. 96 apud Cassin, 2021, p. 181):  
Gradativamente, ao longo de 2015 e 2016, o Partido dos Trabalhadores, aos  
olhos do conjunto das frações da burguesia brasileira, passou a ser visto – não  
obstante todos os seus vis esforços em provar o contrário – como um partido  
incapaz de implementar as contrarreformas e o ajuste fiscal no grau, no ritmo  
e na intensidade exigidos pela crise econômica nos quadros de um capitalismo  
periférico e dependente.  
O impeachment foi o instrumento escolhido para desmobilizar o PT, seu principal  
líder, Lula, e a esquerda. Ainda que a esquerda não seja sinônimo de petismo/lulismo, em um  
país onde a educação política é precária, a associação linear dessas concepções tornou-se uma  
estratégia categórica para marginalizá-los de forma unilateral. A narrativa de corrupção, desvio  
dos princípios familiares, o “iminente” comunismo e outras informações equivocadas  
difundidas pela direita, influenciaram consideravelmente a sociedade civil.  
69  
Enquanto o processo de impeachment era tramitado, Lula se tornou alvo  
prioritário das investigações da Lava Jato, a qual passou a mobilizar todos os  
esforços na busca de qualquer deslize que comprovasse a vinculação do ex-  
presidente a algum esquema de corrupção. [...] Na tentativa de conferir  
imunidade contra as acusações, Dilma Rousseff nomeou Lula como chefe da  
Casa Civil. A nomeação, no entanto, foi suspensa após o juiz Sergio Moro, à  
época responsável pelos julgamentos da Lava Jato, divulgar ilegalmente a  
gravação da conversa telefônica em que Dilma acertava com Lula o termo de  
posse. Tais acontecimentos foram exaustivamente divulgados pela imprensa,  
com a nítida intenção de desgastar ainda mais o PT – atrelando  
ideologicamente sua imagem aos escândalos de corrupção – e acelerar o  
impeachment (Cassin, 2021, p. 183).  
Nessa conjuntura, parte da população, e especialmente aqueles que haviam ascendido  
socialmente por meio das políticas dos governos petistas, abrangendo o programa de acesso às  
universidades, como o Sistema de Seleção Unificada (SISU), Programa Universidade Para  
Daniel Carvalho Silva  
Todos (PROUNI), Financiamento ao Estudante do Ensino Superior (FIES) e políticas de  
ampliação de crédito e consumo, encontrava-se agora em oposição ao partido.  
Em 2016, no dia 17 de abril, a Câmara dos Deputados Federais votou favoravelmente  
ao processo de impeachment. Vários discursos dos apoiadores fundamentaram-se na defesa da  
família, na valorização do nacionalismo e no anticomunismo, marcando a ascensão da extrema-  
direita na política brasileira. Na ocasião, o deputado Jair Messias Bolsonaro, filiado ao Partido  
Social Cristão (PSC), declarou:  
Perderam em 64, perderam agora em 2016. Pela família e pela inocência das  
crianças em sala de aula, que o PT nunca teve. Contra o comunismo, pela  
nossa liberdade, contra o Foro de São Paulo, pela memória do coronel Carlos  
Alberto Brilhante Ustra, o pavor de Dilma Rousseff. Pelo Exército de Caxias,  
pelas nossas Forças Armadas, por um Brasil acima de tudo e por Deus acima  
de todos, o meu voto é sim.  
Após o processo conduzido pelos demais poderes constituídos, em 31 de agosto de  
2016, Dilma Rousseff foi destituída do cargo através do impeachment. Michel Temer, seu vice,  
sucedeu-a, tornando-se o 37º presidente do Brasil, representando o Partido do Movimento  
Democrático Brasileiro (PMDB), de centro-direita. Ao assumir a presidência, implementou  
políticas de austeridade fiscal.  
O governo Temer propôs a redução dos gastos estatais, priorizando a busca pelo  
superávit, que implicava em uma menor intervenção por parte do Estado. Tal medida resultou  
em cortes nas despesas primárias, incluindo áreas como assistência social, educação e saúde,  
que foram congeladas por duas décadas. Paralelamente, para dar seguimento a uma agenda  
neoliberal, implementou-se a reforma trabalhista, reduzindo os direitos dos trabalhadores e  
ampliando a terceirização. Essa política de ajuste, embora elogiada por alguns economistas,  
impactou diretamente os direitos dos trabalhadores.  
70  
Uma das primeiras medidas do governo Temer foi apresentar ao Congresso  
Nacional a PEC 241/2016 (ou 55), conhecida como a PEC do Teto de Gastos,  
que previa a instituição de um Novo Regime Fiscal e o congelamento das  
despesas primárias por 20 anos. De acordo com a proposta, a partir de 2017,  
os gastos sociais com saúde, previdência social, assistência social, educação,  
cultura, saneamento, desenvolvimento agrário, ciência e tecnologia,  
habitação, infraestrutura, dentre outros, deveriam ser limitados às despesas  
executadas em 2016 e corrigidos anualmente apenas pela variação do Índice  
Nacional de Preços ao Consumidor Amplo (IPCA) até 2036. Além disso, a  
PEC 241/2016 sugeria uma alteração no cálculo do valor mínimo a ser  
destinado às políticas de saúde e educação o que, na prática, desvincula tais  
despesas das receitas da União e elimina o piso de gastos estabelecido  
constitucionalmente para estas políticas. As despesas com o pagamento de  
juros e amortizações da dívida pública interna e externa – que consomem a  
maior fatia do orçamento geral da União –, contudo, não foram incluídas neste  
teto de gastos (Cassin, 2021, p. 187).  
Libertas, Juiz de Fora, v. 25, n. 1, p. 58-75, jan./jun. 2025. ISSN 1980-8518  
Neoliberalismo: da direita à esquerda na política brasileira  
A narrativa do ajuste fiscal surgiu para justificar os cortes de “gastos sociais” sob a  
idealização de otimizar o Estado para uma gestão “equilibrada”. No entanto, o que de fato  
ocorreu foi que o Estado retrocedeu em investimentos sociais, reduzindo tudo o que havia sido  
positivamente conquistado pela classe trabalhadora. Enquanto isso, as concessões feitas aos  
empresários, assim como os salários e benefícios de políticos, juízes e militares, foram mantidos  
e aumentados.  
A direita permaneceu ganhando espaço, e, em 2018, após o segundo turno contra o  
candidato Fernando Haddad, do PT, Jair Messias Bolsonaro, agora no Partido Social Liberal  
(PSL), tornou-se o 38º presidente do Brasil. A política de seu governo deu continuidade e  
intensificou as políticas iniciadas por Michel Temer.  
Bolsonaro representava a extrema-direita que vinha crescendo globalmente, à  
semelhança de Donald Trump nos EUA. A intensa concepção nacionalista, o fundamentalismo  
religioso, agressões à diversidade, ameaças às instituições democráticas e o incentivo ao  
combate ao "inimigo do povo”, referindo-se à esquerda, correspondiam a uma postura agressiva  
tanto economicamente quanto em relação aos costumes e valores. “Não se trata de uma corrente  
conservadora, no sentido tradicionalista da palavra, nostálgica do passado, mas de um  
autoritarismo violento, moderno, geralmente neoliberal” (Löwy, 2020, p. 13).  
Bolsonaro, em conjunto ao Ministro da Economia, Paulo Guedes, aprofundou as  
políticas neoliberais, o que provocou a drástica redução das políticas sociais, um índice de  
privatizações que alcançou 36% (Konchinski, 2022) e a estagnação dos salários dos  
trabalhadores, que ficaram abaixo da inflação (Verenicz, 2022), restringindo, assim, o acesso  
aos bens produzidos. De igual modo, deu seguimento às contrarreformas dos direitos dos  
trabalhadores, com a reforma da previdência, que aumentava os anos de contribuição e a idade  
mínima, além de reduzir as pensões.  
71  
Aprovada em outubro de 2019, na forma da EC 103/2019, a nova  
contrarreforma da previdência ampliou o tempo mínimo de contribuição para  
40 anos, para receber o benefício correspondente ao valor integral dos salários  
dos trabalhadores ativos; aumentou a idade mínima para aposentadoria para  
62 anos (mulheres) e 65 anos (homens) e elevou o tempo de contribuição para  
15 e 20 anos, respectivamente; aumentou a idade e tempo de contribuição para  
a aposentadoria dos professores (25 anos de contribuição e 57 anos de idade,  
se mulher e 60 anos de idade, se homem) e reduziu o valor das pensões. Além  
disso, foram instituídas novas alíquotas de contribuição e novas regras para o  
cálculo do valor da aposentadoria (Cassin, 2021, p. 197).  
A redução dos gastos públicos promovida no governo Bolsonaro agravou a  
desigualdade social. Com uma política centralizada no mercado, o Brasil chegou a 29 milhões  
de pessoas em insegurança alimentar, como aponta o levamento da Fundação Getúlio Vargas  
Daniel Carvalho Silva  
(FGV), 10 milhões de desempregados e 60 milhões trabalhando em condições desprotegidas e  
instáveis, de acordo com o IBGE (Fome, 2023).  
Mesmo com índices desfavoráveis para o desenvolvimento social brasileiro, a base de  
apoio bolsonarista manteve-se resiliente. A herança ultraconservadora7, ultraliberal e  
reacionária perdurou, mesmo após a derrota de Jair Messias Bolsonaro nas eleições de 2022.  
Em apenas seis anos, a extrema-direita consolidou um trabalho de base que a esquerda petista  
falhou em realizar ao longo de catorze anos no poder.  
Considerações finais  
A análise sintetizada do período de 1990 a 2022, abrangendo os governos eleitos pelo  
voto direto após a redemocratização, visa identificar o que há de comum entre eles, destacando  
o modo operante neoliberal com um traço predominante que serve de base para uma avaliação  
crítica da política nacional. Este estudo evidencia que, tanto em governos de direita quanto de  
esquerda, persiste uma característica estruturante do sistema capitalista: a subjugação da classe  
trabalhadora.  
O neoliberalismo, entendido como uma nova fase da lógica liberal clássica, foi  
implementado por governos de direita e extrema-direita, o que não é uma grande surpresa,  
considerando a definição tradicional de direita e esquerda, originada durante a Revolução  
Francesa e representada pela divisão entre girondinos e jacobinos8. A conservação da ordem  
sempre esteve associada à direita. No entanto, é importante refletir sobre como a esquerda  
brasileira, ao longo de sua trajetória, permaneceu atenuada às mudanças político-ideológicas  
que a levaram a se adaptar ao sistema. Durante os governos do Partido dos Trabalhadores, ainda  
que algumas flexibilizações tenham ocorrido, o modelo neoliberal não foi desafiado de forma  
significativa. Assim, apesar de certas mudanças relevantes, o núcleo político e econômico do  
neoliberalismo permaneceu intocado. Essa continuidade, somada ao distanciamento de pautas  
históricas da esquerda, ao enfraquecimento de suas bases sociais e à priorização de políticas  
focalizadas e temporárias, mostrou-se incapaz de atender às demandas amplas da população,  
resultando no progressivo enfraquecimento do campo progressista.  
72  
7
O ultraconservadorismo é a defesa radical dos costumes, da moral e da estrutura familiar. Esse movimento  
fundamenta-se na ideia de proteção dos cidadãos contra a ameaça aos seus princípios e valores. Nesse sentido,  
busca restaurar a ordem frente à “desestruturação” promovida pelos governos de esquerda.  
8 Os girondinos sentavam-se à direita da Assembleia Legislativa, enquanto os jacobinos ocupavam os assentos à  
esquerda. Dessa disposição espacial originou-se a distinção entre os termos “esquerda” e “direita” no espectro  
político, utilizada amplamente nos debates contemporâneos.  
Libertas, Juiz de Fora, v. 25, n. 1, p. 58-75, jan./jun. 2025. ISSN 1980-8518  
Neoliberalismo: da direita à esquerda na política brasileira  
A conclusão apresentada se distancia de qualquer postura pós-modernista ou apolítica,  
que sugere uma neutralidade inexistente, caracterizando uma posição de “nem direita nem  
esquerda”. A alternativa, portanto, reside na política que se alinha à esquerda, lutando ao lado  
dos trabalhadores, com ênfase no fortalecimento dos movimentos sociais e sindicatos. É  
fundamental compreender que limitar-se ao sistema hegemônico e abandonar suas vertentes  
não contribui para a transformação das condições sociais. A esquerda não se assimila à direita,  
não se conforma, transforma; não se define pelo mercado, mas pela classe trabalhadora.  
O resgate histórico da política brasileira implica entender a velha e famosa frase  
popular: “político é tudo igual, depois que eles ganham as eleições, esquecem do povo”.  
Embora essa expressão reflita um ceticismo quanto à capacidade de transformação por meio da  
política, é inegável que, no funcionamento da política institucional, o povo de fato permanece  
esquecido. O que precisa ser definido não é o pessimismo em relação à política, mas a  
insuficiência do sistema capitalista, que, seja sob a ótica neoliberal ou não, se mostra incapaz  
de responder adequadamente às demandas dos trabalhadores.  
A trajetória histórica do capitalismo, desde um Estado liberal ortodoxo, passando pelo  
movimento do proletariado em busca de direitos no século XIX nos países centrais, a  
consolidação do Welfare State da social-democracia, a expansão dos movimentos sociais na  
luta pela redemocratização e as políticas sociais na América Latina, até a reorientação do Estado  
para o neoliberalismo, ilustra a dinâmica dos movimentos políticos da direita à esquerda. Em  
todas essas etapas, a não transformação hegemônica do capital resultou em derrotas para os  
trabalhadores. Como afirmam Marx e Engels (2021, p. 43):  
73  
[...] Aqui torna-se evidente que a burguesia é inapta para ser a classe  
governante da sociedade e para impor suas condições de existência à  
sociedade como uma lei primordial. É inapta para governar porque é  
incompetente para assegurar uma existência para os seus escravos dentro da  
escravatura; porque não consegue evitar de deixá-los afundar em tal estado,  
pois ela tem de alimentá-los, em vez de ser alimentada por eles. A sociedade  
não pode mais viver sob esta burguesia, em outras palavras, a sua existência  
não é mais compatível com a sociedade.  
Somente uma nova forma política, alicerçada na coletividade e na emancipação da  
classe trabalhadora, pode possibilitar a construção de uma sociedade pautada na justiça social.  
Nesse sentido, torna-se imprescindível a consolidação de um socialismo democrático e  
científico formulado por Karl Marx e Friedrich Engels.  
Daniel Carvalho Silva  
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75  
A função mistificadora do Produto Interno  
Bruto brasileiro e o aumento da  
taxa de mais-valor1  
The mystifying function of the Brazilian Gross Domestic Product and the  
increase in the rate of surplus value  
Artur Bispo dos Santos Neto*  
Resumo: O presente texto pretende prescrutar a  
peculiaridade da economia brasileira nos  
tempos hodiernos. Após salientar a capilaridade  
da relação estabelecida entre noção de crise e  
conceito do capital e como ela reverbera na  
realidade brasileira, buscar-se-á apontar os  
limites das assertivas assentadas nos dados  
apresentados pelo Produto Interno Bruto (PIB).  
Particularmente, como a mistificação contida na  
noção de Produto Interno Bruto tem como vetor  
essencial apagar as pegadas do capital com o  
trabalho vivo. Por fim, observar-se-á como os  
dados apresentados pelo Instituto Latino-  
Americano de Estudos Socioeconômicos  
corroboram com as formulações marxianas do  
capital variável como única forma dotada de  
capacidade de produção de valor que se valoriza  
e de reverter a tendência à queda da taxa de  
lucro. Para corroborar na elucidação da referida  
temática recorrer-se-á às contribuições de Karl  
Marx (2013; 2017), Machado (2020; 2021),  
Krein (2021).  
Abstract: This text examines the brazilian  
economy's distinct features in contemporary  
times. It begins by exploring the intricate  
relationship between the concepts of crisis and  
capital, and how this interplay resonates within  
the Brazilian context. Subsequently, the  
discussion will highlight the limitations of  
interpretations based solely on Gross Domestic  
Product (GDP) data. In particular, it will address  
how the mystification inherent in the GDP  
notion obscures the connections between capital  
and living labor. Finally, evidence from the  
Latin American Institute of Socioeconomic  
Studies will be presented to support Marxian  
insights regarding variable capital as the sole  
form capable of generating value, promoting  
valorization, and counteracting the falling rate  
of profit. To further illuminate the topic,  
insights from Karl Marx (2013; 2017),  
Machado (2020; 2021) and Krein (2021) will be  
incorporated.  
Palavras-chaves: Crise do capital; Economia  
Keywords: Crisis of capital; Dependent  
dependente; Exploração; Lucro.  
economy; Exploitation; Profit.  
1 Pesquisa financiada pelo CNPq. Processo: 308950/2022-4.  
* Universidade Federal de Alagoas. E-mail: artur.neto@ichca.ufal.br  
DOI: 10.34019/1980-8518.2025.v25.47704  
Esta obra está licenciada sob os termos  
Recebido em: 07/03/2025  
Aprovado em: 09/06/2025  
A função mistificadora do Produto Interno Bruto brasileiro e o aumento da taxa de mais-valor  
NinguémcomePIB,comealimentos.  
(MariaConceiçãoTavares).  
Introdução  
A elucidação da realidade é tarefa complexa, porque subsiste uma tendência a deixar-se  
amoldar pela forma da aparência que prevalece na superfície da sociedade. A primazia da  
aparência tende a implicar num determinado abandono da essência, atendendo aos preceitos do  
capital, enquanto um sistema assentado numa aparência “socialmente necessária” ao  
desenvolvimento da sociedade capitalista.  
A impossibilidade de separar a forma da aparência daquilo que nela aparece perfaz o  
pensamento dominante; em que o indivíduo se constitui como uma espécie de escravo do  
mundo sensível, havendo o primado da metafísica sobre as bases materiais que gestam a  
exploração e espoliação da classe trabalhadora.  
O capital possui uma capacidade incomensurável para apagar as pegadas do trabalho  
vivo em seu processo de constituição e busca esconder incansavelmente o mais-valor como  
quintessência ontológica de todo seu processo de acumulação. Por isso que a apreensão do  
capital não pode se circunscrever às múltiplas formas mistificadas da aparência na objetividade.  
A aparência mistificada do capital não é uma elucubração do intelecto; sua forma inverossímil  
é real e tão real quanto a sua essência, a diferença é que a aparência se assenta na mistificação  
enquanto a essência assegura sua revelação.  
77  
O devido entendimento do amálgama de fetichizações que constitui o capitalismo  
brasileiro passa pela recuperação da elucidação apresentada contundentemente por Karl Marx,  
em O capital, em que os capitalistas recorrem cotidianamente às categorias da taxa de lucro, da  
taxa de juros, da renda e do salário, para encobrir o fundamento inexorável de todo o processo  
de constituição do capital. No cenário brasileiro, observa-se que os apologetas do sistema  
acrescentam outros termos para aprofundar esse processo de mistificação, tais como PIB  
(Produto Interno Bruto), taxa de desemprego, Taxa Selic, taxa de inflação etc. Essa plêiade de  
indicadores econômicos oblitera o movimento efetivo da economia brasileira e muito pouco  
esclarece seus fundamentos.  
A recorrência aos critérios constituídos pelos representantes do sistema financeiro e dos  
órgãos oficiais do Estado torna abstruso elucidar o movimento efetivo do sistema do capital na  
particularidade brasileira. A contabilidade apresentada pelos órgãos oficiais da burguesia  
(estatais ou privadas) visa desarmar a classe trabalhadora e esconder os antagonismos nodais  
Artur Bispo dos Santos Neto  
entre capitalistas e trabalhadores, colaborando na profusão ilusória da política de conciliação  
de classes.  
A crise do capital e a natureza mistificadora do PIB (Produto Interno Bruto)  
brasileiro  
A apreensão das vicissitudes que perpassam a anatomia da crise econômica brasileira  
passa pela elucidação da crise do capital em sua totalidade, em que nenhum poro da  
sociabilidade burguesa escapa de suas interferências. Ademais, é impossível entender o capital  
de maneira desarticulada do conceito de crise e vice-versa. O conceito de crise está  
essencialmente articulado ao conceito de capital, haja vista que o capital é contradição em  
essência.  
A escrita marxiana aponta que a crise não se revela como um elemento acessório do  
capital, senão como uma espécie de força motora privilegiada. Ela se plasma como um aspecto  
fundamental para a elucidação e o entendimento da capilaridade do capital em suas formas  
abstratas e concretas. A perspectiva marxiana entende que a crise revela a negatividade do  
capital, que se forja na contradição aberta com o trabalho vivo, com a humanidade e consigo  
mesmo.  
O movimento do capital aponta que os limites deste sistema não se engendram como  
uma mera determinação exterior, mas se manifestam como expressões de seus dispositivos  
internos, ou seja, os limites são prefixados pelo próprio capital, que impõe barreiras a seu  
próprio desenvolvimento e se move dentro desses limites. Eles servem tanto para impulsionar  
e dinamizar o movimento de reprodução do capital quanto podem corroborar na implosão do  
sistema assentado na captura incessante de mais-valor.  
78  
A análise marxiana da crise nas inúmeras páginas da seção V do livro terceiro (Cisão  
do lucro em juros e ganho empresarial. O capital portador de juros) está conectada ao  
desenvolvimento do sistema de crédito, transcendendo os elementos postos pela superprodução  
(livro primeiro de O capital), pela desproporcionalidade entre os setores (livro segundo) e pela  
tendência à queda da taxa de lucro (seção III do livro terceiro). A partir da exposição da  
concorrência que perpassa a relação dos distintos capitais particulares entre si e da oposição  
estabelecida entre as múltiplas manifestações do capital, Marx (2017) insere o conceito de crise  
no âmago do sistema.  
A crise não é um problema que possa ser superado (Aufhebung) com intervenções  
estatais e reparos determinados; ela tem múltiplas faces e pode emergir da superprodução, do  
subconsumo, da desproporção entre os setores, da tendência da queda da taxa de lucro etc. No  
Libertas, Juiz de Fora, v. 25, n. 1, p. 76-99, jan./jun. 2025. ISSN 1980-8518  
A função mistificadora do Produto Interno Bruto brasileiro e o aumento da taxa de mais-valor  
entanto, é na esfera financeira, mediante a hipertrofia das finanças, que ela tem se revelado de  
maneira contundente nos tempos hodiernos.  
Nota-se que o desenvolvimento do modo de produção capitalista propicia que as crises  
se tornem mais constantes devido aos impactos do acirramento da concorrência entre os  
distintos intersetores e os departamentos da produção e circulação, pela natureza anárquica e  
carente de planejamento racional da produção capitalista e pela incapacidade de o sistema  
continuar se expandido desmedidamente. Essa concorrência eleva a superprodução de  
mercadorias e de capitais, e os capitais ociosos acabam sendo direcionados compulsoriamente  
para o setor especulativo.  
Na escala internacional, o seu desencadeamento remonta à década de 1970 (Mészáros,  
2011); em que se aprofunda a produção de riqueza em formas acentuadamente antitéticas, nas  
quais o capital entra em contradição consigo mesmo ao acionar o capital fictício para reparar  
suas barreiras expansivas e acumulativas. Ao tentar transcender as barreiras que ele mesmo  
engendrou, lançando mãos de uma forma disfuncional para dirimir suas crises, acabando  
forjando obstáculos ainda mais poderosos e difíceis de serem transpostos. Nesse processo, a  
crise deixa de ser tão somente cíclica e passa a configurar-se de forma predominantemente  
estrutural (Mészáros, 2011).  
Cumpre destacar que, primeiro, a crise estrutural do capital não significa a eliminação  
das crises conjunturais, pois estas tendem a continuar existindo concomitantemente; segundo,  
na crise estrutural as perturbações e “disfunções” tendem a se tornar cumulativas e, portanto,  
duradouras. Terceiro, ela revela os limites absolutos do sistema do capital através do  
desemprego crônico, da taxa decrescente de utilidade das coisas, da destruição da natureza e da  
crise ecológica (Mészáros, 2011). Quarto, essa crise se forja não somente pela tendência  
crescente de economizar trabalho vivo, mas pela destruição incessante de força de trabalho e  
da riqueza produzida pela classe trabalhadora. Quinto, a crise acomete todos os aspectos da  
economia mundial (produção-circulação-consumo) e reverbera nos múltiplos complexos  
sociais.  
79  
A crise da economia brasileira começa efetivamente da década de 1980 (Cano, 2014;  
Sampaio Jr., 2017) e decorre, primeiro, da própria natureza do capital, ou seja, ela emana das  
manifestações pluricausais (superprodução, subconsumo, desproporcionalidade entre os  
setores, superacumulação etc.) que são inerentes ao seu processo de reprodução. Segundo, a  
impossibilidade de o capital produtivo servir ao processo de reprodução ampliada leva à  
necessidade de seu reciclamento na esfera financeira, em que a lógica desse regime de  
acumulação se delineia num mercado futuro de mercadorias que podem nunca vir a realizar-se.  
Artur Bispo dos Santos Neto  
O capital fictício, enquanto irmão siamês do capital portador de juros, apresenta-se  
como uma espécie de entidade autônoma, que emana de si mesmo e não carece do trabalho vivo  
para poder se autorreproduzir. Essa forma de capital ramifica-se na esfera endógena com o  
processo de mundialização da economia brasileira. E o capital fictício, como a forma mais  
fetichizada do capital (Marx, 2017), serve para aprofundar os processos de mistificação dos  
fundamentos efetivos da realidade socioeconômica brasileira, em que a abertura da economia  
para o mercado externo e a elevação das taxas de juros se apresentam como alternativa para  
atrair capital estrangeiro.  
A obediência senil aos parâmetros estabelecidos pelos organismos internacionais,  
segundo o modelo que se convencionou denominar como “Consenso de Washington”, tem  
servido para promover a destruição do complexo industrial existente no país e para o  
aprofundamento da dívida pública (interna e externa)2. Entretanto, é ledo engano imaginar que  
o setor produtivo se constitui como o “bom mocinho” nessa história, pois o processo de  
mundialização da economia impõe uma articulação indissociável entre capital produtivo e  
capital financeiro. Essa articulação se galvaniza no processo de transformação dos produtos  
primários brasileiros em commodities (agrícolas, minerais, ambientais) negociadas na Bolsa de  
Valores (na forma de títulos privados e públicos) e no mercado de futuros (derivativos, fundos  
hedge, securitização etc.).  
80  
Marx (2004) assinala que no interior do capital inexiste situação favorável ao  
trabalhador, porquanto mesmo quando a economia capitalista cresce, os trabalhadores não  
melhoram suas condições de vida, pelo contrário, eles aceleram simplesmente a sua morte, uma  
vez que trabalharão mais para reproduzir sua existência social. Como o sistema do capital está  
assentado no fetiche e num conjunto de mistificações, tornou-se normativo o estabelecimento  
da relação simétrica entre crescimento econômico e PIB (Produto Interno Bruto).  
O crescimento do capital não implica a melhoria das condições sociais da classe  
destituída dos meios de produção e dos meios de subsistência. A produção capitalista não está  
direcionada para atender às necessidades de seus produtores: nem dos trabalhadores, nem dos  
capitalistas, porque estes não passam de personificações do capital e precisam colocar um curso  
2
A crise desencadeada pela dívida externa representou uma regressão da produtividade do parque industrial  
brasileiro, que teve queda de 11% entre 1980 e 2003 (Sampaio Jr., 2017, p. 73). Apesar disso, a arrecadação fiscal  
na década de 1990 aumentou 10% em relação a década anterior. As arrecadações com as privatizações das  
empresas estatais e o controle dos gastos públicos permitiram apenas o pagamento da dívida pública, que passou  
de 32,5% do PIB, no começo do governo FHC, para 57,3% do PIB, no final do referido governo (Sampaio Jr.,  
2017, p. 77). Apesar da obediência aos ditames do Consenso de Washington, o crescimento do PIB, entre 1990 e  
2005, não superou de 1,6% ao ano, abaixo do experimentado na “década perdida” de 1980, que foi de 2,9%. Nesse  
período, o país enfrentou sete crises cambiais e três momentos de descontrole inflacionário (Sampaio Jr., 2017).  
Libertas, Juiz de Fora, v. 25, n. 1, p. 76-99, jan./jun. 2025. ISSN 1980-8518  
A função mistificadora do Produto Interno Bruto brasileiro e o aumento da taxa de mais-valor  
o processo de rotação do capital, que se alimenta da acumulação incessante de trabalho  
excedente. Assim, o crescimento econômico deve ser entendido como expansão do processo de  
apropriação do mais-valor produzido pelos trabalhadores.  
O aumento da taxa de lucro de qualquer empresa capitalista se dá mediante a ampliação  
da taxa de acumulação de mais-valor. O lucro é a forma mistificada do mais-valor; os  
economistas da burguesia calculam a taxa de lucro em cima do capital total investido e não do  
capital variável (Marx, 2017). A prosperidade econômica não torna melhor a vida dos  
trabalhadores porque ela se sustenta na acumulação de mais-valor. O que o capitalista lucra, de  
um lado, o trabalhador perde, do outro. Não há como harmonizar essa relação, porque o capital  
tem fome e sede de mais-valor, e ele não admite qualquer mecanismo de contração de suas  
taxas de mais-valor e lucratividade.  
É notório que a economia mundial vem experimentando uma crise profunda desde a  
década de 1970, sendo que ela reverbera no interior da economia brasileira, a partir 1981,  
envolvendo tanto a esfera da produção-circulação quanto na esfera da financeirização. Na esfera  
da produção-circulação, com uma deterioração de seu parque industrial; e na esfera da  
financeirização, com o aumento exponencial do montante da dívida pública, que consome quase  
metade do orçamento estatal anualmente.  
Nesse processo, observou-se a constituição de duas décadas perdidas (1980-1990; 2010-  
2020). Desde o final da década de 1970, a economia vem acumulando reduzidas taxas de  
crescimento e experimentando um processo de desindustrialização. Entre 1980 e 2020, a parcela  
da manufatura no PIB do Brasil recuou de 21,1% para 11,9% do PIB (Iedi, 2021). E o retrocesso  
da indústria intensificou-se na última década.  
81  
Gráfico 1: PIB brasileiro (1901 e 2020).  
Fonte:Alvarenga(2021,p.3).  
Artur Bispo dos Santos Neto  
A fase de 2011-2014 comparece como uma etapa de desaceleração do crescimento  
econômico quando comparado ao ciclo anterior, passando de 4,6%, entre 2007-2010, para  
2,34%, entre 2011-2014, ou seja, houve um declínio de quase 50%. A desaceleração foi seguida  
pela recessão econômica, entre 2015 e 2016, com quedas sucessivas de 3,55% e 3,28% no PIB.  
Praticamente, todos os setores da economia foram afetados, em que houve redução no consumo  
das famílias (-3,8%), contração expressiva de investimentos (-12,1%), recuo da indústria (-  
4,6%), restrição dos serviços (-2,2%), diminuição da agropecuária (-5,2%) (Couto & Couto,  
2021, p. 94). Para a Fundação Getúlio Vargas (2023), o crescimento médio da economia  
brasileira, entre 2011-2020, foi de 0,3%, ou seja, ficou bem abaixo do apresentado acima.  
Gráfico 2: Taxa de crescimento do PIB (2011-2020).  
82  
Fonte:Alvarenga(2021,p. 3).  
A década passada tem sido denominada como década perdida para os analistas  
financeiros que tomam o PIB como referência para as análises micro e macroeconômica. Essas  
taxas negativas levaram o segundo governo Dilma Rousseff3 e de maneira mais intensa os  
governos Michel Temer e Jair Bolsonaro a adotar políticas de austeridade (fiscal, trabalhista,  
3 A relativa prosperidade do primeiro governo Dilma, com sua Nova Matriz Econômica, dissipou-se com a queda  
do valor das commodities no mercado mundial, com a elevação da taxa de juros pelo imperialismo norte-americano  
e o aumento do nível de endividamento das empresas e das famílias brasileiras. A perspectiva ortodoxa (Barbosa  
Filho, 2017) considera equivocadamente que a crise brasileira resultou da forte intervenção estatal proporcionada  
pelas medidas impetradas pela Nova Matriz Econômica (redução da taxa de juros, dirigismo no investimento,  
elevação de gastos, concessões de subsídios e intervenção em preços). Para os representantes do mainstream  
dominante, a “solução da crise” se inicia com a aprovação da PEC do teto dos gastos, combinada com a reforma  
da previdência, a flexibilização do mercado de trabalho e a permissão da terceirização (Barbosa, 2017). O segundo  
governo Dilma foi marcado pela subordinação aos ajustes impostos pelo grande capital, que encontrou sua  
expressiva configuração nos governos Michel Temer e Jair Bolsonaro. Desse modo, subsiste uma espécie de  
inflexão decisiva entre o primeiro governo Dilma e o segundo, em que neste a presidenta deve se submeter ao  
cânone ortodoxo e, mesmo assim, sofre impeachment. Assim, aprofunda-se a constituição do padrão de  
acumulação imposto pela ortodoxia neoliberal (Sampaio Jr., 2017, p. 222).  
Libertas, Juiz de Fora, v. 25, n. 1, p. 76-99, jan./jun. 2025. ISSN 1980-8518  
A função mistificadora do Produto Interno Bruto brasileiro e o aumento da taxa de mais-valor  
tributária e financeira), atacando desmedidamente os direitos sociais da classe trabalhadora.  
Nota-se que quando o PIB despenca, os capitalistas invocam a necessidade inexorável de atacar  
ubiquamente os direitos dos trabalhadores. E os governos de plantão da burguesia começam  
imediatamente a aplicar as medidas de austeridade que interessam ao grande capital. No  
entanto, quando ele ascende os trabalhadores continuam com suas condições de vida rebaixadas  
e seus direitos usurpados.  
É fundamental apontar que “ninguém come PIB” (Tavares apud O Globo, 2025, p. 1).  
Apesar de oficialmente os dados do PIB serem entendidos como mediação do fluxo da produção  
de bens e serviços ao final de um determinado ciclo temporal (geralmente 1 ano), ele não passa  
da forma como as coisas sucedem na superfície da sociedade burguesa brasileira. O crescimento  
do PIB nem sempre representa um ganho substancial para a classe trabalhadora. É um  
crescimento que não permite aferir as efetivas condições de vida da classe que necessita vender  
sua força de trabalho como mercadoria.  
Um bom exemplo disso foi o conjunto de manifestações que aconteceram no Chile, em  
2019, contra as políticas neoliberais impostas pelos organismos internacionais e conglomerados  
transnacionais4. Elas representaram a intensificação da concentração da riqueza produzida pela  
classe trabalhadora nas mãos da burguesia endógena e exógena, bem como a privatização  
completa dos serviços sociais nas áreas de saúde, previdência, educação, transporte etc.  
O PIB chileno, em 2018, ultrapassava a casa dos 4%, e não foi capaz de impedir as  
grandes manifestações, pois a classe trabalhadora estava terminantemente na miséria. O  
governo foi obrigado a flexibilizar as medidas contra os trabalhadores. A mídia corporativa da  
burguesia imputou às manifestações populares chilenas a responsabilidade pela redução de  
2,1% do PIB no quarto trimestre de 2019, em comparação com 2018. O mesmo pode se afirmar  
em relação ao continente africano, que comparece entre as 20 economias com mais elevado  
índices de crescimento do PIB mundial em 2024; entretanto, esse mesmo continente aparece na  
lista das 20 economias mais pobres do globo.  
83  
Já o PIB brasileiro voltou a expandir-se depois da pandemia de Sars-Covid-19.  
Observam-se taxas de crescimento tanto em 2022 (3,2%) quanto em 2023 (3%). O bom  
desempenho foi generalizado entre os setores, com altas registradas na indústria (2,2%),  
4
As contrarreformas trabalhistas e previdenciárias implementadas pelos Chicago Boys no território chileno  
abriram o itinerário para o estabelecimento dessas contrarreformas no mundo inteiro. No Brasil, elas seriam  
implementadas de maneira mitigada e fragmentada para não suscitar um possível levante das massas. Os Chicago  
Boys no Chile emanaram da interferência direta dos EUA na derrubada de um governo que pretendia instaurar o  
socialismo pela via pacífica. Sem considerar o poder do capital sobre a produção do saber científico, torna-se  
impossível entender por que as proposituras dos Chicago Boys culminaram reverberando no interior da economia  
mundial e da economia brasileira.  
Artur Bispo dos Santos Neto  
serviços (1,3%) e agropecuária (0,5%), sempre em relação ao trimestre anterior (BCB, 2022).  
E terceiro governo Lula tem se demonstrado comprometido na perspectiva de aumentar o PIB  
e as taxas de lucro dos capitalistas dos distintos setores. Para isso liberou, somente para o Plano  
Safra, mais de 400 bilhões de reais aos representantes do agronegócio, mais de 700 bilhões de  
reais em renúncia fiscal e 1,997 trilhão de reais para pagamento dos juros e amortizações da  
dívida pública, em 2024 (Auditoria Cidadã, 2025).  
Nesse processo se inscreve o famigerado “Arcabouço fiscal” (LC 200/23), em que até  
mesmo as políticas compensatórias que serviram para aprofundar o apassivamento das massas  
são rifadas para atender aos imperativos do grande capital. A consequência dessa política é o  
aprofundamento da miséria da classe trabalhadora. O coeficiente de Gini, da Fundação Getúlio  
Vargas (FGV, 2023), aponta que a concentração de riqueza no Brasil passou de 0,496 em 2013  
para 0,7068 em 2020, e aparece com 0,523 em 2023.  
A média de reajuste salarial da classe trabalhadora brasileira não acompanha nem  
mesmo a inflação, enquanto os produtos da cesta básica representaram aproximadamente o  
dobro da inflação. Isso quer dizer que o crescimento do PIB brasileiro de 3% em 2023 (FGV,  
2024) se converteu em restritos benefícios para a classe trabalhadora, mas com certeza se  
transfigurou em vantagens para o capital estrangeiro e seus associados.  
O PIB serve para obliterar as contradições e desigualdades sociais que imperam na  
economia brasileira. No fundo, não permite elucidar o grau de desenvolvimento da economia e  
sua relação de subordinação ao grande capital internacional. Entre as vinte maiores economias  
mundiais, o Brasil consegue superar somente a Índia, que possui a maior população mundial  
em termos de desigualdades sociais. Para o FMI (Fundo Mundial Internacional), a renda per  
capita (PIB por habitante) brasileira ocupa a 76ª posição, e não a 8ª posição mundial (Hanan,  
2024).  
84  
Em termos de qualidade de vida, os dados do IBGE (2024) apontam que 70 milhões de  
brasileiros experimentam algum tipo de insegurança alimentar e 78,7 milhões de brasileiros  
estão desempregados, representando a 17ª maior concentração de renda do mundo. Isso se  
traduz no fato de que 21,1 milhões de pessoas passaram fome em 2023, o equivalente a 10% da  
população, enquanto o 1% mais rico da população tem quase a metade da riqueza do país. Além  
disso, 22% dos domicílios chefiados por mulheres negras encontravam-se em estado de fome  
em 2023; aproximadamente 215 mil pessoas vivem sem teto e 12% da população brasileira  
residem em favelas (Anistia Internacional, 2023). Em termos de expectativa de vida, a posição  
do Brasil é a 58ª do mundo, com média de 76,2 anos por brasileiro (Contrapoder, 2024);  
entretanto, uma nova reforma da previdência já está sendo preparada.  
Libertas, Juiz de Fora, v. 25, n. 1, p. 76-99, jan./jun. 2025. ISSN 1980-8518  
A função mistificadora do Produto Interno Bruto brasileiro e o aumento da taxa de mais-valor  
O PIB e a renda per capita por habitante não revelam as contradições existentes entre  
capitalistas e trabalhadores, bem como a contradição entre capital e trabalho, ou como o Estado  
se plasma como estrutura de comando do capital sobre o trabalho. Isso explica por que os dados  
apresentados pelo Estado não desnudam os fundamentos dos problemas socioeconômicos  
existentes no Brasil.  
O crescimento do Produto Interno Bruto (PIB) tão só mascara a realidade de uma  
economia subordinada e dependente. Os governos petistas nem sequer arranharam a superfície  
do sistema assentado na intensificação das contradições e das desigualdades sociais. O  
detalhamento do PIB é insuficiente para relevar as contradições e os problemas  
socioeconômicos e políticos que ele encerra, pois considera o país como uma unidade isenta de  
contradições, ocultando a posição de subordinação e dependência da economia brasileira em  
relação às grandes corporações empresariais e financeiras mundiais, especialmente sua relação  
de dependência da economia norte-americana, que não alberga o PIB para avaliar o  
desenvolvimento de sua economia.  
Nos Estados Unidos, por exemplo, adotam-se o Produto Nacional Bruto (PNB) e não o  
PIB, no qual a produção de riqueza é avaliada não somente internamente, mas de maneira  
articulada com as riquezas produzidas pelas filiais de suas multinacionais (GM, Ford, Boeing  
etc.) em várias partes do mundo; diferentemente do Brasil, que não contabiliza os lucros  
auferidos pelas suas multinacionais (JBS, Petrobras, Odebrecht etc.) no mercado externo e  
enreda-se no equívoco de contabilizar os lucros da multinacionais estrangeiras que atuam no  
país. Por isso o PIB brasileiro é maior que o PNB, enquanto nos Estados Unidos se dá o inverso.  
Essa distinção escancara a posição de dependência da economia brasileira (Machado, 2019).  
A remessa de mais-valor e rendimentos para o exterior cresceu de maneira substancial  
na última década, passando de 82,2 bilhões de reais em 2010 para 195 bilhões de reais em 2020.  
Em termos proporcionais, isso representaria somente 2,62% do PIB brasileiro (Machado, 2021).  
No entanto, não se deve esquecer que o PIB não expressa o efetivo desenvolvimento humano  
do país, pois se concentra nos aspectos econômicos relativos aos bens e serviços produzidos em  
determinado ciclo temporal, afastando-se expressivamente do locus fundamental da produção  
do conteúdo material da riqueza social e como essa riqueza é distribuída entre as classes sociais.  
A obsessão pela taxa de crescimento do Produto Interno Bruto (PIB) serve muito mais  
para ocultar do que revelar o movimento efetivo da economia, pois não demonstra, primeiro,  
como um mesmo capital pode operacionalizar várias rotações e, ao final, apresentar uma  
movimentação que transcende em muito o capital originalmente investido no processo  
produtivo; segundo, não “considera a produção de mercadorias como base de toda cadeia de  
85  
Artur Bispo dos Santos Neto  
valor. Assim, o valor que o banco acumulou por meio dos juros extraídos das empresas é  
considerado valor adicionado. O mesmo vale para a arrecadação estatal” (Machado, 2021, p.  
87). Os bancos e o Estado muitas vezes não passam de meros redistribuidores dos valores  
oriundos das empresas produtivas. Terceiro, não ressalta a fuga e a transferência de mais-valor  
e rendimentos para o exterior, deixando transparecer que todo o fluxo de riqueza apresentada  
subsiste no país e mascara a parte que foi drenada para o exterior.  
O PIB não apresenta nem mesmo as diferenciações existentes no interior do processo  
de constituição do capital, em que todas as formas do capital aparecem sintetizadas numa forma  
única, o que não condiz com sua dinâmica interna, em que o capital produtivo é o único que  
produz mais-valor, enquanto o capital comercial, o capital portador de juros e o capital fictício  
não produzem mais-valor (Marx, 2017). Nessa perspectiva, o lucro de um banco aparece como  
idêntico ao lucro de uma fábrica.  
É preciso entender que há uma grande diferenciação entre capital produtivo de mais-  
valor– que é formado pelas indústrias de transformação, indústrias extrativistas, construção,  
mineração etc. – e capital improdutivo (bancos, instituições financeiras, setor de serviços,  
comércio, logística etc.). O capital produtivo é a única forma de produção do valor que se  
valoriza pela mediação da exploração da força de trabalho, em que o trabalho vivo transfere  
valor e produz mais-valor. E a produção do mais-valor neste setor é partilhada com os  
representantes dos capitais comerciais e financeiros. Esse processo de divisão do mais-valor se  
inscreve na partilha da taxa de lucro (juros e rendimento) e na equalização dos rendimentos  
(Marx, 2017).  
86  
Isso implica que além do capital produtivo de mais-valor, existe o capital que não produz  
nenhum mais-valor, como é o caso do capital comercial, do capital portador de juros e do capital  
fictício. Essas formas de capital acabam se configurando como serviços. Além do capital  
improdutivo, existe o Estado que não gera mais-valor, com exceção das empresas estatais  
produtoras de mercadorias. A renda estatal provém de tributos, tais como impostos, taxas e  
contribuições pagas especialmente pelos trabalhadores, uma vez que os capitalistas possuem  
muitos mecanismos para se isentar do pagamento de impostos. Esses impostos e tributos podem  
ser comercializados na forma de títulos da dívida pública e funcionar como capital fictício;  
enquanto expressão mais insana do capital (Marx, 2017).  
A forma de composição do capital que realmente produz mais-valor é o capital  
produtivo. Houve uma diminuição da representação do capital industrial, entre 2004 e 2020,  
passando de 38,77% para 31,55%, um declínio de 4,4%. A queda maior se sucedeu na indústria  
de transformação, que passou de 17,79% (em 2004) para 11,79% (em 2020), ou seja, uma  
Libertas, Juiz de Fora, v. 25, n. 1, p. 76-99, jan./jun. 2025. ISSN 1980-8518  
A função mistificadora do Produto Interno Bruto brasileiro e o aumento da taxa de mais-valor  
redução de 6%. Esse decréscimo decorre da nova divisão internacional do trabalho e do papel  
de produtora de commodities que a economia brasileira deve assumir no mercado internacional.  
Por isso o relatório Readiness for the Future of Production Report 2018 (WEF) aponta que o  
país ocupa “a 41ª posição em termo da estrutura de produção e a 47ª posição nos vetores de  
produção da indústria” (Machado, 2021, p. 91).  
A retração perpassa praticamente todos os setores que formam o capital produtivo de  
mais-valor. As pequenas recomposições observadas no decurso da década de 2010-2020 não  
implicam que a indústria de transformação tenha sido recomposta e haja experimentado uma  
recuperação; pode ser, sim, o resultado do jogo de forças da concorrência intercapitalistas dos  
setores da produção (indústria) e da circulação (comércio).  
A inércia da indústria de transformação brasileira reverbera sobre os demais complexos  
da economia, resultando numa restrição ao processo e realização do valor que envolve os  
demais complexos econômicos. Anota Machado (2021, p. 84): “Menos mercadorias produzidas  
significa menos mercadorias comercializadas, menos renda disponível para os serviços, menos  
impostos para o Estado e menos juros para os bancos. Significa um corpo anêmico”.  
Segundo Machado (2021), entre 2004 e 2019 a indústria de transformação sofreu uma  
restrição de 16,19% em escala global. No Brasil, essa involução foi mais expressiva, alcançando  
no mesmo período 35,3%. Comparando com as vinte maiores economias industrializadas do  
mundo, o Brasil apresenta o percentual mais elevada nos últimos 15 anos. O volume de capitais  
da indústria brasileira, com seus 141 bilhões de dólares, é 27 vezes inferior à indústria chinesa  
(3,85 trilhões de dólares) e dez vezes menor que a indústria norte-americana (2,2 trilhões de  
dólares), chegando a ser menor do que o volume de capital mobilizado por uma multinacional  
como Apple ou Toyota (Machado, 2021).  
87  
O problema não para aí. Além de ser acanhada em relação às grandes economias  
mundiais e ao capital das grandes transnacionais, o montante representado por ela no PIB não  
tem nada de brasileiro, pois as maiores empresas que atuam no complexo industrial são  
multinacionais estrangeiras, e muitas dessas empresas estão se deslocando para o continente  
asiático, devido à baixa capacidade de produção tecnológica no Brasil e as profundas  
metamorfoses na gestão e remuneração da força de trabalho. Com isso, o país perde posições  
no campo da indústria de ponta e passa a se configurar como uma economia produtora de  
matéria-prima e de produtos com baixa tecnologia agregada.  
Artur Bispo dos Santos Neto  
O PIB e a intensificação da acumulação de mais-valor na economia brasileira  
Aarticulação dos distintos capitais tal como aparece na superfície da sociedade burguesa  
é reproduzida pelo PIB. A complexidade da processualidade contraditória que perfaz o capital  
social oblitera os vestígios responsáveis pela origem do mais-valor e como ele é compartilhado  
entre os distintos capitalistas, da mesma forma que obnubila o papel dos distintos trabalhos  
assalariados no interior das formas diferenciadas de manifestação do capital.  
Marx (2013) salientava que o valor de uso somente se realiza pela mediação do valor  
no interior do modo de produção capitalista. Para que o trabalhador possa acessar os produtos  
de que necessita para reproduzir sua existência, ele necessita vender sua força de trabalho e  
obter um salário. Para chegar ao estágio do consumo, a mercadoria produzida pelo capital  
industrial deve operar uma série de metamorfoses (capital-monetário, capital-produtivo,  
capital-mercadoria); somente na segunda fase da circulação a mercadoria passa a aparecer como  
portadora de mais-valor.  
O comerciante adquire uma mercadoria que já está “grávida” de mais-valor, para  
usufruir o direito de participar de uma fração do mais-valor segundo o grau de capital adiantado  
no processo de formação do preço de produção. A média da taxa de lucro determinada pelo  
montante dos capitais industrial e comercial envolvidos é distribuída proporcionalmente ao  
volume de capitais adiantados. Ambos os capitalistas podem precisar pagar juros ao banqueiro  
porque operaram com recursos de terceiros e não com recursos próprios; assim também o banco  
pode usar parte desses recursos para pagar impostos ao Estado. Este pode devolver uma parte  
dos impostos pagando os juros da dívida pública contraída. Essa última forma da riqueza possui  
uma natureza diferente do capital produtivo e se inscreve na esfera fictícia, como afirmada  
acima. No entanto, cada setor em particular tanto precisa de trabalhadores para assegurar a  
rotação do capital e o processo de apropriação do mais-valor produzido, como carece do setor  
produtivo de mais-valor para acessar os bens materiais que foram produzidos (Marx, 2017).  
As esferas da circulação e da distribuição dos valores precisam da esfera da produção  
de valor; a esfera da realização do valor não existe sem a esfera da produção do valor (Marx,  
2013; 2014). No entanto, os representantes do capital industrial podem desenvolver as  
atividades do comércio de mercadorias, diferentemente do capital comercial, que inexiste sem  
o capital industrial. O capital bancário, o capital comercial e o Estado precisam que os valores  
produzidos pelo capital industrial fluam cada vez mais para eles. Ele cumpre a função de drenar  
e alimentar todo o sistema, porque subordina o trabalho vivo aos seus imperativos,  
transformando-o num momento de seu processo de reprodução social.  
88  
Libertas, Juiz de Fora, v. 25, n. 1, p. 76-99, jan./jun. 2025. ISSN 1980-8518  
A função mistificadora do Produto Interno Bruto brasileiro e o aumento da taxa de mais-valor  
A intensificação da concorrência dos capitalistas num mesmo setor e nos distintos  
setores produtivos e improdutivos impõe a necessidade de aumentar a acumulação da taxa de  
mais-valor e da taxa de lucro. O que não for consumido pelos capitalistas, mesmo que em  
atividades improdutivas, será consumido pelo Estado na forma de investimento em obras de  
infraestrutura e prestação de serviços à sociedade (Marx, 2017).  
O capital se confronta com o trabalho em dois momentos, primeiro como produtor do  
valor e do mais-valor, depois como consumidor do valor de uso. A venda da força de trabalho  
foi historicamente delimitada pela luta de classes; essa luta foi minimizada pela ofensiva do  
capital contra o trabalho, em que o Estado tem cumprido um papel decisivo na  
desregulamentação dos direitos alcançados historicamente. No Brasil, a flexibilização da  
jornada de trabalho mediante a terceirização, a contrarreforma trabalhista e a lei da terceirização  
objetivadas na última década têm permitido uma ampliação do aumento da jornada de trabalho  
e a redução do valor da força de trabalho.5  
As empresas capitalistas produtivas de mais-valor têm ampliado suas taxas de  
acumulação mediante a ampliação do tempo de trabalho excedente no interior da jornada de  
trabalho de 48 horas semanais e oito horas diárias, em consórcio com o reajuste do salário  
mínimo abaixo da inflação, bem como a redução do direito às férias remuneradas, 13º salário e  
contrato de trabalho formal. Entre 2003 e 2009, em média 40% dos trabalhadores brasileiros  
cumpriram jornadas semanais acima de 44 horas, isto é, superiores à jornada normal de  
89  
5
A contrarreforma trabalhista permitiu a flexibilização da jornada de trabalho, admitindo a pactuação entre  
capitalistas e trabalhadores mediante acordo individual ou coletivo, como se reinasse a liberdade e a igualdade  
entre as classes portadoras de poderes econômicos completamente distintos. Havendo, inclusive, a possibilidade  
de redução ou dispensa dos intervalos, horários e dias de descanso dos trabalhadores e trabalhadoras. A lei da  
terceirização (Lei 13.429/17) permite que os capitalistas possam auferir taxas de lucratividade mais significativas  
mediante a intensificação da exploração da força de trabalho reduzindo seus custos com os encargos sociais e os  
direitos trabalhistas, ampliando suas taxas de produtividade e lucratividade por meio da redução de custos e  
despesas recorrentes com os trabalhadores e trabalhadoras. Os verdadeiros beneficiados pela contrarreforma  
trabalhista e lei da terceirização são os capitalistas, representando uma perda de direitos outorgados pela CLT  
(Consolidação das Leis do Trabalho) e pela Constituição Federal de 1988. Com sua implementação, os capitalistas  
puderam ampliar o processo de exploração desmedida da força de trabalho por meio da constituição do banco de  
horas, da antecipação de férias e feriados, flexibilização das obrigações com a segurança e a saúde do trabalho no  
interior do processo produtivo, redução da contribuição do FGTS etc. A contrarreforma trabalhista possibilitou o  
crescimento da informalidade nas relações de trabalho e o fim de um conjunto de prescrições que fragilizam o  
sistema de proteção social existente no Brasil. Ao contrário do que anunciava, a contrarreforma trabalhista não  
reduziu as taxas de desemprego nem melhorou as condições de vida da classe trabalhadora. Para Passos e Lupatini  
(2020, p. 139): “O que se verifica com a contrarreforma é que a flexibilização das contratações/demissões  
provocou ‘desequilíbrio’ nas relações empregatícias, ao suprimir direitos e, ao mesmo tempo, retirar a  
representatividade sindical do trabalhador. Além disso, com o crescimento do ‘trabalho informal’, cerceou direitos  
relativos à seguridade social, pela ausência de contribuição previdenciária e de regulamentação do vínculo  
empregatício (assinatura de carteira de trabalho). Há de se considerar o efeito político que a facultatividade do  
imposto sindical, descontado em folha, teve no âmbito da organização da classe trabalhadora. Sob o pretexto de  
retirar os ‘privilégiosdos sindicatos trabalhistas, desconsiderou-se todas as lutas e greves que fundaram os direitos  
trabalhistas no Brasil, enfraqueceu-se as entidades representativas, com desdobramentos nas relações de trabalho”.  
Artur Bispo dos Santos Neto  
trabalho. Nas regiões metropolitanas, 25,5% tiveram jornadas semanais de 49 horas ou mais  
(Luce, 2012).  
A média salarial recebida pelos trabalhadores brasileiros está aquém de suprir o volume  
necessário para assegurar as despesas correntes com alimentação, hábitat, educação, saúde,  
vestuário, previdência social etc. A média caiu em todos os segmentos, sobretudo no setor da  
informalidade e dos trabalhadores domésticos. Nesse contexto, inúmeros trabalhadores são  
alijados da possibilidade de usufruir o direito à aposentaria mínima e às condições de moradia  
digna. No entanto, enquanto a média salarial cai em todos os setores, observa-se a elevação  
gradual das jornadas de trabalho e dos processos de acumulação de mais-valor.  
Tabela 1: Composição do capital total no Brasil (percentuais).  
2020  
2012  
2013  
2014  
2015  
2016  
2017  
2018  
2019  
CAPITAL  
CONSTANTE  
CAPITAL  
VARIÁVEL  
MAIS-  
77,61%  
10,82%  
11,57%  
77,78  
%
11,06  
%
80,93  
%
10,63  
%
85,23%  
10,03%  
4,74%  
80,28%  
10,72%  
9,00%  
78,22  
%
10,92%  
76,17  
%
10,38  
%
13,45  
%
77,26%  
10,55%  
12,19%  
77,17%  
9,33%  
11,16%  
8,44%  
10,86%  
13,50%  
VALOR  
Fonte: Ilaese (2021, p. 51).  
Verifica-se a tendência inerente do capital constante se afastar cada vez mais do capital  
variável. O capital variável representa somente 9,33% do capital investido. A taxa de mais-  
valor foi superior a 100% em 2020, uma vez que o mais-valor emana do capital variável e nunca  
do capital constante (77,17%). A taxa de mais-valor alcançou 13,5% do volume do capital total  
que foi investido no processo de produção em 2020, maior percentual na série iniciada em 2012.  
A competição entre capitalistas acentua a ampliação do capital constante perante o  
capital variável. Quanto mais se amplia o capital constante, mais ocorre uma tendência à queda  
da taxa de lucro, porque o lucro é calculado em cima do capital total. Evidentemente, existem  
contratendências que podem obstaculizar seu processo de aceleramento, mas nunca o obstruir  
por completo (Marx, 2017).  
90  
Libertas, Juiz de Fora, v. 25, n. 1, p. 76-99, jan./jun. 2025. ISSN 1980-8518  
A função mistificadora do Produto Interno Bruto brasileiro e o aumento da taxa de mais-valor  
Tabela 2: Composição do capital e da riqueza produzida pelo trabalhador no Brasil.  
2012  
2013  
2014  
2015  
2016  
2017  
2018  
2019  
2020  
TAXA DE  
LUCRO  
13,09  
%
12,56  
9.22%  
4,97%  
9,89%  
12,1  
9
15,54  
%
13,88  
%
15,61  
%
COMPOSIÇÃO  
ORGÂNICA  
DO CAPITAL  
TAXA DE  
583,0  
9%  
576,82  
%
619,17  
%
697,36  
%
585,45  
%
587,3  
8%  
619,79  
%
585,53  
%
687,20  
%
241,0  
6%  
227,73  
%
221,47  
%
199,92  
%
247,80  
%
228,  
58%  
244,05  
%
262,05  
%
284,70  
%
MAIS-VALOR  
TRABALHO  
NÃO PAGO  
EM UMA  
JORNADA DE  
8H  
5:39  
5:33  
5:30  
5:19  
5:41  
5:33  
5:40  
5:47  
5:55  
RIQUEZA  
PRODUZIDA  
POR  
R$  
245.0  
18  
R$  
246.14  
2
R$  
259,76  
1
R$  
268,22  
5
R$  
347.95  
2
R$  
336.  
402  
R$  
357.37  
7
R$  
407.08  
7
R$  
381.25  
6
TRABALHADO  
R
Fonte: Ilaese (2021, p. 52).  
Houve um crescimento exponencial do capital constante, entre 2012 e 2020, que passou  
de 583,09% para 687,20%. A taxa de mais-valor também aumentou e passou de 241,06% para  
284,70% no mesmo período. Já a taxa de lucro obteve um percentual de 13,09% em 2012,  
passando para 15,61% em 2020. A diferença entre a taxa de mais-valor e a taxa de lucro em  
2012 foi de 227,97%, subindo para 269,09% em 2020. Essa diferença cresce porque cresce o  
percentual do capital constante perante o capital que produz mais-valor.  
91  
A intensificação da exploração da força de trabalho pode ser observada tanto na  
ampliação do tempo de trabalho excedente apropriado pelo capitalista, que passou de 5h39 para  
5h55 entre 2012 e 2020, quanto no aumento da produção da riqueza produzida por cada  
trabalhador individualmente, que passou de R$ 245.018,00 em 2012 para R$ 381.256,00 por  
trabalhador contratado em 2020.  
É importante destacar que a crise econômica brasileira, acentuada entre 2015-2016,  
representou um momento de inflexão para ampliação da extensão da jornada de trabalho, visto  
que algumas tendências foram interrompidas e outras acentuadas com a contrarreforma  
trabalhista. E entre 2017-2019, houve uma generalização da ampliação da média de horas  
trabalhadas semanalmente.  
Merece destaque o setor privado, em que os trabalhadores com carteira de trabalho  
assinada, “tiveram a jornada semanal média 1,3% maior no pós-reforma”. No setor público,  
apesar de se inscrever um congelamento da jornada, a ampliação do trabalho se sucedeu pela  
mediação das pressões “sobre os servidores para atingir metas, em um contexto de políticas de  
austeridade e de ameaça de direitos ajudam a explicar o aumento da jornada média  
Artur Bispo dos Santos Neto  
efetivamente” (Krein et al., 2021, p. 266). Na fase posterior a contrarreforma trabalhista, é  
possível afirmar a existência de uma tendência de crescimento da jornada trabalhada, “o que  
aponta para uma não distribuição em favor dos trabalhadores do avanço da produtividade em  
setores com mais intensidade tecnológica” (Krein et al., 2021, p. 267).  
Tabela 3: Maiores taxas de apropriação de mais-valor por empresa no Brasil.  
EMPRESA  
SALOBO  
COMGÁS  
EXPLORAÇÃO  
2020  
2019  
7:33  
201  
8
7:24  
2017  
7:16  
2016  
6:47  
SETOR  
1
2.232%  
7:39  
Extraꢀva  
Mineral  
Energia  
2
3
2.008%  
1..910%  
7:37  
7:36  
7:31  
7:37  
7:20  
7:34  
7:23  
7:31  
7:28  
7:23  
ÁGUAS  
Extraꢀva Mineral  
GUARIROBA  
4
5
VALE  
1.802%  
1.735%  
7:34  
7:33  
7:28  
6:59  
7:09  
6:12  
7:08  
5:54  
6:45  
4:26  
Extraꢀva Mineral  
Energia  
MINERAÇÃO  
USIMINAS  
AES  
TIETÊ  
CSN  
MINERAÇÃO  
EQUATORIAL  
PARÁ  
6
7
8
1.503%  
1.544%  
1.335%  
7:30  
7:30  
7:26  
6:48  
7:24  
7:21  
6:46  
6:38  
7:14  
6:49  
6:54  
7:18  
7:04  
6:20  
7:08  
Extraꢀva  
Mineral  
Energia  
Energia  
9
CEG  
1.272%  
1.245%  
7:25  
7:24  
7:23  
7:16  
7:14  
7:14  
7:14  
7:24  
7:15  
7:21  
Infraestrutura  
Serviço Saúde  
10  
CEG  
Fonte: Ilaese (2021, p. 28, adaptação nossa).  
Em pesquisa realizada pelo Ilaese (2021, p. 28), em 2020, a empresa Salobo, pertencente  
92  
à Vale S.A., comparece como a campeã nacional na apropriação de tempo de trabalho  
excedente: os trabalhadores entregam gratuitamente sete horas e 39 minutos aos capitalistas, e  
trabalham para si somente 21 minutos de sua jornada de trabalho diária de oito horas, ou seja,  
ela exerce uma taxa de exploração de 2.232%. Essa empresa se apropriava, em 2014, de cinco  
horas e 54 minutos, obtendo um crescimento exponencial de mais-valor na ordem de uma hora  
e 45 minutos.  
A Salobo é seguida pela Comgás, que se apropria de sete horas e 37 minutos do trabalho  
gratuito de seus operários, enquanto estes trabalham para si apenas 33 minutos, ou seja, uma  
taxa de exploração de 2.008%. Em 2014, esta empresa se apropriava de sete horas e 21 minutos.  
Na listagem das 250 empresas investigadas pelo Ilaese, a Altona comparece em último lugar  
com uma taxa de mais-valor apropriado de 86%, ou seja, numa jornada de oito horas, os  
trabalhadores entregam para os capitalistas três horas e 42 minutos, e trabalham para reproduzir  
sua existência pelo tempo de quatro horas e 18 minutos.  
No setor bancário, o grau de exploração da força de trabalho dos bancários varia entre  
820,67% e 134,74%. O BNDES ocupa o ranking; seus trabalhadores entregam para o sistema  
financeiro sete horas e sete minutos diariamente, e trabalham para si somente 53 minutos numa  
Libertas, Juiz de Fora, v. 25, n. 1, p. 76-99, jan./jun. 2025. ISSN 1980-8518  
A função mistificadora do Produto Interno Bruto brasileiro e o aumento da taxa de mais-valor  
jornada de oito horas. Já na Caixa Econômica, eles entregam gratuitamente para o sistema  
financeiro quatro horas e 35 minutos, e trabalham para reproduzir sua existência material  
durante três horas e 25 minutos (Ilaese, 2021, p. 34).  
A apropriação expressiva de tempo de trabalho excedente se converte em aumento  
exponencial de riqueza. Assim, somente um trabalhador da empresa Smiles produz o montante  
de 4,6 milhões anualmente para seus proprietários.  
Tabela 4: Riqueza média produzida por trabalhador em 10 empresas.  
EMPRESA  
SMILES  
2020  
2019  
2018  
2017  
2016  
2015  
SETOR  
Serviços  
Bancário  
Energia  
1
2
3
4
5
6
7
8
9
4.658.83  
8.259,97  
9.168  
4.055.8  
55  
2.588.60  
5
7.537.2  
67  
4.996.53  
2
1.803.8  
54  
1.909.68  
7
2.644.4  
09  
807.57  
0
2.877.57  
6
2.153.77  
5
6.117.00  
0
5.582.939  
3
9
.082  
899.06  
9
980.2  
35  
2.668.  
706  
2.682.  
362  
1.283  
.084  
2.103.  
056  
1.742.  
279  
995.2  
41  
1.680  
.981  
BNDES  
4.085.65  
3
3.719,024  
4.157.94  
4
CESP  
2.837.04  
786.863  
2.117.857  
1.756.936  
2.229.586  
8
PETROBRÁS  
ITAIPU  
2.888,68  
2.890,12  
2.028.73  
Extraꢀva  
Mineral  
Energia  
3
2.583.99  
1
2.567,09  
8
2.4431,1  
30  
2.100.41  
8
4
6
2.519.1  
74  
691.35  
9
2.398.56  
0
1.455.00  
8
2.659.85  
7
1.562.22  
7
2.583.22  
3
1.722.66  
4
1.096.682  
BOVES  
PA  
1.014.71  
4
2.245.217  
Serviços  
Energia  
Energia  
COMGÁS  
ELETRONOR  
TE  
1.069.989  
428.618  
857.647  
VALE  
93  
1.962,909  
740.090  
442.490  
Extraꢀva  
Mineral  
Energia  
1
0
FURNAS  
1.878.70  
5
2.285.47  
1
1662.4  
22  
4.320.1  
06  
Fonte: Ilaese (2021, p. 35).  
A segunda posição é ocupada pelo BNDES, fazendo jus ao grau de exploração da força  
de trabalho – os trabalhadores entregam para o sistema financeiro sete horas e sete minutos  
diariamente –, sendo seguida pela empresa do setor de energia, a Cesp, que abocanha  
anualmente de cada um de seus trabalhadores o montante de 3,7 milhões. Em quarto lugar  
aparece a Petrobrás: cada trabalhador seu propicia um mais-valor de 2,88 milhões anualmente  
para os acionistas da empresa e para o ente estatal.  
A jornada no setor bancário passou 6 horas para 8 horas desde a década de 1990. A  
estratégia dos bancos foi de transformar grande parte dos trabalhadores (mais de 50% da  
categoria) em comissionados. Este mecanismo permitiu a completa inserção dos trabalhadores  
na nova jornada de trabalho em benefício dos banqueiros. O aumento da jornada de 36h36min  
para 42h00 semanais alcançou praticamente todos os setores e subsetores de processos  
Artur Bispo dos Santos Neto  
contínuos. Segundo Krein et al. (2018, p. 115) “o turno ininterrupto de revezamento perde a  
sua natureza e passa a ser jornada normal de trabalho”.  
As empresas de energia elétrica são hegemônicas entre as empresas que mais se  
apropriam da riqueza pelo trabalho vivo e das espoliações. Isso denota o quão proveitosa foi a  
privatização do setor enérgico (Eletrobrás) e das mineradoras (Salobo–Vale, CSN etc.) para os  
capitalistas.  
O salário dos trabalhadores despenca em todos os setores da economia. Na Petrobrás,  
por exemplo, passou de US$ 98,5 mil em 2011 para US$ 61,9 mil em 2020, ou seja, teve uma  
queda de 67% na década passada. Os salários dos trabalhadores da Petrobrás representam  
somente 5,66% da arrecadação geral da empresa; assim, 94,4% do faturamento da empresa vai  
parar nas mãos dos acionistas e das distintas personificações do capital.  
Apesar da crise internacional envolvendo as grandes petrolíferas transnacionais, a  
Petrobrás obteve crescimento absoluto de sua arrecadação em 7,42% entre 2012 e 2019, sendo  
a variação de crescimento de seu lucro exclusivamente decorrente da produção da ordem de  
81,88% (Machado, 2020, p. 18), a despeito das denúncias da Lava Jato. Isso não poderia ser  
obtido sem o aprofundamento da exploração de sua classe trabalhadora, em que prevalece a  
contratação da força de trabalho mediante os processos de terceirização e os termos  
estabelecidos pela contrarreforma trabalhista. O número de trabalhadores diretamente  
contratados sofreu uma restrição de 32%, passando de 85 mil para 57 mil trabalhadores. No  
exterior, a redução foi de 85% no número de trabalhadores.  
94  
A política de contratação de trabalhadores terceirizados, em consonância com a  
demissão imposta aos trabalhadores diretos, permitiu que a empresa pudesse se apropriar da  
força de trabalho de cada trabalhador no montante de R$ 2,658 milhões em 2019, quando se  
apropriava do montante de R$ 1,131 milhão em 2013, ou seja, obteve um crescimento de 134%  
na média de produtividade de cada trabalhador (Machado, 2020, p. 28). Mesmo assim os preços  
dos combustíveis e do gás de cozinha não pararam de subir.  
A política de privatização da empresa tem resultado não somente na diminuição e no  
rebaixamento dos salários dos trabalhadores diretos, mas também dos trabalhadores contratados  
(Petrobrás Controladora, Sociedades Controladas, Empresas Controladas), que passaram de  
360 mil em 2013 para 109 mil em 2019 (Machado, 2020). Uma queda de mais de 300%, ou  
seja, quase o triplo dos trabalhadores diretos da Petrobras demitidos. E a transferência de muitas  
bases para o setor privado tem concentrado a extração de petróleo (66%) na região do pré-sal.  
Os distintos setores capitalistas, sejam produtivos ou improdutivos de mais-valor, estão  
articulados na perspectiva de acentuar o ritmo do trabalho e a apropriação de mais-valor. O  
Libertas, Juiz de Fora, v. 25, n. 1, p. 76-99, jan./jun. 2025. ISSN 1980-8518  
A função mistificadora do Produto Interno Bruto brasileiro e o aumento da taxa de mais-valor  
processo de intensificação pode ser objetivado recorrendo aos empreendimentos do banco de  
horas, do contrato parcial, do trabalho aos domingos, da compensação individual da jornada e  
do aumento da jornada dos trabalhos nos turnos de revezamento6. Enquanto na linha de  
montagem da empresa de veículos a intensificação do ritmo de trabalho se manifesta na  
aceleração da esteira de trabalho, numa empresa de serviços sua aceleração pode se manifestar  
no acompanhamento e controle das operações realizadas por cada trabalhador individualmente.  
Já num trabalho do setor têxtil é controlado pela quantidade de peças que se produz num  
determinado tempo.  
Tabela 5: Média salarial e riqueza produzida por cada trabalhador (por subsetor).  
SUBSETOR  
REMUNERAÇÃO POR  
TRABALHADOR (reais)  
RIQUEZA PRODUZIDA  
POR TRABALHADOR  
(reais)  
DIFERENÇA PARA O  
CAPITALISTA OU  
MAIS-VALOR (em  
reais)  
1
2
3
4
5
6
TRANSPORTE  
SERVIÇOS GERAIS  
TEXTIL  
99.284,00  
55.804,00  
42.257,00  
44.032,00  
104.303,00  
94.886,00  
146.688,00  
125.741,00  
115.269,00  
127.013,00  
207.962,00  
213.460,00  
47.404,00  
69.937,00  
73.012,00  
SAÚDE  
82.981,00  
AUTOINDÚSTRIA  
INDÚSTRIA DIGITAL  
103.659,00  
118.574,00  
7
8
9
ELETROELETRÔNICO  
VAREJO  
70.153,00  
43.132,00  
123.395,00  
200.813,00  
197.631,00  
285.502,00  
130.049,00  
154.499,00  
162.107,00  
SIDERÚRGICA E  
METALÚRGICA  
CONSTRUÇÃO  
AGROPECUÁRIA  
CONSUMO GERAIS  
INFRAESTRUTURA  
BENS DE CAPITAL  
FARMACÊUTICO  
95  
10  
11  
12  
13  
14  
15  
52.912,00  
37.750,00  
81.630,00  
150.310,00  
78.764,00  
94.240,00  
218.920,00  
211.413,00  
282.700,00  
450.762,00  
417.414,00  
434.745,00  
166.008,00  
173.663,00  
201.070,00  
300.452,00  
338.650,00  
340.505,00  
16  
17  
18  
19  
20  
BANCÁRIO  
221.670,00  
105.484,00  
98.980,00  
138.216,00  
140.599,00  
584.267,00  
479.987,00  
641.350,00  
703.450,00  
803.062,00  
362.597,00  
374.503,00  
542.370,00  
565.234,00  
662.463,00  
PAPEL E CELULOSE  
TELECOMUNICAÇÕES  
ENERGIA  
QUÍMICA E  
PETROQUÍMICA  
21  
EXTRATIVO MINERAL  
243.516,00  
2.234.513,00  
1.990.997,00  
Fonte: Ilaese (2021, p. 57-58, adaptação nossa).  
A mecanização do trabalho no campo tem colaborado para diminuir o tempo da  
produção, adiantando o processo de distribuição do produto. E como a maximização da taxa de  
6
Segundo Alves (2020, p. 11): “A reforma trabalhista teve expressivo impacto nas negociações coletivas, tanto  
pela permissão da flexibilização da jornada, em período inferior ao limite legal, como na alteração da natureza do  
pagamento da supressão do intervalo intrajornada. Ao estabelecer que o negociado prevalece sobre o legislado,  
que a duração do intervalo intrajornada não possui natureza de norma de saúde, higiene e segurança do trabalho,  
para fins do disposto no artigo 611-A da CLT, permite que o empregador flexibilize o intervalo para patamar  
inferior ao estabelecido em Lei”.  
Artur Bispo dos Santos Neto  
mais-valor nem sempre é seguida pela ampliação da taxa de lucro, pois opera com variáveis  
distintas. Com isso, aprofundam-se os processos de intensificação da exploração da força de  
trabalho7, o que resulta na diminuição do capital variável perante o capital constante e na  
redução expressiva dos salários dos trabalhadores, bem como na elevação da taxa de  
desemprego tanto no campo quanto na cidade.  
As “inovações mecânicas” na indústria extrativista e nas mineradoras servem à  
intensidade da produção do mais-valor e do ritmo produtivo na jornada de trabalho de cada  
trabalhador em particular, fazendo com que 16 dos 21 subsetores da economia brasileira  
alcancem massas de mais-valor anualmente acima de R$ 100 mil. Entretanto, nenhum outro  
subsetor conseguiu alcançar anualmente um volume tão elevado de extração de mais-valor  
como o extrativista mineral, que obteve aproximadamente R$ 2,2 milhões por cada trabalhador  
explorado.  
A maioria desses subsetores (extrativo mineral, agropecuário, químico e petroquímico,  
papel e celulose etc.) pauta suas elevadas taxas de acumulação de mais-valor pelo consórcio  
estabelecido com o desmatamento e o trabalho análogo à escravidão. As mineradoras e o  
subsetor agropecuário têm atuado em parceria com os grileiros de terras para devastar o cerrado  
e as florestas da “Região Amazônica”, adentrando especialmente em terras públicas e devolutas.  
Pela mediação das expropriações, o itinerário é aberto para os desmatamentos e a expansão  
desmedida do agronegócio.  
96  
Considerações finais  
No decurso deste texto se sublinhou que a crise atual do capital se distingue das crises  
precedentes não somente pelo seu tamanho e durabilidade, mas por sua natureza estrutural. Não  
se trata simplesmente de mais uma crise periódica, pois transcende todas as formas pretéritas e  
não tem como ser superada pela mera intervenção estatal. Os ajustes convencionais têm sido  
adotados constantemente pelo aparelho estatal da burguesia; entretanto, eles são incapazes de  
promover resultados duradouros.  
A crise mundial reverbera na economia brasileira e serve de premissa fundamental para  
a intensificação dos processos de exploração da classe trabalhadora nos distintos setores em  
7
No Sindicato dos Metalúrgicos de São Paulo, até setembro de 2019, “ocorreram cinco acordos coletivos que  
traziam nas suas cláusulas temas ligados à reforma, entre eles, destacam-se os relativos ao uso do tempo de  
trabalho: criação da jornada 6x3 (seis dias trabalhados por três de folga), jornada variável, escala especial de  
trabalho, permissão de pequenos ajustes nos horários de entrada e saída dos trabalhadores de acordo com a  
demanda da produção, e flexibilização da jornada de trabalho. Os outros temas não apresentam a mesma  
resolutividade” (Krein et al., 2021, p. 272).  
Libertas, Juiz de Fora, v. 25, n. 1, p. 76-99, jan./jun. 2025. ISSN 1980-8518  
A função mistificadora do Produto Interno Bruto brasileiro e o aumento da taxa de mais-valor  
benefício das empresas transnacionais e dos oligopólios. Para salvaguardar os interesses dessas  
empresas, os governos reconfiguraram o mercado de trabalho (contrarreforma trabalhista,  
contrarreforma da previdência etc.) na perspectiva de ampliar as taxas de acumulação de mais-  
valor relativo e mais-valor absoluto.  
O rebaixamento dos custos do valor do “fator trabalho”, possibilitado pelas  
contrarreformas sociais e pelas privatizações, desempenhou função fundamental para elevação  
do mais-valor. Além disso, nota-se que as empresas transnacionais brasileiras e estrangeiras  
intensificaram o processo de apropriação do tempo de trabalho excedente (mais-valor)  
aprofundando seus investimentos no capital constante em detrimento do capital variável. A  
competitividade intercapitalista, imposta pela nova mundialização, revela que os setores com  
mais elevada inserção de capital constante mais investimento em meios de produção, ciência  
e tecnologia abocanham fatias maiores da taxa geral do mais-valor produzido.  
Apesar de crescer desmesuradamente o desiderato de captura do mais-valor, os  
capitalistas continuam reclamando do declínio da taxa de lucro e da queda do PIB; no decorrer  
do texto buscou-se apontar os limites das análises econômicas assentadas na expansão ou  
declínio do Produto Interno Bruto bem como a diferença substancial existente entre taxa de  
lucro e taxa de mais-valor no movimento efetivo da economia brasileira. Além disso, como os  
múltiplos mecanismos contrariantes da crise sempre rebatem sobre os trabalhadores,  
implicando no rebaixamento das suas condições materiais de existência. Por isso que a luta  
contra a escala 6x1 pode representar uma interceptação do processo crescente de perdas que a  
classe trabalhadora tem sofrido com as múltiplas contrarreformas promulgadas e aumento  
incessante das escalas de trabalho.  
97  
Os dados apresentados são fortuitos no sentido de apontar que é possível reduzir  
significativamente a jornada de trabalho sem que isso implique numa alteração substancial da  
estrutura da produção capitalista. No entanto, a eliminação das taxas de mais-valor e a  
superação completa dos índices de desemprego é incompatível com a lógica do capital. Isso  
implica que a efetiva superação da exploração da força de trabalho somente pode ser alcançada  
mediante a reorganização da produção com base no trabalho associado e no tempo disponível  
da sociedade. É necessário ir para além do capital para superar as taxas colossais de apropriação  
do tempo de trabalho excedente direcionadas ao atendimento das demandas do mercado e não  
da humanidade.  
Artur Bispo dos Santos Neto  
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Escravidão e construção do Estado Nacional:  
implicações sobre a generalização do trabalho  
assalariado no Brasil1  
Slavery and the construction of the nation-state: implications for the  
generalization of wage labor in Brazil  
Alcione Ferreira da Silva*  
Resumo: A construção dos Estados Nacionais  
tem sido foco de análises ao longo da  
modernidade. No âmago desse movimento, há  
grandes contribuições sobre a escravidão  
colonial, que nos auxiliam na compreensão de  
seus impactos sobre o referido processo. Frente  
a essas reflexões, objetivamos discutir a relação  
entre a escravidão da população de origem e  
ascendência africana e a construção do Estado  
Nacional Brasileiro, enfocando os impactos  
dessa relação sobre a racialização do processo  
de emergência do mercado de trabalho  
assalariado. Metodologicamente, realizamos  
pesquisa bibliográfica, com abordagem  
qualitativa, em consonância com o método  
materialista histórico-dialético. A partir desse  
percurso, inferimos, enquanto aproximações  
conclusivas, que a escravidão foi um elemento  
essencial na estruturação e no modus operandi  
do Estado Nacional brasileiro, marcando a  
configuração da generalização do trabalho  
assalariado no Brasil.  
Abstract: The construction of nation-states has  
been the focus of analyses throughout  
modernity. At the core of this movement, there  
are significant contributions regarding colonial  
slavery that help us understand its impacts on  
this process. In light of these reflections, our  
objective is to discuss the relationship between  
the enslavement of people of African origin and  
descent and the construction of the Brazilian  
nation-state, focusing on the impacts of this  
relationship on the racialization of the  
emergence of the wage labor market.  
Methodologically, we conducted bibliographic  
research using a qualitative approach, aligned  
with the historical-dialectical materialist  
method. Based on this process, we infer, as  
preliminary conclusions, that slavery was an  
essential element in structuring the Brazilian  
nation-state and shaped the configuration of the  
generalization of wage labor in Brazil.  
Palavras-chaves:  
Estado  
Nacional;  
Keywords: Nation-state; Slavery; Brazil; Wage  
Escravidão; Brasil; Trabalho assalariado.  
labor.  
1
O presente trabalho foi realizado com apoio da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior  
– Brasil (CAPES) – Código de Financiamento 001.  
* Universidade Federal de Pernambuco. E-mail: alcionesf36@gmail.com  
DOI: 10.34019/1980-8518.2025.v25.47692  
Esta obra está licenciada sob os termos  
Recebido em: 08/03/2025  
Aprovado em: 18/06/2025  
Escravidão e construção do Estado Nacional: implicações sobre a generalização do trabalho  
assalariado no Brasil  
Introdução  
Na teoria clássica do Estado, no tocante à parte legatária da concepção burguesa de  
mundo, a relação entre a constituição dos Estados nacionais modernos e a empresa colonial –  
possibilitada pela escravidão, enquanto elemento gerador de acumulação de capital não são  
aspectos tematizados, dado o ponto de vista de classe que tal perspectiva encerra. Todavia,  
considerando-se a importância da escravidão para a história do capitalismo, é importante que  
ela seja analisada no processo de desvelamento das condições de emersão do Estado, que  
corresponde, historicamente, ao referido modo de produção.  
A imbricação entre escravidão e Estado-Nação, na Modernidade, toma relevo ainda  
mais nítido quando pensamos nas particularidades nacionais da realidade brasileira, que  
ganham contornos em relação direta com a consolidação dos Estados nas metrópoles, visto que  
a emersão do Estado brasileiro foi profundamente marcada pelas relações legatárias do  
colonialismo, o que reverberou, notadamente, na relação entre Estado e formação do mercado  
de trabalho, que se deu sob bases racializadas.  
O debate sobre essa temática se justifica, por se inserir no movimento de aproximação  
sucessiva, que o Serviço Social vem empreendendo, no desvelamento do impacto da questão  
racial na conformação do modo de produção capitalista e, particularmente, na realidade  
brasileira.  
101  
Nesse sentido, considerando o acúmulo teórico crítico da profissão nas últimas décadas,  
temos como objetivo geral analisar os desdobramentos da escravidão da população de origem  
e ascendência africana sobre a construção do Estado Nacional brasileiro no período imperial,  
demarcando a importância desse processo sobre a transição do trabalho escravo para o  
assalariado. E, como objetivos específicos: apreender a relação entre a escravidão e a  
consolidação dos Estados modernos; debater as implicações do modo de produção escravista  
colonial na realidade brasileira, bem como compreender a ação do Estado brasileiro na transição  
do trabalho escravo para o assalariado.  
Acerca do último objetivo, colocamos em relevo que, dada a perspectiva de totalidade,  
sabemos que a ação do Estado no Brasil sobre a transição do trabalho escravo para o assalariado  
é mediada por múltiplas determinações, que se movimentam a partir de diversos complexos  
sociais, a exemplo do direito à educação e à cultura.  
Nosso percurso metodológico é demarcado pela pesquisa bibliográfica, por ela  
possibilitar a produção de explicações acerca de uma temática específica, através de  
levantamento e análise de materiais publicados sobre o tema em foco (Martins, 2001). Frente  
aos nossos objetivos, adotamos a abordagem qualitativa, que, conforme Minayo (2001), visa à  
Alcione Ferreira da Silva  
explicação da realidade social, buscando compreender o universo dos significados e dos  
fenômenos que não podem ser enquadrados em variáveis numéricas. Ademais, recorremos à  
metodologia de pesquisa explicativa, que, de acordo com Gil (2007), volta-se à explicitação  
dos condicionantes sociais, relacionados à ocorrência de determinados fenômenos sociais.  
Com base nesse percurso metodológico e sob a perspectiva do método materialista  
histórico dialético que nos permite a construção do concreto pensado, a partir de  
aproximações com o concreto real, que é “uma síntese de múltiplas determinações” (Marx,  
2011, p. 77) nos voltamos à seleção de algumas determinantes sociais, a exemplo da  
colonização, da transição do trabalho assalariado para o livre e das relações externas de  
dependência, em face dos nossos objetivos, com a finalidade de desvelar a relação entre  
escravidão e fundação do Estado brasileiro no período imperial.  
Nesse momento, vale dizer que organizamos este texto em quatro momentos, intitulados  
da seguinte forma: Escravidão e constituição do Estado Moderno; Escravidão em números e  
consequências: impactos sobre as particularidades nacionais; Estado Nacional: entre a urgência  
do trabalho assalariado e a força longeva da escravidão; Estado, direito e sociedade: trabalho  
assalariado para quem?  
Seguindo à construção desse debate, apontamos a importância da compreensão acerca  
da escravidão para a análise da formação do Estado Nacional brasileiro, que se dá no momento  
de transição para as relações de trabalho assalariado, sendo, todavia, marcado profundamente  
pela longeva presença do escravismo colonial.  
102  
Escravidão e constituição do Estado Moderno  
Pensar a constituição do Estado Nacional brasileiro, no tocante a sua relação com a  
escravização de povos de nações africanas e seus descendentes, é um movimento que requer,  
na perspectiva da totalidade, apontar a relação desse fenômeno com a constituição dos Estados  
Modernos do ocidente europeu. Compreender essa relação é importante, pois, conforme  
Fernandes (2020, p. 37-38), “não tivemos todo o passado da Europa, mas reproduzimos de  
forma peculiar o seu passado recente, pois este era parte do próprio processo de implantação e  
desenvolvimento da civilização ocidental moderna no Brasil”.  
Nesse sentido, embora não se pretenda explicar a realidade brasileira unicamente pelo  
passado europeu dada a posição de dependência do Estado brasileiro, em sua constituição e  
consolidação, em relação aos Estados europeus pensar a relação entre os dois passados, o  
brasileiro e o europeu, é importante, pois essa relação se demonstra intrínseca quando o tema  
em destaque é a importância da escravização na formação dos Estados Nacionais. Nesse ponto,  
Libertas, Juiz de Fora, v. 25, n. 1, p. 100-114, jan./jun. 2025. ISSN 1980-8518  
Escravidão e construção do Estado Nacional: implicações sobre a generalização do trabalho  
assalariado no Brasil  
pensar a formação do nosso Estado, em relação aos Estados euro-ocidentais, é considerar nossa  
realidade como “corpo social, um sujeito social em atividade em uma totalidade maior” (Marx,  
2011, p. 58).  
Sob essa perspectiva, ao considerarmos a escravidão moderna como um elemento  
fundamental para a consolidação dos Estados Nacionais, entendemos, na esteira de Mascaro  
(2018), que esse é um fenômeno da modernidade e das relações sociais capitalistas. Desse  
modo, compreender os condicionantes necessários à consolidação do Estado Moderno requer  
pensar nas condições de consolidação do próprio capitalismo.  
Nesse ponto, se estamos de acordo com Mascaro (2018) sobre a delimitação temporal  
de emersão do Estado, enquanto um fenômeno próprio da modernidade, também concordamos  
com Engels (2020) quanto à premissa de que as opressões não podem ser desprezadas como  
elementos de potência para a constituição do Estado Nacional. Ao defender, em A origem da  
família, do Estado e da propriedade privada, que a degradação da mulher e a fundação da  
autocracia dos homens, cuja família monogâmica assumiu uma de suas manifestações, são  
elementos fundamentais na constituição do Estado, Engels aponta que as opressões não são  
elementos secundários para a compreensão dos modos de produção e suas instituições, ao  
destacar, em sua obra, o Estado e a família.  
Nesse âmago, sob inspiração dos pensamentos empreendidos pelos supracitados  
autores, defendemos que a questão racial é um elemento necessário à compreensão do Estado  
Moderno em sua materialidade histórica, em face da racialização das relações sociais terem  
sido um elemento significativo para a constituição do próprio modo de produção capitalista,  
visto que  
103  
A descoberta das terras do ouro e da prata, na América, o extermínio, a  
escravização e o enfurnamento da população nativa nas minas, o começo da  
conquista e pilhagem das Índias Orientais, a transformação da África em um  
cercado para a caça comercial às peles negras marca a aurora da era de  
produção capitalista (Marx, 1984, p. 370).  
Marx (1984), portanto, aponta dois elementos indissociáveis e necessários ao florescer  
do capital: a colonização e a escravidão. Acerca dessa relação, Robinson (2023) demonstra que  
a Europa Ocidental, no século que antecedeu as grandes navegações, estava colapsada, de modo  
que “não prosperar era o destino da burguesia nascente. De fato, por um momento histórico, é  
possível dizer que inclusive o posterior desenvolvimento do capitalismo podia ter sido  
questionado” (Robinson, 2023, p. 98).  
Essa conclusão não parece exagerada quando observamos o quadro geral do Ocidente  
europeu na aurora da Idade Moderna:  
Alcione Ferreira da Silva  
As fomes periódicas que assolaram a Europa nesse período, a peste negra de  
meados do século XIV e anos subsequentes; a Guerra dos Cem Anos (1337-  
1453); e as rebeliões de camponeses e artesãos. Juntos eles tiveram um  
impacto devastador na Europa Ocidental e no Mediterrâneo – dizimando por  
igual as populações das cidades e do campo, interrompendo o comércio [...] –  
arrasando, por assim dizer, a maior parte das regiões mais desenvolvidas [...].  
Esse declínio econômico geral na Europa dos Séculos XIV e XV, foi marcada  
de forma decisiva e visível por tumultos sociais muito mais profundos do que  
as guerras territoriais [...] os elementos da civilização europeia, ainda  
figurativamente embrionária, parecia estar desmoronando (Robinson, 2023, p.  
99-100).  
Frente a esse contexto, de acordo com Postlethwayt (1925 apud Williams, 2012, p. 89),  
o tráfico de escravos foi “o primeiro princípio e a fundação de todo o resto, a mola principal da  
máquina que coloca todas as rodas em movimento”, dada a sua importância no comércio  
triangular, no qual  
[...] a Inglaterra – bem como a França e a América Colonial – fornecia os  
navios e os produtos de exportação; a África, a mercadoria humana; as  
fazendas, as matérias primas coloniais. O navio negreiro saía da metrópole  
com uma carga de artigos manufaturados. Estes eram trocados com lucro por  
negros na costa da África, os quais eram vendidos nas fazendas com mais  
lucro, em troca de uma carga de produtos coloniais que seriam levados de  
volta ao país de partida [...] os lucros obtidos forneceram um dos principais  
fluxos de acumulação do capital que, na Inglaterra, financiou a Revolução  
Industrial (Williams, 2012, p. 90).  
104  
Fica patente que a escravidão foi um elemento fundamental para o estabelecimento das  
condições objetivas, assim como subjetivas, necessárias à consolidação dos Estados Nacionais  
euro-ocidentais e da sua indissociável forma de produção e reprodução das relações sociais: o  
capitalismo.  
Se a escravidão foi, conforme a perspectiva adotada, uma importante força material para  
a consolidação do Estado Moderno, dada a imersão do Brasil no colonialismo e a longevidade  
da escravidão aqui, cabe apresentarmos a questão: qual é o impacto da escravização da  
população negra para o estabelecimento e consolidação do Estado-Nação no Brasil?  
Escravidão em números e consequências: impactos sobre as particularidades  
nacionais  
Debater a relação entre a formação do Estado brasileiro e os Estados modernos do  
ocidente europeu requer pensar a formação sócio-histórica nacional, em um primeiro momento,  
em relação direta com nossa metrópole face à invasão colonial. Sobre essa relação, Gorender  
(2016), em diálogo com Marx sobre as possibilidades de formação social após “conquistas”,  
retoma três possibilidades:  
Libertas, Juiz de Fora, v. 25, n. 1, p. 100-114, jan./jun. 2025. ISSN 1980-8518  
Escravidão e construção do Estado Nacional: implicações sobre a generalização do trabalho  
assalariado no Brasil  
O povo conquistador submete o povo conquistado ao seu próprio modo de  
produção [...]; ou ele deixa subsistir o antigo modo de produção e se satisfaz  
com um tributo [...]; ou então se produz uma ação recíproca que dá nascimento  
a uma nova forma, a uma síntese (Marx, 1971 apud Gorender, 2016, p. 88-  
89).  
Todavia, Gorender (2016) afirma que nas relações coloniais, desenvolvidas no território  
brasileiro, então América portuguesa, nenhuma das três possibilidades pode ser verificada, visto  
que o feudalismo não se transferiu; as organizações sociais dos povos indígenas não puderam  
subsistir e nem o escravismo que seguiu era uma síntese estabelecida a partir dos modos de  
produção do colonizador e dos povos originários. O escravismo colonial “emergiu como um  
novo modo de produção de características novas, antes desconhecidas na história humana”  
(Gorender, 2016, p. 88).  
Na América portuguesa, a escravidão moderna se particulariza por dois aspectos:  
volume do tráfico e longevidade das relações escravocratas. Acerca do primeiro, observemos a  
imagem 1, que assinala o número de pessoas escravizadas em diferentes territórios:  
Imagem 1: Macrorregiões onde foram desembarcados escravos entre os séculos XVI e XIX  
105  
Fonte: Figueiredo (2024).  
A imagem, que revela que o Brasil recebeu mais que o dobro de pessoas escravizadas  
em relação ao segundo lugar o Caribe Britânico entre os séculos XVI e XIX, sistematiza  
números referentes à escravidão moderna a partir de dados levantados por Alencastro (2018).  
O referido autor afirma que, do início do tráfico negreiro até a Lei Eusébio de Queiroz,  
marcando a proibição mais efetiva ao tráfico, em 1850, o Brasil foi o país que mais importou  
escravizados africanos em todo o continente americano, permanecendo ainda como única nação  
Alcione Ferreira da Silva  
que, após a Independência, seguiu praticando, de forma massiva, o tráfico negreiro, de modo  
que, para cá, foram realizadas “cerca de 36 mil viagens, correspondendo a 70% do volume  
estimado de viagens negreiras para as Américas” (Alencastro, 2018, n.p.).  
Acerca do comércio de pessoas escravizadas, o complexo do Cais do Valongo2 é digno  
de nota:  
O Cais do Valongo, construído em 1811 em substituição à antiga ponte de  
madeira que foi usada inicialmente para desembarque dos escravos desde  
1774. O Valongo funcionou como uma extensa área de receptação exclusiva  
dos escravos africanos vendidos na cidade do Rio, capital da colônia e maior  
mercado escravista do país. Cerca de 1 milhão de escravos circularam por ali  
nesses quase cinquenta anos, a maioria remetida para as minas de ouro e as  
fazendas de café do Vale do Paraíba (Soares, 2018, n.p.).  
A quantidade de escravizados e a duração da escravidão demarca uma particularidade  
que demonstra o impacto do espectro colonial na nossa formação, que foi delineada através da  
tentativa de expropriação completa da humanidade dos povos africanos, em um processo de  
sequestro, seguido de escravização possibilitada pela violência despudorada do  
empreendimento colonizador, que foi categoricamente denunciada por Césaire (2020, p. 24-  
27):  
[...] olho e vejo em todos os lugares onde há, cara a cara, colonizadores e  
colonizados, a força, a brutalidade, a crueldade, o sadismo, o choque [...]. Eu  
falei de contato. Entre colonizador e colonizado, só há espaço para o trabalho  
forçado, a intimidação, a pressão, a polícia, os impostos, o roubo, o estupro, a  
imposição cultural, o desprezo, a desconfiança, o necrotério, presunção, a  
grosseria, as elites descerebradas, as massas aviltadas. [...] eu falo de milhares  
de homens sacrificados no Congo-Océan [...]. Falo de milhares de homens  
arrancados a seus deuses, suas terras, seus costumes, sua vida, a vida, a dança  
a sabedoria. [...] eu falo das economias naturais, economias harmoniosas e  
viáveis, economias na medida do homem indígena que foram desorganizadas,  
culturas alimentares destruídas, subnutrição instalada, desenvolvimento  
agrícola orientado para o benefício único das metrópoles, roubo de produtos,  
roubo de matérias primas. [...] a colonização europeia adicionou o abuso  
moderno à antiga injustiça; o racismo odioso à velha desigualdade.  
106  
Em suma: a barbárie anunciada como civilização. Barbárie essa que não cessou com o  
estabelecimento do Estado Imperial, através da Independência. Retomemos: só nós, em todo o  
continente americano, conseguimos ser formalmente independentes e escravocratas ao mesmo  
tempo. Dada as particularidades sócio-históricas nacionais, em relação à escravização de povos  
africanos e seus descendentes, seria atípico se fosse diferente, visto que as relações  
estabelecidas entre a economia e os demais complexos sociais brasileiros estavam  
completamente imbuídos da mais longeva instituição nacional: a escravidão.  
2 Atualmente, o Cais do Valongo é um sítio arqueológico, que foi tombado pelo Instituto do Patrimônio Histórico  
e Artístico Nacional (IPHAN), graças à atuação do Movimento Negro.  
Libertas, Juiz de Fora, v. 25, n. 1, p. 100-114, jan./jun. 2025. ISSN 1980-8518  
Escravidão e construção do Estado Nacional: implicações sobre a generalização do trabalho  
assalariado no Brasil  
Estado Nacional: entre a urgência do trabalho assalariado e a força da longeva  
escravidão  
Considerando o impacto da escravidão sobre os arranjos sociais brasileiros, o Estado,  
que se constitui a partir da Independência, teve como uma de suas primeiras e precípuas funções  
a gestão da escravidão e das condições necessárias para que sua permanência fosse postergada  
o máximo possível, nos legando o lugar de último país das Américas a aceitar a  
insustentabilidade do cativeiro em face da urgência da generalização do trabalho assalariado.  
Cabe destacar que a ação do Estado sobre essa “demora” em relação à Abolição não  
estava fora do script capitalista, pois o centro do capitalismo precisou sugar até o último instante  
a riqueza produzida pela mão de obra escravizada. A posição da Inglaterra, berço da Revolução  
Industrial, no século XIX, sobre esse tema é elucidativa:  
Os capitalistas inicialmente encorajaram a escravidão nas Índias Ocidentais e  
depois ajudaram a destruí-la [...]. Quando o capitalismo britânico passou a  
considerar o monopólio das Índias Ocidentais um entrave, destruiu a  
escravidão naquelas colônias [...], para eles a escravidão era relativa e não  
absoluta, e dependia da latitude e da longitude, como provam as suas atitudes  
depois de 1833 diante da escravidão em Cuba, no Brasil e nos Estados Unidos.  
[...] Antes e depois de 18153, o governo britânico tentou azeitar as mãos da  
Espanha e de Portugal para que abolissem o tráfico escravo [...]. De nada  
adiantou, o combinado virou letra morta, pois o fim do tráfico arruinaria Cuba  
e o Brasil. Assim o governo britânico pressionado [...] decidiu adotar medidas  
mais drásticas. Wellington foi à Conferência de Verona para propor que as  
potências continentais boicotassem os produtos dos países ainda engajados no  
tráfico de escravos, caso lhe perguntassem se a Inglaterra estava disposta a  
também excluir os produtos dos países envolvidos no tráfico de escravos [...]  
ele deveria responder com toda boa vontade que encaminharia prontamente a  
questão ao seu governo (Williams, 2012, p. 234-235).  
107  
Williams (2012) segue ilustrando como o conhecido abolicionismo inglês estava  
permeado por contradições, visto que pressionava as outras nações a cortar relações comerciais  
com países ainda escravocratas, no século XIX, em nome da generalização do trabalho livre,  
que era uma necessidade preeminente do capitalismo, enquanto se recusava a fazer o mesmo,  
praticando o que o referido autor chamou de “humanitarismo do lucro”.  
Outro exemplo disso advém da própria Bill Aberdeen, também conhecida como Slave  
Trade Suppression Act, uma lei inglesa, promulgada em 1845, que autorizava a Marinha Real  
a prender navios de outras nações, suspeitos de tráfico de escravos. Tal lei foi contemporânea  
da permanência de relações comerciais entre a Inglaterra e países que mantinham a escravidão  
como base econômica.  
3 Ano em que, no parlamento inglês, “é apresentado um projeto de lei para proibir o trafico de escravos como  
investimento para capitais britânicos” (Williams, 2012, p. 236).  
Alcione Ferreira da Silva  
É interessante perceber que, no Brasil, as tensões e contradições postas na relação com  
as potências capitalistas se somavam às contradições internas, latentes na questão regional, pois  
com o fim do tráfico e permanência da escravidão se  
[...] eliminou a possibilidade de aquisição, em grande escala, de mão de obra  
servil, a consequência foi o seu encarecimento e o agravamento da crise nas  
províncias do Norte e Nordeste. Setores da população livre, inclusive das  
classes dominantes, começaram a não ver mais perspectivas na manutenção  
da escravidão e passaram a apostar na sua gradual superação, substituída pelo  
trabalho livre dos imigrantes europeus (Buonicore, 2020, p. 24).  
Na tensão entre o imperativo de realizar a transição para o trabalho assalariado e a  
cautela necessária para que o capitalismo britânico não ficasse em desvantagem comercial  
frente a outras nações, dado os lucros que obtinha estabelecendo comércio com países  
escravocratas, o Brasil foi o último campo de batalha, requerendo do nosso Estado  
“independente” uma gestão cuidadosa da escravidão, missão que cumpriu tendo no direito um  
complexo social fundamental, por meio de sequenciais leis que afirmavam abolir, aos poucos,  
a escravidão, mas, na verdade, postergavam-na ao máximo. Com efeito, a escravização se  
configurava como um embaraço ainda necessário a uma série de transações comerciais, pois,  
por exemplo,  
Depois de 1833, os capitalistas britânicos ainda continuavam envolvidos no  
próprio tráfico de escravos. Os artigos britânicos (tecidos, correntes e  
grilhões), de Manchester e de Liverpool, eram enviados diretamente à costa  
da África ou indiretamente ao Rio de Janeiro e Havana, onde eram usados  
pelos consignados cubanos e brasileiros com a finalidade de comprar escravos  
(Williams, 2012, p. 237-238).  
108  
Nesse sentido, no século em que a Inglaterra pressionava o Brasil pelo fim da  
escravidão, “70% dos artigos usados pelo Brasil para comprar escravos eram manufaturas  
britânicas” (Hussand, 1841, p. 609 apud Williams, 2012, p. 238). Esse comércio desenvolvido  
em torno da escravidão marcou os contornos da construção do Estado Nacional brasileiro e,  
nesse movimento,  
[...] a hegemonia econômica e política do Rio de Janeiro foi fundamental para  
a afirmação da soberania do governo central sobre o território da América  
portuguesa e para a construção do Estado Nacional. Tal hegemonia foi  
articulada pela classe dirigente lusobrasileira agregada à Coroa e financiada  
pela expansão cafeeira no Centro-Sul. Tudo isso só foi possível por causa do  
extraordinário crescimento do tráfico negreiro no século XIX. Por causa da  
pilhagem das populações subsaarianas (Alencastro, 2018, n.p.).  
A sociedade brasileira, portanto, mesmo com a Independência e o fim formal da era  
colonial, continuou abraçada à escravidão e ao poderio patrimonialista. Assim, a formação da  
sociedade nacional não sofreu significativas rupturas quanto à ordem social, visto que o  
processo ocorreu em uma transição pacífica entre os membros da Coroa Portuguesa (Fernandes,  
Libertas, Juiz de Fora, v. 25, n. 1, p. 100-114, jan./jun. 2025. ISSN 1980-8518  
Escravidão e construção do Estado Nacional: implicações sobre a generalização do trabalho  
assalariado no Brasil  
2020, n.p.). Portanto, o modelo de sociedade sobre o qual se fundam as bases do Estado  
Brasileiro esteve fortemente atrelado as nossas bases coloniais, especialmente no que diz  
respeito à questão racial. Houve aqui um antagonismo nítido, pois a construção da nação que  
se anunciava independente  
[...] pressupunha lado a lado, um elemento puramente revolucionário e outro  
elemento especificamente conservador. O elemento revolucionário aparecia  
nos propósitos de despojar a ordem social, herdada da sociedade colonial, dos  
caracteres heteronômicos aos quais fora moldada, requisito para que ela  
adquirisse a elasticidade e a autonomia exigidas por uma sociedade nacional.  
O elemento conservador evidenciava-se nos propósitos de preservar e  
fortalecer, a todo custo, uma ordem social que não possuía condições materiais  
e morais suficientes para engendrar o padrão de autonomia necessário à  
construção e ao florescimento de uma nação (Fernandes, 2020, n.p.).  
Tal nação olhava desejosa para o “progresso” dos países centrais do capitalismo, sem  
abrir mão dos seus grilhões, mantendo os valores coloniais, no que tange à ordenação social,  
de tal modo, que, juridicamente, o estatuto colonial foi vencido, mas se manteve como esteio  
moral da construção da nação. Isso implicava no seguimento de valores escravocratas e, por  
conseguinte, na continuidade do processo de marginalização da população negra, que, por  
sucessivas vezes, foi alvo de uma legislação que tornou moroso o fim da escravidão, em um  
processo que perdurou por mais de meio século e que não cessou nem com a Abolição, seguida  
da nascente República.  
109  
Os dilemas postos para o Estado imperial, acerca da gestão da escravidão tardia, traziam  
particularidades dessa fase do período escravocrata, indicando que a escravidão e as relações a  
elas relacionadas, não se mantiveram sem alterações ao longo dos séculos de existência no  
Brasil. Sob essa perspectiva, a escravidão tardia, demarcada pelas relações que se estabelecem  
com a proibição do tráfico negreiro, cujo início é delimitado pela Lei Eusébio de Queirós, tem  
especificidades históricas em relação à fase anterior, denominada escravidão plena (Moura,  
2020); uma dessas particularidades é a requisição capitalista, para que o Estado se torne gestor  
da “lenta e gradual” transição do trabalho escravo para o assalariado.  
Todavia, considerando que a historicidade, em seu movimento dialético, não é feita de  
mudanças abruptas em datas exatas, mas guarda continuidades no processo em que o “novo”  
está sendo gestado, no que diz respeito às ações do Estado imperial, na vigência do escravismo  
tardio, é preciso considerar outro elemento: a importância da escravidão plena para o  
estabelecimento das condições de dependência do Brasil em relação às potências capitalistas,  
que se expressa, entre outros, na formação nacional do mercado de trabalho livre.  
Escravidão plena é conceituada por Moura (2020), como o período que se estende do  
início do tráfico negreiro até sua proibição mais efetiva em 1850. Durante a escravidão plena,  
Alcione Ferreira da Silva  
[...] no nível das relações de produção internas, temos uma estrutura  
escravista com todas as características fundamentais. No nível da distribuição,  
circulação e comercialização, temos relações mercantis dos senhores de  
escravos, donos das mercadorias exportáveis, com o capital das metrópoles  
em nível internacional (Moura, 2020, p. 70).  
Nesses moldes, as relações comerciais, inerentes à escravidão, atendendo o  
empreendimento colonial, levam à economia brasileira a funcionar de forma completamente  
subordinada, de modo que “era uma economia que não permitia a acumulação de excedentes  
de capitais internos em proporções suficientes à abertura de uma via independente do  
desenvolvimento” (Moura, 2020, p. 70).  
Em outras palavras, a escravidão nos descapitalizou técnica e financeiramente, no  
mesmo movimento em que capitalizava a Europa ocidental, estabelecendo um movimento no  
qual a emersão do nosso Estado e inserção no capitalismo não poderia ter se dado de outro a  
não ser em uma relação de dependência, cujas bases foram lapidadas por séculos de exploração  
colonial. Nesse fluxo histórico, o Estado imperial, durante a escravidão tardia, realizou a gestão  
das relações escravocratas, preso às amarras dos interesses externos e mediado pelas condições  
sócio-históricas, forjadas durante o escravismo pleno.  
A Independência inaugurou um Estado nacional dependente; os grilhões que  
perduraram acorrentaram o país aos interesses de agentes externos, que eram centrais na  
geopolítica capitalista, podendo impor direcionamentos à gestão do fim da escravidão e  
formação do mercado de trabalho assalariado, que lhe substituiria.  
110  
Estado, direito e sociedade: trabalho assalariado para quem?  
Para o Estado brasileiro, gerir o fim da escravidão colocava em questão a transição para  
o trabalho assalariado. Esse processo foi realizado de modo a proteger os interesses dos  
latifundiários, o que colocou a população negra no lugar de desproteção e criminalização.  
Mandel (1982) considera que as funções do Estado estão imbricadas com a propriedade  
privada, que, em alguns contextos, por exemplo, se apresenta como apropriação privada da  
terra, demandando a garantia de relações que protegessem os proprietários de terra. Essa  
concepção dialoga com a realidade nacional, na transição da escravidão para o trabalho  
assalariado, ao percebermos que o Estado brasileiro articulou uma posição particular ao  
proteger a propriedade privada da terra e estabelecer a raça como critério para acesso ao  
mercado de trabalho em formação. Acerca das medidas que protegiam a propriedade da terra,  
Libertas, Juiz de Fora, v. 25, n. 1, p. 100-114, jan./jun. 2025. ISSN 1980-8518  
Escravidão e construção do Estado Nacional: implicações sobre a generalização do trabalho  
assalariado no Brasil  
um exemplo contundente é a Lei de Terras de 1850, que assegurava o poder do latifúndio e  
afastava a população negra do acesso à terra.  
Nesse contexto, portanto, houve um orquestrado processo de marginalização social, que  
mobilizou diferentes complexos sociais. A educação institucionalizada é um exemplo, pois,  
conforme Silva e Araújo (2005), na transição do século XIX para o XX, atualizou aparatos de  
segregação, reservando as vagas escolares, em quase totalidade, para a classe que é racialmente  
marcada pela branquitude, como elemento diferenciado e garantidor de status. Na prática, o que  
ocorreu foi uma espécie de estabelecimento de lei das cotas na educação básica, na qual o  
objetivo era reservar 100% das vagas para os homens brancos das elites econômicas, pois  
Na (re) leitura das reformas educacionais dos séculos XIX e XX, deduz-se que  
a população negra teve presença sistematicamente negada na escola: a  
universalização ao acesso e a gratuidade escolar legitimaram uma ‘aparente’  
democratização, porém, na realidade, negaram condições objetivas e materiais  
que facultassem aos negros recém-egressos do cativeiro e seus descendentes  
um projeto educacional, seja este universal ou específico (Silva; Araújo, 2005,  
p. 71).  
A cultura negra também foi capturada como um complexo social criminalizado, tenha-  
se como exemplo a capoeira, através da promulgação do Decreto n. 847, de 11 de outubro de  
1890. No Livro II, “Das Contravenções em Espécie”, está o Capítulo V, intitulado “Dos vadios  
e capoeiras”, que estabelece em seu artigo 402:  
111  
Fazer nas ruas e praças publicas exercícios de agilidade e destreza corporal  
conhecidos pela denominação capoeiragem; andar em correrias, com armas  
ou instrumentos capazes de produzir uma lesão corporal, provocando tumultos  
ou desordens, ameaçando pessoa certa ou incerta, ou incutindo temor de  
algum mal: Pena – de prisão cellular por dous a seis mezes. [...] Aos chefes,  
ou cabeças, se imporá a pena em dobro (Brasil, 1890).  
Colocada na ilegalidade, a capoeira poderia ser punida, inclusive, com a deportação, se  
praticada por estrangeiros reincidentes, conforme Artigo 403, do Decreto nº 847. Uma análise  
conjuntural indica que, por “estrangeiros”, pode-se ler africanos, pois foi a estes e seus  
descendentes que a prática da capoeira estava associada. Vale ainda destacar que a secção do  
referido decreto, que trata acerca da capoeira, é a mesma que regulamenta a “vadiagem”,  
prevendo punição com prisão a quem “deixar de exercitar profissão, officio, ou qualquer mister  
em que ganhe a vida, não possuindo meios de subsistencia e domicilio certo em que habite”  
(Brasil, 1890).  
A lei punia quem não trabalhasse, porém, a realidade social erguia barreiras para a  
população negra acessar o mercado de trabalho. Essa equação buscava apenas criminalizar a  
existência e permanência da população negra na nova nação brasileira. Observa-se que  
Alcione Ferreira da Silva  
Com a proximidade do fim da escravidão e da própria monarquia é que a  
questão racial passou para a agenda do dia. Até então, enquanto ‘propriedade’  
o escravo era por definição o ‘não-cidadão’. No Brasil, é, portanto com a  
entrada das teorias raciais que as desigualdades sociais se transformaram em  
matéria da natureza. Tendo por fundamento uma ciência positiva e  
determinista, pretendia-se explicar com objetividade [...] uma suposta  
diferença entre os grupos. A ‘raça’ era introduzida, assim, com base nos dados  
da biologia da época e privilegiava a definição dos grupos segundo seu  
fenótipo, o que eliminava a possibilidade de se pensar no indivíduo e no  
próprio exercício da cidadania (Schwarcz, 1998, p. 186).  
Nesse sentido, a abertura do mercado de trabalho brasileiro, que demarca a  
generalização do trabalho assalariado, impôs ao Estado encarar e promover alternativas, a  
exemplo das que se seguem:  
Em princípio, haveria três possibilidades [...] não excludentes entre si. De um  
lado, havia a perspectiva de que os antigos escravos pudessem, eles mesmos,  
continuar a trabalhar nas fazendas adotando um novo status de homens livres,  
o que, aparentemente, não colocaria problemas técnicos de grande monta.  
Com efeito, os escravos dominavam o processo de trabalho, assim como as  
evoluções técnicas mais importantes à época nas atividades que realizavam.  
Essa havia sido a opção em algumas ilhas das Antilhas inglesas, onde a  
abolição teve um caráter puramente formal [...]. Uma segunda opção seria a  
da utilização, total ou parcial, do contingente dos homens livres e libertos no  
lugar dos antigos escravos. Esse grupo remontava, em 1872, quase oito  
milhões de indivíduos, ultrapassando em muito o número de escravos, que  
totalizava cerca de 1,5 milhões [...]. Finalmente, havia a alternativa da  
imigração, que, como visto, foi largamente adotada pelas regiões  
economicamente mais dinâmicas (Theodoro, 2008, p. 31).  
112  
O Estado brasileiro elegeu a imigração como alternativa para responder às necessidades  
do mercado de trabalho, alinhando às necessidades de construção de uma nação, de modo que  
o direito foi manejado para que a cidadania da população negra não fosse de fato validada. O  
grupo populacional, que construiu riquezas para as nações capitalistas em seu processo de  
acumulação primitiva, era agora colocado como incapaz para o trabalho, deixando-lhes a  
alternativa de buscar subsistência nos postos mais mal remunerados e marcados pela  
informalidade.  
Isso significa que o passado escravocrata seguia com muitas continuidades, que se  
alinhavam aos novos aparatos racistas promovidos por ações estatais. Portanto, a escravidão e  
o racismo eram assunto de Estado, e o manejo de ambos estava a serviço da construção de uma  
nação que, na transição do século XIX para o XX, se pretendia branca e, para tanto, promovia  
ações com caráter antinegro.  
Dessa forma, a questão racial não apenas esteve na base dos elementos que constituíram  
o Estado brasileiro, mas seguia dando-lhe parte de sua direção e demandando dele a legitimação  
da desigualdade racial. Esse movimento ratifica a compreensão de que “toda forma de produção  
Libertas, Juiz de Fora, v. 25, n. 1, p. 100-114, jan./jun. 2025. ISSN 1980-8518  
Escravidão e construção do Estado Nacional: implicações sobre a generalização do trabalho  
assalariado no Brasil  
forja suas próprias relações jurídicas, forma de governo etc.” (Marx, 2011, p. 60), de forma que  
um Estado, que se constrói e se consolida sob bases sociais escravocratas, tem tendências  
históricas a forjar relações sociais marcadas pelo racismo.  
Aproximações conclusivas  
A constituição do Estado no Brasil foi diretamente impactada pela dinâmica societária  
da constituição dos Estados Nacionais Modernos como um todo, relação que se deu mediada  
em grande medida pelos laços de dependência, constituídos no período colonial e que se  
estenderam para além dele.  
Essa relação nos colocou a necessidade de nos aproximarmos da dinâmica em torno da  
constituição dos Estados-Nação do ocidente europeu, para pensarmos as particularidades do  
nosso Estado, que se constituiu no período pós-independência e sob regime imperial. Em tal  
movimento, apontamos como a escravidão colonial pode ser considerada um elemento  
importante para o estabelecimento das condições relativas à materialização do Estado sob a  
égide da consolidação do modo de produção capitalista, tanto para as metrópoles coloniais  
quanto para o Brasil.  
Considerando as particularidades nacionais, a relação entre constituição e consolidação  
do Estado com a escravidão emerge com contornos ainda mais nítidos, marcados pela gestão  
da transição para o trabalho assalariado, em acordo com os interesses das grandes potências  
econômicas capitalistas.  
113  
O Estado brasileiro, nesse processo, se utilizou amplamente do aparato jurídico, na  
busca por manter o controle sobre a formação do mercado de trabalho nacional, em acordo com  
os interesses do capital externo, numa relação de dependência, na qual um dos resultados foi a  
busca pelo embranquecimento do mercado de assalariado, em favor da mão de obra imigrante  
europeia e alijamento da população negra de acesso a meios de sobrevivência.  
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Libertas, Juiz de Fora, v. 25, n. 1, p. 100-114, jan./jun. 2025. ISSN 1980-8518  
Particularidades do capitalismo no Brasil:  
superexploração da força de trabalho, racismo e  
mito da democracia racial no capitalismo  
dependente  
Particularities of capitalism in Brazil: overexploitation of the labour-force,  
racism and the myth of racial democracy in dependent capitalismo  
Lívia Cintra Berdu*  
Flávia Saragiotto Magalhães do Valle**  
Resumo: Este trabalho tem como objetivo  
apresentar algumas reflexões a respeito das  
particularidades do capitalismo brasileiro,  
dialogando, primeiramente, com categorias  
clássicas utilizadas nas elaborações sobre o  
tema, como via prussiana e via colonial,  
capitalismo tardio e hipertadio e, num segundo  
momento, capitalismo periférico e dependente,  
além da noção de superexploração da força de  
trabalho. Posteriormente, buscamos articular  
tais reflexões com algumas contribuições  
provindas da história social do trabalho acerca  
da conformação da classe trabalhadora  
brasileira, enfatizando o racismo e o mito da  
Abstract: This paper aims to present some  
reflections on the particularities of Brazilian  
capitalism, firstly dialoguing with classical  
categories used in elaborations on the subject,  
such as the prussian way and colonial way, late  
capitalism and hyper-late capitalism and,  
secondly, peripheral and dependent capitalism,  
in addition to the notion of overexploitation of  
the labor force. Subsequently, we pursue to  
articulate these reflections with some  
contributions from the social history of labor  
regarding the formation of the Brazilian  
working class, emphasizing racism and the  
myth of racial democracy as structural elements  
in the consolidation and reproduction of the  
capitalist mode of production.  
democracia racial  
enquanto elementos  
estruturais na consolidação e reprodução do  
modo de produção capitalista.  
Palavras-chaves:  
dependente; Racismo; Mito da democracia  
racial; Questão racial.  
Brasil;  
Capitalismo  
Keywords: Brazil; Dependent capitalism;  
Racism; Myth of racial democracy; Racial  
question.  
* Universidade Estadual Paulista. E-mail: liviaberdu@gmail.com  
** Universidade Estadual Paulista. E-mail: flavia.valle@unesp.br  
DOI: 10.34019/1980-8518.2025.v25.47727  
Esta obra está licenciada sob os termos  
Recebido em: 09/03/2025  
Aprovado em: 23/06/2025  
Lívia Cintra Berdu; Flávia Saragiotto Magalhães do Valle  
Introdução  
Inicialmente, partimos da compreensão de que, para intervirmos na realidade concreta,  
é necessário compreendê-la em sua complexidade, de forma a considerar seus movimentos e  
contradições, assim como as nuances capazes de imprimir contornos singulares que atravessam  
o cotidiano dos sujeitos. Nesse processo de análise e mediação, é necessária uma perspectiva  
ampla, totalizante e não fragmentadora, buscando abarcar elementos históricos, econômicos e  
sociais que, através de aproximações sucessivas e a conexão dos aspectos universais aos  
particulares, permitam compreender suas múltiplas determinações de forma mais eficaz e  
menos turva, ou seja, mais cristalina (Guerra; Montaño, 2024, p. 274-290).  
Em se tratando da realidade brasileira, muito já se produziu acerca de suas  
especificidades no processo de consolidação do modo de produção capitalista, de modo a  
relacionar a escravização dos negros e negras sob a ordem colonial e os elementos de  
continuidade e permanência na subsequente combinação entre a exploração capitalista e o  
racismo. No entanto, ao nos debruçarmos sobre os estudos nessa temática, verificamos que  
ainda são escassas as reflexões que partem das categorias clássicas do marxismo utilizadas no  
campo das ciências sociais para a caracterização do capitalismo brasileiro - como via prussiana  
e via colonial, e capitalismo tardio e hipertardio -, de forma a articulá-las com as contribuições  
e aperfeiçoamentos advindos posteriormente com a chamada Teoria Marxista da Dependência  
(TMD) - através de diversos autores como Ruy Mauro Marini, Vânia Bambirra, Theotônio dos  
Santos e outros -, a qual vem ganhando força na área do serviço social nos últimos anos.  
Ademais, existe um determinado hiato nas produções mais recentes desta área de  
conhecimento que busquem uma interlocução com a história social do trabalho e com as  
análises acerca do processo de formação da classe trabalhadora brasileira, de modo a destacar  
a virada teórico-política ocorrida nas últimas décadas que possibilitou a superação da  
historiografia tradicional do trabalho, a qual secundarizou a questão étnico-racial e a  
composição deveras heterogênea dos/das trabalhadores/as do país ao longo dos séculos XIX e  
XX.  
116  
Assim, tendo em vista tal lacuna, por um lado, e a necessidade de estabelecer conexões  
e diálogos entre diferentes autores, por outro, procuramos conectar o debate acerca das  
particularidades do capitalismo no Brasil a determinados aspectos da história social do trabalho  
e da classe trabalhadora brasileira, ressaltando o racismo, a lógica colonial e o mito da  
democracia racial como elementos fundantes na constituição e consolidação do capitalismo  
dependente no país. Partindo de uma perspectiva marxista, efetuamos alguns apontamentos  
relativos a diferentes autores que se debruçaram sobre o tema da questão racial na América  
Libertas, Juiz de Fora, v. 25, n. 1, p. 115-134, jan./jun. 2025. ISSN 1980-8518  
Particularidades do capitalismo no Brasil: superexploração da força de trabalho, racismo e mito da  
democracia racial no capitalismo dependente  
Latina e no Brasil, como José Carlos Mariátegui, Florestan Fernandes, Clóvis Moura e, de um  
ponto de vista mais geral acerca do colonialismo, o filósofo político e psiquiatra martinicano,  
Frantz Fanon. Dessa forma, salientamos como o racismo e o mito da democracia racial se aliam  
de forma profunda à superexploração da força de trabalho no país como dispositivo de maior  
extração de mais-valor e, além disso, operam numa ofensiva ideológica de inferiorização e  
desumanização dos negros e negras perante o conjunto da classe trabalhadora.  
O capitalismo brasileiro e suas particularidades  
Analisar os aspectos singulares do capitalismo brasileiro e da classe trabalhadora no  
país implica em se debruçar sobre as características principais em seu processo de constituição,  
além de considerar alguns elementos conjunturais existentes naquele período histórico, os quais  
possibilitaram sua caracterização enquanto um país de capitalismo tardio (ou hipertardio) em  
grande parte dos estudos no campo das ciências sociais, incluindo o serviço social.  
O sociólogo Ricardo Antunes aponta em sua obra publicada em 1982, Classe Operária,  
Sindicatos e Partido no Brasil: um estudo sobre a consciência de classe, da Revolução de 1930  
até a Aliança Nacional Libertadora, que tal debate está diretamente ligado a duas vertentes  
deformadas de assimilação das particularidades do capitalismo brasileiro, sendo a primeira  
delas, a busca pelo entendimento de sua natureza a partir de seu enquadramento nos casos de  
capitalismo clássico, o que provocou, em certa medida, a perda de vista de seus sentidos  
singulares. Por outro lado, teria havido, posteriormente, uma tendência à procura pelas suas  
especificidades, fazendo com que os contornos universais se ofuscassem na análise (Antunes,  
1982, p. 39-40).  
117  
Em diálogo com algumas obras clássicas no campo do pensamento econômico e social  
brasileiro como os escritos de Caio Prado Jr., Celso Furtado e Nelson Werneck Sodré a  
respeito da formação capitalista no país , Antunes observa as relações entre a agricultura e a  
indústria no Brasil e destaca a predominância da noção de um caráter contraditório e antagônico  
acerca desta combinação entre agrarismo e industrialismo, a qual não estabeleceu uma conexão  
ou mediação entre seus elementos peculiares. Uma vez que o contexto agrário era considerado  
a expressão do mundo feudal assim como nos países europeus como França e Inglaterra e,  
por outro lado, o elemento industrial significava o surgimento do capitalismo enquanto modo  
de produção, desenvolveu-se, em certa medida, uma prática de contínuas comparações entre  
realidades bastante distintas. Ou seja, como destaca o autor, um país detentor de um passado  
colonial e de capitalismo dependente dos centros imperialistas como o Brasil, foi por muitas  
vezes enquadrado nos mesmos moldes que países de características divergentes, tendo a  
Lívia Cintra Berdu; Flávia Saragiotto Magalhães do Valle  
realidade europeia como uma espécie de modelo a ser seguido. Como forma de resposta a esta  
tendência, outra lógica procurava uma identificação absoluta entre campo e cidade, e entre  
agricultura e indústria, desprezando as contradições e fissuras existentes entre os interesses de  
ambos os setores (Antunes, 1982, p. 40).  
Assim, ao analisar a fase de gestação do capital industrial, a qual teve como matriz  
básica a economia cafeeira, sublinha que o capital provindo desta mesma economia engendrou  
a indústria de bens de consumo assalariado, como a têxtil, ao invés da indústria de bens de  
produção, cujos custos de investimento e tecnologia eram muito maiores e não se encontravam  
disponíveis no mercado internacional naquele período de disputas imperialistas (Antunes, 1982,  
p. 40). Contudo, como afirma o sociólogo,“O capital cafeeiro, ao mesmo tempo em que gerou  
as condições para o advento do capital industrial, criou limites concretos para a sua expansão,  
o que objetivamente bloqueou uma expansão mais dinâmica do núcleo produtivo industrial”  
(Antunes, 1982, p. 41). Nota-se que o autor aponta, desta forma, a existência de um elemento  
de unidade e, por outro lado, um aspecto de contradição nesta ligação, uma vez que o  
desenvolvimento capitalista por via da indústria é forjado pela expansão da produção do café  
e, no entanto, o mesmo é restringido pela posição dominante desta economia na acumulação de  
capital (Antunes, 1982, p. 41-42).  
Como forma de contribuição ao debate, salientamos um elemento destacado pelo  
economista Francisco de Oliveira, que afirma que o ponto central de tal relação consiste na  
polarização entre a burguesia industrial e os latifundiários no processo de constituição do  
capitalismo industrial brasileiro, já que a luta de classes nesse contexto se dava em uma dupla  
perspectiva: por um lado, havia o conflito entre os proprietários e os não proprietários dos meios  
de produção incluindo a terra - e, em segundo plano, desenvolviam-se as fissuras entre as  
diferentes frações da classe dominante e exploradora (Oliveira, 1977, p. 29).  
118  
A partir de tais elementos, pode-se dizer, portanto, que as particularidades concernentes  
ao capitalismo industrial brasileiro apresentam um desenvolvimento lento e gradual das forças  
produtivas, imbuído de uma dinâmica conciliatória e reacionária, com leve similitude com a  
transição alemã, e não com os moldes clássicos de transição revolucionária para o capitalismo  
como a Inglaterra ou a França, caso se queira efetuar alguma aproximação de cunho inicial.  
Desse modo, a via prussiana1 como modo específico de constituição do capitalismo na  
1 Ricardo Antunes aponta que o filósofo político Carlos Nelson Coutinho introduziu a categoria criada por Lênin  
de via prussiana em seus estudos estéticos como referência para os estudos acerca do capitalismo no Brasil.  
Posteriormente, Luiz Werneck Vianna e José Chasin a retomaram em suas respectivas obras: VIANNA, Luiz  
Werneck. Liberalismo e Sindicato no Brasil, Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1970 e CHASIN, José. O integralismo  
de Plínio Salgado: Forma de regressividade no capitalismo hipertadio, São Paulo, Ed. Ciências Humanas, 1978.  
Libertas, Juiz de Fora, v. 25, n. 1, p. 115-134, jan./jun. 2025. ISSN 1980-8518  
Particularidades do capitalismo no Brasil: superexploração da força de trabalho, racismo e mito da  
democracia racial no capitalismo dependente  
Alemanha pode servir como referencial teórico para a interpretação acerca de algumas  
características do caso brasileiro, como a ausência de um processo revolucionário provindo das  
camadas trabalhadoras e subalternizadas que rompesse de forma violenta e definitiva com os  
traços feudais ou coloniais, respectivamente. Vale ressaltar, no entanto, que tal aproximação  
deve ser feita na perspectiva de identificação de seus aspectos comuns, mas também aqueles se  
diferem, tendo em vista a superação desta comparação (Antunes, 1982, p. 42-43).  
Assim, utilizando-se dos aportes teóricos de Marx2 e Lênin3 a respeito da formação do  
capitalismo nos principais países europeus e as diferentes formas de transição via  
revolucionária e via reformista do feudalismo para este modo de produção através do avanço  
das forças produtivas, Antunes sintetiza:  
Esta via não-clássica de transição, forma concreta de constituição do  
capitalismo nos países de desenvolvimento tardio, apresenta, portanto, um  
caminho lento, reacionário, conciliando o progresso com o atraso, através da  
fusão entre as velhas classes dominantes e as velhas formações econômicas -  
que no caso alemão eram feudais - com as novas classes e as novas formações  
econômicas de talhe capitalista, num quadro onde inexiste a ruptura abrupta e  
radical (Antunes, 1982, p. 45-46).  
Assim, podemos afirmar que a grande propriedade e o latifúndio tiveram um papel  
crucial no processo de constituição do capitalismo brasileiro, impossibilitando, dessa forma,  
que um campesinato ativo pudesse dirigir o desenvolvimento agrário por uma via de ruptura  
brusca. Na esteira desse movimento de modernização, consolidou-se um “reformismo pelo  
alto”, o qual extinguiu qualquer chance de envolvimento dos setores populares nesse percurso.  
Assim como a Alemanha, o Brasil dispôs, nesse processo, de um Estado fortalecido e  
“hipertrofiado”, fato que o permitiu dirigir o movimento transicional para o capitalismo  
industrial no país (Chasin, 1978, p. 627 apud Antunes, 1982, p. 55). Sob este prisma, o filósofo  
José Chasin descreve alguns aspectos acerca deste contraditório desenvolvimento, o qual  
prescindiu de uma interrupção ou dissolução entre o novo que emergia e o velho que sucumbia.  
119  
Sinteticamente, a via prussiana do desenvolvimento capitalista aponta para  
uma modalidade particular desse processo, que se põe de forma retardada e  
retardatária, tendo por eixo a conciliação entre o novo emergente e o modo de  
existência social em fase de perecimento. Inexistindo, portanto, a ruptura  
superadora que de forma difundida abrange, interessa e modifica todas as  
demais categorias sociais subalternas. Implica um desenvolvimento mais lento  
das forças produtivas, expressamente tolhe e refreia a industrialização, que só  
paulatinamente vai extraindo do seio da conciliação as condições de sua  
existência e progressão. Nesta transformação “pelo alto”, o universo político  
e social contrasta com os casos clássicos, negando-se de igual modo ao  
2
É importante salientar que Marx já havia sinalizado acerca da singularidade da formação capitalista alemã em  
seu artigo “Introdução à crítica da filosofia do direito de Hegel”, publicado em 1843.  
3
Esta discussão pode ser encontrada no texto de Lênin, “Duas táticas da social-democracia na revolução  
democrática”, publicado no ano de 1905.  
Lívia Cintra Berdu; Flávia Saragiotto Magalhães do Valle  
progresso, gestando, assim, formas híbridas de dominação, onde se “reúnem  
os pecados de todas as formas de estado” (Chasin, 2000, p. 42).  
Isto posto, cabe aqui, no entanto, um necessário adendo em relação a uma fundamental  
distinção entre as transições capitalistas no Brasil e na Alemanha que deve ser demarcada.  
Enquanto as grandes propriedades e o latifúndio na Alemanha provêm do feudalismo, o  
latifúndio no Brasil tem raízes coloniais, e desde a invasão do país pelos portugueses durante o  
século XVI, este serviu como instrumento para a extração e acumulação primitiva de capitais  
realizada pela metrópole. Assim, apesar do movimento de industrialização nos dois países ter  
sido lento e retardatário, ao passo que na Alemanha tal processo tenha se dado de forma tardia,  
o capitalismo no Brasil pode ser chamado de hipertardio, uma vez que nunca rompeu com sua  
condição de país subordinado aos pólos centrais da economia internacional. É nesse prisma,  
portanto, que Chasin utiliza a designação de via colonial a partir de Lênin como forma de  
caracterização para o caso brasileiro, uma vez que demarca esse traço bastante específico, ou  
seja, singular. Antunes desenvolve esta caracterização:  
Entendida como tal, a industrialização brasileira, na particularidade da via  
colonial, além de hipertardia, retardatária e subordinada ao capitalismo na sua  
fase monopolista, tem outras especificidades que a distinguem dos casos  
clássicos de transição e que são fundamentais para o entendimento da  
constituição e da inserção da classe operária no capitalismo brasileiro.  
Enquanto nas formações centrais o processo de constituição do capitalismo  
passa pelas formas clássicas de produção - como o artesanato, a manufatura e  
a grande indústria - , no Brasil o processo de industrialização nasce dentro de  
um contexto onde predomina a grande indústria, entendida aqui como “o  
organismo de produção inteiramente objetivo que o trabalhador encontra  
pronto e acabado como condição material de produção”, e onde a mecanização  
e a coletivização do trabalho substituem o trabalho manual, individualizado  
ou parcelar das formas anteriores. Em outros termos, da acumulação mercantil  
fundada na economia agro-exportadora cafeeira transita-se lentamente para  
um processo de acumulação centrado na grande indústria, com relativo grau  
de mecanização, onde a máquina foi introduzida antes mesmo que o trabalho  
120  
artesanal individual, aqui praticamente inexistente,  
e
o
trabalho  
manufatureiro, efetivando a subordinação real do trabalho ao capital (Antunes,  
1982, p. 49-50).  
Assim, na esteira da subordinação do trabalho ao capital sob o manto da via colonial,  
Antunes afirma que, por conta do processo de industrialização tardio, também o processo de  
formação da classe trabalhadora brasileira carregaria traços bastante diversos, uma vez que  
os/as trabalhadores/as teriam se constituído majoritariamente dentro de um contexto onde  
sobressaía a grande indústria. Isso nos permite concluir, segundo o sociólogo, a respeito da  
contradição vivida pela classe operária no seu processo de conformação no país, já que:  
(...) por um lado ela é uma classe que já nasce, objetivamente, dentro daquelas  
condições que caracterizam a última fase do trabalhador europeu clássico (a  
grande indústria); por outro lado, e dialeticamente, essa grande indústria existe  
Libertas, Juiz de Fora, v. 25, n. 1, p. 115-134, jan./jun. 2025. ISSN 1980-8518  
Particularidades do capitalismo no Brasil: superexploração da força de trabalho, racismo e mito da  
democracia racial no capitalismo dependente  
em algumas manchas do país, manchas estas submersas a um mundo ainda  
predominantemente agrário. Ou seja, a nossa classe operária reflete, na  
verdade, a contradição que caracteriza o nosso processo de industrialização:  
apesar de, em seu nascimento, não ter percorrido as formas de produção  
anteriores, ela não pôde crescer normalmente, limitada que foi por uma  
industrialização que pagou alto preço ao latifúndio para poder desenvolver-se,  
ao mesmo tempo em que se encontrava nas condições de uma industrialização  
subordinada (Antunes, 1982, p. 58).  
Assim, embora a classe trabalhadora brasileira tenha se gestado nas condições  
favoráveis para o seu desenvolvimento, esta teve um processo de formação distinto do  
proletariado europeu, pois teria se apresentado de certa forma, incompleto, no que tange à sua  
consciência de classe, ou, nas palavras do autor, “sua incapacidade de transitar do em si ao para  
si(Antunes, 1982, p. 58-59).  
Contudo, é necessário delimitar, neste ponto, sobre a ocorrência de uma reformulação  
das interpretações feitas até então acerca das particularidades do capitalismo brasileiro, da  
classe trabalhadora no país e, de uma forma mais ampla, deste modo de produção no continente  
latino-americano, uma vez que o esquema por vezes mecanicista adotado pelas ideias provindas  
da concepção dogmática e etapista do chamado “marxismo oficial” de intelectuais brasileiros  
na primeira metade do século XX4, esbarravam na equivocada ideia de que só após a plena  
constituição do capitalismo na região seria possível conceber uma revolução socialista  
(Carcanholo, 2023, p. 03).  
121  
Assim, no intuito de aperfeiçoar as inúmeras contribuições feitas pela tradição anterior,  
surgiram as reflexões provindas da chamada Teoria Marxista da Dependência, fundada durante  
a década de 1960 durante o contexto de crise estrutural do capital e que trazia profundos  
desdobramentos às economias dependentes dos grandes centros como o Brasil e demais países  
da América Latina, os quais enfrentavam golpes e ditaduras militares acompanhadas da  
aplicação das primeiras medidas neoliberais da história. As elaborações de Ruy Mauro Marini,  
Vânia Bambirra e Theotônio dos Santos, junto a outros teóricos influenciados pelos debates  
acerca do imperialismo naquele contexto, trouxeram grandes contribuições para a tradição  
marxista no sentido de investigar as especificidades da manifestação da lei do valor em países  
de capitalismo periférico, assim como suas implicações na chamada “questão social”  
(Carcanholo, 2023, p. 02-04).  
4
Nos referimos aqui especificamente aos intelectuais pertencentes ao PCB - Partido Comunista Brasileiro do  
período. No entanto, vale enfatizar que a Teoria Marxista da Dependência também tinha como objetivo a superação  
das elaborações da CEPAL – Comissão Econômica para a América Latina e o Caribe –, a qual teve como principal  
expoente o economista Celso Furtado.  
Lívia Cintra Berdu; Flávia Saragiotto Magalhães do Valle  
Dessa forma, partindo da articulação entre as categorias e componentes centrais como a  
superexploração da força de trabalho, a transferência de valor no plano do comércio  
internacional de mercadorias e por outros mecanismos ligados à conta de capital e serviços,  
além da elevada concentração de renda e riqueza e o recrudescimento dos problemas sociais  
decorrentes do desenvolvimento do próprio capital, esses autores propuseram uma nova forma  
de analisar os países latino-americanos, de modo a se debruçar sobre suas singularidades  
(Carcanholo, 2023, p. 06).  
Desse modo, a TMD afirma que o Brasil enquanto país dependente se caracteriza  
enquanto permanentemente subordinado a instrumentos de superexploração da força de  
trabalho como forma de garantir a acumulação de capital interna e, por outro lado, a apropriação  
de parte considerável do lucro (mais-valor) produzido e demandado pelo capital imperialista,  
condição esta que interfere diretamente nas condições de vida e trabalho dos trabalhadores e  
trabalhadoras do país. Tal processo de transferência de mais-valor ficou conhecido como troca  
desigual, e implica que a categoria chave de análise é o capital, e não a “nação”, de modo que  
a condição de dependência é consequência de um desenvolvimento desigual e combinado5 das  
leis de funcionamento do mesmo, em distintas partes do mundo (Carcanholo, 2013, p. 194).  
Nesse sentido, a especificidade que define tal condição de dependência de países como  
o Brasil consiste justamente nos mecanismos estruturais de transferência de valor produzidos  
nessas economias, mas que, na verdade, são realizados e acumulados no ciclo do capital das  
economias centrais (Carcanholo, 2013, p. 198). Desse modo, é necessário evidenciar que,  
apesar de todas as economias capitalistas se utilizarem de distintos dispositivos de elevação da  
taxa de exploração, a superexploração da força de trabalho consiste num instrumento de  
compensação utilizada e requerida especificamente pelo desenvolvimento capitalista  
dependente, em função dessa mesma transferência estrutural de valor. Marini escreve a esse  
respeito:  
122  
O que aparece claramente, portanto, é que as nações desfavorecidas pela troca  
desigual não buscam tanto corrigir o desequilíbrio entre os preços e o valor de  
suas mercadorias exportadas (o que implicaria um esforço redobrado para  
aumentar a capacidade produtiva do trabalho), mas procuram compensar a  
perda de renda gerada pelo comércio internacional por meio do recurso de  
uma maior exploração do trabalhador (Marini, 2005a, p. 153).  
5 É importante sinalizar que a noção de desenvolvimento desigual e combinado é aperfeiçoada por Leon Trotsky  
a partir das elaborações iniciais marxianas sobre os diferentes ritmos e intensidades da dinâmica do capital e do  
desenvolvimento das forças produtivas em distintos países e sua combinação entre si. Posteriormente, o  
economista belga Ernest Mandel elaborou análises a partir deste conceito.  
Libertas, Juiz de Fora, v. 25, n. 1, p. 115-134, jan./jun. 2025. ISSN 1980-8518  
Particularidades do capitalismo no Brasil: superexploração da força de trabalho, racismo e mito da  
democracia racial no capitalismo dependente  
Partindo então da centralidade da categoria de superexploração da força de trabalho,  
Marini observou que esta se definiria por uma elevação da taxa de exploração que não passa  
por elevação da produtividade, justamente por esta estar barrada para as economias dependentes  
e, além disso, pelo fato da superexploração ser um mecanismo necessário para elevar a taxa de  
acumulação do capitalismo dependente em razão dos condicionantes estruturais de dependência  
(Carcanholo, 2013, p. 200). Por outro lado, esta se daria no pagamento da força de trabalho  
num valor abaixo do seu valor real, ou seja, na sub-remuneração dos salários dos trabalhadores  
localizados nas economias periféricas. Nas palavras de Marini:  
(...) a superexploração é melhor definida pela maior exploração da força física  
do trabalhador, em contraposição à exploração resultante do aumento da  
produtividade e tende normalmente a se expressar no fato de que a força de  
trabalho se remunera abaixo do seu valor real (Marini, 2005b, p. 189).  
No trecho acima, Marini aborda o elemento específico que nos permite caracterizar o  
modo de funcionamento do capital nas economias dependentes como o Brasil, o qual se baseia  
na sub-remuneração de grande parte da classe trabalhadora e que se interrelaciona com outros  
aspectos estruturais que delineiam a história do país e de toda a América Latina, isto é, o  
racismo. Como já sinalizado anteriormente, o modo de produção capitalista é capaz de se  
combinar e se entrelaçar às raízes coloniais e escravistas aqui existentes, permitindo assim sua  
reprodução, por um lado, e a legitimação da ideia de inferioridade de parte da classe  
trabalhadora, por outro. Portanto, a partir de tais elaborações feitas pelos teóricos da TMD e  
seu aprimoramento e atualização feitos nos últimos anos, é possível efetuarmos uma análise  
mais rigorosa a respeito das particularidades do capitalismo brasileiro, assim como as  
especificidades da classe trabalhadora no país e, por conseguinte, da chamada “questão social”  
neste território.  
123  
Nesta perspectiva, é necessário sinalizar, por fim, que a historiografia tradicional do  
trabalho e muitos dos principais intérpretes do movimento operário brasileiro que se  
debruçaram sobre o estudo da classe trabalhadora e suas diferentes formas de organização nas  
primeiras décadas do século XX no Brasil6, secundarizaram, por muito tempo, a densa tradição  
de greves e “paredes” protagonizadas pelos trabalhadores escravizados e libertos ao longo do  
século XIX em território nacional, as quais influenciaram as lutas operárias posteriores e,  
muitas vezes, simultâneas a estes mesmos embates. Isso significa dizer que atribuir a suposta  
frágil consciência de classe dos trabalhadores do país - inseridos naquele período histórico - à  
6 Nos referimos às obras de Boris Fausto, Trabalho urbano e conflito social, publicado pela primeira vez em 1976;  
Sheldon Maram, Anarquistas, imigrantes e o movimento operário brasileiro: 1890-1920, de 1979; Paulo Sérgio  
Pinheiro e Michael Hall, A classe operária no Brasil: Documentos (1889-1930). Vol. 01: O movimento operário,  
publicado no ano de 1981, dentre outros.  
Lívia Cintra Berdu; Flávia Saragiotto Magalhães do Valle  
sua origem rural ou escrava como muitos o fizeram , demonstra uma evidente necessidade  
de se efetuar uma série de mediações acerca da composição social e étnico-racial dos mesmos  
ao longo do processo de formação da classe trabalhadora no país e, principalmente, de recuperar  
o denso histórico de lutas efetuadas pelos trabalhadores escravizados seja em conjunto aos  
trabalhadores “livres” ou não – nas plantações, fábricas, grandes indústrias e portos de diversas  
cidades do Brasil (Mattos, 2008).  
Em vista de ilustrarmos a questão aqui levantada, recorremos ao exemplo existente no  
setor de serviços, composto pelos portos e ferrovias, e considerado como um dos mais  
estrategicamente significativos do país naquele período, uma vez que concentrava um grande  
contingente de trabalhadores e, por outro lado, tinha o funcionamento básico da economia  
agroexportadora como sua dependente. Segundo Boris Fausto, tal determinação estrutural  
tenderia a se impor durante a década de 1920 e sobretudo na primeira metade da década de  
1930, quando as categorias de ferroviários e portuários - os quais eram fortemente influenciados  
pela tradição de trabalho e organização política provinda dos trabalhadores escravizados e  
libertos, e possuíam uma composição étnico-racial majoritariamente negra se tornaram o  
núcleo mais permanente do sindicalismo brasileiro naquele cenário (Arantes, 2010; Berdu,  
2018).  
Como ressalta o próprio autor, os portos possibilitaram também os primeiros contatos  
de trabalhadores brasileiros com o movimento operário organizado de outros países latino-  
americanos - bem como de outros continentes do globo -, em especial a Argentina, quando  
depois de uma greve dos trabalhadores da companhia Lloyd Brasileiro7, dois delegados da  
Federación Obrera Regional Argentina chegaram ao Rio de Janeiro em novembro de 1904  
visando uma articulação política entre eles. Tal encontro resultou num acordo entre a Sociedad  
de Resistencia Obreros del Puerto de Buenos Aires e a União dos Operários Estivadores, criada  
a partir da grande greve de 1903 na ex-capital federal (Fausto, 2016, p. 145-150).  
Nesse sentido, podemos destacar um importante aspecto provindo desta articulação de  
distintos setores de trabalhadores, o qual consiste em sua concepção internacionalista de luta e  
que se expressava, por um lado, na troca de experiências de organização e resistência política a  
partir de contribuições provenientes de diferentes lugares do mundo trazidas por via do  
Atlântico, além de sua composição social e étnico-racial bastante heterogênea, por outro.  
124  
7 O Lloyd Brasileiro foi uma grande empresa privada destinada à exploração dos serviços de navegação no país, e  
foi criada através do decreto n.208, de 19 de fevereiro de 1890. Após diversas transformações internas e risco de  
falência, teve apoio concedido pelo governo federal durante a década de 1930. Em 1937, dentro do contexto de  
aplicação do projeto nacional de industrialização, o governo Vargas incorporou a companhia à esfera federal, assim  
como havia ocorrido com diversas ferrovias do país (Camargo, 2021).  
Libertas, Juiz de Fora, v. 25, n. 1, p. 115-134, jan./jun. 2025. ISSN 1980-8518  
Particularidades do capitalismo no Brasil: superexploração da força de trabalho, racismo e mito da  
democracia racial no capitalismo dependente  
Colonialismo, racismo e o mito da democracia racial como elementos estruturantes  
do capitalismo brasileiro  
Historicamente, a teoria marxista foi uma importante ferramenta utilizada no intuito de  
compreender as particularidades do capitalismo na América Latina e, embora esta tenha tido  
alguns percalços ao longo de sua trajetória no continente, diversas contribuições foram feitas  
por autores marxistas que se preocuparam em dar a ênfase necessária à relação entre as  
categorias de raça e classe ao se debruçarem sobre a realidade específica deste território. Com  
o intuito de superar uma lógica em certa medida eurocêntrica - provinda da concepção marxista  
até então hegemônica, e não das elaborações dos próprios Marx8 e Engels -, a qual partia de um  
esboço por vezes evolucionista baseado em uma progressão linear dos modos de produção e  
que supostamente representaria um modelo universal a ser adotado, o marxista peruano José  
Carlos Mariátegui traçou elaborações acerca do tema de forma precursora durante a década de  
1920. Tanto na obra Sete Ensaios de Interpretação da Realidade Peruana, escrita em 1928,  
quanto no documento O problema das raças na América Latina9 - elaborado principalmente  
pelo historiador, sociólogo e jornalista -, este faz um importante exercício teórico de sublinhar  
elementos fundamentais no contexto latino-americano e peruano, em especial, como o papel  
desempenhado pelo colonialismo europeu e a importância de se pensar a realidade dos negros  
e indígenas, os quais representavam grande parte dos/das trabalhadores/as na região.  
Nesse movimento de articulação entre o particular e o universal, Mariátegui foi capaz  
de vincular a questão indígena à questão da terra - objeto de grande relevância para  
compreender a formação sócio-histórica do Peru e de diversos países da América Latina, como  
o Brasil -, identificando uma espécie de amálgama entre estruturas vistas como “arcaicas” e  
outras tidas como “modernas”, isto é, pré-capitalistas e capitalistas. Nesta linha de raciocínio,  
o autor verificou que, no processo de independência e na posterior formação da burguesia  
peruana, não houve a superação dos moldes coloniais nas esferas econômica e social, o que  
evidencia o caráter de subordinação das burguesias locais ao capital financeiro e à burguesia  
imperialista (Barros, 2023, p. 08).  
125  
8 Durante toda a guerra civil dos Estados Unidos (1861 - 1865), Marx e Engels elaboraram dezenas de artigos e  
trocaram inúmeras cartas discutindo a respeito do conflito entre a União (que defendia, em certa medida, a abolição  
dos afroamericanos escravizados) e o Sul escravista. Em artigo do historiador Kevin Anderson, este analisa uma  
carta de Marx a um amigo russo, Pável V. Ánnienkov, na qual Marx mencionava o Brasil, o Suriname e o sul dos  
EUA em alguns escritos sobre a escravização dos negros, se posicionando abertamente contra a mesma (cf.  
Anderson, 2019; Engels; Marx, 2022). Sobre as elaborações críticas de Marx a respeito do colonialismo, cf.  
Herrera (2019).  
9
Este documento foi escrito principalmente por Mariátegui e apresentado pelos representantes do Partido  
Socialista Peruano Hugo Pesce e Julio Portocarrero na I Conferência Comunista Latino-Americana, sediada em  
Buenos Aires, em 1929. O evento foi realizado em um contexto de calorosos debates a respeito do tema no âmbito  
da III Internacional Comunista.  
Lívia Cintra Berdu; Flávia Saragiotto Magalhães do Valle  
A partir de tais reflexões, Mariátegui pôde realçar, há quase um século, a condição de  
protagonistas aos negros e indígenas num processo de transformação social radical no  
continente latino-americano, uma vez que tais sujeitos estavam - e ainda estão - localizados em  
um ponto estratégico da luta de classes, ou seja, no elo de profundo entrelaçamento entre a  
exploração capitalista e o racismo, o qual é legitimado e potencializado por este modo de  
produção como mecanismo de superexploração da força de trabalho desses setores, por um  
lado, e o rebaixamento dos salários do conjunto da classe trabalhadora, por outro.  
Nesse sentido, tendo diversos pontos em comum com Mariátegui, podemos apontar as  
análises de Florestan Fernandes a respeito da formação social brasileira e a questão negra a  
partir do imediato período pós-abolição no país, no qual tais sujeitos estavam submetidos às  
piores condições de trabalho e vida em comparação aos trabalhadores imigrantes aqui  
instalados (Fernandes, 2008). Tal condição de subalternidade, a qual persiste até os dias atuais,  
provocou estudos do sociólogo no sentido de investigar as relações raciais no país e sua  
profunda conexão com as especificidades do capitalismo no Brasil, caracterizando-o pela  
primeira vez como dependente dos grandes centros do capital. Vale ressaltar ainda, que  
Florestan foi o primeiro grande propulsor da obra de Mariátegui no país, quando em plena  
ditadura empresarial militar, no ano de 1975, concentrou esforços para a publicação do livro já  
mencionado Sete Ensaios de Interpretação da Realidade Peruana pela editora Alfa Ômega  
(Mariátegui, 1975).  
126  
O fato é que o autor soube identificar, a partir dos lastros teóricos marxistas clássicos,  
que o modo de produção capitalista latino-americano se constituiu através da “modernização  
do arcaico” e da “arcaização do moderno”, ou seja, do processo de desenvolvimento das forças  
produtivas que, embora permitissem a consolidação da extração de mais-valor nos padrões mais  
avançados, não pôde romper com a estrutura colonial anteriormente imposta, a qual, na  
realidade, adquiriu novos contornos e contradições, configurando assim numa descolonização  
incompleta com elementos de ruptura, mas também de conciliação (Fernandes, 1973, apud  
Barros, 2023, p. 15).  
Vale destacar, além disso, que em sua obra do ano de 1989, O Significado do Protesto  
Negro, na qual apresenta elaborações mais sofisticadas a respeito da questão racial em relação  
à obra de 1964, o autor tece sobre a importância da articulação entre as categorias de raça e  
classe para uma análise mais acurada acerca da realidade de grande parte dos/as  
trabalhadores/as brasileiros/as e, ademais, aborda sobre a necessidade de os/as negros/as terem  
incorporadas suas demandas específicas nas reivindicações mais gerais da classe trabalhadora,  
visando sua unificação.  
Libertas, Juiz de Fora, v. 25, n. 1, p. 115-134, jan./jun. 2025. ISSN 1980-8518  
Particularidades do capitalismo no Brasil: superexploração da força de trabalho, racismo e mito da  
democracia racial no capitalismo dependente  
(...) existem trabalhadores que possuem exigências diferenciais, e é imperativo  
que encontrem espaço dentro das reivindicações de classe e das lutas de  
classes (...) em uma sociedade multirracial, na qual a morfologia da sociedade  
de classes ainda não fundiu todas as diferenças existentes entre trabalhadores,  
a raça também é um fator revolucionário específico. Por isso, existem duas  
polaridades, que não se contrapõem mas se interpenetram como elementos  
explosivos - a classe e a raça. Se a classe tem de ser forçosamente o  
componente hegemônico, nem por isso a raça atua como um dinamismo  
secundário. A lógica política que resulta de tal solo histórico é complexa. A  
fórmula “proletários de todo o mundo, uni-vos” não exclui ninguém, nem em  
termos de nacionalidades nem em termos de etnias ou de raça (...) Classe e  
raça se fortalecem reciprocamente e combinam forças centrífugas à ordem  
existente (...) (Fernandes, 2017, p. 84-85).  
Assim, o que pretende-se demarcar neste breve artigo, consiste no caráter estrutural e  
determinante da escravização negra africana como elemento fundante do capitalismo brasileiro,  
a qual foi forjada através de uma lógica pautada na inferiorização dos negros e negras como  
mecanismo de extração e acumulação de capital por parte dos colonizadores europeus e, como  
sinalizado anteriormente, que teve como uma de suas finalidades o rebaixamento dos salários  
do conjunto dos trabalhadores incluindo os imigrantes e europeus - no período final da  
escravização no país.  
Nesse sentido, é essencial ressaltar, portanto, que os estudos acerca da resistência  
escrava no país têm reformulado a história do movimento operário brasileiro nas últimas  
décadas, contribuindo assim para superar a lacuna historiográfica deixada por alguns dos  
clássicos do pensamento social brasileiro acerca da composição social e étnico-racial da classe  
trabalhadora que se gestava ao longo do século XIX. Na esteira dessas elaborações, é possível  
identificar uma outra visão acerca desses trabalhadores que, para além de representarem um  
componente essencial na formação cultural do país com sua valiosa tradição africana expressa  
nas músicas, religiões, culinária e costumes em geral, também ultrapassa a limitada noção  
baseada em uma suposta passividade e indulgência por parte desses sujeitos em relação aos  
seus senhores e patrões. Os historiadores João José Reis e Flávio Gomes reiteram:  
127  
(...) o incremento da importação de africanos a partir do início do século XIX  
favoreceu as revoltas no Brasil. Uma alta proporção de escravos da população  
e de africanos natos entre os escravizados reforçou a identidade coletiva e a  
percepção de força diante das camadas livres, mormente quando os cativos  
tinham perfis étnicos comuns. As revoltas e conspirações escravas na Bahia  
na primeira metade do século XIX, em número superior a três dezenas, foram  
promovidas por cativos de origem africana, em especial haussás e nagôs, que  
formavam grandes colônias étnicas na região, chamadas no Brasil de  
“nações”, como o eram em toda a América: nación, nation, natie, etc. Da  
mesma forma que no Caribe setecentista, o vínculo entre concentração étnica  
- africanos de igual nação - e revolta se verificou na Bahia, embora não fosse  
o único fator a concorrer para a rebeldia. Entre outros, contaram também a  
experiência guerreira dos envolvidos, sua filiação religiosa (os muçulmanos  
Lívia Cintra Berdu; Flávia Saragiotto Magalhães do Valle  
podiam ser particularmente militantes) e as condições da escravidão local  
(Gomes, Reis, 2021, p. 13-14).  
Como é evidenciado pelos autores, os trabalhadores escravizados concentrados no  
estado da Bahia desenvolveram um papel crucial na luta por sua emancipação, chegando a  
organizar cerca de trinta greves e revoltas somente na primeira metade do século XIX - como  
a conhecida Revolta dos Malês, ocorrida em 1835 -, as quais foram articuladas a partir de  
elementos que os unificava. O estudo dessas mobilizações e conflitos auxiliam ainda na  
desconstrução da difundida ideia de que os trabalhadores imigrantes - sobretudo europeus e  
anarquistas - foram os únicos responsáveis pela densa tradição de luta e consciência política  
trazida para o país durante a transição do século XIX para o início do século XX, destacando o  
protagonismo negro nesse longo percurso.  
Nesse mesmo prisma, Clóvis Moura, importante teórico marxista e militante comunista  
e do movimento negro nas décadas de 1970 e 1980, afirmava em 1995 sobre a necessidade de  
que a história do trabalho no Brasil fosse reescrita, de modo a incluir os trabalhadores  
escravizados e libertos no processo de formação da classe trabalhadora brasileira, ressaltando  
também suas ferramentas e mecanismos de reivindicação:  
(...) Aprática dos senhores de escravos, que era quem fazia a política da época.  
Então, por isso não temos uma história escrita pelos que foram os seus agentes  
históricos. Não temos uma história que conte como o povo brasileiro criou a  
história trabalhando. Criando o trabalho, querendo trabalho. Como ele lutou  
para melhorar o trabalho no Brasil. Temos a história das ideologias, a história  
das religiões… Mas não como o trabalhador se organizou, se compôs. Como  
ele lutou contra os níveis de exploração sucessivos que apareceram. (...) Como  
capitalista dependente, a sociedade brasileira soube manipular um mito: a  
inferioridade do negro, a incapacidade do trabalho negro - para justificar a  
passagem da escravidão e do tráfico negreiro para o tráfico branco, que era  
exatamente o tráfico de imigrantes. Em tudo isso entra um componente étnico,  
porque o problema da imigração tem dois aspectos: primeiro, o  
branqueamento da sociedade brasileira; segundo, o grande comércio que  
foram as empresas de imigração no Brasil, controladas pelas grandes famílias  
(Moura, 1995, p. 51-57).  
128  
Esse seu trecho expressa de forma lúcida tanto a necessidade da centralidade do trabalho  
e dos trabalhadores escravizados e livres para uma análise mais precisa acerca da realidade no  
país, quanto a estreita relação entre a exploração capitalista e a opressão étnico-racial que, no  
caso do Brasil, perpassou por toda sua história desde sua invasão pelos portugueses e a violenta  
colonização dos indígenas e povos originários aqui instalados. Assim como destaca em outras  
obras, sinaliza que, em se tratando especificamente deste modo de produção, possui incontáveis  
mecanismos para se reformular e potencializar a condição de inferiorização e subalternização  
Libertas, Juiz de Fora, v. 25, n. 1, p. 115-134, jan./jun. 2025. ISSN 1980-8518  
Particularidades do capitalismo no Brasil: superexploração da força de trabalho, racismo e mito da  
democracia racial no capitalismo dependente  
dos trabalhadores negros e negras, lógica esta assaz lucrativa e funcional à superexploração  
desta camada da população (Moura, 2019; 2020).  
Ademais, Moura complexifica a questão ao pontuar acerca da exploração dos  
trabalhadores imigrantes que, apesar de terem sido sobretudo europeus trazidos para o Brasil  
com o objetivo de “diluir” progressivamente o sangue negro da população trabalhadora,  
provinham majoritariamente das camadas mais baixas dos países menos abastados da Europa  
Ocidental, e permitiam, ao mesmo tempo, o enriquecimento das famílias brasileiras tradicionais  
ligadas ao tráfico.  
Assim, nessa linha de análise, é necessário encarar o racismo como um pilar essencial -  
e não apenas acessório - nas relações sociais de produção e reprodução capitalista no Brasil,  
buscando compreender sua articulação estrutural na divisão social do trabalho, nos marcos do  
capitalismo dependente, já que este configura-se como um elemento organizador na produção  
de mais-valor a partir da hierarquização racial e étnica (Souza, 2023, p. 21).  
Nesse prisma, vale ressaltar que, historicamente, são justamente os trabalhadores negros  
e indígenas e, principalmente, as mulheres negras aquelas mais afetadas pela condição  
periférica reservada ao capital brasileiro, uma vez que estão majoritariamente inseridas nas  
categorias mais precárias de trabalho, em grande parte desvinculados de seus direitos  
trabalhistas, sindicais e previdenciários e, além disso, compõem grande parte dos milhões de  
trabalhadores que não conseguem sequer acessar o mercado de trabalho no país. Como destaca  
Martins, tais sujeitos “saíram das relações escravistas e adentraram as relações de trabalho  
capitalistas já na condição de reserva de força de trabalho” (Martins, 2021, p. 32). Ademais, a  
partir de tais marcadores sócio-históricos determinantes aqui destacados, é possível  
compreender de forma mais qualificada a própria conformação da questão social no Brasil e,  
além disso, as causas da presença majoritária das trabalhadoras e trabalhadores negros em suas  
diversas expressões (Martins, 2021, p. 40).  
129  
Nesta perspectiva, cabem aqui breves apontamentos a partir de contribuições feitas pelo  
filósofo, psiquiatra e ativista martinicano Frantz Fanon acerca das múltiplas combinações entre  
o racismo, o processo de colonização europeia e seus reflexos na dinâmica produtiva do capital  
e na esfera ideológica entre os trabalhadores e subalternizados. Em uma interlocução com a  
teoria marxista, com a qual Fanon dialogou ao longo de sua produção intelectual, o autor  
argumenta que esta necessitaria de uma considerável “amplificação” para dar conta dos  
elementos coloniais e também subjetivos dos negros e negras, possibilitando assim, uma  
“tomada de consciência” por parte dos mesmos (Faustino, 2018), conforme assegura no  
seguinte trecho:  
Lívia Cintra Berdu; Flávia Saragiotto Magalhães do Valle  
Quando se percebe na sua imediatez o contexto colonial, é patente de que  
aquilo que fragmenta o mundo é primeiro o fato de pertencer ou não a tal  
espécie, a tal raça. Nas colônias, a infraestrutura econômica é também uma  
superestrutura. A causa é consequência: alguém é rico porque é branco,  
alguém é branco porque é rico. É por isso que as análises marxistas devem ser  
ligeiramente estendidas, a cada vez que se aborda o problema colonial (Fanon,  
2010 apud Faustino, 2018, p. 151-152).  
Fanon analisa, deste modo, que o racismo consistiria - além de um produto desta  
dominação econômica, social e cultural, na qual a violência praticada pelos grupos dominantes  
contra os/as negros/as cumpre um papel determinante - num processo no qual a desarticulação  
das forças dos dominados e sua exploração e subordinação em diferentes dimensões tem um  
poder imbuído de múltiplas determinações e complexificações. E como sinaliza Faustino, os  
aportes trazidos pelas ideias e escritos do autor martinicano vêm no sentido de complementar a  
teoria marxista, e não contrapô-la, uma vez que o próprio racismo tem sido historicamente  
incorporado e reforçado pela exploração capitalista de maneira expressamente funcional à sua  
constituição, desde sua origem no processo de acumulação primitiva de capitais (Marx, 2013,  
p. 821). Faustino explicita tal inter-relação entre os elementos referidos:  
Não se trata aqui de afirmar que o racismo é um epifenômeno das contradições  
de classe e muito menos que este se dissolveria diante de uma solidariedade  
abstrata entre os proletários do mundo, mas, sim, ao contrário, que o racismo  
é apropriado, na sociedade moderna, como elemento que torna possível o  
empreendimento colonial, tão vital, num primeiro momento, à acumulação  
primitiva de capitais e, num segundo momento, à exportação desigual e  
combinada das contradições implícitas ao sistema para a sua periferia global  
(Faustino, 2018, p. 153).  
130  
Considerando o contexto brasileiro e as especificidades do racismo no país, é  
fundamental traçarmos, por fim, alguns elementos em relação à conformação ideológica  
representada pelo chamado mito da democracia racial, engendrado a partir dos anos 1920 e  
1930 no país e que, articulado pelo projeto de governo e de nação delineado durante a era de  
Getúlio Vargas, foi propagado como discurso oficial com o intuito de cristalizar a ideia de que  
no Brasil não havia racismo contra os negros e negras. Ao se comparar o país aos Estados  
Unidos o qual atravessava uma onda brutal de violências contra os/as afro-americanos/as,  
como linchamentos e execuções praticadas pelos grupos supremacistas brancos como a Ku  
Klux Klan , alimentava-se a ideia de que, pelo fato de não haverem leis racistas e  
segregacionistas legitimadas pelo Estado brasileiro, isso significa que no país as relações raciais  
se davam de forma harmônica e pacífica.  
Assim, desenvolvido a partir de obras clássicas como a de Gilberto Freyre, Casa  
Grande e Senzala, o mito da democracia racial tornava-se uma espécie de senso comum,  
cumprindo, ao mesmo tempo, distintos papéis na sociedade brasileira. Se, por um lado, este  
Libertas, Juiz de Fora, v. 25, n. 1, p. 115-134, jan./jun. 2025. ISSN 1980-8518  
Particularidades do capitalismo no Brasil: superexploração da força de trabalho, racismo e mito da  
democracia racial no capitalismo dependente  
respondia às necessidades políticas impostas ao pensamento social brasileiro na medida em que  
se acirravam as tensões internacionais em torno da questão racial na Europa e se exigia uma  
ruptura com as ideias explicitamente racistas provindas da eugenia e do nazifascismo naquele  
período, por outro lado, correspondia a uma tentativa de neutralizar as iniciativas de  
contestação, organização e resistência política da população negra frente ao racismo e a  
discriminação racial existente no país. Munanga escreve a respeito:  
O mito da democracia racial, baseado na dupla mestiçagem biológica e  
cultural entre as três raças originárias, tem uma penetração muito profunda na  
sociedade brasileira: exalta a ideia de convivência harmoniosa entre os  
indivíduos de todas as camadas sociais e grupos étnicos, permitindo às elites  
dominantes dissimular as desigualdades e impedindo os membros das  
comunidades não-brancas de terem consciência dos sutis mecanismos de  
exclusão da qual são vítimas na sociedade. Ou seja, encobre os conflitos  
raciais, possibilitando a todos se reconhecerem como brasileiros e afastando  
das comunidades subalternas a tomada de consciência de suas características  
culturais que teriam contribuído para a construção e expressão de uma  
identidade própria. Essas características são “expropriadas”, “dominadas” e  
“convertidas” em símbolos nacionais pelas elites dirigentes (Munanga, 1999,  
p. 80).  
Sendo assim, trata-se de reafirmar que o mito da democracia racial consistiu em parte  
fundamental do processo de consolidação do capitalismo brasileiro, de forma a apagar os  
conflitos existentes entre os trabalhadores negros e seus senhores e patrões que perduravam  
desde o período da escravização e, além disso, como forma de escamotear as tensões raciais  
que também existiam em diferentes espaços de trabalho e sociabilidade ocupados pelo conjunto  
heterogêno da classe trabalhadora. Dessa forma, criou-se uma falsa noção de igualdade racial  
no mercado de trabalho, assim como nas áreas da educação, saúde e demais condições de vida  
desses sujeitos, deslegitimando suas reivindicações. Aliado a este elemento, como exigia o  
projeto de nação varguista, incorporava-se diferentes características provindas da cultura  
africana como forma de fortalecimento de um governo autoritário e reacionário, mas que,  
todavia, se mostrava inclusivo com a figura do negro enquanto integrante real da pátria, num  
evidente intuito de cooptá-los. Podemos afirmar, nesta mesma perspectiva, que vários aspectos  
dessa mesma lógica ainda se mantêm nos dias atuais, uma vez que a ideia de que o Brasil é um  
país destituído de segregação, preconceito e discriminação racial é profundamente propagado  
atualmente.  
131  
Portanto, diante de todo o exposto neste trabalho, fica evidente o papel desenvolvido  
pelo racismo ao longo da história do país enquanto um mecanismo real de fortalecimento e  
legitimação do trabalho escravizado durante o período colonial e, no cenário atual, como  
instrumento para a garantia da superexploração da força de trabalho dos sujeitos  
Lívia Cintra Berdu; Flávia Saragiotto Magalhães do Valle  
subalternizados na esfera produtiva do capital. Concomitantemente, num país de capitalismo  
dependente e periférico como o Brasil, esta forma de opressão, entrelaçada à exploração,  
provoca ainda a exclusão desses mesmos setores do processo de circulação do capital,  
impedindo seu acesso até mesmo como meros consumidores de mercadorias, ou impedindo  
condições dignas de vida, escancarando o abismo social existente para esta imensa parte da  
população brasileira.  
Considerações finais  
Como desenvolvido neste trabalho, verificamos que a tradição marxista foi responsável  
pela elaboração de inúmeras reflexões acerca da conformação do capitalismo em diferentes  
países, incluindo aqueles que se diferenciavam da realidade observada na Europa Ocidental,  
como os situados no continente latino-americano, como o Brasil. Apesar de alguns percalços  
ao longo de todo o percurso teórico-político na região, tais ideias foram capazes de se atualizar  
e se renovar, ajustando assim determinadas imprecisões e abarcando distintas realidades e  
particularidades, partindo de uma perspectiva totalizante que relacionasse os aspectos  
universais aos singulares, num movimento dialético de aproximações e mediações.  
Em se tratando da realidade brasileira, identificamos neste artigo algumas  
especificidades que se entrelaçam na produção e reprodução capitalista desde o período anterior  
à conformação deste modo de produção, ou seja, durante o período colonial e escravista, e a  
acumulação primitiva de capitais. Nesse sentido, com traços de continuidade e permanência, a  
chaga histórica do racismo possui uma condição profundamente estruturada e estruturante na  
superexploração da força de trabalho no país, uma vez que tal combinação é utilizada e  
legitimada como mecanismo de garantia para a acumulação de capital interna e, por outro lado,  
a apropriação de parte considerável do lucro (mais-valor) produzido e demandado pelo capital  
imperialista. Nesse movimento inerente ao capitalismo dependente dos grandes centros,  
tornam-se indissociáveis as péssimas condições de vida e trabalho dos trabalhadores e  
trabalhadoras do país - em especial das mulheres negras, negros e indígenas -, além da elevada  
concentração de renda e riqueza e o recrudescimento das diferentes expressões da “questão  
social”, decorrentes do próprio desenvolvimento do capital.  
132  
Por fim, analisamos neste texto uma especificidade do racismo brasileiro, ou seja, o mito  
histórico de uma suposta democracia racial existente no país, construído ao longo dos últimos  
cem anos e legitimado como discurso oficial pelos governos e as classes dominantes e criado  
em oposição a outros países que receberam trabalhadores africanos escravizados no continente  
americano, como os Estado Unidos. Nesse prisma, o mito de que as relações raciais no Brasil  
Libertas, Juiz de Fora, v. 25, n. 1, p. 115-134, jan./jun. 2025. ISSN 1980-8518  
Particularidades do capitalismo no Brasil: superexploração da força de trabalho, racismo e mito da  
democracia racial no capitalismo dependente  
se dão de forma harmoniosa e destituída de tensões e conflitos tem como principal intuito  
neutralizar as iniciativas de contestação, organização e resistência política da população negra  
frente ao racismo e a brutal discriminação racial existente no país.  
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A superação do obstáculo epistemológico do  
mulato: método e ambiguidade  
Overcoming the epistemological obstacle of the mulatto: method and  
ambiguity  
Erykah Rodrigues dos Santos Iturriet*  
Rafael Cardiano**  
Resumo: Findando uma orientação de pesquisa  
que percorre o tema das identidades pretas e  
pardas brasileiras, o objetivo deste trabalho está  
Abstract: Finding a research orientation that  
covers the theme of Brazilian black and brown  
identities, the objective of this work is related to  
the brown position of ambiguity centered as an  
analysis methodology, in addition to its  
fundamental characteristic in the Brazilian  
racist ideological system. Therefore, the way in  
which the brown classification was constructed  
in Brazilian society is full of variations that need  
to be organized from a political-revolutionary  
point of view, questioning the old ways of  
perception fought by social sciences, without  
forgetting the prism of social structures that  
influence the reading perception of black  
Brazilian subjects.  
relacionado com  
a
posição parda de  
ambiguidade centrada como metodologia de  
análise, além de sua característica fundamental  
no sistema ideológico racista brasileiro.  
Portanto, a maneira pela qual se construiu a  
classificação parda na sociedade brasileira está  
cheio de variações que precisam ser organizadas  
partindo de um ponto de vista político-  
revolucionário, questionando as maneiras  
antigas de percepção aguerridas pelas ciências  
sociais, sem esquecer o prisma das estruturas  
sociais que influem na percepção de leitura dos  
sujeitos negros brasileiros.  
Palavras-chaves: Raça; Negros brasileiros;  
Sociologia negra; Decolonial e contracolonial;  
Pardo.  
Keywords: Race; Black brazilians; Black  
sociology; Decolonial and countercolonial;  
Brown.  
Introdução  
Este trabalho é fruto de uma extensa pesquisa bibliográfica que perpassa a experiência  
de pretos e pardos, donde permitem a (re)existência de novas epistemologias com enfoque no  
Sul Global. Dito isso, a experiência da identidade se projeta na realidade social e coincide com  
as dificuldades e opressões percebidas ou não pelas pessoas, além de interessar as ciências  
* Centro Universitário Internacional. E-mail: henricoi@hotmail.com  
** Universidade Federal do Pampa. E-mail: rafaelcardiano.aluno@unipampa.edu.br  
DOI: 10.34019/1980-8518.2025.v25.46478  
Esta obra está licenciada sob os termos  
Recebido em: 06/11/2024  
Aprovado em: 03/04/2025  
Erykah Rodrigues dos Santos Iturriet; Rafael Cardiano  
sociais justamente por sua característica dinâmica e metodológica complexa que permite  
desvelar espaços sociais cada vez mais embutidos de sentido, signos, convenções, regras,  
denominações e divisões inoperantes frente a conquista e construção de um novo futuro.  
Logo, não será contraditório tratar a contradição, além do nível marxista “ortodoxo”  
geral, uma complexidade maior do que já é. Por diversas vezes, a motivação surgiu de uma  
negação identitária vindo do grupo de pessoas pretas, que nunca julgaram-se como culpadas  
dessa atribuição, e, por outro lado, a negação de espaços1 majoritariamente brancos quando  
nossos corpos, nossas palavras e nossas ideias eram desconsiderados sem nenhum tipo de  
reflexão pelo espaço que é considerado socialmente como deles. O contato com as dinâmicas  
de opressão e dominação levaram a refletir sobre as metodologias de análise destas realidades  
e, portanto, pensar de que forma a realidade social se abriga em metodologias europeias-  
coloniais, criadas justamente para uma dada Teoria da Diferenciação, em contraste com uma  
forma prática de analisar a realidade de maneira dinâmica, está sendo a Teoria da Diferença.  
O título do trabalho remete a um artigo importante escrito por Eduardo de Oliveira e  
Oliveira com o nome Mulato: o obstáculo epistemológico (1974), que por inúmeras tentativas  
de formulação no escopo dos cientistas sociais, até hoje permanece uma incógnita devido à  
dificuldade de atribuição política e os sentidos imbuídos de intersecções simbólicas e rígidas  
frente a estratificação objetiva do capitalismo brasileiro. Logo, o sentido de superação do  
obstáculo se propõe a construir uma visão epistemológica que compreende a necessidade de  
realocar o problema estrutural do conhecimento e reorientar seus mecanismos de análise frente  
às subjetividades negras construídas no Brasil, ao mesmo tempo que supera essa classificação  
e passa a ver o “mulato”, hoje pardo, como um dilema político que se firma com ambiguidade  
em suas relações sociais e confirma um projeto de resistência e conformismo, desvelando a  
análise das contradições como importante mecanismo de interpretação de simbolismos e de  
finalidades nos aparelhos ideológicos dos discursos racistas e do sistema estrutural do racismo  
brasileiro.  
136  
Meu Brasil… terra de quem?  
A dificuldade de analisar uma terra contraditória desde sua origem remete a uma  
tentativa sistemática de cientistas sociais de “desvelarem” a realidade social em prol de uma  
1
Quando nos referimos aos “lugares de branco” na sociedade, estamos fazendo referência às demarcações  
historicamente situadas nas instituições sociais e nas estruturas sociais do país. Cida Bento (2022) em O pacto da  
branquitude vai dar caráter científico a essa tipologização pela delimitação do senso comum compartilhado a um  
determinado espaço que pertenceria a alguma raça, o que serve como mecanismo de reprodução de poder branco  
e ao mesmo tempo de exclusão da população negra.  
Libertas, Juiz de Fora, v. 25, n. 1, p. 135-156, jan./jun. 2025. ISSN 1980-8518  
A superação do obstáculo epistemológico do mulato: método e ambiguidade  
bifurcação diferenciadora. A terra do pau-brasil, da abundância paradisíaca, o trópico onde os  
pecados não têm vez, é fundada por estruturas violentas e que tornam o Brasil, primordialmente,  
uma forma de sociedade autoritária (Chaui, 2000; 2023).  
Aliada a concepção decolonial e contracolonial, percebemos o difícil abismo que  
decorre dos silêncios das sociedades brasileiras devido a destruição sistemática de saberes e da  
assimilação de comportamentos brancos que confluem numa nova perspectiva simbólica na  
dimensão metodológica das ciências sociais (Ribeiro, 2015), e que está intimamente ligada com  
a construção dos saberes europeus “marginalizados”, mas que tomam uma face hegemônica  
devido ao sentido da colonialidade das epistemologias (Quijano, 2009). O que importa nesta  
pesquisa, é seguir o imperativo essencial para a construção de uma linguagem própria e que  
transgride a necessidade de se ancorar nas concepções dominantes no campo das ciências  
sociais: o objetivo aqui é compor uma análise com pensadores latino-americanos, dando  
primazia aos brasileiros, do mesmo modo que tem em vista a superação dos próprios  
mecanismos que constroem o discurso da escrita científica, pois o mesmo está em contato com  
a sub-estrutura dominante da epistemologia europeia.  
Isso não significa ignorar ou negligenciar a metodologia europeia e norte-americana  
das ciências sociais, pelo contrário, usa da defesa se apropriando da arma que tirou, em primeiro  
lugar, nossa voz de exposição (Santos, 2023) e de colocação num lugar ao mundo (Ribeiro,  
2017). Então questiono a construção da terra do Brasil, e deste modo se coloca uma posição na  
historiografia brasileira para determinar de que maneira alguns processos sociais foram  
construídos para a consolidação de estruturas que tem o lócus no racismo (Oliveira, 2021;  
Theodoro, 2022) e sua respectiva subalternização nos espaços de apagamento que são  
determinados e abstralizados (Gomes, 2017) pelo grupo dominante que cria as referências de  
aparição na sociedade brasileira: a branquitude (Bento, 2022).  
137  
Para pensar uma genealogia conceitual, é necessário, primeiro, desenhar o terreno  
histórico determinado para analisar, de maneira dinâmica e mais precisa, a existência de  
determinado conceito enquanto tal (Mészáros, 2008). Caso contrário, este será apenas mais um  
dos potencializadores da ideologia e de um pensamento circundante, que cria os próprios  
pressupostos para firmar a necessidade de existência de seus posteriores, uma questão de  
método essencialmente ideológica (Chaui, 2023; Mészáros, 2008).  
O caminho de tudo possui uma historiografia própria (Robinson, 2023), a  
mercantilização do capitalismo na “Europa” e a sua disseminação para a constituição de capital  
industrial demandava algo que por dentro dos limites territoriais materiais dos então em  
formação Estados-nações não poderiam se arriscar a construir: um trabalhador superexplorado  
Erykah Rodrigues dos Santos Iturriet; Rafael Cardiano  
que precisasse exclusivamente de uma relação subordinada ao que Marx (1988) construiu como  
motor de movimento da história: a luta de classes. Por mais que pensadores brasileiros e o  
próprio Marx (2013) tenha o feito em O Capital, o principal ponto que permitiu a acumulação  
do que é chamado de “capital primitivo” foi a submissão da mão de obra escravizada dos países  
colonizados para a possibilidade de expropriação dos países europeus (Quijano, 2009; Furtado,  
2007; Robinson, 2023), e aqui tem-se a centralidade da Inglaterra como pólo político e  
urbanizado, que com a Guerra dos Cem Anos conseguiu uma parcela de expropriação da  
França, do mesmo modo que conseguiu subalternizar Portugal nos tratados de comércio, assim,  
passando primeiro pela famosa Revolução Industrial (Fernandes, 2020; Robinson, 2023;  
Tavares, 2019). Donde, finalmente, se logra a um novo tipo de acumulação do sistema de  
capital. O modo de produção e de acumulação mercantilista, caminha progressivamente nos  
países centrais à manufatura e ao capital industrial.  
Além da visão economicista que predominou nos sentidos positivistas das ciências  
sociais durante o século XIX e a metade do século XX, os Estados-nações eram percebidos  
como disputas geopolíticas intermitentes frente a necessidade de exploração de terra e mão de  
obra para o processo de assalariamento e da criação de um proletariado urbano submetido às  
leis da indústria e a burguesia emergente (Robinson, 2023; Chaui, 2023). Neste sentido, o  
expresso de Hegel sobre a dominação se deu sobre o aspecto da divisão entre “letrados” e  
“iletrados”, “cultos” e “não-cultos”, deu sentido às formas de consolidação da soberania estatal  
do republicanismo na era iluminista, que perpassou a uma ideia de “massas” sobrecarregadas  
nas concepções à esquerda e à direita em todo o globo no século XX (Chaui, 2023). Essas  
dimensões pesam sobre um plano de fundo antropológico pouco discutido na hora de distribuir  
a posição de gênero, raça e sexualidade nas análises centrais nos centros de dominações  
confluentes, entendidos como não centrais (estruturais), mas como superestruturas, nos termos  
marxistas, de reflexos da divisão social das classes sociais e dos conflitos intermitentes do  
mundo social.  
138  
O sociólogo Aníbal Quijano (2009) questionou o materialismo dialético de Marx, ao  
propor a reorientação da realidade latino-americana e os papéis atribuídos à invenção da  
“América” como discurso e como realidade material devido a invasão da então fragmentada  
ideia europeia de identidade. Ao pôr em questão as determinações historiográficas do sentido  
diacrônico dos termos que foram construídos subjacentes às visões ocidentais, que já tinham  
em suas epistemologias as construções dicotômicas que imperaram o pensamento das ciências  
sociais desde sua consolidação positivista no século XIX (Adorno; Horkheimer, 1985), Quijano  
Libertas, Juiz de Fora, v. 25, n. 1, p. 135-156, jan./jun. 2025. ISSN 1980-8518  
A superação do obstáculo epistemológico do mulato: método e ambiguidade  
(2009) se propõe a atacar as bases das epistemologias europeias-coloniais em suas funções  
estruturantes.  
A função da criação do termo cunhado por Quijano (2009) de “Colonialidade do Poder”  
permitiu a reorientação da dialética racista que toda epistemologia que separa coisa de pessoa,  
ou melhor, que cria o processo de coisificação através da metodologia homogeneizadora  
idealista (ou seja, que torna abstrata sistemas reais de pensamento), tem uma prospecção  
colonial devido a aplicação dessas ideias em povos africanos, latino-americanos e asiáticos. Ou  
seja, Quijano reorienta o processo de mundialização não apenas como um substrato da  
necessidade de acumulação primitiva, mas como necessidade de rearticulação identitária para  
a capacidade de invenção do nacional e de sua legitimidade como soberania para o  
funcionamento do Estado em seus diversos Eixos de Poder (Chaui, 2023; Quijano, 2009). É o  
que funda a modernidade.  
Portanto, o autor cunha a “América” como o Centro da mundialização do capital, porque  
sem ela, a “Europa” nunca teria sido inventada como homogeneização abstrata de dominação  
frente aos povos que necessitam dominar para sua própria autoafirmação como Ser, logo, como  
detentores dos meios de produção, dominação, silenciamento e aparição (Gomes, 2017). E  
abstrata porque Robinson (2023), ao investigar a Europa pré-colonial, demonstra que a visão  
construída sobre um povo europeu patriótico e único é completamente falsa devido aos  
inúmeros conflitos de terra e de dificuldade de formulação das ideias de Estados-nações, que  
de fato foram existir a partir da criação das Américas e que deu ar mais consolidado ao  
imperialismo.  
139  
O filósofo Enrique Dussel (1995) se aprofundou nesse processo de americanização das  
“terras americanas” e da maneira no qual o processo idealista de identidade europeia se formou  
com o discurso da modernidade, ao passo que fundou o que chama de ideologia da exclusão,  
ou melhor, o sentido direto da Colonialidade do Poder. Não é surpresa que o processo de  
modernização foi e é um processo que capitaneou múltiplas interpretações dentro do campo das  
ciências sociais. Ele tem origem desde a formulação do pensamento romântico na Europa,  
pinceladas do idealismo alemão, contrastes entre a teoria política dos contratualistas na época  
iluminista, e influência direta da consolidação da ideologia liberal como política-econômica na  
Inglaterra (Adorno; Horkheimer, 1985; Chaui, 2023; Mészáros, 2007). Por outro lado, a visão  
da Antropologia também era dotada de formulações racistas que fundaram inúmeros sentidos  
nas técnicas empregadas no Brasil, tendo seu ápice na junção do aparato jurídico-estatal a um  
projeto de Brasil higienista e eugênico (Munanga, 2020; Goés, 2022; Theodoro, 2022; Chaui,  
2000; Segato, 2021).  
Erykah Rodrigues dos Santos Iturriet; Rafael Cardiano  
As características dos “Europeus”, a grande nova invenção, eram simplificadas em:  
civilizado (visão positivista e dividida pela visão de cultura erudita da época) (Chaui, 2000),  
moderno (dotado de um novo tipo de trabalho capitalista que rege a ideia desenvolvimentista  
de ideal de nação) (Dussel, 1995) e, mais importante, Branco (consolidando o termo raça como  
o principal diferenciador dentro das estruturas orientadas pelos Eixos de Poder) (Quijano, 2009;  
Gordon, 2023). Neste meio, a construção de soberania e da nação em si privilegiou a adoção da  
apropriação do popular pelos meios dominantes, e assimilou-os em uma espécie de formação  
de caráter nacional e de identidade nacional (Chaui, 2023; 2000).  
Todas essas atribuições determinavam o que era visto, de que forma era visto, e por  
quem era visto: tendo predominância aqueles que detinham os meios de formulação e, por outro  
lado, tinham posse das relações sociais que desenrolaram nos países subjacentes à dominação.  
Percebam, não há processos estáticos que demarcavam a noção de construção histórica dessas  
identidades, porque é um processo que se retroalimenta, se produz e reproduz até hoje. Logo,  
os espaços sociais, além de construções dialéticas e materiais historicamente determinadas,  
estão sempre em disputa para a consolidação de uma nova perspectiva que supere os entraves  
do passado, mas, que pelas cadeias estruturais do poder, também são orientadas ao conformismo  
e a idealização (Chaui, 2023). Falar desse jeito implica que a invenção das nações se deu em  
concomitância com todos os outros processos que produziam setores de desigualdade  
estabelecidos (Theodoro, 2022), que são logicamente interseccionais por sua origem (Quijano,  
2009; Gonzalez, 2020), donde se transformam na prática real da cotidianidade dos indivíduos,  
pelo qual são atribuídos sentidos pelos processos imbricados. Falar da invenção brasileira é  
falar da consolidação do seu povo não como material estilístico, retórico ou idealista, é  
necessário falar sobre uma forma que contém conteúdos diversos e heterogeneamente  
conectados (Quijano, 2009), e que respaldam na noção de ideologia marxiana (Marx; Engels,  
2021; Chaui, 2008) que admite, pelo menos, as divisões internas que o conceito de luta de  
classes abarca na sua totalidade.  
140  
Os povos, nesse sentido, são a expressão do popular dominado como maneiras de  
intersecção conformistas ou/e de resistência (Chaui, 2023), fundados por uma sociedade  
instituída pela formação da Colonialidade do Poder e da raça (Quijano, 2009), donde obtém  
referências de um ideal “civilizado”, “progressivo” e “branco” (Dussel, 1995; Gordon, 2023)  
alicerçado no projeto de sua própria invenção, do mesmo modo que coloca num jogo de disputa  
política as classificações epistemológicas e as vozes dos indivíduos que são determinados  
historicamente pelas condições que vivem (Freire, 2022), e pela atribuição de consciência  
construída por eles mesmos (Segato, 2021), isto é, a dominação não absoluta. Isto tudo dentro  
Libertas, Juiz de Fora, v. 25, n. 1, p. 135-156, jan./jun. 2025. ISSN 1980-8518  
A superação do obstáculo epistemológico do mulato: método e ambiguidade  
de uma lógica que é orientada por um centro de atividade social determinada pelo capital  
(Mészáros, 2007), e complexificada pelo racismo e pelas divisões internas e externas das classes  
sociais (Oliveira, 2021; Marx; Engels, 2021).  
Pensar as condições de uma classificação brasileira, é refletir, antes de chegar ao Brasil  
como comandante do navio, as perspectivas passadas que orientam a visão do colonizador e a  
atribuição do colonizado como um status de construção de coisa. De fato, diferenciadora e não  
diferente (Barroso, 2016).  
E chegando no Brasil, descobrimos que as relações que fundam a nossa estrutura são  
violentas, depravadas e sem óptica para se revestir de um espelho narcísico. O Brasil começa  
como terra demarcada, logo após a invenção da colonialidade com a chegada de Cristóvão  
Colombo (Robinson, 2023; Quijano, 2009). Os indígenas que aqui estavam, encontraram-se  
com os navios aportados e foram ideológica e materialmente dominados pelos Portugueses que  
aqui abarcavam. Um dos conceitos que orienta esse contato, num erro metodológico no mínimo  
colonial, foi compreender o “sincretismo brasileiro” e a “assimilação” como estipêndio da  
naturalização “hibridista” do contato entre nativos e colonizadores (Moura, 2019). Clóvis  
Moura salienta que o caráter de utilização desses termos, para construir uma sociologia do negro  
brasileiro, é complexa e necessita de preocaução para ser trabalhada. Afinal, em contato com  
uma cultura e um povo completamente diferente do seu, as articulações e dispositivos de poder  
existentes (Foucault, 2021; Butler, 2022; Carneiro, 2005), produzem um etnocídio sistemático  
para a consolidação de uma única alternativa de prática real: aquelas com a intromissão do  
branco (Gonzalez, 2020; Mombaça, 2015).  
141  
Em contraste com a máscara que africanos escravizados eram forçados a utilizar como  
punição para não angariarem motins e rebeliões (Kilomba, 2017), o precedente indígena que  
aqui vivia foi dominado pela lógica assimilacionista materializada na prática do cunhadismo  
(Ribeiro, 2015), que consistia na miscigenação orientada para o controle dos indígenas, uma  
forma de biopoder depositado em um corpo (Mbembe, 2018), ao mesmo tempo que funcionava  
como válvula de vigilância (Foucault, 2021; Ribeiro, 2017) perante outros indígenas, e que se  
interseccionavam com a classe dominante em construção. A figura do Caboclo é então  
construída (Moura, 2014; Ribeiro, 2015). A formação da dominação estratégica do colono tem  
uma das suas funções tomar posse do corpo do colonizado, descrevê-lo, determiná-lo  
essencialmente, e orientá-lo como força de vigilância e produção para o seu enriquecimento,  
fortalecimento e legitimidade de poder, assim como determiná-lo em uma posição social  
construída para o próprio processo de consolidação de identidade.  
Erykah Rodrigues dos Santos Iturriet; Rafael Cardiano  
O chamado processo de branqueamento aqui será descrito não apenas como uma  
formulação estética e de comportamentos sob a égide da branquitude (Theodoro, 2022), mas  
um aspecto narcísico da personalidade branca que constituí as orientações de outros povos para  
a sua própria formação e para favorecer a espoliação de existências e recursos em seu nome,  
que acha fundamento na expressão da luta de classes brasileira (Gordon, 2023; Bento, 2022;  
Gonzalez, 2020). Cida Bento (2022) chama isso de o pacto narcísico da branquitude, consiste-  
se em um mecanismo não dito em concomitância com os hábitos familiares de reprodução de  
comportamento dos estamentos privados, ou seja, hereditários socialmente, e, atualizados para  
o século XXI, que organizam o lugar de negro (Gonzalez, 2020) e o lugar de branco,  
respectivamente, nas instituições públicas e privadas.  
Essa disparidade de poder é vista pelos eixos movimentados pelo Estado Brasileiro  
Colonial (regido por Portugal) (Moura, 2014), pelo período do Brasil Império, do início ao seu  
final (Theodoro, 2022), pela consolidação da “República” brasileira (no período das oligarquias  
dos coronéis) (Theodoro, 2022), no Estado Novo varguista, que manejou a criação do Mito da  
Democracia racial (Gonzalez, 2020; Carneiro, 2011) com a industrialização brasileira e sua  
consolidação máxima de sociedade desigual, a ditadura brasileira de 1964, que mais uma vez  
fechou os olhos para o “problema racial” (Gonzalez, 2020), e posteriormente com a “Nova”  
República, donde os problemas estruturais da desigualdade permanecem em estado de semi-  
imobilidade (Moura, 2014).  
142  
Não é surpresa que dentro das metodologias negras da metade do século XX até hoje,  
são imperiosas ao discorrer sobre as condições de silêncio/silenciamento da classe trabalhadora  
e população negra (Ribeiro, 2017; Gomes, 2017; Gonzalez, 2020; Carneiro, 2005; Mombaça,  
2015; Kilomba, 2017; Robinson, 2023; Daflon, 2017; Carine, 2023; Devulsky, 2021; Oliveira,  
1974), e nem mesmo as assumpções do racismo estrutural (Theodoro, 2022; Oliveira, 2021;  
Goés, 2022; Haider, 2019). Essa nova perspectiva impulsiona os novos pesquisadores a buscar  
novas respostas a problemas historicamente determinados. E uma delas demonstrou dificultar  
a capacidade de práxis frente aos problemas de raça, que aqui adquire o contorno de problemas  
de toda a sociedade brasileira (Theodoro, 2022), e as formas de percepções que são analisadas  
frente aos novos dados empíricos conquistados para medir os níveis de desigualdades existentes  
entre os corpos negros (Telles, Silva, 2021; Daflon, 2017). Ademais, não podemos ignorar a  
conquista do Movimento Negro pela consolidação da Lei de Cotas (Gomes, 2017; Daflon,  
2017; Carneiro, 2011; Jesus, 2021), e seu respectivo embate frente a uma intelectualidade média  
urbana branca, expressa numa carta de contestação a aplicação da Lei de Cotas ao Supremo  
Tribunal Federal (Theodoro, 2022), e da direita como um todo pela inserção de cotas em  
Libertas, Juiz de Fora, v. 25, n. 1, p. 135-156, jan./jun. 2025. ISSN 1980-8518  
A superação do obstáculo epistemológico do mulato: método e ambiguidade  
universidades, concursos públicos e empresas privadas, no qual ataca diretamente o pacto da  
branquitude (Bento, 2022; Jesus, 2021).  
Destes embates, um se infiltrou na cadeia dos Movimentos Negros e se tornou  
imperativo de dilema político (Campos, 2013): o pardo. E ele é expresso pela pergunta: quem  
é negro no Brasil?  
Quem é aquele que vem lá? Sabe que eu num sei…  
Quando Oliveira (2021) afirmou que raça só existe no meio de uma relação social, ele  
salientou o caráter construtivista da raça em todas as instâncias universalizantes demandadas  
pelo eixo da Colonialidade do Poder, ao mesmo tempo que expôs novamente a racialização  
como proponente de construção social hierarquizada do capitalismo. Oliveira traçou os  
primeiros passos para a consolidação de uma nova-velha questão que surgiu, primeiro, com a  
pesquisa de Oracy Nogueira sobre percepção fenotípica no Brasil, e o tipo de ideologia que  
orienta essas relações sociais, e reafirmou o que os decoloniais expostos aqui também  
afirmaram: que nós somos uma invenção feita pela mão do branco, “civilizado”, “moderno”,  
mas que de algum modo, também temos nosso próprio poder de construção e de percepção, ou  
seja, sempre produzimos resistências.  
Deste modo, está parte do trabalho tratará de discutir a miscigenação como forma de  
significação de conformação e de produção de ambiguidade pela classe dominante, e que, ainda  
por cima, delimita as fronteiras de potencialidade de uma consciência Negra (com N maiusculo)  
(Gordon, 2023), no qual dá importância ao método utilizado por Marilena Chaui (2023) em  
Conformismo e resistência, para construir uma visão de cultura e movimento político mais  
complexificada e que não cai em embates metodológicos clássicos nas percepções  
universitárias.  
143  
A escolha de utilizar o método de Chaui possui um objetivo específico neste trabalho:  
ao passo que as condições de discurso e linguagem começam a ser apropriadas pelas pessoas  
negras no Brasil, o que é entendido como obstáculo epistemológico, isto é, o “mulato” (Oliveira,  
1978), normalmente se atribui apenas a espacialidade territorial e individual de interpretação  
(Nogueira, 2007), e utiliza das pesquisas econômicas para juntar as populações pretas e pardas  
como única (Daflon, 2017; Telles; Silva, 2021; Oliveira, 2021; Fernandes, 2021; Moura, 2019,  
Segato, 2021), numa visão de política identitária individualista (Haider, 2019; Dussel, 1995).  
Utilizando uma metodologia que compreende a cultura como um centro de geração de  
significados compartilhados e interseccionados por um grupo, pois então, político, no sentido  
de poderes e dispositivos de poder (Carneiro, 2005; Foucault, 2021; Gonzalez, 2020), e  
Erykah Rodrigues dos Santos Iturriet; Rafael Cardiano  
ideológico no sentido de dominação imposto pelas estruturas e classes dominantes (Chaui,  
2008; 2023; Williams, 2011), e dentro do cenário de contracolonização (Santos, 2023), decidiu-  
se compor uma visão que privilegie as intersecções possíveis frente ao espectro de cores  
brasileiros (Devulsky, 2021; Telles; Silva, 2021). Do mesmo modo, intercalar a questão de  
identidade com os mecanismos de poder (Schwarcz, 2012; Jesus, 2021), donde se insere como  
classificação política de reivindicação e de organização política (Barroso, 2016; Mombaça,  
2015; Campos, 2013) e se articula em concomitância com a concepção de hegemonia de Chauí:  
É um complexo de experiências, relações e atividades cujos limites estão  
fixados e interiorizados, mas que, por ser mais do que ideologia, tem  
capacidade para controlar e produzir mudanças sociais. Em uma palavra, é  
uma práxis e um processo, pois se altera todas as vezes que as condições  
históricas se transformam, alteração indispensável para que a dominação seja  
mantida (Chaui, 2023, p. 25).  
Nesta concepção de cultura e dominação que expõe Chaui (2023), o entrave  
metodológico que a mesma achou diante da visão romântica de cultura e da visão iluminista de  
cultura, ambas presas em seus pressupostos, a de um mito fundador essencialista da cultura  
popular, e outra dirigente e dominante classicamente burguesa, respectivamente, se  
desencontram ao entrar em conluio com a dialética de conformação em pleno processo de  
práxis, que também permite a construção de uma contra-hegemonia, ou melhor, de símbolos de  
resistência.  
144  
Decidi dar destaque à exposição de conceito justamente porque durante toda a história  
brasileira, e talvez de colonização, é marcada pela formação do Medo branco frente aos “outros”  
criados usando as Teorias Coloniais da Diferenciação. O medo que a elite branca e civilizada  
tem está exposta em inúmeras obras (Gordon, 2023; Souza, 2021; Gonzalez, 2020; Carneiro,  
2011; Theodoro, 2022; Chaui, 2000; Robinson, 2023; Jesus, 2021; Moura, 2019; Nascimento,  
2021; Nascimento, 1978). Em todas, e especificamente no caso de Palmares, no Brasil, o Estado  
brasileiro utiliza de mecanismos de repressão explícita e de produtores de desigualdades para  
manter estes indivíduos em posições de exclusão perpétua, seja escolhendo quem vai viver ou  
quem vai morrer (Foucault, 2021; Mbembe, 2018), seja alocados para um determinado espaço  
onde não podem ser vistos (Santos, 2023; Theodoro, 2022), seja silenciando-os e roubando-os  
toda forma de produção de existência possível (Theodoro, 2022; Ribeiro, 2017; Nascimento,  
2021; Nascimento, 1978; Gonzalez, 2020; Carneiro, 2005).  
E ainda em relação com o tópico de cultura, Chaui caracteriza o popular: “A dimensão  
cultural popular como prática local e temporalmente determinada, como atividade dispersa no  
interior da cultura dominante, como mescla de conformismo e resistência” (Chaui, 2023, p. 43).  
Libertas, Juiz de Fora, v. 25, n. 1, p. 135-156, jan./jun. 2025. ISSN 1980-8518  
A superação do obstáculo epistemológico do mulato: método e ambiguidade  
Nesta concepção, Chaui demonstra que os níveis de análise sobre o universo  
sociocultural não podem e não conseguem estar desgarrados de uma totalidade de dominação  
porque dessa se funda, pelo menos aquela que baseia sua sociedade em diferenciação. Ao  
mesmo tempo, a determinação histórica da temporalidade de suas funções e como atividade  
com autonomia relativa à produção dos dominados permite a avaliação da mescla entre  
dominante, conformismo e resistência, além de propor as condições em que a ideologia e a  
hegemonia se interseccionam como tal. Portanto, a cultura popular é, se não, a expressão dentro  
dos mecanismos ideológicos e hegemônicos de uma determinada sociedade, vista em  
determinado contexto histórico, que compõe o conformismo e a resistência orientada das ações  
do povo dominado, que coloca os termos partindo dos dominantes, e que, por pressuposto,  
instaura uma negociação pertinente entre aqueles que agem sobre divisões de opressão e  
exploração (vejam, não contradiz a lógica da Colonialidade do Poder, e nem da existência da  
raça), e permitem o movimento de resistência existir, em determinado grau, na sociedade (vista  
por nós anteriormente na história de formação do Brasil).  
O que adiciono como nova proposição para superar o obstáculo epistemológico do  
mulato, determinado historicamente no século XX, e ainda em debate sobre sua construção  
epistemológica (Daflon, 2017), é que além dos mecanismos que citei no parágrafo acima, temos  
que adicionar como estruturais os meios repressivos de silenciamento, portanto, decorrentes da  
cultura a nível material de produção e simbólicos, que caminham com a totalidade da estrutura  
econômica devido a sua articulação de espaços e funções das pessoas negras brasileiras. Clóvis  
Moura (2014) determina os níveis de dominação como produtores de imobilidade, frente às  
classes, e semi-imobilidades, a frente de movimentos de transgressão e não de subversão.  
Moura ainda salienta que para entendermos a raça, precisamos compreender duas instâncias:  
seu caráter simbólico e econômico. Ou seja, aqueles que acometem os campos de mudanças de  
igualdade substantivas (Mészáros, 2007). Estes campos estão ligados à concepção de  
conformismo e resistência graças aos mitos inventados, fomentados e reproduzidos em  
intersecção entre as diversas facetas ideológicas e hegemônicas, em concomitância com as  
produções de conformismo e resistência das culturas populares. Por devir, o modo de existir,  
saber, produzir, fomentar, legitimar e contestar estão invariavelmente ligadas a luta política dos  
poderes (que pode intercalar em idealismos, na forma de esperança contínua, donde caminha  
com a visão de incapacidade se não articulada, e de resistência, caso negue a ordem em primeira  
instância). A dificuldade de subverter, é a dificuldade do incompreensível, a da ação que além  
de ser dita radical, ser feita radical, consegue ter, na prática, mudanças radicais nas proposições  
e finalidades que deseja ter, aquém da estrutura.  
145  
Erykah Rodrigues dos Santos Iturriet; Rafael Cardiano  
A grande crítica que a ciência colonial faz a esse tipo de abordagem, é que orienta uma  
crítica ideológica que liga as pesquisas que são feitas pelos corpos dominados (os negros, os  
LGBTQIAPN+2, os PCDs3, os Gordos), como política identitária sem sentido político material,  
apenas como políticas de identidade. Mais ideológico que isso, é ignorar a construção do termo  
ideologia como “diferentes concepções políticas e de crenças de grupos diversos”, que nada  
mais é negar a frente da totalidade e seus condicionantes na hora de propor um novo passo na  
luta de entender a realidade social (Chaui, 2000; 2023; Eagleton, 2019; Fernandes, 2023). Como  
a formação desta ideologia se dá pelas instâncias dominantes, o nível de conformismo que às  
esquerdas brasileiras, ao adotar uma concepção iluminista de diligência frente a noção de  
cultura de massas (Chaui, 2023), privilegiou as noções adotadas de não instrução e que podem  
cair num conformismo fatalista em relação a identidade (o que vai ao contrário da concepção  
freireana de educador, por exemplo) (Freire, 2022). Aliás, é este o motivo do lugar  
subalternizado que todos os corpos dominados que citei anteriormente não estarem em  
situações de representação, mas muitas vezes comporem a resistência dentro das lutas  
interseccionadas na parte organizacional do movimento (o que demonstra uma resistência a  
totalidade por estar em organização, expõe os outros membros como conformista em relação  
ao valor da totalidade sobre “o Outro”, e determina uma conformação da parte do “Outro”  
quando não tem os saberes necessários para contestar isso, aliás, é menos uma conformação e  
mais uma invisibilização de fato). O que foi mostrado por Robinson (2023), Davis (2016),  
Gonzalez (2020), Hooks (2020), Ribeiro (2017), West (2021) e muitos outros ao contestar os  
lugares de silêncio dentro do movimento feminista e movimento negro.  
146  
Um dos exemplos que gostaria de recordar é o de Hooks (2020) e Davis (2016) ao  
exporem em suas obras o apagamento sistemático das mulheres negras dentro do movimento  
feminista predominantemente branco nos Estados Unidos do século XIX e XX. Ambas  
descrevem a prática das mulheres brancas ao negar espaço de fala para as representantes negras  
nas assembleias de discussão. A própria visão como mulher orientada à mulher negra nunca é  
legitimada nas discussões das assembleias, no período pré-abolição, e respectivamente na  
universidade, que possibilitou um fragmento do compêndio feminino (mulheres brancas) da  
população uma ascensão social em termos (Davis, 2016). O simbolismo mais forte dessa luta  
2
Originária do Movimento de Stonewall nos Estados Unidos dos anos 60, a sigla LGBTQIAPN+ surgiu em  
consonância com a luta pelos direitos civis das pessoas sexualmente não-normativas e se expande até hoje através  
das novas descobertas científicas. Sua significância é: Lésbicas, Gays, Bissexuais, Transessuais, Queer, Intersexo,  
Assexuais, Pansessuais, não-bináries…  
3 PCDs, significa Pessoas com Deficiência. Surgida na Convenção sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência  
das Nações Unidas (ONU).  
Libertas, Juiz de Fora, v. 25, n. 1, p. 135-156, jan./jun. 2025. ISSN 1980-8518  
A superação do obstáculo epistemológico do mulato: método e ambiguidade  
de reivindicação foi proferida por Sojourner Truth, em seu discurso “E eu não sou uma  
mulher?”. Quando a mesma grita referenciando o trabalho que faz equivalente à um homem  
negro escravizado na lavoura, e compara suas condições às mulheres brancas em sua posição  
de mulher negra (instância de sexo-gênero), produz resistência frente a exclusão feita pelas  
mulheres brancas a elas, conformismo frente ao trabalho desempenhado por ela como força de  
trabalho equivalente à uma figura masculina (analisando a totalidade do sistema), resistência  
frente ao sistema quando desloca a sua fala de uma totalidade que a quer quieta, escravizada,  
morta (além de ser um exemplo vivo de resistência que afirma o trabalho feminino como  
possível, já que vai contra a ideologia da feminilidade) e novamente conformismo ao atribuir o  
trabalho que será feito pelas mulheres brancas ao quererem inserir-se no mercado de trabalho  
(lembrando que tudo depende das configurações históricas da época) (Davis, 2016).  
Portanto, percebe-se que quando este método é posto em vista das determinações  
históricas e temporais manifestadas simbólica e materialmente pelos pontos interseccionais dos  
Eixos de Poder, formados e orientados pela Colonialidade do Poder e pela estruturação do  
racismo, em instância de mundialização, e de formação da identidade europeia branca  
civilizada, podemos construir o termo pardo como instância ora de conformismo, ora de  
resistência. Isto é, o método se centra na ambiguidade, tanto discutida por aqueles que  
vivenciam o limbo racial (Goés, 2022), e que aparecem no debate e nos discursos dos pardos  
brasileiros.  
147  
A ambiguidade é discutida como odiosa na metodologia, porque ela não produziria o  
objeto neutro, coisificado (Durkheim, 2012), querido pela visão europeia de conceito científico,  
separado da totalidade como singularidade, e objetivo (Adorno; Horkheimer, 1985). Ou seja, a  
ambiguidade é o medo principal do positivismo e das instâncias analíticas da sociologia. É nela  
que firmo a minha metodologia.  
Ora te entendo, ora não… quem é você?  
A leitura do pardo no Brasil como negro tem sido uma reivindicação dos Movimentos  
Negros brasileiros a fim de conclamar uma espécie de aliança entre os grupos pardos e pretos,  
reconhecendo sua posição econômica lado a lado à atribuição de status que a estrutura os coloca  
(Carneiro, 2011), ao mesmo tempo que compreende que a discriminação fenótipa é marca  
característica desses grupos (Nogueira, 2007). Outro articulador político possível é alicerçado  
na visão do contingente populacional, que em 2023, prova a necessidade de maioria com as  
pessoas autodeclaradas pardas superando as autodeclaradas brancas no censo de 2023 (Belandi;  
Gomes, 2023).  
Erykah Rodrigues dos Santos Iturriet; Rafael Cardiano  
Não pretendemos aqui discorrer sobre a pluralidade de visões sobre o pardo brasileiro,  
que ora torna-se categoria de ampliação de identidades e subjetividades, ora se torna uma  
composição política no discurso esquerdista de cultura de massas. De fato, há em curso uma  
polemização dos pardos no Brasil devido a atribuição das bancas de heteroidentificação e da  
política de autodeclaração, que permite que um indivíduo seja objeto de interpretação social  
diretamente pela estética fenotípica feita por um outrem, ou seja, um externo, e que determina  
instâncias de interioridade do indivíduo negro brasileiro, graças aos mecanismos de aplicação  
da Lei de Cotas (Jesus, 2021; Daflon, 2017). Longe de sanar os problemas de interpretação  
social frente a população negra, foi o pontapé inicial para a possível tomada do método para a  
superação do “obstáculo epistemológico”, já que virou motim político dos anos 2000 que até  
agora toma posse do cenário nacional.  
A metodologia aplicada remete a inúmeras pesquisas realizadas no século XX sobre a  
composição da população pobre e negra brasileira (Fernandes, 2021; Daflon, 2017; Nogueira,  
2007; Ribeiro, 2015). Enfim, é um dos tópicos levantados por uma analítica quantitativa, que  
percorreu um longo silêncio até ser discutida qualitativamente. Longe de ignorar a  
potencialidade do termo e de recobramos sua instância de ambiguidade como forma central de  
composições de sentidos, identidades, divisões, conflitos e hierarquias, saliento que utilizarei  
dos dados empíricos levantados pelas pesquisas que citei anteriormente para compor uma  
avaliação mais ampla frente à enormidade do cenário brasileiro.  
148  
A partir do instante que o Estado brasileiro não pode mais condecorar as instâncias de  
“enegrecimento” da população, pela falha do projeto higienista de branqueamento (Schwarcz,  
2012; Theodoro, 2022), resta as posições sociais excluídas e apagadas as pessoas que são  
caracterizadas como negras no Brasil (Gonzalez, 2020). Essa afirmação decorre da estrutura do  
que Theodoro (2022) chamou de bases produtoras e potencializadoras da desigualdade, pela  
qual identifica algumas características que predominam no cenário simbólico da estereotipia  
negra, ao passo que caminha entre os projetos do Estado na formação do mercado consumidor  
“desenvolvido”, visão desenvolvimentista que imperava na sociologia até os anos 80, com um  
mercado de trabalho de extrema rotatividade, onde a informalidade se mantém base para o  
sistema central de funcionamento (Oliveira, 2021) de camadas brancas da cidade (Theodoro,  
2022), e que relega as posições piores às populações pretas no Brasil.  
Essa sociedade desigual é a formação de várias instâncias históricas diferentes. Ao  
inserirmos uma perspectiva intercalada entre economia, lugares espacialmente simbolizados  
como “lugares de negro” (Gonzalez, 2020), e destituídos de significados legitimados pela  
dominância, é que a dificuldade política-jurídica do Estado foi pega em uma contradição  
Libertas, Juiz de Fora, v. 25, n. 1, p. 135-156, jan./jun. 2025. ISSN 1980-8518  
A superação do obstáculo epistemológico do mulato: método e ambiguidade  
absurda. A democracia racial imperava forte desde o início do século XX, as novas  
classificações construídas pelo Estado frente a um projeto de branqueamento, tornou a  
miscigenação um expoente necessário para a articulação do desejo da classe dominante de  
permanecer em seu posto de poder (Bento, 2022; Munanga, 2020), do mesmo modo que  
legitimar a consideração identitária para as futuras gerações de dominadores (Dussel, 1995). O  
que foi visto como empecilho, foi o crescimento de organizações negras organizadas, sejam  
está a Frente Negra Brasileira no período Varguista, a Imprensa negra, o Movimento Negro  
Unificado, entre outras maneiras de (re)existir, que levantavam a bandeira de um Brasil negro.  
Os sentidos da miscigenação brasileira foram misturados com o que Chaui (2000)  
chama de Mitologia Verde-amarela, que são os símbolos utilizados para a composição de uma  
ideia de nação, que ora tira da cultura popular maneiras de apropriação para a representação de  
uma ideia nacionalista de ideologia, ora impõe questões predominantemente modernas euro-  
coloniais para a orientação da nação acima do popular, isto é, reorienta a visão de cultura sobre  
o “povo” (Munanga, 2020). A miscigenação foi um dos aparelhos utilizados para a composição  
e fortificação destes mitos, afinal, foi a partir dessa construção social dialética que os caminhos  
da hegemonia se formaram duramente na ampla complementaridade de interpretações raciais  
no Brasil (Daflon, 2017; Schwarcz, 2012). Tal que o pardo é visto como imbricado pela sua  
ambiguidade de reconhecimento, o que dificulta a mobilização e a autopercepção racial das  
pessoas, donde a consequência invariável é a consolidação do apagamento da questão pela via  
ideológica da democracia racial em si, afinal, ela precisa se construir e reconstruir para delimitar  
os espaços de possibilidade dos indivíduos de tomar ou não a régia da produção da noção de  
nação e dos espaços delegados aos negros e brancos.  
149  
A nação sempre utilizou ou do trabalho das pessoas negras para se firmar, assim como  
o capitalismo (Losurdo, 2020), ou utilizou de sua cultura para a exaltação de uma imagem  
externa (Schwarcz, 2012). O ideológico desta questão, é que as forças utilizadas para tornar o  
mestiço uma via cultural de reconhecimento, negando tanto a racialização, a colonialidade do  
poder, a divisão interna de classes, é uma ideia de hegemonia e de construção da nação, para a  
sua própria legitimação como país, se prende a ambiguidade do conformismo/resistência. Este  
sentido está preso a interseccionalidade das instâncias de apropriação do popular, afinal, o  
samba, o carnaval, os movimentos de resistência culturais das pessoas negras, todos estes foram  
usados como símbolos de exportação de imagem para os países de fora, e usados  
ideologicamentes para a composição de uma ideia de soberania nacionalista por dentro. E todas  
essas imagens foram construídas graças à fluidez da atribuição racial que é por natureza social.  
Erykah Rodrigues dos Santos Iturriet; Rafael Cardiano  
É inegável que a estruturação da hegemonia é racista. Por outro lado, o que a  
metodologia que enxergava o pardo como uma situação epistemologicamente insuperável, não  
tratava da interseccionalidade complexa da dialética dessa formação de ideia nacional, da união  
entre as instâncias político-econômicas que as cotas trouxeram ao Brasil contemporâneo (e do  
povo negro na história de consolidação do capitalismo), e as mistificações utilizadas pela rede  
de significados da miscigenação com intromissão de uma cultura-ideologia dominante frente a  
cotidianidade da cultura popular. Era limitado pelo seu tempo histórico determinado de  
pensamento.  
Já agora, reconhecendo o conceito de pigmentocracia, o que se tornou insuperável se  
transforma em motim de ambiguidade epistemológica. Goés (2022) nos traz a diferença entre  
pigmentocracia e colorismo, quando salienta que o segundo é uma estrutura intragrupo que  
sanciona diferenciações de espaços e privilégios entre pessoas mais claras da comunidade e  
mais escuras. Em contrapartida, a pigmentocracia é uma estrutura dialética do racismo  
estrutural que intercala a identidade dos indivíduos negros de maneira a misturar  
ideologicamente todos as características do social que expus acima.  
Por conseguinte, as pesquisas do Pigmentocracias: Etnicidade, raça e cor na América  
Latina (Telles; Silva, 2021) demonstraram que os mecanismos de autodeclaração e  
heteroidentificação costumam ser orientados por uma ordem de privilégios e possibilidades de  
espaços dependendo do fenótipo do indivíduo. Porém, além de superar a instância de Oracy  
Nogueira de falar que quem carrega os traços fenotípicos negroides (africanos) sofre mais  
discriminação aparente, reorienta a estruturação da sociedade em camadas especificamente  
mais claras e escuras, ao ponto de os níveis de escolaridade, relações estético-corporais, renda  
per capita, entre outros índices, acompanharem esse gradiente do espectro de cor (Telles, Silva,  
2021). E como uma formação latino-americana, é impossível não notar o que os decoloniais  
nos propuseram a compreender a sociedade como articulada por uma colonialidade do poder  
(Segato, 2021).  
150  
Deste modo, o que a pigmentocracia adota, é o sentido de ambiguidade confirmado  
pelas posições meramente empiristas das classificações econômicas e aparentemente  
fenotípicas. Já a nível simbólico, com objetivo de articulação, compreendemos que para a  
superação do entrave metodológico, é preciso uma avaliação minuciosa das práticas decorrentes  
das pessoas pardas no Brasil, analisando as formas na qual as atitudes culturais e sociais se  
relacionam como conformismo ou resistência. Afinal, é comprovado que pessoas de pele mais  
clara possuem posições e benefícios diferentes do que pessoas com pele mais escura. Do mesmo  
modo, não é possível dissolver a capacidade de articulação de um grupo político negro porque  
Libertas, Juiz de Fora, v. 25, n. 1, p. 135-156, jan./jun. 2025. ISSN 1980-8518  
A superação do obstáculo epistemológico do mulato: método e ambiguidade  
o significado do ser branco no Brasil, por ser ainda ponto de referência para a formulação na  
nação, da legitimação da soberania, da composição dos postos de mando e trabalho, de  
qualificação profissional, e de renda per capta familiar (Theodoro, 2022; Bento, 2022;  
Fernandes, 2021), necessita de um tratamento político contra-hegemônico. Assumindo a  
ambiguidade, o mulato não é mais obstáculo epistemológico, mas sim, proponente político de  
disputa da hegemonia (assim como já o era na consolidação da “identidade nacional”),  
articulador da ideologia de autenticidade presente no conflito intragrupo na comunidade negra  
brasileira (West, 2021; Devulsky, 2021), e, acima de tudo, um dilema político (Campos, 2013).  
Se lutássemos por uma consciência parda para o brasileiro, estaríamos lutando por uma  
condição universalizante da américa latina que compõe alianças contra as determinações do  
capitalismo central, mas que se especifica centrada numa luta fomentada tanto por pardos  
quanto por pretos, e que exclui o cerne do Movimento Negro em questão e seus saberes  
(contribuindo para o etnocídio da hegemonia e ideologia dominante dos saberes e seres latino-  
americanos, o que é uma contradição superável) (Gomes, 2017). No entanto, há uma ideia que  
se complementa no nível de intersecção que acopla as ambiguidades sem excluir a luta anti-  
imperialista do papel da conscientização das classes latino-americanas, e de suas outras divisões  
centrais, e que denotam um caráter mais amplo e que analisa as perspectivas culturais como  
uma dialética aberta (Gordon, 2023), isto é, supera a condição determinada pelo território e  
supera a fronteira de maneira histórica: a amefricanidade (Gonzalez, 2020).  
151  
Ao se deslocar das posições de negros brasileiros, os pardos podem cair na armadilha  
de esquecer-se da própria ambiguidade, já que dentro das concepções formadas de leitura social,  
a dicotomia negro/branco existem, são produzidas, reproduzidas, e ora deslegitimadas e  
relegitimadas, afinal, a partir do ponto de contraste social dos mecanismos simbólicos que são  
utilizados para a sua produção, o indivíduo pode perder-se em uma interpretação errônea e  
desconexa com os seus reais lugares sociais de pertencimento, produção de voz e de posição  
econômica e social. O perigo está em não intercalar os lugares de conformismos e resistências  
essenciais da dinâmica da ambiguidade.  
Para onde vamos? A luta de classes racial  
Com todos os levantamentos apontados até agora, algo fica incipiente: como  
poderíamos diferenciar uma atitude resguardada como conforme ou transgressora, já que  
admitimos a realidade social como contraditória e ambígua, para categorizar o pardo no Brasil?  
Essa pergunta é válida porque sem ela não poderíamos chegar em uma conclusão para  
a proposta desse trabalho como um todo: pensar o racismo como uma totalidade social que  
Erykah Rodrigues dos Santos Iturriet; Rafael Cardiano  
formou e forma a realidade brasileira pautada na mentalização da ideia de raça (Quijano, 2009),  
ou seja, da perspectiva idealista e abstrata de dominação feita pela classe dominante, assim  
como na conexão do sistema mundo com o mercado capitalista brasileiro: a questão da  
dependência (Oliveira, 2021).  
Falamos, até aqui, de uma competição que supera o obstáculo epistemológico pela  
necessidade de observação decorrente das posições sociais ocupadas pelos indivíduos em nível  
econômico e a nível cultural, isto é, fugindo da essencialização da raça como proponente  
histórico de comportamento naturalizado (embebido pelas teorias decoloniais) com traço  
explicativo do mito das raças originais brasileiras e da matriz colonial do poder (Schwarcz,  
2012; Quijano, 2009; Dussel, 1995), assim como recobramos a característica orientada do  
método e da visão de cultura exigida para a construção de uma dialética que supere as  
contradições existentes no caráter social das sociedades dominadas (Chaui, 2023). Ao que trata  
o método, sobrou uma quitação a ser dita e articulada: a questão política.  
Em Racismo Estrutural: uma perspectiva histórico-crítica (Oliveira, 2021), Dennis  
aprofunda a questão estrutural do racismo. O que detenho de sua análise abrangente frente às  
teorias decoloniais e as análises marxianas das classes sociais, é a noção tangente revivida pela  
construção de seu pensamento baseado no sociólogo Clóvis Moura.  
Quando Moura (2019) define o conceito de imobilismo e semi-imobilidade em  
Sociologia do negro brasileiro, ele o constrói partindo de um ponto de vista conflitivo na  
constituição da história brasileira, isto é, ambíguo graças a um sistema que necessita da  
incorporação da mão de obra, no capitalismo dependente superexplorador (Oliveira, 2021), para  
a manutenção dos processos sociais decorrentes da posição do mercado nacional na divisão do  
trabalho racial internacional, assim como da constituição dos poderes relegadas na esfera  
política na esfera pública.  
152  
Essa orientação de método partindo dos conflitos da totalidade e dos contingentes  
observados, tratam de integralizar um indivíduo negro partindo da assimilação como conceito  
ideológico de formação de visão de mundo que toma o racismo como capacidade de modelação  
da imagem e do comportamento (Moura, 2019; Oliveira, 2021). Neste sentido, estar delegado  
a uma posição estatal ou reinante (Poulantzas apud Oliveira, 2021) é compor uma espécie de  
classe reinante, ou seja, não fundamental na expropriação dos meios de produção, mas um dos  
componentes ideológicos principais para a manutenção da imagem construída à sociedade e à  
si mesmo, donde enxerga o racismo não como proponente articulador na esfera de poder das  
instituições brasileiras formadas historicamente, mas como uma deformação comportamental.  
Do mesmo modo, pode desarticular uma leitura de discriminação aparente como fundante de  
Libertas, Juiz de Fora, v. 25, n. 1, p. 135-156, jan./jun. 2025. ISSN 1980-8518  
A superação do obstáculo epistemológico do mulato: método e ambiguidade  
seu sofrimento por base do racismo, mesmo que parta das pessoas pretas dor de ser  
colocado/as/es em situações de constrangimento pela “marca” (Nogueira, 2007).  
Neste sentido, se individualiza a percepção racial e a composição da atitude do  
comportamento racista de discriminação, por exemplo, com uma etapa do desenvolvimento da  
razão pessoal do próprio indivíduo, reinante na filosofia do esclarecimento de Kant, por  
exemplo (apud, Oliveira, 2021). Em contrapartida, a representação é usada por uma lógica  
neoliberal progressista que tem sua base na acepção capitaneada da diversidade a fim de lucrar  
pela imagem de indivíduos essencialmente resistentes pela característica de ser uma posição  
anti-ordem, mas que acabam compondo os mecanismos de legitimação da ordem proposta  
(Oliveira, 2021). Quase como a apreensão do popular pelo nacionalismo.  
A estrutura que orienta o utilitarismo à uma lógica neoliberal meritocrática para a  
responsabilização individual dos problemas sociais, é vista anteriormente ainda no período  
desenvolvimentista na ditadura brasileira, quando a classe média e a branquitude eram  
indissociáveis na visão de Ideal de Eu que compunha a orientação do comportamento de pessoas  
negras brasileiras (Souza, 2021), as mesmas que percebiam que tinham uma linha limite que  
não poderiam superar (logicamente demarcadas pela estrutura). O que demarca a importância  
na interpretação do pardo brasileiro, é que ao afunila-lá num sistema pigmentocrático, que  
avaliado em concomitância com a formação do capitalismo dependente brasileiro, torna a  
responsabilização ideológica a mando da visão essencialista da raça ao orientar a interpretação  
por base somente no fenótipo composto do preconceito de marca (Nogueira, 2007), e da  
articulação dos mecanismos de mercado e Estado que supostamente arcarão com a  
responsabilização do indivíduo sobre a superação do “problema racial”.  
153  
Isto é, torna a questão do racismo estrutural como uma mera interdição de mecanismos  
institucionais e ideológicos para a superação do preconceito que é proposto numa lógica de  
poder ampla. Logo, a marca é aqui representada como um proponente usado por pessoas que  
não deveriam lhe atribuir como parte da discriminação, afinal, é lido ambiguamente e muitas  
vezes não são alvo principal desse racismo de ofensa (o que delega um conformismo por parte  
da atitude ideológica do próprio ato de discriminação), assim como perde de vista a  
característica de resistência da autodeclaração que luta pelo fim do racismo. Portanto, a  
consideração estruturalista a-histórica e a exteriorização da discriminação como problema  
articulado individualmente, tomam-se como a expressão real da sociabilidade brasileira. No  
entanto, a bifurcação de reguladores contraditórios (Freyre apud Oliveira, 2021), tomava como  
ponto de partida a consolidação de um povo democraticamente socializado, que coloca a  
Erykah Rodrigues dos Santos Iturriet; Rafael Cardiano  
articulação da raça como uma metodologia específica, e não como um método estruturado, ou  
seja, já fomentava o Mito da Democracia Brasileira (Gonzalez, 2020; Oliveira, 2021).  
O que devemos destacar nessas atribuições de categorias sociais, é que a proposta de  
racismo estrutural histórico-crítico é necessária a compreensão dos conflitos inerentes à luta de  
classes nas sociedades colonizadas, e da formação do capitalismo dependente que caracteriza a  
divisão internacional racializada do trabalho (Oliveira, 2021). Tornando os dados do Perla  
(Telles, Silva, 2021), por exemplo, propõe não só meros caminhos empiristas para a colocação  
dos pardos nas esferas econômicas de poder na sociedade brasileira, mas expõe os primeiros  
condicionantes de articulação entre mercado de trabalho, informalidade, desigualdade de  
câmbio e condições sociais de socialização comparada às pessoas negras e brancas (Theodoro,  
2022; Oliveira, 2021; Telles, Silva, 2021). Deste modo, construir a concepção de pardo  
articulada como espectro de posições ambíguas frente aos papeis sociais ora reforçados pela  
ideologia e produção da totalidade condicionante, ora da descrição de um movimento  
transgressivo pelo grupo que compõe os pardos brasileiros, se torna um dilema político pela  
diluição de grande maioria da população ao tomar respectivos espaços de privilégios  
comparados entre si e entre os pretos. Neste caso, fica à deriva a concepção históricocultural  
do pardo num sistema de luta de classes contraditório que articula os espaços a mando da  
divisão internacional do trabalho, e que compõem as organizações identitárias como forma de  
assimilar os brasileiros a estarem dispostos em pigmentocracias relativas à exterioridade e à  
interioridade dos espaços de poder local específicos, e que explica também a variação regional  
de leituras racializadas na interpretação brasileira, isto é, a heteroidentificação e a  
autodeclaração. Ou seja, a superação do obstáculo é desconsiderar o pardo como um problema  
contingente na interpretação sobre ele, mas colocá-lo num nível estrutural de hegemonia e  
ideologia frente a necessidade de racialização na sociedade brasileira.  
154  
Se o movimento pardo não for um movimento negro, ele é, portanto, um movimento  
branco tingido de neoliberalismo progressista que acaba facilitando as coisas para o grupo  
social que criou tudo isso: a branquitude.  
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Formação das sociedades angolana e brasileira:  
dominação e resistências dos povos originários  
Formation of angolan and brazilian societies:  
domination and resistance by native peoples  
Boás dos Santos*  
Edna Maria Goulart Joazeiro**  
Resumo: O presente artigo evidencia as  
contribuições dos povos originários na  
formação das sociedades angolana e brasileira,  
com foco na educação, cultura e identidade,  
destacando o papel das mulheres na resistência  
e preservação cultural. Trata-se de um estudo de  
natureza conceitual, com base na produção da  
literatura especializada. A análise revela que, no  
decorrer da história, embora a colonização tenha  
tentado apagar a herança cultural, os povos  
originários resistiram, preservando sua língua,  
cosmologias, saberes e identidades, o que  
impactou profundamente a educação, cultura e  
identidade de Angola e do Brasil. Nesse  
processo, as mulheres desempenharam um  
papel central, sendo responsáveis pela  
transmissão de conhecimentos por meio da  
educação oral, pela preservação de valores  
tradicionais e pela luta pela autonomia e direitos  
territoriais, tornando-se protagonistas na  
resistência e ressignificação cultural. Portanto,  
o estudo destaca a importância das práticas  
culturais na construção das identidades  
nacionais e a necessidade de políticas públicas  
que garantam os direitos territoriais e culturais  
desses povos.  
Abstract: This article highlights the  
contributions of indigenous peoples to the  
formation of Angolan and Brazilian societies,  
with a focus on education, culture and identity,  
emphasising the role of women in resistance  
and cultural preservation. This is a conceptual  
study based on the production of specialised  
literature. The analysis shows that throughout  
history, although colonisation has tried to erase  
the cultural heritage, the original peoples have  
resisted,  
preserving  
their  
language,  
cosmologies, knowledge and identities, which  
has had a profound impact on the education,  
culture and identity of Angola and Brazil. In this  
process, women played a central role, being  
responsible for transmitting knowledge through  
oral education, preserving traditional values and  
fighting for autonomy and territorial rights,  
becoming protagonists in resistance and cultural  
re-signification. The study therefore highlights  
the importance of cultural practices in the  
construction of national identities and the need  
for public policies that guarantee the territorial  
and cultural rights of these peoples.  
Palavras-chaves: Povos originários; Mulheres;  
Keywords: Original peoples; Women; Cultural  
Resistência cultural; Educação; Identidade.  
resistance; Education; Identity.  
* Universidade Federal do Piauí. E-mail: boas.santos@ucan.edu  
** Universidade Federal do Piauí. E-mail: ednajoazeiro@ufpi.edu.br  
DOI: 10.34019/1980-8518.2025.v25.47754  
Esta obra está licenciada sob os termos  
Recebido em: 10/03/2025  
Aprovado em: 16/05/2025  
Boás dos Santos; Edna Maria Goulart Joazeiro  
Introdução  
O processo de colonização do Brasil e de Angola, objeto da análise deste artigo, não  
ocorreu sem resistências. A participação das mulheres nesse processo, especialmente entre os  
povos originários, foi muitas vezes marginalizada, invisibilizada ou subestimada, embora nossa  
análise neste artigo busque evidenciar que elas foram figuras-chave na resistência à  
colonização. Ao contrário da visão tradicionalmente imposta pela noção de feminilidade  
europeia, branca, que as via como figuras passivas, as mulheres foram, e continuam a ser,  
protagonistas na transmissão de saberes na dinâmica do processo de resistência cultural. A  
educação oral, como estratégia vital de preservação cultural, foi, em grande parte, liderada por  
mulheres, sendo fundamental para a reconfiguração das línguas e dos valores dos povos  
originários, populações indígenas e afrodescendentes.  
Neste contexto, a análise do território, enquanto espaço de resistência e identidade,  
revela-se central. O território, entendido como campo de vivência e espaço de trocas culturais,  
foi reconfigurado pela imposição colonial. Contudo, “o território não é apenas o conjunto dos  
sistemas naturais e de sistemas de coisas superpostas; o território tem que ser entendido como  
o território usado, não o território em si. O território usado é chão mais identidade. A identidade  
é o sentimento de pertencer àquilo que nos pertence” (Santos, 2006, p. 14).  
A relação dos povos originários com seus territórios foi profundamente afetada pela  
colonização, que não apenas ocupou fisicamente esses espaços, mas também alterou as  
representações simbólicas que esses povos construíam sobre eles. Apesar disso, as mulheres,  
com seu papel ativo na preservação de conhecimentos e saberes, continuaram a ser as guardiãs  
desses territórios simbólicos, garantindo que as relações com a terra e o espaço permanecessem  
expressões da identidade cultural.  
158  
A colonização portuguesa, ao impor novas práticas na dinâmica da vida destas  
populações, dentre elas a própria imposição do uso de línguas europeias, também resultou na  
fusão de saberes, especialmente com a diáspora africana, que trouxe ao Brasil as culturas  
africanas, em particular as de Angola. Esse processo de interconexão cultural entre os dois  
países, embora distintos, gerou uma significativa relação de troca de influências, especialmente  
nas manifestações artísticas, na gastronomia, na música e nas práticas religiosas, que se  
tornaram símbolos de resistência e de identidade compartilhada.  
No entanto, essa troca cultural não foi isenta de desigualdades, pois, como destaca  
Falola (2020), no decorrer deste denso processo de colonização, havia aqueles que  
consideravam que “as mulheres são cidadãs de segunda classe” (p. 390). No entendimento de  
Falola (2020), os estereótipos culturais frequentemente posicionam as mulheres como frágeis e  
Libertas, Juiz de Fora, v. 25, n. 1, p. 157-179, jan./jun. 2025. ISSN 1980-8518  
Formação das sociedades angolana e brasileira: dominação e resistências dos povos originários  
incapazes de exercer liderança, relegando-as ao papel de administradoras do espaço doméstico.  
Essa visão reflete a marginalização das mulheres, particularmente nas esferas de poder, como  
resultado das estruturas patriarcais que configuraram as dinâmicas sociais e políticas.  
A opressão das mulheres é particularmente visível entre as populações de povos  
originários, que, embora tenham desempenhado papéis fundamentais na resistência à  
colonização, enfrentaram obstáculos nas esferas jurídicas e sociais. As legislações,  
predominantemente elaboradas por homens, negavam e continuam negando a elas direitos  
essenciais, especialmente no que tange a questões de herança e divórcio, perpetuando, assim,  
sua subordinação e marginalização em diversas dimensões da vida cotidiana.  
Além disso, a discriminação de gênero se reflete também na educação e na saúde, áreas  
fundamentais para o desenvolvimento humano. Ao se referir à realidade africana, Falola (2020,  
p. 391) considera que, “na educação, as mulheres ainda estão atrás dos homens, mesmo onde o  
acesso é universal; a taxa de abandono é maior entre as mulheres, em parte devido à gravidez e  
ao casamento precoce, à preferência dos pais em atender às necessidades dos meninos em vez  
das meninas”, e ao excesso de tarefas domésticas. No que diz respeito à saúde, as mulheres  
continuam a não deter o controle total sobre sua capacidade reprodutiva, enfrentando  
dificuldades significativas no atendimento às suas necessidades nutricionais e de saúde.  
Esse quadro de desigualdade e marginalização das mulheres nas sociedades pós-  
coloniais, tanto na África quanto nas Américas, reflete uma construção histórica que precisa  
ser compreendida e enfrentada. A luta pela igualdade de gênero, pela preservação das culturas  
e pela afirmação da identidade continua sendo uma questão central no processo de  
ressignificação cultural das sociedades angolana, brasileira e de outros povos que, de diversas  
formas, foram submetidos às dinâmicas culturais e de poder supramencionadas.  
159  
Desse modo, a reflexão proposta neste artigo reveste-se de grande importância, pois  
se insere no contínuo processo de compreensão do nosso projeto de pesquisa de doutorado  
intitulado “Política de educação e de saúde e a marginalização de adolescentes grávidas no  
espaço escolar em Luanda, Angola”, enquadrado no Programa de Pós-Graduação em Políticas  
Públicas da Universidade Federal do Piauí (UFPI), especialmente no que se refere aos desafios  
enfrentados pelas mulheres no acesso a direitos fundamentais, como educação, saúde e  
cidadania. O debate aqui apresentado demanda atenção tanto no contexto de Angola quanto do  
Brasil, onde a luta pela preservação das culturas e a afirmação da identidade continuam a ser  
questões centrais e indissociáveis.  
Boás dos Santos; Edna Maria Goulart Joazeiro  
O objetivo deste trabalho é evidenciar as contribuições dos povos originários na  
formação das sociedades angolana e brasileira, com foco na educação, cultura e identidade,  
destacando, especialmente, o papel das mulheres na resistência e preservação cultural. Para  
atingir esse objetivo, realizamos uma análise conceitual, ancorada na literatura esepcializada,  
com base bibliográfica, cujos principais resultados são organizados em três seções: na primeira,  
abordamos o contexto histórico e a formação das sociedades angolana e brasileira, com ênfase  
na educação, cultura e identidade; na segunda, analisamos os processos de colonização e seus  
impactos sobre as populações originárias; e, finalmente, na terceira, tratamos da resistência  
cultural e do papel da mulher na ressignificação cultural durante e após a colonização.  
A colonização na formação das sociedades angolana e brasileira: dominação e  
resistências  
A formação das sociedades angolana e brasileira é um processo marcado por  
transformações impostas pelo colonialismo, que alteraram suas estruturas sociais, culturais e  
educacionais. Antes da chegada dos colonizadores, tanto em Angola quanto no Brasil, as  
populações originárias já possuíam sistemas de organização social, educação e cultura,  
intimamente relacionados à natureza e ao território.  
Deste modo, a intenção aqui é desvendar os aspectos históricos de formação dessas  
sociedades, sem estabelecer uma hierarquia entre elas. Embora compartilhem algumas  
semelhanças, cada uma passou por processos históricos distintos. Portanto, nesta seção,  
focamos no contexto histórico de ambas as sociedades, com ênfase nos aspectos relacionados  
à educação, cultura e identidade, começando por Angola e, em seguida, pelo Brasil.  
A palavra “Angola” tem origem no termo ngola, que se refere ao nome de uma dinastia  
de povos, posteriormente conhecidos como Ambundu. Esses povos migraram da Região Sul da  
África Central até o Rio Kwanza, onde fundaram um dos mais poderosos reinos do país.  
Localizada na Zona Austral do continente africano, Angola possui uma vasta extensão  
territorial de 1.246.700 km2, o que corresponde a um território duas vezes maior do que a França  
e a Grã-Bretanha, e catorze vezes maior que Portugal. Além disso, o país tem uma área marítima  
de 1.650 km e faz fronteira ao Norte com a República Democrática do Congo, a Leste com a  
Namíbia e ao Sul com o Congo-Brazzaville.  
160  
Em Angola, a diversidade étnica reflete-se na composição do grupo bantu. A palavra  
bantu origina-se do radical ntu, comum a várias línguas bantu, e significa “homem” ou “pessoas  
humanas”. O prefixo “ba” forma o plural da palavra muntu (pessoa). Portanto, bantu significa  
“seres humanos”, “pessoas”, “povo” (Altuna, 2006). Este grupo constitui a maioria da  
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Formação das sociedades angolana e brasileira: dominação e resistências dos povos originários  
população angolana e tem origem no Vale de Benue, entre os Camarões e a Nigéria, por volta  
do Século XIII.  
A população bantu, de África, faz parte de um vasto conjunto de aproximadamente  
500 povos, totalizando mais de 150 milhões de pessoas com características étnicas e culturais  
comuns. Esse grupo é um dos mais importantes de África, com uma distribuição geográfica que  
vai desde a orla sudanesa até o Cabo e do Atlântico ao Índico (Altuna, 2006). No contexto de  
Angola, representam cerca de um terço da população total.  
Em Angola, cerca de 100 grupos etnolinguísticos formam a população, organizados  
em nove principais subgrupos: Ovimbundu, Ambundu, Bakongo, Lunda-Tchokwe, Nganguela,  
Nhaneka-Humbi, Ambó, Herero e Xindonga. Além disso, o país abriga outros povos não-bantu  
e pré-bantu, como os Khoisan e os Vátuas, que enriquecem ainda mais a diversidade étnica  
(Menezes, 2000; Neves 2012).  
Figura 1: Grupos étnicos de Angola.  
161  
Fonte: https://www.mapade.org/angola  
Entre os grupos que habitam o espaço sócio-cultural de Angola, os Ovimbundu são os  
maiores, com cerca de 40% da população total, e são compostos pelos povos: vienos, bailundos,  
seles, sumbis, lumbos e outros, os quais ocupam a parte Ocidental de Angola, nas províncias  
(estados) do Huambo, Benguela e Bié, e têm uma organização social complexa, baseada em  
reinos, como: o Reino do Bailundo, Bié, Huambo, Chiyala, Galange, Andulo, etc. Esse grupo  
tem uma forte tradição agrícola e comercial, além de um sistema espiritual e jurídico próprio.  
Boás dos Santos; Edna Maria Goulart Joazeiro  
Por outro lado, são um dos grupos que melhor se adaptaram e mais resistiram à presença dos  
colonizadores. A língua umbundu, falada por esse grupo, é um exemplo de preservação da  
identidade frente à imposição do português.  
Os Ambundu representam 20% da população de Angola e ocupam uma extensa área  
do território, desde o Oceano Atlântico até algumas províncias do Nordeste do país, como  
Luanda, Bengo, Kuanza-Norte, Kuanza-Sul e Malanje. Falam a língua kimbundu, tendo sido  
um dos grupos mais influenciados pela cultura europeia, com atividades centradas no cultivo  
de arroz e café. O grupo inclui povos como ambundos, luandas, hungos, zuangos, ntendos,  
dembos, ngolas e outros.  
Outro grupo bantu de grande relevância em Angola são os Bakongo1, representando  
cerca de 15% da população que habitam nas províncias do Norte do país, como Cabinda, Uíge  
e Zaire, sendo compostos por 18 povos, entre eles: muxicongos, sossos, pombos, solongos,  
zombos, iacanas, sucos, entre outros. Tradicionalmente, os Bakongo praticam a agricultura de  
subsistência, com destaque para o cultivo de mandioca e café, tendo contribuído para que o país  
se tornasse um dos maiores produtores mundiais desses produtos.  
Os Lunda-Tchokwe, falantes da língua tchokwe, são um importante grupo étnico-  
linguístico e ocupam a Região Leste de Angola, nas províncias do Moxico, Lunda Norte e  
Lunda Sul, sendo conhecidos pela manipulação de metais, caça e agricultura. Esses e outros  
povos que habitam o território angolano desde o período pré-colonial, mantêm suas tradições  
culturais. Além disso, os povos Nganguela, Nhaneka-Nkumbi, e outros, que compõem cerca de  
10% da população, também mantêm suas línguas e práticas tradicionais, o que evidencia a  
diversidade étnica e cultural do país.  
162  
A cultura bantu é caracterizada por uma rica tradição oral, que engloba contos,  
provérbios, música2, dança e mitos. A educação, é vista como um bem coletivo da comunidade.  
A educação tradicional, portanto, era transmitida de forma coletiva3, tendo como educadores os  
pais e outros familiares, que desempenhavam papéis importantes no processo de ensino dos  
filhos. Ou seja, “ninguém escapava da educação familiar em casa, educação no campo, na  
caça, nas manifestações culturais e, de modo geral, todos se envolviam em um processo de  
1
Este foi o grupo étnico que teve os primeiros contatos com os europeus a partir do Reino do Congo em 1482,  
parte deles habitam a República Democrática do Congo, sendo considerados também como “guardiões” das  
tradições culturais do grupo banto.  
2 As músicas populares descreviam virtudes, sendo usadas tanto para expressar sentimentos quanto para orientar a  
educação. Através dessas músicas, os nativos de Angola também expressavam sentimentos, atitudes, crenças e  
valores.  
3 Vale clarificar que, embora não possuíssem estabelecimentos de ensino conforme a configuração atual da escola,  
não se pode afirmar que a educação e a instrução entre eles fossem orientadas ao acaso.  
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ensino e aprendizagem, para saber, para fazer, para ser ou conviver; todos os dias misturando  
a vida com a educação” (Neto, 2000, p. 56, destaques nossos).  
Esse aspecto colaborativo da educação também se reflete nas práticas cotidianas dos  
povos originários, que transmitiam seus saberes de geração para geração, enfatizando a conexão  
com a natureza e a preservação de suas identidades. Outrossim, entre os bantu, a educação não  
pode ser dissociada da religião; conforme enfatizado por Neto (2000, p. 46):  
Para os bantu, a visão do mundo se emparelha à crença em Deus como força  
primordial de onde tudo inicia. Ela existe em tudo, e há toda uma formalização  
do uso dessa força, que na visão do mundo do bantu é descrita como uma  
pirâmide. O homem vivo ocupa o centro da pirâmide, acima dele só os  
ancestrais e acima desses está Deus. Entre a pirâmide e o homem existe uma  
relação de forças iniciais. O homem é o grande manipulador dessas forças;  
ele trabalha na relação com a natureza e com os homens. A doença é vista  
como uma minimização da força, enquanto a saúde é vista como um esforço  
das forças iniciais. E ele põe todo esse universo que o cerca, ao seu serviço.  
Vale destacar que, antes da invasão colonial, a sociedade angolana era formada em  
reinos, dos quais os dois maiores eram os Reinos do Congo e Ndongo. Outros reinos  
relativamente menores existiram no planalto, no Centro e no Sul de Angola, como o Reino de  
Uambu, fundado pelo Rei Uambu-kalunga, situado na atual província do Huambo; o Reino de  
Thiyaka, formado pelo Reino Tchilulu; o Reino de Ndulu, do Rei Katekulu-Mengu, com sede  
na atual cidade do Andulo; o Reino do Bailundo, do Rei Katiavala; o Reino do Bié, do Rei  
Viyé; o Reino de Kandonda, do Rei Kakonda; o Reino da Lunda e o do Planalto Central  
(Mandume e Kuaniama) (Neto, 2000).  
163  
Cada reino possuía um rei que detinha autoridade sobre o território. A sociedade era  
organizada em grupos familiares, com papéis definidos conforme a idade e o gênero, refletindo  
as condições econômicas e culturais da época. Assim, a posição e função social de cada membro  
eram determinadas pela linhagem étnica ou pela tradição, embora essas estruturas estivessem  
sujeitas a transformações com o surgimento de novas dinâmicas econômicas e sociais.  
Entretanto, a chegada dos colonizadores portugueses, em 1482, provocou uma  
transformação dramática, alterando as dinâmicas sociais e culturais desses povos. A imposição  
do cristianismo, da língua portuguesa e dos valores europeus procurou desintegrar os sistemas  
educacionais autênticos e forçar a adaptação dos povos nativos ao novo modelo colonial. A  
colonização visava, assim, subverter as identidades dos povos e estabelecer uma relação  
desigual de poder, com o objetivo de subordiná-los às necessidades da exploração territorial e  
econômica.  
Após a independência de Angola, em 11 de novembro de 1975, a luta pela preservação  
da cultura e identidade dos povos nativos continuou sendo uma questão central. Para Samba  
Boás dos Santos; Edna Maria Goulart Joazeiro  
(2014), apesar das tentativas de homogeneização cultural impostas pelo colonialismo, os  
nativos de Angola, sobretudo os bantu, mantiveram sua diversidade étnica, cultural e  
linguística. Até hoje, o português, como língua oficial, é amplamente utilizado, mas 2/3 da  
população falam línguas da família bantu, como o umbundu, kikongo, tchokwe, nganguela,  
kimbundu, refletindo a pluralidade linguística e cultural do país.  
Assim como em Angola, o Brasil também apresenta uma complexidade única, fruto  
de um longo processo histórico que envolveu a fusão de diversos grupos étnicos e culturais.  
Esse processo, imerso em lutas e resistências, reflete-se na diversidade e pluralidade do país. O  
Brasil, com suas dimensões continentais, destaca-se entre os países latino-americanos. Sua  
extensão territorial de 8,5 milhões de km2 corresponde a quase 1,6% de toda a superfície do  
planeta, ocupando 5,6% das terras emersas do globo, 20,8% da área de toda a América e 48%  
da área da América do Sul.  
Essa grandiosidade territorial não apenas configura o Brasil como o terceiro maior país  
das Américas e o quinto maior do mundo, mas também como um território de contrastes e de  
vasta diversidade cultural. O país é composto por 26 estados e o Distrito Federal, onde se  
encontra a capital Brasília, distribuídos em cinco regiões: Norte, Nordeste, Centro-Oeste,  
Sudeste e Sul. Essa diversidade territorial reflete-se nas múltiplas realidades sociais e culturais  
do Brasil, que, historicamente, têm sido forjadas pelos processos de colonização, resistência e  
adaptação dos povos originários.  
164  
A grandeza do país está, assim, intimamente ligada à sua história de transformações,  
marcada pela luta pela preservação das identidades culturais e pela reorganização social de um  
povo em constante movimento. Por outro lado, a educação desses povos era essencialmente  
voltada para a transmissão de saberes ancestrais, principalmente por meio de rituais, mitos e  
práticas cotidianas, com um foco claro na integração com a natureza e na manutenção do  
território.  
No entanto, a chegada dos colonizadores portugueses em 1500, deu início a um  
processo de subordinação dessas culturas autênticas. Como esclarece Gomes (2012, p. 18), “a  
questão indígena nasceu com o descobrimento do Brasil, da América em geral, e continuará a  
existir [...]”. A imposição do modelo europeu, incluindo o uso da língua portuguesa e a adoção  
do catolicismo, foi um dos instrumentos utilizados para eliminar os sistemas educacionais dos  
nativos, desintegrando suas culturas e buscando a assimilação forçada ao modelo colonial e à  
visão eurocêntrica.  
Por outro lado, a análise histórica da luta e conquista dos povos originários pelo direito  
à terra no contexto da sociabilidade capitalista requer uma breve caracterização da relação entre  
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as instâncias de poder e os povos originárias na formação social brasileira. No Brasil, assim  
como em outros contextos coloniais, a invasão e exploração territorial desempenharam papel  
central no rompimento das relações tradicionais dos povos originários com a terra, alterando  
suas dinâmicas sociais e culturais.  
A invasão, ocupação e exploração do solo brasileiro foram e continuam sendo  
determinantes para as transformações profundas que os povos originários sofreram ao longo de  
cinco séculos. Silva (2018) destaca que esse longo processo de devastação física e cultural  
resultou na eliminação de grandes grupos e numerosas etnias indígenas, especialmente devido  
a ruptura histórica entre os indígenas e a terra.  
A tentativa de extinção dos povos originários no Brasil é evidente pelo drástico  
declínio de sua população, que caiu de cinco milhões em 1500 para cerca de 230.000 hoje. A  
perda de 95% dessa população em menos de 500 anos reflete um processo sistemático de  
destruição, onde a sobrevivência foi uma exceção, e não a regra. O termo “sobrevivência” perde  
o seu significado diante de uma tragédia histórica de tal magnitude, caracterizada por violência,  
deslocamento e marginalização (Gomes, 2012).  
A destruição física e cultural causada pela colonização deixou marcas profundas na  
história dos povos originários, comprometendo sua autonomia e autossuficiência. Apesar dessa  
repressão, os povos originários resistiram de diversas maneiras, o que reflete a contínua luta  
pela preservação de suas culturas e pelo reconhecimento de sua contribuição à formação da  
identidade nacional.  
165  
Nesse contexto, a questão dos povos originários no Brasil reflete a luta não apenas pela  
sobrevivência, mas também pela (re)valorização da história e da cultura indígena, com uma  
ênfase especial na preservação das línguas e práticas religiosas. Dito de outro modo, Silva  
(2018, p. 482) afirma que “a diversidade dos grupos étnico-linguísticos da América Latina não  
cabe nesse termo genérico [‘índio’], expressando a marca histórica contraditória da  
colonização”. A diversidade dos grupos indígenas, suas línguas, culturas e práticas sociais,  
reflete a resistência a um processo que buscava o apagamento de suas identidades.  
Além disso, é importante ressaltar que a educação indígena não foi exclusivamente um  
processo unilateral de dominação. Pois, “alguns povos indígenas, como os Guarani, Terena,  
Guajajara, Tikuna, Macuxi, e outros mais, que têm mais de duzentos anos de contato com o  
mundo luso-brasileiro, parecem ter adquirido reforço biológico e cultural para defender-se das  
adversidades” (Gomes, 2012, p. 17). Essa adaptação não se limitou à sobrevivência, mas  
também ao fortalecimento das identidades indígenas, que conseguiram resistir e, em muitos  
casos, preservar suas culturas em face das pressões coloniais.  
Boás dos Santos; Edna Maria Goulart Joazeiro  
Esse contexto da reprodução histórica de preconceitos e de toda forma de violência da  
escravidão, perseguições e catequização, a trajetória institucional da atuação dos órgãos de  
“proteção” também registrou a diversidade de formas de organização social e resistência dos  
povos originários língua, tipo físico e cultura , constatando a diversidade de troncos  
linguísticos indígenas divididos em inúmeros subgrupos (Silva, 2018).  
O debate sobre o papel dos povos originários no Brasil continua a ser central, pois, “a  
questão indígena se processa numa dimensão histórica mais ampla do que aquela que define a  
história brasileira ou mesmo a americana em geral” (Gomes, 2012, p. 19), visto que, apesar da  
marginalização e do apagamento, a presença indígena persiste, desafiando as narrativas  
dominantes sobre a formação da nação. Esse fenômeno também se observa em Angola, onde,  
após a independência, a preservação da identidade e cultura desempenhou um papel crucial na  
resistência ao regime colonial português.  
Portanto, tanto a sociedade angolana quanto a brasileira foram marcadas pelos  
processos de resistência e adaptação dos povos originários, que, apesar das tentativas coloniais  
de destruição, preservaram suas culturas ao longo dos séculos. A educação, a cultura e a  
identidade desses povos só podem ser plenamente compreendidas ao se reconhecer sua  
contribuição fundamental para a formação destas sociedades. Por outro lado, a resistência e a  
presença contínua dos povos originários nas duas sociedades, não se restringem a um passado  
distante, mas representam uma contribuição vital para a consolidação das identidades nacionais  
e o fortalecimento das culturas locais.  
166  
Dominação do europeu branco português e seus impactos sobre as populações  
originárias  
O processo de colonização em Angola e no Brasil, assim como em outras partes do  
mundo, foi marcado pela imposição de uma nova ordem social e cultural, resultando em  
violência e destruição das formas de organização e identidade das populações originárias. Trata-  
se do processo de acumulação primitiva, que, segundo Marx (1985), ocorreu por meio de  
espoliações e expropriações das riquezas no novo mundo, dominadas, fundamentais para  
colocar a Europa no topo das relações capitalistas de produção e reprodução social. Com a  
chegada dos colonizadores portugueses em Angola, em 1482, e no Brasil, em 1500, os povos  
originários foram profundamente afetados pela imposição de um modelo social, econômico,  
político e cultural europeu, um processo de dominação e opressão, material e imaterial.  
Como observa Keita (2009), o continente africano já vivia um movimento de  
crescimento, expresso em suas estruturas político-econômicas e socioculturais, antes da  
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Formação das sociedades angolana e brasileira: dominação e resistências dos povos originários  
chegada dos europeus. No entanto, a partir do Século XVI, essa evolução foi abruptamente  
interrompida com o início do tráfico de pessoas.  
Esse processo de subordinação, segundo Falola (2020), não foi limitado a uma única  
região do continente, mas afetou praticamente toda África e os seus povos. Falola (2020, p. 93)  
afirma que “o tráfico de escravos foi um ataque contínuo à dignidade e ao desenvolvimento da  
África. O continente foi vítima da violência e da pilhagem”, o que reflete a marginalização  
histórica da África, um processo que, como ele coloca, “afeta a imagem do continente até os  
dias de hoje”. A brutalidade do tráfico de escravos, especialmente no contexto da África  
Ocidental e Central, interrompeu seu desenvolvimento, com as populações locais sendo  
despojadas de uma parte significativa de sua força de trabalho jovem e vital.  
Em Angola, a violência contra os povos originários manifestou-se tanto de forma  
física, por meio de massacres e deslocamentos forçados, quanto cultural, através da tentativa de  
destruição de suas línguas, crenças e tradições. Nesta sequência, Menezes (2000, p. 114-115)  
considera que,  
A Região de Angola, “descoberta” em 1482, com a chegada de Diogo Cão  
na foz do do Rio Congo, passou a ser explorada no início do Século XVI,  
especialmente após a fundação da cidade de Luanda, em 1576, marcando a  
consolidação da presença portuguesa na área e a sistematização da captura de  
mão-de-obra escrava com propósitos comerciais.  
167  
Esse processo brutal de subordinação não se limitou às fronteiras de Angola, como  
descrito anteriormente, mas se estendeu a outros países da África. Desse modo, Falola (2020,  
p. 95) afirma que “o colonialismo foi implacável, trágico e brutal”, com “as conquistas coloniais  
implicando subordinação e perda de soberania” sobre os nativos, o que reflete diretamente as  
consequências da imposição de uma ordem colonial que subjugou os povos africanos por  
aproximadamente cinco séculos.  
A violência, segundo Fanon (2022, p. 14), “[...] é uma besta bifronte. Ela é fundante  
e mantenedora do mundo binariamente cindido entre as zonas do ser e do não ser. Da mesma  
forma, é força e linguagem descolonizadoras, ruptura histórica, reabilitadora do  
reconhecimento e da comunicação entre os colonizadores [...]”'. Esse conceito é essencial para  
entender como, paradoxalmente, a violência, embora inicialmente usada pelos colonizadores  
para subjugar e desumanizar os povos colonizados, também se transforma em um instrumento  
de resistência e emancipação, permitindo a ruptura com a ordem colonial e a reconstrução  
identitária dos sujeitos oprimidos.  
Embora não existam estimativas precisas sobre o número de escravos provenientes de  
Angola, milhões foram traficados, principalmente por Luanda e Benguela, para diversas  
Boás dos Santos; Edna Maria Goulart Joazeiro  
regiões, incluindo as colônias portuguesas e espanholas na América, a América do Norte, a  
Oceania e a Europa, onde a mão de obra escravizada era amplamente utilizada.  
O controle colonial português sobre Angola foi exercido de maneira sistemática e  
brutal. O regime colonial português, especialmente a partir do governo de Salazar, iniciado em  
1933 e finalizado em 1974 com a Revolução dos Cravos, consolidou uma estrutura autoritária,  
na qual a repressão a qualquer tentativa de resistência tornou-se a norma (Hernandez, 2008). O  
tráfico de escravos foi uma das principais fontes de riqueza para a coroa portuguesa, com  
milhões de africanos sendo forçados a atravessar o Atlântico para as Américas. Este tráfico teve  
implicações globais, alimentando uma rede de exploração que atingia os continentes africano,  
americano e europeu, estabelecendo uma dinâmica desigual de poder que perduraria por  
séculos.  
No entendimento de Kobayashi (2021), o tráfico de escravos atingiu seu auge no  
Século XVIII, quando aproximadamente 6,4 milhões de pessoas foram capturadas na África  
Atlântica. A maioria delas foi transportada para o Brasil, por meio do domínio de Portugal no  
Atlântico Sul, como pode ser conferido na Tabela 1.  
Tabela 1: Volume de pessoas traficadas ao longo dos séculos.  
Período histórico  
650-800  
Número de vítimas  
150.000  
Média anual  
1.000  
168  
800-900  
300.000  
3.000  
900-1100  
1.740.000  
1.650.000  
430.000  
8.700  
1100-1400  
1400-1500  
1500-1600  
5.500  
4.300  
550.000  
5.500  
Fonte: Keita (2009, p. 296).  
Esses números assustadores revelam o impacto devastador do tráfico transatlântico  
sobre as sociedades africanas, interrompendo seu crescimento e desenvolvimento ao retirar  
das comunidades uma grande parte de sua juventude e força de trabalho, privando-as da chance  
de se desenvolver plenamente. Esse movimento forçado de pessoas, especialmente de jovens,  
mulheres e crianças, afetou não apenas o desenvolvimento econômico, mas também o  
fortalecimento cultural e social das comunidades africanas, com ênfase na angolana.  
A violência e a exploração também marcaram a experiência Colonial no Brasil, onde  
a condição dos indígenas, embora oficialmente reconhecida, foi pouco respeitada. O Estado  
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Formação das sociedades angolana e brasileira: dominação e resistências dos povos originários  
português, por meio do Regimento de 1549, tentava estabelecer um tratamento respeitoso para  
com os indígenas, mas, na prática, a subordinação prevalecia.  
O processo de subordinação também se estendeu à independência do Brasil, que se  
diferenciou da experiência de outros países latino-americanos. Enquanto em diversas nações  
da América Latina espanhola a independência ocorreu por meio de intensos combates militares  
e com forte participação popular, no Brasil ela foi resultado de um acordo entre as elites no  
poder, excluindo o protagonismo popular e utilizando a coerção estatal. Além disso, o Brasil  
preservou sua estrutura econômica baseada nos latifúndios monocultores de exportação e na  
exploração do trabalho escravo, sendo o último país a abolir a escravidão nas Américas. Esse  
contexto deixou marcas profundas na formação econômico-social do país, tanto em relação ao  
racismo estrutural quanto às desigualdades de classe e raça, além da violência estatal contra  
as camadas mais pobres (Castelo; Ribeiro; Rocamora, 2020).  
No entendimento de Gomes (2012), embora o Estado português tenha se preocupado,  
em algum momento, com o tratamento dos indígenas, suas políticas estavam voltadas para a  
exploração, essencial para viabilizar a expansão econômica. Dessa forma, a dinâmica colonial  
era de dominação, onde os povos originários eram vistos como obstáculos à expansão territorial  
e frequentemente considerados seres inferiores, necessitando ser assimilados ao modelo  
europeu.  
169  
Em ambos os casos, o processo colonial foi acompanhado de uma redefinição das  
relações de poder, com os colonizadores estabelecendo um sistema hierárquico que subjugava  
as populações originárias a um status inferior, com pouca ou nenhuma autonomia. Essa  
subordinação dos povos originários às novas estruturas de poder estabelecidas pelos  
colonizadores se refletiu nas questões de terra e propriedade, fundamentais para a organização  
das sociedades coloniais.  
Neste contexto, Silva (2018, p. 483) entende que “o processo de apropriação de terras  
pelos colonizadores e a subsequente implementação dessas políticas pelo Estado brasileiro teve  
um impacto devastador, não só sobre as populações indígenas, mas também sobre a estrutura  
social do país”.  
No Brasil, o processo de colonização esteve intrinsecamente ligado à acumulação  
primitiva mercantilista, que criou as condições materiais para o processo de acumulação  
industrial e, portanto, está relacionado ao nascente capitalismo europeu. As matérias-primas  
expropriadas incluíam a cana-de-açúcar e a exploração das minas de ouro. As terras comuns  
dos povos originários foram expropriadas, divididas em capitanias e desbravadas pelos  
bandeirantes. Essa concentração fundiária favoreceu a formação de uma estrutura agrária  
Boás dos Santos; Edna Maria Goulart Joazeiro  
desigual, resultando na marginalização dos povos originários, cujas terras foram tomadas sem  
qualquer compensação. A consequência direta foi a construção de uma hierarquia social  
profundamente marcada pela etnia, um reflexo das relações de exploração e subordinação que  
perduraram ao longo dos séculos.  
De maneira similar, em Angola, a expropriação das terras e a exploração de recursos  
naturais como petróleo e diamantes impuseram devastadoras consequências para as  
comunidades locais. Muitas dessas populações foram submetidas a formas de trabalho forçado  
e brutalmente reprimidas pelas autoridades coloniais. A colonização portuguesa em Angola  
também se caracterizou pela imposição de um sistema de exploração para atender às  
necessidades do capitalismo nascente na Europa, o que gerou profundas desigualdades e a  
subordinação das populações nativas, sendo esse processo acompanhado por uma repressão  
violenta.  
O impacto da colonização em Angola não se restringiu à colônia. O regime colonial,  
conforme destacado por Menezes (2000), foi intensificado com a liderança de Salazar, que  
consolidou o aparelho repressivo do Estado, criando a polícia política secreta PIDE e  
proibindo manifestações políticas, permitindo apenas um partido de caráter fascista. No Brasil,  
a independência não significou uma ruptura com a estrutura de dominação europeia, dando  
origem a relações capitalistas locais dependentes destes países centrais, seja no modelo  
agrário-exportador, ou da industrialização por substituição de importações.  
170  
Segundo Moura (2020), a miscigenação no Brasil, embora tenha dimensões biológicas,  
não resultou em uma democracia racial. Ela esteve subordinada a uma estrutura de subordinação  
sociopolítica que impediu o acesso de grande parte da população a espaços sociais que  
conferissem status econômico ou prestígio, perpetuando as desigualdades sociais, agora de  
classe e de raça/etnia, com maiores consequências negativas para as mulheres pobres, negras e  
da classe trabalhadora.  
Esses mecanismos de seleção étnica compulsórios, que reproduziam as desigualdades  
estruturais do período colonial, são a base das dinâmicas de marginalização racial que persistem  
até os dias de hoje. O desejo de ascensão social e de aproximação ao modelo imposto pelos  
colonizadores, embora muitas vezes negado, ilustra como a cultura e os valores da metrópole  
se impõem sobre as populações colonizadas.  
No contexto brasileiro, esse processo de subordinação também foi evidenciado nas  
políticas de integração forçada dos povos indígenas ao novo projeto nacional. Após a  
independência, figuras como José Bonifácio de Andrade e Silva tentaram encontrar um lugar  
para os indígenas no Brasil, mas a verdadeira aceitação de suas culturas nunca ocorreu. Como  
Libertas, Juiz de Fora, v. 25, n. 1, p. 157-179, jan./jun. 2025. ISSN 1980-8518  
Formação das sociedades angolana e brasileira: dominação e resistências dos povos originários  
salientado por Gomes (2012), a tentativa de integrar os indígenas foi marcada por uma  
ambiguidade histórica, onde “hoje amigos, amanhã inimigos”. A abordagem do Estado nunca  
foi genuína em relação à valorização da cultura indígena.  
A integração dos povos indígenas ao Estado nacional brasileiro foi, portanto, uma  
tentativa de assimilação forçada, que desconsiderou as identidades e culturas desses povos, as  
quais haviam sido marginalizadas desde a chegada dos portugueses. O processo de integração  
não levou em conta a diversidade cultural e formas de organização social dos povos indígenas,  
tratando-os como elementos a serem absorvidos e adaptados ao modelo europeu, sem respeito  
por sua autonomia ou por suas tradições. Essa ambiguidade também se estendeu ao contexto  
angolano, onde movimentos anticolonialistas começaram a emergir no Século XX.  
A luta pela independência em Angola teve início com a formação de movimentos de  
libertação. Em 1954, surgiu a União dos Povos de Angola (UPA), liderada por Holden Roberto,  
que posteriormente se transformaria na Frente Nacional de Libertação de Angola (FNLA). Em  
1956, o Movimento Popular de Libertação de Angola (MPLA), com figuras como Agostinho  
Neto, Mário Pinto de Andrade e Viriato da Cruz, passou a defender a independência com uma  
ideologia marxista. A partir de 1966, a União Nacional para a Independência Total de Angola  
(UNITA), liderada por Jonas Malheiro Savimbi, emergiu como um novo movimento de  
resistência.  
171  
Neste período, alguns estudantes das colônias portuguesas, como Amílcar Cabral,  
Eduardo Mondlane, Agostinho Neto, Marcelino dos Santos, Noémio de Souza, Viriato da Cruz,  
António Jacinto, Mário de Andrade, Alda Espírito Santo, António Pimentel Domingues,  
Guilherme Espírito Santo, Francisco Tenreiro, entre outros, formaram-se, tornaram-se  
profissionais nos anos 50 e voltaram a seus países impregnados de ideias libertadoras. Esses  
líderes, ao retornar à sua terra natal, trouxeram consigo não apenas um conhecimento teórico  
adquirido em seus estudos, mas também uma visão mais crítica sobre a opressão colonial  
Menezes (2000).  
A formação acadêmica adquirida nas universidades europeias e a experiência vivida  
nas metrópoles, muitas vezes com dificuldades e discriminação, ajudaram a consolidar um  
pensamento político e revolucionário que reverberaria na luta pela liberdade e  
autodeterminação dos povos africanos. Esses elementos formaram a base do pensamento  
anticolonialista que marcaria as décadas seguintes da história de Angola e de outros países  
africanos que buscavam se libertar do domínio europeu.  
Além disso, o impacto do tráfico de escravos, que atravessou as fronteiras dos impérios  
coloniais portugueses e espanhóis, exerceu um papel fundamental na formação das sociedades  
Boás dos Santos; Edna Maria Goulart Joazeiro  
brasileiras e angolanas. A diáspora africana, impulsionada pelo tráfico de escravos, deixou  
marcas em ambas as sociedades. No Brasil, a presença de milhões de africanos escravizados e  
seus descendentes configurou a formação da população, gerando uma sociedade marcada pela  
desigualdade racial e pela marginalização dos negros de processos decisórios e políticos.  
O legado dessa marginalização racial e social é um reflexo da estrutura de dominação  
colonial, que favorecia as elites brancas em detrimento dos povos africanos e indígenas. Como  
afirma Pankararu (2022, p. 187), “a condição colonial da realidade brasileira e a função  
econômica da escravidão contribuíram para a reprodução social e histórica do racismo e da  
condição de subalternidade imposta aos povos indígenas no contexto contemporâneo [...]”.  
Portanto, o legado da colonização no Brasil e em Angola reflete um processo violento  
de exploração e dominação, cujas consequências ainda são sentidas até hoje. A tentativa de  
integrar os povos originários e reconhecer suas culturas foi sempre um esforço subordinado,  
caracterizado por uma marginalização contínua, que continua a moldar as relações sociais e  
políticas nesses países.  
No entanto, como as mulheres, frequentemente marginalizadas, desempenharam  
papéis de resistência cultural durante e após o período colonial? De que maneira suas ações  
contribuíram para a ressignificação e preservação das identidades culturais, apesar das  
estruturas opressivas impostas? Essas questões são essenciais para compreender o papel  
central da mulher na resistência e transformação cultural em contextos de dominação.  
172  
“Não há dominação sem resistências”: o papel da mulher na ressignificação  
cultural durante e após a colonização  
A resistência cultural dos povos originários à colonização, com especial destaque para  
as mulheres, representa um fenômeno multifacetado que transita por aspectos de sobrevivência,  
adaptação, e ressignificação identitária. No contexto da colonização portuguesa, tanto no Brasil  
quanto em Angola, as políticas de extermínio cultural, social e até físico dos povos originários  
visavam a imposição de uma ordem colonial que negava, marginalizava e destruía as culturas  
autênticas dessas populações.  
No entanto, as formas de resistência manifestadas por esses povos, especialmente por  
suas mulheres, contribuíram para a preservação de identidades culturais e formas de  
organização social, cujas ressonâncias podem ser observadas até os dias atuais. A dinâmica de  
resistência cultural que permeou o colonialismo reflete, assim, não apenas um processo de  
subversão das estruturas coloniais, mas também um esforço contínuo de reinvenção das  
tradições.  
Libertas, Juiz de Fora, v. 25, n. 1, p. 157-179, jan./jun. 2025. ISSN 1980-8518  
Formação das sociedades angolana e brasileira: dominação e resistências dos povos originários  
No Brasil, a resistência indígena à colonização reflete um movimento que se estendeu  
ao longo dos séculos e se intensificou com o tempo, como bem descreve Gomes (2012), que  
sublinha o crescimento, nas últimas três décadas, de várias etnias indígenas que há muito tempo  
eram consideradas à beira da extinção. Estes povos, como os Guarini, Terena, Guajajara,  
Karajá, entre outros, passaram por transformações profundas, não apenas pela imposição de um  
novo sistema político e econômico, mas também pela necessidade de se adaptar e sobreviver à  
violência do processo colonial.  
A resistência a essa imposição cultural não foi apenas uma resposta a uma forma de  
dominação externa, mas também uma reapropriação dos próprios valores, práticas e  
identidades. Através de um processo de negação e reinterpretação das imposições coloniais,  
esses povos conseguiram preservar, em muitos aspectos, sua organização social, seus costumes,  
suas línguas e seus saberes tradicionais.  
A relevância do papel feminino nesse processo de resistência é fundamental. As  
mulheres indígenas, sobretudo no contexto brasileiro, apesar de historicamente estarem  
inseridas em uma estrutura patriarcal que limitava o seu papel social, têm sido as principais  
agentes de transmissão cultural. Elas não só asseguraram a continuidade da memória histórica  
das suas comunidades, mas também desempenharam um papel ativo na preservação de práticas  
de subsistência e na luta pela autonomia territorial. Isso é ainda mais claro quando se observa  
que, com a intensificação da luta pela demarcação de terras indígenas, as mulheres, muitas  
vezes à frente dos processos de mobilização local, se tornaram figuras centrais nas lutas por  
justiça e reconhecimento.  
173  
As comunidades indígenas têm resistido não apenas contra a destruição física de suas  
terras, mas também contra a imposição de um sistema educacional que não considera suas  
particularidades culturais, o que tem levado muitas dessas mulheres a se envolverem na luta  
por uma educação intercultural que respeite seus modos de vida, suas crenças e sua cosmologia  
(Amaral, 2020).  
Em Angola, como sublinhamos nas seções anteriores, o colonialismo português  
resultou em uma negação sistemática das identidades culturais angolanas, forjando um processo  
de destruição das formas de organização social tradicionais. Como destaca Samba (2014), o  
impacto socioeconômico da colonização em Angola foi devastador, levando ao êxodo rural,  
desagregação familiar e perda de valores culturais fundamentais. No entanto, a sociedade  
angolana, mesmo diante dessas condições adversas, conseguiu resistir e evoluir.  
As mulheres angolanas desempenharam um papel essencial na preservação das  
tradições orais, na manutenção de saberes ancestrais e na reapropriação dos valores culturais,  
Boás dos Santos; Edna Maria Goulart Joazeiro  
especialmente em um contexto de resistência ao colonialismo. A educação formal imposta  
pelo colonizador refletia a subordinação cultural, mas a resistência das mulheres,  
principalmente no espaço privado e na vida comunitária, foi fundamental para a sobrevivência  
dos valores africanos (bantu) nas práticas sociais, religiosas, musicais e de dança. No entanto,  
apesar de alguns avanços, diversos desafios persistem, especialmente em realidades em que o  
papel feminino continua restrito ao âmbito doméstico.  
Esse fenômeno é visível no contexto angolano, desde o período pré-colonial até os  
dias atuais, especialmente em algumas comunidades rurais. Como destaca Samba (2014, p.  
41), “cabe às mulheres o trabalho no campo e no lar”, enquanto aos homens são atribuídas  
responsabilidades que garantem maior autonomia, como a caça e a pesca. A desigualdade de  
gênero também se reflete na educação, onde, nas zonas rurais, prevalece a ideia de que os  
meninos têm mais direito à escolarização do que as meninas.  
Samba (2014) observa que, no contexto escolar angolano, especialmente nas  
províncias do interior e nas zonas rurais, há uma escassez de meninas na escola. Isso ocorre  
porque, nessas localidades, os pais preferem que as filhas se dediquem às tarefas domésticas  
e ao cuidado dos irmãos mais novos, em vez de frequentarem a escola. Nesse contexto, a  
escola tende a ser mais acessível aos meninos, pois os pais consideram que as meninas são  
mais úteis dentro do espaço doméstico.  
174  
Falola (2020, p. 367) também reforça a ideia de uma estrutura familiar patriarcal  
enraizada nas sociedades africanas, afirmando que “no interior das famílias, ainda que os  
papéis de gênero sejam complementares, os homens são considerados os chefes da família,  
enquanto a importância da mulher será associada ao seu papel de mãe e esposa.” Essa  
perspectiva revela a continuidade das desigualdades de gênero que limitam as oportunidades  
das mulheres, afetando diretamente sua educação e autonomia, uma realidade ainda observada  
em muitas regiões de Angola.  
Em Angola, embora 75% das meninas frequentem a escola primária, essa proporção  
diminui drasticamente para apenas 15,5% no Ensino Secundário, coincidente com a fase da  
adolescência. Além disso, apesar de o país seguir diversos instrumentos internacionais,  
regionais e nacionais relacionados à promoção e proteção dos direitos das mulheres, as taxas  
de casamento precoce e gravidez na adolescência continuam elevadas. Cerca de 30% das  
meninas em Angola são casadas antes de completarem 18 anos, e 8% delas são casadas antes  
dos 15 anos (UNFPA, 2022).  
Libertas, Juiz de Fora, v. 25, n. 1, p. 157-179, jan./jun. 2025. ISSN 1980-8518  
Formação das sociedades angolana e brasileira: dominação e resistências dos povos originários  
Dados do Fundo de População das Nações Unidas (UNFPA, 2020) indicam que as  
adolescentes que engravidam em Angola são, na sua maioria, aquelas com baixos níveis de  
escolaridade, que vivem em contextos de pobreza e residem em zonas rurais e Peri urbanas. Em  
relação à Saúde e aos Direitos Sexuais e Reprodutivos (SDSR), Angola apresenta uma das taxas  
de fecundidade mais altas do mundo, com uma média de 6,2 filhos por mulher. Além disso, um  
terço das meninas têm filhos antes dos 18 anos. Esta situação é consequência do acesso limitado  
aos serviços de saúde sexual e reprodutiva, devido algumas normas sociais e culturais que  
restringem a autonomia das mulheres sobre seus próprios corpos. O tempo de espera nos centros  
de saúde, a qualidade insuficiente dos serviços e o estigma relacionado ao uso dos serviços de  
saúde sexual também são fatores que dificultam o acesso a esses cuidados (Pena; Teixeira,  
2022).  
É importante observar que Angola possui uma das populações mais jovens do mundo,  
com mais de dois terços da população abaixo dos 25 anos (UNFPA, 2022). Isso significa que,  
para o desenvolvimento futuro do país, é fundamental enfrentar esses desafios estruturais que  
limitam as oportunidades educacionais e reprodutivas das mulheres, a fim de garantir um futuro  
mais equitativo para todos os cidadãos.  
Dando sequência, um aspecto notável da resistência cultural feminina em Angola de  
acordo ao contexto histórico, se relaciona diretamente com o movimento de mulheres que se  
opuseram à hegemonia colonial através de movimentos messiânicos e religiosos. O  
messianismo, representado por figuras como Simon Kimbangu e Simão Gonçalves Toco,  
propôs não apenas uma resistência religiosa, mas também uma alternativa à educação e aos  
valores impostos pelos colonizadores (Hernandez, 2008).  
175  
A Igreja Tocoista, por exemplo, liderada por Simão Toco, rejeitava as interpretações  
do cristianismo colonial e resgatava as tradições africanas, transformando a religião em um  
veículo para a luta contra a opressão e pela autonomia cultural. Toco, ao contrário das religiões  
imposta pelo império colonial, defendia uma educação que resgatasse os valores africanos e  
promovesse a unidade dos povos negros contra a opressão. A Igreja Tocoista não se limitava  
ao âmbito religioso, mas tinha um caráter político de resistência cultural, tornando-se um dos  
principais espaços de organização política, social e educacional, sendo também um espaço  
importante para a mobilização feminina. As mulheres em Angola, assim, não só se tornaram  
agentes de resistência cultural, mas também se posicionaram como líderes espirituais, sociais e  
políticas.  
A resistência educacional em Angola foi um reflexo do Movimento Nacional de  
Emancipação, que também passava pela luta pelo direito à educação. Como nos diz Hernandez  
Boás dos Santos; Edna Maria Goulart Joazeiro  
(2008), as associações políticas e estudantis, como a Liga Angolana (1912) e o Grêmio Africano  
(1913), desempenharam um papel crucial na luta por uma educação que não apenas se opusesse  
ao modelo colonial, mas que refletisse as necessidades e especificidades culturais angolanas.  
Essas associações foram, em muitos casos, formadas por intelectuais e líderes comunitários que  
viam na educação uma ferramenta essencial para a luta pela independência e pela construção  
de um Estado autônomo e culturalmente afirmativo. Dentro dessa resistência educacional, as  
mulheres emergiram não apenas como defensoras da educação, mas também como pensadoras  
e organizadoras de espaços alternativos de ensino que permitissem a preservação das tradições  
e o fortalecimento da identidade nacional.  
O Movimento de Resistência à Educação Colonial se reflete também nas questões de  
gênero, com as mulheres assumindo um papel central na luta contra a alienação cultural imposta  
pelos colonizadores. Campos (2022) aponta que as mulheres indígenas, ao se envolverem com  
essas lutas de resistência, não estavam apenas lutando por sua sobrevivência, mas também pela  
reapropriação dos espaços de poder, conhecimento e cultura que haviam sido sequestrados pelas  
potências coloniais.  
A luta pela educação, no contexto da resistência cultural, se entrelaça com a busca pela  
emancipação das mulheres, pela garantia de seus direitos civis e pela reafirmação de suas  
identidades culturais, tanto em Angola quanto no Brasil.  
176  
Esse processo de ressignificação cultural, liderado também por mulheres, representa  
uma forma de resistência à colonialidade que vai além da simples preservação de práticas  
culturais. Ele reflete uma reapropriação ativa do conhecimento e dos espaços sociais,  
desafiando a estrutura de poder imposta pelos colonizadores e criando novos modelos de  
educação, organização social e identidade. A resistência das mulheres indígenas e angolanas à  
colonização é, portanto, uma luta pela autonomia, não apenas sobre suas terras, mas também  
sobre seus corpos, suas famílias, suas identidades e seus destinos.  
Em suma, a resistência cultural dos povos originários, com destaque para as mulheres  
de ambas as sociedades, durante e após o período colonial reflete um dos aspectos mais  
profundos das histórias de sobrevivência e reapropriação cultural desses povos. As mulheres  
não se limitaram ao papel de vítimas, mas se tornaram agentes ativas de resistência, sendo  
fundamentais na preservação das culturas, na criação de alternativas educacionais e na  
afirmação de suas identidades. Esta resistência, contudo, ainda enfrenta desafios na atualidade,  
como a persistente desigualdade de gênero, o acesso restrito à educação e aos direitos sexuais  
e reprodutivos, além da violência doméstica e o casamento precoce. Apesar dessas  
Libertas, Juiz de Fora, v. 25, n. 1, p. 157-179, jan./jun. 2025. ISSN 1980-8518  
Formação das sociedades angolana e brasileira: dominação e resistências dos povos originários  
adversidades, elas continuam a ser líderes nas lutas pela demarcação de territórios, pelo direito  
à educação e pela afirmação das culturas que o colonialismo procurou destruir.  
Considerações finais  
As contribuições dos povos originários para a formação das sociedades angolana e  
brasileira são essenciais para compreender a constituição das identidades culturais e sociais  
desses países. Embora a colonização tenha imposto rupturas significativas, as resistências  
dessas comunidades, especialmente das mulheres, foram determinantes para a preservação das  
suas culturas e identidades. As mulheres desempenharam um papel central nesse processo,  
sendo responsáveis por manter e transmitir saberes tradicionais, muitas vezes adaptando suas  
práticas culturais frente às imposições coloniais. Esse fenômeno, mais do que um fato simples,  
deve ser reconhecido como uma força ativa na preservação e reinvenção das culturas dos  
povos originários.  
No Brasil, a colonização resultou em rupturas nas relações dos povos originários com  
a terra, mas a luta pela demarcação de terras e a valorização de suas formas tradicionais de  
educação continuam sendo instrumentos de resistência e afirmação da identidade indígena. A  
educação, voltada para a transmissão de saberes ancestrais e para o vínculo com a natureza,  
reflete uma resistência contínua ao modelo educacional imposto, reforçando a importância do  
reconhecimento das especificidades culturais.  
177  
Em Angola, a colonização portuguesa também visou a imposição da língua e da  
religião, mas os povos bantu, especialmente as mulheres, preservaram suas práticas culturais  
e educacionais. Elas foram responsáveis por adaptar e manter os saberes tradicionais,  
funcionando como guardiãs da memória coletiva. A educação tradicional, que se baseava na  
transmissão oral e no aprendizado através da convivência com a comunidade e a natureza, foi  
crucial para a preservação das identidades culturais.  
O papel das mulheres foi determinante não só para a preservação das culturas, mas  
também para a promoção da autonomia e da luta pelos direitos territoriais. Elas foram figuras-  
chave na resistência contra a aculturação e na construção de alternativas educacionais que  
respeitassem as identidades próprias dos povos originários.  
Portanto, as resistências dos povos originários e, em particular, das mulheres, foram  
centrais para a (re)configuração e promoção das culturas, bem como para a construção das  
identidades nacionais. A valorização dessas contribuições exige o reconhecimento dos direitos  
territoriais dos povos originários e a implementação de políticas educacionais que respeitem  
suas tradições e modos de vida.  
Boás dos Santos; Edna Maria Goulart Joazeiro  
O estudo evidencia, assim, a importância das práticas culturais tradicionais na  
construção das identidades nacionais e a necessidade de políticas públicas que garantam os  
direitos territoriais e culturais desses povos. As lutas travadas no passado continuam a ser um  
fundamento para a construção de um futuro mais justo e culturalmente diverso, tanto em  
Angola como no Brasil.  
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179  
Capitalismo dependente e questão social:  
apontamentos sobre eugenia e serviço social  
Dependent capitalism and the social question:  
notes on eugenics and social work  
Larisse Miranda de Brito*  
Resumo: Vinculado ao pensamento marxista e  
ao materialismo-histórico-dialético, através de  
uma densa pesquisa bibliográfica, este trabalho  
discute a emergência da questão social e do  
serviço no social no contexto do capitalismo  
dependente que surge no Brasil, entre finais do  
século XIX e início do século XX. Para isso,  
historiciza-se o surgimento do trabalho livre, da  
sociedade de classes, das políticas eugênicas no  
país e seus rebatimentos nos primeiros anos de  
emergência e consolidação da questão social e  
do serviço social brasileiro. Os resultados  
apontam que a emersão da questão social no  
país, ocorre no bojo de instituição de políticas  
eugênicas e higienistas que projetavam a  
identidade nacional como desprovida de  
qualquer problema racial. Ao mesmo tempo,  
sinalizam para o impacto da pseudociência  
eugênica na formação e atuação dos primeiros  
profissionais de serviço social, além de apontar  
para a necessária investigação científica em  
torno do tema.  
Abstract: Linked to Marxist thought and  
historical-dialectical materialism, through a  
dense bibliographical research, the emergence  
of the social question and social service in the  
context of dependent capitalism that emerged in  
Brazil between the end of the 19th century and  
the beginning of the 20th century is discussed.  
To this end, the emergence of free labor, class  
society, eugenic policies in the country and their  
repercussions in the first years of emergence  
and consolidation of the social question and  
Brazilian social service are historicized. The  
results indicate that the emergence and  
consolidation of the social question in the  
country occurred in the midst of the  
consolidation of eugenic and hygienist theses  
that projected the national identity as devoid of  
any racial problem. At the same time, they point  
to the impact of eugenic pseudoscience on the  
training and performance of the first social  
service professionals and point to the necessary  
scientific investigation around the subject.  
Palavras-chaves: Capitalismo dependente;  
Keywords: Dependent capitalism; Social issue;  
Questão social; Eugenia; Serviço social.  
Eugenics; Social work.  
* Universidade Federal da Bahia. E-mail: britolarisse@gmail.com  
DOI: 10.34019/1980-8518.2025.v25.47735  
Esta obra está licenciada sob os termos  
Recebido em: 13/03/2025  
Aprovado em: 09/06/2025  
Capitalismo dependente e questão social: apontamentos sobre eugenia e serviço social  
Introdução  
O pensamento marxiano fundamenta-se a partir da compreensão ontológica do ser  
social, buscando apreender como são produzidas as condições materiais objetivas de existência  
do Ser enquanto sujeito social, que elabora seu próprio devir através da transformação da  
natureza (Lukács, 2012). Para Marx (2023), é o trabalho o principal responsável por essa  
mediação, por isso ele é fundante do ser social. Assim, a apreensão da realidade social requer  
que conheçamos as formas de organização, produção, reprodução e apropriação do trabalho em  
cada sociedade. A realidade, entretanto, não se apresenta tal como ela é, em sua essência, pois,  
no cotidiano, ela irá se apresentar em sua forma aparente, pseudoconcreta. Nesse sentido, a  
apreensão da realidade requer a suspensão do véu das aparências ou a destruição da  
pseudoconcreticidade, a fim de apreender a concretude dos fenômenos sociais como alertou  
Kosik (2017).  
Dessa maneira, o materialismo-histórico-dialético estabelece que o entendimento da  
concretude requer o desvelamento da relação entre essência e aparência. Busca, portanto,  
suspender a pseudoconcreticidade e atingir a realidade concreta das relações sociais. Para isso,  
reconhece a historicidade como uma elaboração humana que se processa em atos singulares,  
contraditórios e heterogêneos de pessoas em suas individualidades e/ou de forma coletivizada,  
que se unificam através do movimento dinâmico e contraditório do real, formando uma  
unicidade dialética (Lukács, 2012). Dessa forma, a totalidade aparece como categoria  
fundamental, pois nos auxilia a entender a unidade dialética formada a partir das  
particularidades históricas (situadas em seus contextos) e, assim, atingir uma compreensão  
universalista da realidade estudada.  
181  
A ideia de universalismo, presente no método marxiano, diverge do universalismo  
proposto pelo iluminismo, pois enquanto o segundo buscou, através de relações dicotômicas  
(racionalista/irracionalista;  
bom/ruim;  
bem/mal;  
evoluído/involuído;  
desenvolvido/subdesenvolvido), estabelecer parâmetros para a experiência social, o primeiro  
tem como perspectiva a compreensão da humanidade como essa matéria orgânica possuidora  
de unicidade que atua para a construção de sua própria história. No método materialista-  
histórico-dialético, a ideia de universalidade reside na compreensão de que a humanidade cria  
a história e sua essência é justamente essa: a elaboração de si mesma através de relações sociais  
que se processam pelas inter-relações de atos heterogêneos, sintetizados através de múltiplos  
complexos que produzem a totalidade (Lukács, 2012).  
A historicidade tem, portanto, caráter desigual uma vez que sociedades diferentes, em  
seus diversos e contraditórios movimentos, produzem condições materiais e objetivas próprias,  
Larisse Miranda de Brito  
particulares. Sob a égide do capital, essas dinâmicas particulares, como complexos singulares  
em relação, produzem a totalidade histórica do capitalismo como sistema forjado por essa  
interdependência global, que possui leis universais como motor de sua existência, a exemplo  
da lei do valor, com destaque para o valor de troca, a exploração, a mais-valia e a alienação  
como processos inerentes e específicos da realização do trabalho no capitalismo (Marx, 2023).  
Trabalho aqui não está sendo tomado em sua dimensão fundante do ser social, como referimos  
acima, mas antes como forma específica de organização própria do sistema capitalista, como  
processo de trabalho particular e inerente a essa sociedade, organizado a partir da divisão  
sociotécnica do trabalho tanto em nível nacional (local, regional) como em nível internacional.  
Nesse caminho, para o entendimento do capitalismo como fenômeno concreto que se  
expande a nível mundial, a partir da modernidade ocidental, é preciso que consigamos  
apreender as processualidades que demarcam relações sociais de produção distintas, conectadas  
com o mercado mundial. Essas processualidades se apresentam como as particularidades da  
história produzida em contextos específicos. Nesse sentido, Marini (2011) nos ajuda a pensar  
como surge, nos países latino-americanos, um tipo de capitalismo sui generis, nomeado por ele  
– acompanhado por Vânia Bambirra (1940-2015) e Theotônio dos Santos (1936-2018) – como  
capitalismo dependente que prescinde de uma análise própria e apropriada, pois não pode ser  
comparado aos modos de desenvolvimento capitalista, observados em países europeus.  
Destarte, propõe que a análise marxista – no contexto latino-americano e, em especial, no caso  
brasileiro – deve ser orientada pela emergência de categorias adequadas às heterogeneidades  
históricas observadas nessas realidades (Marini, 2023).  
182  
Na análise de autores como Marini (2023, 2011), Moura (2014; 2019) e Fernandes  
(2009; 2011), o desenvolvimento do capitalismo - como resultado da expansão comercial  
empreendida pela Europa, no cenário das Grandes Navegações iniciadas entre os séculos XV e  
XVI, com o intuito de aquecer o mercado - foi subsidiado pelo colonialismo empreendido  
contra os povos latino-americanos. Ao favorecer o aumento do fluxo de mercadorias e  
dinamizar as formas de pagamento, a colonização contribuiu para o desenvolvimento  
manufatureiro e a emergência da grande indústria, o que deu origem ao capital internacional e  
à expansão do capital bancário no cenário europeu. Nesse sentido, concordamos com Souza  
(2020), para quem o sistema colonial e o escravismo não resultam da síntese de modos de  
produção preexistentes, como ocorre no cenário europeu. Ao contrário disso, derivam de uma  
ruptura com os modos de organização dos povos colonizados, como algo externo que aliena  
suas formas de produção e reprodução da vida social.  
Libertas, Juiz de Fora, v. 25, n. 1, p. 180-203, jan./jun. 2025. ISSN 1980-8518  
Capitalismo dependente e questão social: apontamentos sobre eugenia e serviço social  
É no contexto da situação colonial, quando os europeus estabelecem o domínio colonial  
(Fernandes, 2009) sobre os povos originários e africanos – através da expropriação e exploração  
das terras, mas também da apropriação, exploração e objetificação de seus corpos e imposição  
de suas formas socioculturais e políticas contra “os jeitos de ser e conviver” desses povos –,  
que são forjadas as bases para a inserção “dependente” dos países latino-americanos no  
processo de consolidação da divisão internacional do trabalho.  
Assim, para atingirmos o objetivo deste trabalho – compreender o capitalismo  
dependente e a emergência da questão social e do serviço social no contexto de surgimento e  
consolidação da política eugênica no Brasil –, faremos uma breve incursão acerca do  
capitalismo dependente latino-americano. A partir de então, buscaremos debater as  
particularidades da situação de dependência no capitalismo brasileiro, o surgimento da eugenia  
e do higienismo como política estatal que consolida uma sociabilidade capitalista pautada no  
racismo e seus impactos para o surgimento da questão social e do serviço social no contexto  
nacional. Percorrido esse caminho, apontaremos, de modo breve, as transformações recentes  
no bojo da profissão e os desafios no que tange ao entendimento das conexões entre eugenia,  
questão social e serviço social. Por último, realizaremos breves apontamentos conclusivos  
acerca do tema proposto.  
No que se refere aos aspectos metodológicos, o estudo apresentado foi realizado a partir  
de uma densa revisão bibliográfica. No primeiro momento, elegemos obras de autores  
vinculados ao método marxista, mais especificamente à teoria da dependência com foco na  
realidade brasileira. Em seguida, concentramo-nos na análise de obras marxistas que  
trouxessem, como foco de análise, a questão étnico-racial como marcador do surgimento e  
expansão do capitalismo latino-americano e nacional. Para a escolha das referências na área do  
serviço social, optamos por utilizar pesquisadores reconhecidos pelo desenvolvimento de  
estudos que vinculassem questão social, questão étnico-racial e eugenia como marcadores  
importantes para o surgimento do serviço social no contexto das relações sociais capitalistas no  
país. A análise foi empreendida a partir do estabelecimento de contraste entre as obras e autores  
escolhidos, percebendo suas aproximações e distanciamentos para produzirmos sínteses  
apropriadas em nosso estudo. Esse processo nos levou a eleger os autores e obras mencionadas  
ao longo do texto.  
183  
Colonialismo e capitalismo dependente na América Latina  
De acordo com Marini (2011), muito embora seja no bojo do colonialismo, através da  
transferência de metais preciosos e gêneros exóticos, que são estabelecidas as bases da dinâmica  
Larisse Miranda de Brito  
da dependência, não se pode confundir a situação colonial com a situação de dependência. Para  
ele, embora a empreitada colonizadora tenha possibilitado a acumulação primitiva de capital  
no contexto europeu, a emergência da indústria manufatureira e a expansão do capital comercial  
e bancário – bases para o nascente capitalismo mercantil – na situação de dependência, cujo  
surgimento ocorre a partir do início do século XIX, no contexto de independência das antigas  
colônias, os países latino-americanos passam a figurar no mercado internacional como  
exportadores de matérias-primas (de origem agrícola, pecuária, mineral, ambiental) para a  
grande indústria surgida a partir da revolução industrial.  
A diferença à qual o autor se refere, pode ser compreendida a partir das formas de  
dominação exercidas pelos países envolvidos com a empreitada colonizadora e o continuum  
desse poder no período de desagregação do poder colonial. Desse modo, Fernandes (2009)  
esclarece que, no contexto do colonialismo, operou o tipo de dominação colonial,  
caracterizado pela apropriação da terra, do povo negro e indígena como mercadorias e  
meios de produção em benefício dos colonizadores e do fornecimento/transferência de  
alimentos e metais preciosos por parte das colônias para as metrópoles; no processo de  
desagregação do sistema colonial, opera a dominação neocolonial/pós-colonial estabelecida  
pelo neocolonialismo (ou seja, a reatualização das posições de poder colonial) como forma de  
controle de mercado e processos econômicos estabelecidos pelo capitalismo central. Nesse  
cenário, os países latino-americanos passam a ser fornecedores de matérias-primas que  
subsidiaram o desenvolvimento tecnológico, resultante nas diferentes fases da Revolução  
Industrial europeia. Esse tipo de dominação fornece as bases para a reorganização do sistema  
mundial que forjou uma nova forma de dominação, nomeada pelo autor como dominação  
imperialista que caracteriza o surgimento do capitalismo dependente o qual, no contexto  
latino-americano, associa-se à desintegração do escravismo, ao surgimento do trabalho livre e  
da sociedade de classes.  
184  
Para Fernandes (2009), Marini (2011) e Moura (2019), isso se dá em função da própria  
lógica de funcionamento do capitalismo que – para sua expansão a níveis mundiais – no  
processo de divisão internacional do trabalho, relegou às ex-colônias latino-americanas o local  
de fornecedoras de matérias-primas (alimento, metais, etc.), enquanto os países centrais ficaram  
responsáveis pela produção de bens duráveis, mais rentáveis para geração e apropriação de  
lucro. Isso resulta em uma espécie de inserção subordinada dos países latino-americanos no  
mercado mundial e terá rebatimentos específicos nas formas de organização das classes entre  
nós.  
Libertas, Juiz de Fora, v. 25, n. 1, p. 180-203, jan./jun. 2025. ISSN 1980-8518  
Capitalismo dependente e questão social: apontamentos sobre eugenia e serviço social  
Portanto, nesse sentido, Iamamoto (2011) sustenta a ideia de que a “política colonial”  
forjou as bases para a fusão entre capital bancário e industrial, fornecendo lastro para a divisão  
internacional do trabalho, na qual a posição ocupada pelos países latino-americanos é de  
dependência do mercado internacional. Esse cenário sustenta o imperialismo na (atual) era dos  
monopólios e vai incidir na emergência do capital financeiro como marca atual do capitalismo  
global, forjando a quarta forma de dominação externa explicada por Fernandes (2009), uma  
espécie de dominação monopolista, como momento no qual os países latino-americanos estão  
submetidos ao capital internacional a partir dos monopólios e corporações empresariais.  
Nesse caminho, Moura (2014) sinaliza que, na situação colonial, os colonizadores  
estabelecem a distinção entre aqueles que possuíam os meios de produção – a terra e o  
escravizado também como meio, pois, além da extração de sua força de trabalho foi convertido  
em objeto/mercadoria do Senhor colonial – e aqueles que, apesar de produtores, eram alienados  
do produto por eles produzidos: os escravizados. O escravizado, por conseguinte, ocupava o  
lugar de produtor-mercadoria e produtor de mercadoria, uma vez que era vendido como  
mercadoria para converter-se em “tecnologia”, meio de produção. Assim, esse autor afirma que,  
no período colonial, são estabelecidas as duas classes fundamentais capitalistas: senhores e  
escravos, que se converteriam, não sem conflitos e singularidades, nas classes fundamentais  
que operam no capitalismo: capitalistas x trabalhadores.  
185  
Em função dessas particularidades e assentado na ideia de historicidade em Marx,  
Marini (2011) sugere que a apreensão das condições materiais objetivas de surgimento do  
capitalismo, na América Latina, desafia-nos a encontrar, a partir do horizonte marxiano,  
categorias que deem conta das objetivações particulares do(s) capitalismo(s) latino-  
americano(s). Nesse caminho, o autor sugere que a situação de dependência latino-americana  
está associada a três fatores principais: 1) o intercâmbio desigual no mercado internacional; 2)  
a superexploração do trabalho; e a 3) a agudização das contradições inerentes ao ciclo do  
capital.  
A primeira dimensão diz respeito ao processo de troca de mercadorias no mercado  
internacional. Nessa dinâmica, os países de “economia periférica” – ao produzirem artigos  
primários (matérias-primas de origem agrícola, pecuária, mineral, ambiental) e venderem com  
valor agregado reduzido – partem de uma posição deficitária com relação aos países de  
economia central que importam essas matérias-primas com valor reduzido e vendem o produto,  
tecnologicamente transformado, com um valor agregado maior, aos países periféricos. A  
posição, portanto, é deficitária e subordinada.  
Larisse Miranda de Brito  
A segunda dimensão, intimamente ligada à primeira e à terceira, diz respeito à  
especificidade inerente ao processo de extração de mais-valia/mais valor. A superexploração  
se organiza a partir de três características principais: 1) aumento da mais-valia a partir da  
intensificação do trabalho; 2) prolongamento da jornada de trabalho; 3) redução do consumo  
por parte do/a trabalhador/a. Esse quadro é processado através de um rebaixamento extremo do  
salário repassado para o/a trabalhador/a. Nesse cenário, embora o/a trabalhador/a produza, em  
seu processo de trabalho, como já demonstrado por Marx (2023), o valor necessário para a  
reprodução da sua força de trabalho somado ao valor excedente apropriado pelo capitalista  
como forma de mais-valia, há uma espécie de compressão salarial. Isso se constitui pelo não  
repasse real do que é produzido pelo trabalhador/a como tempo necessário para reprodução de  
sua força de trabalho. É o que conhecemos como arrocho salarial (Carvalho; Iamamoto, 2001).  
Esse quadro contribui para um aumento da produtividade a partir de uma maior extração  
de mais-valia e não como resultado do incremento da capacidade produtiva. O prolongamento  
da jornada de trabalho, converte-se, dessa forma, em extração da mais-valia absoluta em sua  
forma clássica (Marini, 2011). Assim, uma parte do fundo necessário à reprodução do/a  
trabalhador/a, em sua forma salário, será apropriada pelo capital como mais-valia. Esse cenário  
é sustentado ainda pela ampliação daquilo que Marini (2014) chamou de subproletariado,  
(francamente constituído por desempregados) que assumirá, nos países da América Latina,  
proporções muito maiores do que aquelas que podem ser observadas em países de capitalismo  
central.  
186  
Aterceira dimensão está associada ao ciclo do capital tal como preconizou Marx (2023),  
realizada através do processo de produção, circulação e consumo das mercadorias. Nesse  
cenário, o capital monetário transforma-se em capital produtivo através da compra de  
mercadoria (em forma de força de trabalho e meios de produção, entre eles, a matéria-prima),  
para, através delas, gerar “artigos acabados, fabricados”, que novamente serão vendidos, com  
valor agregado, para adquirir mais dinheiro em forma de capital mercantil, repetindo o ciclo  
(capital monetário – capital produtivo – capital mercantil) de formação do capital industrial. No  
caso das economias capitalistas de países centrais, as mercadorias fabricadas circularão tanto  
no mercado interno – uma vez que a exploração de seus trabalhadores não se dá em termos de  
superexploração, garantindo condições específicas de consumo para essa classe – quanto no  
mercado externo, através da venda dos produtos industrializados para outros países.  
Contudo, nos países latino-americanos, isso ocorre de maneira diferente porquanto a  
venda e consumo de seu principal produto, a matéria-prima, se dá via mercado externo. Afinal,  
a produção de bens, “artigos acabados, fabricados”, através da indústria de transformação, será  
Libertas, Juiz de Fora, v. 25, n. 1, p. 180-203, jan./jun. 2025. ISSN 1980-8518  
Capitalismo dependente e questão social: apontamentos sobre eugenia e serviço social  
monopolizada pelo capital estrangeiro, seja na forma de importação – empréstimo para  
incremento da industrialização dos países periféricos (gerando assim, a dívida pública) – ou  
através do monopólio de indústrias estrangeiras em solo nacional que se beneficiam dos baixos  
salários pagos aos trabalhadores e das riquezas naturais disponíveis. O cenário desenhado, a  
partir das três dimensões do capitalismo dependente, gera uma transferência do mais-  
valor/mais-valia interna para as economias externas, o que aprofunda sua posição deficitária e  
subalterna diante dos países centrais.  
Contudo, como aponta Fernandes (2009), as elites nacionais não estão interessadas em  
subverter a lógica da dependência, pois entendem que seu lucro – embora subalterno e  
dependente, em função da particularidade inerente ao ciclo do capital nos países latino-  
americanos, como exposto acima – pode ser extraído através da superexploração do trabalho  
em razão da mais-valia extraordinária por ele adquirida nesse processo. Em outras palavras, se  
o aumento da produtividade possibilita o rebaixamento do valor individual da mercadoria, seu  
lucro é garantido pela superexploração do trabalho, através do arrocho salarial que atinge a  
classe trabalhadora. Assim, o capitalista latino-americano garante sua lucratividade, não pelo  
intercâmbio de mercadorias por meio da finalização do ciclo do capital na economia interna,  
como proposto por Marx (2023), mas especialmente pela superexploração do trabalho que  
garante o rebaixamento do capital gasto (em salário) na produção da matéria-prima. Há,  
portanto, uma maior extração de mais-valia, somado aos ganhos do intercâmbio desigual.  
De acordo com Fernandes (1978), a transição da situação colonial para a situação de  
dependência se dá de maneira particular em cada país da América Latina, sendo marcada pela  
desagregação do sistema colonial. Esse processo foi acompanhado pelo estabelecimento do  
trabalho livre, do assalariamento e da origem da sociedade de classes, condições materiais  
objetivas para implantação do sistema capitalista. Por isso, interessa-nos, nesse momento,  
entender como isso se desenhou no contexto brasileiro, quais as suas implicações para a  
emergência da questão social e do serviço social no cenário nacional e seus imbricamentos com  
a política eugenista presente no país, em finais do século XIX até meados do século XX. É  
sobre isso que discutiremos a seguir.  
187  
Capitalismo dependente no Brasil  
De acordo com Moura (2014, 2019), é na transição do escravismo para o trabalho livre  
que se dá a emergência do capitalismo brasileiro, período que tem início entre fins do século  
XIX e entrada do século XX. Nesse sentido, no contexto do que ele denomina escravismo tardio  
(1851-1888), consolidar-se-á, entre nós, o capitalismo de tipo dependente que tem no latifúndio,  
Larisse Miranda de Brito  
na superexploração do trabalho, no racismo e no endividamento externo suas categorias  
fundantes, como aponta Souza (2020). Moura (2014, 2019) esclarece que o escravismo  
brasileiro é marcado por dois momentos: o escravismo pleno, o qual operou entre 1550 e 1850,  
no bojo do colonialismo, e o segundo, denominado escravismo tardio, que vigorou entre 1851  
e 1888, quando a escravatura foi “extinta” do cenário nacional. O autor sinaliza que, no  
chamado escravismo pleno, constituem-se as bases materiais, sociais, políticas e econômicas  
sob as quais se sustentam o ingresso do país no sistema capitalista.  
O colonialismo escravista estava assentado sob uma estrutura jurídico-administrativa  
rígida, centralizadora, repressora e violenta, na qual o escravizado africano e indígena –  
constituído como mercadoria e meio de produção de mercadorias – e a expropriação/exploração  
da terra, convertida em grande propriedade latifundiária, eram o alicerce da unidade econômica  
que sustentava o capitalismo mercantil e permitiu a acumulação primitiva de capital por parte  
da Europa. O Brasil foi uma de suas empresas mais rentáveis, dada a extensão de seu território  
e suas condições geográficas favoráveis ao tráfico de pessoas. Esse processo resultou em um  
número alarmante de escravizados sequestrados de variados países de África, em função do  
genocídio voraz contra os povos originários. Concordamos com Souza (2020), para quem foi  
o caráter mercantil da empreitada colonizadora que definiu o tipo de trabalho (escravo) e o  
número de trabalhadores/as necessários/as para a produção de mercadorias requeridas. Nesse  
cenário, como já dissemos, os/as próprios/as trabalhadores/as são convertidos/as em  
mercadoria, para além daquelas arrancadas da terra (especiarias, metais, madeira).  
188  
Souza (2020) sinaliza que a coisificação, através da escravização de povos africanos (e  
indígenas), está fundamentada em uma explicação econômica e é realizada com a função do  
fortalecimento do capital comercial/mercantil para acumulação primitiva do capital que  
subsidiou a revolução industrial europeia e projetou a hegemonia da burguesa internacional.  
Assim, como aponta Fernandes (2009), essa burguesia internacional subalterniza as burguesias  
nacionais latino-americanas aos seus interesses. Desse modo, Souza (2020) sugere que o  
colonialismo se constitui como método do imperialismo, sendo, portanto, condição sine qua  
non para estabelecimento e expansão do capitalismo. Do mesmo modo, o genocídio – físico,  
cultural e intelectual (Nascimento, 2017) – constitui-se método do colonialismo e,  
posteriormente, do capitalismo dependente como dispositivo da burguesia nacional para  
manutenção do status quo.  
Sob a égide da sociedade colonial, as mediações que alienam o/a trabalhador/a dos  
meios de produção são: 1) escravismo colonial; 2) desumanização dos/as trabalhadores/as e 3)  
a mistificação das diferenças, sob as quais repousam nosso interesse nesse momento (Souza,  
Libertas, Juiz de Fora, v. 25, n. 1, p. 180-203, jan./jun. 2025. ISSN 1980-8518  
Capitalismo dependente e questão social: apontamentos sobre eugenia e serviço social  
2020). O processo de mistificação se deu através da autoafirmação da civilização europeia,  
particularmente do homem cisgênero europeu, como sinônimo de avanço e racionalidade.  
Assim, forjou-se o racismo e a cisheteronormatividade como fundantes para a reprodução  
sociopolítica e cultural da sociedade burguesa (Moraes, 2023). Desse modo, o racismo e o  
sexismo passam a constituir-se como forças ideológicas fundamentais para dominação étnico-  
política na garantia da estrutura desigual e determinação das relações de produção e reprodução  
social. Através desse pano de fundo, ganham forças as teses eugênicas entre nós, em meados  
do século XIX, no contexto do escravismo tardio.  
[...] baseadas no darwinismo social e mais especialmente nas teses de Francis  
Galton. Amplamente difundidas através dos etnólogos e antropólogos  
europeus [...] como pressupostos para compreender os territórios colonizados,  
encarcerando-os nas ideias de sub-raça em função da mestiçagem, [essas teses  
foram aceitas e disseminadas no país, através das Faculdades de Direito (1827)  
em Pernambuco e São Paulo e a Faculdade de Medicina na Bahia (1832)] que  
adotavam as [ideias] de Cesare Lombroso (1835-1909) [grande disseminador]  
de interpretações racistas tanto no campo das ciências jurídicas e criminais  
quanto nas ciências da saúde, especialmente nos temas voltados à higiene  
pessoal e saúde mental. Dessa forma, a população negra e indígena foi  
apontada, através das técnicas de antropometria, como responsáveis pela  
estagnação política e intelectual da nação, que descendendo do hibridismo  
biológico estava fadada à degeneração. Era preciso, portanto, impedir a  
proliferação da mestiçagem para combater a degeneração socio racial e, enfim,  
criar uma nação possível de progresso. Inicia-se aqui os discursos eugênicos  
que atravessa toda a política brasileira dos primeiros anos do século XX  
(Brito, 2024, p. 64).  
189  
Em contraste com esse cenário, Schwarcz (1993) e Shucman (2013) apontam que,  
justamente nesse período, as teses eugênicas estão a perder forças no cenário europeu, isso em  
virtude dos interesses econômicos da época. É o período em que havia necessidade de expandir  
o capitalismo imperialista, liberar mão de obra para o modelo assalariado e o mercado  
consumidor. Nesse contexto, como esclarece Moura (2019), ocorre uma espécie de  
modernização nacional, fruto de interesses externos, especialmente da Inglaterra que,  
interessada em expandir o mercado mundial, proibiu a comercialização de pessoas escravizadas  
desde o continente africano, com a consequente promulgação da Lei Eusébio de Queirós, cujo  
impacto na mão-de-obra resultou na implantação do trabalho livre em território nacional, como  
condição material objetiva para a consolidação da empresa capitalista. Além disso, como alerta  
Moura (2019), o enfraquecimento do escravismo é também resultado dos desgastes causados  
no sistema colonial, escravista, pelo que ele nomeou insurgência negra-escrava. Esse desgaste  
se apresenta em três níveis diferentes: 1) econômico; 2) político; 3) psicológico.  
O primeiro nível é representado pelas constantes fugas dos escravizados e pela  
destruição das lavouras e das propriedades, por parte dos escravizados, com consequentes  
Larisse Miranda de Brito  
gastos gerados a partir dessa realidade. No segundo nível, o autor salienta a criação dos  
quilombos como forma de resistência e prática política que buscou alterar as formas de  
organização do trabalho e da própria sociedade, representando uma profunda ameaça para a  
classe senhorial, além da articulação com outros grupos oprimidos, como contrabandistas com  
quem os escravizados mantinham comércio clandestino e trocavam informações sobre as  
possíveis ofensivas senhoriais.  
O terceiro nível é marcado pelo que o autor nomeia, baseado em documentos da época,  
como “síndrome do medo da insurgência negra”, assentada na ideia de uma possível articulação  
dos escravizados com negros de outros países e a influência da Revolta Haitiana, assim como  
a possível articulação com escravizados rebeldes nacionais ou o medo do estupro contra as  
mulheres brancas. Esse cenário levou à promulgação de uma legislação violentamente punitiva  
contra os escravizados insurgentes, e uma espécie de modernização da classe senhorial que  
passa a criar leis de autoproteção.  
Moura (2019) esclarece que, nesse processo, operou-se uma espécie de modernização  
do ambiente e dos hábitos que não alterou as relações de produção. Houve uma dinamização da  
economia nacional, através de uma tímida inserção tecnológica e mecanização da comunicação  
e do setor de transporte. Essa primeira fase da modernização foi subsidiada pelo capital  
estrangeiro, com a importação de mercadorias e corresponde aos primeiros anos da  
independência (1822). É tributário desse contexto a relação violenta que se estabelece, nos anos  
posteriores, entre as classes dominantes e as classes dominadas, com aval do Estado que,  
atuando como “comitê da burguesia” nacional, promulga leis que passarão a coibir a  
manifestação político-cultural dos estratos negros da sociedade brasileira.  
190  
No plano político-econômico, assistia-se à transferência do polo econômico colonial,  
centrado no Nordeste e no Norte – com destaque para Salvador, Recife e Ceará – para o polo  
econômico industrial, concentrado no Sul e Sudeste, especialmente, São Paulo, Rio de Janeiro,  
Minas Gerais e Paraná, o que ocasionou profundas disparidades regionais em termos de  
dinamização econômica. Era o início de um longo e desigual processo de urbanização que  
materializa uma tensão a qual será agravada ao longo dos anos: a reprodução do campo x cidade,  
como acentua Ianni (2004). Contudo, essa “modernização” não extinguiu o trabalho escravo,  
ao contrário disso, combinou “novos hábitos” do capitalismo clássico – trazido de fora – com  
a permanência do trabalho escravo e a exclusão dos escravizados da possibilidade de fazer parte  
desse novo cenário, como apontam Moura (2019) e Fernandes (1978).  
Nos primeiros anos, o monopólio dos países centrais, especialmente a Inglaterra,  
continuou estabelecendo as regras para os intercâmbios comerciais assentados na lógica do  
Libertas, Juiz de Fora, v. 25, n. 1, p. 180-203, jan./jun. 2025. ISSN 1980-8518  
Capitalismo dependente e questão social: apontamentos sobre eugenia e serviço social  
intercâmbio desigual, descritas acima a partir das contribuições de Marini (2011). Entretanto,  
esse quadro irá sofrer algumas alterações a partir de marcadores fundamentais como aponta  
Ianni (2004), que sinaliza para a dinamização da economia nacional através do predomínio da  
cafeicultura, a adoção da Lei Alves Branco, em 1844, que buscou aumentar as taxas  
alfandegárias e a campanha contra o livre-cambismo. Esses acontecimentos beneficiaram as  
atividades produtivas não-agrícolas e ampararam, ainda que de maneira tímida, o mercado  
interno, que passou a ser dinamizado.  
Além disso, para o autor, a extinção do tráfico negreiro, em 1850, liberou o capital da  
burguesia agrícola para investimento, ainda que tímido, em outros setores da economia como o  
fabril, e fortaleceu o setor de serviços e artesanato que ajudou a dinamizar a economia nacional.  
Esse cenário não se desenhou sem tensões, uma vez que a conversão das fazendas de café em  
empresa capitalista e de seu dono em empresário, não ocorre de maneira linear. Assim, nasce  
uma ruptura entre as elites nacionais: de um lado, a burguesia cafeeira, latifundiária que detinha  
o monopólio financeiro; de outro, uma burguesia liberal que – adepta da industrialização e  
proprietária de comércios – interessada nos debates externos para expansão do capitalismo,  
iniciou uma campanha abolicionista no cenário nacional, menos pela humanização do ex-  
escravizado e mais pelo seu interesse nos novos rumos da economia mundial (Moura, 2019).  
Nesse contexto, como esclarece Fernandes (1978), processa-se a desagregação do  
sistema colonial e do escravismo no Brasil, entre meados e finais do século XIX, acompanhada  
do estabelecimento do trabalho livre, do assalariamento, da origem da sociedade de classes  
como condições materiais objetivas para implantação do sistema capitalista, em território  
nacional. Assim, a combinação do trabalho livre com o escravismo forneceu o lastro sobre o  
qual se desenhou a possibilidade de acumulação primitiva das burguesias nacionais, o que não  
significou, contudo, um rompimento com a lógica da dependência. A superexploração do  
trabalho assume aqui características sui generis, em função da manutenção do trabalho escravo  
até 1888, quando se deu sua “completa” extinção. Até lá, como sustenta Moura (2014, 2019), é  
o escravismo que vai garantir a produção de um excedente que permanecerá em território  
nacional, garantindo uma certa acumulação primitiva interna. Portanto, a população negra será  
mais atingida com a superexploração, ao mesmo tempo em que dará maior contribuição para a  
acumulação de capital.  
191  
Moura (2014, 2019) esclarece que pelo menos cinco medidas foram essenciais para a  
consolidação do capitalismo dependente no país. O autor corrobora com Ianni (2004) acerca da  
importância da 1) Tarifa Alves Branco (1844) e da 2) Lei Eusébio de Queirós (1850) e  
acrescenta a 3) Lei de Terras (1850), a 4) entrada do Brasil na Guerra do Paraguai (1865) e a 5)  
Larisse Miranda de Brito  
política de imigração/branqueamento – procedimento eugênico – adotada a partir de 1837 e  
fortalecida em meados de 1860, em função da Guerra do Paraguai, como medidas fundamentais  
para modernização do país. De acordo com Moura (2014), até a adoção da Lei de Terras, o  
Estado (na figura do Rei) era o responsável pela distribuição das terras nacionais, contudo, com  
a promulgação da Lei n° 601, a terra passa a ser uma mercadoria vendável. A Lei previa sua  
posse, apenas através da compra ou da herança, assim, não apenas dificultou o acesso da  
população negra à terra – uma vez que esta não possuía os meios necessários para a compra,  
tampouco gozava da condição de herdeiros/as de bens – como também criou entraves para a  
distribuição de terra no pós-abolição. Em outras palavras, impediu a realização de uma reforma  
agrária.  
A política de imigração que favoreceu a entrada de trabalhadores das mais diversas  
partes da Europa (italianos, poloneses, etc.) marcou o surgimento do trabalho livre a partir da  
diferenciação racial entre aqueles destinados aos “melhores” postos e condições de trabalho e  
aqueles que continuariam subjugados pelo trabalho escravo (Ianni, 2004). Nesse sentido  
Fernandes (1978), assegura que a inserção do trabalho livre no Brasil condenou os estratos  
negros a uma condição de pauperização e exclusão social, que vai impactar nas gerações  
posteriores. Ademais, a entrada do Brasil na Guerra do Paraguai significou o envio de boa parte  
da população negra para o confronto, isso resultou, de acordo com Ianni (2004), em um  
aprofundamento da política migratória, o que elevou a entrada de trabalhadores europeus em  
território nacional, especialmente nos centros de crescimento industrial. Além disso, para  
Moura (2014), a participação dos escravizados na guerra se deu como dispositivo de  
reordenamento étnico da sociedade, uma vez que esses eram enviados pelo próprio Estado,  
quando detinha sua posse, ou pelos Senhores que, ao invés de alistarem-se para servir, se auto  
substituíam pelos escravizados sob sua posse, promovendo assim uma limpeza étnica através  
de um genocídio em massa, praticado de forma indireta pelo Estado nacional.  
192  
Dessa maneira, portanto, Moura (2014) considera que a modernização no Brasil  
combinou o moderno: avanços científicos e tecnológicos subsidiados pelo capital internacional,  
especialmente o inglês – sustentado, por conseguinte, por um endividamento externo – ao  
mesmo tempo em que sustentou o arcaico: alicerçando esse avanço em bases escravistas que só  
foram extintas a partir de 1888, com a promulgação da Lei Áurea, desacompanhada de qualquer  
medida de amparo social à população ex-escravizada. Ao contrário disso, crescia a política de  
branqueamento assentada nas teses eugênicas, fortalecidas entre finais do século XIX e início  
do século XX, como apontam Schucman (2013) e Schwarcz (1993). Assim, a pseudociência  
Libertas, Juiz de Fora, v. 25, n. 1, p. 180-203, jan./jun. 2025. ISSN 1980-8518  
Capitalismo dependente e questão social: apontamentos sobre eugenia e serviço social  
eugênica atribuía o atraso nacional à presença do negro entre nós, e propunha, como solução, o  
embranquecimento da população.  
Eugenia, questão social e serviço social  
A política de branqueamento aprofundada na primeira metade do século XX, imbricou-  
se ao mito da democracia racial1 que surge no contexto nacional também nesse período, quando  
se desenvolvem políticas de cunho nacionalista com o intuito de forjar a identidade nacional a  
fim de fortalecer as bases econômicas, sociais e políticas do país. Ainda sob domínio de uma  
burguesia agrária, iniciava-se um pequeno surto industrial e uma expansão dos direitos em  
função da desagregação do escravismo e da agitação social em torno de garantias trabalhistas  
que, de acordo com Marini (2023), vai resultar na “revolução de 1930” e na chegada de Getúlio  
Vargas ao poder. O mito da democracia racial forneceu as bases para a idealização do Brasil,  
não como país atrasado em função da grande população negra, mestiça existente, mas antes  
como uma nação irmanada que conseguiu aplacar as disputas raciais cuja principal prova era a  
existência do “mulato2”.  
Nesse sentido, concordamos com Fernandes (1978) quando considera que o mito da  
democracia racial trouxe ao menos três consequências incontornáveis para a sociedade  
brasileira em termos ideológicos: 1) um estado de espírito farisaico que atribuía à incapacidade  
intelectual e moral do negro a sua não inserção em bons postos de trabalho, afinal, a sociedade  
era aberta à sua participação e até permitia trocas afetivas entre negros e brancos; 2) a isenção  
da responsabilidade, por parte do Estado, dos estratos da elite branca nacional resulta na  
exclusão e ou inserção subalternizada dos negros na nascente sociedade de classes; 3) uma falsa  
consciência social a nível nacional e internacional da realidade racial brasileira, forjando uma  
narrativa de convivência harmônica entre as diferentes raças no contexto nacional e  
escamoteando o racismo existente na realidade concreta. Nesse mesmo caminho, Nascimento  
(2017) sinaliza para o fato de a política de branqueamento representar um verdadeiro genocídio  
contra os negros brasileiros uma vez que contribuiu para que essa população buscasse negar  
sua origem étnico-racial, fazendo aquilo que Fanon (2008) revelou como sendo a eterna  
tentativa de corpos negros revestirem-se de máscaras brancas.  
193  
1 O mito da democracia racial, amplamente difundido por Gilberto Freyre, com o intuito de forjar uma identidade  
nacional, propalou a ideia de convivência harmônica entre raças no território brasileiro. Dessa maneira, o Brasil  
projetava-se para o mundo como lugar ideal sem conflito de raças (no sentido sociológico do termo). Assim o  
mestiço – figura execrável para a eugenia – despontava como a figura aglutinadora dessa união racial. Funcionou  
como um véu que acoberta a realidade, uma narrativa pseudoconcreta daquilo que se experimentava e ainda se  
experimenta na sociedade brasileira.  
2 Mantemos o termo apenas para sermos fidedignos aos debates da época.  
Larisse Miranda de Brito  
A falta de acesso a políticas públicas que garantissem sua subsistência fez com que essa  
população fosse “jogada à própria sorte”, experimentando um pauperismo extremo,  
especialmente nos anos iniciais da década de 1900, o que impactou na informalidade como  
principal meio de sustento (Fernandes, 1978; Ianni, 2004). Entre as décadas de 1930 e 1950, a  
inserção da população negra (e indígena) no mercado de trabalho emergente se materializava  
de modo precário, a partir do desenvolvimento de atividades autônomas e precarizadas,  
especialmente no setor de serviços. No caso dos indígenas, não eram incomuns trabalhos  
análogos à escravidão em função da concentração desses povos nas extensões territoriais onde  
se mantiveram os latifúndios e a agricultura de baixa tecnologia como principal atividade  
produtiva (Ianni, 2004).  
Além disso, era essa a parte da população que constituía o bolsão de desempregados do  
período, sofrendo com o discurso ideológico corrente de que essa realidade se construíra pela  
propensão dessa população à marginalidade devido ao seu caráter indisciplinado, preguiçoso,  
vadio e pouco “afeito” ao trabalho assalariado (Fernandes, 1978; Gonzalez; Hasenbalg, 2022).  
Nesse caminho, Gonzalez e Hasenbalg (2022) esclarecem que houve uma precarização quanto  
à participação da população negra no trabalho livre, assalariado no contexto nacional. Dessa  
forma, entre 1930 e 1950, essa população enfrenta um crescente desemprego e a favelização de  
sua condição social.  
194  
Por isso, Carvalho e Iamamoto (2001) vão considerar que o advento do trabalhador  
livre no Brasil é profundamente marcado pela escravidão. Assim, sustentamos, amparados  
nas contribuições de Moura (2014, 2019), que as diferenças raciais vão marcar as posições de  
classes no contexto nacional. Nelas, os antigos senhores coloniais brancos e descendentes de  
europeus convertem-se na classe capitalista, enquanto negros, indígenas e migrantes irão  
constituir uma classe trabalhadora fortemente heterogênea e moldada por fortes tensões raciais  
internas haja vista – como sustentam Fernandes (1978), Ianni (2004) e Gonzalez e Hasenbalg  
(2022) – os negros e indígenas não apenas terem sido relegados a postos mais precarizados de  
trabalho, como também foram remetidos a situações de exclusão e desemprego.  
Desprovidos, portanto, de trabalho e enfrentando o desemprego, a população negra  
passa a ser alvo da propalada Lei da Vadiagem, promulgada em 1941, através do decreto-lei n.  
3.688 que previa, através do artigo 59, a vadiagem como contravenção penal, assim a definia  
como:  
Art. 59. Entregar-se alguém habitualmente à ociosidade, sendo válido para o  
trabalho, sem ter renda que lhe assegure meios bastantes de subsistência, ou  
prover a própria subsistência mediante ocupação ilícita: Pena - prisão simples,  
de 15 (quinze) dias a 3 (três) meses. Parágrafo único. A aquisição  
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Capitalismo dependente e questão social: apontamentos sobre eugenia e serviço social  
superveniente de renda, que assegure ao condenado meios bastantes de  
subsistência, extingue a pena (Brasil, 1941).  
Concordamos com Elpídio (2023, p. 5), para quem a referida lei responsabilizava o  
indivíduo por seu fracasso social, “[...] que essa lógica (moralizante) entrelaçada às teorias  
eugenistas e racialistas, estigmatiza e identificava nas pessoas negras e indígenas a falha, a  
precariedade e incapacidade à dignidade e a sobrevivência”. Dessa forma, consideramos que a  
sociabilidade capitalista operou para o aprofundamento das distinções raciais, amparadas pelo  
racismo, e promoveu a eugenia como solução para os problemas do atraso nacional.  
É importante sinalizar que, já em 1918, foi fundada, em São Paulo, a Sociedade  
Eugênica do Brasil cujo presidente era Renato Kehl. Em 1920, é fundada a Liga Brasileira de  
Higiene Mental, que incorporava os ensinamentos eugênicos com especial interesse e assim  
difundiu um higienismo eugênico no país (Benedicto, 2019). A Liga, como sugere Procópio  
(2022), pode ter influenciado o ensino através de disciplinas específicas presentes nos cursos  
de serviço social, especialmente a partir da década de 1950, pois – embora suas primeiras  
escolas tenham surgido no país, em 1936 e 1937, respectivamente, em São Paulo e Rio de  
Janeiro – seu reconhecimento como profissão com formação superior, se dá apenas nos  
primeiros anos da década de 1950.  
Acerca do contexto de nascimento do serviço social, além da forte influência da Igreja  
Católica no surgimento das primeiras escolas, salientamos que o estímulo à educação eugênica  
em todos os níveis aparecia na Constituição nacional de 1934, através do artigo 138, que  
incumbia “[...] à União, aos Estados e aos Municípios [...] estimular a educação eugênica.  
Notadamente [o Estado estimulava] a política de branqueamento [através da] educação” (Brito,  
2024, p. 71). Teriam as primeiras escolas de serviço social passado ilesas a esse debate? Os  
estudos de Procópio (2022) parecem sugerir que não.  
195  
Como sabemos, o surgimento do serviço social é, em larga medida, fruto da emergência  
da questão social no cenário político nacional. De acordo com Carvalho e Iamamoto (2001, p.  
185), “[...] a “questão social”, seu aparecimento, diz respeito diretamente à generalização do  
trabalho livre”. Dessa forma, compreendemos que o reconhecimento da questão social no  
contexto nacional, se dá no bojo da consolidação do trabalho livre e da sociedade de classes,  
quando emerge o que se convencionou chamar de novo operariado nacional3, fruto da extinção  
3
Marini (2023) define esse “novo proletariado” como o momento no qual o trabalho livre foi consolidado no  
cenário nacional – com a abolição da escravatura – mas, especialmente, quando os trabalhadores adquirem lugar  
próprio na sociedade brasileira, sendo reconhecido seu poder político no contexto nacional, através da sua  
capacidade organizativa.  
Larisse Miranda de Brito  
do trabalho escravo e da primeira tentativa de intensificação da industrialização nacional com  
consequente expansão da urbanização no país.  
Na tradição intelectual do serviço social, identifica-se o nascimento da questão social,  
no contexto brasileiro, a partir de 1930, como resultado não apenas do surgimento do novo  
operariado nacional, mas também de adoção, por parte do Estado e do empresariado, de  
medidas institucionais – notadamente as políticas sociais – no âmbito da política estatal para  
atender às reivindicações trabalhistas que cresciam no país desde 1920. Como afirma Marini  
(2023), as tensões de classe4 se acirram no cenário nacional a partir de 1922 até, pelo menos,  
1937, quando, com a chegada de Getúlio Vargas ao poder, houve uma espécie de estabilização  
da burguesia nacional – cindida, como dissemos anteriormente, entre latifundiários, industriais  
e comerciantes – e um esquema particular de relação com o proletariado cujas “concessões”  
sociais – materializadas, por exemplo, na aceitação da organização sindical e na Consolidação  
das Leis Trabalhistas (CLT), em 1943 – conseguiram apaziguar a luta trabalhista.  
Aquestão social é entendida – a partir das contribuições de Carvalho e Iamamoto, 2001  
e Iamamoto, 2011 – como o conflito de interesses entre capitalistas e trabalhadores e as  
respostas elaboradas pelo Estado e pelo empresariado, objetivadas nas políticas sociais, a fim  
de gerir os problemas sociais (ou expressões da questão social) decorrentes dessa disputa. Para  
Iamamoto (2001), a análise da questão social deve estar associada às configurações assumidas  
pelo trabalho. O que significa dizer que sua compreensão requer que sejamos capazes de  
desvendar o processo de acumulação capitalista e a consequente divisão social das classes. Por  
isso, a autora considera que a questão social se desdobra em expressões, desigualdades sociais  
expressas em diferenciações econômicas, políticas, mediadas por relações de gênero, étnico-  
raciais e territoriais.  
196  
Dessa forma, a partir de tudo que foi debatido até aqui, em função das particularidades  
do surgimento do capitalismo no contexto latino-americano e brasileiro, com as consequências  
materiais e objetivas geradas por ela na constituição da classe trabalhadora nacional,  
compreendemos que o racismo se constitui como fundante da questão social no contexto  
nacional. Em face do pauperismo ao qual foi relegada a população descendente de africanos e  
indígenas escravizados entre nós, e sendo ele um acirramento das condições desiguais sob as  
quais se assenta a expansão capitalista e a questão social no contexto europeu, como aponta  
4 Para Gonzalez e Hasenbalg (2022), em função da subalternização da população negra (e acrescentamos indígena)  
na inserção do trabalho livre no Brasil, a participação desse estrato na luta trabalhista irá ser fragilizada em função  
desse contexto. Ademais, concordamos com Moura (2019), para quem a participação negra na luta trabalhista  
ocorre de forma mais tímida em função da perseguição violenta e genocida experimentada por essa população,  
desde o escravismo pleno, passando pelo escravismo tardio até o advento da república.  
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Capitalismo dependente e questão social: apontamentos sobre eugenia e serviço social  
Netto (2011), não podemos esquecer, como sinaliza Martins (2012), que esse processo foi  
experimentado no contexto brasileiro pelos estratos negros, o que vai impactar em sua exclusão  
ou inserção desigual em processos de trabalho.  
A questão racial não é, portanto, apenas expressão dos antagonismos de classe, mas –  
como demonstram os trabalhos de Fernandes (1978, 2009), Moura (2014, 2019), Ianni (2004)  
– fundamenta esses antagonismos, atingindo, inclusive, as disputas internas na própria classe  
trabalhadora, como dissemos anteriormente. Além das medidas no âmbito das concessões  
trabalhistas, o serviço social desponta como um dos instrumentos da burguesia nacional como  
forma de conter a luta trabalhista (Carvalho; Iamamoto, 2001). Associada, em seu nascedouro,  
à elite católica como trabalhadores/as vinculados/as à sistematização da caridade, quando são  
criadas as primeiras escolas no país, a profissão será inserida na divisão sociotécnica do trabalho  
no contexto nacional, a partir de sua institucionalização, como afirma Iamamoto (2011), o que  
ocorre com a regulamentação da profissão por volta de 1950.  
Assim, em 1953, é estabelecida a Lei n. 1889, que regulamenta os cursos de serviço  
social em nível superior, com duração mínima de 3 e máxima de 5 anos e, posteriormente, em  
1957, promulga-se a Lei n. 3.252, que dispõe sobre o exercício da profissão de Assistente  
Social, regulamentando seu status profissional através do decreto 994/1962. Nesse período,  
como afirma Souza (1994), a produção em serviço social preocupava-se com uma espécie de  
metodologização da profissão para distanciar sua prática caritativa em estreita relação com a  
Igreja Católica. Dessa forma, seus profissionais recorreram ao funcionalismo e ao positivismo,  
somados à filosofia neotomista, como lastros para a formação profissional.  
197  
Como observam Carvalho e Iamamoto (2001), o surgimento do serviço social é uma  
estratégia de legitimação da burguesia diante do proletariado nascente, e é o reconhecimento da  
questão social “como caso de política”, que irá subsidiar sua inserção na divisão sociotécnica  
do trabalho. Nesse sentido, a proposta curricular de 1953, previa, em seu art. 2º, inciso III, que  
o ensino do Serviço Social deveria ter como finalidade “[...] contribuir para criar ambiente  
esclarecido que [proporcionasse] a solução adequada dos problemas sociais” (Brasil, 1954).  
Essas soluções deveriam promover o ajustamento dos trabalhadores ao sistema vigente  
(Caravalho; Iamamoto, 2001; Netto, 2011).  
A proposta curricular, apresentada no art. 3º, previa a seguinte organização:  
I - Sociologia e Economia Social; Direito e Legislação Social; Higiene e  
Medicina Social; Psicologia e Higiene Mental; Ética Geral e Profissional.  
II - Introdução e fundamentos do Serviço Social: Métodos do Serviço Social;  
Serviço Social de Casos - de Grupo - Organização Social da Comunidade:  
Serviço Social em suas especializações; Família - Menores - Trabalho -  
Médico.  
Larisse Miranda de Brito  
III - Pesquisa Social (Brasil, 1953, grifo nosso).  
Embora Procópio (2022, p. 48) reconheça, acertadamente, “[...] a necessidade do  
aprofundamento de pesquisas nos programas e conteúdos curriculares [de] uma análise do  
quanto a imbricação entre higienismo e eugenia esteve presente na formação das primeiras  
assistentes sociais”, não podemos deixar de considerar que o discurso eugênico atravessou  
sobremaneira a Liga Higienista Brasileira, como braço do movimento eugênico,  
institucionalizado por Renato Kehl, como supramencionado (Brito, 2024). As aproximações do  
serviço social, no bojo de seu nascimento, com a área médica e, ao mesmo tempo, como  
dispositivo profissional de controle e ajustamento ao status quo da classe trabalhadora e dos  
estratos pauperizados, são amplamente discutidas por Carvalho e Iamamoto (2001) e Iamamoto  
(2011).  
Esse cenário nos permite considerar a forte influência do pensamento eugênico na  
formação, não apenas das assistentes sociais formadas com o currículo de 1953, mas,  
especialmente, daquelas cujas formações ocorrem nas primeiras escolas de serviço social, no  
contexto de uma constituição que previa, como já referido, o ajustamento das instituições de  
ensino à educação eugênica. Conforme Benedicto (2019), a educação eugênica associava a  
população negra ao atraso, à falta de higiene e educação e à inadaptabilidade para o trabalho  
assalariado. O relato trazido por Carolina Maria de Jesus, escritora negra da favela do Canindé,  
em seu livro “Quarto de Despejo”, é revelador no sentido de entendermos a atuação profissional  
nesse período:  
198  
Em junho de 1957 eu fiquei doente e percorri as sedes do Serviço Social.  
Devido eu carregar muito ferro fiquei com dor nos rins. Para não ver os meus  
filhos passar fome fui pedir auxílio ao propalado Serviço Social. Foi lá que eu  
vi as lágrimas deslizar dos olhos dos pobres. Como é pungente ver os dramas  
que ali se desenrola. A ironia com que são tratados os pobres. A única coisa  
que eles querem saber são os nomes e os endereços dos pobres (Jesus, 2014,  
p. 41).  
Podemos inferir, a partir do relato da autora, um atendimento protocolar, irônico e  
desprovido de qualquer criticidade acerca da estrutura social capitalista. Além disso, como  
afirma Marques Júnior (2013), a partir da análise do inquérito social escrito por Maria Esolina  
– profissional pioneira –, o dado “cor” era recolhido para a descrições de “menores infratores”,  
o que nos leva a pensar a importância da “raça” para o estudo da situação social das pessoas  
atendidas pelas primeiras assistentes sociais. Isso, contudo, não reflete no debate teórico-  
metodológico e técnico-operativo da época haja vista que os fundamentos do período estavam  
alinhados com a manutenção do status quo e o ajustamento dos indivíduos ao sistema.  
Libertas, Juiz de Fora, v. 25, n. 1, p. 180-203, jan./jun. 2025. ISSN 1980-8518  
Capitalismo dependente e questão social: apontamentos sobre eugenia e serviço social  
É possível considerar que essa falta de debate acerca do quesito cor, nas produções da  
época, dialoga com o momento de afirmação do mito da democracia racial como lastro da  
identidade nacional, como sinalizamos anteriormente. Ademais, concordamos com Procópio  
(2022) para quem, dadas as condições históricas de surgimento do trabalho livre e da classe  
trabalhadora no Brasil, há “[...] uma intrínseca relação entre a questão racial e a questão social  
no país”. Entretanto, a produção sociológica do período endossava o discurso de convivência  
harmônica entre os estratos sociais racializados, existentes no país.  
As transformações pelas quais passou a profissão a partir da década de 1960, com o  
movimento de reconceituação latino-americano que impacta na Renovação brasileira, operaram  
mudanças significativas no que se refere aos fundamentos teórico-metodológicos, técnico-  
operativos e ético-político da profissão. No contexto desses acontecimentos, na década de 1980,  
a profissão vai operar mudanças radicais no que concerne à formação e prática profissional.  
Assim, a partir da aproximação com a teoria crítica marxista, o serviço social “rompe” com sua  
vertente conservadora, alinhada aos interesses da burguesia na manutenção do status quo, com  
impactos fundamentais na Lei de regulamentação da Profissão de 1993, que materializa o  
Código de Ética Profissional de 1993 e as Diretrizes Curriculares (DC) de 1996, como resultado  
do currículo mínimo, desenhado em 1982.  
Esse novo direcionamento aponta para um compromisso ético-político com os  
trabalhadores, mas especialmente com uma formação e exercício profissional orientados para  
a extinção de qualquer discriminação baseada na etnia, na classe e no gênero. No âmbito da  
formação, organizada em núcleos5, o segundo refere-se aos “Fundamentos da Formação Sócio-  
histórica da Sociedade Brasileira”, o documento preconiza  
199  
Este núcleo remete ao conhecimento da constituição econômica, social,  
política e cultural da sociedade brasileira, na sua configuração dependente,  
urbano industrial, nas diversidades regionais e locais, articulada com a análise  
da questão agrária e agrícola, como um elemento fundamental da  
particularidade histórica nacional. Esta análise se direciona para a apreensão  
dos movimentos que permitiram a consolidação de determinados padrões de  
desenvolvimento capitalista no país, bem como os impactos econômicos,  
sociais e políticos peculiares à sociedade brasileira, tais como suas  
desigualdades sociais, diferenciação de classe, de gênero e étnico raciais,  
exclusão social, etc. (ABEPSS, 1996, p. 11).  
Nesse sentido, o debate acerca da unidade dialética classe, raça e gênero (Davis, 2016)  
é urgente para pôr em prática aquilo que está previsto na regulamentação da formação e prática  
5 As Diretrizes Curriculares organizam o currículo do curso em três núcleos de fundamentação: 1. Fundamentos  
Teórico-Metodológicos da Vida Social; 2. Fundamentos da Formação Sócio-histórica da Sociedade Brasileira; 3.  
Núcleo de Fundamentos do Trabalho Profissional; que devem ser trabalhados de maneira articuladas e assentados  
no pensamento crítico cujo trabalho constitui categoria fundante.  
Larisse Miranda de Brito  
profissional. Reconhecemos os avanços no que concerne a esses debates nos últimos anos, com  
um esforço especial das entidades de organização política da profissão, com destaque para as  
campanhas antirracistas e antissexistas elaboradas pelo conjunto CFESS/CRESS e o documento  
elaborado pela ABEPSS, em 2018, “Subsídios para o debate sobre a questão étnico-racial na  
formação em serviço social”, como resultado dos esforços do Grupo Temático de Pesquisa  
“Serviço Social, Relações de Exploração/Opressão de Gênero, Raça/Etnia e Sexualidades”,  
criado em 2010, no âmbito do Encontro Nacional de Pesquisadores e Pesquisadoras em Serviço  
Social (ENPESS).  
Entretanto, amparadas em Procópio (2022) e Martins (2014), concordamos que ainda  
são escassas as pesquisas que associam a questão racial como fundamento da sociabilidade  
capitalista e, portanto, da emergência da questão social entre nós. Por isso, reiteramos a  
necessidade da produção de conhecimento nessa direção para avançarmos com a materialização  
do nosso projeto ético-político através da formação e prática profissional. Esse debate é urgente  
para que possamos combater de modo preemente as tendências neoconservadoras que têm  
tentado galgar maiores espaços no âmbito profissional.  
Considerações finais  
O texto buscou fazer alguns apontamentos quanto aos imbricamentos existentes entre a  
política eugênica que ganha força no Brasil, a partir da emergência e consolidação do  
capitalismo dependente no contexto nacional, a emergência da questão social e do serviço social  
na realidade brasileira. Isso porque consideramos que a suspensão da pseudoconcreticidade,  
entre nós, requer o reconhecimento da unidade dialética, raça, classe e gênero como lastro da  
sociabilidade capitalista no cenário brasileiro. Nesse sentido, foi possível identificar como a  
política eugênica contribuiu para a formação de uma classe trabalhadora marcada pela  
heterogeneidade racial que relegou os povos negros e indígenas à condição de inserção na  
sociedade de classes de uma forma subalternizada, sendo esses os estratos que mais sofrem com  
a superexploração como condição sine qua non do capitalismo dependente latino-americano.  
Reconhecemos, portanto, a questão racial como base fundamental para a emergência da  
questão social no país. Assim, há forte imbricamento do racismo no surgimento da questão  
social, especialmente porque seu reconhecimento, no cenário político, se dá no processo de  
emergência das políticas eugênicas e no mito da democracia racial como vetores que buscavam  
projetar a identidade nacional como desprovida de qualquer problema racial gerado pelo  
colonialismo. Ao mesmo tempo, esse estudo sugere o possível impacto da pseudociência  
eugênica na formação e atuação dos primeiros profissionais de serviço social e aponta para a  
200  
Libertas, Juiz de Fora, v. 25, n. 1, p. 180-203, jan./jun. 2025. ISSN 1980-8518  
Capitalismo dependente e questão social: apontamentos sobre eugenia e serviço social  
necessária investigação científica em torno do tema como forma de fortalecer e materializar o  
projeto de formação e exercício profissional presentes no projeto ético-político profissional,  
através do Código de Ética de 1993 e das Diretrizes Curriculares de 1996.  
Dessa forma, sugerimos que a eugenia possa ser abordada no currículo do serviço social,  
porquanto entendemos que o tema está relacionado ao surgimento da profissão, impactando em  
seu processo de consolidação e expansão no contexto nacional. O aprofundamento nesse debate  
pode conduzir a uma formação que subsidie, entre estudantes e profissionais da área, o  
desenvolvimento de habilidades para uma prática antirracista. Nesse sentido, consideramos que  
o aprofundamento em pesquisas que tenham como foco a investigação da relação entre eugenia,  
capitalismo dependente, questão social e serviço social, é de grande importância para a  
efetivação dos princípios e valores presentes em nosso Código de ética, que orientam para uma  
atuação pautada na participação da construção coletiva de uma sociabilidade sem discriminação  
de classe, etnia e gênero.  
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203  
A ofensiva conservadora ao pensamento de  
Antonio Gramsci e o Serviço Social brasileiro1  
The conservative offensive to the thought of Antonio Gramsci and brazilian  
Social Work  
Eliana Andrade da Silva*  
Resumo: Este artigo analisa como a ofensiva  
conservadora sobre o pensamento de Antonio  
Gramsci atinge o Serviço Social brasileiro. A  
metodologia utilizada foi pesquisa bibliográfica  
e documental. Os resultados indicam que esta  
ofensiva objetiva desconstruir o legado de  
Abstract: This article analyzes how  
conservative offensive against the thought of  
Antonio Gramsci impacts Brazilian Social  
Work. The methodology used was bibliographic  
and documentary research. The results indicate  
that these offensive aims to deconstruct  
Gramsci's legacy through distortions and the  
disqualification of his life and work. We  
conclude that in the field of Social Work, this  
movement manifests through the emergence of  
a clash of ideas that challenges the profession's  
ethical-political direction. These tendencies  
appear in Social Work, by reviving conservative  
ideals in the profession, such as anti-  
intellectualism, political neutrality, and the  
overvaluation of empiricism and pragmatism.  
Gramsci,  
através  
de  
deturpações  
e
desqualificação de sua vida e obra. Concluímos  
que no âmbito do Serviço Social, este  
movimento ocorre através da emergência de um  
embate de ideias que põe em xeque a direção  
ético-política profissional. Essas tendências se  
apresentam no Serviço Social, reatualizando  
ideais conservadores na profissão, como anti-  
intelectualismo, neutralidade política, hiper  
valorização da empiria e do pragmatismo.  
Palavras-chaves:  
Serviço  
Social;  
Keywords: Social Work; Conservatism;  
Conservadorismo; Marxismo cultural; Gramsci.  
Cultural Marxism; Gramsci.  
Introdução  
O mundo experimenta hoje uma crise. Trata-se de uma particular crise do capital, a qual  
podemos considerar como uma crise orgânica. É necessário salientar que as crises não são uma  
novidade para a sociabilidade burguesa, mas são parte constituinte do sistema do capital e de  
sua reprodução. Segundo Antonio Gramsci, o desenvolvimento do capital foi constituído por  
1 Este artigo toma por base as reflexões de Silva (2022) tecidas no texto intitulado “Gramscismo” e “Marxismo  
Cultural”: os novos objetos de disputa de hegemonia, publicado no III Colóquio Internacional Antonio Gramsci  
em São Luís, MA.  
* Universidade Federal do Rio Grande do Norte. E-mail: eliana.silva@ufrn.br  
DOI: 10.34019/1980-8518.2025.v25.47726  
Esta obra está licenciada sob os termos  
Recebido em: 09/03/2025  
Aprovado em: 18/06/2025  
A ofensiva conservadora ao pensamento de Antonio Gramsci e o Serviço Social brasileiro  
uma crise contínua e, sendo assim, a crise envolve permanências e rupturas de determinados  
elementos constituintes de seu funcionamento. É, pois, neste contexto da atual crise estrutural  
do capital que observamos o avanço do pensamento conservador2 contra o pensamento social  
crítico, especialmente contra as ideias e a obra de Antonio Gramsci. Este processo tem reflexos  
no Serviço Social, o qual se aproxima das concepções do referido autor a partir da década de  
1970. As consequências desta ofensiva podem ser observadas na articulação de setores  
oponentes à direção social estratégica construída após a Renovação profissional, reivindicando  
a despolitização da profissão, ao mesmo tempo que propõe uma retomada de um discurso  
tecnicista, bem como a atualização de bases filosóficas já superadas na trajetória do Serviço  
Social.  
Para análise desta processualidade, partimos do pressuposto que a referida crise  
econômica tem se constituído em um cenário propício para uma ofensiva ideológica e teórica  
de cariz conservador, que se amplia ao nível mundial, retomando velhos discursos como o  
anticomunismo, o antimarxismo, o anti-intelectualismo, bem como a neutralidade política.  
Estas tendências se observam no Serviço Social através do questionamento à direção social  
estratégia da profissão (projeto ético político) e na crítica à adoção do marxismo como  
perspectiva teórica hegemônica.  
Paralelo a isto encontra-se em desenvolvimento um empreendimento ideopolítico de  
vulgarização da trajetória política e filosófica obra de Antonio Gramsci como parte de um  
movimento global de embate hegemônico que ocorre na base estrutural da sociedade e que se  
articula dialeticamente à esfera do Estado, à produção de conhecimento e à política. Tais  
tendências conservadoras vêm elegendo Antonio Gramsci como “inimigo político da ordem” e  
responsável por uma suposta “revolução cultural gramcista” que estaria em curso no Brasil.  
De forma geral os determinantes que geram esses processos estão ligados ao contexto  
de contradições advindas da crise capitalista em curso, tendo em vista que a ordem burguesa ao  
se defrontar com seus paradoxos internos elabora múltiplos mecanismos para sua resolução e,  
ao sentir-se ameaçada, aciona elementos irracionalistas aderindo a um movimento de  
“abandono da razão” (Coutinho, 2010). É no bojo deste cenário que este artigo se propõe a  
analisar como a ofensiva conservadora ao pensamento de Antonio Gramsci e impacta o serviço  
social brasileiro. Para elaboração deste texto recorremos à pesquisa bibliográfica e documental.  
Para efeito de exposição, este artigo encontra-se estruturado nas seguintes sessões: 1)  
Introdução, 2) “Gramscismo” e “marxismo cultural”: os novos objetos de embate hegemônico,  
205  
2 O pensamento conservador supõe uma forma peculiar de pensar e de vivenciar o mundo. Caracteriza-se por uma  
celebração do modo de vida do passado como referência para os dias atuais.  
Eliana Andrade da Silva  
3) Desvelando o marxismo cultural: origens históricas e expressões atuais, 4) Antonio Gramsci  
e seu legado para o Serviço Social, e 5) Considerações finais.  
“Gramscismo” e “marxismo cultural”: os novos objetos de embate hegemônico  
As contradições advindas da crise capitalista em curso no globo têm criado  
circunstâncias que levam a sociedade a defrontar-se com os paradoxos da ordem burguesa. O  
ambiente de crise econômica, a fragilização das condições materiais da vida das classes  
subalternas, as estratégias de desregulamentação do trabalho, a hegemonia do capitalismo  
financeiro são algumas das expressões do cenário de crise do capital. É neste contexto de crise  
geral e de acirramento das contradições entre a superestrutura e a estrutura com indicativos de  
uma crise orgânica3 do capital, que podemos situar o processo de negação da razão e de ataques  
à ontologia materialista e dialética como fortes ofensivas à obra de Antonio Gramsci (e com  
desdobramentos posteriores no Serviço Social).  
Em termos históricos, a recorrência a Gramsci como um “perigo” para a sociedade  
não é uma novidade. Inclusive, durante o processo político que o leva ao cárcere na Itália  
fascista de seu tempo, sob o comando de Benito Mussolini, o pensador sardo foi considerado  
uma ameaça política ao regime autoritário que se instaurou no país. O “risco” que Gramsci  
representava ao fascismo estava ligado à sua atuação político-partidária e parlamentar, bem  
como à sua produção intelectual de caráter crítico o que inicia uma séria perseguição política  
contra o mesmo, que passa a ser alvo constante do governo de Mussolini, sobretudo a partir  
do aprofundamento do regime autoritário em 1926, resultando em seu encarceramento no  
mesmo ano.  
206  
Cumpre notar que Gramsci (e a tradição intelectual crítica), ao longo da história, tem se  
tornado para os grupos dirigentes um intelectual que representa um risco político à correlação  
de forças existente. A título de exemplo, as preocupações de Ronald Reagan, ex-presidente dos  
Estados Unidos, com o avanço das ideias comunistas na América Latina, levaram-no a solicitar  
a elaboração, na década de 1980, do documento Santa Fé I, através do qual se pronunciara sobre  
os riscos da influência do pensamento marxista e dos “Estados totalitários” e os supostos riscos  
da ameaça comunista no continente, referindo-se especialmente a Cuba e Nicarágua. As  
3
Segundo Antonio Gramsci, o capitalismo foi constituído por uma crise contínua, de modo que envolve  
permanências e rupturas de determinados elementos constituintes de seu funcionamento. A crise orgânica é,  
portanto, a convergência entre crise econômica e crise política, processo no qual se ampliam as contradições na  
relação entre superestrutura e estrutura. Distinta da crise conjuntural, a crise orgânica é caracterizada por sua  
amplitude e profundidade, momento no qual a quantidade cede lugar à qualidade (Gramsci, 2024b).  
Libertas, Juiz de Fora, v. 25, n. 1, p. 204-222, jan./jun. 2025. ISSN 1980-8518  
A ofensiva conservadora ao pensamento de Antonio Gramsci e o Serviço Social brasileiro  
preocupações americanas se estendem por toda a década, de forma que, no documento Santa  
Fé II, elaborado em 1988, a recorrência às ideias de Gramsci é literal e direta:  
El importante e innovador teórico marxista que reconoció la relación de los  
valores que la gente observa en la creación del régimen estatista fue Antonio  
Gramsci (1881-1937). Gramsci afirmaba que la cultura o el conjunto de  
valores de la sociedad mantienen primacía sobre la economía. Según Gramsci,  
los trabajadores no conquistarían el régimen democrático, pero los  
intelectuales sí. Para los teóricos marxistas, el método más prometedor para  
crear un régimen estatista en un ambiente democrático era a través de la  
conquista de la cultura de la nación (Bouchey et al., 1988, p. 24).  
Dessa forma, as ideias de Antonio Gramsci tornam-se objeto de análise do pensamento  
conservador americano e são inseridas em um quadro teórico denominado de “ofensiva cultural  
marxista”. A elaboração destes documentos dá-se em um contexto de crise e declínio da  
experiência da União Soviética, em plena Guerra Fria, momento no qual havia uma expectativa  
de avanço da hegemonia americana sobre o mundo. A dissolução da URSS detonou um  
movimento intelectual antimarxista e anticomunista, abrindo espaço para elaborações pós-  
modernas e irracionalistas. Entretanto, passada a guerra fria, quais os determinantes que  
recolocam Gramsci na agenda nacional (e internacional), tornando-se atualmente um teórico  
recorrentemente citado por diversos intelectuais do espectro conservador?  
Para tentar responder a esta indagação, recorremos à estrada pavimentada por Gramsci  
(e por Karl Marx), adotando a crise como critério analítico, bem como consideramos que a  
formação social de cada país gera processos particulares de detonação e expressão da crise  
orgânica. Dessa forma, é preciso demarcar que a realidade latino-americana do início da década  
de 2000 é marcada por um período de crise econômica e social, resultante da implementação  
da política neoliberal iniciada na década anterior. Os índices de desigualdade social e de  
pobreza avançavam, ao passo que medidas de flexibilização da produção desencadearam um  
quadro de desemprego estrutural. Em tal contexto, observa-se no cone sul o fenômeno  
denominado de “maré rosa” (eleição de governos populares no Brasil, na Venezuela, na Bolívia,  
na Argentina). A constituição destes governos passa a reacender as preocupações dos EUA e  
das elites econômicas locais tuteladas pelo imperialismo americano. É, portanto, nesse  
contexto, que no Brasil alguns intelectuais conservadores passam a confrontar as elaborações  
de Gramsci.  
207  
Não estamos tratando de um grupo homogêneo, mas de atores de diversos grupos sociais  
de estrato conservador (ativistas, professores, jornalistas, padres, militares), cujo ponto de  
4 Santa Fé II, denominação utilizada pelos elaboradores do referido documento. Para aprofundar este tema, conferir  
foi realizada em 10 de junho de 2025.  
Eliana Andrade da Silva  
convergência é a batalha contra o “marxismo cultural5”, do qual consideram Gramsci o maior  
expoente.  
Um dos argumentos utilizados pelos conservadores ao pensamento de Antonio Gramsci  
é que a sociedade estaria experimentando uma “guerra cultural” e uma “nova luta de classes”,  
na qual o “Marxismo Cultural” seria a estratégia ideopolitica de conquista do poder. Segundo  
os intelectuais do espectro conservador, o “marxismo cultural” ou “novo evangelho de  
esquerda” substitui o protagonismo do proletariado pela afirmação dos intelectuais como  
sujeitos de destaque, o que resultaria em uma invasão deste (“marxismo cultural”) nos meios  
de comunicação, na universidade e na cultura em geral. Um dos objetos do embate de ideias é  
utilizar a noção de “marxismo cultural” como cerne da crítica ao pensamento de Antonio  
Gramsci6. Para os conservadores, um dos objetivos do “marxismo cultural” é se ampliar em  
escala mundial e dominar os governos e, neste processo, os intelectuais teriam papel  
fundamental. Já a noção de “Grasmscismo” é utilizada pelos críticos do pensador Sardo para  
referir-se às estratégias políticas elaboradas por ele nos Quaderni del Carcere. Neste aspecto  
destacamos a presença de Coutinho7 (2002, p. 9), na elaboração desta ideia, ou seja, “a  
concepção e estratégia desenvolvidas nos cadernos é o que podemos chamar de Gramscismo,  
ou mais abrangentemente de Marxismo-Gramscismo ou Gramscismo seria uma superação do  
marxismo-leninismo”. Diante destas evidências, entendemos que os termos elaborados por  
estes críticos de Gramsci seriam uma forma de deturpação de suas elaborações teóricas e de  
suas estratégias políticas.  
208  
No Brasil, o discurso do “marxismo cultural” e do “Grasmscismo” são contemporâneos  
aos governos de Luís Inácio da Silva8 e Dilma Rousseff. Para setores conservadores estes  
governos e suas políticas de transferência de renda, de cotas raciais, de igualdade de gênero, de  
5 Utilizaremos o termo marxismo cultural com aspas para destacá-lo como um termo que necessita ser analisado e  
adjetivado. Este esforço analítico será realizado ao final deste artigo.  
6 Além de Antonio Gramsci, a produção teórica da Escola de Frankfurt também foi eleita como um dos pilares da  
crítica dos intelectuais conservadores, pois atribuem a esta escola a origem do “Marxismo Cultural”, dado que  
seria uma instituição comunista (Costa, 2020).  
7
Sergio Augusto Avellar Coutinho (Faleceu em 2011) foi um militar da brigada reformado. considerado em seu  
meio como um importante pensador militar. Em sua biografia consta a publicação de vários títulos, os quais  
foram editados pela biblioteca do Exército. Dentre os quais se destacam “Cadernos da Liberdade - Uma visão  
do mundo diferente do senso comum modificado” este livro foi reeditado com o título “Cenas da Nova Ordem  
Mundial”. Consta ainda a obra “A revolução Gramscista no ocidente: a concepção Revolucionária de Antonio  
Gramsci e os cadernos do Cárcere” (Coutinho, 2002). Nesta obra, o referido autor esboça suas críticas às  
estratégias de tomada de poder de Antonio Gramsci e seu papel no “Marxismo Cultural”.  
8
Nos referimos ao primeiro e ao segundo mandato do presidente Luiz Inácio da Silva (2003-2010). Em 2023,  
inicia seu terceiro mandato como presidente da república. No que se refere à Dilma Rousseff, a mesma cumpriu  
o primeiro mandato entre 2011 e 2014 e venceu as eleições em 2014 e tomou posse, mas foi impedida em 2016  
de exercer seu mandato em virtude de um processo de impeachment.  
Libertas, Juiz de Fora, v. 25, n. 1, p. 204-222, jan./jun. 2025. ISSN 1980-8518  
A ofensiva conservadora ao pensamento de Antonio Gramsci e o Serviço Social brasileiro  
visibilidade das pautas identitárias, bem como as políticas externas de aproximação com países  
como China, Rússia, África do Sul e Índia9 foram detonadoras de críticas de distintos matizes  
do bloco conservador, incomodados, seja com aspectos morais (religiosos de igrejas católicas  
e neopentecostais), seja com decisões econômicas (empresários e partidos conservadores), seja  
com a direção da política externa brasileira (especialmente setores dos grupos militares). Para  
este bloco conservador, estaria em curso no Brasil uma “revolução socialista democrática e  
silenciosa”, capaz de transformar o país em uma espécie de “revolução Bolivariana”  
aproximando-nos de uma experiência como a cubana ou venezuelana. Sob esta ótica, Gramsci10  
(e seu “marxismo cultural”) seria o autor que ofereceria o fundamento teórico para a  
implementação das políticas econômicas e sociais em curso entre os anos de 2004 e 2016 –  
durante a vigência dos primeiros governos do Partido dos Trabalhadores.  
Nesse sentido, os traços do discurso conservador são: oposição à tradição marxista,  
operações de deformações das ideias de Karl Marx e de Antonio Gramsci, apresentação de uma  
anacronia histórica, em reeditar uma suposta “ameaça comunista” em curso, bem como defesa  
da economia liberal capitalista como mais adequada à sociedade. Trata-se, portanto, de uma  
reedição de discursos e práticas políticas do passado que se atualizam na cena contemporânea,  
sob nova aparência.  
É com base nas premissas e considerações discutidas até aqui que no item a seguir  
apresentaremos as origens do denominado marxismo cultural e suas expressões.  
209  
Desvelando o marxismo cultural: origens históricas e expressões atuais  
O caminho que percorremos até aqui nos permite avançar na crítica ao “Gramscismo” e  
ao “marxismo cultural”. Dessa forma, partimos do brilhante ensaio da historiadora Iná Camargo  
Costa (2020) o qual nos revela as bases históricas desta denominação e nos adverte que:  
marxistas que honram a própria tradição não podem aceitar a caracterização  
do Marxismo Cultural formulada pelo inimigo, assim como Marx e Engels e  
os companheiros da Liga Comunista não aceitaram o fantasma brandido pela  
santa aliança anticomunista do século XIX e por isso em 1848 redigiram o  
histórico Manifesto do Partido Comunista justamente para definir comunismo  
nos seus próprios termos (Costa, 2020, p. 13).  
9
Estes países constituem o chamado BRICS – grupo de países emergentes em desenvolvimento formado por  
Brasil, Rússia, China entre outros.  
10 Em recente levantamento realizado pela IGS Brasil sobre a divulgação do pensamento de Gramsci os resultados  
indicam até 2019 havia um total de 1.214 (mil duzentas e quatorze) publicações, sendo 706 (setecentos e seis)  
livros, capítulos de livros e artigos científicos publicados, e 508 (quinhentas e oito) teses e dissertações  
defendidas.  
Eliana Andrade da Silva  
Do ponto de vista histórico, o marxismo cultural encontra suas bases no programa  
nazista, especialmente no que se refere ao anticomunismo11. Na década de 1990, a rearticulação  
da denominada “nova direita americana” empreende esforços, no sentido de uma  
contraofensiva aos avanços das conquistas civis dos grupos identitários nos EUA. Data desta  
década a denominação “marxismo cultural” e “seus primeiros usuários são cristãos  
fundamentalistas, ultraconservadores, supremacistas enfim, a extrema-direita estadunidense”  
(Costa, 2020, p. 38). A versão atual deste grupo mostra-se mais ameaçadora, tendo como porta-  
vozes do combate ao “marxismo cultural” Steve Bannon12 e Jordan Peterson13, os quais tem  
utilizado as redes sociais como espaço de difusão de ideologia. Dessa forma, recorremos à  
análise de Costa (2020) para argumentar que, sob um prisma histórico-crítico, o “marxismo  
cultural” é tão somente uma subespécie resultante de operação ideológica equivocada de fusão  
entre Marxismo ocidental e materialismo cultural14.  
De forma similar, podemos concluir que a criação da ideia de Gramscismo seria  
igualmente um subproduto do “marxismo cultural”, destinado especificamente à  
descaracterização das concepções elaboradas por Antonio Gramsci. É possível assinalar ainda  
que a criação destes mitos (“Gramscismo e marxismo cultural”) compõem uma estratégia mais  
ampla de desqualificação da tradição marxista, imputando-lhe uma falsa oposição entre  
marxismo econômico e marxismo cultural. Ou seja, uma negação da articulação dialética entre  
os momentos da economia, da política e da cultura.  
210  
Estas tendências se articulam a um movimento global, identificado como uma “onda  
conservadora”, nos termos de Demier e Hoelever (2016), que se expressa tanto na esfera  
econômica, como na esfera superestrutural. Constituem parte da reação burguesa, na qual a  
11  
Em documento histórico intitulado Minha Luta (Mein Kampf, 1933), Adolf Hitler aponta o marxismo como  
inimigo na sociedade alemã e o bolchevismo cultural como expressão estratégica de uma “conspiração judaica”.  
Outra determinação histórica importante, assinalada por Costa (2020), é encontrada nos Estados Unidos no  
período que se seguiu à Revolução de outubro de 1917 (Rússia). Denominada de Espionage Act (1917), esta  
operação foi destinada a perseguir e punir militantes de esquerda. Outras iniciativas de mesmo espectro que se  
inscrevem no Red Scare americano se desenvolvem entre os anos de 1930 e 1960, constituindo uma guerra  
política e cultural de viés anticomunista.  
12  
É apresentado como um estrategista e assessor político. Atuou em várias campanhas eleitorais no mundo.  
Elaborou uma estratégia de campanhas, utilizando as redes sociais como principal meio de comunicação.  
Desempenhou função de assessor no governo Donald Trump. Foi preso em 2020 por fraude financeira.  
13 Jordan Bernt Peterson é um psicólogo clínico canadense. É professor de psicologia da Universidade de Toronto  
e se apresenta como crítico do “politicamente correto” e do “esquerdismo”.  
14 Além do debate frankfurtiano, nos pós-Segunda Guerra, a publicação da obra gramsciana fomentou instigantes  
produções sobre a relação entre marxismo e cultura, como as de Raymond Willians, que cunhou o vocábulo  
“materialismo cultural”. Progressivamente, intensificaram-se os estudos culturalistas, por norma vinculados às  
tendências pós-modernas, apartadas da concepção materialista da cultura presente em Gramsci e na tradição  
marxista. Ativistas como Paul Weyrich e William S. Lind, anteriores a Steve Bannon, foram ferrenhos  
combatentes das vertentes culturalistas e propagadores dos perigos do marxismo cultural.  
Libertas, Juiz de Fora, v. 25, n. 1, p. 204-222, jan./jun. 2025. ISSN 1980-8518  
A ofensiva conservadora ao pensamento de Antonio Gramsci e o Serviço Social brasileiro  
eleição de governos ultraconservadores, a ampliação da xenofobia, a defesa moral do mercado,  
as pautas pró armamentistas e o fundamentalismo religioso são algumas das tendências de  
fortalecimento de um conservadorismo de novo tipo, que se espraia pelo globo e chega ao  
Brasil, denotando características particulares, tais como, a associação do liberalismo econômico  
(discurso da austeridade fiscal) com conservadorismo moral.  
O contexto contemporâneo faz emergir um conservadorismo à brasileira, fortemente  
enraizado no conservadorismo americano, que se fortalece no país, a partir de 2013, através das  
manifestações de junho sob a direção da “nova direita” – denominação utilizada para referir-se  
a grupo que se articula no contexto de crise política e econômica generalizada, no sentido de  
avançar as pautas econômicas, baseadas nos princípios ultraliberais, adicionando os  
componentes ideológicos do discurso conservador de defesa dos valores da família, da pátria e  
da religião, apelo ao militarismo e pró armamentista (Lacerda, 2019).  
É no referido cenário que intentamos analisar alguns elementos do legado de Antonio  
Gramsci para o Serviço Social, bem como desenvolveremos as análises sobre como ofensiva  
conservadora às ideias do pensador sardo se expressam no Serviço Social brasileiro, ameaçando  
a direção hegemônica estratégica e abrindo na profissão um embate hegemônico distinto  
daqueles já existentes.  
211  
Antonio Gramsci e seu legado para o Serviço Social  
O pensamento de Antonio Gramsci só pode ser compreendido a partir das referências  
que este vai buscar no pensamento marxiano. No âmbito da tradição marxista, Gramsci  
promove um desenvolvimento e uma renovação de alguns conceitos básicos de Karl Marx,  
Lenin, Engels, constituindo um movimento de negação/conservação/superação destes. Em  
termos de sua obra, pode-se indicar que até 1926 observa-se uma assimilação de Lenin e, pós  
1926, se apresenta uma “superação dialética” de muitas ideias daquele (Coutinho, 2003).  
Para Gramsci o marxismo ou a filosofia da práxis é tida como método para descoberta  
de novas determinações ou ainda uma filosofia integral que marca o início de uma nova fase na  
história e no desenvolvimento mundial do pensamento, ultrapassando o idealismo, o  
materialismo tradicional, preservando os aspectos essenciais (Simionatto, 2004). Os estudos  
de Gramsci observam fenômenos que poderiam ser classificados como de interesse das áreas  
como política, sociologia, antropologia, religião, cultura popular, literatura, linguística,  
pedagogia e filosofia. Sobre estes temas o autor “tem muito a ensinar aos cientistas políticos,  
aos sociólogos, aos pedagogos, antropólogos e aos assistentes sociais” (Coutinho, 2003, p. 114).  
Eliana Andrade da Silva  
Segundo Simionatto15 (2004), a chegada de Gramsci à América Latina já pode ser  
identificada desde os anos de 1920, por meio de José Carlos Mariátegui. É digno destacar que  
não há uma recorrência direta às elaborações do pensador sardo, mas este contato se opera por  
meio de Piero Gobetti.16 Ao Brasil, Gramsci chega em 1960 através da iniciativa de Carlos  
Nelson Coutinho, Leandro Konder e Luiz Mario Gazzaneo. Neste período, suas ideias não  
tiveram muita ressonância. Aliado a isto, a obra sofreu deturpações, fragmentação e seleção  
devido aos interesses políticos, teóricos de seus interlocutores17. Somente a partir da segunda  
metade dos anos de 1970, os escritos gramscianos passam a ser amplamente estudados e  
divulgados. A aproximação de Gramsci ao itinerário ideopolítico do Serviço Social remete ao  
processo de Renovação desta18 profissão, momento no qual esta realiza questionamentos sobre  
seus fundamentos teórico-metodológicos, ético-políticos e técnico-operativos.  
Na década de 1960, algumas ideias de Antonio Gramsci já circulavam pelo Brasil,  
quando o Serviço Social apenas iniciava sua jornada de enfrentamento ao tradicionalismo e ao  
conservadorismo19. No entanto, a década de 1970 traz modificações à direção profissional, não  
obstante, se reproduzissem as iniciativas repressivas por parte do Estado. Marcante iniciativa  
na perspectiva de crítica ao projeto modernizador pode ser observada na experiência elaborada  
na Escola de Serviço Social da Universidade Católica de Minas Gerais. Trata-se do conhecido  
212  
15 Em levantamento realizado por Simionatto (2004) a autora distingue dois momentos da chegada das concepções  
de Gramsci: a) publicações da década de 1960 produzidas por Carlos Nelson Coutinho, Leandro Konder e  
Michael Lowy e Otto Maria Carpeux; b) publicações da década de 1970 que, na década seguinte se ampliam,  
representando um novo patamar de produções sobre a obra do autor sardo. São listados neste grupo autores  
como Demerval Saviani, Moacir Gadotti, Paolo Nosella, Edmundo Fernandes Dias. Na passagem da década de  
1970 para 1980, no contexto da reabertura política, ocorre uma nova iniciativa de inserção das ideias de  
Gramsci, agora com bastante influência, colaborando para que o autor se torne referência teórica para várias  
áreas de saber. Na ótica de Simionatto (2004), é nesta fase que o pensamento de Gramsci será incorporado de  
forma global e mais apropriada.  
16 Piero Gobetti foi um símbolo da luta contra o fascismo na Itália. Após a Segunda Guerra Mundial, passou a ser  
comumente associado à figura de Antonio Gramsci nos debates sobre a democracia e o socialismo na Itália.  
17 Segundo Coutinho (2003), no período entre 1966 e 1968 – em meio as constrições do ciclo autocrático burguês,  
algumas das mais importantes obras de Gramsci foram publicadas em solo brasileiro. A decretação do AI 5  
torna desfavorável o ambiente para tornar públicas suas ideias, deixando suas obras sob uma sombra de um  
desconhecimento momentâneo. Simionatto (2004) destaca que no Brasil as ideias de Gramsci no interior da  
esquerda brasileira que era influenciada pela Terceira Internacional, ou seja, pelo Marxismo-leninismo).  
18  
Conforme análises de Paulo Netto (2005) a Renovação do Serviço Social no Brasil se opera a partir de três  
vertentes: Modernizadora (referenciada na matriz funcional-estruturalista, Reatualização do conservadorismo  
(referenciada na matriz fenomenológica) e na Intenção de Ruptura (referenciada na matriz marxista).  
19  
Sob o contexto da Ditadura Civil Militar iniciada em 1964, a profissão encontra nas formulações da matriz  
estrutural funcionalista as respostas às preocupações com o aperfeiçoamento do instrumental técnico e  
operativo, especialmente com seus métodos de atuação. A sistematização destas preocupações ficou conhecida  
como Documentos de Araxá (1967) e de Teresópolis (1970) – ambos filiados à tradição funcionalista norte-  
americana. Conforme Simionatto (2004), estas formulações não ultrapassam as tendências conservadoras que  
marcam o passado da profissão e estabelecem vínculos entre o Serviço Social e o projeto da autocracia burguesa.  
Libertas, Juiz de Fora, v. 25, n. 1, p. 204-222, jan./jun. 2025. ISSN 1980-8518  
A ofensiva conservadora ao pensamento de Antonio Gramsci e o Serviço Social brasileiro  
Método de Belo Horizonte20 elaborado entre os anos de 1972 e 1975, no âmbito desta  
universidade, sob a perspectiva de experimentação de um projeto de Serviço Social distinto  
daquele marcadamente acrítico e funcional ao regime autoritário. Este período constitui um  
marco para a entrada do pensamento marxista no universo temático profissional. No entanto,  
as elaborações de Antonio Gramsci só aparecerão a partir de finais de 1970, especialmente  
através da intervenção da Professora Creusa Capalbo, quando da realização do Seminário de  
Sumaré em 1978. O ambiente político e cultural do Brasil, em torno da redemocratização,  
contribui para que as ideias de Gramsci já circulassem pelo país, sendo as relações Estado e  
sociedade, a hegemonia e os intelectuais os temas relevantes para a categoria de assistentes  
sociais. Ao longo da década de 1980, Gramsci foi uma referência importante nos debates  
políticos e na produção de conhecimentos21. Em análise sobre a inserção de Gramsci na  
produção teórica da área de Serviço Social, Santos (2018) constata que:  
Suas ideias foram incorporadas pelo Serviço Social, onde foi possível  
questionar sobre os referenciais teóricos e suas atuações profissionais, assim  
como apontar o compromisso do assistente social com as classes subalternas.  
[...] O pensamento de Antonio Gramsci no Serviço Social tornou-se referência  
na elaboração de discussões e problematizações das questões que envolvem  
as esferas econômica, política, cultural e ideológica (Santos, 2018, p. 11-12).  
Nesse sentido, o legado do pensador Sardo pode ser identificado com alguns indicativos:  
a articulação das dimensões da profissão (teórico-metodológica, ético-política, técnico-  
operativa), a análise em perspectiva de totalidade, o estudo as particularidades do trabalho  
profissional nas esferas do Estado e da sociedade civil, o exame dos nexos de articulação entre  
a categoria profissional e a dimensão ético-política dos grupos sociais e a estruturação do  
projeto profissional (projeto ético-político) são alguns dos legados que o pensamento de  
Antonio Gramsci forneceu ao Serviço Social nas últimas décadas. De forma geral, podemos  
afirmar que as ideias de Gramsci colaboraram para que o Serviço Social transitasse para um  
novo patamar de compreensão das relações sociais e dos nexos entre superestrutura e base  
material, distanciando-se da abordagem funcionalista, superando equívocos militantistas,  
213  
20  
Segundo Paulo Netto (2005) o método de Belo Horizonte apresentava-se como uma alternativa global ao  
tradicionalismo em todas as angulações: teórica, política e na atuação. É, portanto, nesta proposta (Método de  
BH) que podemos indicar a expressão inicial do projeto de ruptura com o conservadorismo que vigora na  
profissão desde 1965. Para uma análise aprofundada acerca das contradições em impasses observados na  
proposta Método de Belo Horizonte consultar Paulo Netto (2005) com sua obra “Ditadura e Serviço Social:  
uma análise do Serviço Social no Brasil pós-64”.  
21  
Na trajetória de inserção da obra de Antonio Gramsci no Serviço Social, alguns atores (e autores) foram  
fundamentais. De acordo com Simionatto (2004) podemos indicar que Vicente de Paula Faleiros, Miriam  
Limoeiro Cardoso, Alba Pinho de Carvalho, Safira Amann, Josefa Batista Lopes, Franci Gomes Cardoso,  
Marina Maciel Abreu, Ana Elisabete Mota e Angela Amaral são alguns dos nomes mais relevantes nesta  
empreitada teórica e política.  
Eliana Andrade da Silva  
messiânicos e as fraturas analíticas que acompanharam a profissão no esforço de superação do  
conservadorismo.  
Podemos considerar que uma nova etapa de relação vem se estabelecendo entre o  
pensamento de Antonio Gramsci e o Serviço Social. Um salto qualitativo vem sendo dado na  
apropriação das elaborações do referido autor, sobretudo a partir da criação da Internacional  
Gramsci Society (IGS Brasil) em 201522, organizada no país através do esforço de  
pesquisadores da área, no sentido de acompanhar as novas tendências dos estudos gramscianos  
na Itália. No atual contexto, algumas categorias da arquitetura do pensamento de Antonio  
Gramsci têm sido aprofundadas, inclusive com o recurso das novas traduções no português23 e  
espanhol, ou ainda com a leitura dos originais na língua italiana. Através das recentes  
publicações e intercâmbios entre Brasil e Europa, observamos a participação de grupos de  
assistentes sociais sintonizados com as recentes discussões, embates e polêmicas que cercam a  
obra de Gramsci. Destaco as elaborações recentes de Adriano (2020), cuja análises tem  
defendido a tese de que Serviço Social se constitui como um grupo que assimila a elaboração  
gramsciana de hegemonia, defendendo a hipótese de “que o Serviço Social se constitui em um  
intérprete da hegemonia, cuja expressão político-prática reside no projeto ético-político, que  
tem como referência teórica e política a tradição marxista” (Adriano, 2020, p. 150). Tem sido  
possível observar uma etapa de aprofundamentos na leitura da obra gramsciana, adotando o  
método proposto pelo comunista sardo, qual seja: a filologia, capaz de captar não só as  
definições teóricas, mas a complexa processualidade do ritmo de pensamento e elaboração do  
autor sardo. Nesse sentido, o método indicado pelo autor dos Quaderni indica que a  
214  
filologia é a expressão metodológica da importância dos fatos particulares  
entendidos como “individualidade” definidos e especificados. A esse método,  
contrapõem-se aqueles dos “grandes números” ou da “estatística”, tomado de  
empréstimo das ciências naturais ou ao menos de algumas delas (Gramsci,  
2004b, p. 36).  
Sob a orientação do método filológico, podemos captar o contexto no qual produziu suas  
ideias e os fatores determinantes e intervenientes de seu tempo, para assim poder traduzir o  
mais fielmente seu legado teórico e ideopolitico. Portanto, se um diálogo promissor se  
22 A IGS Brasil foi criada com a finalidade de divulgar a vida, a obra e o pensamento de Gramsci no Brasil, nos  
âmbitos intelectual, cultural, político e social. Promover o debate sobre a obra de Gramsci, assim como sobre  
os grandes temas de natureza política, cultural, intelectual, histórica, sociológica a partir da perspectiva  
gramsciana em suas diversas vertentes interpretativas.  
23 A IGS Brasil acaba de lançar a nova tradução dos 29 cadernos do cárcere de forma gratuita. Também tem sido  
mais frequentes a interlocução com Fabio Frozinni e Gianni Fresu– autores de referência nos novos estudos  
italianos situados na Universitá di Cagliari, os quais vêm empenhando esforços na disseminação de estudos  
filológicos da obra do autor sardo.  
Libertas, Juiz de Fora, v. 25, n. 1, p. 204-222, jan./jun. 2025. ISSN 1980-8518  
A ofensiva conservadora ao pensamento de Antonio Gramsci e o Serviço Social brasileiro  
estabeleceu na década de 1970, atualmente uma profícua apropriação da filosofia da práxis está  
em curso, e, tende a se expandir e aprofundar.  
A partir deste legado e das novas prospecções indicadas, recorremos ao autor para  
dialogar sobre a categoria hegemonia, dado sua consistência analítica para compreensão dos  
fenômenos sociais observados. Partimos da premissa gramsciana de que, sempre há uma luta  
entre duas hegemonias. Para o autor uma questão se coloca: por quê, em algumas situações,  
apenas uma triunfa? Para Gramsci, Hegemonia significa um determinado sistema de vida moral  
e concepção da vida (2004b).  
Dessa forma, esta categoria é fundante para o debate que ora tecemos, pois é estratégica  
para analisar a profissão e as tendências macrossocietárias (progressistas ou conservadoras),  
presentes na sociedade, e, como estas impactam a profissão. Nesses termos, coadunamos com  
Adriano (2020) que as tendências teóricas filiadas à filosofia da práxis são fontes fundamentais  
para análise e entendimento dos embates hegemônicos contemporâneos.  
Segundo Adriano (2020) o Serviço Social no seu processo de revisão crítica, a partir dos  
aportes da filosofia da práxis, cria as condições de elaboração de uma consciência crítica, além  
de uma vontade coletiva, resultando na elaboração teórica e prático-política para hegemonia,  
dotando-a de sentido e direção, consubstanciado no que denominamos de projeto ético-político.  
Dessa forma, a profissão situa-se em um contexto mundial marcado por uma crise do  
capital, pelo avanço das tendências irracionalistas, bem como pelo ataque aos direitos sociais e  
econômicos das classes subalternas, em face da ampliação das medidas de austeridade fiscal,  
expressa pela proposta de um novo arcabouço fiscal,24 implementada recentemente pelo  
governo de Luiz Inácio da Silva. Aliado a isto, o serviço social brasileiro tem assistido à  
desintegração dos direitos sociais e trabalhistas dos subalternos há quase uma década, por meio  
de medidas regressivas como, a contrarreforma da previdência, de 2019, que altera a idade  
mínima e aumenta o tempo de contribuição para obtenção do benefício: 62 anos, para mulheres;  
e 65 anos, para homens. Além disso, aumentou o percentual de contribuição, achatando o salário  
dos trabalhadores. Merece atenção outra ofensiva contra as classes subalternas, sintetizada na  
Lei n.º 13.467/2017, a qual alterou as diretrizes da Consolidação das Leis do Trabalho (CLT),  
bem como a Lei n.º 13.429/2017, que trata da terceirização irrestrita, a qual amplia a  
215  
24 Esta proposta vem substituir a PEC 95, a qual propunha congelar os investimentos públicos por vinte anos. Em  
18/4/2023, o governo apresentou do Projeto de Lei Complementar (PLP 93/2023), denominado de Novo  
Arcabouço Fiscal (NAF), que institui regime fiscal sustentável para garantir a estabilidade macroeconômica do  
país e criar as condições adequadas ao crescimento socioeconômico. Assim, o NAF propõe restrição dos gastos  
primários do governo, caso não atinja as metas de crescimento, atingindo as políticas sociais na redução de  
investimentos.  
Eliana Andrade da Silva  
precarização na contratação dos trabalhadores, constituindo a arquitetura da contrarreforma  
trabalhista.  
É, portanto, neste contexto de crise e de avanço das tendências ultraliberais e  
conservadoras que se constrói o cenário de embate hegemônico que incide sobre o serviço social  
brasileiro. As novas direitas e seu discurso também chegam ao Serviço Social. Nas análises de  
Alvaro Bianchi (Zambello; Silva; Di Carlo, 2021), é possível denominar de novas direitas  
porque se trata de grupos heterogêneos: os conservadores tradicionalistas, os ultraliberais e os  
cristãos fundamentalistas. Emergem nesse campo intelectuais como Ludwig von Mises  
(articulando as noções de economia, Estado, indivíduo) e Olavo de Carvalho25 como  
elaborador, disseminador e agitador político.  
Silveira (2019), analisando a chegada da nova direita no Serviço Social, indica que seu  
surgimento está relacionado do avanço do conservadorismo no Brasil e no mundo, e, na  
particularidade da categoria profissional, esse movimento constitui uma forma de resistência e  
oposição à direção social estratégica que a profissão assumiu na década de 1980 denominada  
de projeto ético político. Sua pesquisa concentra esforços na análise do movimento Serviço  
Social Libertário, a partir de suas publicações. Tal movimento emerge na rede social Facebook,  
no ano de 2016, sob o lema “combate ao comunismo” e pelo fim do serviço social politizado.  
Comparecem no discurso deste grupo propostas como a defesa da Reforma da  
Previdência, a defesa da PC 95 (que congela os gastos públicos por vinte anos), bem como  
pautas de costumes, tais como criminalização do aborto. Silveira (2019) indica ainda que esse  
grupo se destina a disseminar ideias de segmentos de direita no país, tais como Instituto  
Milenium, Instituto Von Mises Brasil os quais se constituem em aparelhos privados de  
hegemonia, cuja função é a elaboração e difusão de ideologias, principalmente as ideias de  
intelectuais conservadores como Ludwig Von Mises e Milton Friedman.  
216  
Em suas sínteses, Silveira (2019, p. 26) indica que esta tendência sinaliza “uma unidade  
eclética entre a perspectiva de restauração do conservadorismo na profissão e, as visões de  
mundo disseminadas pelas elites econômicas, desde 1980, e expostas mais incisivamente na  
última década”. Este discurso se organiza compilando aportes filosóficos conservadores da  
25  
Conforme análises de Alvaro Bianchi (Zambello; Silva; Di Carlo, 2021), desde a década de 1980 Olavo de  
Carvalho faz associações ao pensamento de Gramsci e à trajetória do Partido dos Trabalhadores, sobretudo  
tendo em vista sua ampliação política e eleitoral no país. No contexto mais recente, antes de sua morte em 2023,  
se constituía como intelectual da nova direita brasileira. Em 1994, Olavo de Carvalho lançou um livro contra  
Gramsci – ANova Era e a Revolução Cultural: Fritjof Capra & Antonio Gramsci, designando-o como o “profeta  
da imbecilidade”. Desde então, termos como “gramscismo” “cultura gramscista” ou dominação gramscista da  
cultura” têm sido utilizados no discurso da direita.  
Libertas, Juiz de Fora, v. 25, n. 1, p. 204-222, jan./jun. 2025. ISSN 1980-8518  
A ofensiva conservadora ao pensamento de Antonio Gramsci e o Serviço Social brasileiro  
escola austríaca, bem como valores religiosos e são evocadas para uma crítica global da direção  
profissional.  
Portanto, é possível localizar as tendências antimarxistas e anticomunistas (“marxismo  
cultural e Gramscismo”) no interior do Serviço Social em grupos denominados “Serviço Social  
Libertário”. Em relação a este grupo, pode-se tematizar criticamente alguns eixos de seu  
discurso. Segundo as elaborações deste, a adoção da teoria social de Marx como direção  
intelectual e teórica da profissão é considerada como uma posição “maniqueísta”, pois, segundo  
seus argumentos, não se teria espaço para outras teorias. Este argumento é falacioso, se  
considerarmos que durante a formação profissional os alunos/as de Serviço Social se defrontam  
com as diferentes tradições teóricas das ciências sociais.  
Na mesma direção, os adeptos do marxismo cultural “denunciam” o “policiamento  
ideológico” e o que denominam de “a praga do politicamente correto”, promovendo um  
discurso que visa a divisão da categoria profissional, gerando a ideia de que não haveria respeito  
aos “diferentes grupos existentes na categoria”. No interior dessa crítica, há uma equivocada  
noção de hegemonia que não corresponde àquele presente nas elaborações gramscianas e são  
expressões da influência de Olavo de Carvalho na “denúncia” contra a “revolução cultural  
gramcista”. Para este grupo, haveria um “pensamento hegemônico” que não permitiria a  
liberdade de expressão ou ainda “uma falsa hegemonia”. Este debate remete à assimilação da  
noção de hegemonia com direção social presente no Serviço Social brasileiro, desde a  
Renovação Profissional, a qual é legatária da tradição gramsciana e influencia a categoria desde  
os anos de 1980. Compreendemos Hegemonia como nos ensina o pensador sardo, ou seja, como  
direção intelectual e moral, constituindo-se como uma categoria dialética que conecta o  
momento econômico e o momento político, que une as esferas da estrutura e da superestrutura.  
Os elementos até aqui expostos nos levam a retomar o pressuposto inicial que a referida  
crise econômica tem se constituído em um cenário propício para uma ofensiva ideológica e  
teórica de cariz conservador, que se amplia ao nível mundial, retomando velhos discursos como  
o anticomunismo, o antimarxismo, o anti-intelectualismo, bem como a neutralidade política e  
que estas tendências se observam no Serviço Social, através do questionamento à dimensão  
política da profissão (projeto ético político) e na crítica à adoção do marxismo como  
perspectiva teórica hegemônica.  
217  
Concordamos com Mota e Rodrigues (2020, p. 7) que nos últimos 40 anos a profissão  
de Serviço Social “avançou na elaboração de uma cultura política e profissional crítica,  
desempenhando um papel intelectual significativo, no sentido gramsciano”. Assim, os  
determinantes que explicam a reedição de tendências profissionais do passado, como a que  
Eliana Andrade da Silva  
tratamos neste artigo, podem ser considerados, a partir da detonação de um movimento  
ideopolítico irracionalista e da agudização da crise orgânica atual. Estes elementos, na  
particularidade do Serviço Social, fazem surgir segmentos cujos discursos são marcadamente  
anti-intelectuais e pragmáticos, os quais reivindicam a neutralidade política, a hipervalorização  
da empiria, reduzindo a profissão ao saber fazer). Observa-se nestes segmentos o anti  
esquerdismo, o antimarxismo e o anticomunismo, a recorrência aos valores confessionais, além  
de defesa da sociedade de mercado. Salta aos olhos a aceitação acrítica das modalidades de  
ensino à distância, na formação profissional, e de “novas” formas de atuação profissional, sob  
patamares de precarização e exploração desta força de trabalho assalariada, sem que haja  
resistências políticas a estas determinações. Nesse sentido, concordamos com Mota e Rodrigues  
ao identificarem que estas expressões ideológicas presentes na atualidade.  
Se complementam e se amalgamam em diversas ideologias, teorias e práticas  
que, além daqueles traços de unidade já destacados no âmbito da profissão,  
confluem para a negação do marxismo, a despolitização da intervenção  
profissional e o combate à laicidade do Serviço Social brasileiro (Mota;  
Rodrigues, 2020, p. 10).  
Assim, os novos contornos do embate de ideias no Serviço Social apontam para a  
dialética de afirmação/negação das sínteses elaboradas pela categoria, a partir dos anos 1980,  
especialmente sobre a questão da hegemonia com direção social, bem como da manutenção do  
legado marxiano/gramsciano no seio profissional. Estes embates se observam desde os anos de  
1990, mas a forma e o conteúdo assumem novos contornos, mantendo como ponto de  
continuidade o traço antimarxista. Ou seja, se expressa como uma  
218  
ofensiva contra o projeto ético-político do Serviço Social que se expressa de  
um novo modo: público, aberto e direto, explicitamente avesso à tradição  
teórica marxista  
e
à
cultura profissional laica  
e
progressista,  
emblematicamente marcada pela virada de 1979 (Mota; Rodrigues, 2020, p.  
9).  
O atual embate hegemônico é determinado pelo avanço do neoliberalismo, do  
irracionalismo, da financeirização, pelo avanço do ensino à distância, pela precarização do  
trabalho profissional e, destacadamente, pelo papel das redes sociais como mecanismos de  
difusão de ideologias. Aqui neste processo, as novas formas de atuação dos intelectuais  
conservadores e dos aparelhos privados de hegemonia fornecem os novos contornos da batalha  
de ideias que se trava no tempo presente, como já analisado por Gramsci em seus escritos.  
Diante deste cenário podemos compreender as formas pelas quais as tendências  
irracionalistas26 avançam na sociedade, contribuindo para que os intelectuais conservadores  
26  
Em termos históricos, o irracionalismo reaparece no período que compreende a Primeira Guerra Mundial e a  
derrota do nazismo (1945) e volta à cena no pós-segunda guerra no contexto da guerra fria, dado os “riscos” e  
Libertas, Juiz de Fora, v. 25, n. 1, p. 204-222, jan./jun. 2025. ISSN 1980-8518  
A ofensiva conservadora ao pensamento de Antonio Gramsci e o Serviço Social brasileiro  
fragmentem as dimensões objetivas e subjetivas, autonomizando esta última o que se revela  
na produção e reprodução de “sentimentos” em relação às experiências concretas da vida em  
sociedade, além da criação de mitos e falsas noções, tais como gramscismo e marxismo cultural.  
De forma mediatizada e, guardadas as devidas particularidades, essas investidas  
irracionalistas chegam ao Serviço Social de distintas formas e os segmentos críticos da  
profissão passam a enfrentar os embates ideológicos, políticos e teóricos com segmentos e  
perspectivas de matriz antiesquerdista, antimarxista e anticomunista. Para enfrentar este avanço  
conservador, os setores críticos da profissão, têm resgatado os acúmulos teóricos e políticos  
alcançados nas últimas décadas, buscando substrato na fecunda tradição marxista,  
especialmente no legado gramsciano, para responder ao tempo presente e suas condicionantes.  
Assim, a profissão de Serviço Social mantém a tradição crítica e segue atenta às armadilhas  
contemporâneas, sem recair em equívocos reducionistas e simplificadores do real. Por fim,  
resgatamos as prospecções elaboradas por Paulo Netto (1996), ao indicar o aprofundamento da  
diferenciação profissional, indicando algumas linhas de desenvolvimento: a) manter-se a  
continuidade da vertente de Intenção de Ruptura baseada na tradição marxista; b) registro de  
vertente de cariz tecnocrático, herdeira da perspectiva modernizadora em vigor entre 1960-  
1970; c) a persistência de vertentes ligadas a um tipo de conservadorismo tradicionalista nos  
moldes da reatualização do conservadorismo; d) emersão de vertentes neoconservadoras de  
matriz pós-moderna; e) emergência de vertentes aparentemente radicais, inspiradas em um  
anticapitalismo romântico com apelo a valores religiosos.  
219  
A realidade contemporânea indica que as disputas hegemônicas presentes no serviço  
social colocam na ordem do dia o desafio de manter o legado da Intenção de Ruptura ambiente  
no qual o pensamento de Antonio Gramsci se insere. Portanto, a ofensiva sobre o pensamento  
do referido autor, sob a forma de antimarxismo, presente nas vertentes opostas à direção  
estratégica, abre espaço para as vertentes conservadoras, sejam aquelas fundadas na ótica  
liberal, seja aquelas marcadas por um conservadorismo moral e religioso. De forma geral, a  
tarefa intelectual e política é manter as conquistas e o legado da história sem ceder espaços aos  
“perigos do comunismo. Portanto, este é o espírito do tempo presente que se amplia na sociedade, produzindo  
impressões, sensações, sentimentos e afetos que, em um processo de autonomização, se descolam da  
materialidade dos fatos e de ênfase na esfera subjetiva, produzindo ambivalência: segurança e angústia. Portanto,  
se a atual fase do capitalismo é marcada por uma intensa crise estrutural, os sentimentos e afetos produzidos  
tendem a expressar angústia, medo, insegurança, ódio, entre outros sentimentos. Estas tendências se verificam  
na elaboração dos intelectuais em tempos de crise capitalista, de forma que estes podem experimentar, diante do  
real, uma sensação de “angústia”, ou uma sensação de “segurança”. E, de acordo com isso, elaborarão,  
proposições filosóficas preponderantemente irracionalistas ou pseudorracionalistas (Coutinho, 2010, p. 62).  
Eliana Andrade da Silva  
mitos que a contemporaneidade insiste em construir para apagar o passado de lutas e conquistas  
que essa categoria trouxe até aqui.  
Considerações finais  
A trajetória de análise neste artigo inicia com a observação da realidade de que, no atual  
cenário de crise orgânica do capital, novas tendências se observam nas relações entre os grupos  
sociais, na forma de produzir a riqueza social e na superestrutura da sociedade.  
Assim, caminhamos orientados pelo pressuposto que a referida crise econômica tem se  
constituído em um cenário propício para uma ofensiva ideológica e teórica de cariz  
conservador, que se amplia ao nível mundial, retomando velhos discursos como o  
anticomunismo, o antimarxismo, o anti-intelectualismo, bem como a neutralidade política.  
Estas tendências se observam no Serviço Social, através do questionamento à direção social  
estratégia da profissão (projeto ético político) e na crítica à adoção do marxismo como  
perspectiva teórica hegemônica.  
Neste embate hegemônico atual observamos a movimentação de grupos sociais e  
intelectuais conservadores (ativistas, professores, jornalistas, padres, militares), cujo ponto de  
convergência é a batalha contra o marxismo cultural objeto de disputa elaborado pelas novas  
direitas que se alastram dos Estados Unidos para todo o globo. Percorremos o trajeto deste mito  
fundante que dá o tom do discurso dos grupos dirigentes na batalha cultural, visando ampliar  
seu domínio e direção. Um projeto econômico liberal que se esconde atrás de um discurso de  
costumes, de comportamentos e de valores tradicionais. Assim, a burguesia, ao implantar a  
austeridade econômica e fiscal e destruir direitos sociais, o faze com apelo à família, à pátria e  
a Deus.  
220  
A guinada do mundo à direita também se expressa no serviço social, atingindo setores  
estudantis e profissionais. A profissão, como partícipe da sociedade, recebe as influências do  
momento de regressividade histórica. Estes influxos têm sido mapeados pelos intelectuais  
críticos, que encontram no Serviço Social libertário, e suas concepções liberais e conservadoras,  
exemplos destes reflexos sobre a profissão, alterando as noções de sociedade, de economia e de  
cultura. A influência da tradição marxista na profissão é o núcleo central do embate  
hegemônico, criticado fortemente por esses segmentos, tendo como “interlocutores” de  
Gramsci, Ludwig von Mises, Milton Friedman e Olavo de Carvalho.  
Neste embate, iniciamos por não aceitar os termos marxismo cultural e gramcismo, pois  
foram elaborados pelos conservadores para desqualificar as elaborações do comunista sardo  
Antonio Gramsci. Nos colocamos firmemente no campo crítico, de onde podemos obter os  
Libertas, Juiz de Fora, v. 25, n. 1, p. 204-222, jan./jun. 2025. ISSN 1980-8518  
A ofensiva conservadora ao pensamento de Antonio Gramsci e o Serviço Social brasileiro  
estratos da filosofia da práxis para manter o legado da Intenção de Ruptura e seguir como  
intérpretes da hegemonia, conforme salienta Adriano (2020) e, mais ainda, como legatários do  
processo de renovação profissional, que ao passar pelos abalos da disputa hegemônica, segue  
aprofundando o diálogo com Gramsci (2004a). Sigamos, portanto, o trajeto legado por ele:  
realizar a crítica das correntes filosóficas existentes, tecendo inclusive, uma crítica aos costumes  
da época, utilizando o método filológico com seus opositores, dando-lhes, como ensinou o  
autor, expressão teórica, mas sobretudo política, dos reais interesses econômicos-sociais que  
representam nesta disputa.  
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Gestão social no Brasil de 1988 a 20211  
Social Management in Brazil from 1988 to 2021  
Maria Suelen Santos*  
Mariana de Ávila Santos**  
Resumo: O presente artigo tem como objetivo  
promover uma breve reflexão teórico-histórica  
acerca dos antagonismos que constituem a  
Gestão Social no Brasil no período de 1988 a  
2021, a partir de produções acadêmicas no  
âmbito do Serviço Social. O materialismo  
histórico dialético corresponde ao método  
utilizado para esta análise e apreensão da  
temática através do movimento categorial. Os  
resultados apontam para a reconfiguração de  
traços históricos e políticos que reforçam o  
Abstract: This article aims to promote a brief  
theoretical-historical reflection on the  
antagonisms that constitute Social Management  
in Brazil from 1988 to 2021, based on academic  
productions in the field of Social Work.  
Dialectical historical materialism corresponds  
to the method used for this analysis and  
understanding of the theme through the  
categorical movement. The results point to the  
reconfiguration of historical and political traits  
that reinforce the rescue of conservative and  
antidemocratic practices that involve Social  
Management in Brazil after the leadership of the  
neoliberal State, especially after the  
parliamentary coup in 2016, in a recurring  
attempt to decharacterize and weaken the  
processes that encompass the materialization of  
democratic and participatory management.  
resgate de práticas conservadoras  
e
antidemocráticas que envolvem a Gestão Social  
no Brasil após a condução do Estado neoliberal,  
sobretudo, após o golpe parlamentar em 2016,  
em uma recorrente tentativa de descaracterizar  
e fragilizar os processos que englobam a  
materialização da gestão democrática  
participativa.  
e
Palavras-chaves: Gestão social; Democracia;  
Keywords: Social management; Democracy;  
Neoliberalismo.  
Neoliberalism.  
Introdução  
Para compreendermos a estruturação da Gestão das políticas sociais no Brasil pós  
Constituição Federal de 1988, consideramos fundamental apreendê-la a partir da dinâmica  
histórica, econômica, política e social, como aspectos determinantes do processo de transição  
1
Esta produção constitui-se como parte da pesquisa decorrente do Trabalho de Conclusão de Curso (TCC)  
intitulado Gestão Social no Brasil: contradições para sua consolidação após a Constituição Federal de 1988.  
* Universidade Federal de Sergipe. E-mail: maria.suellem@gmail.com  
** Universidade Federal de Sergipe. E-mail: avilamaris3@gmail.com  
DOI: 10.34019/1980-8518.2025.v25.47718  
Esta obra está licenciada sob os termos  
Recebido em: 08/03/2025  
Aprovado em: 12/06/2025  
Maria Suelen Santos; Mariana de Ávila Santos  
democrática e seus desdobramentos na trajetória de conquistas que se regulamentaram na  
Constituição de 1988.  
Esse processo se deu sob o protagonismo da classe trabalhadora, do movimento popular  
e social2 e dos vários segmentos sociais na luta por direitos e pela participação da sociedade  
civil no planejamento e gestão das políticas sociais de forma participativa, descentralizada e  
municipalizada, conforme regulamentação legal. Entretanto, como veremos depois, o  
redirecionamento econômico e político do país, a partir de 1990, avançará contrariamente à  
maioria dos avanços democráticos constitucionais, através das transformações decorrentes da  
reestruturação produtiva, financeirização e condução do Estado sob o direcionamento  
neoliberal (Netto; Braz, 2012).  
O Estado neoliberal se constitui no Brasil com Collor, em 1990, agudiza-se no governo  
FHC, posteriormente, no governo Lula e Dilma e, sobretudo, após o golpe de 2016 e o governo  
Bolsonaro, tendo em vista garantir as condições gerais para a restauração dos lucros do  
capitalismo. Para isso, colocará à disposição do grande capital o orçamento e recursos públicos,  
sob discursos vazios de responsabilidade corporativa baseados em estratégias de marketing  
social, conforme sinaliza Silva (2013).  
É possível compreender que a Gestão Social foi/é e será impactada de maneira direta  
com a subordinação da política social à política econômica, e no contexto do neoliberalismo,  
terá grande limitação com a intensificação da desobrigação Estatal. “As propostas de  
focalização e privatização alimentaram a pobreza, fenômeno estrutural, sócio histórico e não  
conjuntural, e acirram as desigualdades sociais” (Wanderley, 2013, p. 21).  
224  
Importante ressaltar que os espaços democráticos se constituem como locais de  
conquista, em que o maior objetivo é a participação dos diversos setores da sociedade junto ao  
Estado para elaboração, definição e controle das políticas sociais. Porém, talvez o maior  
obstáculo seja vencer as antigas práticas de gestão participativa e descentralizada, devido à “[...]  
tradição centralizadora e autoritária que sempre marcou o Estado brasileiro impingiu, nas  
agências governamentais, um padrão de gestão completamente independente da sociedade e  
atrelado ora aos ditames da burocracia, ora aos interesses dos detentores do poder” (Rocha,  
2009, p. 54).  
2
Os movimentos sociais, camponeses e operários se constituem nas raízes da Gestão Social, com objetivos de  
democratização das relações sociais e cidadania através da busca do “[...] desenvolvimento de processos  
decisórios, auto e congestionados, participativos e coletivizados” (Wanderley, 2013, p. 19).  
Libertas, Juiz de Fora, v. 25, n. 1, p. 223-246, jan./jun. 2025. ISSN 1980-8518  
Gestão social no Brasil de 1988 a 2021  
Gestão social no Brasil de 1988 a 2004  
A entrada da década de 1980 no Brasil contextualiza a conjuntura socioeconômica  
daquele momento a partir de vários aspectos. Um destes pode ser destacado a partir do que  
Behring (2003, p. 131) traz em sua obra, isto é, “[...] tem-se um aprofundamento das  
dificuldades de formulação de renda, não só no Brasil, mas no conjunto da América Latina,  
bem como são encontrados elementos para pensar a condição da democracia no continente”.  
Outro aspecto trata-se da dívida externa, que mesmo tendo sido contraída pelo setor  
privado, por pressão do Fundo Monetário Internacional (FMI), acabou sendo socializada com  
o setor público (Behring,2003). Como consequência, a referida autora aponta o aprofundamento  
das consequências regionais provenientes da crise da dívida na década de 1980: “[...] o  
empobrecimento generalizado da América Latina, especialmente no seu país mais rico, o Brasil;  
a crise dos serviços sociais públicos; o desemprego; a informalização da economia; o  
favorecimento da produção para exportação em detrimento das necessidades internas”  
(Behring, 2003, p. 133).  
Importante falar também das contratações de créditos que antes possuíam juros fixos e  
passaram a ter juros flutuantes (Behring, 2003). Behring (2003, p. 136) afirma que “[...] após a  
crise da dívida, diante da possibilidade de colapso financeiro internacional, impõe-se o discurso  
da necessidade dos ajustes e dos planos de estabilização em toda região”. No Brasil, essa  
estabilização não teve tanta eficácia e ocasionou, segundo ela “[...] ao longo desses anos, a  
média da inflação foi de 200%, acompanhado do agravamento da fragilidade financeira do setor  
público e do comportamento defensivo dos agentes privados” (Behring, 2003, p. 137).  
Os anos 1980 marca a entrada da crise do regime ditatorial, tendo como uma das razões,  
a crise do desenvolvimentismo no contexto da crise capitalista internacional, e a partir daí ganha  
visibilidade e ampliação do processo de redemocratização no país, influenciado pela  
organização dos trabalhadores, dos movimentos sociais e diversas instituições da sociedade.  
Após embates políticos, a exemplo do movimento das “Diretas Já”, é realizada a eleição  
indireta, sendo eleito para assumir a presidência Tancredo Neves, que faleceu antes da posse,  
assumindo a presidência da Nova República o vice, José Sarney (Santos, 2012).  
225  
Com isso, restabelece-se o Estado democrático de direito no Brasil. Na sequência,  
instala-se a Assembleia Constituinte, a qual se formou de “[...] uma arena de disputas e de  
esperança de mudanças para os trabalhadores brasileiros, após a sequência de frustrações –  
Colégio Eleitoral, morte de Tancredo Neves e falência do Cruzado” (Behring, 2003, p. 142).  
Assim, ocorre o enfraquecimento da estratégia conservadora que fora adotada para as  
políticas sociais, devido ao encerramento do regime ditatorial coincidindo com a crise  
Maria Suelen Santos; Mariana de Ávila Santos  
financeira internacional. A estratégia adotada em seguida foi reformista em um curto espaço de  
tempo, 1985 a 1988 (Fagnani, 1997).  
Diante desse contexto, a organização do movimento operário e popular assumiu um  
importante papel decisivo na condução da Assembleia Constituinte e também na definição de  
algumas pautas, como “[...] reafirmação das liberdades democráticas; impugnação da  
desigualdade descomunal e afirmação dos direitos sociais; reafirmação de uma vontade  
nacional e da soberania, com rejeição das ingerências do FMI; direitos trabalhistas; reforma  
agrária” (Behring, 2003, p. 142).  
A partir das mudanças advindas com a CF de 1988 no que se refere ao padrão de  
proteção social e à Gestão Social, surgem conceitos como universalização, descentralização e  
gestão democrática em um contexto de forte mobilização e participação de movimentos sociais,  
trabalhadores, entidades e outros grupos interessados em construir um novo modelo de gestão.  
Além disso, a Seguridade Social é introduzida, compondo-se do tripé formado pelas políticas  
da previdência social, da saúde e da assistência social, esta última concebida a partir de então  
como política pública, dever do Estado e direito dos cidadãos Rocha (2009).  
A universalização ou princípio da universalidade significa, para Behring e Boschetti  
(2011), não a cobertura de direitos iguais para todos, mas a saúde como um direito universal, a  
assistência para quem dela necessitar e a previdência funcionando de acordo com lógica do  
seguro, possuindo direito a ela, quem contribuir.  
226  
A descentralização é o oposto do que acontecia no regime militar, em que os recursos  
se concentravam apenas em um setor da sociedade. “Nesse contexto, era característica central  
da gestão pública a exclusão da sociedade civil do processo de formulação das políticas  
públicas, da implementação dos programas e do controle da ação governamental” (Diniz, 1996  
apud Rocha, 2009, p. 44).  
Com a descentralização, “[...] na década de 1990, assiste-se a um processo de  
regulamentação da gestão descentralizada das políticas públicas em diversas áreas sociais  
(saúde, educação, assistência social, etc.), com a inserção da sociedade civil, via Conselhos  
Gestores, na sua formulação e controle” (Rocha, 2009, p. 43).  
É importante salientar que esse processo da Assembleia Constituinte foi marcado por  
disputas entre os que desejavam avanços para a sociedade e os que desejavam inserir a nova  
agenda liberal no país. A CF de 1988 manifestou uma disputa de projetos antagônicos,  
manifestando avanços no que se refere aos “[...] direitos sociais, humanos e políticos [...], mas  
manteve fortes traços conservadores, como a ausência de enfrentamento da militarização do  
Libertas, Juiz de Fora, v. 25, n. 1, p. 223-246, jan./jun. 2025. ISSN 1980-8518  
Gestão social no Brasil de 1988 a 2021  
poder no Brasil [...], a manutenção de prerrogativas do Executivo, como as medidas provisórias,  
e na ordem econômica” (Behring, 2003, p. 143).  
Com os avanços constitucionais, restava esperança por parte dos movimentos sociais e  
trabalhadores na primeira disputa presidencial direta em 1989, que ocorreu entre Fernando  
Collor de Mello e Luiz Inácio Lula da Silva, vencendo o primeiro. Um ponto decisivo que  
influenciou tal resultado foi “[...] sua origem social e trajetória política advinham das classes  
possuidoras, o que lhe dava créditos de classe, num enfrentamento com um dos candidatos de  
origem operária” (Behring, 2003, p. 144).  
Configurou-se uma crise econômica e política “[...] combinando-se explosivamente à  
fragmentação da burguesia brasileira num período grávido de possibilidades de  
aprofundamento da democracia política e econômica, mas também repleto de tendências  
regressivas e conservadoras ainda fortes e arraigadas na sociedade brasileira, [...]” (Behring,  
2003, p. 144).  
A estratégia adotada para a política social nesse momento, de 1988 a 1990, foi a  
contrarreforma conservadora. Após o que foi pontuado, podemos compreender que os aspectos  
políticos, econômicos, sociais contribuíram para a implantação e adoção da contrarreforma do  
Estado através das medidas neoliberais (Behring, 2003). Antes, porém, é importante situar  
brevemente a dinâmica capitalista mundial.  
227  
Após uma fase de onda longa expansiva, que vai do pós Segunda Guerra até final dos  
anos 1960 e início dos 1970, marcada por crescimento econômico e altas taxas de lucros  
compensadoras, conforme Netto e Braz (2012) a partir dos anos 1974-1975, os “anos dourados”  
caminham para o seu fim e assim o capital entra em uma onda recessiva em que taxas de lucro  
e crescimento entram em uma fase decrescente.  
O capitalismo monopolista, agora em um novo estágio, denominado de capitalismo  
contemporâneo, assume três estratégias para se restaurar da crise então instaurada, a saber: a  
reestruturação produtiva, a financeirização da economia e a adoção da ideologia neoliberal  
(Netto; Braz, 2012).  
A reestruturação produtiva ocorre com as alterações no padrão produtivo com a  
introdução da produção flexível que passa a assumir o lugar da produção fordista adotada nos  
“anos dourados”. O padrão de acumulação fordista se baseava na eletromecânica, tendo a  
esteira rolante como uma de suas grandes expressões. A organização do trabalho fundamentava-  
se nos princípios tayloristas, com clara divisão entre concepção e execução, dentre outros  
pontos. A produção e o consumo eram de massa e o mercado era regido pela oferta. Em função  
da dinâmica da acumulação do período e da elevada taxa de lucro e crescimento, havia pleno  
Maria Suelen Santos; Mariana de Ávila Santos  
emprego e relações de trabalho menos precárias, com garantia de direitos para vários segmentos  
da classe trabalhadora, em um contexto de organização e mobilização dos trabalhadores por  
meio dos sindicatos (Harvey,1992).  
A estratégia de desconcentrar a indústria torna a produção desterritorializada,  
transferindo indústrias para diversas localidades ao redor do globo, facilitando o aumento da  
exploração do trabalhador em virtude, principalmente, da escassa ou fraca organização da classe  
trabalhadora em vários países, baixos salários etc. A incorporação de novas tecnologias  
contribuiu ainda mais para uma menor necessidade de trabalho vivo (Netto; Braz, 2012),  
agravando o quadro de desemprego e subemprego e fragilizando as formas de organização dos  
trabalhadores, ademais do aprofundamento da precariedade das condições e relações de  
trabalho.  
A respeito da financeirização, observa-se que ela vem como uma nova forma de fluxo  
econômico através de transações na esfera da circulação, que “[...] tornaram-se sob todos os  
sentidos hipertrofiadas e desproporcionais em relação à produção real de valores tornaram-se  
dominantemente especulativas” (Netto; Braz, 2012, p. 244).  
A terceira estratégia da ofensiva capitalista refere-se ao plano político-ideológico, com  
a mudança na configuração do Estado, que de natureza intervencionista, de corte social em  
vários países, no contexto do fordismo, assume o formato neoliberal.  
228  
Segundo Behring (2003, p. 129) “[...] o neoliberalismo em nível mundial configura-se  
como uma reação burguesa conservadora e monetarista, de natureza claramente regressiva,  
dentro da qual se situa a contra-reforma do Estado.” Na particularidade do Brasil, a  
contrarreforma assume uma lógica “[...] cujo sentido é definido por fatores estruturais e  
conjunturais externos e internos, de forma integrada” (Behring, 2003, p. 129).  
O neoliberalismo, para assegurar os objetivos do capital, busca, segundo Netto e Braz  
(2012, p. 239) “[...] romper com as restrições sociopolíticas que limitam a sua [do capital]  
liberdade de movimento”. Desta forma, características como processo de contrarreforma(s) e  
privatização foram adotadas de maneira a diminuir o papel do Estado em sua função econômica,  
de regulamentação e garantia de direitos (Netto; Braz, 2012). Com a adoção do neoliberalismo  
no Brasil em 1990 muitos dos avanços constitucionais regridem, os direitos sociais são  
mercantilizados, gerando consequências para a sua materialização através das políticas sociais  
e, portanto, para os processos de gestão dessas políticas.  
A legitimação dos direitos sociais se concretizou através da luta dos movimentos sociais,  
sindicais e populares no período de transição democrática nos anos 1980, que se deu devido às  
consequências do período ditatorial e sua herança desastrosa no campo econômico, político,  
Libertas, Juiz de Fora, v. 25, n. 1, p. 223-246, jan./jun. 2025. ISSN 1980-8518  
Gestão social no Brasil de 1988 a 2021  
ideológico e social com o aprofundamento da dívida externa do país. Essa realidade  
impulsionou aos brasileiros uma organização e efervescência política capazes de render  
resultados positivos, ao menos legalmente, com a Constituição Cidadã.  
A cidadania atribuída ao povo brasileiro lhe permite uma proteção social garantida pelo  
Estado a partir de uma perspectiva democrática de direito, que deve ser materializada através  
das políticas sociais. Nessa perspectiva, a gestão dessas políticas parte do mesmo pressuposto  
e tem como fundamento o interesse da coletividade na condução de todo processo no que se  
refere à gestão dos direitos sociais.  
O Estado, sob os ditames das agências multilaterais, refuncionaliza-se. Além da  
intervenção “mínima” do Estado no aspecto social, assume, também, a regulação da economia  
e passa operacionalizar junto ao  
[...] setor privado, políticas sociais emergenciais, focalizadas  
e
assistencialistas, visando garantir as taxas de acumulação do capital e mitigar  
as expressões da “questão social” através de controle da força de trabalho e do  
atendimento de necessidades mínimas dos “clientes” dos serviços sociais  
(Castelo, 2013, p. 244).  
De acordo com Valle e Leite (2018) esse contexto propicia uma forma de “sociabilidade  
associal. Realidade contraditória em relação à gestão participativa, por exemplo, que se  
destaca como uma forma de gestão elencada na Constituição Federal de 1988, e tem sua  
implementação a partir de 1990 com a descentralização político-administrativa e o processo de  
municipalização das políticas, porém, em meio aos rebatimentos provocados pelas medidas  
neoliberais que invadem a sua lógica no que se refere à participação social nas decisões e  
controle das políticas sociais, e da mesma maneira no processo de gestão destas políticas.  
Rocha (2009) destaca em sua análise uma gestão descentralizada, participativa e,  
portanto, democrática das políticas públicas que alcança todos os níveis da gestão  
administrativa (municipal, estadual, federal), cujo objetivo é democratizar a gestão pública a  
partir da articulação política dos conselhos nos processos de definição, formulação, fiscalização  
e controle das ações dessas políticas. De acordo com o autor, a nova configuração de Gestão  
das políticas sociais é legitimada a partir da Constituição Federal de 1988, e consolidada na  
década de 1990 com a descentralização político-administrativa e municipalização das políticas  
públicas, para assim, superar a burocratização estatal e hierarquização excessiva das decisões.  
Como visto acima, os principais atores da participação social estão representados pelos  
Conselhos Gestores3. Para dar exemplos na esfera federal, temos os Conselhos das três  
229  
3 “Instituídos em âmbito federal, os Conselhos Gestores passaram a ser obrigatórios em todos os níveis de governo,  
a par da exigência do repasse de recursos da esfera federal para os estados e municípios. Proliferaram-se, então,  
no país, na forma de arranjos institucionais, podendo ser temáticos, porque ligados a políticas sociais específicas  
Maria Suelen Santos; Mariana de Ávila Santos  
principais políticas que compõem a Seguridade Social: Conselho Nacional de Saúde (CNS),  
Conselho Nacional da Assistências Social (CNAS) e Conselho de Previdência Social (CNPS).  
A saúde foi a primeira política social a criar e institucionalizar a participação popular através  
de conselhos. Isso se deu graças ao Movimento pela Reforma Sanitária, que teve como resultado  
a XIII Conferência Nacional de Saúde, em 1986 e assim, a criação do Sistema Único de Saúde  
(SUS) (Rocha, 2008).  
As políticas da Seguridade Social passaram e passam por ameaças e retrocessos, o que  
influencia na atuação dos Conselhos. Rocha (2008) aponta que o SUS já sofreu várias tentativas  
de modificações voltadas para sua redução (focalização), a previdência social sofre ataques  
desde os avanços que foram promulgados na Constituição de 1988 como a causa do déficit  
público e consequentemente da inflação.  
Já a assistência social, para Pereira (2006), é ameaçada desde que foi concebida como  
política pública, porém o processo neoliberal em curso no país contribuiu para que  
permanecesse com a imagem de caridade, ajuda e favor durante alguns anos até a aprovação da  
LOAS, o que sofreu algumas mudanças, embora não tenha acabado.  
Alguns desafios se apresentam nestes espaços de participação social, visto que com a  
adoção das medidas neoliberais por parte dos governos brasileiros a partir dos anos 1990, as  
sucessivas contrarreformas contribuem nesse processo. Além disso, esses espaços acabam se  
tornando um local autoritário e de manipulações, pois, “Nos Conselhos Gestores, Estado e  
sociedade estão representados paritariamente, mas não estão livres de manipulações e  
divergências, caracterizados que são pela lógica da defesa dos interesses particularistas” (Gohn,  
2002 apud Rocha, 2009, p. 53).  
230  
De acordo com Wanderley (2013), ao Estado resta a tarefa de assumir seu papel como  
regulador, e à sociedade, o controle social para garantir seus direitos. “[...] a experiência da  
gestão participativa sugere novos temas na agenda pública, imprime a conquista de novos  
direitos e o reconhecimento de novos sujeitos, sinalizando a construção de uma nova cidadania  
e de uma outra cultura política” (Rocha, 2009, p. 50).  
Wanderley (2013) compreende a Gestão Social como um conjunto de processos que se  
constitui a partir do planejamento, organização, execução e avaliação de projetos, serviços,  
bens, programas, benefícios e políticas sociais, ou seja, são ações públicas desenvolvidas pelo  
(saúde, assistência social, criança e adolescente, etc.) ou deliberativos, porque suas atribuições não se restringem  
à formulação de sugestões ou encaminhamento de demandas, mas abrangem, sobretudo, a decisão das políticas  
públicas. Em comum têm a composição paritária entre governo e sociedade, pois se constituem por representantes  
da sociedade civil e da esfera governamental, e a autonomia em relação ao governo, apesar da vinculação a órgãos  
públicos” (Gohn, 2001; Tatagiba, 2002 apud Rocha, 2009, p. 52).  
Libertas, Juiz de Fora, v. 25, n. 1, p. 223-246, jan./jun. 2025. ISSN 1980-8518  
Gestão social no Brasil de 1988 a 2021  
Estado. A autora situa a diferença entre política pública e Gestão Social da seguinte forma:  
política pública, como “[...] uma ação desenvolvida pelo Estado, seu regulador, e Gestão Social,  
como a gestão das ações públicas” (Wanderley, 2013, p. 22). A autora relata que nos últimos  
anos houve uma ampliação da discussão acerca da Gestão de políticas públicas, e, também a  
gênese de cursos em Universidades em relação à formação de gestores sociais criando a função  
de gestor de políticas públicas no serviço público. Desta forma, cabe conhecer mais um pouco  
os primeiros sinais da discussão de Gestão Social no Brasil e em que contexto ela surge.  
Maia (2005, p. 02) destaca o movimento contraditório da Gestão Social como processo  
determinado social e historicamente a partir de 1990 no contexto brasileiro sob a perspectiva  
de projetos antagônicos, o “[...] desenvolvimento do capital e desenvolvimento da cidadania”.  
A afirmação da autora em relação ao contexto mencionado parte da compreensão do  
reordenamento do capital no sentido de recuperar as taxas de lucro na fase de crise estrutural  
do capitalismo a partir de medidas engendradas pelo neoliberalismo que já se encontravam em  
andamento no contexto internacional, e no Brasil são estruturadas como solução para conter a  
alta inflação a partir do governo de Fernando Collor de Mello em 1990, e aplicadas de forma  
mais efetiva sob o comando de Fernando Henrique Cardoso, em 1995.  
Wanderley (2013) cita a formulação da gestão pública imbricada nesse processo de  
construção e orientação da Gestão Social nos países periféricos a partir dos anos 1990, sob a  
égide de organismos internacionais, e destaca os debates em Congressos realizados pelo Centro  
Latino-americano de Administração e Desenvolvimento (CLAD). A autora enfatiza que o  
Estado priorizou neste momento as privatizações, contrarreformas, política de austeridade  
fiscal, ações focalizadas e organizações filantrópicas, políticas públicas compensatórias,  
programas de transferência de renda, apelo à responsabilização social e, portanto,  
desresponsabilização estatal, entre outros. Nesse contexto, segundo ela, é atribuída à gestão  
pública uma concepção gerencial das políticas públicas com delegação da responsabilidade para  
o Terceiro Setor e ampliação deste com a inserção do mercado, passando as políticas sociais à  
categoria de mercadorização. “Por esse meio, a gestão governamental articula-se à iniciativa  
privada e a organizações do chamado ‘Terceiro Setor’, como um ‘novo modelo de gestão da  
área social” (Iamamoto, 2009, p. 22).  
231  
O Terceiro Setor tem papel fundamental no desenvolvimento dessa estratégia de “gestão  
contra o capital”, pois desobriga o Estado de sua função como regulador das referidas políticas  
sociais e o coloca como responsabilidade da sociedade civil. É a partir da atuação do Terceiro  
Setor segundo os preceitos neoliberais que se configura a desresponsabilização do Estado, e  
dessa maneira as reformas de empresas sociais e do Estado brasileiro ganham força, o que  
Maria Suelen Santos; Mariana de Ávila Santos  
facilita o desenvolvimento do capital abrindo espaço para que o processo de privatização se  
concretize (Maia, 2005).  
Podemos compreender a Gestão Social não apenas em seu caráter técnico de gerência  
administrativa de serviços e programas sociais, mas também pela qualidade desses serviços e  
programas ofertados, de forma a garantir a efetivação das políticas sociais em que o Estado é  
“[...] a autoridade reguladora das ações públicas” (Carvalho, 2012, p. 42). Ou seja, a Gestão  
Social possibilita um papel não apenas de executor das políticas sociais, mas também se  
preocupa em garantir que a sociedade participe dos processos de decisão e identifique se aquelas  
estão sendo executadas de forma qualitativa. Ainda segundo a autora, é na garantia das políticas  
sociais, principal objetivo da Gestão Social, que se encontram as maiores expectativas na  
redução das desigualdades, enfrentamento da pobreza e oportunidade de inclusão.  
A “gestão contra o social”4, assim definida por Maia (2005), ganha força à medida que  
os ideais neoliberais são impostos a partir da reconfiguração do Estado de acordo com os  
objetivos do capitalismo. Assim, as ações que deveriam ser consideradas como de  
responsabilidade pública, adquirem cada vez mais o caráter de privatização, focalização e  
descentralização afastando gradativamente o papel do Estado de regulador no campo social  
(Maia, 2005). É a partir daí que movimentos de resistência são cada vez mais necessários ao  
ponto de que valores como democracia, justiça, igualdade, equidade e cidadania universal sejam  
sempre reforçados, a fim de não sucumbirem à ordem do capital, sendo possível, inclusive,  
identificar que a Gestão Social se constitui em espaço de disputas e concretização de direitos.  
Sendo assim, essa nova dinâmica econômica, política e social que se estrutura a partir  
de 1990 no Brasil, com a reconfiguração do Estado na economia, e as transformações e  
flexibilizações no mundo do trabalho, a condução dos serviços públicos através do setor de  
serviços, privatizações, desemboca na mercantilização dos direitos sociais, e as políticas sociais  
fragmentadas, focalizadas e de caráter seletivo, impulsionando a refilantropização dessas  
políticas, na generalização do individualismo, de discursos de solidariedade, responsabilidade  
social, empreendedorismo, entre outros. Esses aspectos determinam um novo contorno à Gestão  
Social divergente do pactuado na Constituição Federal de 1988, impondo-lhe condicionantes  
que afirmam o projeto hegemônico vigente.  
232  
4
Segundo Maia (2005) a “gestão contra o social” ganha esse contorno baseada nos princípios de qualificação e  
eficiência inerentes à racionalidade burguesa em relação ao do trabalho e organização do social. Essa perspectiva  
de gestão destacada pela autora é um tipo de estratégia da tecnologia e técnicas instrumentais que ao sustentar o  
capital nega a cidadania.  
Libertas, Juiz de Fora, v. 25, n. 1, p. 223-246, jan./jun. 2025. ISSN 1980-8518  
Gestão social no Brasil de 1988 a 2021  
Gestão social no Brasil de 2005 a 2021  
No período que antecedeu à construção de uma gestão pública democrática e  
participativa, implementada na Constituição Federal de 1988 a partir da efervescência dos  
movimentos sociais no momento da redemocratização do país, a Gestão das políticas sociais  
configurava-se fundamentada na centralização em torno da União no que se refere à formulação  
dessas políticas, às decisões e questões financeiras restando às outras esferas apenas a execução,  
o que possibilitava de forma contundente a intervenção de agentes institucionais, das entidades  
e organizações a partir de práticas de caráter conservador em relação a todos os processos que  
envolvem a gestão e as políticas sociais.  
Compreende-se ainda, que o resultado da transição democrática não diz respeito  
somente à conquista de tais direitos, mesmo que sob a ótica burguesa, mas também ao  
envolvimento daqueles que requisitam esses direitos inseridos no processo de gestão e controle  
das políticas que materializam os referidos direitos sociais, sendo essa percepção crucial na  
apreensão dos fundamentos que norteiam a dinâmica econômica e, portanto, a dinâmica social  
das políticas sociais e sua gestão. A entrada de novos atores sociais na cena política requisitando  
a participação direta da sociedade civil na implementação, deliberação e fiscalização das  
políticas sociais e os limites que perpassam a representação política no sistema eleitoral  
promoveram “[...] reflexões sobre a democracia participativa e deliberativa, assentada na idéia  
da transformação do cidadão num ator político e consciente, que supera o papel de mero  
expectador e pensa comunitariamente pela constituição de espaços públicos, como fóruns,  
conselhos, orçamento participativo, etc.” (Rocha, 2009, p. 50).  
233  
Os resultados contrapostos aos previstos na Constituição Federal de 1988, oriundos da  
política macroeconômica do governo Fernando Henrique Cardoso (FHC) nos 1990,  
propiciaram a partir do contexto sócio-político em que se encontrava naquele momento o país,  
possibilidades de uma virada de perspectiva de direção política no ano de 2002 com a esquerda  
na administração executiva do Brasil. As eleições para a presidência do país apresentavam aos  
brasileiros o início de uma transição político-econômica desamarrada dos novos moldes  
organizacionais e tecnológicos até então estruturados, inclusive, em relação à organização  
sociotécnica do trabalho. Antunes (2004) salienta sobre a década anterior, que após uma  
[...] forte desertificação econômica e social, nas eleições presidenciais em  
2002, o quadro encontrava-se muito mais favorável para uma vitória das  
esquerdas no país, depois de uma década de equívocos decorrentes da  
aceitação acrítica do Consenso de Washington pelo governo FHC (Antunes,  
2004, p. 134).  
Maria Suelen Santos; Mariana de Ávila Santos  
Diante disto, o operário Luiz Inácio Lula da Silva (Lula) foi eleito presidente do Brasil  
nas eleições de 2002, na defesa de propostas que objetivavam “[...] representar os anseios  
populares, em todos os seus segmentos, enfim, a totalidade dos que almejam mudanças  
substantivas e reais, como o MST e outros movimentos sociais, o sindicalismo combativo  
presente na CUT e nos partidos e movimentos de esquerda” (Antunes, 2004, p. 134). Todavia,  
os desafios estavam postos, entre eles, o enfrentamento em relação à degradação salarial, o  
desemprego, a realização de uma reforma agrária, o impulsionamento do desenvolvimento  
científico e tecnológico brasileiro, e decretação de oposição ao predomínio do capital  
financeiro, colocando-se a favor da produção que viesse a suprir as necessidades sociais dos  
brasileiros, sendo estes, para o autor, os maiores problemas a serem confrontados na nova  
política econômica alternativa, caso o objetivo do governo Lula estivesse no rompimento do  
modelo neoliberal.  
Todavia, na atuação do seu governo, Lula continuou e acirrou a política econômica  
adotada pelo governo FHC, sob o direcionamento de organismos internacionais através do  
ajuste fiscal, da utilização de recursos públicos para a aquisição de superávit primário no  
processo de valorização de valor, das privatizações de estatais, contrarreformas, focalização e  
seletividade das políticas sociais, política creditícia, o que, inclusive, possibilitou o acesso ao  
crédito, e, dessa forma, o acesso da classe trabalhadora a bens de consumo,  
234  
Em relação ao superávit primário, Behring e Boschetti (2016) enfatizam que se trata de  
um mecanismo de transferência de recursos do orçamento da seguridade social para o  
orçamento fiscal para ser utilizado no pagamento da amortização da dívida pública por meio da  
Desvinculação das Receitas da União (DRU). “No período de 2002 a 2004, foram desviados do  
Orçamento da Seguridade Social R$ 45,2 bilhões que deveriam ser utilizados para as políticas  
da previdência, saúde, assistência social e poderiam ampliar direitos relativos a essas políticas”  
(Behring; Boschetti, 2016, p. 166). As autoras destacam, dessa forma, a relação entre política  
social e econômica, e, portanto, as implicações desta no orçamento da seguridade social,  
consequentemente na Gestão Social dessas políticas, impondo-lhe desafios para sua  
concretização.  
Além disso, a seguridade social brasileira possui caráter regressivo por conta das fontes  
de financiamento, em que a classe trabalhadora assume a maior parcela dos impostos seja por  
meio da contribuição sobre a folha de salário ou sobre o consumo. As autoras citam três fontes  
de acordo com o princípio da diversidade das bases de financiamento: “1) orçamento da União,  
Estado, DF; 2) contribuições sociais; e 3) receita de concursos prognósticos. As contribuições  
sociais, por sua vez, subdividem-se em duas: a) do empregador sobre a folha de salário, a receita  
Libertas, Juiz de Fora, v. 25, n. 1, p. 223-246, jan./jun. 2025. ISSN 1980-8518  
Gestão social no Brasil de 1988 a 2021  
e o faturamento e lucro; e b) a do trabalhador e demais segurados” (Behring; Boschetti, 2016,  
p. 171-172).  
Entretanto, torna-se pertinente salientar que no governo Lula ocorreu uma ampliação de  
ações progressistas desenvolvidas por meio de programas no campo social brasileiro,  
especialmente no que concerne às ações afirmativas. Entre as ações realizadas no referido  
governo estão: o desenvolvimento de programas sociais que objetivavam reduzir a fome e a  
miséria com a unificação dos programas de transferência de renda por meio do Bolsa Família  
destinado às famílias abaixo da linha de pobreza, e a promoção de ações afirmativas no ensino  
superior e técnico ampliando o acesso de estudantes nessa modalidade de ensino. Contudo, a  
mercantilização das políticas sociais, principalmente em relação aos recursos orçamentários da  
seguridade social, fundamento do Sistema Universal de Proteção Social brasileiro, continuaram  
sendo alicerce para a rentabilidade do capitalismo.  
O plano de governo formulado e executado no período em que Lula esteve na  
presidência do país, e em seguida a pretensão de continuidade do mesmo plano pela sua  
sucessora, a presidenta Dilma Rousseff, foi o que mais se “aproximou” do direcionamento  
social-democrata abordado na Constituição Federal de 1988, o que envolve a ratificação do  
aspecto reformista burguês, mas não se pode negar que o campo social passou a ter um espaço  
na agenda do governo ao se comparar ao governo de FHC. No entanto, as ampliações  
progressistas que aconteceram não provocaram mudanças estruturais na vida dos trabalhadores,  
já que as ações do Estado não se voltaram para questionar os fundamentos dos fenômenos que  
determinam e originam os problemas sociais, mas sim reconfigurar-se para alavancar o aumento  
das taxas de lucros do capital (Marques; Mendes, 2007).  
235  
Observa-se que o acesso por parte dos trabalhadores aos direitos sociais se deu nesse  
momento sob uma perspectiva de assistencialismo, focalização, seletividade, ou seja, o acesso  
não se concretiza enquanto direito dos usuários e dever do Estado, mas com caráter de  
clientelismo, benemerência e paternalismo e de desresponsabilização estatal. Dessa forma, à  
classe trabalhadora restava-lhes a vivência da descaracterização dos direitos sociais a partir do  
modelo econômico e político que se instaura desde 1990, além da responsabilização da maior  
parte do financiamento da seguridade social a partir de uma política onerosa de impostos  
regressivos.  
Inclusive, torna-se fundamental compreender uma das problemáticas postas à Gestão  
Social, especificamente no que diz respeito à compreensão acadêmica em relação ao seu  
conceito em meados da década de 1990, que, de acordo com Tenório e Teixeira (2021, p. 5)  
“Apesar de no início dos anos 1990 o conceito de Gestão social já ter surgido, ainda não fazia  
Maria Suelen Santos; Mariana de Ávila Santos  
parte da ribalta acadêmica, o que começa a ocorrer quando ele contracena com o conceito de  
gerência social”. Nesse mesmo período, as políticas sociais se configuraram associadas à  
concepção de políticas compensatórias nos países da América Latina quando a partir da adoção  
de forma total ou parcial das recomendações do “Consenso de Washington” (Tenório; Teixeira,  
2021). Ainda, de acordo com os autores, ao participarem no ano de 1997 em Washington, D.C.,  
de um curso intitulado Curso de Directivos en Diseño y Gestión de Políticas y Programas  
Sociales nas dependências do Instituto Interamericano para o Desenvolvimento Social (INDES)  
do BID (Banco Interamericano de Desenvolvimento), destacam que a gerência social era o  
conceito atribuído à gerência das políticas e programas sociais nos países da América Latina.  
O conceito de Gestão Social estava articulado a um processo gerencial que se dava de  
maneira partilhada e com o envolvimento de diversos sujeitos sociais, sendo assim, a Gestão  
Social não era considerada a mesma coisa que gerência social de acordo com alguns espaços  
da academia brasileira. Os referidos autores ratificam e apontam a distinção em relação ao  
significado atribuído à Gestão Social5 e à Gestão Estratégica6, que para eles era uma “[...]  
distinção que não fazia parte do vocabulário daqueles que utilizavam a expressão ‘gerência  
social’ como importante à implementação de políticas compensatórias. [...] havia uma confusão  
conceitual, pois alguns de seus textos utilizam as expressões ‘estratégia’ e ‘gestão estratégica’  
como instrumentos da gerência social” (Tenório; Teixeira, 2021, p. 6).  
236  
Essa confusão em relação aos conceitos podia estar relacionada ao fato da palavra  
estratégia compor o vocabulário persistente nos diversos assuntos àquela época, ou ainda à  
utilização inconsciente dos referenciais teóricos, ou então o desconhecimento por parte dos  
autores que produziam sobre gerência social a respeito das publicações que já estavam  
acontecendo no Brasil sobre a Gestão Social.  
A partir da entrada do terceiro setor em cena ocorre o aparecimento de diversas  
interpretações acerca do conceito de Gestão Social nas Instituições de Ensino Superior (IES).  
Algumas de fato compreendiam o conceito de Gestão Social adverso ao de Gestão Estratégica  
5
“A gestão social é a tentativa de ‘substituir a gestão tecnoburocrática, monológica, por um gerenciamento  
participativo, dialógico, no qual o processo decisório é exercido por diferentes sujeitos sociais. Em seu processo  
de afirmação, a verdade só existe se todos os participantes da ação admitem sua validade, isto é, a verdade é a  
promessa de consenso racional, não é uma relação entre o indivíduo e sua percepção de mundo, mas sim um acordo  
alcançado por meio da crítica intersubjetiva” (Di Giovanni; Nogueira, 2015 apud Tenório; Teixeira, 2021, p. 13).  
6 “Gestão estratégica seria ‘um tipo de ação social utilitarista, fundada no cálculo de meios e fins e implementada  
mediante a interação de duas ou mais pessoas, na qual uma delas tem autoridade formal sobre a(s) outra(s). Por  
extensão, esse tipo de ação gerencial seria aquele no qual as organizações empresariais privadas determinariam  
suas condições de funcionamento e o Estado se imporia à sociedade por meio de processos eminentemente  
fundados na técnica, configurando intervenções de caráter tecnocrático’’ (Di Giovanni; Nogueira, 2015 apud  
Tenório; Teixeira, 2021, p. 13).  
Libertas, Juiz de Fora, v. 25, n. 1, p. 223-246, jan./jun. 2025. ISSN 1980-8518  
Gestão social no Brasil de 1988 a 2021  
e outras consideravam o conceito de Gestão Social voltado apenas à prática no terceiro setor  
(Tenório; Teixeira, 2021). “Esse contraponto privilegia, de modo consciente ou inconsciente,  
práticas gerenciais que contribuem para aumentar a distância entre o Estado e a sociedade,  
exercitando uma ‘nova gestão pública’ caracteristicamente pré-burocrática” (Tenório; Teixeira,  
2021, p. 12).  
Além da problemática levantada em torno do significado e, portanto, do conceito de  
Gestão Social, Wanderley (2013) aponta os desafios institucionais na particularidade da Gestão  
Social contemporânea, como: a interdisciplinaridade7, pois segundo ela, nas equipes e prevalece  
o caráter multiprofissional nos espaços ocupacionais; a intersetorialidade8 em relação à  
dificuldade de operacionalização total da ação pública, já que há predominância de  
fragmentação da materialização das políticas sociais e não ultrapassam a política setorial. A  
intersetorialidade deve ser um objetivo a ser alcançado, considerando que as políticas possuem  
caráter interdependente, porém não é atingida apenas pela boa vontade dos sujeitos envolvidos,  
mas sim, a partir de uma ação política envolvendo mecanismos estratégicos por parte da gestão.  
Inclusive, há uma probabilidade do surgimento de várias formas de resistência devido a disputas  
entre os setores e divergência de interesses; e a territorialização9 das políticas sociais exige um  
formato de gestão com perspectiva descentralizada e territorializada, tornando necessária, dessa  
forma, uma reflexão crítica e qualificada da realidade social que se objetiva intervir.  
A autora chama a atenção para os sistemas de informação (bancos de dados nacionais,  
estaduais e municipais das políticas locais), como ferramenta primordial para a confecção de  
diagnóstico social e territorial, e para a Gestão das políticas públicas em todas as etapas.  
Wanderley (2013) sugere que o conhecimento acerca da Gestão Social deve atingir também  
outras áreas de conhecimento, e que a articulação e o diálogo devem ser ampliados com o intuito  
237  
7 “[...] a interdisciplinaridade necessita ser pensada a partir de uma totalidade (crítico-histórico-dialética), na qual  
são necessárias condições objetivas, sociais, históricas, para sua concretude. Não há como determinar uma forma  
do interdisciplinar, visto que ela se desenvolve em particularidades da história social, na materialidade, não é  
conhecimento absoluto, mas princípio norteador a uma realidade” (Jantsch; Bianchetti, 1995 apud Jorge; Pontes,  
2017, p. 185).  
8
“A intersetorialidade na gestão púbica [SIC] significa adotar uma decisão racional no processo de gestão, cuja  
aplicação pode ser positiva ou não. [...] Não pode ser considerada antagônica ou substitutiva da setorialidade. A  
sabedoria reside em combinar setorialidade com intersetorialidade e não em contrapô-las no processo de gestão.”  
(Sposati, 2006 apud Wanderley, 2013, p. 26).  
9 “O território tem fragilidades, vulnerabilidades, porém, tem também potencialidades, fortalezas, que devem ser  
conhecidas e reconhecidas. [...] O primeiro passo está no reconhecimento dessa realidade, o que implica em  
conhecer quem são e como vivem as famílias em seus territórios e onde estes se situam. Esse conhecimento embute  
as seguintes questões: Como se relacionam os indivíduos com o território onde vivem? Quais são os atores, os  
sujeitos e os serviços presentes nesse espaço? Que vínculos os cidadãos desenvolvem no seio de suas famílias e  
dos grupos e redes dos quais participam, em seu território de vivência, em sua cidade? Existem serviços públicos  
nesses territórios? Estes são acessíveis? Quais são as dinâmicas de vida nos territórios? Enfim, o que se busca é  
uma leitura qualificada da realidade social onde se pretende intervir” (Wanderley, 2013, p. 27-28).  
Maria Suelen Santos; Mariana de Ávila Santos  
de garantir o acesso dos cidadãos aos seus direitos a partir da transparência e participação dos  
sujeitos sociais e políticos. “A participação na esfera pública é importante pelo conteúdo  
pedagógico, principalmente para a construção de uma ética social que contribua  
significantemente para o reordenamento da gestão pública e propicie a passagem de uma cultura  
de favores a uma cultura de direitos” (Rocha, 2009, p. 49).  
Para além desses desafios institucionais em relação à Gestão Social, torna-se pertinente  
apreender aqueles provenientes estruturalmente, e especificamente no governo de Lula, a partir  
das mudanças na configuração das políticas sociais e na gestão dessas políticas no referido  
cenário político e econômico, e, portanto, compreender as determinações postas  
consequentemente no campo intelectual e de execução da Gestão das políticas sociais que não  
são divergentes de períodos anteriores quando se considera o papel do fundo público na fase do  
capitalismo contemporâneo, permitindo captar os fundamentos dessa dinâmica que possibilita  
“[...] caracterizar a existência de um processo crescente de estagnação e perda de financiamento  
da política social brasileira no contexto do ajuste fiscal e constatar que não houve qualquer  
mudança de rota, a partir da posse de um governo de centro-esquerda, em 2003” (Behring;  
Boschetti, 2016, p. 174).  
Ao se falar em Gestão Social das políticas públicas, não podemos deixar de associá-la  
ao fundo público, que é um componente importante na garantia dos direitos sociais (Salvador,  
2012). Dessa forma, o seu papel principal pode ser estabelecido em assegurar que existam  
recursos suficientes para o financiamento das políticas sociais. É através do orçamento público,  
que os recursos oriundos do fundo público são aplicados para a garantia dos direitos sociais.  
Porém, ao mesmo tempo em que esse fundo público se torna legalmente um componente  
principal para a garantia desses direitos, serve para a reprodução do capital a partir da lógica  
burguesa. “No capitalismo contemporâneo, o fundo público exerce uma função ativa nas  
políticas macroeconômicas, sendo essencial tanto na esfera da acumulação produtiva quanto no  
âmbito das políticas sociais” (Salvador, 2012, p. 5).  
238  
Silva (2013) destaca um aspecto interessante acerca da Gestão Social como campo de  
disputa pelo fundo público, enfatizando que a partir de uma perspectiva crítica10, propositiva e  
estratégica por parte dos profissionais atuantes nesse espaço é possível lutar pelo acesso ou  
ampliação a direitos sociais. “A gestão social ocupa-se da reprodução da vida social  
10 A Gestão Social a partir de uma perspectiva crítica, de acordo com Silva (2013), parte de um planejamento,  
organização, administração, ou seja, de um conjunto de processos sociais compromissado com um projeto  
societário que visa valores democráticos, e de justiça social, com o intuito de possibilitar ampliação do acesso aos  
direitos sociais por parte dos cidadãos e, consequentemente, melhores condições em relação ao atendimento às  
demandas dos usuários.  
Libertas, Juiz de Fora, v. 25, n. 1, p. 223-246, jan./jun. 2025. ISSN 1980-8518  
Gestão social no Brasil de 1988 a 2021  
respondendo, direta ou indiretamente, às exigências da esfera da produção. Tendo como objeto  
a provisão de bens e serviços, privilegia o equacionamento de demandas sociais, opondo-se à  
lógica mercantil” (Silva, 2013, p. 217).  
É importante sinalizar que, em relação às políticas sociais, tanto no governo Lula quanto  
no administrado por Dilma, de 2011 a 2016, aquelas foram instituídas e desenvolvidas a partir  
de um duplo caráter no que se refere à possibilidade de melhores condições de vida da  
população atingida pela pobreza no Brasil devido ao programa Bolsa Família e também à  
valorização do salário mínimo, entretanto, “[...] a via ou o instrumento eleito para que essa  
melhora ocorresse foi a renda ou o salário, mantendo-se, em geral, sem alteração as estruturas  
seculares que geram a pobreza e a desigualdade no país” (Marques; Ximenes; Ugino, 2018, p.  
544). Já em relação à educação superior, houve uma ampliação do acesso por meio de cotas  
para estudantes provenientes de escolas públicas, de baixa renda, negros indígenas nas  
instituições públicas, porém “[...] nunca foi tão expressivo o domínio do setor privado lucrativo  
e de baixa qualidade na oferta educacional, assim como sua capacidade de influência na política  
educacional” (Marques; Ximenes; Ugino, 2018, p. 538-539).  
A política econômica de Dilma Rousseff num primeiro momento se estruturou voltada  
para a “[...] redução de taxas de juros e tarifas de energia elétrica; desonerações tributárias e  
crédito subsidiado; desvalorização cambial e protecionismo industrial seletivo; concessões de  
serviços públicos para a iniciativa privada” (Bastos, 2017, p. 3), atendendo no seu primeiro  
mandato aos interesses da Federação das Indústrias do Estado de São Paulo (FIESP) No  
segundo mandato, aprimorou o ajuste fiscal e monetário buscando atender aos anseios de grupos  
empresariais que eram contrários à modalidade de política econômica instituída em seu  
mandato passado. Sendo assim,  
239  
[...] a mudança do cenário econômico depois da crise financeira global  
dificultou a conciliação dos interesses de diferentes frações da burguesia e que  
as reviravoltas da política econômica do primeiro governo Dilma Rousseff  
contribuíram para reforçar tanto a desaceleração cíclica quanto o  
descontentamento empresarial (Bastos, 2017, p. 3).  
Além da perda de popularidade na base de apoio do Partido dos Trabalhadores (PT), a  
tentativa de enfraquecimento do PMDB na base parlamentar do governo, houve também a  
ampliação de conflitos sociais e políticos, e enfraquecimento do apoio popular com a Operação  
Lava Jato, “justificando” dessa maneira o impeachment contra Dilma, ou melhor, a instauração  
de um golpe no ano de 2016, tendo à frente o vice-presidente do país Michel Temer. “Tal evento  
deu início a um processo de redução dos espaços democráticos que são caros à construção de  
uma gestão nos marcos do conceito de gestão social” (Tenório; Teixeira, 2021, p. 4).  
Maria Suelen Santos; Mariana de Ávila Santos  
No primeiro governo de Lula e no governo de Dilma Rousseff até o golpe de 2016, sem  
desconsiderar as contradições dos direcionamentos econômicos e políticos executados em seus  
mandatos, ocorreram tentativas de operacionalizar uma gestão democrático-deliberativa de  
modo intraorganizacional tanto em relação às políticas públicas, como a participação dos atores  
sociais através do controle social nos municípios, a atuação dos Conselhos Gestores  
Municipais, de agentes econômicos, do poder público, e outros arranjos institucionais que  
envolviam outras esferas de governos Tenório e Teixeira (2021).  
Os autores sinalizam direcionamentos progressistas em relação aos mecanismos de  
participação social no âmbito do governo federal destacando como as conferências de saúde,  
educação, segurança alimentar e assistência social possibilitaram a concretização do redesenho  
das respectivas políticas públicas. Destacaram a aprovação da Lei de Acesso à informação (Lei  
n. 12.527/2011) como resultado da Conferência Nacional de Transparência e Controle Social  
gestada a partir de uma grande mobilização social propiciando a ampliação da democracia e  
acesso a direitos no governo de Dilma Rousseff, e ainda a tentativa da presidenta na criação da  
Política Nacional de Participação Social (PNPS) através do Decreto n. 8243/2014, cujo objetivo  
partia da intenção de criar uma legislação para institucionalizar os processos participativos,  
porém a proposta foi anulada na Câmara dos Deputados após Dilma vencer Aécio Neves no  
segundo turno das eleições.  
240  
Os autores chamam a atenção para a reação de uma maioria de conservadores  
parlamentares na Câmara dos Deputados contrários aos espaços democráticos um pouco antes  
do acontecimento do golpe de 2016, tendo como resultado a acentuação de consequências  
regressivas para a Gestão das políticas sociais, para a participação social no orçamento e nas  
políticas públicas. Sendo assim, o golpe de 2016 “[...] transformou-se numa ameaça para as  
conquistas democráticas e para a Gestão Social, uma vez que o espaço democrático no sentido  
amplo, não apenas direito de voto, é vital para que os diferentes interesses sociais expressem  
suas demandas e preferências” (Tenório; Teixeira, 2021, p. 8).  
De acordo com Boschetti (2020a), desde o golpe de 2016 vem acontecendo uma redução  
do investimento público nas políticas sociais, e especificamente, na Seguridade Social. A autora  
aponta que do período de 2016 a 2018, sob a condução de Michel Temer, ocorreu uma redução  
de quase 10% dos orçamentos da política de saúde, 3,3% na política de assistência social e 0,5%  
na previdência social. Enfatiza ainda, as contrarreformas realizadas no âmbito do trabalho, da  
previdência social, a lei de terceirização, a Emenda Constitucional 95 que estabelece o teto para  
os gastos sociais, a ampliação da Desvinculação de Receitas da União (DRU) de 30% de  
supressão do orçamento da Seguridade Social, os cortes na educação, habitação, cultura, desde  
Libertas, Juiz de Fora, v. 25, n. 1, p. 223-246, jan./jun. 2025. ISSN 1980-8518  
Gestão social no Brasil de 1988 a 2021  
a instituição do golpe (Boschetti, 2020b). O aprofundamento desses rebatimentos para as  
políticas sociais e para os espaços deliberativos e de controle social se dá a partir de 2019 com  
a centralização do poder no governo de Jair Messias Bolsonaro, “[...] existe por parte do  
governo federal empossado em 2019 uma clara tentativa de extinguir espaços democráticos ou  
mesmo sufocá-los, tirando-lhes recursos” (Tenório; Teixeira, 2021, p. 12).  
Além de uma crise política no Brasil, a partir de março de 2020, o mundo vivencia uma  
crise pandêmica causada pelo SARS-CoV-2 que já provocou no Brasil mais de 600 mil mortes,  
e que na particularidade brasileira se dá concomitantemente a um cenário de crise econômica  
estrutural desde 1970, e uma crise política, desde o golpe de 2016 com Michel Temer, agravada  
atualmente com o governo Bolsonaro. Dessa maneira, a pandemia acontece em um contexto  
em que as políticas sociais estavam/estão sendo desmontadas, fragilizadas e destruídas no  
pouco que já garantiam, e dessa forma, a pandemia agudiza o desemprego estrutural, os  
processos de expropriação das condições de trabalho e condições de vida dos trabalhadores, do  
fundo público para o capital que acontecem desde o governo FHC por conta de medidas  
econômicas de ajuste fiscal permanente (Boschetti, 2020b).  
De acordo com a autora, o governo de Jair Messias Bolsonaro caracteriza-se como  
reacionário, de extrema-direita e autoritário, ratificando características de um governo  
tecnocrático e autocrático, ou seja, assume marcas que configuraram o regime militar no país  
contrapondo-se a toda e qualquer forma de organização política com participação da sociedade,  
sem uma intervenção efetiva em favor do povo brasileiro por parte dos poderes legislativo e  
judiciário. Ainda, segundo ela, o governo adota uma postura negacionista em que a  
rentabilidade econômica sobressai e prevalece em detrimento das necessidades sociais e da  
proteção à vida. Boschetti (2020b) chama a atenção para as medidas tomadas na pandemia que  
escapam do sentido de proteção dos trabalhadores, mas que protegem o capital, entre elas estão,  
as medidas provisórias 927 e 936 que possibilitam a redução dos salários e a suspensão dos  
contratos de trabalho.  
241  
Boschetti (2020b) destaca outra medida nesse período, o orçamento de guerra, em que  
cento e vinte bilhões estavam previstos para ser transferidos aos estados e municípios,  
entretanto, somente sessenta bilhões seriam de transferência financeira, sendo apenas dez  
bilhões para a saúde e assistência social, e desses dez bilhões, sete seria para os estados e três  
para os Municípios. Segundo a autora, é importante salientar que são os municípios que têm  
uma maior demanda de prestação de serviços nas áreas de saúde e assistência social, ou seja,  
além de disponibilizar um valor insuficiente, o orçamento de guerra tem o objetivo de salvar o  
capital, já que o governo utiliza o fundo público para comprar os títulos dos bancos que não  
Maria Suelen Santos; Mariana de Ávila Santos  
escoam nesse momento de pandemia, tendo como resultado um efeito dominó com o aumento  
da dívida pública e, consequentemente, amplia mais ainda a usurpação de recursos públicos do  
fundo público para transferir para o capital.  
A autora enfatiza o aprofundamento do desmonte das políticas sociais com a adoção  
dessas medidas durante a pandemia, sendo as políticas da seguridade social as que tiveram um  
maior quantitativo de recursos retirados antes e durante a pandemia, destaca que a assistência  
social tem uma despesa obrigatória com o Benefício de Prestação Continuada (BPC), porém  
tirando essa realidade garantida, ainda que com perda de recursos, no ano de 2020 a assistência  
só possuía 50% do orçamento comparado com o ano de 2012, e a saúde perdeu nos últimos três  
anos 10% do seu orçamento, inclusive foi a política que mais perdeu recursos desde o golpe até  
2019, e a assistência já perdeu nesses últimos quatro anos mais de 3 e 4% de recursos. Segundo  
ela, no Fundo Nacional de Assistência Social o BPC fica com 89 a 95% dos recursos, e o  
Sistema Único de Assistência Social (SUAS) não ultrapassa 10% desse total. A previdência  
perdeu menos recursos porque os benefícios são obrigatórios e vinculados sendo assim  
garantidos. Aponta ainda que nem o SUAS nem a saúde aparecem como despesas obrigatórias.  
Dessa forma, em relação às medidas tomadas durante a pandemia, o que foi ancorado de recurso  
novo com o orçamento de guerra não recupera o que as políticas de saúde e assistência já  
perderam.  
242  
As mudanças delineadas ratificaram/ratificam a reprodução de retrocessos não somente  
em relação aos direitos sociais, mas às políticas sociais, e também na sua gestão, pois são  
rebatimentos que determinam diretamente a configuração de sua forma, as condicionalidades  
para o planejamento e organização de ações na área social e direcionamentos impostos à Gestão  
Social desconectados do acesso aos serviços públicos a partir de uma perspectiva de direito, de  
participação e controle social, e de tantos outros princípios que definem o interesse coletivo,  
tudo isso em favorecimento da defesa e proteção do interesse privado.  
Compreendemos como o antagonismo do modo de produção capitalista que tem como  
fundamento a produção socializada e a riqueza privadamente apropriada vai se reproduzir em  
todos os processos da vida social, e nesse caso é evidente. Não é possível nesse tipo de  
organização social efetivar-se uma igualdade estrutural entre todos os homens quando o  
objetivo principal é o lucro, o que pode de fato se concretizar é uma ampliação do acesso a  
direitos, ou emancipação política, a depender da luta, correlação de forças, e representatividade  
dos trabalhadores nos espaços políticos por melhores condições de vida. No mais, os discursos  
de igualdade de direitos são vazios e servem para ocultar a essência contraditória das relações  
sociais. Dessa maneira, a Gestão Social inserida na totalidade da vida social, a partir dessa  
Libertas, Juiz de Fora, v. 25, n. 1, p. 223-246, jan./jun. 2025. ISSN 1980-8518  
Gestão social no Brasil de 1988 a 2021  
lógica encontra entraves para ser realizada de forma efetiva, conforme o compromisso social  
legalmente posto com a CF de 1988, o que nos permite destacar a compreensão de Maia (2005,  
p. 2) quando menciona “gestão contra o social.”  
É a partir dessa dinâmica de embates entre projetos societários antagônicos que se insere  
a Gestão das políticas sociais elencadas formalmente, e aqui chamamos a atenção para o caráter  
contraditório das políticas sociais e, portanto, da gestão destas, e a função que exercem na  
sociedade burguesa como forma sistemática de atender às necessidades da classe trabalhadora,  
mas também são utilizadas como mecanismos estratégicos de controle, integração e coesão  
através da racionalização da sociedade burguesa na reprodução social da força de trabalho da  
classe trabalhadora no processo de acumulação e valorização de valor para o capital.  
Considerações finais  
Percebe-se, do presente estudo, que foi no processo de consolidação dos direitos sociais  
e da inserção da participação de atores sociais na formulação, gestão, implementação e controle  
das políticas sociais, que a Gestão Social ganhou materialidade formal no processo de  
democratização dos direitos supracitados com a Constituição de 1988. Tornou-se resultado da  
efervescência dos movimentos sociais, ainda que considerando todos os problemas oriundos  
que se contrapõem a essa tendência de democratização, participação e controle social, inclusive  
no que concerne a práticas autoritárias e paternalistas, “[...] pois, na verdade, a participação dos  
cidadãos no processo de gestão dos bens públicos de uma sociedade rompe com o modelo de  
centralização do poder, característico dos regimes autoritários” (Rocha, 2009, p. 49).  
Infere-se o esfacelamento regressivo dos anseios democráticos que uma vez elencados  
na constituição cidadã, através de um projeto reformista, esbarram e ao mesmo tempo  
encontram a faceta mais perversa de um projeto econômico político e ideológico estatal sob os  
moldes neoliberal. Trata-se do terreno fértil para tentar ou imprimir seu caráter antiparticipativo  
na realidade concreta, por meio da realização de contrarreformas, especificamente trabalhista e  
da previdência, da extorsão do fundo público e da correlação de forças, contrapondo-se e  
desconstruindo toda e qualquer mínima forma de participação e controle por parte dos atores  
sociais, fragilizando a Gestão das políticas sociais, já que “[...] o processo dialógico é a tônica,  
desde sempre, do conceito de gestão social” (Tenório; Teixeira, 2021, p. 8-9).  
243  
Desse modo, para a possibilidade de endossar a defesa da materialização de uma gestão  
participativa, torna-se necessário o fortalecimento político em torno do Estado democrático,  
todavia, compreendendo-se a sua natureza de classe para o entendimento de seus limites. O fato  
da implementação da gestão participativa está regulamentada nos aparatos legais não garante  
Maria Suelen Santos; Mariana de Ávila Santos  
que a gestão democrática aconteça, a exemplo dos Conselhos Gestores. E por isso, não perder  
de vista a real motivação do Estado burguês se faz necessária. “É necessário que esse  
mecanismo constitucional seja acompanhado de uma mudança na cultura política brasileira,  
capaz de redefinir e alterar as relações entre Estado e sociedade” (Rocha, 2009, p. 55).  
Compreende-se, de forma central, a importância da luta da classe trabalhadora e dos  
movimentos sociais na disputa pela participação da Gestão das políticas sociais norteada pelo  
envolvimento dos sujeitos sociais e coletivos na luta pela defesa dos direitos, e de políticas  
universais numa perspectiva de direito. Todavia, torna-se crucial o envolvimento dos atores  
sociais e entidades deliberativas no controle social defendendo essa pauta nos espaços  
decisórios e políticos com o propósito de disputar o fundo público e dessa maneira acompanhar,  
discutir e controlar o orçamento público, pois é somente a partir de uma construção coletiva de  
ação permanente que se pode considerar a constituição e efetividade da Gestão Social. Contudo,  
para que os resultados desse processo se concretizem objetivamente, Boschetti (2020c) enfatiza  
que não pode existir disputa sem a supressão da Emenda Constitucional nº 95, pois se torna  
impossível acessar de fato os direitos e exercer uma participação democrática com o  
estabelecimento do teto de gastos e demais ofensivas neoliberais.  
O objetivo atribuído à Gestão Social na sociedade vigente tem sua função social  
norteada pela perspectiva burguesa, assim como as políticas sociais, no que diz respeito ao  
papel que exercem socialmente. Assim, consideramos a sua relevância e de uma Gestão Social  
que passam a ser garantidas legalmente sob a perspectiva de direitos, contudo, não devemos  
romantizar o capitalismo no que diz respeito à defesa e igualdade de direitos ao considerarmos  
sua dinâmica de produção e reprodução. Sendo assim, a forma como são conduzidas e  
direcionadas às políticas sociais se contrapõe ao sentido legal que é atribuído ao direito social,  
e, sem dúvidas, a Gestão Social dessas políticas, na prática, vem assegurando aos cidadãos, de  
fato, o oposto daquilo que é formalizado em relação à garantia de seus direitos.  
244  
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Proteção social na realidade brasileira:  
a assistência social em questão  
Social protection in Brazilian social formation:  
social assistance in question  
Ana Carolyna Ribeiro Sales*  
Vera Núbia Santos**  
Maria da Conceição Vasconcelos Gonçalves***  
Resumo: A formação social brasileira é  
marcada, de forma estrutural, pela relação de  
dependência com os países de capitalismo  
central e pela herança colonialista. Esses  
elementos delineiam, de maneira singular, o  
desenvolvimento capitalista e a manifestação  
das expressões da questão social na realidade  
brasileira. Tal dinâmica repercute nas políticas  
sociais, especialmente na assistência social, cuja  
estruturação reflete óbices estruturais como o  
clientelismo, o patrimonialismo e a mediação do  
favor. À luz do método materialista histórico-  
dialético, este artigo problematiza como a  
assistência social incorpora os aspectos da  
formação social brasileira em sua conformação.  
Abstract: The Brazilian social formation is  
structurally shaped by a historical condition of  
dependence on central capitalist countries and  
by its enduring colonial legacy. These structural  
determinants uniquely configure both the  
development  
of  
capitalism  
and  
the  
manifestations of the social question within the  
Brazilian context. This dynamic profoundly  
impacts social policies, particularly social  
assistance, whose institutional design reflects  
persistent structural barriers such as clientelism,  
patrimonialism, and the mediation of favors.  
Grounded  
in  
the  
historical-dialectical  
materialist method, this article critically  
examines how social assistance incorporates the  
fundamental elements of Brazilian social  
formation into its structure and functioning.  
Palavras-chaves: Assistência social; Formação  
social brasileira; Capitalismo dependente;  
Políticas sociais.  
Keywords: Social assistance; Brazilian social  
formation; Dependent capitalism; Social  
policies.  
* Universidade Federal de Sergipe. E-mail: carolynaribeirosales@gmail.com  
** Universidade Federal de Sergipe. E-mail: venus_se@uol.com.br  
*** Universidade Federal de Sergipe. E-mail: licavasconcelos@gmail.com  
DOI: 10.34019/1980-8518.2025.v25.47738  
Esta obra está licenciada sob os termos  
Recebido em: 09/06/2025  
Aprovado em: 23/06/2025  
Ana Carolyna Ribeiro Sales; Vera Núbia Santos; Maria da Conceição Vasconcelos Gonçalves  
Introdução  
A assistência social no Brasil tem se consolidado como uma política pública envolta de  
controvérsias ao longo de sua construção histórica. As origens dessas controvérsias vão além  
dessa política específica e estão profundamente enraizadas na formação social brasileira,  
caracterizada pela dependência e por uma estrutura marcada pelo legado colonialista e  
escravista. Esses fatores moldaram de forma singular o capitalismo no país, contribuindo para  
a perpetuação das desigualdades estruturais (Pastorini; Pereira, 2023) e suas repercussões no  
que tange ao acesso às políticas sociais públicas, ainda que cercadas de garantias legais.  
A formação social brasileira foi estruturada de maneira a atender aos interesses de uma  
elite que, ao longo da história, priorizou a manutenção de seus privilégios em detrimento da  
construção de uma nação democrática e comprometida com a redução das desigualdades que a  
constituía. A forma como se processou a constituição da sociedade brasileira trouxe como  
consequência a existência de uma massa da população subjugada à situação de pauperização e  
excluída dos processos decisórios, o que explica a fragilidade da noção de cidadania no país e  
determina as características particulares da questão social nessa formação específica.  
Marcada por uma trajetória pseudodemocrática e autoritária, as relações de favor e tutela  
fundamentaram as intervenções do Estado brasileiro sobre a questão social por longos anos.  
Com a instituição de um sistema de proteção social voltado para os trabalhadores formais, as  
necessidades de parte dos segmentos empobrecidos eram atendidas, inicialmente, por ações do  
que se pode caracterizar como protoformas da assistência social, conduzidas tanto por  
iniciativas privadas frequentemente de caráter filantrópico ou vinculadas ao poder dos  
coronéis quanto pelo próprio Estado, de maneira residual e descontínua. Essas práticas, no  
entanto, eram solo fértil para reprodução da cultura política enraizada em relações clientelistas  
e patrimonialistas, apresentadas sob a forma de benevolência, distanciadas do campo do direito.  
Com efeito, o processo de institucionalização da assistência social como política  
pública, após seu reconhecimento pela Constituição Federal de 1988, foi marcado por inúmeros  
desafios e se defronta, até os dias atuais, com barreiras para sua consolidação como premissa  
na construção da cidadania e da proteção social (Pastorini; Pereira, 2023). Desde o final dos  
anos 1990, essa política tem se limitado à gestão de demandas dos estratos mais empobrecidos,  
pautada em um viés residual. Sem o intuito de desconsiderar a influência das manifestações da  
crise do capital em uma economia dependente na formatação dessa política, é preciso  
reconhecer que essa tendência já estava posta pelos elementos próprios da formação da  
sociedade brasileira. Assim, considerando não ser possível abordar a especificidade da  
assistência social no Brasil sem levar em conta as determinações sociais e históricas que  
248  
Libertas, Juiz de Fora, v. 25, n. 1, p. 247-271, jan./jun. 2025. ISSN 1980-8518  
Proteção social na realidade brasileira: a assistência social em questão  
moldam o país, esse texto se propõe a refletir sobre a influência dos elementos estruturais da  
formação social brasileira na conformação da assistência social.  
Este artigo adota uma abordagem qualitativa, fundamentada no método materialista  
histórico-dialético, e resulta das reflexões originadas a partir da revisão bibliográfica realizada  
na dissertação de mestrado defendida no Programa de Pós-Graduação em Serviço Social da  
Universidade Federal de Sergipe (UFS) em 20251. Nesse sentido, o artigo estrutura-se  
considerando-se dois movimentos: no primeiro, recupera os principais aspectos da formação  
social brasileira, de modo a apreender a particularidade da questão social no país por meio de  
seus elementos fundantes; e o segundo reflete sobre o desenvolvimento da assistência social no  
país, percorrendo desde a incorporação de aspectos da formação social brasileira à sua  
consolidação como política pública, a fim de analisar suas determinações sociais e históricas.  
Colocar a assistência social em questão na atualidade exige que se retomem esses  
aspectos, a fim de possibilitar dar centralidade à relação intrínseca entre a análise da formação  
social brasileira e sua repercussão nas lutas sociais que imprimem vigor às conquistas que o  
acesso às políticas sociais traz para parcela significativa da população. E a assistência social  
não se distancia desse movimento.  
Particularidades da questão social na realidade brasileira  
249  
Na América Latina, a questão social tem sua gênese no conflito entre o capital mercantil  
europeu e a expropriação violenta dos povos originários e negros escravizados para constituição  
do sistema colonial, em um movimento de ininterrupta usurpação das riquezas latino-  
americanas pelos países europeus. Desde o processo de colonização, o continente latino-  
americano teve sua trajetória marcada por relações de dominação, exploração e dependência,  
que perpetua desigualdade e pobreza entre as classes subalternas da região. Afirmam Paiva,  
Rocha e Carraro (2010, p. 157),  
O capitalismo dependente institui – de modo sempre crescente – o pauperismo  
das massas, produzindo e reproduzindo, dessa forma, uma intensa e crescente  
exploração do trabalhador, determinando, peculiarmente, os traços da  
chamada questão social no continente latino-americano.  
Marini (2011) elucida que a dependência da América Latina decorre da forma que esta  
região se integra à divisão internacional do trabalho. O autor afirma que no continente latino-  
americano estabeleceu-se “um ‘capitalismo sui generis’, que só adquire sentido se o  
contemplamos na perspectiva do sistema em conjunto, tanto em nível nacional, quanto, e  
1 O presente trabalho foi realizado com apoio da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior  
- Brasil (CAPES) - Código de Financiamento 001.  
Ana Carolyna Ribeiro Sales; Vera Núbia Santos; Maria da Conceição Vasconcelos Gonçalves  
principalmente, em nível internacional” (Marini, 2011, p. 132). A partir de sua integração ao  
sistema mundial capitalista, afirma-se uma relação desigual, em que a economia latino-  
americana serve como instrumento para acumulação primitiva de capital nos países de  
capitalismo central, condicionando sua produção interna às necessidades do mercado externo.  
Esta dinâmica acentua ao máximo as contradições inerentes à acumulação capitalista  
em países de capitalismo dependente, como o Brasil, impondo condições degradantes à  
existência das classes pauperizadas. Além da remuneração da força de trabalho situar-se aquém  
de seu valor real, fruto da superexploração do trabalho2, nessa região nunca se configurou um  
Estado de Bem-Estar Social, diferentemente do que ocorreu nas nações europeias, o que  
também é um aspecto central da questão social na realidade latino-americana (Bezerra;  
Almeida, 2020).  
O debate em torno da questão social no Brasil requer considerar a abordagem das  
especificidades da formação social3 brasileira enquanto fatores necessários à sua compreensão,  
o que implica pensar o processo de construção e desenvolvimento do capitalismo no país. A  
necessidade de ultrapassar essa discussão em nível genérico está no fato de que não basta  
remeter às categorias gerais do modo de produção capitalista, tem-se que considerar as  
singularidades desta sociedade, que se constituem como mediações da forma particular que as  
expressões da questão social assumem na realidade brasileira. Como bem lembra Mandel  
(1982), é necessária a articulação dialética da dimensão universal, expressa pelas leis gerais da  
acumulação capitalista, com a dimensão particular, referente às formações sociais específicas.  
A constituição do capitalismo nos países centrais é marcada pela ruptura com as  
formações sociais pré-capitalistas através de revoluções democrático-burguesas. Tal processo  
representa a via clássica, conceito formulado por Lenin e recuperado por Coutinho (2011). No  
Brasil, Prado Júnior (1987) indica que a consolidação da ordem burguesa se engendrou pela via  
não clássica, em que as relações capitalistas foram introduzidas sem romper com as formas pré-  
capitalistas, se concretizando mediante conciliações entre o novo e o velho. É importante  
demarcar que a composição da burguesia se forjou através de uma aliança ainda que com  
250  
2
Marini (2011) utiliza a categoria superexploração do trabalho para mostrar como o pagamento da força de  
trabalho abaixo de seu valor — seja através da intensificação do trabalho, do aumento da produtividade sem a  
correspondente elevação dos salários, ou da compressão dos salários a patamares inferiores ao necessário para  
reprodução da força de trabalho – estão presentes nas economias dependentes como um traço estrutural para  
compensação da perda de mais-valia resultante das trocas desiguais no processo de transferência de valor da  
periferia para o centro.  
3
Emprega-se a expressão formação econômico-social (ou, simplesmente, formação social) para designar a  
estrutura econômico-social específica de uma sociedade determinada, em que um modo de produção dominante  
pode coexistir com formas precedentes (e mesmo, com formas que prenunciam elementos a se desenvolverem  
posteriormente) (Netto; Braz, 2006, p. 63).  
Libertas, Juiz de Fora, v. 25, n. 1, p. 247-271, jan./jun. 2025. ISSN 1980-8518  
Proteção social na realidade brasileira: a assistência social em questão  
conflitos entre a burguesia emergente e as classes oligárquicas tradicionais, em detrimento de  
uma associação com os “de baixo”. Ou seja, a burguesia brasileira já nasce conservadora. Nas  
palavras de Coutinho (2011, p. 144):  
No Brasil, bem como na quase generalidade dos países coloniais ou  
dependentes, a evolução do capitalismo não foi antecedida por uma época de  
ilusões humanistas e de tentativas – mesmo utópicas – de realizar na prática o  
ideal do “cidadão” e da comunidade democrática. Os movimentos neste  
sentido, ocorridos no século passado e no início deste século, foram sempre  
agitações superficiais, sem nenhum caráter verdadeiramente nacional e  
popular. Aqui, a burguesia se ligou às antigas classes dominantes, operou no  
interior da economia retrógrada e fragmentada.  
O desenvolvimento do capitalismo no Brasil guarda a particularidade da inexistência de  
um modo de produção feudal ou semifeudal na região. Aqui, o que se adaptou ao capitalismo  
foi uma colônia de exploração que inscreveu o país em uma condição dependente no quadro do  
capitalismo internacional, uma dependência inicialmente ao colonialismo e depois ao  
imperialismo, que revela o motivo de uma revolução burguesa brasileira pela via não clássica,  
conforme analisa Fernandes (1975 apud Coutinho, 2011).  
Na interpretação de Fernandes (1976), o desenvolvimento capitalista no Brasil foi  
determinado pela articulação entre dominação externa e dominação interna, que se processou a  
partir da aliança entre a burguesia estrangeira e a burguesia nacional, de modo a garantir o  
domínio das frações das classes dominantes nesse processo. Há que se registrar que essa aliança  
foi vislumbrada pela burguesia interna como forma de assegurar seus interesses, que consistia  
em controlar as massas populares e conservar seu poderio econômico e político. Coutinho  
(2011) destaca que há um ponto chave dos estudos de Caio Prado Júnior que deve somar-se às  
análises de Fernandes: a não resolução da questão agrária brasileira. De acordo com a sua  
análise, Prado Júnior (1987) considera que a manutenção da grande propriedade e da velha  
classe latifundiária seria também um dos determinantes da constituição do capitalismo  
brasileiro pela via não clássica.  
251  
No Brasil, a consolidação do capitalismo competitivo4 conservou muitas características  
do velho latifúndio, tanto que o processo de acumulação mantém uma estrutura de produção de  
bases agrárias e uma economia exportadora, em que se dão as protoformas da modernização  
capitalista. Ocorre que, na realidade brasileira, a consolidação do modo de produção capitalista  
não rompeu com os laços de dependência, ao contrário, aprofundou-os. Isso fica evidente  
4 Fernandes (1976) assinala que a partir do último quartel do século XIX, o Brasil ingressou na fase de formação  
e expansão do capitalismo competitivo, que compreende tanto o período de consolidação da economia urbano-  
comercial quanto a primeira transição industrial.  
Ana Carolyna Ribeiro Sales; Vera Núbia Santos; Maria da Conceição Vasconcelos Gonçalves  
quando se entende que a manutenção do padrão arcaico era necessária e útil para o capital  
monopolista estrangeiro, dado que  
[...] qualquer modificação profunda nessa esfera era nociva aos seus interesses  
imediatos e futuros, pois ela redundaria em modificações imprevisíveis do  
volume de excedente econômico que poderia ser drenado [...] para fora. Ora,  
era esse excedente que garantia os dois processos descritos, de formação de  
uma nova infra-estrutura para o mercado capitalista interno e de constituição  
de uma nova estrutura do sistema econômico brasileiro, ambos condicionados  
e regulados como um desdobramento de fronteiras das economias centrais.  
Para estas, portanto, suprimir a articulação inerente à superposição da  
economia urbano-comercial e da economia agrária seria o mesmo que matar  
a galinha dos ovos de ouro (Fernandes, 1976, p. 237).  
Iamamoto (2009) acentua que o processo de modernização da economia brasileira  
manteve a subordinação da produção agrícola aos interesses exportadores do mercado  
internacional, a presença de relações não-capitalistas de produção e a conservação da grande  
propriedade, elementos estes identificados na monocultura, no trabalho escravo e no latifúndio.  
Tais elementos são redimensionados e incorporados à expansão capitalista, a exemplo da  
transformação do latifúndio em empresa capitalista agrária, acompanhada da conservação do  
monopólio da terra e da expropriação dos agricultores rurais e pequenos produtores familiares,  
que, despossuídos de suas terras, se convertem em mão-de-obra assalariada disponível para a  
indústria nascente.  
252  
Segundo Marx (2013), a expropriação da terra e dos meios de produção é condição  
inerente à criação do trabalhador “livre”, próprio da organização do modo de produção  
capitalista. Na transição da sociedade escravista para a capitalista, a população negra, recém-  
liberta da escravidão, não encontrou espaço para sua inserção como força de trabalho  
assalariada no emergente mercado de trabalho “livre”, sendo lançada às margens dos processos  
produtivos, especialmente o trabalho formal. Assim, o mercado de trabalho brasileiro já nasce  
com uma população excedente formada majoritariamente por trabalhadores/as negros/as, que  
ocupam “uma grande franja marginal capaz de forçar os baixos salários dos trabalhadores  
engajados no processo de trabalho” (Moura, 1988, p. 133), desempenhando um papel  
fundamental ao desenvolvimento capitalista no Brasil.  
Evidencia-se, pois, que a consolidação do modo de produção capitalista no Brasil se faz  
em conciliação com o “atraso”, pois não implica em profundas alterações na estrutura  
socioeconômica herdada do período colonial. Contudo, assegura Fernandes (1976), tal fato não  
se revelou como obstáculo para consolidação da ordem social burguesa no país, pelo contrário,  
foi fundamental para consolidação da dominação externa e interna exercida pela burguesia e a  
manutenção do domínio político das oligarquias rurais.  
Libertas, Juiz de Fora, v. 25, n. 1, p. 247-271, jan./jun. 2025. ISSN 1980-8518  
Proteção social na realidade brasileira: a assistência social em questão  
Convém destacar que a reprodução do padrão produtivo baseado no latifúndio teve  
funcionalidade tanto no conjunto das relações capitalistas internacionais, mantendo a elevação  
das taxas de lucro dos países centrais, quanto na importância política das classes dominantes  
forjadas a partir da grande propriedade agrária, conforme afirma Santos (2012), e por este  
motivo, a consolidação da ordem burguesa não resultou em uma crise do poder oligárquico, o  
que houve de fato foi “uma transição que inaugurava, ainda sob hegemonia da oligarquia, uma  
recomposição das estruturas do poder, pela qual se configurariam, historicamente, o poder  
burguês e a dominação burguesa” (Fernandes, 1976, p. 203).  
Observa-se que “a combinação entre o forte teor conservador no plano político cultural  
das elites dirigentes e a incorporação ornamental do ideário liberal na defesa de suas atividades  
econômicas passa pelo caráter particular do liberalismo no Brasil”, como ressalta Iamamoto  
(2009, p. 32). Na formação brasileira, o liberalismo nasceu tendo como base social uma  
burguesia de tradição político-cultural conservadora. Assim, dadas as suas raízes oligárquicas  
e estamentais, a burguesia brasileira incorpora no discurso um liberalismo econômico e afirma  
nas relações internas a prática do mando e do favor, características próprias das relações de  
poder das oligarquias, o que repercute nas próprias funções do Estado.  
Nessas condições, o Estado Republicano surge dentro de uma relação ambígua, que tem  
o liberalismo como fundamento político-ideológico e o patrimonialismo como prática concreta  
(Fernandes, 1976), dada a apropriação do aparelho estatal para dominação e manutenção dos  
privilégios das classes tradicionais. Na verdade, o liberalismo no Brasil restringiu sua  
abrangência aos aspectos formais e legais, ou, como afirma Iamamoto (2009, p. 34), “não se  
constrói sobre a universalidade da figura de cidadão”.  
253  
Evidencia-se, assim, que o padrão de desenvolvimento capitalista no Brasil designado  
como uma modernização conservadora, como assinala Fernandes (1976), foi uma forma de  
assegurar o poderio das classes tradicionais, revelando a feição antidemocrática da revolução  
burguesa brasileira. O autor elucida que no país, o processo de dominação burguesa foge ao  
modelo universal, sendo caracterizada como uma “democracia restrita” – restrita às classes  
dominantes, que generaliza seus interesses de classe como se fossem interesses universais, por  
meio da mediação do Estado e seus aparelhos privados de hegemonia. Para Iamamoto (2009),  
o que se assistiu foi uma transição da democracia dos oligarcas à democracia do grande capital.  
Assim, cristaliza-se o controle estatal nas mãos dessa elite, inviabilizando a construção de uma  
estrutura democrático-burguesa, na qual “[...] a institucionalização política do poder era  
realizada com a exclusão permanente do povo e o sacrifício consciente de um estilo democrático  
de vida”, como aponta Fernandes (2009, p. 21).  
Ana Carolyna Ribeiro Sales; Vera Núbia Santos; Maria da Conceição Vasconcelos Gonçalves  
O caráter elitista e antipopular da revolução burguesa no Brasil é considerado  
determinante da questão social, uma vez que emoldura as lutas de classe no país. Há que se  
destacar o papel decisivo do Estado nesse processo, responsável por conduzir transformações  
que “evitam qualquer ruptura radical com o passado, conservando traços essenciais das relações  
sociais e a dependência ampliada do capital internacional” (Iamamoto, 2009, p. 32). Ocorre  
que, no Brasil, a modernização capitalista foi induzida por “cima” e efetivada pelas mãos do  
Estado, que, capturado pelas classes dominantes, assume a função de dirigente político dos  
processos de transformação. Ao tornarem o Estado seu centro de atuação política, as classes  
dominantes conformaram uma unidade entre os diferentes interesses das frações burguesas,  
traduzindo-os em políticas de Estado, fazendo incidir no espaço público seus interesses  
privatistas como sendo interesses da Nação, reforçando sua tradição patrimonialista, como  
elucida Santos (2012). Por isso,  
[...] o Estado nacional não é uma peça contingente ou secundária desse padrão  
de dominação burguesa. Ele está no cerne de sua existência e só ele, de fato,  
pode abrir às classes burguesas o áspero caminho de uma revolução nacional,  
tolhida e prolongada pelas contradições do capitalismo dependente e do  
subdesenvolvimento (Fernandes, 1976, p. 307).  
Nessa perspectiva, é preciso demarcar os processos de revolução passiva que  
particularizam a formação do capitalismo no Brasil. Coutinho (1999), transportando o conceito  
gramsciano de “revolução passiva”5 ao caso brasileiro, evidencia que no processo de instituição  
do capitalismo no país, as classes dominantes engendraram uma estratégia de antecipação à  
possibilidade de uma transformação “de baixo para cima”, operando mudanças parciais “pelo  
alto”, sem realizar uma transformação efetiva na estrutura de poder, o que implicou na exclusão  
das massas populares dos processos decisórios. Nesse sentido, considera-se que  
254  
[...] foi próprio da formação social brasileira que os segmentos e franjas mais  
lúcidos das classes dominantes sempre encontrassem meios e modos de  
impedir ou travar a incidência das forças comprometidas com as classes  
subalternas nos processos e centros políticos decisórios. A socialização da  
política, na vida brasileira, sempre foi um processo inconcluso – e quando,  
nos seus momentos mais quentes, colocava a possibilidade de um grau mínimo  
de socialização do poder político, os setores de ponta das classes dominantes  
lograram neutralizá-los. Por dispositivos sinuosos ou mecanismos de coerção  
aberta, tais setores conseguiram que um fio condutor costurasse a constituição  
da história brasileira: a exclusão da massa do povo no direcionamento da vida  
social (Netto, 1996, p. 18-19).  
5
O conceito de revolução passiva parece-me exato não só para a Itália, mas também para os outros países que  
modernizaram o Estado através de uma série de reformas e de guerras nacionais, sem passar pela revolução política  
de tipo radical-jacobino (Gramsci, 2002, p. 210).  
Libertas, Juiz de Fora, v. 25, n. 1, p. 247-271, jan./jun. 2025. ISSN 1980-8518  
Proteção social na realidade brasileira: a assistência social em questão  
No entanto, como causa-efeito dos processos de revolução passiva é que as classes  
dominantes operam pela prática do transformismo, em que ocorre a “assimilação pelo bloco no  
poder das frações rivais ou até mesmo de setores das classes subalternas” (Coutinho, 1999, p.  
205). É preciso demarcar que a supremacia da classe burguesa não pode assentar-se somente  
na coerção, por isso o Estado opera meios de obter o mínimo de consenso necessário, visando  
sua legitimação junto aos setores subalternos por meio do atendimento pontual de seus  
interesses, principalmente com as iniciativas relacionadas à proteção social.  
Não à toa, os ciclos de expansão das políticas sociais se combinam com os períodos  
ditatoriais (1937-1945 e 1964-1984). Outro exemplo foi a forma populista do segundo governo  
de Vargas e do governo de Juscelino Kubitschek, responsável por garantir um significativo  
consenso enquanto o Estado se empenhava em garantir as bases econômicas para expansão do  
capitalismo monopolista. Nota-se, contudo, que o modelo de populismo desse período  
enfrentava um processo de organização das classes trabalhadoras, no sentido das lutas por  
políticas sociais, conforme analisa Vieira (1985, p. 20).  
Embora o populismo ainda perdurasse muito além de 1945, aceitando as  
pressões populares e manipulando seus anseios em nome da ordem instituída,  
parece claro que as alianças partidárias experimentavam o impacto causado  
pela crescente força das reivindicações dos trabalhadores.  
Acerca dessa dinâmica, cabe pontuar a observação de Santos (2012). Para a autora, os  
processos de revolução passiva não refletem uma fragilidade das classes populares, pelo  
contrário, demonstram uma preocupação do Estado em face do reconhecimento da força desses  
setores. Além disso, embora tenham uma intenção conservadora pelas classes dominantes, tais  
processos também possuem efeitos progressistas, desencadeando, no mesmo movimento,  
mudanças de cunho reformista. Com base na interpretação de Cerqueira Filho (1982), a autora  
cita como exemplo o reconhecimento da questão social pelo Estado brasileiro na década de  
1930, que passa a ser tratada como “caso de política” – apesar do paternalismo implícito de  
maneira a assegurar a continuidade passiva da modernização capitalista, tendo em vista a  
desmobilização da classe trabalhadora.  
255  
Na sua concepção, no Brasil, o Estado foi o ator que efetivou o transformismo em nome  
dos interesses da burguesia e passa a agir como o novo coronel6, em referência ao termo  
utilizado por Iamamoto e Carvalho (1995). Com isso, a autora chama a atenção para o  
esvaziamento dos conflitos no que envolve a instituição de direitos e serviços sociais, que, sob  
6 Os famosos coronéis foram personagens centrais na formação do coronelismo, fenômeno amplamente referido  
na cultura política brasileira para designar a dependência política de setores da população rural em relação ao seu  
poder (Santos, 2012, p. 117).  
Ana Carolyna Ribeiro Sales; Vera Núbia Santos; Maria da Conceição Vasconcelos Gonçalves  
o prisma do transformismo, aparecem como se fossem concessões do Estado, o que redunda na  
“‘aparente passividade’ da classe trabalhadora, que foi historicamente debilitada em sua  
autonomia organizativa” (Santos, 2012, p. 121). Assim, entendida como uma complexa  
dialética entre conservação e modernização (Coutinho, 2012), atribui-se à revolução passiva o  
êxito do caráter conservador da modernização capitalista no Brasil.  
No entanto, Coutinho (1999) sinaliza que outro efeito dos processos de revolução  
passiva é o predomínio das formas ditatoriais em detrimento das formas hegemônicas. Faz-se  
mister destacar que na realidade brasileira “sempre venceu ou predominou o Estado forte, o  
regime de exceção, a ditadura civil ou militar, com poucos entreatos de democracia limitada,  
de cidadania tolerada” (Ianni, 2004, p. 242). No que se refere à ditadura militar iniciada em  
1964, Florestan (1976) destaca que representa o elo da consolidação do capitalismo  
monopolista no país e o apelo da burguesia ao aparato autocrático do Estado para conter a  
pressão das massas nos anos 1960 e a possibilidade de uma ampliação da participação política.  
Nesse quadro, o bloco hegemônico operou, a partir do golpe militar, uma contrarrevolução  
preventiva que foi decisiva para o fortalecimento da dominação burguesa.  
Evidencia-se, então, que o Estado teve papel central na criação de condições para o  
desenvolvimento capitalista no Brasil. Para Santos (2012), o desempenho das suas funções  
econômicas e extraeconômicas estão associadas, quase sempre, à fragilidade da dominação  
burguesa no plano econômico e à sua precoce dominância política. Deve-se considerar ainda  
um aspecto destacado pela autora referente ao protagonismo do Estado no âmbito das relações  
entre capital e trabalho na realidade brasileira. Desde as primeiras iniciativas de regulações do  
trabalho, o Estado brasileiro efetiva uma política de restrição de direitos trabalhistas que  
subjuga a classe trabalhadora à níveis de informalidade e superexploração, o que não foi  
alterado nem mesmo em contextos de forte crescimento econômico, como ocorre no período de  
industrialização dos anos 1950 e durante a ditadura militar.  
256  
Em sua análise, a autora argumenta que a formação do mercado de trabalho nacional é  
caracterizada pela condição de desemprego estrutural, restrita regulação do trabalho, alta  
rotatividade nos empregos, informalidade e baixos salários, “consolidando, assim, uma relação  
entre capital e trabalho pautada na superexploração” (Santos, 2012, p. 436). O Estado, com seu  
caráter autoritário, cumpre o papel de garantir as condições necessárias para reprodução da  
superexploração do trabalho no país, utilizando seu aparato repressivo para reprimir a  
organização e as lutas dos trabalhadores contra os níveis de exploração desumanos e as  
remunerações abaixo do valor da força de trabalho que caracterizam o mercado de trabalho  
brasileiro.  
Libertas, Juiz de Fora, v. 25, n. 1, p. 247-271, jan./jun. 2025. ISSN 1980-8518  
Proteção social na realidade brasileira: a assistência social em questão  
Diante desse quadro, em conformidade com o que interpreta a autora, observa-se que os  
processos de flexibilidade e precarização do trabalho no Brasil não podem ser imputados à crise  
mundial capitalista de 1970 embora se tornem mais evidentes no contexto de acumulação  
flexível pois trata-se de traços estruturantes da formação do mercado de trabalho brasileiro,  
ou, melhor dizendo, “constituem o essencial das modalidades de exploração implementadas  
pelo capital” (Santos, 2012, p. 242). Assim, institui-se o que a autora define como “fordismo à  
brasileira”, o significa que, ao contrário da estabilidade promovida nos países centrais durante  
o período fordista clássico, no Brasil sempre vigorou o padrão de flexibilidade/precariedade nas  
relações de trabalho. Por isso, é importante reforçar que, embora a precarização das relações de  
trabalho tenha se estendido à realidade global como efeito da crise estrutural do capital da  
década de 1970, nos países periféricos ela se constitui como condição estrutural para o  
desenvolvimento capitalista.  
É evidente, portanto, que a superexploração do trabalho é traço constitutivo do  
capitalismo brasileiro, que termina por radicalizar a questão social nessa realidade,  
intensificando os processos de pauperização à classe trabalhadora, especialmente à população  
negra, pois como afirma Souza (2023, p. 18), “o racismo [...] é um elemento determinante e  
determinado da superexploração da força de trabalho, sob a dependência e o imperialismo”.  
São os processos de flexibilização, precarização, informalidade, baixos salários e desemprego  
que dão o tom da relação capital-trabalho na periferia desde sempre, e a questão racial é o  
elemento que estrutura e hierarquiza as relações de produção, subjugando a população negra  
aos postos de trabalho mais precarizados e as piores condições de reprodução.  
257  
Os elementos apresentados revelam como nas particularidades da questão social  
brasileira pesa a determinação de contradições advindas da formação social do país, tal como a  
exploração colonial, a conservação da grande propriedade territorial, o caráter conservador da  
modernização capitalista, a estrutural superexploração do trabalho e a condição de dependência  
e subordinação à dinâmica imperialista. Isso significa que as expressões da questão social que  
se apresentam hoje conservam heranças do passado, embora redimensionadas e  
complexificadas.  
Compreendidos os elementos que caracterizam a questão social na realidade brasileira,  
é possível, então, avançar na análise sobre como tais particularidades incidem diretamente na  
configuração e na natureza das políticas sociais sob os marcos de um capitalismo dependente,  
Ana Carolyna Ribeiro Sales; Vera Núbia Santos; Maria da Conceição Vasconcelos Gonçalves  
com destaque para a conformação da Política de Assistência Social (PAS) no país, como será  
sinalizado no próximo item7.  
A conformação da Política de Assistência Social no Brasil: as presentes marcas da  
formação social brasileira  
O desenvolvimento das políticas sociais no Brasil carrega as particularidades da sua  
formação sócio-histórica, o que imprime contornos específicos à construção dessas políticas  
que divergem do padrão forjado nos países centrais. Em concordância com os apontamentos de  
Behring e Boschetti (2011), para pensar o sentido e o significado das políticas sociais na  
realidade brasileira, é preciso fazê-lo de maneira articulada à compreensão da dinâmica do  
capitalismo dependente, o papel do Estado capitalista na sua formulação e implementação e a  
interferência da luta de classes na sua conformação.  
Em atenção a esses determinantes, observa-se que a própria condição de dependência  
impõe limites estruturais às políticas sociais no Brasil. Por um lado, a superexploração do  
trabalho, como condição necessária à acumulação capitalista nas economias dependentes,  
produz a agudização dos níveis de pobreza e desigualdade para o conjunto das classes  
subalternas, que, por sua vez, exige respostas estatais às expressões da questão social que se  
manifestam. No entanto, é esta mesma dinâmica de dependência que materializa um Estado a  
serviço dos interesses da burguesia, especialmente da burguesia internacional, em que impera  
uma democracia restrita que prioriza os interesses das classes dominantes e fragiliza a  
capacidade de pressão dos subalternos em favor dos seus direitos. Como resultado, observa-se  
que a tendência à pauperização de grande parcela da população vem acompanhada de ações  
insuficientes por parte do Estado no enfrentamento às expressões da questão social, revestidas  
por um caráter heterogêneo e pontual. Paiva e Ouriques (2006, p. 172) destacam que  
258  
[...] para a grande maioria da população, pobreza e miséria vêm acompanhadas  
da omissão do Estado, expressa, sobretudo, na ausência de políticas sociais,  
ou, na maioria das vezes, num tipo determinado de política social, cujo  
horizonte não pode ser pretensioso em termos sociais e políticos e no qual  
todo radicalismo deve ser combatido, seja em termos da composição do gasto  
social seja em função da dimensão emancipadora que elas poderiam conter.  
Couto (2010, p. 92), ao analisar a instituição das políticas sociais na realidade brasileira,  
afirma que “os traços constitutivos de uma sociedade dependente com economia baseada no  
7 Cabe destacar que, embora este artigo dialogue com um conjunto de autoras e autores que analisam a formação  
social brasileira, a questão social e a assistência social a partir de matrizes teóricas alinhadas à crítica social, suas  
abordagens não são homogêneas. Há diferenças significativas nas interpretações, ênfases e categorias analíticas  
adotadas, especialmente sobre a assistência social, porém, o aprofundamento dessas diferenças escapa aos limites  
deste artigo.  
Libertas, Juiz de Fora, v. 25, n. 1, p. 247-271, jan./jun. 2025. ISSN 1980-8518  
Proteção social na realidade brasileira: a assistência social em questão  
trabalho escravo e com relações sociais delimitadas pelo campo privado, darão a trajetória dos  
direitos [...] nessa sociedade”, ou seja, esses traços são, portanto, as características de uma  
sociedade marcada por uma trajetória antidemocrática e autoritária que dão o tom da fragilidade  
da cidadania no país, visto que o acesso aos direitos sociais se caracterizou como desigual e  
fragmentado.  
Nesse sentido, cabe lembrar Yazbek (2012), ao ressaltar que, no Brasil, até o início do  
século XX, a pobreza era vista como um problema individual, sendo alvo de ações sociais e  
filantrópicas e redes de solidariedade e familiares, com um trato pautado no assistencialismo,  
enquanto o Estado operava por meio da coerção e repressão, tratando-a como caso de polícia,  
sem qualquer tipo de fomento à instituição de direitos sociais. Esse quadro sofre alterações com  
o desenvolvimento da industrialização e da emergência da classe operária e suas reivindicações.  
É neste momento que o Estado reconhece a legitimidade da questão social, o que dá início as  
medidas estatais de proteção ao trabalhador.  
Nesse contexto, as primeiras iniciativas de proteção social no Brasil, que datam de 1919  
e se expandem a partir de 1930 no governo Vargas, ocorreram de forma condicionada ao que  
Santos (1994) denomina de cidadania regulada8. Isso porque tais iniciativas foram restritas aos  
cidadãos inseridos no mercado formal de trabalho, constituindo um sistema baseado no modelo  
de seguro social transportado dos países europeus, com caráter contributivo.  
259  
Em uma realidade marcada pela superexploração da força de trabalho, em grande parte  
subjugada ao desemprego ou à informalidade, a vinculação das iniciativas de proteção social  
com a inserção laboral formal implica, necessariamente, na exclusão das classes subalternas ao  
seu acesso. Com base na forma particular que se constitui o mercado de trabalho da periferia  
capitalista, a assistência social adquiriu centralidade na reprodução da classe trabalhadora  
brasileira, entendida na totalidade daqueles e daquelas disponíveis no mercado, o que demarca  
a sua relação histórica com o trabalho.  
A especificidade da política de assistência social pode ser referenciada no  
âmbito das respostas concretas à grande massa de trabalhadores informais,  
desempregados e subempregados, àqueles que não são contemplados com as  
demais políticas sociais e que seguem à margem da proteção social tradicional,  
alicerçada na contributividade do trabalho formal (Paiva; Rocha; Carraro,  
2010, p. 256).  
8 O conceito de cidadania regulada foi formulado por Wanderley Guilherme Santos em referência a forma que a  
cidadania foi definida no Brasil, em que o Estado é quem regula quem era cidadão ou não através da profissão.  
Utilizando-se da sua explicação, “por cidadania regulada entendo o conceito de cidadania cujas raízes encontram-  
se, não em um código de valores políticos, mas em um sistema de estratificação ocupacional, e que, ademais, tal  
sistema de estratificação é definido por norma legal. [...] A cidadania está embutida na profissão, e os direitos do  
cidadão restringem-se aos direitos do lugar que ocupa no processo produtivo, tal como reconhecido por lei”  
(Santos, 1994, p. 68).  
Ana Carolyna Ribeiro Sales; Vera Núbia Santos; Maria da Conceição Vasconcelos Gonçalves  
Aos considerados “não cidadãos”, excluídos dos sistemas de proteção social  
contributivos, restou-lhes a benemerência e a filantropia das ações assistenciais. Assim, a  
conformação da assistência social se baseia no atendimento dos segmentos sem condições de  
prover sua própria subsistência através do trabalho, tendo suas protoformas determinadas por  
ações pautadas na caridade e na benesse, o que a transforma em prática assistencialista ou no  
assistencialismo.  
Ao contrário do que ocorreu nos países centrais, onde a constituição do sistema de  
proteção social representou a ampliação do exercício de cidadania, Sposati (2002) chama a  
atenção para o fato de que nos países periféricos uma grande parte da população teve seu status  
de cidadão negado, o que fez com que a solidariedade da sociedade civil fosse a principal  
responsável pela atenção aos segmentos pauperizados. Desta forma, a assistência social  
inicialmente apresenta uma vinculação histórica com o trabalho filantrópico da rede privada  
levada a cabo por instituições religiosas como a Igreja Católica e entidades beneficentes,  
movido pelo sentimento cristão de amparo aos despossuídos e necessitados.  
A respeito da intervenção do Estado, há que se destacar que as ações estatais organizadas  
para o enfrentamento da pobreza se articulavam com as ações voluntárias e filantrópicas de  
entidades da sociedade civil, especialmente via subvenções e auxílios técnico-financeiros9, para  
realização de um conjunto de ações descontínuas, pontuais e pulverizadas, distantes da sua  
afirmação como política social. Com isso, contribuía para reiterar uma perspectiva de ajuda e  
voluntariado junto às classes subalternas no campo de intervenção da assistência social, com  
sentido aparentemente compensatório e meritocrático. Por isso, Sposati (2002, p. 16) afirma  
que “a assistência social não consegue assumir o perfil de uma política no campo da reprodução  
social”.  
260  
Essa configuração das práticas da assistência social se distancia da lógica do direito e  
materializa o viés do favor no trato aos segmentos mais pauperizados, reiterando relações de  
dependência e submissão ao ter o atendimento pontual de suas necessidades revestidas na forma  
de benesse e/ou concessão. Como observa Yazbek (2016), as relações sociais atravessadas pelo  
favor e pelo clientelismo, características da cultura política brasileira em razão da sua formação  
social, penetram a política social, encontrando na assistência social um solo fértil para a  
ocorrência de práticas assistencialistas e clientelistas.  
9 Mestriner (2011) demarca que a primeira iniciativa do Estado brasileiro de reconhecimento da assistência social  
ocorre no governo Vargas através da criação do Conselho Nacional de Serviço Social (CNSS), em 1938, tendo  
como principal função a emissão de subvenções às entidades filantrópicas e organizações sociais.  
Libertas, Juiz de Fora, v. 25, n. 1, p. 247-271, jan./jun. 2025. ISSN 1980-8518  
Proteção social na realidade brasileira: a assistência social em questão  
Há uma associação entre o clientelismo e o assistencialismo nas bases da assistência  
social, em que o acesso aos bens e serviços se realiza a partir de relações de favor, o que  
reproduz uma subordinação dos subalternos aos representantes do poder público, especialmente  
na forma de lealdade e fidelidade políticas, nas quais, como afirma Schwarz (1981, p. 16), “o  
favor é a nossa mediação quase universal”. Tais práticas estão ligadas à tradição patrimonialista  
do Estado, que como se sabe, prevê uma indistinção entre o público e o privado, operando uma  
negação de direitos que nem sempre é percebida como tal, o que serve, necessariamente, para  
ocultar o conflito e legitimar a dominação das classes dominantes. Por este motivo, Yazbek  
(2016, p. 70) assinala que “o significado assumido pela assistência se explica a partir, e no  
conjunto, das relações entre dominantes e dominados”, e Oliveira (1998, p. 12-13) analisa:  
A constituição da assistência social como política pública percorre um longo  
caminho no país “cordial” de Sérgio Buarque de Holanda, em que a  
sociabilidade do favor era – e ainda é – a moeda de troca das relações sociais,  
principalmente entre dominantes e dominados. A área da assistência social  
presta-se, como poucas, a essa cordialidade. Desfazer isto que é quase uma  
“segunda natureza” das relações de dominação no Brasil, para transformá-la  
numa esfera pública não burguesa que ao mesmo tempo se estrutura nos  
direitos e reforça-se com sua prática, não é uma tarefa para poucas décadas.  
Essa matriz do favor, como lembra Yazbek (2016), fundamenta a cultura tuteladora que  
historicamente permeia as ações da assistência social, criando um estigma sobre os/as seus/suas  
usuários/as enquanto desemparados/as, necessitados/as, reforçando a auto culpabilização pela  
sua situação de pobreza e, por consequência, renegando a sua condição de sujeitos de direitos.  
Convém destacar que a lógica do direito, que por muito tempo não se apresentava nas iniciativas  
assistenciais, foi incorporada tardiamente. Somente com a aprovação da Constituição Federal  
de 1988 a assistência social torna-se, efetivamente, uma política de proteção social, quando  
passa a integrar o tripé da Seguridade Social brasileira, junto às políticas de Saúde e da  
Previdência Social, o que a traz para o campo dos direitos e da responsabilidade estatal. No  
entanto, essa caracterização não se mostrou suficiente para eliminar a sua tradição clientelista  
e conservadora que ainda se percebe na sociedade hodierna.  
261  
A Constituição Federal confere à assistência social a condição de política social de  
proteção social não contributiva, destinada a que dela necessitar. Entretanto, Sposati (2007, p.  
442) destaca que “não é o fato de nominar o campo da assistência social como de proteção  
social que lhe instaura, de imediato, nova percepção social”. Em razão da sua tradicional relação  
com a iniciativa privada e filantrópica, demanda-se um conjunto de modificações e  
ressignificações para alcançar um novo paradigma de gestão. Assim, apesar dos avanços no  
Ana Carolyna Ribeiro Sales; Vera Núbia Santos; Maria da Conceição Vasconcelos Gonçalves  
campo jurídico institucional, o reconhecimento público da assistência social como direito tem  
sido uma tarefa árdua, em que ainda há muito a ser feito.  
Compreende-se que a introdução da Política de Assistência Social na Seguridade Social  
ocorreu pela negativa, na medida que a assistência passa a integrar tudo aquilo que não era parte  
da Previdência Social10 por não ser decorrente de contribuição prévia, sendo “instituída mais  
pelas ‘heranças institucionais’ do que pela concepção efetiva de um novo paradigma ou novo  
pacto social com base na democracia e na redistributividade”, como elucida Sposati (2007, p.  
446), o que não explicitou, no primeiro momento, a necessidade de novas responsabilidades  
sociais e públicas para com a população não acobertada pela Previdência, ou ainda, que se  
tratava de um esforço de expansão da cidadania brasileira para além do seguro social.  
No entanto, simultaneamente a este movimento de reorganização da assistência social,  
sucedia-se uma reconfiguração das relações capitalistas no cenário brasileiro diante do avanço  
da ofensiva neoliberal a partir da década de 1990. A consequência mais evidente da introdução  
do neoliberalismo no país é o retrocesso de conquista de direitos estabelecidas na Constituição  
Federal, incidindo diretamente sobre o sistema de proteção social e as condições de vida das  
classes subalternas, especificamente no tocante ao financiamento das políticas sociais com o  
advento da Emenda Constitucional 95, de 2016 (Brasil, 2016).  
A adoção do receituário neoliberal teve consequências distintas entre os países,  
guardadas suas particularidades. Pastorini e Galízia (2006) sinalizam que a adesão pelos países  
da América Latina às propostas neoliberais na década de 1980 deu-se por imposição dos  
organismos internacionais, como o Banco Mundial e o Fundo Monetário Internacional (FMI).  
Uma vez que a concessão de empréstimos aos governos latino-americanos tinha a adesão à  
ideologia neoliberal como contrapartida, assim como às prescrições desses organismos para  
cada país, reitera-se a condição de dependência que caracteriza essa relação. Nestas economias,  
a exemplo do Brasil, o principal efeito do ajuste proposto foi sentido pelo recrudescimento da  
pobreza e da miséria. Contraditoriamente, esse mesmo ajuste traduz um impeditivo para  
estruturação do incipiente sistema de proteção social brasileiro, como consequência da  
redefinição do papel do Estado.  
262  
Assim, evidencia-se que a tônica das recomendações do ideário neoliberal pauta a defesa  
de um Estado mínimo na área social, a partir da redução da sua função de provedor de direitos  
10 Um exemplo de transferência do campo da previdência social para o da assistência social foi a Renda Mensal  
Vitalícia (RMV), que consistia em uma espécie de pensão social para idosos e pessoas com deficiência,  
independente de contribuição prévia ao seguro social, tendo sido extinto do âmbito da previdência em 1996,  
sucedido pelo Benefício de Prestação Continuada (BPC) sob o escopo da assistência social.  
Libertas, Juiz de Fora, v. 25, n. 1, p. 247-271, jan./jun. 2025. ISSN 1980-8518  
Proteção social na realidade brasileira: a assistência social em questão  
e serviços sociais, e de cortes nos gastos sociais, qualificados como custos excessivos, como  
afirma Soares (2003), o que interfere na lógica dos direitos conquistados com o capítulo da  
Seguridade Social na Constituição Federal, uma vez que, conforme indica Laurell (2002, p.  
163) “o neoliberalismo opõe-se radicalmente à universalidade, igualdade e gratuidade dos  
serviços sociais”. O que se percebe com isso, é a paulatina transferência do atendimento das  
necessidades sociais para o âmbito do mercado por meio do sucateamento dos serviços  
públicos, bem como pela sua privatização.  
Nesse sentido, importa destacar que “a cultura neoliberal cai, como uma luva, em nossa  
tradição político-cultural, fazendo emergir um de seus traços mais conservadores: o predomínio  
do interesse privado sobre todas as coisas em detrimento dos interesses públicos” conforme  
ressalta Iamamoto (2009, p. 35) ao retomar Chauí (1995).  
Depreende-se, então, que os avanços legais para institucionalização da PAS no Brasil  
se defrontam com os entraves oriundos da orientação neoliberal e das particularidades da sua  
formação social. Exemplo disso foi a sua regulamentação tardia a partir da Lei Orgânica da  
Assistência Social (LOAS), aprovada em 1993, após o veto do seu primeiro projeto pelo  
presidente Fernando Collor de Melo, em 1990. Ou seja, somente cinco anos após a promulgação  
da Constituição Federal de 1988 a assistência social foi regulamentada, tendo sido a última do  
conjunto das políticas de Seguridade Social. A sua materialização como política nacional,  
entretanto, demorou mais 11 anos, com a efetivação em julho de 2004 e implantação do Sistema  
Único da Assistência Social em 2005 e, em 20 anos depois, ainda não possui percentual de  
financiamento assegurado no orçamento público11. Tais constatações demonstram o tratamento  
residual que a assistência social recebe ao lado das demais frentes de proteção social.  
É também sob este contexto que se estabelece uma agenda de restrição de direitos  
sociais, onde impera o trinômio privatização/focalização/descentralização no trato das políticas  
sociais (Behring, 2003), conforme agenda da ideologia neoliberal no país. Assim, a Política de  
Assistência Social se depara com uma conjuntura desfavorável à sua execução, sendo imbuída  
por uma lógica reducionista que imprime uma característica seletiva e focalizada de  
atendimento às demandas das classes subalternas. A focalização se torna o fulcro do acesso a  
essa política, produzindo um enrijecimento dos critérios e condicionalidades na tentativa de  
263  
11 Tramita na Câmara Federal a Proposta de Emenda à Constituição 383/2017, que “altera a Constituição Federal  
para garantir recursos mínimos para o financiamento do Sistema Único de Assistência Social”. A proposta  
encontra-se “pronta para pauta no plenário”, conforme informação disponível no site da Câmara dos Deputados:  
Ana Carolyna Ribeiro Sales; Vera Núbia Santos; Maria da Conceição Vasconcelos Gonçalves  
reduzir o contingente de beneficiários/as, conformando um desmantelamento notório a sua já  
muito frágil afirmação enquanto política de direito.  
Na análise de Pereira (1996), a perspectiva focalista e seletiva que rege a PAS, se deve,  
em grande parte, à insuficiência da destinação de recursos financeiros para a sua execução. Vale  
ressaltar que, em economias dependentes, como o Brasil, a expropriação do fundo público  
aparece ao lado da superexploração do trabalho como mecanismo de transferência de valor para  
os países centrais, especialmente sob aporte do serviço da dívida. Apesar de não ser um  
fenômeno novo, pois a dívida externa da América Latina tem origem no período da sua  
independência política, tendo sido contraída para o pagamento da indenização às antigas  
metrópoles, Marini (2011) observa que sua intensificação ocorreu a partir da década de 1970,  
momento em que o capital estrangeiro na periferia passou a ser investido predominantemente  
por meio de financiamentos.  
Assim, o capital estrangeiro, “além das taxas de amortização, cobra taxas de juros que  
são deduzidas da mais-valia gerada pelo investimento produtivo para o qual ele contribuiu, sem  
haver assumido, contudo, os riscos da produção e realização dessa mais-valia” (Marini, 2012,  
p. 25). Ocorre então a canalização do fundo público das economias periféricas para o capital  
imperialista, especialmente através do pagamento da dívida externa, ampliando a relação de  
dependência.  
264  
Para Salvador e Ribeiro (2023, p. 3), “a participação concreta do Estado quanto à  
garantia das condições para o desenvolvimento do capitalismo e à reprodução das relações  
sociais é perceptível a partir da constituição e apropriação do fundo público12”. Os autores  
afirmam que a mediação do fundo público na garantia do processo de transferência de valor se  
dá pela isenção de impostos sobre os lucros remetidos ao capital estrangeiro e uma pesada carga  
tributária sobre os trabalhadores, dado o caráter regressivo da estrutura tributária na periferia  
capitalista, com maior incidência sobre o consumo, enquanto nos países centrais recaem,  
majoritariamente, sobre a renda e o patrimônio.  
Desta forma, tem-se um Estado partícipe no socorro à reprodução do capital em  
detrimento da sua participação na reprodução da força de trabalho, o que se contrapõe aos  
clamores liberais de um Estado mínimo, demonstrando que para o capital sua atuação deve ser  
sempre máxima. Nessas condições, há uma restrição do fundo público para viabilização de  
12 Para Behring (2021, p. 91), o fundo público pode ser compreendido como “[...] um compósito de mais-valia —  
incidindo sobre o lucro/juro e a renda da terra — e sobre o trabalho necessário, há vista a crescente tributação  
sobre os rendimentos da classe trabalhadora e também sobre as mercadorias que compõe sua cesta básica de  
reprodução (tributação indireta)”.  
Libertas, Juiz de Fora, v. 25, n. 1, p. 247-271, jan./jun. 2025. ISSN 1980-8518  
Proteção social na realidade brasileira: a assistência social em questão  
políticas sociais universais e gratuitas, intensificado com os ajustes neoliberais, na medida que  
são disponibilizados recursos escassos para investimentos, comprometendo a efetivação dos  
direitos sociais das classes subalternas, que tem suas condições de vida agravadas pela mesma  
dinâmica de dependência.  
Sob esta perspectiva, para além da redução da sua abrangência, a cobertura da Política  
de Assistência Social não acompanha as demandas da população que constitui seu público-alvo,  
pois passa a responder de acordo com a disponibilidade orçamentária. Por isso, muitos/as  
usuários/as que necessitam dos serviços e benefícios recorrem a ela, mas nem sempre são  
atendidos/as. Por este motivo, Pereira (1996, p. 17) chama atenção para o fato de que a  
assistência social “[...] deve atender a pobreza (problema estrutural e substantivo), mas o  
critério que rege a sua ação é algo externo à pobreza, isto é, a disponibilidade de recursos  
(problema conjuntural e político)”.  
Nessas condições, a partir dos anos 1990 a assistência social direciona suas iniciativas  
para focalização na população identificada como mais pauperizada dentre os segmentos  
pauperizados, caracterizando-se por ações paliativas no combate à pobreza e extrema pobreza.  
É importante demarcar que o redimensionamento da assistência social brasileira para um viés  
de política de combate à pobreza tem relação com as prescrições do Banco Mundial e do FMI,  
que, segundo Netto (2007), começaram a demonstrar “preocupação” com o agravamento da  
questão social, especialmente os níveis de pobreza, provocado pela adoção das medidas de  
ajuste estrutural pelos países da América Latina. Por este motivo, “as políticas passam a ser  
substituídas por ‘programas de combate à pobreza’, que tratam de, segundo seus proponentes,  
‘minimizar’ os efeitos do ajuste sobre os ‘mais pobres’ ou os ‘mais frágeis’” (Soares, 2003, p.  
27).  
265  
Conforme analisa Ugá (2004), nesse período houve uma mudança no tratamento da  
pobreza na agenda política internacional, transformando-se em um ponto de atenção especial  
nos relatórios de organismos internacionais e nos documentos de avaliação e formulação de  
políticas públicas dos países periféricos. Essa preocupação se intensifica à medida que o  
crescimento da desigualdade social na periferia capitalista poderia representar uma ameaça à  
ordem pelos segmentos pauperizados.  
É nesse contexto, de acordo com Sitcovsky (2013), que irão se desenvolver os  
programas de transferência de renda nesses países enquanto estratégia para o enfrentamento da  
pobreza, assumindo centralidade nas iniciativas que constituem a Política de Assistência Social  
na entrada do século XXI. No Brasil, tais programas começam a ser instituídos no final dos  
anos 1990 durante o governo de Fernando Henrique Cardoso, a exemplo do Bolsa Escola, o  
Ana Carolyna Ribeiro Sales; Vera Núbia Santos; Maria da Conceição Vasconcelos Gonçalves  
Auxílio Gás e o Bolsa Alimentação, mas é no primeiro governo de Luiz Inácio Lula da Silva  
que se tem a unificação destes programas e do Cartão-Alimentação com a criação do Programa  
Bolsa Família (PBF) em 2003, que se tornou o maior programa de transferência de renda do  
país. No entanto, há que se registrar que,  
As iniciativas de expansão da assistência social – via programas de  
transferência de renda – longe de representar a adoção de um novo receituário  
para as políticas sociais, consolidaram as tendências regressivas da  
Seguridade Social em curso no Brasil e nos demais países latino-americanos  
desde os anos de 1990 (Sitcovsky, 2013, p. 133).  
Dessa forma, os programas de transferência de renda emergem como uma medida para  
administração da pobreza através da transferência monetária às famílias pobres ou  
extremamente pobres, tendo como critério de elegibilidade as linhas de pobreza absoluta13,  
mediante apresentação de elementos comprobatórios e, como contrapartida exige o  
cumprimento de condicionalidades14 associadas às políticas de saúde e educação. Assim,  
reproduz-se o que Teixeira (2002) conceitua de cidadania invertida, em que o indivíduo recorre  
à assistência social no momento que se reconhece como um não-cidadão, estabelecendo com o  
Estado uma relação de beneficiário condicionado a comprovação da sua situação de miséria e  
pobreza.  
Pelo exposto, concorda-se com Boschetti (2009, p. 11) acerca de que os programas de  
transferência de renda são destituídos do caráter de direito, pois “seus valores,  
condicionalidades e forma de gestão o colocam na órbita das políticas compensatórias”. Ainda  
que seja inegável o impacto desses programas para redução da pobreza e para subsistência  
material dos/as beneficiários/as, não se pode desconsiderar que não há intenção de uma efetiva  
redistribuição de renda nestes programas, mas sim a construção de medidas residuais e  
focalizadas que não têm a potencialidade de tirar o/a beneficiário/a da sua condição  
pauperizada, principalmente em uma realidade como a do Brasil. Como observa Stein (2009,  
p. 201), “[...] “analisados sob o prisma das necessidades básicas, os programas revelam que o  
atendimento se restringe à sobrevivência”. Há que se salientar, ainda, que  
266  
Mesmo que se possa e deva reconhecer que, contraditoriamente, a assistência  
social, e tais programas, possam ser assegurados como direito social, não se  
pode esquecer sua histórica função e potencialidade de manter a coesão, a  
integração e o controle social sobre uma parcela dos pobres, enquanto para  
outros prevalece a criminalização, repressão e punição (Boschetti, 2016, p.  
13  
Em 2025, são elegíveis ao Programa Bolsa Família as famílias inscritas no Cadastro Único em situação de  
pobreza, com renda per capita mensal de até R$ 218,00 (duzentos e dezoito reais).  
14  
Em relação à educação, as condicionalidades consistem na frequência escolar mínima de 85% no caso de  
crianças de 06 a 15 anos e 75% no caso de jovens de 16 e 17 anos. Na saúde, as condicionalidades consistem no  
acompanhamento pré-natal, nutricional, vacinação, crescimento e desenvolvimento da criança.  
Libertas, Juiz de Fora, v. 25, n. 1, p. 247-271, jan./jun. 2025. ISSN 1980-8518  
Proteção social na realidade brasileira: a assistência social em questão  
25).  
Ao que parece, as tendências atuais da Política de Assistência Social brasileira tendem  
à ampliação do assistencialismo voltado ao pauperismo absoluto, considerando os últimos anos,  
concretizado por meio de intervenções episódicas e pontuais, contrárias à concepção da  
assistência como direito. O cenário torna-se ainda mais crítico pós-2016, período em que a  
materialização do SUAS e os avanços na sua construção são ameaçados pela exasperação dos  
mecanismos de ajuste fiscal no país, resultando em profundos retrocessos no campo dos direitos  
sociais. Na análise de Mauriel (2020, p. 208)  
[...] as tendências que se apresentaram na assistência social mostram um  
processo contraditório que, ao mesmo tempo em que apontam a garantia de  
direitos a toda população pela noção de seguridade social, apresentam  
tendências neoconservadoras que limitam sua própria estruturação como  
política de proteção – centralidade da transferência de renda, foco do alívio da  
pobreza extrema, focalização, paralelismos, sem deixar de vivenciar os velhos  
dilemas assistencialistas e clientelistas que ainda se fazem presentes, mas  
reconfigurados e, por vezes, potencializados.  
Esse movimento implica na diluição das conquistas históricas que impulsionaram os  
avanços da Política de Assistência Social pós-1988 e na reintrodução de mecanismos de  
desproteção social. O esforço em destacar esses impactos não desconsideram os avanços  
logrados à Política de Assistência Social, porém atentam para a descontinuidade do ciclo breve  
de sua construção como política de direito e realçam como as determinações históricas e  
estruturais da formação social brasileira, presentes nos traços do capitalismo dependente, do  
legado colonial, clientelista e patrimonialista, impõem desafios e limites à assistência enquanto  
política pública.  
267  
Tal debate não pretende desconsiderar a importância desta política, tampouco negá-la  
como instrumento de proteção social. Pelo contrário, exige reconhecer seu papel estratégico na  
disputa pelos direitos e pela ampliação da cidadania. No entanto, é igualmente imprescindível  
explicitar seus limites históricos e estruturais na realidade brasileira, diretamente determinados  
pela lógica do capitalismo dependente e periférico. Portanto, é preciso afirmar com clareza: a  
assistência social não é, nem pode ser, a solução para os problemas estruturais da formação  
social brasileira. Seu papel, ainda que fundamental, deve ser compreendido no marco das lutas  
por direitos, da radicalização democrática e da construção de alternativas societárias que  
apontem para além da sociabilidade do capital.  
Ana Carolyna Ribeiro Sales; Vera Núbia Santos; Maria da Conceição Vasconcelos Gonçalves  
Considerações finais  
À luz da análise desenvolvida, impõe-se problematizar: quais são, afinal, os limites  
estruturais da Política de Assistência Social em um país cuja formação social se ancora em um  
capitalismo hipertardio, dependente e profundamente atravessado pela lógica da revolução  
passiva? Esta trajetória, marcada pela conciliação entre modernização e conservação, pela  
reprodução ampliada da dependência e pela ausência de rupturas radicais com o colonialismo,  
a escravidão e a ordem oligárquica, conforma as bases históricas que tensionam e, ao mesmo  
tempo, condicionam a conformação da assistência social no Brasil.  
A assistência social, portanto, carrega uma contradição fundante: enquanto, por um lado,  
constitui uma trincheira de resistência no campo das lutas sociais, por outro, encontra-se  
permanentemente tensionada pela sua inscrição em uma ordem que reproduz a desigualdade, a  
exploração e a subordinação. Não há como dissociar os impasses desta política dos impasses  
do próprio desenvolvimento capitalista brasileiro. Isso revela que, enquanto persistir o padrão  
de acumulação destrutivo e excludente do capital, a assistência social estará permanentemente  
tensionada entre ser instrumento de controle social e mediação da ordem, ou expressão de  
resistência e ampliação dos direitos sociais.  
Desta forma, importa refletir: Quais as possibilidades de a assistência social romper com  
os desafios impostos, numa conjuntura onde as demandas das lutas sociais não fazem parte da  
pauta de negociação? Qual é o lugar desta política em um capitalismo dependente, que, no atual  
estágio de acumulação, intensifica a plataformização do trabalho, a precarização, a  
expropriação, a devastação ambiental e o aprofundamento da desigualdade?  
268  
O desafio que se coloca, então, não é apenas defender a Política de Assistência Social  
frente aos processos de desmonte e mercantilização dos direitos, mas, sobretudo, compreendê-  
la como parte de uma luta mais ampla. Essa é uma disputa aberta, que exige, mais do que nunca,  
a articulação das lutas coletivas em defesa dos direitos sociais, reconhecendo que a superação  
dos desafios postos à assistência social está indissociavelmente vinculada ao enfrentamento da  
ordem do capital e das estruturas que sustentam a dependência e a reprodução da desigualdade  
no Brasil.  
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271  
A questão ambiental e destrutividade  
capitalista: o desastre ambiental no Rio Grande  
do Sul  
The environmental issue and capitalist destructiveness: the environmental  
disaster in Rio Grande do Sul  
Letícia Soares Nunes*  
Paula Algeri Roithmann**  
Resumo: O artigo debate a relação entre o  
desenvolvimento capitalista e a intensificação  
dos desastres ambientais, com foco no Rio  
Grande do Sul e o desastre de 2024. Através da  
pesquisa bibliográfica, analisa-se a natureza  
destrutiva do capitalismo e o aumento dos  
desastres no mundo, no Brasil, e, em particular,  
no Rio Grande do Sul. Os resultados indicam  
que as causas dos desastres vão além de  
fenômenos climáticos tidos como naturais. Elas  
são impulsionadas por estruturas da sociedade  
capitalista e seus impactos destrutivos são  
distribuídos de forma desigual, afetando  
Abstract: The article discusses the relationship  
between capitalist development and the  
intensification of environmental disasters,  
focusing on the state of Rio Grande do Sul and  
the disaster of 2024. Through bibliographic  
research, it analyzes the destructive nature of  
capitalism and the increase in disasters  
worldwide, in Brazil, and particularly in Rio  
Grande do Sul. The results indicate that the  
causes of these disasters go beyond climate  
phenomena considered natural. They are driven  
by structural aspects of capitalist society, and  
their destructive impacts are distributed  
unequally, affecting marginalized groups,  
segmentos subalternizados, associadas  
à
condição de classe, gênero, raça/etnia. Finaliza-  
se reforçando a intenção de contribuir para o  
aprofundamento do debate na categoria  
profissional, compreendendo os nexos da  
questão ambiental com a questão social e com a  
maneira predatória que o sistema do capital se  
mantém, agravando as desigualdades sociais e a  
destrutividade ambiental no campo e na cidade.  
associated  
with  
class,  
gender,  
and  
race/ethnicity. The article concludes by  
emphasizing the intention to contribute to the  
deepening of the debate within the professional  
category, understanding the links between the  
environmental issue and the social issue, as well  
as the predatory manner in which the capitalist  
system maintains itself, aggravating social  
inequalities and environmental destructiveness  
in both rural and urban areas.  
Palavras-chaves: Questão ambiental; Desastre  
ambiental; Capitalismo; Desigualdade; Serviço  
Social.  
Keywords:  
Environmental  
issue;  
Environmental disaster; Capitalism; Inequality;  
Social Work.  
* Universidade do Estado de Santa Catarina. E-mail: leticia_snunes@hotmail.com  
** Universidade Federal de Santa Catarina. E-mail: paulaalgeriroithmann@gmail.com  
DOI: 10.34019/1980-8518.2025.v25.48272  
Esta obra está licenciada sob os termos  
Recebido em: 09/04/2025  
Aprovado em: 21/05/2025  
A questão ambiental e destrutividade capitalista: o desastre ambiental no Rio Grande do Sul  
Introdução  
A intensificação da ocorrência de eventos extremos tem provocado, em todo o mundo,  
prejuízos econômicos e sociais e danos humanos, materiais e ambientais, impactando a  
dinâmica da produção de bens e serviços nas sociedades afetadas (Nunes, 2012). O aumento da  
destrutividade ambiental é aqui abordado a partir da sua relação com a lógica exploratória e  
perdulária do modo de produção capitalista, visto que suas causas estão presentes desde os  
primórdios do funcionamento do capitalismo.  
Este artigo abordará a questão ambiental sob uma perspectiva crítica, tendo como  
referência o marxismo. Busca-se evidenciar que este é um campo permeado por disputas de  
poder político, econômico, social e produtivo, sendo interpretado a partir de concepções  
distintas, quando não antagônicas. A depender da compreensão das causas da crise ambiental,  
diferentes estratégias são engendradas para seu enfrentamento, não sendo estas isentas de uma  
intencionalidade que reivindica a manutenção da ordem burguesa ou sua superação.  
Considerando esse ponto de partida, por meio de uma pesquisa bibliográfica, objetiva-  
se debater a relação entre o desenvolvimento capitalista e a intensificação de desastres  
ambientais, tendo como lócus o Rio Grande do Sul e o desastre ocorrido nesse estado em 2024.  
A discussão se concentra nesse episódio específico, considerando que as enchentes e  
deslizamentos ocorridos em abril e maio de 2024 foram considerados o pior desastre da história  
do Rio Grande do Sul até então e cujo debate precisa ser aprofundado, de modo que episódios  
como esse sejam cada vez mais compreendidos como fenômenos socialmente construídos e não  
resultados de processos estritamente naturais e meteorológicos.  
273  
Além disso, considerando que os(as) assistentes sociais têm atuado com frequência  
crescente em situações de desastres, este artigo busca contribuir para ampliar o debate sobre  
essa temática na categoria profissional.  
Além da introdução e da conclusão, o artigo organiza-se em duas partes: a primeira  
discute a construção social do desastre, apresentando dados sobre sua intensificação no mundo  
e no Brasil, bem como sua relação com o desenvolvimento capitalista; e, a segunda parte  
evidencia o impacto desigual do desastre ambiental ocorrido no Rio Grande do Sul.  
A construção social do desastre ambiental  
Reportagens sobre mudanças climáticas, aquecimento global, redução da camada de  
ozônio e da biodiversidade, desmatamento, consumo excessivo de recursos não renováveis e  
intensificação de desastres são anunciadas diariamente, em um ritmo cada vez mais alarmante.  
Letícia Soares Nunes; Paula Algeri Roithmann  
Esses alertas evidenciam que a natureza apresenta sinais de esgotamento de suas  
potencialidades, colocando em risco a sobrevivência da humanidade (Nunes, 2012).  
A partir da década de 1970, observou-se uma intensificação de manifestações,  
convenções e protocolos voltados à inserção da problemática ambiental no centro das políticas  
públicas, como um mecanismo de reparação e preservação do meio ambiente (Nunes, 2013).  
Nesse conjunto de ações, destaca-se o papel central das organizações vinculadas ao capital  
internacional, como a Organização das Nações Unidas (ONU), que vem influenciando  
diretrizes políticas e econômicas voltadas aos ajustes estruturais dos países periféricos. Nessa  
mesma década, ocorreu a primeira manifestação internacional com foco na temática ambiental:  
a “Primeira Conferência das Nações Unidas sobre o Meio Ambiente Humano”, também  
conhecida como “Conferência de Estocolmo”, realizada em 1972 (Nunes, 2018).  
Contraditória e dialeticamente, a exacerbação da dilapidação ambiental  
articula-se aos mais expressivos esforços por desenvolver uma consciência  
preservacionista: sucedem-se os debates, as convenções, os acordos e tratados  
cujo fim último é propor diretrizes e indicar estratégias de controle da relação  
sociedade-natureza. Os organismos internacionais, em particular  
a
Organização das Nações Unidas – ONU tem cumprido importante papel neste  
campo (Silva, 2012, p. 22).  
Partindo desse entendimento, apresentam-se a seguir dados sobre desastres ambientais  
no mundo, sistematizados por organismos internacionais, especialmente os vinculados à ONU,  
dada sua expressividade e influência no debate da questão ambiental. Já os dados referentes ao  
contexto brasileiro foram compilados a partir do Sistema Integrado de Informações sobre  
Desastres (S2iD), vinculado ao Ministério da Integração e do Desenvolvimento Regional  
(MIDR).  
274  
Conforme o relatório “Atlas de Mortalidade e Perdas Econômicas por Tempo, Clima e  
Extremos de Água (1970-2019)” elaborado pela Organização Meteorológica Mundial (OMM,  
2021), foram registrados pouco mais de 22 mil desastres no mundo entre 1970 e 2019. Esses  
eventos foram classificados em três categorias: desastres naturais (62% do total), desastres  
tecnológicos (38%) e desastres complexos. No total, esses desastres provocaram 4.607.671  
mortes sendo 80% causados por desastres naturais, 7% por fatores tecnológicos e 13% por  
desastres complexos , além de perdas econômicas estimadas em US$ 4.92 trilhões, das quais  
99% se referem a eventos classificados como naturais.  
Dos desastres registrados, aproximadamente 11 mil foram classificados como “desastres  
naturais”, vinculados a eventos meteorológicos, climáticos e hídricos. Isso representa, nos  
últimos 50 anos, 50% de todos os desastres registrados, 45% das mortes reportadas e 74% das  
perdas econômicas. Em outras palavras, um “desastre natural” ocorreu, em média, todos os dias  
Libertas, Juiz de Fora, v. 25, n. 1, p. 272-294, jan./jun. 2025. ISSN 1980-8518  
A questão ambiental e destrutividade capitalista: o desastre ambiental no Rio Grande do Sul  
ao longo de 50 anos, resultando na morte de 115 pessoas e causando prejuízos diários de US$  
202 milhões (OMM, 2021).  
O relatório da OMM (2021) também evidenciou o aumento da frequência desses  
eventos. O número de desastres passou de 711, na década de 1970, para 3.536 na década de  
2000 um crescimento de quase cinco vezes. Além disso, os países periféricos foram  
desproporcionalmente afetados, concentrando 91% das mortes causadas por “desastres  
naturais”.  
Utilizando uma metodologia distinta para computar os desastres se comparado com a  
apresentada anteriormente, a Defesa Civil Nacional elaborou, em parceria com a Universidade  
Federal de Santa Catarina (UFSC), o “Atlas de Desastres no Brasil”. Entre os anos de 1991 e  
2023, foram registradas 67.230 ocorrências de desastres naturais, que resultaram em 5.142  
mortes, 9,64 milhões de pessoas desabrigadas e desalojadas, e 232,59 milhões de pessoas  
afetadas, além de prejuízos estimados em R$ 570,65 bilhões (Brasil, 2023). Em que pese uma  
maior notificação associada a um possível reconhecimento da importância da gestão da  
informação, os dados evidenciam um aumento significativo de ocorrências de desastres no  
decorrer dos anos: na década de 1990 foram registrados 6.523 desastres; nos anos 2000, 18.916  
desastres; na década de 2010, um total de 24.219; e, de 2020 a 2023, somam-se 12.572  
ocorrências de “desastres naturais” no Brasil.  
275  
No período de 1º de janeiro e 13 de maio de 2024 foram registradas 2.358 decretações  
de situação de emergência e estado de calamidade pública no Brasil, provocados por chuvas  
(55,6%), seca ou estiagem (23,6%) e outros tipos de desastres (20,8%). Esses registros  
concentraram-se principalmente na região Sul (32,4%) com destaque para as enchentes no Rio  
Grande do Sul entre abril e maio, seguidas pelas regiões Nordeste (20%), Sudeste (19,2%),  
Centro-Oeste (15,2%) e Norte (13%) (CNM, 2024). Esses dados continuam crescendo em ritmo  
alarmante e afetando diversas regiões do país, como evidenciado no noticiado sobre os  
incêndios florestais que atingiram os biomas do Pantanal, Cerrado e Amazônia, com sérios  
impactos ambientais e à saúde humana, devido à exposição da população às toxinas da fumaça  
das queimadas, que alcançaram cerca de 60% do território nacional (Aguilera, 2024).  
Segundo os relatórios emitidos pela OMM (2021; 2023), pelo EM-DAT (2023) e pelo  
IPCC (2023), o calor extremo, as chuvas intensas em várias regiões e a probabilidade de secas  
em outras devem se tornar cada vez mais frequentes nos próximos anos, superando as previsões  
até então realizadas. Os dados do IPCC (2023) indicam que a última década foi a mais quente  
dos últimos 125 mil anos, resultado das mudanças climáticas. De acordo com essas  
organizações, embora o clima apresente variações naturais em escalas temporais e espaciais, a  
Letícia Soares Nunes; Paula Algeri Roithmann  
temperatura média da atmosfera tem aumentado principalmente devido às emissões de gases de  
efeito estufa que são intensificadas, em grande parte, pela queima de combustíveis fósseis e  
pelo desmatamento. Esses processos têm causado impactos significativos, como o derretimento  
de geleiras e calotas polares, alterações na biodiversidade, elevação do nível do mar e aumento  
da temperatura dos oceanos o que afeta a frequência e intensidade das tempestades tropicais.  
Além disso, o aumento de vapor d'água na atmosfera tem intensificado precipitações extremas  
e inundações.  
Os estudos citados indicam que o aquecimento global pode afetar tanto a saúde física  
quanto a mental, aumentando a incidência de determinadas doenças, o risco de pandemias e a  
insegurança hídrica e alimentar. Além disso, os cenários de vulnerabilidade e desigualdade têm  
se agravado, especialmente em países periféricos e dependentes os mais atingidos por eventos  
extremos e por perdas econômicas e humanas. Esse contexto também tem provocado um  
aumento nos deslocamentos forçados, com pessoas buscando refúgio em outros territórios, a  
exemplo do registro de 30,7 milhões de refugiados climáticos em 2020, evidenciando que os  
desastres ambientais causaram três vezes mais deslocamentos do que conflitos e violência  
(ONU, 2021).  
Apesar dos inúmeros dados que evidenciam a destrutividade ambiental e seus impactos  
catastróficos, ainda há grupos que minimizam a complexidade dos problemas ambientais e  
negam, principalmente, a existência do aquecimento global. Esses chamados negacionistas  
climáticos, além de atacarem cientistas e tentarem descredibilizá-los frequentemente  
rotulando-os como “comunistas disfarçados” –, estão geralmente associados a movimentos  
conservadores e de extrema direita, que defendem leis mais brandas para o meio ambiente  
(Miguel, 2002; Roque, 2020; Souza, 2024).  
276  
Compreendendo o negacionismo climático como um acontecimento relacionado a  
certos jogos de poder, Miguel (2002) refere que, nos Estados Unidos, as críticas dirigidas a  
organismos internacionais que pautam o debate do aquecimento global estão associadas ao  
receio de que a regulamentação das emissões decorrentes da queima de combustíveis fósseis  
represente uma ameaça aos interesses econômicos de grandes corporações petrolíferas. Essas  
corporações, inclusive, financiaram instituições para produzir estudos que negassem a  
cientificidade das mudanças climáticas, o que contribuiu para “um atraso de décadas na política  
climática norte-americana” (Miguel, 2002, p. 297). Em paralelo, Nobre, Reid e Veiga (2012, p.  
32) relembram que “um movimento conservador de indústria muito similar, o do lobby da  
indústria de tabaco, conseguiu adiar por quase dez anos a implementação de políticas públicas  
de saúde nos anos 60 e 70, nos EUA”.  
Libertas, Juiz de Fora, v. 25, n. 1, p. 272-294, jan./jun. 2025. ISSN 1980-8518  
A questão ambiental e destrutividade capitalista: o desastre ambiental no Rio Grande do Sul  
Já no contexto brasileiro, o negacionismo climático ganhou força em determinados  
movimentos políticos, especialmente em sua associação ao bolsonarismo, no que se refere aos  
processos de governamentalização ambiental (Miguel, 2002). Nesse cenário, o agronegócio tem  
desempenhado papel central na disseminação de contestações à ciência do clima, sendo este o  
setor econômico que “mais contribui para o aquecimento global em nosso país: juntos, o  
desmatamento e a agropecuária que se instala nas terras destituídas de sua cobertura vegetal  
respondem por dois terços de todos os gases do efeito estufa emitidos pelo Brasil” (Roque,  
2020, p. 11).  
Este aspecto contribui para dimensionar a complexidade do debate e os múltiplos  
interesses em disputa na sua narrativa. Nesse sentido, é importante destacar que muitos dos  
dados sobre os desastres ambientais são, com frequência, apresentados como decorrentes de  
fatores ditos “naturais”, associados a aspectos da natureza como a intensificação de chuvas ou  
a falta dela, a fragilidade do solo, entre outros. A justificativa da causa do desastre, associada  
apenas a este elemento, confere a ela um caráter de “fatalidade”, de algo que não poderia ser  
controlado, afinal, tratam-se de fenômenos naturais, meteorológicos, hídricos, desconsiderando  
que este é um fenômeno construído socialmente e, consequentemente, escamoteando outros  
determinantes que vêm contribuindo de forma significativa para a intensificação dessas  
ocorrências, tanto na frequência quanto na extensão dos seus impactos.  
277  
Refere-se aqui ao entendimento do desastre enquanto um processo, produto de  
deficiências enraizadas na dinâmica do atual sistema social, e não como um “epifenômeno”  
relacionado a uma emergência imediata, uma “força externa” resultante de eventos naturais  
(Vargas, 2013; Quarantelli, 2015). Ou seja, entende-se o desastre está associado a um conjunto  
de fatores decorrentes do desenvolvimento capitalista que, em sua lógica essencialmente  
destrutiva, concentra riqueza, intensifica desigualdades e acirra o esgotamento dos recursos  
naturais, culminando no aumento da destrutividade ambiental.  
Ao fazer essa afirmativa, pontua-se que, ainda que não se desconsidere que a degradação  
ambiental sempre tenha existido nas sociedades humanas, em formas de organização  
econômico-social pré-capitalista, por meio do trabalho, o homem transformava a natureza para  
satisfazer suas necessidades de sobrevivência (Nunes, 2013). O homem apropriava-se dos  
elementos da natureza, mas, num caráter fisiológico, devolvia aos ecossistemas nutrientes que  
seriam incorporados ao solo, num processo de troca material, não havendo nessas sociedades  
uma ameaça à sustentabilidade planetária (Araújo; Silva, 2021).  
A partir da perspectiva marxiana, a crise ambiental pode ser compreendida como  
resultado das próprias relações sociais capitalistas, marcadas pelo distanciamento entre o  
Letícia Soares Nunes; Paula Algeri Roithmann  
homem e a natureza, pela apropriação classista dos recursos naturais e pelo uso irracional do  
mundo natural (Foladori, 1997). Esse modo de produção, baseado no antagonismo social, na  
exploração do homem e da natureza, na alienação e expropriação da força de trabalho e na  
maximização de lucros, rompe os laços entre o trabalhador e seus meios de vida o que gera  
quebras de equilíbrio metabólico1 , na medida em que produz excedentes e supérfluos visando,  
sobretudo, obter mais lucro e acumular capital.  
De acordo com Foladori (1997, p. 17), essa diferença entre a produção capitalista e as  
sociedades pré-capitalistas “está na base do esgotamento dos recursos naturais a um ritmo nunca  
suspeitado na história da humanidade; porém também está na base da utilização irracional de  
qualquer forma de energia e/ou de materiais e seres vivos”.  
Evidenciando seu caráter destrutivo, a fase inicial do capitalismo foi marcada por um  
processo histórico e social extremamente complexo e violento, na qual os trabalhadores diretos,  
principalmente camponeses, foram despojados de seus meios de subsistência e expropriados de  
suas terras, que foram transformadas em propriedade privada. Ao separar o produtor direto de  
seus meios de produção, criou-se uma classe de “trabalhadores livres” à serviço do capital  
(Marx, 1996). Evidenciando que a produção capitalista separa o trabalhador de seus meios de  
vida, concentrando-os nas mãos da burguesia e explorando tanto o trabalho quanto a natureza  
como mercadoria, Foladori (2001, p. 108) destaca que:  
278  
O trabalhador assalariado cumpre com todos os requisitos de ruptura do  
metabolismo com a natureza: está separado da terra como condição natural de  
produção; está separado dos instrumentos como intermediários de seu corpo  
em relação à natureza externa; está separado de um “fundo de consumo”  
prévio ao trabalho – depende de vender sua força de trabalho para comer –; e  
está separado do próprio processo de produção como atividade transformadora  
– à diferença, por exemplo, do servo feudal. É livre, mas essa liberdade deve  
ser entendida como isolamento, alienação com respeito à natureza externa; é  
livre porque foram esgarçados os laços do metabolismo com o meio ambiente.  
É livre no sentido de isolado. O proprietário, ao contrário, passa a usufruir de  
uma natureza que deveria corresponder a todos os habitantes do planeta.  
Ainda referindo-se ao processo de acumulação primitiva e às expropriações que lhe  
deram suporte, Marx (1996) evidencia mais um elemento da destrutividade ambiental no  
capitalismo: seu processo de expansão. Ele apontou que a descoberta e exploração dos recursos  
naturais das colônias favoreceram o enriquecimento de parte da burguesia, ao mesmo tempo  
em que contribuíram para a degradação desses recursos, especialmente nos países do hemisfério  
Sul aspecto que permanece presente nas análises contemporâneas sobre a crise ambiental.  
1
Essas quebras de equilíbrio metabólico ou “fratura metabólica” possibilitam evidenciar a alienação entre o  
homem e a natureza que se dá pela especificidade do trabalho e de toda a cadeia produtiva quando desenvolvidas  
no sistema capitalista (Nunes, 2013).  
Libertas, Juiz de Fora, v. 25, n. 1, p. 272-294, jan./jun. 2025. ISSN 1980-8518  
A questão ambiental e destrutividade capitalista: o desastre ambiental no Rio Grande do Sul  
Considerando o exposto, Araújo e Silva (2021, p. 159) destacam que os desgastes  
ambientais causados pelo sistema mercantil nas colônias foram, sobretudo, a “destruição da  
flora e da fauna para o monocultivo, a dizimação dos povos originários, a escravização negra e  
indígena, a erosão do solo e poluição das fontes hídricas, dentre outros”. Tais questões,  
“constituíram tão somente a antessala de um longo e destrutivo processo que a sociedade  
capitalista madura e plenamente desenvolvida trata de reproduzir e sistematicamente  
complexificar” (Araújo; Silva, 2021, p. 160).  
Partindo desse pressuposto, com o avanço do capitalismo, especialmente a partir da  
Revolução Industrial, a destrutividade ambiental e a exploração do trabalhador seguiram se  
intensificando. Ao abordar os desdobramentos provocados pela indústria na agricultura e  
destacando que o desenvolvimento das forças produtivas no capitalismo levava ao esgotamento  
da terra e do trabalhador, Marx (1996, p. 133) afirmava que:  
Com a preponderância sempre crescente da população urbana que amontoa  
em grandes centros, a produção capitalista acumula, por um lado, a força  
motriz histórica da sociedade, mas perturba, por outro lado, o metabolismo  
entre homem e terra, isto é, o retorno dos componentes da terra consumidos  
pelo homem, sob forma de alimentos e vestuário, à terra, portanto, a eterna  
condição natural de fertilidade permanente do solo. Com isso, ela destrói  
simultaneamente a saúde física dos trabalhadores urbanos e a vida espiritual  
dos trabalhadores rurais. [...] A dispersão dos trabalhadores rurais em áreas  
cada vez maiores quebra, ao mesmo tempo, sua capacidade de resistência,  
enquanto a concentração aumenta a dos trabalhadores urbanos. E cada  
progresso da agricultura capitalista não é só um progresso na arte de saquear  
o trabalhador, mas ao mesmo tempo na arte de saquear o solo, pois cada  
progresso no aumento da fertilidade por certo período é simultaneamente um  
progresso na ruína das fontes permanentes dessa fertilidade. Quanto mais um  
país, como, por exemplo, os Estados Unidos da América do Norte, se inicia  
com a grande indústria como fundamento de seu desenvolvimento, tanto mais  
rápido esse processo de destruição. Por isso, a produção capitalista só  
desenvolve a técnica e a combinação do processo de produção social ao minar  
simultaneamente as fontes de toda a riqueza: a terra e o trabalhador.  
279  
Na citação apresentada, observa-se que Marx (1996), ao destacar a possibilidade de  
redução da fertilidade do solo acompanhada de efeitos como o aumento de doenças e pragas  
, e com base no conceito de fratura metabólica entre homem e natureza, dirige críticas ao  
processo de separação entre campo e cidade, bem como à industrialização da agricultura. Com  
isso, evidencia a dimensão destrutiva do capitalismo e antecipa diversos problemas que se  
agravaram com o avanço das sociedades sob domínio do capital, a exemplo de que os elementos  
apropriados pelo homem passaram a ser devolvidos para a natureza em enormes quantidades  
de lixo e poluição questão amplamente discutida atualmente nos debates sobre a  
obsolescência programada e suas desastrosas consequências.  
Letícia Soares Nunes; Paula Algeri Roithmann  
Partilhando dessas reflexões, destaca-se que a intensificação do produtivismo e o  
processo de industrialização massiva trouxeram uma escala sem precedentes de poluição e  
degradação ambiental, notadamente com a descoberta e uso dos combustíveis fósseis,  
caracterizada pela emissão de gases de efeito estufa, a destruição de ecossistemas e a exaustão  
de recursos naturais (Moran, 2008; Araújo; Silva, 2021).  
Na conjuntura atual, marcada pela crise estrutural do capital, essa destrutividade não só  
se mantém, como ganha novos contornos devido à globalização, ao avanço tecnológico e ao  
deslocamento da acumulação através da exploração da mais-valia para uma acumulação com  
predominância financeira (Chesnais, 2005). Essa dinâmica de acumulação caracteriza-se pela  
centralização, em instituições especializadas, dos “lucros industriais não reinvestidos e de  
rendas não consumidas, que têm por encargo valorizá-los sob a forma de aplicação em ativos  
financeiros divisas, obrigações, ações, mantendo-os fora da produção de bens e serviços”  
(Chesnais, 2005 p. 36). Ou seja, o capitalismo obtém sua rentabilidade cada vez mais por meio  
de atividades financeiras, como especulação, manipulação de ativos financeiros e a criação de  
dívidas.  
Resgatando alguns elementos da financeirização, nessa fase atual do capitalismo, o  
capital busca estratégias para “reverter em benefício da acumulação privada os obstáculos  
resultantes da escassez de recursos naturais, da produção de descartáveis e da obsolescência  
programada das mercadorias, como problemáticas geradas no curso de seu próprio  
desenvolvimento” (Silva, 2008, p. 17). Dentre as diversas estratégias, destaca-se o processo  
descrito por Chesnais e Serfati (2003) e Silva (2008), no qual o capital incorpora os custos  
ambientais em seus cálculos, desenvolvendo o conceito de internalização das antes  
consideradas externalidades.  
280  
No plano econômico, “transformando a natureza em campos de valorização do capital  
portador de rendimentos para os acionistas” (Chesnais; Serfati, 2003, p. 21), a poluição e a  
degradação de recursos como terra, água e ar, por exemplo, são transformadas em mercados e  
novos campos de acumulação. Convertidos em ativos financeiros, “eles devem deixar de ser  
"bens livres" e tornar-se "esferas de valorização" fundadas pela instauração de direitos de  
propriedade de um tipo novo (os "direitos de poluir") e de mercados ad hoc." (Chesnais; Serfati,  
2003, p. 21).  
Fazendo referência ao Protocolo de Kyoto, assinado na Conferência das Partes (COP)  
realizada em 1997, definiu-se que os países reduzissem 5% suas emissões poluentes em relação  
aos níveis de 1990, entre 2008 e 2012. Os Estados Unidos, um dos maiores poluidores do  
Libertas, Juiz de Fora, v. 25, n. 1, p. 272-294, jan./jun. 2025. ISSN 1980-8518  
A questão ambiental e destrutividade capitalista: o desastre ambiental no Rio Grande do Sul  
mundo, recusou-se a aderir ao Protocolo de Kyoto, evidenciando a resistência do capital em  
aceitar medidas que pudessem gerar custos econômicos ao país (Nunes, 2012).  
O Protocolo adotou a seguinte estratégia: as nações desenvolvidas deveriam reduzir suas  
emissões para evitar o acúmulo de dívida de carbono, enquanto as nações em desenvolvimento,  
visando seu progresso social e econômico, estavam autorizadas a aumentar gradualmente suas  
emissões até o limite estipulado (Foster; Clark 2006). Contudo, essa estratégia transformou o  
“direito de poluir” em mercadoria, criando novos campos de acumulação de capital. Assim,  
caso os países em desenvolvimento não utilizassem integralmente sua cota de emissão,  
poderiam comercializá-la, ou seja, “vender o direito” para os países desenvolvidos que, por sua  
vez, continuariam poluindo para sustentar seu crescimento econômico (Nunes, 2012).  
Os incêndios florestais sinalizados anteriormente, com destaque aos causados durante  
agosto e setembro de 2024 no estado de São Paulo, também podem ser considerados um  
exemplo da mercantilização da destruição ambiental como forma de acumulação capitalista.  
Ainda que em processo de investigação, de acordo com APIB (2024), no caso de São Paulo há  
indícios de uma ação criminosa, visto que imagens de satélite mostraram que os focos de  
incêndio surgiram quase simultaneamente, provocados por ação humana. A maior parte dos  
focos em São Paulo aconteceu em fazendas privadas, sendo apenas 11 localizadas em terras  
públicas, como assentamentos e terras indígenas, e 81,29% em áreas de uso agropecuário, como  
as ocupadas pela cana-de-açúcar e pastagem.  
281  
Embora a bancada ruralista continue disseminando fake news acusando o Movimento  
dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST) de ser responsável pelos incêndios florestais, bem  
como atacando o atual governo por suposta negligência diante da calamidade (Dolce, 2024), a  
APIB (2024, p. 2) afirma que os incêndios que destruíram áreas produtivas beneficiam  
financeiramente empresários e acionistas ao elevar os preços no mercado:  
O fogo é o meio mais eficiente para os ruralistas escaparem à fiscalização do  
Ibama. Além disso, os desmatadores têm vantagens na Bovespa, que canaliza  
R$560 bilhões do agronegócio e que não conta com mecanismos de punição  
para crimes ambientais. E mais, na lógica da queima do café em 1930, se há  
um excesso de mercadoria disponível os preços caem, mas qualquer sinal da  
indisponibilidade do produto no mercado pode gerar aumentos substanciais  
nos preços. [...]. Entre as áreas queimadas estão grandes empresas, como São  
Martinho SA e Raízen SA. E as cotações internacionais do açúcar subiram no  
final de agosto, logo após as queimadas.  
No plano político, de acordo com Chesnais e Serfati (2003), o capital distribui  
desigualmente os impactos da degradação entre os países periféricos e as classes subalternas,  
evidenciando que o capitalismo contemporâneo exacerba as desigualdades sociais e ambientais.  
Letícia Soares Nunes; Paula Algeri Roithmann  
Tais consequências afetam de forma diferenciada a população, dependendo de sua condição de  
classe, gênero/sexualidade e raça/etnia.  
Segundo Harvey (2005, p. 64), “o capitalismo apenas consegue escapar de sua própria  
contradição por meio da expansão. A expansão é, simultaneamente, intensificação (de desejos  
e necessidades sociais, de populações totais, e assim por diante) e expansão geográfica”. Essa  
lógica visa conter os efeitos da queda tendencial da taxa de lucro, seja por meio da busca de  
novos mercados capazes de absorver o excedente da produção, seja pela redução dos custos de  
produção.  
Tal como exposto anteriormente, em relação à acumulação primitiva, desde sua  
emergência e mediante o deslocamento geográfico, o capitalismo tem se reproduzido pela  
criação de novas fronteiras de mercadoria, e, portanto, de degradação ambiental. Ao mencionar  
a dominação imposta aos países periféricos e à força de trabalho desses países, Foster, Clark e  
York (2010, p. 41) pontuam que:  
Uma forma óbvia de mudança de capital em torno de problemas ecológicos é  
através de deslocamento geográfico simples - uma vez que os recursos estão  
esgotados em uma região, os capitalistas procuram em todo o mundo para  
controlar o recurso em outras partes do mundo, seja pela força militar ou pelos  
mercados. Um dos impulsionadores do colonialismo era claramente a  
demanda por mais recursos naturais em países europeus que se  
industrializavam rapidamente. No entanto, expandir a área sob o controle do  
capitalismo global é apenas uma das maneiras pelas quais os capitalistas  
mudam os problemas ecológicos. Há também uma dimensão qualitativa, em  
que uma crise ambiental é “resolvida” (tipicamente apenas no curto prazo)  
alterando o tipo de processo de produção e gerando uma crise diferente, como  
a mudança do uso de madeira para plástico. Na fabricação de muitos bens de  
consumo substituiu os problemas associados à extração de madeira com os  
associados à produção e disposição de plásticos. Assim, um problema é  
transformado em outro - uma mudança no tipo de fenda.  
282  
Nesse sentido, Chesnais e Serfati (2003, p. 39) destacam como as questões ecológicas  
se relacionam à desigualdade global: “Antes, com a ameaça termonuclear e, agora, a da  
destruição da biosfera, as questões ecológicas - questões de reprodução social - tornaram-se  
mundiais, mas atingem as distintas partes do mundo de forma muito desigual”. Essa questão é  
evidenciada nos dados estatísticos anteriormente apresentados e expressa a continuidade da  
colonialidade nas relações de poder. A busca incessante pelo “desenvolvimento” levou à  
divisão do mundo em áreas centrais e periféricas, dinâmica que também é percebida em âmbito  
nacional e regional, a exemplo da “territorialização de determinados grupos em um cenário de  
riscos, o que acaba contribuindo para a produção do desastre ambiental” (Azeredo, 2018, p.  
14). Esse processo evidencia o aprofundamento das desigualdades ambientais e revela a face  
Libertas, Juiz de Fora, v. 25, n. 1, p. 272-294, jan./jun. 2025. ISSN 1980-8518  
A questão ambiental e destrutividade capitalista: o desastre ambiental no Rio Grande do Sul  
contraditória e perversa do projeto civilizatório vigente, cuja lógica se mostra  
fundamentalmente irracional e incapaz de associar desenvolvimento e igualdade.  
O impacto desigual do desastre ambiental no Rio Grande do Sul  
No final de abril e início de maio de 2024, o estado do Rio Grande do Sul foi acometido  
pela maior catástrofe de sua história, em um evento sem precedentes. Afetando 90% do  
território estadual e superando a enchente de 1941, em um período de duas semanas, o estado  
gaúcho registrou chuvas persistentes equivalentes a três meses (Clarke et al., 2024). Diante da  
inundação, de quedas de barreiras e deslizamentos de terra, foram contabilizados 478  
municípios afetados, 2.389.255 pessoas impactadas, 411.753 desalojadas, 12.660 pessoas em  
abrigo, 806 feridos, 38 desaparecidos e 175 mortes (CENAD, 2024).  
A capital do estado, Porto Alegre, é a quinta maior região metropolitana do Brasil e,  
devido em parte à sua localização às margens do Lago Guaíba formado pela confluência de  
nove bacias hidrográficas e que deságua na Lagoa dos Patos, a maior lagoa de água doce do  
continente , já enfrentou grandes enchentes nos anos 1873, 1928, 1936, 1941, 1967 e 2023  
(Allasia et al., 2015). Das quatro maiores enchentes já registradas em Porto Alegre, três  
ocorreram nos últimos nove meses (Clarke et al., 2024).  
De acordo com um estudo internacional realizado por pesquisadores sobre a enchente  
no Rio Grande do Sul, suas principais causas estariam relacionadas à combinação de padrões  
sazonais, fatores climáticos e falhas na infraestrutura. Ou seja, de acordo com Clarke et al.  
(2024), o aumento na intensidade e frequência de eventos de precipitação extrema, e,  
especificamente o ocorrido no Rio Grande do Sul, foi atribuído ao aquecimento global; ao  
fenômeno El Niño, que aumentou a probabilidade e a intensidade das chuvas extremas na  
região, exacerbando as condições de inundação; às chuvas intensas, que elevaram os níveis dos  
rios a marcas históricas, pressionando barragens e resultando em inundações generalizadas; e à  
falta de investimento e manutenção adequada no sistema de proteção contra inundações,  
particularmente em Porto Alegre, que contribuiu para a falha das estruturas durante a enchente,  
complexificando ainda mais esse cenário.  
283  
Na década de 1970, Porto Alegre passou a contar com um sistema de proteção contra  
inundações, composto por uma barreira física conhecida como Muro da Mauá, com 2,6 km de  
extensão, 3 metros de altura e estrutura subterrânea equivalente. Esse sistema inclui ainda 14  
comportas para bloqueio da entrada de água, 68 km de diques de contenção e 23 casas de  
bombas responsáveis pela drenagem das áreas mais baixas da cidade, integrando o sistema de  
proteção ao sistema de drenagem pluvial urbana (Miola, 2024).  
Letícia Soares Nunes; Paula Algeri Roithmann  
Além de não realizar manutenção regularmente, verifica-se uma preocupação limitada  
com o referido sistema quando, em 2010, foi sugerida a demolição do Muro da Mauá antes da  
realização da Copa do Mundo de Futebol de 2014, com o objetivo de “embelezar” a cidade  
(Allasia et al., 2015). Tanto em 2010 quanto em 2019 e 2021, os prefeitos de Porto Alegre  
seguiram esboçando o desejo de derrubar o muro, sem apresentar projetos alternativos. Em  
paralelo, ainda em 2021, o líder do governo na Câmara Municipal prometeu desengavetar um  
projeto de lei que determinava, senão a derrubada, a diminuição do muro o que não foi  
efetivado (Fonseca, 2021).  
Durante a enchente de 2024, o Guaíba atingiu 5,37 metros e, embora o sistema de  
proteção tenha sido concebido para suportar até 6 metros de altura das águas do lago, ainda  
assim a cidade de Porto Alegre foi tomada pela água, causando prejuízos humanos, sociais,  
sanitários e ambientais. Miola (2024) endossa o exposto por Clarke et al. (2024), ao afirmar  
que a magnitude da devastação não está associada apenas à severidade do fenômeno climático,  
mas também à falha da Prefeitura na gestão do sistema implementado há mais de 50 anos. Além  
disso, é possível relacionar tais fatos ao desmonte das políticas ambientais, à precarização e  
privatização de serviços públicos e à negligência frente aos avisos e planos de ação elaborados  
por cientistas frequentemente ignorados pelo negacionismo climático impregnado nos aliados  
do governo municipal e estadual.  
284  
Sobre a (falsa) premissa de possibilitar um “equilíbrio” entre proteção ambiental e  
desenvolvimento socioeconômico, em 2019 o governo do Rio Grande do Sul alterou 500 pontos  
do Código Ambiental do estado de forma acelerada e sem efetiva participação ou discussão  
sobre suas implicações. Ao promover retrocessos que favoreceram o setor econômico e o  
empresariado, essa ação assemelha-se ao que vem sendo realizado, há anos, em âmbito nacional  
no que se refere ao desmonte da legislação ambiental. A título de exemplo, durante a tragédia  
ambiental que assolou o Rio Grande do Sul, o Congresso Nacional, contrário às pautas  
ambientais, seguiu avançando no chamado Pacote da Destruição, que inclui 25 projetos e três  
propostas de emenda à Constituição que afetam direitos consagrados em temas como  
licenciamento ambiental, grilagem, direitos dos povos indígenas e financiamento da política  
ambiental. Há ainda outros que flexibilizam o Código Florestal e legislações sobre recursos  
hídricos, mineração, oceanos e zonas costeiras (Observatório do Clima, 2024).  
Tais aspectos reforçam que o negacionismo climático não se trata de uma forma de  
discurso, tampouco está relacionado à ignorância ou ao desconhecimento da crise ambiental e  
de seus efeitos desastrosos sobre a vida da população, em especial das parcelas mais  
Libertas, Juiz de Fora, v. 25, n. 1, p. 272-294, jan./jun. 2025. ISSN 1980-8518  
A questão ambiental e destrutividade capitalista: o desastre ambiental no Rio Grande do Sul  
pauperizadas. Trata-se, antes, de uma ação política, intencional e estrategicamente planejada,  
que representa a busca pela manutenção de um projeto societário cada vez mais predador.  
Seguindo nessa reflexão, na análise de Miola (2024), o sucateamento do sistema de  
proteção de Porto Alegre resultou de uma política permanente de sucessivos governos. Exemplo  
disso é a extinção, em 2018, do Departamento de Esgotos Pluviais, que deixou a cidade sem  
um sistema de drenagem adequado; o conhecimento, também desde 2018, de uma falha em  
uma das estações de bombeamento de águas pluviais que contribuiu para a inundação de uma  
área da cidade em setembro de 2023 e, mesmo com recursos, não foi solucionado o problema;  
o fato de apenas 6 das 23 bombas do sistema de proteção contra enchentes estarem em  
funcionamento; falhas administrativas básicas, como a ausência de parafusos de pressão e  
borrachas de vedação para o fechamento eficaz das comportas; a desarticulação progressiva da  
inteligência técnica da cidade, com a precarização do Departamento Municipal de Águas e  
Esgotos, que atualmente opera com um terço da capacidade funcional que possuía até 2004;  
além da não destinação de recursos em investimentos contra enchentes, mesmo diante alertas  
emitidos por cientistas, meteorologistas, institutos de pesquisa e universidades, que apontavam,  
com dados concretos, que, ano após ano, a cota de alerta e de inundação do Guaíba alcançava  
números alarmantes.  
O Plano Municipal de Saneamento Básico de Porto Alegre, de 2015, ao elaborar um  
diagnóstico do sistema de proteção contra cheias da cidade, já salientava a insuficiência  
hidráulica, a existência de bombas sem condições operacionais e um estado de conservação do  
sistema bastante precário. O documento complementava que a manutenção do sistema pluvial  
não vinha contemplando as “reais necessidades de manutenção preventiva e corretiva do  
sistema pluvial, pois são executados conforme a disponibilidade de recursos por parte da  
Administração Municipal” (Prefeitura Municipal de Porto Alegre, 2015, p. 190).  
A administração dos recursos públicos tem sido pauta em diversas reportagens, que  
apontam a falta ou redução de investimentos nos sistemas de proteção, além de questionamentos  
quanto ao uso adequado dos recursos disponíveis. Em relação ao primeiro ponto, ainda que sob  
críticas e contestação da Prefeitura (Prefeitura Municipal de Porto Alegre, 2024), ao consultar  
o Portal da Transparência e buscar por investimentos que utilizassem a rubrica “Melhoria no  
sistema de proteção contra cheias”, Pereira (2024) alegou que os investimentos recuaram de R$  
1,7 milhão em 2021 para R$ 141 mil no ano seguinte. Já em 2023, o investimento teria sido  
zerado.  
285  
Já quanto ao uso dos recursos disponíveis, Gomes (2024) analisa que o prefeito de Porto  
Alegre firmou contratos com Organizações da Sociedade Civil, totalizando quase R$ 4,2  
Letícia Soares Nunes; Paula Algeri Roithmann  
milhões, para instalar até 10 abrigos com 500 vagas (50 por abrigo) destinadas a pessoas  
desabrigadas pela enchente. No entanto, além de denúncias sobre as condições inadequadas dos  
abrigos, estes operavam muito abaixo da sua capacidade, sendo possível que essas pessoas ou  
famílias fossem alocadas em abrigos já existentes que dispunham de vagas no momento em que  
os contratos foram firmados.  
Outras denúncias vieram à tona à medida que profissionais questionaram um termo de  
colaboração entre a Prefeitura e uma instituição religiosa, assinado com dispensa de licitação  
em razão do decreto de calamidade pública de Porto Alegre. Válido por seis meses, o contrato,  
com previsão orçamentária de até R$ 8,4 milhões, possibilitou a contratação terceirizada de 97  
profissionais (embora o contrato previsse 128) para atuarem em abrigos provisórios, nos Centro  
de Referência de Assistência Social (CRAS) e Centro de Referência Especializado de  
Assistência Social (CREAS). Contudo, os profissionais relataram que não foram prestados  
serviços nos CRAS e CREAS e que, no caso dos abrigos, naquele momento, não havia demanda  
de trabalho suficiente que justificasse o número de pessoas contratadas nem os valores de  
investimento previstos (Gomes, 2024).  
Parafraseando Valencio et al. (2004, p. 73), “o desastre havido não é o fenômeno  
causado pelas chuvas. É o fenômeno revelado por elas”, retoma-se o quadro mais amplo e  
complexo do desastre registrado no Rio Grande do Sul e sua relação com um sistema destrutivo,  
com o sucateamento dos serviços públicos, o desmonte das políticas ambientais, o  
negacionismo climático, o volume de chuvas torrenciais ocorridos associado a um quadro mais  
amplo de aquecimento global, mas, também, com um território que vem sendo alvo da  
exploração agrícola, especialmente voltada à produção de comodities que ao longo da história  
agrediu severamente a natureza e alterou as condições dos afluentes do Guaíba (Miola, 2024).  
Conforme Prizibisczki (2024), a Empresa de Assistência Técnica e Extensão Rural do  
Rio Grande do Sul estimou um aumento de 71% na produção de soja no estado, com mais de  
20 mil hectares acrescidos à área plantada. Considerando o arroz, feijão e milho, entre 2022 e  
2023, mais de 70 mil hectares foram convertidos em monoculturas em terras gaúchas, o que  
desencadeia diversos danos ao meio ambiente, a exemplo da exaustão do solo e esgotamento  
de seus nutrientes, do uso excessivo de agrotóxicos culminando em poluição de rios, e do  
próprio desmatamento de uma vasta área.  
286  
Além da expansão agrícola, o capital imobiliário também vem impactando e  
fragilizando a gestão da terra na cidade, que se configura como um campo em constante disputa.  
Como exemplo, durante o período da Copa do Mundo de 2014, Soares (2015, p. 24) pontuou  
que, para sediar esse megaevento, o poder público flexibilizou a legislação urbana de Porto  
Libertas, Juiz de Fora, v. 25, n. 1, p. 272-294, jan./jun. 2025. ISSN 1980-8518  
A questão ambiental e destrutividade capitalista: o desastre ambiental no Rio Grande do Sul  
Alegre, “visando menos entraves e maior agilidade para aprovação dos grandes  
empreendimentos imobiliários. Posteriormente, outras leis de incentivo desoneraram os  
empreendimentos relativos à Copa de impostos”. Nessa época, além do crescimento do  
investimento imobiliário, principalmente ao redor de algumas obras realizadas em áreas  
valorizadas, ocorreram desapropriações de comunidades tradicionais em nome de tais obras.  
Esse processo de espoliação de populações tradicionais, ameaçadas ou expulsas de seus  
territórios, bem como os riscos gerados por grandes projetos urbanos na Orla do Guaíba e no  
Cais Mauá, vêm sendo alertados por pesquisadores, apesar de certo desprezo dos governantes  
(Miola, 2024). Somado a isso, o avanço da construção civil tem contribuído para a ampliação  
de uma cidade segregada em termos de moradia de grupos e classes sociais.  
A expansão da moradia popular se dá especialmente nos extremos sul e leste  
da metrópole, onde o solo urbano de menor custo permite a construção de  
habitações também de baixo custo. Entretanto, essa produção não é suficiente  
para atender a demanda do déficit habitacional, concentrada nos extratos mais  
baixos da pirâmide social. Persistem, portanto, as ocupações informais nos  
interstícios do tecido urbano pouco valorizados pelo capital imobiliário  
(Soares, 2015, p. 28).  
Ou seja, a localização de um terreno constitui um valor de uso socialmente produzido,  
sendo o solo valorizado a depender de determinadas vantagens locacionais também construídas  
socialmente, a exemplo de estar situado nas proximidades de espaços públicos, de lazer, de  
serviços, de comércio, de saneamento básico, entre outros aspectos frequentemente  
negligenciados em outros espaços delegados a uma parcela populacional que, num contexto de  
segregação social e territorial, se instalam em locais mais propensos a inundações,  
deslizamentos de terra e outros relacionados.  
287  
A desproteção da cidade é obra do condomínio de poder que se reveza na  
condução da Prefeitura há 20 anos, e que transformou Porto Alegre num  
laboratório de experimentos ultraliberais. O território da cidade foi convertido  
num campo livre para a exploração econômica inescrupulosa, segregacionista  
e ecocida do capital imobiliário em sociedade com as finanças e a mídia  
hegemônica (Miola, 2024, p. 1).  
Ainda que grande parte da população do Rio Grande do Sul tenha sido afetada pelas  
enchentes, não é possível afirmar que todos foram atingidos da mesma forma. Uma parcela  
significativa da população ficou sem energia elétrica, sem abastecimento de água, sem serviços  
de telefonia e internet por um período e teve sua rotina diária e deslocamentos pela cidade  
prejudicados pela enchente, com rodovias bloqueadas, interrupção dos aeroportos e estações de  
trem (Defesa Civil RS, 2024). Outra parcela foi orientada a deixar suas moradias devido ao  
risco de alagamento, mas não sofreu prejuízos habitacionais. Um terceiro grupo perdeu suas  
residências e familiares, tendo que buscar refúgio em abrigos gerenciados por órgãos públicos,  
Letícia Soares Nunes; Paula Algeri Roithmann  
organizações da sociedade civil, voluntários e também pela agência da ONU, como o Centro  
Humanitário de Acolhimento (CHA), implementado em Porto Alegre e Canoas.  
Em relação aos impactos da enchente e deslizamentos, as pesquisas vêm demonstrando  
que há uma distribuição desigual dos danos ambientais entre países e grupos sociais. Os recortes  
de classe, gênero/sexualidade, raça/etnia, geração e condição de deficiência consistem em  
indicativos de maior vulnerabilidade (Clarke et al., 2024; World Risk Report, 2023; Herculano,  
2008), evidenciando processos de injustiça e racismo ambiental.  
Posicionar o debate no conceito de injustiça e racismo ambiental constitui numa  
estratégia de romper com o discurso hegemônico que responsabiliza igualmente todos os  
sujeitos pelos danos ambientais, pressupondo um caráter “democrático” na distribuição de seus  
efeitos (Acselrad et al., 2012; Nunes, 2012). Também serve para reiterar o já exposto  
anteriormente sobre as evidências de que as injustiças sociais e ambientais recaem, de forma  
desproporcional, sobre etnias subalternizadas.  
Ao fazer um recorte para o Rio Grande do Sul, os dados indicam que os impactos mais  
graves atingiram pelo menos 70% das aldeias indígenas; 209 famílias ciganas foram afetadas;  
e, das 147 comunidades quilombolas do estado, 136 estão localizadas em municípios declarados  
em estado de calamidade ou em situação de emergência (MIR, 2024). Além disso, as áreas mais  
afetadas foram aquelas com menor rendimento médio da população, como Sarandi, Rubem  
Berta e Humaitá (em Porto Alegre); Mathias Velho (em Canoas); Santo Afonso (em Novo  
Hamburgo); Santa Rita (em Guaíba); e Santos Dumont e Campina (em São Leopoldo). Outro  
ponto evidenciado é que as áreas mais atingidas pelas enchentes apresentaram concentração  
expressiva de população negra (Augustin; Soares, 2024).  
288  
Como uma forma específica de desigualdade e injustiça ambiental que atinge etnias e  
determinados segmentos populacionais negros, índios, quilombolas, migrantes, extrativistas,  
pescadores, trabalhadores pobres, entre outros , o racismo ambiental é entendido como um  
“conjunto de ideias e práticas das sociedades e seus governos, que aceitam a degradação  
ambiental e humana, com a justificativa da busca do desenvolvimento e com a naturalização  
implícita da inferioridade de determinados segmentos da população afetados” (Herculano,  
2006, p. 11). Trata-se de uma população que tem seus direitos cotidianamente violados e que  
tem se confrontado com grandes empreendimentos desenvolvimentistas (barragens, projetos de  
monocultura, maricultura, hidrovias, rodovias, etc.) que “os expelem de seus territórios e  
desorganizam suas culturas, seja empurrando-os para as favelas das periferias urbanas, seja  
forçando-os a conviver com um cotidiano de envenenamento e degradação de seus ambientes  
de vida” (Herculano, 2008, p. 16).  
Libertas, Juiz de Fora, v. 25, n. 1, p. 272-294, jan./jun. 2025. ISSN 1980-8518  
A questão ambiental e destrutividade capitalista: o desastre ambiental no Rio Grande do Sul  
A injustiça ambiental associada aos processos de desigualdade estrutural:  
[...] resulta da lógica perversa de um sistema de produção, de ocupação do  
solo, de destruição de ecossistemas, de alocação espacial de processos  
poluentes, que penaliza as condições de saúde da população trabalhadora,  
moradora de bairros pobres e excluída pelos grandes projetos de  
desenvolvimento. Uma lógica que mantém grandes parcelas da população às  
margens das cidades e da cidadania, sem água potável, coleta adequada de lixo  
e tratamento de esgoto. Uma lógica que permite que grandes empresas lucrem  
com a imposição de riscos ambientais e sanitários aos grupos que, embora  
majoritários, por serem pobres, têm menos poder de se fazer ouvir na  
sociedade e, sobretudo, nas esferas do poder. Enquanto as populações de maior  
renda têm meios de se deslocar para áreas mais protegidas da degradação  
ambiental, as populações pobres são espacialmente segregadas, residindo em  
terrenos menos valorizados e geotecnicamente inseguros, utilizando-se de  
terras agrícolas que perderam fertilidade e antigas áreas industriais  
abandonadas, via de regra contaminadas por aterros tóxicos clandestinos  
(RBJA, 2022, p. 3).  
O contexto de distribuição desigual do poder e da riqueza, de expropriação e segregação  
do território e dos recursos naturais, associado a uma colonização marcada pela submissão e  
dominação de determinados grupos étnico-raciais, evidencia que a injustiça ambiental e o  
racismo ambiental estão enraizados na formação sócio-histórica brasileira. Desse modo, tal  
como se buscou aprofundar nas reflexões aqui apresentadas, a compreensão do desastre  
ocorrido no Rio Grande do Sul não pode estar dissociada da incorporação de uma perspectiva  
analítica e crítica da centralidade da produção social dos espaços urbano e agrário e do  
ambiente. Isso reforça que, no caso particular dos desastres, estes não são fenômenos naturais,  
tampouco eventuais, mas sim frutos de desigualdades históricas inerentes ao modo de produção  
em curso.  
289  
Considerações finais  
O presente artigo teve como objetivo debater a relação entre o desenvolvimento  
capitalista e a intensificação dos desastres ambientais, tendo como lócus o desastre ocorrido no  
Rio Grande do Sul em 2024. Ainda que situado no contexto específico do referido estado, as  
reflexões realizadas podem ser ampliadas e, em alguma medida, generalizadas para outras  
realidades, visto que a intensificação dos desastres ambientais não é uma peculiaridade regional,  
mas sim reflexo de processos globais associados ao desenvolvimento capitalista.  
O sistema econômico vigente, ao priorizar o lucro e a exploração indiscriminada dos(as)  
trabalhadores(as) e dos recursos naturais, tem exacerbado não apenas a frequência, mas também  
a gravidade dos desastres, como o experienciado no Rio Grande do Sul em 2024; nos crimes  
ambientais ocorridos em Mariana e Brumadinho em Minas Gerais nos anos de 2015 e 2019,  
respectivamente; nos incêndios florestais nos estados de Mato Grosso do Sul, Mato Grosso,  
Letícia Soares Nunes; Paula Algeri Roithmann  
Pará e São Paulo em 2024, dentre tantos outros desastres de grandes proporções repetidos a  
cada ano, evidenciando que a típica frase de “aprender com a tragédia” tem ficado apenas no  
discurso.  
Conforme expõem Dutra, Pase e Pereira (2024, p. 81), entende-se que as verdadeiras  
causas dos desastres “são decisões tomadas ou que deixaram de ser tomadas pautadas em uma  
forma de organização social na qual prevalece um tipo de desenvolvimento com ênfase nos  
aspectos econômicos e descolados dos aspectos sociais”. Não estando, portanto, desprovidas de  
intencionalidade, as decisões que vêm sendo evidenciadas no estado do Rio Grande do Sul  
privilegiam determinados segmentos em detrimento de outros.  
O desastre ocorrido no Rio Grande do Sul revelou a intensificação dos processos de  
destrutividade ambiental; o sucateamento dos serviços públicos; o desmonte das políticas  
ambientais; o negacionismo climático; a segregação socioespacial; e um território alvo da  
exploração agrícola e do capital imobiliário. As consequências desse modelo de gestão da  
cidade e do modo de produção em curso reforçam a concentração da riqueza e externalizam os  
impactos da destrutividade sobre as populações pauperizadas, evidenciando os processos de  
injustiça e racismo ambiental.  
Diante da incompatibilidade entre o desenvolvimento econômico e o desenvolvimento  
social e ambiental no capitalismo, corrobora-se com a análise de Acselrad et al. (2012, p. 176),  
segundo a qual “a problemática ambiental está longe de ser aquela que uniria todos os atores  
sociais em torno de um objetivo comum, uma vez que reserva a determinados grupos o papel  
de receptáculo dos rejeitos produzidos por atividades que destinam aos grupos hegemônicos os  
proveitos do desenvolvimento”.  
290  
Ter clareza desses aspectos é fundamental para uma análise crítica das diferentes  
estratégias lançadas como solução para a crise ambiental, seja a nível internacional, nacional  
ou local, as quais, em grande parte, estão associadas a um conjunto de reformas para  
manutenção do status quo (Silva, 2008; Foladori, 2015; Nunes, 2018). É igualmente essencial  
para ampliar os espaços de resistência e situar a luta ambiental no campo da luta por uma  
sociedade emancipada e essencialmente anticapitalista.  
Nesse sentido, sendo o Serviço Social uma profissão que se propõe a apreender  
criticamente os processos sociais, que advoga pela superação do capital, ela não pode ficar  
alheia ao debate sobre a questão ambiental e sua articulação com as questões agrária e urbana  
, cuja origem está relacionada à dinâmica de reprodução do capital, que vem subordinando o  
homem e a natureza à sua racionalidade destrutiva.  
Libertas, Juiz de Fora, v. 25, n. 1, p. 272-294, jan./jun. 2025. ISSN 1980-8518  
A questão ambiental e destrutividade capitalista: o desastre ambiental no Rio Grande do Sul  
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Reassentamento involuntário e desenvolvimento  
urbano em Belém – Pará  
Involuntary resettlement and urban development in Belém – Pará  
Gizele Cristina Carvalho dos Santos*  
Hisakhana Pahoona Corbin**  
Resumo: Este artigo discute o reassentamento  
involuntário em decorrência de Programas de  
Desenvolvimento Urbano, tendo como enfoque  
a experiência do Programa de Saneamento da  
Bacia da Estrada Nova I, em Belém, estado do  
Pará. A metodologia adotada incluiu a revisão  
da literatura sobre reassentamento involuntário  
e desenvolvimento urbano; pesquisa de políticas  
Abstract: This article discusses the involuntary  
resettlement as a result of Urban Development  
Programs/Projects by focusing on the  
experience of the Sanitation Program Estrada  
Nova Basin, in Belém, state of Pará. The  
methodology adopted included a literature  
review on the theme of involuntary resettlement  
and urban development; documentary research,  
through consultation of safeguard policies and  
other environmental and social guidelines of the  
Inter-American Development Bank and the  
World Bank Group; as well as collecting  
quantitative data from the IADB, World Bank  
Group, Trata Brasil Institute and IBGE  
databases. The results show that, despite the  
mitigating measures adopted by PROMABEN  
I, the resettlement of 92 families led to a  
breaking ties with the territory of origin and an  
increase in the cost of living in the new territory.  
Based on the lessons learned, the article  
reinforces the importance of employment and  
income generation strategies to avoid  
impoverishing resettled families.  
de salvaguardas  
e
outros documentos  
socioambientais do Banco Interamericano de  
Desenvolvimento e do Grupo Banco Mundial;  
além da coleta de dados quantitativos nos  
bancos de dados do BID, Grupo Banco  
Mundial, Instituto Trata Brasil e IBGE. Os  
resultados apontam que, apesar das medidas  
mitigadoras adotadas pelo PROMABEN I, o  
reassentamento de 92 famílias gerou a ruptura  
de vínculos com o território de origem e o  
encarecimento do custo de vida no novo  
território. Apartir das lições aprendidas, o artigo  
reforça a importância das ações de geração de  
emprego  
e
renda, visando evitar  
o
empobrecimento de famílias reassentadas.  
Palavras-chaves:  
involuntário;  
Reassentamento  
Desenvolvimento urbano;  
Keywords: Involuntary resettlement; Urban  
development; PROMABEN I; Belém.  
PROMABEN I; Belém.  
* Universidade Federal do Pará. E-mail: gizelecarvalhoufpa@gmail.com  
** Universidade Federal do Pará. E-mail: hisacorbin@hotmail.com  
DOI: 10.34019/1980-8518.2025.v25.47729  
Esta obra está licenciada sob os termos  
Recebido em: 08/03/2025  
Aprovado em: 05/05/2025  
Gizele Cristina Carvalho dos Santos; Hisakhana Pahoona Corbin  
Introdução  
O artigo discute o reassentamento involuntário em decorrência de Programas de  
Desenvolvimento Urbano, de modo particular, do setor de água e saneamento. O trabalho tem  
como enfoque a experiência de pós-reassentamento de 92 (noventa e duas) famílias afetadas  
diretamente pelo Programa de Saneamento da Bacia da Estrada Nova I, em Belém, estado do  
Pará. As pesquisas de Santana et al. (2020), Batista (2017) e Tavares (2020) indicam que, a  
partir de 2012 até 2019, essas famílias foram reassentadas definitivamente no Residencial  
Cabano Antônio Vinagre, no bairro do Curió-Utinga, em Belém.  
O PROMABEN, na sua primeira etapa, iniciada em 2009, foi classificado com a  
categoria de impacto A, considerando a sua dimensão e os profundos impactos sociais e  
ambientais que poderia gerar na bacia hidrográfica da Estrada Nova e estava inserido no setor  
de água e saneamento (Banco Interamericano de Desenvolvimento, 2020). O Programa foi  
concebido pela Prefeitura Municipal de Belém para solucionar a questão do saneamento na  
bacia hidrográfica da Estrada Nova, território considerado de baixada, acometido  
historicamente por alagamentos. Com financiamento do Banco Interamericano de  
Desenvolvimento (BID), por meio do Mecanismo Creditício para o Financiamento dos  
Municípios Brasileiros PROCIDADES, o PROMABEN I teve um investimento total de USD  
145.871.965,00 (cento e quarenta e cinco milhões, oitocentos e setenta e um mil dólares) (Banco  
Interamericano de Desenvolvimento, 2024).  
296  
Como procedimento metodológico, realizou-se: revisão de literatura sobre os temas:  
‘reassentamento involuntário’ e ‘desenvolvimento urbano’; pesquisa documental, por meio da  
consulta às políticas de salvaguardas e demais orientações ambientais e sociais do Banco  
Interamericano de Desenvolvimento e Grupo Banco Mundial; um levantamento realizado nas  
páginas do BID1 e Grupo Banco Mundial2, onde foram pesquisados, tabulados e analisados  
dados referentes ao quantitativo dos programas de desenvolvimento ativos no mundo; e  
1
O levantamento no site do BID (https://www.iadb.org/pt-br) foi realizado da seguinte forma: foi aberto o item  
Projetos. Após a aba aberta, ao final da página, visualizou-se o item ‘Projetos de Desenvolvimento em ação’. Em  
seguida, clicou-se em ‘Portfólio Ativo’ e realizou-se a soma de status dos projetos conforme os ciclos dos  
projetos/programas do BID: ‘Garantia soberana’, ‘Não garantido soberanamente’, ‘Não reembolsável’ e  
‘Instalações, Linhas de Crédito e Programas’. Após a soma, identificou-se um total de 3.320 projetos/programas  
de desenvolvimento em ação na América Latina e Caribe. Ainda no ‘Portfólio Ativo’, realizou-se da mesma  
forma a soma dos quantitativos de projeto/programa por país em ‘Projetos por país’ e por setor em ‘Projetos por  
Setor’, conforme o status dos projetos conforme os ciclos dos projetos/programas do BID: ‘Garantia soberana’,  
‘Não garantido soberanamente’, ‘Não reembolsável’ e ‘Instalações, Linhas de Crédito e Programas’.  
2
O levantamento no site do Grupo Banco Mundial (https://www.bancomundial.org/es/home) foi realizado da  
seguinte forma: foi aberto o item Projetos e Operações. Após a aba aberta, foi aberto o item ‘Mapa Interativo’.  
Em seguida, no mapa interativo, selecionaram-se os ‘ProjetosAtivos’, identificando-se 1.817 projetos/programas  
de desenvolvimento no mundo. Ainda nesta aba, identificou-se o quantitativo de projetos/programas por  
continente em ‘Regiões’ e por setor em ‘Setores’.  
Libertas, Juiz de Fora, v. 25, n. 1, p. 295-319, jan./jun. 2025. ISSN 1980-8518  
Reassentamento involuntário e desenvolvimento urbano em Belém Pará  
consulta às bases de dados do Instituto Trata Brasil sobre o acesso da população ao saneamento  
e água no Brasil.  
Diante disso, o artigo está divido em sua estrutura em: tópico 1, contendo a introdução;  
no tópico 2 tem-se reflexões a partir de dados quanti-quali sobre os programas de  
desenvolvimento urbano e o reassentamento em nível global; no tópico 3, buscou-se abordar o  
desenvolvimento urbano e reassentamento involuntário no contexto brasileiro, enfatizando, a  
cidade de Belém do Pará; no tópico 4 são explanados os marcos regulatórios e instrumentos de  
planejamento do reassentamento involuntário; no tópico 5 será abordado o reassentamento  
involuntário no PROMABEN I; no tópico 6 são apresentadas as lições aprendidas com o  
PROMABEN I e as experiências de boas práticas; e no tópico 7 tem-se as conclusões.  
Urbanização em nível global  
As cidades dos continentes africano, asiático e América Latina e Caribe vêm passando  
por grandes transformações em decorrência de programas de desenvolvimento urbano (Beier et  
al., 2021). Analisando a atuação do Grupo Banco Mundial, percebe-se que o seu maior  
investimento em programas de desenvolvimento se dá em países do sul global, sobretudo na  
África, Ásia e América Latina e Caribe, como mostra a tabela 1.  
Tabela 1: Programas de desenvolvimento ativos no mundo, com financiamento do Grupo Banco Mundial –  
297  
2024.  
Continentes/Regiões  
África  
Número de Programas  
Percentual  
44%  
801  
257  
252  
251  
242  
14  
Leste Asiático e Pacífico  
América Latina e Caribe  
Europa e Ásia Central  
Sul da Ásia  
14%  
14%  
14%  
13%  
Outros  
1%  
Total  
1.817  
100%  
Fonte: Grupo Banco Mundial (2024).  
O desenvolvimento urbano, singularmente, o acesso ao saneamento e à água, como  
direito humano, é uma demanda global. Segundo dados da Organização das Nações Unidas, em  
2023, 46% ou 3,6 (três milhões e seiscentas mil) pessoas no mundo não possuíam acesso a  
serviços de saneamento seguros e até 2050, 2,5 (dois milhões e quinhentas mil) pessoas  
permanecerão sem acesso a esse direito humano (Organização das Nações Unidas, 2023).  
Uma visão panorâmica dos programas de desenvolvimento financiados pelo Grupo  
Banco Mundial, em 146 (cento e quarenta e seis) países, demonstra que o maior quantitativo de  
programas de desenvolvimento está na: Índia (85), Paquistão (50), Brasil (42), Indonésia (42),  
Gizele Cristina Carvalho dos Santos; Hisakhana Pahoona Corbin  
China (35), Etiópia (35), Moçambique (31), Quênia (30), Tanzânia (30), Turquia (30) e  
Argentina (25) (Grupo Banco Mundial, 2024). Analisando apenas os programas do setor de  
água, saneamento e resíduos, dentre os 255 (duzentos e cinquenta e cinco) financiados pelo  
Grupo Banco Mundial no mundo, tem-se o seu maior quantitativo nos seguintes países: Índia  
(21), China (13), Paquistão (9), Brasil (7), Quênia (6), Moçambique (6), Tanzânia (5),  
Argentina (5) e Malawi (5) (Grupo Banco Mundial, 2024).  
Estes programas de desenvolvimento, de responsabilidade de mutuários, caso não  
evitem ou minimizem os deslocamentos populacionais, precisam planejar o reassentamento  
involuntário de populações rurais, urbanas, quilombolas e indígenas visando melhorar ou  
restaurar os meios de vida e sobrevivência e garantir os direitos humanos, conforme as  
orientações dos agentes financiadores e marco legal de cada país, estado ou município (Grupo  
Banco Mundial, 2017; Banco Interamericano de Desenvolvimento, 2020; Instituto  
Interamericano de Desenvolvimento Econômico e Social, 2023). Ademais, o programa de  
desenvolvimento é classificado pelo agente financiador em relação ao nível de impacto e risco  
socioambiental e, durante a implementação, é monitorado constantemente para verificar o  
cumprimento das Políticas de Salvaguardas e do Marco de Políticas Ambiental e Social, de  
modo especial, a Política Operativa 710 e o Padrão de Desempenho, sobre o reassentamento  
involuntário (Banco Interamericano de Desenvolvimento, 1998; 2020) ou o Quadro Ambiental  
e Social, de modo específico, a Norma Ambiental e Social 5, sobre o reassentamento  
involuntário (Grupo Banco Mundial, 2017).  
298  
Beier et al. (2021) enfatizam que os programas de desenvolvimento urbano possuem o  
efeito duplo e contraditório de produzir/renovar e destruir o espaço urbano. Na obra Os direitos  
humanos à água e ao saneamento, Heller (2022) estima que todos os anos em torno de 10 a 15  
milhões de pessoas são forçadas a se deslocar por conta de programas de desenvolvimento,  
como barragens, desenvolvimento urbano, infraestrutura e transporte. Ademais, existem outros  
fatores que podem gerar deslocamentos involuntários, como as mudanças climáticas, que apesar  
de não serem objeto de análise neste artigo, conforme dados do Grupo Banco Mundial (2021),  
até 2050, o mundo teria 216 (duzentos e dezesseis milhões) de pessoas migrando internamente  
por conta das mudanças climáticas: 85,7 (oitenta e cinco milhões e setecentos mil) pessoas na  
África Subsaariana, 48,4 (quarenta e oito milhões e quatrocentos mil) na Ásia Oriental e no  
Pacífico, 40,5 (quarenta milhões e quinhentos mil) no Sul da Ásia, 19,3 (dezenove milhões e  
trezentos mil) no Norte de África, 17,1 (dezessete milhões e cem mil) na América Latina e 5,1  
(cinco milhões e cem mil) na Europa Oriental e Ásia Central.  
Libertas, Juiz de Fora, v. 25, n. 1, p. 295-319, jan./jun. 2025. ISSN 1980-8518  
Reassentamento involuntário e desenvolvimento urbano em Belém Pará  
Pondera-se que as diversas cidades em nível mundial precisam seguir um novo  
paradigma de desenvolvimento que priorize a redução da pobreza e das desigualdades  
socioterritoriais para diversas populações, inclusive migrantes e refugiados, o cuidado com o  
meio ambiente e a mitigação das mudanças climáticas (Acselrad, 2001; OIM, 2022). Em  
períodos mais recentes, as orientações da Nova Agenda Urbana, dos Objetivos do  
Desenvolvimento Sustentável (ODS), as deliberações das Conferências da ONU sobre  
Mudanças Climáticas, os Planos de Mudanças Climáticas são fundamentais para repensar o  
desenvolvimento das cidades, especialmente, do sul global.  
Por outro lado, não se pode perder de vista o processo global de construção de cidades  
vitrine, mercadoria de luxo, modernas, competitivas e prontas para serem consumidas por um  
público específico e qualificado (Vainer, 2000; Sánchez, 2001). Conforme Beier et al. (2021,  
p. 22), esse modelo de planejamento com enfoque neoliberal exerce pressão sobre as  
populações que vivem em territórios populares com ausência de serviços básicos e que também  
querem ter acesso aos centros urbanizados, dotados de infraestrutura e ao moderno, como  
cidadãos. Para Beier et al., (2021, p. 23), “nesse contexto de rápida e fundamental  
transformação urbana, o deslocamento e a realocação planejada tornaram-se características  
significativas do desenvolvimento e planejamento urbano em cidades do Sul Global”.  
O reassentamento urbano para os autores refere-se “aos processos interligados de  
deslocamento, realocação planejada e reinstalação que ocorrem por vários motivos dentro de  
áreas metropolitanas” (Beier et al., 2021, p. 24). Para Spire e Pilo (2021, p. 81), o  
reassentamento como um processo destrutivo e criativo “opera como um processo que  
reestrutura o espaço urbano e as relações de poder não apenas por meio da dominação, mas  
também por meio do autocontrole, da disciplina e da responsabilidade”.  
299  
Pode-se afirmar que, na atualidade, o BID e o Grupo Banco Mundial são as principais  
agências multilaterais que financiam programas de desenvolvimento no mundo e na América  
Latina e Caribe. Identificou-se que o Grupo Banco Mundial possui 1.817 (mil, oitocentos e  
dezessete) Programas de desenvolvimento ativos no mundo, como mencionado anteriormente.  
No contexto da América Latina e Caribe, destaca-se que vêm sendo implementados 252  
(duzentos e cinquenta e dois) programas; e 92 (noventa e dois) ou 36,6% destes programas  
estão sendo implementados em países amazônicos, como mostra a tabela 2.  
Gizele Cristina Carvalho dos Santos; Hisakhana Pahoona Corbin  
Tabela 2: Programas de desenvolvimento ativos nos países amazônicos, com financiamento do Grupo Banco  
Mundial 2024.  
Países  
Número de Programas  
Percentual  
46%  
2%  
Brasil  
42  
2
Suriname  
Guiana  
7
8%  
Colômbia  
Peru  
15  
12  
9
16%  
13%  
10%  
5%  
Equador  
Bolívia  
5
Venezuela  
Guiana Francesa  
Total  
0
0%  
0
0%  
92  
100%  
Fonte: Grupo Banco Mundial (2024).  
O BID possui 3.320 (três mil e trezentos e vinte) programas de desenvolvimento em  
ação na América Latina e Caribe. Destes, 966 (novecentos e sessenta e seis) ou 29,1% dos  
programas estão sendo implementados em países amazônicos. O Brasil possui 254 (duzentos e  
cinquenta e quatro) ou 26% do total de programas implementados nos países amazônicos, como  
mostra a tabela 3.  
Tabela 3: Programas de desenvolvimento em implementação nos países amazônicos com financiamento do BID  
2024.  
Países  
Número de Programas  
Percentual  
26%  
7%  
300  
Brasil  
254  
70  
Suriname  
Guiana  
44  
4%  
Colômbia  
Peru  
210  
142  
131  
95  
22%  
15%  
14%  
10%  
2%  
Equador  
Bolívia  
Venezuela  
Guiana Francesa  
Total  
20  
0
26%  
100%  
966  
Fonte: Banco Interamericano de Desenvolvimento (2024).  
Ambos os bancos atuam em diversos setores, como agricultura, educação, energia,  
saúde, indústria e comércio/serviços, proteção social, água/saneamento/resíduos, gênero,  
desenvolvimento rural, meio ambiente e desastres naturais, indústrias, ciência e tecnologia e  
desenvolvimento urbano e habitação (Grupo Banco Mundial, 2024; Banco Interamericano de  
Desenvolvimento, 2024).  
De modo particular, em relação ao setor de água/saneamento/resíduos, existem 277  
(duzentos e setenta e sete) programas em implementação na América Latina e Caribe e  
financiados pelo BID. Desse total, 22 (vinte e dois) ou 8% estão em implementação no Brasil.  
Libertas, Juiz de Fora, v. 25, n. 1, p. 295-319, jan./jun. 2025. ISSN 1980-8518  
Reassentamento involuntário e desenvolvimento urbano em Belém Pará  
Já o Grupo Banco Mundial financia 255 (duzentos e cinquenta e cinco) programas do setor de  
água, saneamento e resíduos, sendo 39 (trinta e nove) implementados na América Latina e  
Caribe e 7 (sete) ou 18% estão sendo implementados no Brasil, como mostra a tabela 4.  
Tabela 4: Programas do setor água/saneamento/resíduos em implementação na América Latina e Caribe e nos  
países amazônicos com financiamento do BID e Grupo Banco Mundial 2024.  
América Latina e Caribe e Brasil  
Total de programas  
% de Programas  
Banco Interamericano de Desenvolvimento  
América Latina e Caribe  
Brasil  
277  
22  
100%  
8%  
Grupo Banco Mundial  
Mundo  
América Latina e Caribe  
Brasil  
255  
39  
7
100%  
15,3%  
18%  
Fonte: Banco Interamericano de Desenvolvimento (2024); Grupo Banco Mundial (2024).  
Dessa forma, percebe-se que o desenvolvimento urbano, especificamente, o setor de  
água e saneamento, vem sendo uma demanda para o mundo, mas substancialmente, para o sul  
global. Tais programas, a depender da classificação de risco ambiental e social definida pelas  
agências multilaterais, podem prever o reassentamento involuntário de famílias e comerciantes  
dos diversos territórios populares, porém com o prévio planejamento do reassentamento e a  
maximização da participação das partes interessadas. Para a literatura crítica, esses processos  
de reassentamento representam a “destruição criativa” do espaço urbano e a contradição de  
destruição do velho e produção do novo espaço urbano (Jorge; Melo, 2021; Beier et al., 2021).  
301  
Desenvolvimento urbano e reassentamento involuntário no Brasil e na Região  
Norte  
Conforme dados do Painel Saneamento Brasil, do Instituto Trata Brasil (2022), no país,  
15,8% ou 32.037.802 (trinta e dois milhões, trinta e sete mil e oitocentos e dois) pessoas vivem  
sem acesso à água e 44,5% ou 90.276.796 (noventa milhões, duzentos e setenta e seis e  
setecentos e noventa e seis) pessoas não possuem coleta de esgoto. Ao olhar para as regiões  
geográficas do Brasil, percebe-se as diferenças e desigualdades do acesso à água e ao  
saneamento, como mostra a tabela 5.  
Tabela 5: Total da população sem acesso à água e saneamento, por Regiões Geográficas Brasil 2022.  
Nº população % população  
Nº população % população  
sem coleta de sem coleta de  
Regiões Geográficas/  
Brasil  
População sem acesso à  
sem acesso à  
água  
água  
esgoto  
esgoto  
Brasil  
203.080.756 32.037.802  
15,8%  
37,6%  
90.276.796  
14.877.014  
44,5%  
85,7%  
Norte  
17.354.884  
6.516.769  
Gizele Cristina Carvalho dos Santos; Hisakhana Pahoona Corbin  
Nordeste  
Centro-Oeste  
54.658.515  
16.289.538  
13.319.098  
1.785.105  
24,4%  
11%  
37.793.421  
6.223.922  
16.302.137  
15.080.302  
69,1%  
38,2%  
19,2%  
50,4%  
Sudeste  
Sul  
84.840.113  
29.937.706  
7.867.642  
2.549.188  
9,3%  
8,5%  
Fonte: Instituto Trata Brasil (2022).  
No município de Belém do Pará, estima-se que 4,5% ou 58.438 (cinquenta e oito mil e  
quatrocentos e trinta e oito) pessoas não têm acesso à água e 80,1% ou 1.044.348 (um milhão,  
quarenta e quatro mil e trezentos e quarenta e oito) pessoas vivem sem coleta de esgoto.  
Na Amazônia, de modo particular, em Belém do Pará, de acordo com Trindade Jr.  
(1997), programas de desenvolvimento urbano, de saneamento e embelezamento ocorreram em  
diversos momentos nas chamadas de “baixadas”3 (Trindade Jr., 1997). Ao longo dos séculos  
XX e XXI, foram e estão sendo implementadas obras de macrodrenagem, em diversas bacias  
hidrográficas do município de Belém, e que obrigam processos de reassentamento involuntário  
de populações de territórios de baixadas, como o Programa de Macrodrenagem da bacia do  
Una, realizado no período de 1993 a 2004, teve como principal agente financiador o BID  
(Portela, 2005); e a Macrodrenagem da bacia do Tucunduba, iniciada em 1993 e ainda em  
execução, atualmente, pelo Governo do estado do Pará, tendo como agente financiador a Caixa  
Econômica Federal (Barbosa et al., 2003); e cabe citar que mais recentemente, a Prefeitura  
Municipal de Belém obteve a aprovação do financiamento internacional do Fundo Financeiro  
para Desenvolvimento da bacia do Prata (FONPLATA) para a implementação do Programa de  
Macrodrenagem da bacia hidrográfica do Mata Fome (PROMMAF).  
302  
Mesmo diante dos investimentos em saneamento no país, por meio da reestruturação da  
política urbana no Brasil a partir dos anos 2000 com a criação do Ministério das Cidades,  
aprovação do Estatuto da Cidade lei nº 10.257, de 10 de julho de 2001, a orientação para a  
construção de Planos Diretores Municipais, criação do Programa de Aceleração do Crescimento  
PAC, criação de várias legislações sobre o trabalho social, citando mais recentemente a  
Instrução Normativa 464/2018, e ainda a criação da Portaria nº 317/2013 , considerando o  
cenário de agravamentos das condições de moradia nas cidades brasileiras, os governos  
municipal e estadual passaram a recorrer as agências de financiamento, nacional e internacional,  
como a Caixa Econômica Federal, o Grupo Banco Mundial e o Banco Interamericano de  
Desenvolvimento BID.  
3 As “baixadas” “(...) são áreas inundadas ou sujeitas às inundações – decorrentes, em especial, dos efeitos das  
marés – e ficaram conhecidas, principalmente a partir da década de 60, por serem espaços de moradia das  
camadas sociais de baixo poder aquisitivo” (Trindade Jr., 1997, p. 22).  
Libertas, Juiz de Fora, v. 25, n. 1, p. 295-319, jan./jun. 2025. ISSN 1980-8518  
Reassentamento involuntário e desenvolvimento urbano em Belém Pará  
Dentre as iniciativas do BID para impulsionar o desenvolvimento urbano em cidades  
médias do Brasil, destaca-se a criação, em 2006, do Mecanismo Creditício para o  
Financiamento dos Municípios Brasileiros PROCIDADES (Eguino; Provedello, 2016). Com  
base nos dados de Eguino e Provedello (2016), entre 2007 à 2014, o Procidades financiou mais  
de 20 programas de desenvolvimento urbano em cidades médias no Brasil. Dentre os programas  
que foram financiados pelo Procidades, citam-se dois, implementados na Região Norte: as três  
etapas do Programa Social e Ambiental dos Igarapés de Manaus PROSAMIM, que, somando,  
reassentou e atuou com 14.765 (quatorze mil, setecentas e sessenta e cinco) famílias, entre 2006  
a 2022 (Manaus, 2020); e o Programa de Saneamento da Bacia da Estrada Nova I,  
implementado pela Prefeitura Municipal de Belém, que estimou 2.119 (dois mil, cento e  
dezenove) famílias afetadas diretamente nas sub-bacias I, II, III e IV da bacia hidrográfica da  
Estrada Nova (Belém, 2007).  
Em tempos mais recentes, outros programas financiados pelo BID, vem sendo  
implementados na Região Norte, nos estados do Amazonas e Pará, como: o Programa Social e  
Ambiental de Manaus e do Interior PROSAMIN+ que irá reassentar 1.836 (mil, oitocentos e  
trinta e seis) famílias (Amazonas, 2021), pelo Governo do estado do Amazonas; o Programa de  
Saneamento da Bacia da Estrada Nova II, que irá reassentar 423 (quatrocentos e vinte e três)  
famílias, pela Prefeitura Municipal de Belém (Belém, 2022) e o Programa de Saneamento  
Ambiental e Macrodrenagem e Recuperação de Igarapés e Margens do Rio Parauapebas –  
PROSAP que irá reassentar 550 (quinhentos e cinquenta) famílias, pela Prefeitura Municipal  
de Parauapebas (Parauapebas, 2019).  
303  
A partir disso, busca-se adentrar no próximo item, nos marcos regulatórios e  
instrumentos do planejamento do reassentamento involuntário em programas de  
desenvolvimento urbano no Brasil.  
Marcos regulatórios do reassentamento involuntário em programas de  
desenvolvimento urbano no Brasil  
Diante da implementação de programas de desenvolvimento, que realizam  
reassentamento involuntário, é necessária a operacionalização de medidas visando mitigar os  
diversos impactos socioambientais, o que vem sendo definido nos instrumentos legais  
nacionais, nas políticas de salvaguardas e outros instrumentos elaborados pelos agentes  
financiadores internacionais, como o BID e Grupo Banco Mundial.  
Um primeiro aspecto a ser considerado na operacionalização dos processos de  
reassentamento involuntário, diante da complexidade, é a garantia de direitos humanos  
Gizele Cristina Carvalho dos Santos; Hisakhana Pahoona Corbin  
fundamentais, como a igualdade de gênero, liberdade, dignidade, moradia, saúde, educação e  
outros, conforme estabelece a Declaração Universal dos Direitos Humanos, de 1948. Esse  
aspecto é fundamental para compreender a importância da existência de um planejamento do  
reassentamento para situações em que o programa prevê impactos diretos ou indiretos às  
famílias e comerciantes (Brasil, 2022; Grupo Banco Mundial, 2017; Banco Interamericano de  
Desenvolvimento, 2020).  
O Grupo Banco Mundial, no relatório Reassentamento Involuntário no Brasil: uma  
revisão de políticas e práticas, destaca que no Brasil não existe um marco regulatório específico  
que aborde o reassentamento involuntário de famílias e comerciantes. Entretanto, apesar do país  
não ter uma “estrutura política abrangente que trate especificamente do reassentamento  
involuntário, há uma série de disposições legais que abordam a aquisição de terras e a  
compensação” (Grupo Banco Mundial, 2011, p. 4), como a Constituição Federal Brasileira de  
1988, o Código Civil, a Lei 10.257/2001, Lei Federal nº 13.465/2017, Portaria nº 464 de  
25/07/2018 do Ministério das Cidades, além de legislações estaduais e os planos diretores  
municipais.  
Além da orientação desses instrumentos basilares, destaca-se que, em 2013, o  
Ministério das Cidades aprovou a Portaria nº 317 para regulamentar medidas e procedimentos  
a serem adotados nos casos de deslocamentos involuntários de famílias de seu local de moradia  
ou de exercício de suas atividades econômicas provocados pela execução de programa e ações,  
sob gestão do Ministério das Cidades, inseridos no Programa de Aceleração do Crescimento –  
PAC (Brasil, 2013). Esta portaria estabelece no seu art. 4º que, em casos de deslocamento  
involuntário, é necessário previamente a elaboração de Plano de Reassentamento e Medidas  
Compensatórias visando assegurar às famílias e comerciantes afetados o acesso a soluções  
adequadas para o deslocamento e para as perdas ocasionadas pela intervenção. Na legislação,  
ainda é enfatizado que o Plano de Reassentamento e Medidas Compensatórias precisam ser  
elaborados com a participação dos sujeitos afetados pela obra (Brasil, 2013).  
304  
Além disso, o Departamento Nacional de Infraestrutura de Transportes DNIT lançou,  
em 2022, as Diretrizes dos Programas de Reassentamento para o setor de transportes. No  
documento, tem-se definido que o Programa de remoção e reassentamento deverá conter as  
medidas compensatórias e de reassentamento para as famílias vulneráveis que ocupam  
benfeitorias nas faixas de domínio da União, como a indenização, a compra assistida e a  
construção de unidades habitacionais. No documento, está clara a importância das ações do  
trabalho social, que deverá acontecer em todas as etapas do programa (Departamento Nacional  
de Infraestrutura de Transportes, 2022).  
Libertas, Juiz de Fora, v. 25, n. 1, p. 295-319, jan./jun. 2025. ISSN 1980-8518  
Reassentamento involuntário e desenvolvimento urbano em Belém Pará  
Cita-se ainda como instrumento importante para orientar o processo de reassentamento  
involuntário, o Caderno de Orientação Técnico Social COTS (Caixa Econômica Federal,  
2013). Este instrumento estabelece diretrizes da Caixa Econômica Federal, financiador de  
intervenções urbanas no Brasil, sobre o desenvolvimento do Trabalho Social. Neste documento,  
orienta-se a construção de um Plano de Reassentamento ou Remanejamento, que deverá  
englobar diversos aspectos, como a área de reassentamento definitivo, que deverá estar situada  
o mais próximo possível da antiga área, visando a manutenção das relações de vizinhança entre  
os sujeitos (Caixa Econômica Federal, 2013).  
Cabe citar, ainda que tendo particularidades em cada município brasileiro, que o Plano  
Diretor, como instrumento de planejamento de municípios, pode potencializar as orientações  
para o reassentamento involuntário (Belém, 2008). O Plano Diretor Urbano de Belém, lei nº  
8.655, de 30 de julho de 2008, destaca no seu art. 29, sobre a Política de Habitação, a  
necessidade de criação de um instrumento próprio para garantir o direito à moradia da  
população que habita áreas precárias e de difícil regularização urbanística e jurídico-fundiária  
e a necessidade de criação de plano de reassentamento, prevendo, dentre outros aspectos, que  
o processo de reassentamento desta população seja realizado em áreas próximas ao  
assentamento original visando minimizar os transtornos gerados e a manutenção dos laços  
socioeconômicos e de vizinhança da população afetada (Belém, 2008).  
305  
Além dos instrumentos normativos criados a nível nacional e municipal, que orientam  
sobre o processo de reassentamento involuntário, cabe enfatizar a importância das normativas  
internacionais das agências multilaterais que financiam programas de desenvolvimento urbano,  
como o Grupo Banco Mundial e o BID.  
O Marco de Políticas Ambientais e Sociais MPAS, criado em 2020 pelo BID, visa  
integrar as suas Políticas Operativas anteriores. Conforme o documento, o reassentamento  
involuntário implica que “as pessoas afetadas pelo projeto não têm ou não podem exercer o  
direito de recusar a aquisição de terras ou restrições ao uso da terra que resultam em  
deslocamento físico ou econômico” (Banco Interamericano de Desenvolvimento, 2020, p. 26).  
É importante destacar que o próprio banco reconhece que o reassentamento involuntário deve  
ser evitado ao máximo e somente em casos de extrema necessidade, deve ser realizado e com  
planejamento adequado, pois sem isso “pode resultar em dificuldades e empobrecimento a  
longo prazo para as pessoas afetadas pelo projeto, além de danos ambientais e impactos  
socioeconômicos adversos nas áreas para as quais foram deslocadas” (Banco Interamericano  
de Desenvolvimento, 2020, p. 69).  
Gizele Cristina Carvalho dos Santos; Hisakhana Pahoona Corbin  
O reassentamento, na Política Operativa 710 e no MPAS, é considerado um dos  
elementos da Avaliação de Impacto Ambiental e Social AIAS, este como um dos instrumentos  
de avaliação e gerenciamento de riscos e impactos (Banco Interamericano de Desenvolvimento,  
1998; Banco Interamericano de Desenvolvimento, 2020). Conforme o Quadro Ambiental e  
Social, elaborado pelo Grupo Banco Mundial, em casos de reassentamento involuntário em  
programas de desenvolvimento, é necessária a implementação de medidas atenuantes,  
considerando os impactos diversos causados, como: riscos econômicos, sociais e ambientais,  
empobrecimento diante da perda do seu patrimônio ou fontes de renda, enfraquecimento de  
instituições comunitárias e das redes sociais, dispersão de grupos de familiares e a perda do  
potencial para ajuda mútua (Grupo Banco Mundial, 2017). Conforme orientações do Banco na  
Política Operativa 710 e no MPAS, o mutuário deverá elaborar um plano de reassentamento,  
visando informar, consultar, assistir e compensar a população afetada por programas  
financiados pelo Banco.  
O sucesso no planejamento do reassentamento involuntário, conforme o Grupo Banco  
Mundial e BID, exige dos mutuários atenção a “pré-requisitos”, como: 1) Elaboração de um  
diagnóstico socioterritorial detalhado e participativo; 2) Elaboração de um plano de  
reassentamento abrangente e consistente; 3) Monitoramento e avaliação cuidadosa da execução  
do plano de reassentamento, com base em indicadores bem definidos; 4) Maximização da  
consulta as partes interessadas; 5) Elaborar medidas mitigadora apropriadas para atenuar os  
impactos as pessoas afetadas nos seus esforços para restaurar os seus rendimentos e padrões de  
vida; 6) Criação de mecanismos de queixas, eficazes, facilmente acessíveis e bem disseminados  
para resolver as queixas durante o ciclo do programa; 7) Implementar ações transversais  
visando o combate às desigualdades de gênero; e 8) avaliações ex-post dos programas de  
reassentamento (World Bank, 2011; Grupo Banco Mundial, 2017; Banco Interamericano de  
Desenvolvimento, 2020).  
306  
Em síntese, os marcos e instrumentos regulatórios sobre reassentamento involuntário,  
nacionais e a complementaridade das políticas de salvaguardas do BID e do Grupo do Banco  
Mundial, possuem aspectos conceituais convergentes, com direcionamentos focados na defesa  
dos direitos humanos e norteiam a operacionalização de programas de desenvolvimento urbano  
no Brasil.  
Cabe a partir disso, apresentar a experiência de reassentamento involuntário no  
Programa de Saneamento da Bacia da Estrada Nova I.  
Libertas, Juiz de Fora, v. 25, n. 1, p. 295-319, jan./jun. 2025. ISSN 1980-8518  
Reassentamento involuntário e desenvolvimento urbano em Belém Pará  
O reassentamento involuntário no contexto do Programa de Saneamento da bacia  
da Estrada Nova I  
Em 09 de julho de 2008, o Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID) aprovou  
um financiamento de US$ 68,75 milhões para o Programa de Saneamento da Bacia da Estrada  
Nova PROMABEN. O Programa passou a ser executado a partir de 2 de abril de 2009 pela  
Prefeitura Municipal de Belém, por meio da celebração do Contrato de Empréstimo 1998/OC-  
BR com o BID, com aporte local equivalente, o custo total do Programa era de US$137,5  
milhões (Banco Interamericano de Desenvolvimento, 2013).  
A bacia hidrográfica da Estrada Nova, no contexto de elaboração do Estudo de Impacto  
Ambiental EIA, publicado em 2007, possuía 72,70% do solo constituído de áreas inundáveis  
pelos efeitos de marés e/ou chuvas constantes da região (Belém, 2007a).  
Essa bacia hidrográfica abrange 8 (oito) bairros localizados na área central do município  
de Belém do Pará, possuindo uma extensão de 9,7 km², sendo a 8ª maior bacia hidrográfica da  
área continental do município, conforme estudos recentes sobre as bacias hidrográficas contidas  
no Plano Municipal de Saneamento Básico da Prefeitura de Belém (Belém, 2020), conforme  
mostra o mapa 1.  
Mapa 1: Delimitação da bacia hidrográfica da Estrada Nova e as 4 sub-bacias definidas pelo PROMABEN, em  
Belém PA.  
307  
Fonte: Tavares (2020).  
Gizele Cristina Carvalho dos Santos; Hisakhana Pahoona Corbin  
Conforme o EIA, foi estimado em 2.119 (dois mil, cento e dezenove) o número de  
famílias diretamente afetadas pelo Programa (Belém, 2007).  
As pesquisas de Cruz (2012), Oliveira (2017) e Tavares (2020) afirmam que parte das  
famílias afetadas pelas obras do PROMABEN I, na sub-bacia I, tinha como solução o  
reassentamento no Residencial Cabano Antônio Vinagre, no bairro do Curió-Utinga. Conforme  
dados de Cruz (2012), o residencial “possui 115 unidades habitacionais, sob a gestão da  
SEHAB. Essas 26 unidades irão atender aos moradores da Av. João Paulo II e as demais  
atenderão à demanda do PROMABEN” (Cruz, 2012, p. 198). Conforme Santana et al. (2020),  
até o ano de 2013, foram reassentadas definitivamente 87 (oitenta e sete) famílias no referido  
Residencial. A pesquisa de Tavares (2020), realizada ao longo de 2019, indica que 92 famílias  
afetadas pelo PROMABEN I estavam reassentadas no Residencial Cabano Antônio Vinagre.  
Portanto, afirma-se que o PROMABEN I iniciou o reassentamento das famílias no Residencial  
Cabano Antônio Vinagre, em 2012, ano de finalização do Programa, conforme afirma o  
Relatório de Término do Projeto, publicado em 2013, pelo BID (Banco Interamericano de  
Desenvolvimento, 2013); e que, até o ano de 2019, 92 (noventa e duas) famílias tinham sido  
reassentadas no Residencial. Desse modo, no próximo item serão apresentados os dados da  
realidade pós-reassentamento das famílias afetadas diretamente pelo PROMABEN I, com base  
nas pesquisas de Santana et al. (2020), Oliveira (2017) e Tavares (2020).  
308  
O pós-reassentamento de famílias no residencial Cabano Antônio Vinagre  
Santana et al. (2020), no artigo intitulado Remoção de famílias e impactos  
socioeconômicos por projetos urbanísticos em Belém, apresentam dados da pesquisa de campo  
realizada em 2013 com as famílias reassentadas pelo PROMABEN I no Residencial Cabano  
Antônio Vinagre, no qual aplicaram 57 formulários. A partir da pesquisa, os autores  
identificaram um processo de empobrecimento dos (as) moradores, na medida em que ocorreu  
a diminuição de pessoas empregadas com renda, passando de 96,36% para 84,91% após o  
reassentamento. Ainda corroborando com os dados, aumentou o número de pessoas  
desempregadas ou sem renda de 3,64% para 15,09% após o reassentamento.  
Por meio da pesquisa de Santana et al. (2020), assim como de Oliveira (2017) e de  
Tavares (2020), percebeu-se que a distância do local do reassentamento definitivo é um fator  
importante a ser considerado no processo de reassentamento. No caso do Residencial Cabano  
Antônio Vinagre, apesar da sua localização na área central da capital, no centro do bairro do  
Curió-Utinga, existe uma distância de aproximadamente 5,5 km do bairro Jurunas, local de  
origem das famílias que foram reassentadas pelo PROMABEN I (Santana et al., 2020).  
Libertas, Juiz de Fora, v. 25, n. 1, p. 295-319, jan./jun. 2025. ISSN 1980-8518  
Reassentamento involuntário e desenvolvimento urbano em Belém Pará  
Um aspecto positivo identificado nas entrevistas refere-se à qualidade de habitação. Na  
pesquisa de Santana et al. (2020), identificou-se o aumento da quantidade de famílias satisfeitas  
com o número de cômodos das residências após o reassentamento, subindo de 65,5% para  
80,4%. A satisfação considerou as condições precárias de moradia que viviam tais famílias, no  
bairro do Jurunas, em um território de baixada e com precarização de serviços básicos de  
saneamento. A pesquisa indica como aspectos positivos: o acesso ao transporte (38,46%),  
melhoria na segurança (48,08%) e número de cômodos dos apartamentos e a qualidade  
construtiva do prédio (32,69%).  
O custo elevado de vida foi considerado pela pesquisa como um dos principais impasses  
no pós-reassentamento no Residencial Cabano Antônio Vinagre. 37% dos (as) entrevistados  
(as) indicaram o aumento do custo de vida como um dos principais problemas na nova moradia  
(Santana et al., 2020, p. 31).  
Já a pesquisa de Oliveira (2017), intitulada Impactos socioeconômicos nas estratégias  
de sobrevivência das famílias reassentadas pelo Programa de Saneamento da Bacia da Estrada  
Nova (PROMABEN), alcançou 52 (cinquenta e dois) moradores (as) reassentados (as) no  
Residencial, um percentual de 49,52% do total de famílias. A partir da sua pesquisa, realizada  
em 2016, foi possível identificar que, em decorrência do reassentamento no Residencial,  
ocorreu o aumento dos gastos com a taxa de água e serviços de energia. Sobre o abastecimento  
de água, Oliveira (2017) verificou o aumento nos gastos com a taxa de água, considerando que  
na antiga residência 26,9% dos (as) moradores (as) afirmaram que a taxa de água era abaixo de  
R$ 15,00. Na nova residência, 28,8% dos (as) moradores (as) responderam pagar a taxa no  
intervalo entre R$ 21,00 e R$ 30,00. Já sobre o serviço de energia, 71% dos (as) entrevistados  
(as) informaram que na antiga residência o custo era abaixo de R$ 100,00, mas “após o  
reassentamento, 75% das famílias afirmaram pagar a taxa de energia elétrica acima de R$  
100,00, demonstrando aumento no gasto mensal com esse serviço” (Oliveira, 2017, p. 164-  
165).  
309  
Outro aspecto identificado no pós-reassentamento envolve o aumento do custo de vida,  
também presente na pesquisa de 2013 de Santana et al. (2020), na medida em que 40% dos  
moradores (as) criavam estratégias para aumentar a renda e arcar com os custos de vida no  
Residencial, como: venda de produtos em catálogo, venda de confecções e calçados e  
cosméticos, venda de alimentos e prestação de serviços. Destes, 23% relataram que passaram a  
fazer vendas e prestar serviços após a mudança para o Residencial (Oliveira, 2017).  
Oliveira (2017) ainda menciona na sua pesquisa a desarticulação dos vínculos com o  
local antigo de moradia, na medida em que o reassentamento provocou o afastamento dos (as)  
Gizele Cristina Carvalho dos Santos; Hisakhana Pahoona Corbin  
moradores (as) do seu território de vida. Dentre os (as) moradores (as) entrevistados (as), 34,6%  
revelaram que viviam no bairro do Jurunas há mais de trinta anos. Em comparação com os  
dados sobre o local de origem, 44,2% dos moradores afirmaram ter nascido no bairro do Jurunas  
(Oliveira, 2017).  
Destaca-se ainda a melhoria da mobilidade como um aspecto positivo após o  
reassentamento no Residencial, que está localizado na Avenida Almirante Barroso, uma das  
principais vias de circulação da capital, local que possui circulação de várias linhas de  
transporte público do município e da Região Metropolitana de Belém. Desse modo, sobre o  
acesso ao serviço de transporte público, “os dados apontam que a maioria dos moradores  
pesquisados se sente satisfeita, haja vista que aproximadamente 97% das pessoas avaliaram o  
serviço como positivo (bom, ótimo e regular)” (Oliveira, 2017, p. 168).  
Outro aspecto levantado por Oliveira (2017) é a variedade de feiras populares e os  
valores acessíveis dos produtos. De acordo com os dados, 65,4% dos (as) moradores (as)  
avaliaram a disponibilidade da feira do antigo local de moradia de forma positiva, considerando:  
maior número de feiras, variedade nos produtos, maior horário de funcionamento e preços  
acessíveis. Após o reassentamento, 55,8% das avaliações da feira dos bairros do Curió-Utinga  
(Feira da Bandeira Branca) e Marco continuaram positivas, considerando a sua localização ao  
lado do Residencial. Os aspectos negativos levantados foram: sem variedade nos produtos e os  
preços mais elevados (Oliveira, 2017).  
310  
O estudo mais recente, de Tavares (2020), intitulado Estudo de caso sobre os impactos  
socioeconômicos de reassentamento involuntário sobre as famílias atingidas pelo Programa  
de Saneamento da Bacia da Estrada Nova (PROMABEN I), Belém-PA avalia o pós-  
reassentamento de 92 famílias diretamente afetadas pelo PROMABEN I no Residencial Cabano  
Antônio Vinagre. Na pesquisa, o autor traz diversos aspectos comparativos entre a nova  
moradia e a velha moradia, como a qualidade da habitação. Uma das entrevistadas revelou que  
“o Antônio Vinagre tem uma estrutura boa, bem melhor do que antes, pois vivíamos em cima  
da vala sem saneamento e sem segurança na casa antiga” (Tavares, 2020, p. 124). Outrossim,  
59,4% e 62,5% dos moradores(as) consideraram “bom” os quartos e salas das unidades  
habitacionais, respectivamente.  
No que se refere ao interesse em mudar de residência, a pesquisa de Tavares (2020)  
indica que 56,25% dos(as) entrevistados(as) informaram interesse em mudar do Residencial e  
37,50% demonstraram interesse em permanecer no local de reassentamento definitivo. Dentre  
as questões informadas que motivariam a mudança do Residencial “estariam o tamanho dos  
Libertas, Juiz de Fora, v. 25, n. 1, p. 295-319, jan./jun. 2025. ISSN 1980-8518  
Reassentamento involuntário e desenvolvimento urbano em Belém Pará  
apartamentos com 25,0% e o conflito com os vizinhos com porcentagem de 18,8%” (Tavares,  
2020, p. 129).  
O custo de vida elevado, que também apareceu nas pesquisas de Oliveira (2017) e  
Santana et al. (2020), surge como um impacto no pós-reassentamento. Segundo os (as)  
entrevistados (as), “a queda na renda familiar ocorreu por conta do custo elevado de morar em  
área da cidade a 5,5km da área de origem, tornando-se mais alto, segundo eles, o custo de vida  
e impactando no orçamento final da família” (Tavares, 2020, p. 139).  
Ademais, 75,1% dos (as) moradores(as) avaliaram de forma negativa os laços de  
vizinhança construídos no Residencial. A avaliação negativa estava ligada à divisão das  
despesas dos apartamentos com taxas de energia elétrica e água (Tavares, 2020).  
Em resumo, diante dos resultados significativos das pesquisas de Santana et al. (2020),  
Oliveira (2017) e Tavares (2020), foi possível elaborar o quadro 1 com a avaliação positiva e  
negativa do pós-reassentamento das famílias pelo PROMABEN I no Residencial Cabano  
Antônio Vinagre:  
Quadro 1: Síntese de impactos positivos e negativos no pós-reassentamento de famílias pelo PROMABEN I, no  
Residencial Cabano Antônio Vinagre, em Belém - PA.  
Avaliação positiva da condição de moradia  
Avaliação negativa da condição de moradia –  
pós-reassentamento  
pós-reassentamento  
Distância entre do território de origem e o novo  
território  
311  
Qualidade do novo imóvel  
Pagamento das taxas de água e energia  
Rompimento dos vínculos  
Facilidade de acesso a serviços de transporte  
Feiras sem variedade de produtos e com preços  
elevados  
Variedade de feiras populares próximo ao local  
do reassentamento  
Conflitos com os vizinhos  
Tamanho do novo imóvel  
Fonte: Elaborado pelos autores.  
O quadro síntese demonstra que os impactos negativos gerados foram predominantes  
no contexto do pós-reassentamento de 92 famílias no Residencial Cabano Antônio Vinagre pelo  
PROMABEN I. Entretanto, as boas práticas realizadas por outros programas são fundamentais  
para a identificação de possibilidades e de práticas que não podem ser reproduzidas, como será  
abordado no próximo item, além das lições aprendidas com a experiência do reassentamento  
involuntário do PROMABEN I.  
Gizele Cristina Carvalho dos Santos; Hisakhana Pahoona Corbin  
Lições aprendidas e boas práticas para o planejamento do reassentamento  
involuntário em programas de desenvolvimento urbano  
A partir das pesquisas de Oliveira (2017), Tavares (2020) e Santana et al. (2020), com  
aspectos avaliativos (ex post), o pós-reassentamento de famílias no Residencial Cabano  
Antônio Vinagre e com base em boas práticas, pode-se fazer ponderações sobre qual o caminho  
para implementar um processo de reassentamento involuntário adequado.  
A primeira lição demonstra que o local do reassentamento definitivo, nos casos de  
reassentamento em conjuntos habitacionais, precisa ser o mais próximo possível do local de  
origem das famílias, visando evitar a perda das relações de solidariedade “que fornecem  
sustentação a muitas famílias, inclusive emocional, estruturadas na vizinhança e perda de  
alternativas de lazer anteriormente organizadas” (Vieira; Ágata, 2020, p. 185).  
A segunda lição extraída das pesquisas é que o local do reassentamento pode provocar  
um aumento do custo de vida, tornando mais difícil o reassentamento para os sujeitos que têm  
uma renda baixa e precisam buscar alternativas para arcar com despesas não existentes, como  
os serviços de água e energia. Dessa forma, é fundamental que o Trabalho Social potencialize  
as estratégias de geração de emprego e renda, conforme a Portaria nº 464/2018, “à inclusão  
produtiva, econômica e social, de forma a promover o incremento da renda familiar e a melhoria  
da qualidade de vida da população” (Brasil, 2018, p. 80).  
312  
A terceira lição envolve a preparação da população para a mudança definitiva para as  
novas unidades habitacionais, o trabalho pós-reassentamento. É importante salientar que a  
preparação das famílias para a nova moradia envolve o aumento dos gastos com pagamento de  
taxas de energia e água, como ficou claro na experiência do reassentamento involuntário no  
Residencial Cabano Antônio Vinagre. Desse modo, é fundamental “(...) a discussão do  
orçamento doméstico, especialmente os dispêndios com água e energia elétrica e a sua  
racionalização e a oferta de atividades capacitadoras que auxiliem na administração do  
orçamento da família” (Paz; Taboada, 2010b, p. 111). Ademais, são necessários a realização de  
“cursos de gestão condominial são importantes e podem facilitar a organização e eleição do  
representante para cada bloco de apartamentos na gestão do coletivo” (Paz; Taboada, 2010b, p.  
112).  
A quarta lição está relacionada ainda ao local do reassentamento, que precisa ser dotado  
de infraestrutura urbana suficiente, condições de habitabilidade, mas também de uma rede de  
serviços públicos e de serviços para a população reassentada usufruir. Portanto, é necessário  
implementar a territorialização das políticas públicas, que implica “combinar escalas, micro,  
macro e regional, buscar que os serviços sejam articulados e implementados com a maior  
Libertas, Juiz de Fora, v. 25, n. 1, p. 295-319, jan./jun. 2025. ISSN 1980-8518  
Reassentamento involuntário e desenvolvimento urbano em Belém Pará  
proximidade do cidadão, facilitando o seu acesso” (Paz; Taboada, 2010a, p. 20). Esse aspecto  
é fundamental, considerando que na experiência de reassentamento involuntário do  
PROMABEN I o Conjunto Residencial estava localizado em um local com ótima mobilidade  
urbana, o que se tornou um fator positivo para os (as) moradores (as).  
Além das lições mencionadas, a partir das orientações do Grupo Banco Mundial,  
enfatizam-se outros aspectos presentes em processos de reassentamentos bem-sucedidos no  
Brasil, enfatizados pelo World Bank (2011), como elaborar estudos socioeconômicos ou  
diagnósticos socioterritoriais consistentes. É necessário conhecer o território e a população que  
nele sobrevive, “o perfil socioeconômico das famílias, origem, cultura, histórico de ocupação e  
de luta, principais reivindicações, formas de organização e de convivência interna, principais  
problemas, presença de grupos ligados ao crime organizado, etc.” (Paz; Taboada, 2010c, p. 73).  
Outro aspecto presente em boas práticas de reassentamento é a elaboração do plano de  
reassentamento. O plano tem por base os dados da realidade obtidos nos estudos  
socioeconômicos e diagnósticos socioterritoriais e precisa conter dados pormenorizados sobre  
o orçamento, prazos, tipos de compensações, possibilidade de reassentamento em unidades  
habitacionais e comerciais, auxílio provisório, mudança e outros aspectos (Brasil, 2013; Grupo  
Banco Mundial, 2017).  
Os programas precisam maximizar a consulta às partes interessadas. A adoção de uma  
abordagem participativa em todo o ciclo do programa é fundamental para o seu êxito. O  
estímulo a participação é necessário “através de estratégias de envolvimento, mobilização e de  
construção de organizações autônomas e representativas” (Paz; Taboada, 2010c, p. 73). É  
necessário ainda realizar uma comunicação com as comunidades afetadas, possuir um programa  
abrangente de comunicação com a população e com diversas estratégias de abordagem (rádio,  
redes sociais, WhatsApp, jornal comunitário, carro de som...), possuir equipe presente no  
território para informar e receber reclamações; ofertar diversas formas de acesso ao Mecanismo  
de Queixas; e impulsionar formas de organização da população para fiscalizar as obras e  
serviços do Programa (Banco Interamericano de Desenvolvimento, 2017; Grupo Banco  
Mundial, 2017).  
313  
A articulação interinstitucional é fundamental para superar a dispersão e a  
fragmentação das políticas públicas (Paz; Taboada, 2010c). A integração das diversas ações,  
instituições, de diversas políticas (saúde, educação, assistência social, cultura, esporte e lazer,  
etc.), para diversos segmentos (pessoas negras, mulheres, pessoas idosas, crianças,  
adolescentes, LGBTQIA+, pessoas com deficiência e, etc.), a criação de uma rede de  
instituições parceiras, como Organizações Não Governamentais (ONGs), escolas, igrejas,  
Gizele Cristina Carvalho dos Santos; Hisakhana Pahoona Corbin  
empresas privadas, pode contribuir para potencializar os resultados do reassentamento,  
sobretudo, no pós-reassentamento (Paz; Taboada, 2010c).  
O combate às desigualdades de gênero está presente nas experiências bem-sucedidas  
de reassentamento, e está previsto na Norma Ambiental e Social 9 do Marco de Políticas  
Ambientais e Sociais do BID (Banco Interamericano de Desenvolvimento, 2020). Conforme  
aponta o Grupo Banco Mundial na Nota Comparativa da Norma Ambiental e Social 5,  
publicado em 2023, sobre o reassentamento involuntário, os programas precisam considerar o  
“reassentamento escolar” para os filhos, a articulação para a garantia de manutenção das redes  
de apoio na nova moradia, a garantia de que as compensações sejam realizadas,  
preferencialmente, em nome das mulheres chefes das famílias afetadas ou do casal, impulsionar  
o desenvolvimento de ações preventivas e de orientação social e jurídica sobre a violência  
contra a mulher e cursos de geração de emprego e renda para o público feminino, visando  
garantir a sua autonomia financeira após o reassentamento (Grupo Banco Mundial, 2023).  
Em síntese, identifica-se a partir da experiência das famílias reassentadas no Residencial  
Cabano Antônio Vinagre que o sucesso do planejamento do reassentamento não se dá pelo  
reassentamento pontual das famílias em suas respectivas “unidades habitacionais”, para os  
casos previstos, mas por meio de outros fatores anteriores, durante e posteriores ao  
reassentamento, como a realização de ações socioambientais, cursos de geração de emprego e  
renda, organização comunitária e participação das partes interessadas e adaptação e organização  
do condomínio, realizadas pela equipe técnico social conforme prevê a Portaria nº 464/2018.  
314  
Considerações finais  
Diante do exposto, compreendendo que este artigo não busca esgotar as análises sobre  
o reassentamento involuntário no contexto do PROMABEN I, é importante reforçar a  
importância do investimento em desenvolvimento urbano no Brasil, em especial, no setor de  
água e saneamento. Os investimentos nos territórios populares, com carência de infraestrutura  
urbana, como as baixadas de Belém, enquanto cidade amazônica, que ainda em 2025  
permanecem com indicadores baixos de saneamento, são necessários e urgentes. De modo  
específico, o PROCIDADES visou impulsionar o desenvolvimento sustentável das cidades em  
relação ao desenvolvimento urbano integrado, transporte e sistemas viários urbanos,  
saneamento básico, serviços urbanos, desenvolvimento social, meio ambiente e fortalecimento  
institucional e fiscal.  
No contexto de programas de desenvolvimento urbano, cabe considerar os instrumentos  
de planejamento do reassentamento involuntário para orientar a operacionalização de medidas  
Libertas, Juiz de Fora, v. 25, n. 1, p. 295-319, jan./jun. 2025. ISSN 1980-8518  
Reassentamento involuntário e desenvolvimento urbano em Belém Pará  
visando garantir os direitos humanos aos sujeitos impactados. Cabe citar os instrumentos legais  
basilares, como a Declaração Universal dos Direitos Humanos, de 1948, e a Constituição  
Federal Brasileira, de 1988. Destaca-se que o aparato legal nacional da política de  
desenvolvimento urbano, criado a partir dos anos 2000, vem dando subsídios para os processos  
de reassentamento involuntário, seguindo a premissa da reforma urbana. Por outro lado, existem  
Políticas Operativas de agências multilaterais, como o BID e o Grupo Banco Mundial,  
elaboradas para orientar os executores de programas de desenvolvimento urbano, que são  
complementos importantes para mitigar os impactos sociais e ambientais.  
Por meio da experiência de reassentamento de famílias no Conjunto Residencial Cabano  
Antônio Vinagre por conta das obras do PROMABEN I, implementado entre 2009 a 2012, pela  
Prefeitura Municipal de Belém, com financiamento do BID, foi possível extrair lições: 1)  
reassentar as famílias o mais próximo possível do local de origem, visando respeitar as relações  
familiares e comunitárias de solidariedade; 2) implementar estratégias de geração de emprego  
e renda visando possibilitar que os sujeitos reassentados incrementem a sua renda familiar e  
tenham autonomia e visando evitar o empobrecimento; 3) a preparação da população para a  
mudança para as novas unidades habitacionais é fundamental para orientar as famílias sobre  
dispêndios com serviços de energia, água, organização da comunidade e etc; e 4) infraestrutura  
urbana suficiente no local do reassentamento, possibilitando o acesso das famílias aos serviços  
públicos e privados do território, facilitando o seu acesso.  
315  
Em conclusão, é importante reforçar a necessidade de pesquisas sobre o tema,  
principalmente, pesquisas avaliativas que enfoquem os níveis de impactos socioambientais, as  
condições de moradia, o bem-estar e outros indicadores do pós-reassentamento involuntário de  
famílias e comerciantes impactados por programas de desenvolvimento urbano implementados  
no sul global, na América Latina e Caribe e na Pan Amazônia, já que são os locais com maior  
incidência de programas de desenvolvimento urbano financiados pelo BID e Grupo Banco  
Mundial.  
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319  
Desigualdade no acesso ao saneamento básico  
no Brasil: questão social e a dimensão de gênero  
Inequality in access to sewerage in Brazil:  
social issue and the gender dimension  
Isabel Jardin do Nascimento Andrade*  
Resumo: O direito à água e ao saneamento  
básico, entendidos como direitos humanos, são  
de fundamental importância quando observado  
o cenário de promoção de direitos da classe  
trabalhadora no Brasil. Através de um  
referencial histórico-crítico, ancorado na  
metodologia dialética de análise do real em sua  
totalidade, propõe-se neste trabalho inserir a  
falta de acesso a um serviço de saneamento  
básico de qualidade, aqui entendido no conjunto  
maior do abastecimento de água e coleta e  
tratamento de esgotamento sanitário, como uma  
expressão da questão social no contexto da  
formação social brasileira, e explicitar como a  
proposta de privatização do serviço de  
saneamento operada através da Lei nº  
14.026/2020 tem o condão de aprofundar as  
condições de desigualdade em seu acesso. Além  
disso, procurou-se demonstrar, através da  
análise da dimensão de gênero, como estas  
condições de fruição do serviço em pauta  
afetam, de formas distintas, mulheres, meninas  
e pessoas LGBTQIAPN+, e como a exclusão  
associada à água e ao saneamento básico conduz  
à exclusão de vários outros direitos.  
Abstract: The right to water and sewerage,  
determined as a human right, is of essential  
importance when observed the scenario of  
working-class rights promotion in Brazil.  
Through  
a
historical-critical framework,  
anchored in the dialectical methodology of  
analysis of the reality in its totality, this work  
proposes to insert the lack of access to a quality  
basic sewerage, here understood in the greater  
set of water supply and collection and treatment  
of sanitary sewage, as an expression of the  
social question in the context of Brazilian social  
formation, and how the proposal for  
privatization of the sanitation service operated  
through Law no 14.026/2020 has the merit of  
deepening the conditions of inequality in its  
access. In addition, through the analysis of the  
gender dimension, it was tried to demonstrate  
how these conditions of service enjoyment  
affect, in different ways, women, girls and  
LGBTQIAPN+ comunnity, and how the  
exclusion associated with water and sanitation  
leads to the exclusion of several other rights.  
Palavras-chaves: Saneamento básico; Questão  
Keywords: Sewerage; Social Issue; Gender  
Social; Desigualdade de gênero.  
inequality.  
* Universidade do Estado do Rio de Janeiro. E-mail: isabel.jardin.andrade@gmail.com  
DOI: 10.34019/1980-8518.2025.v25.47731  
Esta obra está licenciada sob os termos  
Recebido em: 09/03/2025  
Aprovado em: 18/06/2025  
Desigualdade no acesso ao saneamento básico no Brasil: questão social e a dimensão de gênero  
Introdução  
O saneamento básico pode ser enxergado como o serviço público de maior impacto na  
vida cotidiana. Sua presença no dia a dia é tão demasiadamente estruturante do processo de  
reprodução social que, na grande maioria das vezes, só se dá conta da falta descomunal que ele  
faz quando sua prestação começa a falhar. A deficiência na prestação do serviço de saneamento  
básico (aqui compreendido dentro do conjunto maior do serviço de abastecimento de água  
potável e coleta e tratamento de esgoto sanitário)1 ameaça e sobremaneira inviabiliza o direito  
à vida.  
O direito humano à água e ao saneamento básico (Heller, 2022) é “mais um direito que  
passa a ser reconhecido na arena internacional como fruto das mobilizações e demandas  
populares”2 (Vannuchi, 2022, p. 17). O marco legal apto a reconhecer a água e o saneamento  
básico como direitos humanos, fundamentais e universais deu-se apenas em 2010, por meio da  
Resolução da Assembleia Geral da ONU nº 64/2923, que estabeleceu “o direito à água potável  
e limpa e o direito ao saneamento como direito humano que é essencial para o pleno gozo da  
vida e de todos os direitos humanos” (ONU, 2010, p. 3, tradução nossa). A Constituição Federal  
de 1988, apesar de já reconhecer, por ocasião de sua publicação, direitos sociais como a  
alimentação, o trabalho, a moradia, a saúde, a assistência, a previdência, etc., não inseriu o  
acesso à água no mesmo rol.  
321  
É, portanto, dentro desse contexto, que devemos compreender o direito humano à água  
e ao saneamento básico como uma categoria universalizante de direitos, cuja existência está  
diretamente ligada à lógica da exploração capitalista. Assim, pode-se afirmar que a falta de  
acesso a um serviço de saneamento básico de qualidade pode ser considerada uma expressão  
da questão social. Neste sentido, é importante destacar, ainda, que a falta de acesso a um serviço  
de saneamento básico de qualidade atinge, de formas distintas, homens e mulheres.  
Discutir a política de saneamento básico, portanto, sob a dimensão de gênero mostra-se  
fundamental para a pauta de universalização do serviço no Brasil, pauta esta que fundamentou  
a construção da Lei nº 14.026/2020 que pretendeu impor mudanças na regulação do setor de  
1 De acordo com a Lei nº 11.445 de 2007 (Marco Legal do Saneamento Básico, alterada pela Lei nº 14.026/2020)  
a expressão “saneamento básico” engloba quatro grandes componentes: o abastecimento de água potável, a coleta  
e tratamento do esgoto sanitário, a limpeza urbana e o manejo de resíduos sólidos e a drenagem pluvial e o manejo  
das águas pluviais urbanas.  
2 A Bolívia enfrentou o que se conhece por “Guerra da água de Cochabamba”, que representou um levante popular  
que logrou êxito na expulsão de uma transnacional que assumira a gestão dos serviços de abastecimento de água  
e coleta de esgoto sanitário na cidade de Cochabamba, na Bolívia, com a população reivindicando a reestatização  
da prestação do serviço após os efeitos nefastos de sua privatização, tais como o aumento de mais de 100% nas  
tarifas de água e esgoto, além do desabastecimento nas regiões mais pobres da cidade, que já era afetada pela  
escassez de água devido a suas características geográficas (Portugal, 2007; Drummond, 2015; Pfrimer, 2008).  
3 Instrumento proposto por iniciativa do Estado da Bolívia.  
Isabel Jardin do Nascimento Andrade  
saneamento básico no país com o objetivo maior de ampliar a participação da iniciativa privada  
na prestação do serviço público, extinguindo a figura dos contratos de programa, convênios e  
termos de parceria que celebravam, até então, as empresas públicas de saneamento municipais  
e estaduais com o poder executivo, e também questionando a viabilidade econômico-financeira  
destas mesmas empresas.  
A lei alterou, ainda, o regime tarifário das concessionárias, permitindo a aplicação do  
modelo de autossustentação, que é aquele no qual a própria tarifa paga pelo consumidor final é  
a responsável por financiar toda a prestação do serviço, sustentando também os lucros e  
dividendos que são repassados aos acionistas destas empresas que agora assumem a prestação  
do serviço. Este modelo tem como tendência elevar de forma desproporcional as tarifas pagas  
pelo usuário, principalmente nas regiões em que a arrecadação é insuficiente para manter todos  
os custos da prestação eficiente dos serviços.  
Assim, a alteração da Lei nº 11.445/2007 pela Lei nº 14.026/2020, em plena pandemia  
de COVID-19, aprovada às pressas e sem participação popular ou controle social, representa a  
orientação do projeto político que vem sendo orquestrado para o Brasil, fundamentado na  
ofensiva ideológica do neoliberalismo e do conservadorismo, que procura sempre ofuscar o  
papel do Estado como responsável pela execução de políticas públicas de impacto. É assim que  
podemos reafirmar, a partir da materialidade da proposta de privatização do serviço de  
saneamento básico operado pela nova lei, que o Estado compõe a instituição que, no contexto  
do capitalismo monopolista, exerce a função de garantir e manter a dominação e a exploração  
de classe.  
322  
Além disso, observar a história da construção da política de saneamento básico no Brasil  
significa observar a própria história da formação social brasileira, na medida em que o  
saneamento “associa diferentes dimensões da realidade”, mas está especialmente ligado – e é  
fator determinante – à política de saúde, ainda que o saneamento tenha, em relação àquela, um  
“desenvolvimento muito mais incipiente [...] em que pesem as consequências para a saúde das  
inadequadas condições de saneamento” (Menicucci; D’Albuquerque, 2018, p. 9).  
Breve histórico do desenvolvimento da política de saneamento básico no Brasil  
É importante destacar que, até a atualidade, o saneamento básico vem sendo enxergado  
de um ponto de vista muito mais tecnocêntrico do que do ponto de vista político, de maneira  
que a falta de uma visão globalizante e interdisciplinar do serviço, enquadrando-o em uma  
“moldura política”, falha em garantir a percepção multidimensional da política pública,  
Libertas, Juiz de Fora, v. 25, n. 1, p. 320-337, jan./jun. 2025. ISSN 1980-8518  
Desigualdade no acesso ao saneamento básico no Brasil: questão social e a dimensão de gênero  
necessária à tomada de decisão e ações essenciais à universalização do serviço de saneamento  
no espaço rural e urbano (Britto; Lima; Heller; Cordeiro, 2012).  
Na trajetória da construção da política de saneamento básico no Brasil, é possível  
observar dois momentos distintos: o primeiro, em que o saneamento era visto de forma  
imbricada à política de saúde pública e um segundo, mais voltado para a consolidação de fato  
de uma política pública exclusivamente voltada ao saneamento básico, entendido aqui no  
conjunto maior do serviço de abastecimento de água potável e na coleta de esgotamento  
sanitário.  
As ações voltadas para o abastecimento de água e o esgotamento sanitário no país datam  
do Brasil colonial. De acordo com Fonseca e Prado Filho (2006, p. 12), “o controle sobre o uso  
da água foi inerente ao processo colonizador dos portugueses, variando conforme as  
conjunturas sociais, políticas, econômicas e ambientais.” Neste período, a água estava associada  
à exploração do ouro, e a coroa portuguesa se ocupou de instituir lei, aplicar multas e  
penalidades à quem desviasse a finalidade da água do enriquecimento dos colonizadores  
(Fonseca; Prado Filho, 2006, p. 12). Com o advento da urbanização, já nos séculos XVIII e  
XIX, conforme explicam Murtha, Castro e Heller (2015, p. 196),  
Os chafarizes ganharam importância [...], propiciando o abastecimento  
comunitário e gratuito de água à população. Rio de Janeiro, Vila Rica,  
Salvador, Recife e outras cidades coloniais implantaram redes de chafarizes,  
bicas e fontes públicas, em que o acesso era livre e de onde escravos se  
encarregavam do transporte até as residências, evidentemente para os que  
tinham capacidade econômica para possuí-los. Para estes, o transporte e  
destinação final de excretas era feito por escravos, pejorativamente chamados  
de tigres, em vasilhames para o mar ou para valas, atividade comum, mesmo  
no Rio de Janeiro de meados do século XIX.  
323  
A partir do final do século XIX houve, então, uma integração entre as ações de  
saneamento e saúde, com o objetivo de enfrentar as epidemias que assolavam as áreas  
urbanizadas, com o Estado assumindo a responsabilidade sobre o saneamento básico nas  
maiores cidades do país, seguindo um modelo europeu de infraestrutura – especificamente o  
modelo inglês - fundado nas concessões de serviços públicos a empresas privadas (Britto,  
2012). Como consequência desse modelo de gestão, somado ao gradual desmantelamento dos  
chafarizes públicos, ocorreu a “concentração dos serviços nas regiões com consumidores com  
capacidade de pagamento, deixando de fora grande parte da população” (Menicucci;  
D’Albuquerque, 2018, p. 11).  
No entanto, conforme explicam Murtha, Castro e Heller (2015, p. 200-201),  
Do mesmo modo que a onda de concessões de serviços sanitários a  
companhias privadas no Brasil coincidiu com a modalidade e modus operandi  
europeu e estadunidense em meados do século XIX, ao final do século e início  
Isabel Jardin do Nascimento Andrade  
do século XX, também consoante com os movimentos nos países centrais, a  
onda refluiria.  
Assim, a partir da primeira metade do século XX, a responsabilidade sobre os serviços  
de saneamento básico passa a ser do Estado, tendência que se seguiria até a década de 1990.  
Neste mesmo período, entre 1902 e 1906, consolida-se, especialmente na cidade do Rio de  
Janeiro, até então capital federal, propostas de reformas higienistas. O governo do então  
presidente Rodrigues Alves iniciou um trabalho organizado em três frentes principais: a reforma  
urbana - através da derrubada dos cortiços que existiam na região central - a modernização do  
porto e o melhoramento da estrutura de saneamento básico, com a finalidade de erradicar as  
epidemias oriundas da falta de estrutura sanitária como a varíola, a febre amarela e a peste  
bubônica, demonstrando a imbricação de saneamento e saúde pública que subsistiria no país  
até pelo menos a década de 1930.  
A partir do início do primeiro governo Vargas, num contexto de centralização e  
nacionalismo, publica-se o Código de Águas, em 1934, considerado o primeiro marco  
regulatório da gestão das águas no Brasil. Naquele momento, “o projeto político e econômico  
hegemônico preconizava a industrialização induzida pelo Estado e, para tal, o controle e uso  
dos recursos naturais do país [...] tornaram-se essenciais” (Murtha; Castro; Heller, 2015, p.  
204). O código tinha por objetivo estabelecer o controle da União sobre o setor de energia  
elétrica (já que as usinas hidrelétricas representam ao menos 64% da produção de eletricidade  
no país) (Energia [...], 2023) e naquele momento mostrava-se o carro chefe da economia  
nacional. Neste instrumento normativo, o direito de propriedade já vinha sido colocado acima  
do direito de uso da água, como demonstra a letra do art. 8º, que diz “São particulares as  
nascentes e todas as águas situadas em terrenos que também o sejam, quando as mesmas não  
estiverem classificadas entre as águas comuns de todos, as águas públicas ou as águas comuns”  
(Brasil, 1934, n.p.).  
324  
A ampliação da cobertura dos serviços de saneamento básico no Brasil deu seu primeiro  
grande salto sob a égide dos governos militares, a partir de 1964, afastando-se de vez do campo  
da saúde pública e das ações sanitárias de caráter eminentemente preventivo (Oliveira e  
Teixeira, 1986 apud Britto, 2012). O Plano Nacional de Saneamento do Brasil, PLANASA, foi  
uma primeira tentativa de organizar o setor no país. Até então, os serviços de saneamento  
ficavam a cargo dos poderes municipais; no entanto, desde 1962, as empresas estaduais de  
saneamento já operavam através da metodologia de subsídios cruzados, e o PLANASA veio  
definir incentivos para que os municípios, então, transferissem o direito de exploração dos  
serviços de saneamento para as companhias estaduais, garantindo, para tanto, empréstimos do  
Libertas, Juiz de Fora, v. 25, n. 1, p. 320-337, jan./jun. 2025. ISSN 1980-8518  
Desigualdade no acesso ao saneamento básico no Brasil: questão social e a dimensão de gênero  
Banco Nacional de Habitação (Calisto, 2023). Britto, Lima, Heller e Cordeiro (2012, p. 69)  
explicam que  
O Plano focalizava as regiões de economia mais dinâmica do País, que  
correspondiam às macrorregiões Sudeste e Sul, além das capitais da federação.  
Contudo, mesmo nos ditos centros urbanos economicamente proeminentes, a  
predominância de investimentos não foi capaz de ampliar o escopo de  
abrangência das ações de saneamento.  
Então, é correto afirmar que, se por um lado o PLANASA representou um avanço na  
cobertura dos serviços de saneamento básico no país (com o esgotamento sanitário em menor  
grau que o abastecimento de água), foi ele também o principal responsável pelo  
aprofundamento das desigualdades sociais oriundas da exclusão sanitária, já que aquela parcela  
da população que não podia pagar pelas ligações residenciais de água, residentes nas periferias  
urbanas e na zona rural esquecida do país, ficariam de fora dos resultados projetados pelo plano.  
Além disso, a gestão do PLANASA desconsiderou que o aumento das conexões residenciais de  
água viria acompanhada do aumento da quantidade de esgoto não coletado corretamente e  
lançado in natura no ambiente, ampliando problemas de saúde pública exatamente nas regiões  
onde o plano não se preocupou em produzir seus efeitos (Rezende; Heller, 2008 apud Britto;  
Lima; Heller; Cordeiro, 2012).  
Este modelo de exclusão se perpetuou, e inclusive se aprofundou nos anos que se  
seguiram. Com os efeitos da crise estrutural do modo de produção capitalista que começou a  
tomar lugar a partir da década de 19704, o plano perde força e não é mais tratado como  
prioridade dos governos seguintes. Com a promulgação da carta constitucional de 1988, pouco  
se avançou no debate sobre a política pública de saneamento, e entre as décadas de 1990 e 2000,  
a partir do avanço do neoliberalismo no país, insistia-se na privatização das companhias estatais  
que dominavam o cenário da prestação do serviço até então. Sobre este período, Menicucci e  
D’Albuquerque (2018, p. 16) explicam que  
325  
[...] é caracterizado por projetos de privatização das empresas públicas  
concomitantemente ao enfraquecimento da política nacional de saneamento,  
sob alegação de ampliar o investimento e universalizar o sistema de  
saneamento. Essa posição, fortemente incentivada pelas agências  
internacionais de fomento (Banco Mundial e Banco Interamericano,  
principalmente), teve grande defesa do presidente Fernando Henrique.  
No entanto, ainda de acordo com as autoras, esses projetos voltados para o  
fortalecimento das ações de privatização do setor encontraram resistência na sociedade civil,  
principalmente através de questionamentos e contestações de iniciativa da Frente Nacional de  
Saneamento Ambiental (FNSA), criada em 1997 e formada por, entre outros, setores sindicais,  
4 Sobre este tópico, ver: Carcanholo, (2010); Netto e Braz (2012); Netto (2012); Nozaki (2021); Oliveira (2023).  
Isabel Jardin do Nascimento Andrade  
movimentos sociais e organizações da sociedade civil, além de também enfrentarem resistência  
por parte das companhias estaduais, governadores e organizações representativas dos serviços  
municipais de saneamento.  
A partir do primeiro governo Lula, o saneamento passa a ser considerado uma das  
prioridades da agenda governamental, com o aumento da participação popular na construção  
de uma política pública de fato destinada ao setor. É então que finalmente se materializa um  
marco legal para a política de saneamento, através da publicação da Lei nº 11.445/2007  
(LDNSB) que “define as diretrizes nacionais, no marco das quais deverão ser prestados os  
serviços de saneamento” e que “pode ser considerada uma referência fundamental para a  
construção de um modelo de gestão mais integrado e intersetorial” (Britto; Lima; Heller;  
Cordeiro, 2012, p. 73). Porém, este processo não ocorreu sem a presença de ações contraditórias  
voltadas à satisfação dos interesses do capital. Heller e Castro (2015, p. 285) explicam que,  
especialmente durante os dois primeiros governos Lula,  
[...] observa-se a popularização do paradigma de avaliação de gestão  
representado pelos “prêmios de qualidade” [...] nos quais se privilegia um  
olhar a partir da lógica da “eficiência empresarial”, possivelmente refletindo  
a pressões sofridas pelo país desde meados da década de 1990 para a  
transformação dos fundamentos e bases organizativas do setor. A visão  
empresarial aplicada aos serviços de saneamento é coerente com as tentativas  
de substituir o princípio desses serviços como direito social da cidadania, e  
que, portanto, devem responder aos interesses e demandas sociais, por  
princípios mercantis, em que o ator interpelado é o(a) consumidor (a) ou o  
cliente, e não o(a) cidadão (ã) portador(a) de direitos, ou seja, valorizando a  
ponta da oferta em detrimento da visão da demanda pelos serviços e  
subordinando as necessidades sociais aos requerimentos de eficiência  
empresarial (grifo nosso).  
326  
Para Britto e Rezende (2017, p. 563), no decorrer dos governos Lula e Dilma foi a  
contradição se dá ao ser possível verificar que houve “[...] avanços no sentido de se construir  
uma política universalista e democrática” do saneamento básico, porém também um  
“movimento através do qual a participação privada e a lógica de mercantilização no saneamento  
saem fortalecidos, beneficiados pelo acesso aos recursos públicos.”  
Por fim, num contexto do pós-golpe institucional sofrido por Dilma Rousseff, e da  
eleição de Jair Messias Bolsonaro, que representou, conforme Avritzer (2019, p. 168), “a  
consequência das formas de degradação institucional consolidadas na conjuntura pós-  
impeachment”, o setor de saneamento foi definitivamente entregue à iniciativa privada, através  
da edição da Lei nº 14.026/2020, aprovada em regime de urgência no Congresso Nacional, em  
votação remota em plena pandemia de COVID-19, sem participação popular e sem discussão e  
Libertas, Juiz de Fora, v. 25, n. 1, p. 320-337, jan./jun. 2025. ISSN 1980-8518  
Desigualdade no acesso ao saneamento básico no Brasil: questão social e a dimensão de gênero  
controle social por parte dos atores interessados, com votos favoráveis da ampla maioria dos  
congressistas.  
A despeito de uma análise pormenorizada da nova lei, é possível afirmar que apesar de  
vendida sob a falácia da “universalização”, que se mantém como argumento para a entrega do  
serviço de saneamento à iniciativa privada desde o governo FHC, a nova lei vem mascarar o  
intensificação da mercantilização da natureza operada pelo Estado e pelo modo de produção  
capitalista no Brasil, invisibilizando as questões que decorrem da financeirização de bens  
essenciais à reprodução social da classe trabalhadora.  
Além disto, é necessário enxergar os efeitos da privatização do serviço de saneamento  
básico, no sentido de promover ainda mais a exclusão sanitária, e enxergando-o em um contexto  
intersetorial com as políticas de desenvolvimento urbano e regional, de combate à pobreza e  
sua erradicação, de habitação, promoção e proteção da saúde, podemos afirmar que a falta de  
acesso a um serviço de saneamento básico de qualidade constitui-se como mais uma expressão  
da questão social no Brasil, tópico que passaremos a analisar adiante.  
A falta de acesso ao saneamento básico enquanto expressão da questão social  
A existência da questão social é indissociável do processo de acumulação capitalista.  
Suas determinações estruturais e históricas, especialmente aquelas ligadas à exploração do  
trabalho, à propriedade privada dos meios de produção e à divisão social de classes, que  
articulam elementos postos na realidade material, estão presentes na gênese e desenvolvimento  
da condição de exploração da classe trabalhadora, inserida no contexto da luta de classes. Suas  
múltiplas manifestações são as formas pelas quais as contradições inerentes ao modo de  
produção capitalista se materializam na concretude do cotidiano de sujeitos e grupos sociais.  
Conforme explica Lukács, “após o surgimento da economia marxista, seria impossível ignorar  
a luta de classes como fato fundamental do desenvolvimento social” (1992, p. 123).  
Além disso, a questão social se reflete na intervenção do Estado, que, por meio de  
políticas públicas e mecanismos de repressão, prioriza os interesses da classe dominante, ainda  
que eventualmente implemente políticas sociais que desempenham a função de mediação das  
demandas da classe trabalhadora. Octávio Ianni compreende que  
327  
Vista [...] em perspectiva histórica ampla, a sociedade em movimento  
apresenta-se como uma vasta fábrica das desigualdades e antagonismos que  
constituem a questão social. A prosperidade da economia e o fortalecimento  
do aparelho estatal parecem em descompasso com o desenvolvimento social  
(Ianni, 2004, p. 92-93).  
Isabel Jardin do Nascimento Andrade  
Assim, Montaño (2012) esclarece que é possível enxergar momentos distintos do  
desenvolvimento da questão social dentro do avanço do modo de produção capitalista;  
inicialmente, a questão social e suas manifestações eram enxergadas como fatos isolados,  
acontecimentos naturais gerados pelo comportamento dos sujeitos que por elas eram afetados;  
num segundo momento, a questão social passa a ser “internalizada na ordem social” não mais  
como consequência exclusiva do comportamento do sujeito mas como um problema decorrente  
do subdesenvolvimento social e econômico, passando a ser tratada através de políticas sociais  
estatais, de maneira segmentada (Netto, 1992).  
Contemporaneamente, para se realizar uma conceituação histórico-crítica da questão  
social, alinhada ao referencial teórico-metodológico marxista, é necessário entendê-la como  
uma manifestação própria do modo de produção capitalista, constituída através da relação  
capital-trabalho e suas refrações e contradições no interior da luta de classes; assim, a questão  
social entendida no contexto do capitalismo monopolista “expressa a relação entre classes (e  
seu antagonismo de interesses) conformadas a partir do lugar que ocupam e o papel que  
desempenham os sujeitos no processo produtivo” (Montaño, 2012. p. 280).  
É assim que compreendemos, conforme Iamamoto e Carvalho (2014, p. 85) que  
A questão social não é senão as expressões do processo de formação e  
desenvolvimento da classe operária e de seu ingresso no cenário político da  
sociedade, exigindo seu reconhecimento como classe por parte do  
empresariado e do Estado. É a manifestação, no cotidiano da vida social, da  
contradição entre o proletariado e a burguesia, a qual passa a exigir outros  
tipos de intervenção, mais além da caridade e repressão.  
328  
Assim também demonstra José Paulo Netto quando aduz que  
O desenvolvimento capitalista produz, compulsoriamente, a “questão social”  
– diferentes estágios capitalistas produzem diferentes manifestações da  
“questão social”; esta não é uma sequela adjetiva ou transitória do regime do  
capital: sua existência e suas manifestações são indissociáveis da dinâmica  
específica do capital tornado potência social dominante. A “questão social” é  
constitutiva do desenvolvimento do capitalismo. Não se suprime a primeira  
conservando-se o segundo (Netto, 2001, p. 45).  
Entretanto, a questão social não se expressa de maneira homogênea em todos os lugares.  
Para compreender suas particularidades no Brasil, é necessário analisar as características que  
assume quando observada num contexto de capitalismo periférico e dependente, tal qual o caso  
brasileiro (Yazbek, 2021).  
Para além das análises e conceitos clássicos deste fenômeno, é importante compreender  
como se dá o movimento das contradições sociais dentro da dinâmica de acumulação do capital,  
com a finalidade de apropriar-nos de fato da dinâmica dos elementos constitutivos da questão  
social no Brasil. Desta forma,  
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Desigualdade no acesso ao saneamento básico no Brasil: questão social e a dimensão de gênero  
[...] é salutar a busca pelas suas expressões [da questão social], centradas nas  
investigações sobre as particulares contradições entre o capital e o trabalho  
em cada formação social, subordinada à dinâmica do valor. Em outras  
palavras, é necessário buscar, na realidade concreta, as diferencialidades que  
constituem singularidades face ao caráter universal do antagonismo entre as  
classes exploradas e as exploradoras (Souza; Teles, 2021, p. 48).  
Logo, buscar entender os múltiplos processos que constituem as relações capitalistas no  
interior da realidade social brasileira se mostra essencial para analisar suas expressões  
contemporâneas. É deste modo que entendemos que “a caracterização da “questão social”, em  
suas manifestações já conhecidas e em suas expressões novas, tem de considerar as  
particularidades histórico-culturais e nacionais” (Netto, 2012, p. 48-49).  
Assim, pensar a questão social e suas determinações características no caso brasileiro  
pressupõe apreender a formação da sociedade capitalista e da autocracia burguesa5 no país.  
Nesse sentido, conforme analisa Fernandes (2020), é necessário compreender que a formação  
social da burguesia nacional se deu de forma “incompleta”, através de uma adaptação  
conservadora que manteve hierarquias sociais e econômicas que fundamentam as formas de  
exclusão de classe que são particulares ao país, já que não houve um processo de ruptura com  
as estruturas de dominação e exploração presentes já no período colonial e escravista.  
Já na transição para o capitalismo dependente, definido por Marini (2005, p.141) como  
“[...] uma relação de subordinação entre nações formalmente independentes, em cujo marco as  
relações de produção das nações subordinadas são modificadas ou recriadas para assegurar a  
reprodução ampliada da dependência” foi possível observar a intensificação da exploração da  
força de trabalho e o surgimento de novas expressões da questão social, atreladas às novas  
formas de produção de desigualdades. Desta maneira é que Netto (2001, p. 48) explica-nos que  
329  
“[...] inexiste qualquer “nova questão social” [...] a emergência de novas  
expressões da “questão social” que é insuprimível sem a supressão da ordem  
do capital. A dinâmica societária específica dessa ordem não só põe e repõe  
os corolários da exploração que a constitui medularmente: a cada novo estágio  
de seu desenvolvimento, ela instaura expressões sócio-humanas diferenciadas  
e mais complexas, correspondentes à intensificação da exploração, que é a sua  
razão de ser.  
É assim que entendemos, como explica Iamamoto (2007, p. 72), que em tempos de  
capitalismo fetiche, a questão social “é mais do que as expressões da pobreza, miséria e  
5 Segundo Carvalho (2018, p. 112): “A autocracia burguesa é decorrência, portanto, da própria estrutura compósita  
da sua burguesia brasileira (CARDOSO, 1995), cujos objetivos se limitam a manter ordem, salvar e fortalecer o  
capitalismo, e impedir que a dominação e o controle burguês sobre o Estado nacional se deteriorem  
(FERNANDES, 2005). É por meio do reacionarismo e autoritarismo – tendência intrínseca à crise da sociedade  
burguesa na era do capitalismo monopolista (FERNANDES, 1979) – que se revela a essência autocrática da  
dominação burguesa no Brasil e sua propensão a produzir formas abertas e sistemáticas de ditadura de classe  
(FERNANDES, 2005).”  
Isabel Jardin do Nascimento Andrade  
‘exclusão’. Condensa a banalização do humano, que atesta a radicalidade da alienação, a  
invisibilidade do trabalho social e dos sujeitos que o realizam.”  
Quando olhamos para o saneamento básico no Brasil, e as consequências para a classe  
da trabalhadora da falta de acesso a um serviço de saneamento de qualidade, é possível dizer  
que este déficit se insere como mais uma expressão da questão social no país, já que, conforme  
explicam Souza e Teles (2021, p. 48) “é possível compreendermos outras expressões da questão  
social, além das já conhecidas.” Para as autoras, procurar entender as relações histórico-  
estruturais que estão por trás das manifestações das expressões da questão social já presentes  
no cotidiano é o que nos permite compreendê-las de forma aprofundada, fugindo daquilo que é  
dado aos sentidos de forma imediata.  
Portanto, situar a questão social nos marcos do desenvolvimento capitalista significa  
também situá-la no processo de formação da sociedade brasileira, de base escravocrata, e de  
contemporaneidade dependente, e suas expressões expõem modalidades novas de violações de  
direitos oriundas do acirramento da luta de classes, como é o caso da tentativa de privatização  
do saneamento básico operado através da Lei nº 14.026/2020. A agenda de contrarreformas  
operadas no Brasil no contexto do neoliberalismo é também grande responsável pelo  
aprofundamento deste processo, e seguiu um movimento global de transformação de bens  
essenciais e coletivos em ativos financeiros, através da espoliação.  
330  
No entanto, não se deve passar despercebido o fato de que a falta de acesso a um serviço  
de saneamento básico de qualidade enquanto expressão contemporânea da questão social no  
Brasil, afeta de formas diferentes homens e mulheres, demonstrando a dimensão de gênero que  
esta expressão também possui, aprofundando ainda mais situações de violações de direitos  
decorrentes da prestação deficitária deste serviço público.  
A desigualdade no acesso ao saneamento básico sob a dimensão de gênero  
Em uma sociedade historicamente marcada pelo patriarcado6, na qual homens assumem  
sempre posição privilegiada em relação às mulheres, não é exagero afirmar que a falta de acesso  
às políticas públicas, neste caso à política de saneamento básico, assumirá uma dimensão  
distinta baseada no gênero do sujeito. Kergoat (2009, p. 67) explica que  
As condições em que vivem homens e mulheres não são produtos de um  
6 Por patriarcado, entendemos toda uma estrutura social de dominação de gênero, mais especificamente do gênero  
masculino sobre o feminino, na qual os homens possuem o poder político, econômico, sexual e simbólico sobre  
mulheres. Entendemos, ainda, que esta forma de dominação se articula às demais, pensando especificamente na  
dominação de classe e raça. Em suma, o patriarcado não se expressa apenas na figura do machismo: ele representa  
uma forma de poder que articula a dominação sobre os corpos, o trabalho, a ideologia e a reprodução social. Sobre  
este tópico, observar Federici (2017) e Gonzalez (1984).  
Libertas, Juiz de Fora, v. 25, n. 1, p. 320-337, jan./jun. 2025. ISSN 1980-8518  
Desigualdade no acesso ao saneamento básico no Brasil: questão social e a dimensão de gênero  
destino biológico, mas, sobretudo, construções sociais. Homens e mulheres  
não são uma coleção – ou duas coleções – de indivíduos biologicamente  
diferentes. Eles formam dois grupos sociais envolvidos numa relação social  
específica: as relações sociais de sexo.  
Sob a ótica marxista, pensar o gênero por uma perspectiva histórico-crítica significa  
observá-lo sempre do ponto de vista do combate à lógica de exploração em que se assenta a  
sociedade capitalista. Para Saffioti (2015), é necessário analisar a complexidade das formas de  
opressão que recaem sobre as mulheres – e mesmo sobre a classe trabalhadora como um todo  
– como um “nó” de três contradições sociais: gênero, raça e classe social. No entanto, conforme  
explica Gonçalves (2011, p. 120), “não se trata [...] de conceber três diferentes ordenamentos  
das relações sociais correndo paralelamente. Ao contrário, estas três contradições entrelaçadas  
pelo nó sustentam a manutenção do sistema capitalista.”  
Assim, para entender como se estabelecem as formas de dominação sobre a mulher na  
sociedade capitalista, entendemos que  
[...] o domínio masculino sobre as mulheres, não diretamente vinculado à  
estrutura econômica da sociedade, acaba por servir aos interesses daqueles que  
detêm o poder econômico. Os homens da classe dominada funcionam, pois,  
como mediadores no processo de marginalização das mulheres de sua mesma  
classe da estrutura ocupacional (Saffioti, 2015, p. 98).  
No que tange ao acesso a políticas públicas é necessário, então, atentar para o fato de  
que as desigualdades baseadas em gênero atingem praticamente todas as esferas da vida social  
e se refletem nas maneiras em que homens e mulheres são capazes de acessar, administrar e se  
beneficiar dos bens e serviços públicos. De acordo com Heller (2022), alguns dos desafios  
enfrentados por mulheres no acesso ao saneamento básico estão documentados e podem ser  
mais bem enxergados em lugares “[...] onde a água não está disponível na própria residência”  
o que se reflete no fato de que “mulheres e meninas são as principais responsáveis pela água e  
pela higiene em casa, além de carregar o pesadíssimo fardo de coletar água” (p. 464). Além  
disso, questões como manejo da higiene menstrual, a salubridade das instalações de  
saneamento, além do risco de violência de gênero em banheiros públicos contra pessoas  
LGBTQIAPN+ são desafios adicionais na garantia dos direitos humanos à água e ao  
saneamento básico observados a partir da dimensão de gênero.  
331  
O direito humano à água e ao saneamento básico é um importante componente da  
dignidade de todas as pessoas. No entanto, para os corpos LGBTQIAPN+ ele é recortado por  
sistemas de opressão interligados. A população LGBTQIAPN+, especialmente aquela situação  
de rua, e consequentemente de maior vulnerabilidade (travestis, mulheres trans, pessoas  
negras), em muitos casos, são expulsas de suas casas e seus territórios de origem e acabam  
Isabel Jardin do Nascimento Andrade  
ocupando espaços urbanos precários, nos quais o acesso ao saneamento básico é praticamente  
inexistente. Iniciativas como o Banho Solidário7, na cidade de São Paulo, e o Aquabox8, no  
município de Juiz de Fora, são pontuais e inexistentes na maioria dos municípios brasileiros.  
Além disso, a violência sofrida por pessoas LGBTQIAPN+ em banheiros públicos é uma marca  
da violação deste direito. Conforme explica Heller (2022, p. 475),  
Pessoas com identidade não binária podem experimentar violência e abusos  
diante do uso de instalações sanitárias segregadas por gênero. Pessoas não  
binárias enfrentam assédios em banheiros públicos segregados por gênero ou  
evitam o uso por medo. Por exemplo, meninas transexuais que usam banheiros  
masculinos e meninas transexuais que usam banheiros de meninas na escola  
são altamente vulneráveis ao bullying, assédio e ataques por outros estudantes.  
Além disso, também há uma significativa dificuldade na construção de indicadores  
acerca do acesso ao saneamento básico da população LGBTQIAPN+ no Brasil. Isto porque o  
último censo realizado pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística9 não traz dados  
oficiais sobre saneamento básico específicos para a população LGBTQIAPN+, não sendo  
possível mapear onde seus direitos estão sendo violados de maneira mais incisiva,  
invisibilizando a construção de uma política pública de saneamento básico que seja, de fato,  
universalizante. Assim, conforme explica Heller (2022, p. 489)  
Preencher a ausência de dados existentes deve ser uma prioridade, a fim de  
apoiar os indicadores sensíveis às questões de gênero. Os sistemas precisam  
ser desenvolvidos para melhorar a coleta de dados desagregados por sexo e  
outros fatores relevantes, nos níveis domiciliar e intradomiciliar, necessários  
para avaliar o impacto e a efetividade das políticas e programas que visam à  
igualdade de gênero e à ampliação das condições para mulheres usufruírem  
de seus direitos humanos. [...] Ademais, seria importante monitorar como as  
desigualdades de gênero, incluindo entre lésbicas, gays, bissexuais,  
transexuais, intersexuais e de pessoas não binárias, manifestam-se fora do  
ambiente doméstico, incluindo instalações sanitárias de espaços públicos.  
332  
Outro fator possível de ser citado diz respeito ao ordenamento jurídico-institucional, que  
também produz desigualdades de gênero no acesso a políticas públicas. “Em muitos países, a  
propriedade da terra é considerada uma precondição para acesso à água, o que é frequentemente  
negado às mulheres pelo direito de família, que também dificulta que as mulheres herdem  
terras” (Heller, 2022, p. 467).  
Ademais, é preciso pontuar que, mesmo o grupo de meninas e mulheres sem acesso ou  
com acesso precário ao saneamento básico, não constitui um grupo homogêneo. É necessário  
considerar fatores como a vulnerabilidade econômica e social, a existência de deficiências de  
7 https://www.banhosolidario.org.br/  
8 https://www.pjf.mg.gov.br/e_atos/e_atos_vis.php?id=93020  
9 https://censo2022.ibge.gov.br/  
Libertas, Juiz de Fora, v. 25, n. 1, p. 320-337, jan./jun. 2025. ISSN 1980-8518  
Desigualdade no acesso ao saneamento básico no Brasil: questão social e a dimensão de gênero  
qualquer tipo, a condição de encarceramento ou a situação de rua, por exemplo. Nesses casos,  
a falta de acesso ao saneamento básico de qualidade produzirá ainda mais desigualdade e riscos  
adicionais à saúde, quando enxergamos também esta política de um ponto de vista intersetorial.  
Em estudo realizado com a população de rua do município de Belo Horizonte, Silva, Martins e  
Heller (2018, p. 4) observaram que  
No Município [...] a população em situação de rua não tem acesso adequado à  
água e ao esgotamento sanitário. O acesso a esses serviços ainda é tratado  
como assistencialismo e caridade, e não como direito, impedindo que as  
pessoas requeiram o acesso a esses serviços como titulares de direito,  
colocando o Estado na posição de obrigatoriedade em garanti-lo. O não  
reconhecimento do direito coloca essa população em uma situação cada vez  
mais vulnerável. Como os direitos são interdependentes e indivisíveis, a  
violação de um afeta outros gerando iniquidades e prejudicando a saúde.  
Existe, ainda, o tabu da menstruação quando se pensa no acesso ao saneamento básico.  
Algumas culturas e crenças consideram a menstruação como algo “sujo” ou “impuro”, o que  
reforça a desigualdade de gênero e a exclusão relacionada a falta de acesso ao saneamento  
básico (Mahon; Cavil; House, 2013). Além disso, a falta de instalações sanitárias adequadas  
limita o acesso ao direito ao saneamento básico de meninas e mulheres fora de casa, que muitas  
vezes são levadas a evitar espaços públicos, especialmente durante a menstruação, ou caso  
tenham condições de acessibilidade que limitem seu acesso.  
Também é escassa ou inexistente a legislação no sentido de regulamentar instalações  
adequadas à higiene e cuidado menstrual nos locais de trabalho, tanto em empresas privadas  
como na administração pública, que pode se expressar no fornecimento de duchas higiênicas,  
lenços e papel higiênico em quantidade e qualidade adequados, disponibilidade e variedade de  
absorventes higiênicos bem como formas adequadas de descartá-los. Heller (2022, p. 482)  
explica que  
333  
A construção de mictórios públicos para evitar que homens urinem em locais  
abertos é relativamente fácil, uma vez que tais mictórios não precisam ter  
portas e fechaduras, não têm assentos e, geralmente, utilizam menos água,  
portanto, uma solução muitas vezes mais barata, e uma das razões para que as  
políticas públicas as priorizem.  
Um último ponto a ser observado diz respeito à saúde de pessoas gestantes10  
e
parturientes quando tratamos do direito humano à água e ao saneamento básico. Pessoas que  
pariram e ainda estão se recuperando do processo do trabalho de parto, seja ele natural ou não,  
são especialmente vulneráveis a questões relacionadas à falta de água, de saneamento e  
10 A escolha pelo uso dos termos “pessoas gestantes” e “pessoas parturientes” se deve ao fato de que não apenas  
mulheres gestam e dão a luz, como também pessoas trans, intersexo e não binárias podem fazê-lo. Os termos têm  
por finalidade abarcar toda pessoa que é capaz de gestar e parir.  
Isabel Jardin do Nascimento Andrade  
consequentemente, de higiene adequada. O risco de infecções atreladas torna-se especialmente  
alta no pós-parto, aprofundando as desigualdades que já existem no cotidiano do indivíduo e  
elevando os perigos à saúde do(a) parturiente e do nascituro.  
Por todo exposto, observa-se que o acesso pleno aos direitos humanos à água e ao  
saneamento básico por parte de mulheres e meninas só será efetivamente garantido se, entre  
outras medidas de responsabilidade primária do Estado, seja ampliado seu espaço de  
participação e articulação no campo da construção da política pública de saneamento. Esta  
participação, que deve ser integrada, tanto no poder executivo quanto no poder legislativo, e  
eventualmente no poder judiciário, tem o condão de assegurar que as necessidades específicas  
destes sujeitos sejam plenamente atendidas, sem que haja limitação de sua participação,  
inclusive em relação a fatores como privilégios sociais e econômicos.  
Considerações finais  
O acesso a um serviço de saneamento básico de qualidade afeta todo o processo de  
reprodução social da classe trabalhadora. As condições de saúde, habitação, proteção ambiental  
e o combate à pobreza estão intersetorialmente imbricados com a política de saneamento básico,  
e devem partir de um esforço do Estado na promoção e garantia de direitos dos usuários. Nesse  
sentido, Heller (2022, p. 464) explica-nos que  
334  
[...] diferenças culturais, sociais, econômicas e biológicas entre mulheres e  
homens consistentemente conduzem a oportunidades desiguais para as  
mulheres na fruição dos DHAS (Direitos Humano à Água e ao Saneamento  
Básico) com consequências devastadoras para a fruição de outros direitos  
humanos e para a igualdade de gênero em geral (grifos nossos).  
A proposta de privatização do serviço de saneamento básico operado pela Lei nº  
14.026/2020 tem o condão de aprofundar as desigualdades sociais já experimentadas por quem  
tem acesso deficitário ao saneamento básico já que, promovida através da falácia da  
“universalização”, esconde o interesse principal, tanto do Estado quanto dos setores  
econômicos privilegiados pela entrega das companhias de saneamento a empresas privadas, que  
reside na distribuição do lucro arrecadado através do pagamento de tarifas abusivas por serviços  
mal prestados a acionistas de concessionárias, que muitas vezes são parte de empresas  
estrangeiras que remetem estes lucros para a matrizes, fazendo como que o valor pago pelo  
usuário final não seja se quer aplicado no aprimoramento do serviço. E o Estado, é importante  
destacar, favorece esta dinâmica, agindo para e a favor dela. Desta forma, como nos explica  
Netto (1992, p. 26),  
Está claro [...] que o Estado foi capturado pela lógica do capital monopolista  
– ele é o seu Estado; tendencialmente, o que se verifica é a integração orgânica  
Libertas, Juiz de Fora, v. 25, n. 1, p. 320-337, jan./jun. 2025. ISSN 1980-8518  
Desigualdade no acesso ao saneamento básico no Brasil: questão social e a dimensão de gênero  
entre os aparatos privados dos monopólios e as instituições estatais [...] o  
Estado funcional ao capitalismo monopolista é, no nível das suas finalidades  
econômicas, o “comitê executivo” da burguesia monopolista – opera para  
propiciar o conjunto de condições necessárias à acumulação e à valorização  
do capital monopolista.  
Assim, a falta de acesso a um serviço de saneamento básico de qualidade percebido  
enquanto uma expressão da questão social no Brasil tem o condão de aprofundar ainda mais  
as desigualdades produzidas pelo modo de produção capitalista através de sua proposta de  
privatização, e quando observado através da dimensão de gênero, gera ainda mais exclusão e  
situações de violência e violação de direitos especialmente direcionadas a meninas, mulheres  
e pessoas LGBTQIAPN+. Pensar uma política de saneamento que efetivamente garanta o  
acesso a direitos deve levar em consideração o atendimento estratégico às necessidades  
específicas deste público, a fim de conduzir à igualdade de gênero na fruição dos direitos  
humanos à água e ao saneamento básico no Brasil.  
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337  
Atualidade do pensamento educacional de  
Florestan Fernandes  
The relevance of Florestan Fernandes' educational thought  
Raí Vieira Soares*  
Resumo: O Brasil é permeado por históricos  
dilemas educacionais que se particularizam na  
dinâmica do capitalismo dependente. Assim, o  
presente artigo trata da atualidade do  
pensamento educacional do intelectual-  
militante Florestan Fernandes. Tem como  
Abstract: Brazil is permeated by historical  
educational dilemmas that are particularized in  
the dynamics of dependent capitalism. Thus,  
this article deals with the current relevance of  
the educational thought of the intellectual-  
activist Florestan Fernandes. Its objective is to  
reflect on the current relevance of this  
intellectual's educational thought in order to  
think about the challenges of public education  
in contemporary times. Guided by the  
historical-dialectical method, the qualitative  
research was based on bibliographical research  
on Florestan Fernandes' educational thought  
and articles published in educational journals  
based on Florestan's thought. With this, the  
current relevance of the author's educational  
thought and the multiple possibilities of  
dialogue with his work were demonstrated in  
order to think about contemporary educational  
challenges in the context of basic and higher  
education, teaching work, the concepts of  
education and the conformation of education in  
the dynamics of Brazilian dependent capitalism.  
objetivo refletir sobre  
a
atualidade do  
pensamento educacional deste intelectual para  
pensar os desafios da educação pública na  
contemporaneidade. Orientado pelo método  
histórico-dialético, a pesquisa de natureza  
qualitativa se baseou em pesquisa bibliográfica  
sobre o pensamento educacional de Florestan  
Fernandes  
e
de artigos publicados nos  
periódicos da área de educação fundamentados  
no pensamento florestiano. Com isso,  
demonstrou-se a atualidade do pensamento  
educacional do autor  
possibilidades de diálogo com sua obra para  
pensar os desafios educacionais  
e
as múltiplas  
contemporâneos no âmbito da educação básica  
e superior, o trabalho docente, as concepções de  
educação e a conformação da educação na  
dinâmica do capitalismo dependente brasileiro.  
Palavras-chaves:  
Capitalismo dependente; Realidade brasileira;  
Pensamento educacional.  
Florestan  
Fernandes;  
Keywords: Florestan Fernandes; Dependent  
capitalismo; Brazilian reality; Educational  
thinking.  
* Universidade de Brasília. E-mail: rai.soares@unb.br  
DOI: 10.34019/1980-8518.2025.v25.47841  
Esta obra está licenciada sob os termos  
Recebido em: 15/03/2025  
Aprovado em: 02/06/2025  
Atualidade do pensamento educacional de Florestan Fernandes  
Introdução  
Historicamente a educação pública brasileira é permeada “problemas” e dilemas  
profundos como a desvalorização do trabalho docente, o privatismo educacional, o desafio da  
democratização do acesso ao ensino público, o desfinanciamento e a precarização da política  
de educação pública. Esses são alguns dos muitos exemplos. Algumas destas questões podem  
ser observadas nos Relatórios do Censo Escolar da Educação Básica publicados pelo Ministério  
da Educação (MEC). Segundo o Censo Escolar de 2023 (Brasil, 2023) são desafios  
educacionais: a garantia e ampliação da educação infantil, principalmente de creches públicas;  
o crescimento de taxas de evasão nos últimos anos do ensino fundamental e ensino médio na  
rede pública; a reduzida cobertura e matrículas em escolas de tempo integral; as desigualdades  
regionais no acesso a recursos tecnológicos nas escolas de ensino fundamental, como por  
exemplo, as regiões Norte e Nordeste são as que têm as menores taxas de acesso a internet para  
alunos, internet para ensino e aprendizagem e acesso a tablets ou computador portátil para os  
estudantes; a redução das taxas de distorção idade-série; dentre outros desafios.  
Tais desafios não podem ser vistos isoladamente, devem ser apreendidos numa  
abordagem crítica que considere a dinâmica da vida social em seus aspectos históricos,  
econômicos e políticos. Quando se reivindica uma perspectiva crítica de análise da realidade  
social, é necessário observar tais dilemas educacionais numa perspectiva de totalidade, ou seja,  
partir da realidade fenomênica e buscar seus fundamentos estruturantes, assim como, situá-los  
na dinâmica mais ampla do modo de produção capitalista e suas particularidades na formação  
econômico-social da sociedade brasileira no capitalismo dependente, permeada ainda por  
históricas desigualdades regionais, de gênero e étnico-raciais. É nessa perspectiva que se  
localiza o pensamento de Florestan Fernandes, sociólogo, professor, intelectual-militante e  
marxista, conhecido como um dos “intérpretes do Brasil” e representante da sociologia crítica  
brasileira.  
339  
Como um sociólogo preocupado com uma sociologia que partisse da realidade concreta  
da sociedade brasileira, as obras de Florestan Fernandes deram origem à uma sociologia  
tipicamente brasileira de vertente marxista, suas obras versam sobre as particularidades do  
nosso desenvolvimento capitalista, a formação e dinâmica das classes sociais, o papel do  
Estado, a democracia, o capitalismo dependente, a questão racial, a questão educacional e a  
universidade. É importante destacar que Florestan Fernandes não elaborou uma teoria  
pedagógica específica, pois o seu estilo ensaísta e por ser um sociólogo preocupado em refletir  
sobre a realidade brasileira, o autor problematizou os dilemas educacionais, as relações entre  
Raí Vieira Soares  
educação e desenvolvimento bem como a importância da defesa da educação pública na  
sociedade brasileira.  
Florestan Fernandes tem uma perspectiva de análise que considera os dilemas  
educacionais no contexto da realidade social, a partir da articulação entre elementos estruturais  
e dinâmicos da sociedade brasileira, ou seja, na relação dialética entre aspectos “novos” e  
“velhos”, permanências e rupturas, continuidades e mudanças. Ademais, o autor parte da  
compreensão de que os dilemas educacionais na sociedade brasileira devem ser situados no  
contexto do capitalismo dependente latino-americano e sua inserção na dinâmica do capitalismo  
mundial. Ou seja, a particularidade de um país localizado na dinâmica do capitalismo  
dependente vai oferecer determinados contornos específicos à sociedade brasileira, inclusive  
aos seus dilemas educacionais. Este é um dos seus principais pressupostos e seu “fio” condutor  
de análise.  
Diante dessas considerações iniciais sobre a questão educacional no pensamento  
florestiano, o presente artigo se originou da seguinte questão de partida: qual a atualidade do  
pensamento educacional de Florestan Fernandes para pensar os desafios da educação pública  
na contemporaneidade? Para isso, realizou-se um levantamento bibliográfico e análise dos  
artigos publicados nos períodos da área de educação que tratam sobre os dilemas educacionais  
contemporâneos fundamentados no pensamento do referido autor.  
340  
Justifica-se esta temática a partir de dois aspectos. Um primeiro aspecto relaciona-se à  
aproximação com as ideias de Florestan Fernandes por meio da participação em grupos de  
pesquisas e estudos sobre a questão educacional no capitalismo dependente. Ademais, o autor  
do presente artigo compartilha com Florestan Fernandes, mesmo vivendo em épocas distintas,  
experiências de uma trajetória de vida familiar marcada pelas desigualdades de classe típicas  
da sociedade brasileira, repercutindo também nas desigualdades educacionais. Dessa forma, a  
escrita do presente texto se apoia na defesa da educação pública e de qualidade na qual assume  
uma importância estratégica para o enfretamento das históricas desigualdades sociais no Brasil.  
Entretanto, tal defesa não pode cair no messianismo de atribuir unicamente à educação o papel  
de transformação social, mas no entendimento dialético das suas contradições, limites e  
possibilidades.  
Do ponto de vista acadêmico-social, a reivindicação da temática soma-se ao esforço  
coletivo de pesquisadores da área de Educação e do Serviço Social de contribuir com a  
compreensão dos fundamentos históricos e estruturantes dos dilemas educacionais brasileiros,  
pois essa tarefa é imprescindível para a formulação de políticas educacionais que respondam às  
reais necessidades do povo brasileiro e ao desenvolvimento social tão almejado.  
Libertas, Juiz de Fora, v. 25, n. 1, p. 338-362, jan./jun. 2025. ISSN 1980-8518  
Atualidade do pensamento educacional de Florestan Fernandes  
Também neste âmbito é importante destacar que o tema da educação vem ganhando  
destaque no Serviço Social brasileiro nos últimos anos pois, embora não seja um tema “novo”,  
tem cada vez sido um objeto de investigação e intervenção profissional. Este movimento é  
resultante de um processo de um acúmulo teórico-metodológico no interior na profissão com  
hegemonia da perspectiva marxista que contribuiu para a consolidação da pesquisa no Serviço  
Social, com estudos e contribuições também no debate educacional. Além disso, no plano  
externo, foi marcante ainda a reconfiguração e ampliação dos espaços de inserção profissional  
nas políticas públicas sociais, o que contribuiu para a inserção profissional de assistentes sociais  
na educação.  
Esta relação entre Serviço Social e educação tem sido evidenciada por meio de alguns  
determinantes. O primeiro se refere ao entendimento de que a profissão historicamente possui  
uma dimensão pedagógica que é constitutiva da intervenção do Serviço Social, seja orientada  
por pedagogias conservadoras ou pedagogias críticas (Moraes, 2020). Outro aspecto que  
demandou a aproximação do Serviço Social com a educação, foi a inserção profissional no  
âmbito educacional, seja pela expansão das universidades e institutos federais o que requisitou  
a formulação de políticas de assistência estudantil para garantia do acesso e permanência de  
estudantes, mas também a inserção de assistentes sociais nas escolas, na gestão das redes  
públicas de educação básica e nas instituições escolares privadas ou filantrópicas. A inserção  
profissional na educação básica ganhou destaque principalmente com a aprovação da Lei nº  
13.935 de 11 de dezembro de 2019 (Brasil, 2019) que prevê a prestação de serviços de  
Psicologia e de Serviço Social nas redes públicas de educação básica.  
341  
Diante disso, o artigo ora apresentado tem como objetivo geral refletir sobre a atualidade  
do pensamento educacional de Florestan Fernandes para pensar os desafios da educação pública  
na contemporaneidade. Assim, foram delimitados como objetivos específicos: a) Apontar a  
relação entre educação pública e os principais aspectos da trajetória pessoal, intelectual e  
militante de Florestan Fernandes; b) Problematizar as particularidades da educação no âmbito  
do capitalismo dependente no pensamento florestiano; c) Indicar as tendências contemporâneas  
do debate educacional com base no pensamento de Florestan Fernandes.  
Com base nestes objetivos, o artigo se orientou no método histórico-dialético, por  
entender que tal perspectiva de análise possibilita ao pesquisador ultrapassar as questões  
fenomênicas e buscar os fundamentos e determinantes histórico-estruturantes dos processos  
sociais. Destaca-se as contribuições desse método para as pesquisas sobre políticas e projetos  
de educação. Para Gomide e Jacomeli (2016), o referido método contribui para a apreensão dos  
projetos e políticas educacionais no âmbito da totalidade social, isto é, a educação não pode ser  
Raí Vieira Soares  
tratada isoladamente. Ultrapassa-se assim, as perspectivas teórico-metodológicas que tratam as  
políticas educacionais com foco na descrição ou na mera observação dos fatos. Ou seja, o  
método marxista não se limita ao senso comum, aos elementos da aparência no estudo da  
educação, mas busca compreender a sua essência, natureza e estrutura da educação numa  
sociedade de classes.  
Como projeto e política pública, a educação é permeada por interesses políticos,  
ideológicos e econômicos. Consequentemente, não é possível compreender os fundamentos da  
educação sem o entendimento da lógica de funcionamento do modo de produção capitalista e  
suas particularidades em cada realidade nacional. Contradição, mediação e totalidade são  
princípios metodológicos fundamentais nas pesquisas sobre educação. A contradição possibilita  
entender que a educação conserva, ao mesmo tempo, elementos de permanência e superação.  
A mediação pressupõe a inserção da educação na dinâmica das relações sociais e em que o ser  
social tem papel ativo e transformador. Já totalidade indica a necessidade da articulação entre  
as particularidades da educação com o contexto político, econômico e social mais amplo do  
capitalismo (Gomide; Jacomeli, 2016).  
Nesse sentido, o artigo se baseou numa pesquisa qualitativa de base bibliográfica sobre  
o pensamento educacional de Florestan Fernandes. Além da consulta das obras clássicas do  
referido autor, fez-se um levamento bibliográfico de artigos publicados nos periódicos  
científicos da área de educação com fundamentos no pensamento florestiano. O levantamento  
nos periódicos considerou apenas o período de 2022, por pressupor que ano foi o último ano do  
governo Bolsonaro (2019-2022), período de muitos desafios nas políticas educacionais com o  
aprofundamento do conservadorismo na sociedade brasileira com incidências nas políticas  
públicas e sociais. Além disso, a ampliação do marco temporal de seleção resultaria em grande  
quantidade de artigos, o que seria inviável para análise em um artigo.  
342  
A pesquisa foi realizada no Google Acadêmico no qual foram utilizados os operadores  
booleanos1 como estratégia de busca. A busca dos artigos utilizou as seguintes palavras-chaves:  
(educacao OR “educacao basica” OR “educacao superior” OR "desafios educacionais" OR  
“dilemas educacionais”) AND ("capitalismo dependente" OR “Florestan Fernandes” OR  
“padrao educacional dependente” OR “questão educacional em Florestan Fernandes” OR  
1 Os operadores booleanos são uma estratégia de pesquisa com a utilização de caracteres especiais com a utilização  
e combinação de palavras-chaves definidas pelo/a pesquisador/a. Segundo a lógica booleana, as palavras-chaves  
são conectadas pelo uso de “e” e “ou”, sendo que a utilização do “ou” pode ampliar a pesquisa e o uso do “e” pode  
restringir (Treinta et al., 2014).  
Libertas, Juiz de Fora, v. 25, n. 1, p. 338-362, jan./jun. 2025. ISSN 1980-8518  
Atualidade do pensamento educacional de Florestan Fernandes  
“pensamento educacional de Florestan Fernandes”)2. Assim, houve a busca e seleção dos  
artigos, categorização dos principais eixos temática e análise dos achados.  
É importante destacar que não se tem a pretensão de esgotar as possibilidades da  
reflexão nos limites do presente artigo, mas, sobretudo, provocar inquietações, curiosidade e  
debates. Com base no método de análise adotado na pesquisa realizada, toda investigação da  
realidade é um processo de aproximações sucessivas, em que esta realidade sempre será mais  
rica e complexa de determinações e mediações, ou seja, que ultrapassam o presente texto. Nesse  
sentido, o artigo foi estruturado da seguinte forma: introdução; seção dois apresentando os  
principais aspectos da vida de Florestan Fernandes que demonstram os vínculos com a  
educação; seção três, que particulariza a educação no capitalismo dependente brasileiro; e a  
seção quatro, na busca de sintetizar as tendências do debate educacional contemporâneo que se  
fundamentam no pensamento de Florestan Fernandes.  
Florestan Fernandes: trajetória em defesa da educação pública  
Antes de qualquer discussão, é importante apresentar o autor em questão, pois sua  
trajetória pessoal foi determinante para problematizar a educação numa perspectiva sociológica  
crítica e assumir a luta em defesa da educação pública. Além disso, essa trajetória contribuiu  
para sua postura teórica e militante de compromisso com os “de baixo”, segundo suas próprias  
palavras. A apresentação do referido intelectual evidencia ainda que a produção intelectual não  
é desvinculada de compromisso político-social, pondo assim em “xeque” a ideia de neutralidade  
acadêmico-científica, tão defendida por perspectivas conservadoras.  
343  
Oriundo de uma família pobre e filho de uma empregada doméstica não-alfabetizada,  
Florestan Fernandes teve uma trajetória pessoal, principalmente na infância e adolescência,  
marcada pelas desigualdades sociais de classe da cidade de São Paulo nos anos 1920-1930. Por  
tal razão, foi obrigado a trabalhar desde cedo, passando por várias ocupações informais. Isso  
fez com que, naquele período, não tivesse acesso à educação de forma permanente e regular.  
Posteriormente, a partir dos 17 anos, teve acesso à uma formação regular, o que contribuiu para  
o seu ingresso em 1944 na universidade pública, no curso de graduação em Ciências Sociais,  
no qual seguiu com sua carreira acadêmica no mestrado e doutorado também na área, ambos na  
2 A busca foi realizada no dia 07 de maio de 2024 com 380 resultados. Para chegar a um número de artigos que  
fosse possível a análise, foram elaborados outros critérios de seleção, a saber: artigo científico publicado em  
revista; textos em português; textos com citações de Florestan Fernandes e com temas transversais à educação.  
Assim foram excluídos: trabalhos de conclusão de curso, capítulo de livro, dissertações, teses, livros, citações,  
revistas internacionais, artigos em língua estrangeira e os anais de eventos. A partir de tais critérios, chegou-se ao  
número de 14 artigos.  
Raí Vieira Soares  
Universidade de São Paulo (USP), onde logo em seguida se tornou professor (Ianni, 2004). Foi  
afastado compulsoriamente da universidade durante o auge da ditadura. Isso, contudo, não  
impediu que continuasse com as críticas à ditadura e seu apoio ao movimento estudantil e a  
outros grupos de resistência na universidade e na sociedade de forma geral.  
Sua trajetória é marcada por uma postura intelectual-militante em defesa da educação  
pública. Entre fins da década de 1950 e na década de 1960, participou dos debates sobre a  
elaboração da Lei de Diretrizes e Bases (LDB) da educação, bem como do movimento nacional  
da Campanha em defesa da escola pública. Nos anos 1960, contribuiu com as reflexões sobre a  
reforma universitária, ademais, fez críticas à “reforma universitária” implementada em 1968  
pela ditadura empresarial-militar e seu projeto autocrático-burguês. Em fins dos anos 1970 e na  
década de 1980, foi um dos intelectuais comprometidos com a pauta da educação pública no  
processo da constituinte, reivindicando o financiamento público-estatal exclusivo para  
educação pública (Leher, 2012; Saviani, 1996) assim como uma concepção de universidade  
autônoma assentada no tripé ensino, pesquisa e extensão na Constituição Federal de 1988. Este  
aspecto também é destacado por Brzezinski (2010), em particular, no processo de tramitação e  
nas disputas em torno da LDB de 1996, com as tensões com os representantes dos setores  
privados e confessionais da educação.  
Do ponto de vista dos marcos regulatórios da educação no Brasil, a Constituição Federal  
de 1988 (Brasil, 1988) é um dos principais marcos, ao estabelecer a educação como direito de  
todos e dever do Estado e da família no artigo nº 205. Porém, a garantia desse direito  
constitucional enfrenta vários desafios para a sua plena efetivação na realidade brasileira,  
considerando que ela é permeada por históricas desigualdades sociais, regionais, raciais e  
culturais, o que implica na existência de desigualdades educacionais, como citado  
anteriormente. Mas tal constatação não desconsidera a importância do preceito constitucional  
da educação como direito na sociedade brasileira. Entretanto, no campo da educação superior,  
a Carta Magna de 1988 no seu artigo nº 208 relativiza o direito à educação, pois afirma que o  
acesso aos níveis mais elevados de ensino e pesquisa depende da “capacidade” de cada pessoa.  
Expressa assim uma concepção de educação superior permeada pelo elitismo e desvinculada da  
noção de direito e da responsabilidade do Estado.  
344  
Florestan Fernandes foi eleito deputado constituinte pelo Partido dos Trabalhadores  
(PT) em 1986 e se dedicou de forma particular ao tema da educação no processo da  
Constituinte. Porém, antes disso, o debate educacional já ocupava lugar de destaque na sua  
produção acadêmico-intelectual numa perspectiva crítica de apreensão dos dilemas  
educacionais vinculados às determinações econômicas, políticas e sociais presentes na  
Libertas, Juiz de Fora, v. 25, n. 1, p. 338-362, jan./jun. 2025. ISSN 1980-8518  
Atualidade do pensamento educacional de Florestan Fernandes  
sociedade brasileira. Segundo a perspectiva do autor, a Constituição de 1988 foi expressão de  
uma “transição democrática” negociada entre as elites, considerando o contexto de  
efervescência política e organização popular. Deste processo, resultou uma chamada “Nova  
República” que conservou traços autocráticos e antidemocráticos.  
Durante o processo da Constituinte, Florestan Fernandes defendeu: a legitimidade da  
participação de professores nos debates de educação; o ensino laico; a garantia da igualdade  
das oportunidades educacionais; e a exclusividade de recursos públicos para a educação  
pública, mas perdeu a disputa com os setores conservadores e de direita. Além disso, o deputado  
pautou a necessidade de o texto constitucional incorporar reformas estruturais para redução das  
desigualdades sociais na realidade brasileira, a exemplo da reforma educacional e agrária  
(Okumura; Novaes, 2023).  
Em síntese, as principais questões abordadas por Florestan Fernandes durante a  
Assembleia Nacional Constituinte em matéria educacional não foram efetivadas na  
Constituição Federal de 1988, em particular, sobre a exclusividade de recursos públicos para a  
educação pública, com a vitória dos representantes dos interesses dos setores privado e  
confessional da educação no Brasil. Portanto, a Carta Magna, mesmo reconhecendo alguns  
avanços no âmbito do reconhecimento dos direitos sociais, da seguridade social e, em particular,  
do direito à educação, ainda manteve os históricos limites à democratização efetiva da educação  
pública e da sociedade brasileira. Estes limites são expressões de uma democracia restrita típica  
do capitalismo dependente brasileiro e do Estado autocrático-burguês que restringe a  
universalização dos direitos.  
345  
No campo da produção teórica, Florestan Fernandes tem uma vasta obra que ultrapassa  
os limites do presente texto. Para pensar a realidade brasileira e o capitalismo dependente,  
destacam-se: Capitalismo dependente e classes sociais na América Latina (Fernandes, 1973),  
Sociedade de classes e subdesenvolvimento (Fernandes, 2008a), A Revolução Burguesa no  
Brasil: ensaio de interpretação sociológica (Fernandes, 1976), A integração do negro na  
sociedade de classes (Fernandes, 2008b). E no âmbito do pensamento educacional: Educação  
e sociedade no Brasil (Fernandes, 1966), Universidade brasileira: reforma ou revolução?  
(Fernandes, 2020a), O desafio educacional (Fernandes, 2020b), A formação política e o  
trabalho do professor (Fernandes, 2019) dentre outras obras, artigos e matérias em jornais, mas  
aqui cita-se apenas as principais obras.  
Essa produção do autor deve ser vista como resultado de uma trajetória político-pessoal  
e de um processo de amadurecimento teórico-intelectual, em articulação crítica com os  
momentos históricos da realidade brasileira. Diante do exposto, percebe-se como a trajetória  
Raí Vieira Soares  
pessoal de Florestan Fernandes foi determinante para fincar-se como um intelectual-militante  
marxista comprometido com os “de baixo” e com a defesa da educação pública na sociedade  
brasileira. Consolidou-se também como um sociólogo crítico e um dos principais nomes do  
pensamento social brasileiro, com referência não apenas na área da Sociologia, mas também  
para várias outras áreas de conhecimento. Por esta razão, destaca-se a seguir algumas de suas  
contribuições e reflexões sobre os dilemas educacionais na realidade brasileira, considerando a  
particularidade e dinâmica do capitalismo dependente brasileiro em seus aspectos dinâmicos e  
estruturais.  
Capitalismo dependente e a questão educacional em Florestan Fernandes  
Para compreender a questão educacional em Florestan Fernandes, é necessário entender  
a sua concepção de capitalismo dependente, o “fio” condutor e base de sua análise. Todavia,  
esse conceito não se encontra de forma fechada apenas em uma obra do referido intelectual,  
mas aparece em um conjunto de obras, acrescentando novos elementos de análise para se  
entender as especificidades e dinâmica do capitalismo dependente. As principais obras em que  
esse tema aparece são: Capitalismo dependente e classes sociais na América Latina (Fernandes,  
1973), Sociedade de classes e subdesenvolvimento (Fernandes, 2008a) e A Revolução Burguesa  
no Brasil: ensaio de interpretação sociológica (Fernandes, 1976).  
346  
Nesse sentido, considera-se que o pensamento educacional e sociológico de Florestan  
Fernandes se articula com a tradição das teorias pedagógicas críticas, particularmente da  
pedagogia histórico-crítica, pois apresenta as mediações e contradições da educação na  
realidade brasileira. Segundo Saviani (2008), as teorias pedagógicas críticas compreendem que  
a educação é permeada pelas incidências da dinâmica das classes sociais, as disputas, os  
conflitos e tensionamentos da sociabilidade burguesa, ou seja, só se compreende a educação a  
partir da análise dos seus condicionantes sociais e do contexto histórico. Tal perspectiva  
analítica encontra-se nas problematizações do pensamento florestiano, como será apresentado  
a seguir.  
O autor parte do entendimento de que o modo de produção capitalista não é homogêneo,  
ou seja, produz distintos níveis de desenvolvimento assim como não pode ser resumido apenas  
a uma dimensão econômica, mas apreendido como uma complexa realidade sociocultural. Na  
divisão internacional do trabalho e do mundo se estabelecem distintas padrões de exploração e  
dominação entre países, consequentemente se estabelecem relações de centro e periferia. Diante  
disso, o capitalismo dependente pode ser definido como uma forma específica de  
desenvolvimento econômico-social. Essa forma específica e típica da periferia do capitalismo,  
Libertas, Juiz de Fora, v. 25, n. 1, p. 338-362, jan./jun. 2025. ISSN 1980-8518  
Atualidade do pensamento educacional de Florestan Fernandes  
reproduz um padrão dual de expropriação e espoliação do excedente econômico, de um lado,  
para garantir os interesses das elites locais e, de outro lado, das elites internacionais. Por esta  
razão, reproduz um padrão articulado de dominação burguesa pois garante, ao mesmo tempo,  
a dominação interna e externa (Fernandes, 1973; 1976; 2008a). Nas palavras do autor:  
[...] a estrutura e o destino histórico de sociedades desse tipo se vinculam a  
um capitalismo dependente, elas encarnam uma situação específica, que só  
pode ser caracterizada através de uma economia de mercado duplamente  
polarizada, destituída de auto-suficiência e possuidora, no máximo, de uma  
economia limitada. [...] Trata-se de uma economia de mercado capitalista  
constituída para operar, estrutural e dinamicamente: como uma entidade  
especializada, no nível da integração do mercado capitalista mundial; como  
uma entidade subsidiária e dependente, no nível das explicações reprodutivas  
do excedente econômico das sociedades desenvolvidas; e como uma entidade  
tributária, no nível do ciclo de apropriação capitalista internacional, no qual  
ela aparece como uma fonte de incrementação ou de multiplicação do  
excedente econômico das economias capitalistas hegemônicas (Fernandes,  
2008a, p. 36-37).  
Cabe ressaltar que o referido autor não secundariza o papel das burguesias locais na  
dinâmica do capitalismo dependente. Pelo contrário, embora ocupem o lugar de “sócias  
menores” na divisão internacional do trabalho, estas desempenham uma função importante na  
articulação com os grandes centros econômicos internacionais para a condução da  
superexploração e expropriação do excedente econômico “para dentro” e “para fora”. Portanto,  
para o desenvolvimento e acumulação das grandes nações internacionais do capitalismo central  
necessita-se de burguesias locais fortes nos países de capitalismo dependente na América Latina  
(Fernandes, 1976).  
347  
Segundo Fernandes (1973; 1976; 2008a), os países de capitalismo dependente são  
historicamente marcados por um colonialismo permanente que se reproduz por distintos  
padrões de dominação externa. Tais países são impossibilitados de ter um desenvolvimento  
autônomo ou um projeto autônomo de nação. Do ponto de vista das relações e processos sociais,  
tem-se a modernização do arcaico e a arcaização do moderno (Fernandes, 1973), ou seja, um  
desenvolvimento capitalista que contém uma dialética entre o moderno e o atrasado. Pode-se  
citar como exemplo, a existência ainda presente de trabalhos análogos à escravidão, resquícios  
de um Brasil colonial-escravocrata, ou ainda, o autoritarismo e a violência exacerbada na  
sociedade brasileira.  
Em outras palavras, deve-se entender que o desenvolvimento dos países do centro do  
capitalismo só é sustentado pelo subdesenvolvimento dos países da periferia capitalista,  
considerando que faz parte da dinâmica capitalista um desenvolvimento desigual e combinado.  
A contraface do imperialismo é o subdesenvolvimento, o empobrecimento e a superexploração  
Raí Vieira Soares  
de outros países. Isso significa que o subdesenvolvimento não é uma “fase” ou uma “etapa”,  
mas é historicamente condicionado pela dinâmica do desenvolvimento capitalista (Fernandes,  
1976). O capitalismo dependente é uma expressão da divisão internacional do trabalho, a qual  
atribui determinados papéis para países do “centro” e da “periferia” do capitalismo mundial.  
Um exemplo disso é o histórico caráter agroexportador do Brasil e o peso do agronegócio na  
economia brasileira. Nessa dinâmica, o Brasil cumpre apenas a função de fornecimento de  
alimentos e bens primários para o mundo.  
A postura teórico-analítica do autor rompe com uma leitura “endógena” da realidade  
brasileira e latino-americana, pois situa as particularidades do desenvolvimento capitalista no  
contexto do capitalismo mundial. Além disso, chama atenção para a particularidade brasileira  
que contém um desenvolvimento capitalista distinto das experiências de revoluções burguesas  
clássicas. Segundo Fernandes (1976), a revolução burguesa na periferia é atrasada e assume  
traços autocráticos com ações reacionárias das frações burguesas, considerando que nunca  
assumiu a defesa de direitos ou um conjunto de reformas sociais na realidade brasileira. A  
chamada modernização da sociedade brasileira ocorreu com a manutenção de determinadas  
estruturas de poder típicas do período colonial, úteis não apenas às elites locais, mas também  
às requisições do mercado mundial, responsável por reservar à economia brasileira um lugar  
especializado, de natureza heteronômica e com a reprodução de uma “condição colonial  
permanente, embora instável e mutável” (Fernandes, 2008a, p. 27).  
348  
Para Fernandes (1976), a dominação burguesa na dinâmica do capitalismo dependente  
brasileiro ocorre por meio de uma violência institucionalizada e coercitiva para a garantia de  
interesses materiais privados e particularistas, com exclusão dos setores e camadas populares,  
isto é, uma prática característica de uma democracia restrita. Na dinâmica do capitalismo  
dependente, a apropriação privada do Estado pelas frações burguesas é estratégica para a  
garantia da dominação burguesa interna e externa. Isto é, a disputa das frações burguesas pela  
hegemonia do Estado é funcional à garantia da autoproteção e autoprivilegiamento das elites  
econômico-sociais. Disso resulta um Estado autocrático-burguês que se realiza como Estado  
antinacional e antipopular por meio de uma democracia restrita, na qual só participam dela os  
que detêm o poder econômico e prestígio social. O Estado autocrático-burguês típico do  
capitalismo dependente convive com as diversas manifestações de autoritarismo e violência  
assim como é incapaz de universalizar direitos humanos (Fernandes, 1973; 1976; 2018). Tal  
configuração de Estado contribui e reproduz sistematicamente uma cultura autocrática na  
sociedade brasileira.  
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Atualidade do pensamento educacional de Florestan Fernandes  
Todavia, o autor não tem uma visão engessada do Estado, mesmo reconhecendo que a  
direção do Estado é dada por tais elites, não descarta a leitura de que é também um espaço de  
disputa, contradições, tensionamentos e conflitos, sendo possível avançar, em determinadas  
conjunturas em algumas conquistas sociais, mesmo que nos limites do capitalismo, como na  
conquista de direitos e políticas sociais, como o direito à educação e às políticas educacionais,  
estas também atravessadas por contradições e limites.  
É nesse cenário que se localiza a questão educacional em Florestan Fernandes, pois a  
educação também vai reproduzir os limites e contradições da dinâmica do capitalismo  
dependente. Nesse sentido, o autor aponta na obra Universidade brasileira: reforma ou  
revolução? a existência de um padrão educacional dependente na realidade brasileira  
(Fernandes, 2020a) que se evidencia em várias dimensões: a precarização que marca a gênese  
e o desenvolvimento das universidades brasileiras; a dificuldade da democratização da  
educação pública e de qualidade; o lugar secundário atribuído à educação na sociedade  
brasileira; o desfinanciamento ou reduzido orçamento destinado à educação; o histórico  
privatismo educacional; e nos controles externos sobre as universidades públicas, os  
professores e estudantes, ferindo os princípios de autonomia universitária-docente-intelectual e  
de organização.  
Na obra Universidade Brasileira: reforma ou revolução?, com sua primeira edição  
publicada em 1968, Florestan Fernandes assinala que, naquele contexto de regime ditatorial, a  
universidade estava submetida em “[...] nova e perniciosa modalidade de controle – o controle  
ideológico” (Fernandes, 2020a, p. 67), o que interferia na sua composição, estrutura, dinâmica  
e funcionamento. Diante dessa reflexão do autor, pressupõe-se que, historicamente, a  
universidade brasileira é submetida a múltiplas formas de controle, inclusive de controle  
ideológico, que assume novas feições na contemporaneidade em tempos de aprofundamento e  
avanço do conservadorismo. Além disso, esta obra foi uma resposta intelectual crítica do autor  
à reforma universitária de 1968 implementada pelo regime empresarial-militar.  
349  
Segundo Fernandes (2020a), os resultados dessa Reforma de 1968 foram: o não  
rompimento com os modelos tradicionais de educação superior; manutenção de históricos de  
privilégios do antigo modelo educacional; organização de atividades acadêmicas segundo  
critérios de produtividade, “eficiência” e “eficácia”; o monopólio do poder e a centralização  
das decisões na gestão da universidade; uma reforma burocrática e tecnocrática; continuidade  
do privatismo educacional, ainda que sob novas configurações, por meio da organização das  
universidades em fundações; o incentivo às parcerias público-privadas com a realização de  
consultorias e assessorias; a privatização da pesquisa científica; interferência na nomeação de  
Raí Vieira Soares  
reitores e vice-reitores; cobrança de taxas na universidade; fragilização da autonomia didático-  
pedagógica, administrativa e científica da universidade; e submissão e controles externos sobre  
a universidade, reproduzindo dessa forma um padrão dependente de educação.  
Diante desse padrão dependente educacional, Florestan Fernandes faz crítica ao que ele  
chama de colonialismo educacional, que seria a mera transplantação de determinados modelos  
educacionais do exterior para a realidade brasileira, sem estabelecer mediações com as nossas  
particularidades histórico-sociais e reais necessidades do povo brasileiro. Ele assume uma  
postura de defesa intransigente da autonomia universitária e docente assim como da  
organização coletiva e política do movimento estudantil (Fernandes, 2020a). Além disso, se  
opunha ao privatismo educacional ao defender que o orçamento público fosse exclusivamente  
para a educação pública. Defendia a democratização da educação pública e de qualidade, a  
partir de igualdade das condições de acesso e permanência, assim como a laicidade do ensino  
(Fernandes, 1966).  
A referência à reforma universitária de 1968 ajuda a pensar as configurações e  
tendências da política de educação superior após o regime empresarial-militar. Em particular,  
a reforma de 1968 lançou as bases para o processo de mercantilização e privatização da  
educação superior que permanecem nos governos posteriores, ainda que com diferenças e  
contradições. É importante ressaltar que o privatismo educacional não é restrito à política de  
educação superior no Brasil, mas é um traço constitutivo das políticas educacionais brasileiras,  
contemplando também a gênese e o desenvolvimento da educação básica, conformando  
históricas desigualdades educacionais.  
350  
Outro ponto de destaque nos escritos de Florestan Fernandes sobre a questão  
educacional refere-se à relação entre a formação política e o trabalho do professor. Nesse  
aspecto, o autor nega o discurso da suposta neutralidade no âmbito do trabalho docente. Tal  
discurso promove a separação entre cidadão e professor ou do cientista. Na sua leitura, é  
impossível o professor ser “neutro” nos debates em sala de aula e nas pesquisas que desenvolve.  
Isto é, o trabalho do professor impõe uma responsabilidade intelectual e ética com os dilemas  
e problemas da sociedade, portanto, não se separa o cidadão do professor (Fernandes, 2019).  
Nessa direção, uma das tarefas do professor no processo político-pedagógico é a formação para  
o exercício da cidadania com inserção crítica e ativa na sociedade. Tal questão nos coloca o  
desafio de garantir uma formação pedagógica de professores com formação política alinhada  
às reais necessidades da classe trabalhadora.  
O autor reconhecia e destacava a importância da pesquisa e do conhecimento científico  
no desenvolvimento da sociedade brasileira (Fernandes, 2020a). Por isso, a necessidade de mais  
Libertas, Juiz de Fora, v. 25, n. 1, p. 338-362, jan./jun. 2025. ISSN 1980-8518  
Atualidade do pensamento educacional de Florestan Fernandes  
financiamento público destinado à pesquisa pública que responda às necessidades da classe  
trabalhadora e setores populares, ou seja, qualquer projeto de desenvolvimento nacional  
autônomo deve considerar a educação e pesquisa científica como elementos estratégicos.  
Inclusive, o compromisso da escola, universidade, pesquisa e a produção de conhecimentos  
com as lutas da classe trabalhadora aparece nos escritos de Florestan Fernandes, ao mesmo  
tempo, o autor reconhece que este é mais um dos desafios educacionais da realidade brasileira  
(Fernandes, 2020b).  
Diante dos eixos de análise do pensamento educacional de Florestan Fernandes, pode-  
se identificar várias questões que se referem a dilemas educacionais ainda presentes na  
contemporaneidade. Dessa forma, não são questões do passado, mas que se reatualizam na  
dinâmica do capitalismo dependente brasileiro contemporâneo, incidindo no debate  
educacional e na produção de conhecimentos. Apontando, dessa forma, a atualidade do  
pensamento de Florestan Fernandes como será exposto a seguir.  
As tendências do debate educacional contemporâneo: incidências do pensamento  
de Florestan Fernandes  
Para fins de exposição mais didática, em um primeiro momento, apresenta-se uma  
caracterização dos artigos selecionados nos periódicos a partir da pesquisa bibliográfica. Já no  
segundo momento, apresenta-se os principais eixos de análise do debate educacional  
contemporâneo a partir de Florestan Fernandes, sem pretender esgotar o tema e as  
possibilidades de reflexão. É importante ressaltar que o presente artigo não tem como objetivo  
elaborar um Estado da Arte do tema em questão, apenas apresentar algumas tendências do  
debate educacional na cena contemporânea que dialogam com o pensamento educacional  
florestiano.  
351  
Caracterização geral dos artigos selecionados nos periódicos  
Conforme já informado anteriormente, foram selecionados 14 artigos publicados em  
periódicos no ano de 2022, a escolha deste ano justificou-se pelo fato de ter sido o último ano  
do governo Bolsonaro (2019-2022), período de aprofundamento dos históricos desafios  
educacionais na realidade brasileira. Dito isso, a maioria dos artigos é de autores/as  
vinculados/as à universidade pública brasileira, seja universidades federais, universidades  
estaduais ou institutos federais, sendo apenas um artigo com autores/as vinculados/as à  
faculdade privada. Tal fato pode parecer algo insignificativo, mas é essencial destacar que a  
universidade pública é ainda uma das principais instituições de produção de ciência na  
Raí Vieira Soares  
sociedade brasileira, mesmo com todos os desafios. São autores/as que atuam como docentes  
ou estão como estudantes em programas de pós-graduação, produzindo conhecimento crítico  
como resultado de projetos de pesquisa ou de extensão.  
A origem dos autores/as dos artigos selecionados evidencia que estão vinculados/as a  
instituições educacionais das regiões Sul, Sudeste, Nordeste e Centro-Oeste do Brasil. Na  
amostra selecionada, não foram identificados autores/as da região Norte. Ainda que de forma  
inicial, considerando o reduzido número da amostragem, tal fato pode indicar que a produção  
acadêmico-científica ainda está concentrada em determinadas regiões do Brasil, considerando  
que nelas estão as universidades históricas e com vários programas de pós-graduação de  
excelência, apontando a necessidade de debater também as desigualdades regionais no acesso  
à universidade pública e nas condições de produção científica. Mesmo as regiões Norte e  
Nordeste tendo sido contempladas com as políticas de expansão das instituições federais de  
ensino, tal processo ainda carrega as marcas da precarização das condições de trabalho, de  
pesquisa e assistência estudantil.  
Destes 14 artigos selecionados, a maioria está em revistas que possuem avaliação Qualis  
considerando as classificações de periódicos quadriênio 2017-2020 da área de Educação da  
Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES). Além disso, a  
maioria destes artigos estão no estrato Qualis A, sendo: Pro-Posições, Argumentum e Diálogo  
Educacional (Qualis A1); Germinal, Teias e Roteiro (Qualis A2); Educacíon, Política y  
Sociedad, Trabalho Necessário (Qualis A3); e, Diversidade e Educação (Qualis A4). Já no  
estrato Qualis B são: Humanidades & Inovação e Extendere (Qualis B1); Novos Olhares Sociais  
(Qualis B2); e, a Revista Fim do Mundo (Qualis B4). Dessa forma, apenas o artigo publicado  
na Revista Desenvolvimento e Civilização que não foi identificado Qualis. Em síntese, cabe  
destacar que a maioria dos artigos selecionados estão em periódicos de qualidade reconhecidos  
pelas avaliações da CAPES, demonstrando que as questões apresentadas em cada artigo  
possuem relevância e seriedade acadêmica.  
352  
Para ajudar na visualização dos temas e questões dos artigos selecionados, apresenta-se  
a seguir uma figura com uma nuvem de palavras-chaves dos textos. Essa figura foi feita com a  
utilização do Aplicativo Mentimeter que produz a nuvem de acordo com a frequência da  
recorrência das palavras ou expressões citadas. Mas, de forma geral, é possível já afirmar a  
atualidade do pensamento educacional de Florestan Fernandes para análise dos dilemas  
educacionais contemporâneos e são múltiplas as possibilidades de reflexão, diálogos e  
articulação com outras temáticas tão importantes para a sociedade brasileira, como: formação  
política, movimentos sociais, questão racial, juventudes, mulheres, migração. tecnologia e  
Libertas, Juiz de Fora, v. 25, n. 1, p. 338-362, jan./jun. 2025. ISSN 1980-8518  
Atualidade do pensamento educacional de Florestan Fernandes  
políticas públicas de forma geral. Porém, de forma mais recorrente, aparecem palavras-chaves  
vinculadas às políticas educacionais, educação superior e, em menor escala, mas também  
articulado, o tema da educação pública e educação básica.  
Figura 1: Nuvem de palavras-chaves dos artigos.  
353  
Fonte: Elaboração própria com o uso do Aplicativo Mentimeter.  
Especificamente sobre o tema da educação, chama a atenção a referência à educação  
domiciliar, pesquisa, permanência estudantil, formação e trabalho docente, BNCC, ações  
afirmativas, práticas de ensino e extensão. Não menos importante, destaca-se ainda a relação  
entre educação e desenvolvimento, contemplada nas palavras-chaves: capitalismo dependente,  
neodesenvolvimentismo e teoria marxista da dependência. Isso expressa que os artigos tratam  
de temas diversos e atuais da realidade brasileira em seus aspectos estruturais e dinâmicos, sem  
abrir mão de uma perspectiva teórica crítica com referência no pensamento educacional de  
Florestan Fernandes. É desse material que, a seguir, se apresentam algumas questões e eixos de  
análise desse debate educacional.  
Tendências e eixos de análise dos artigos: incidências do pensamento educacional  
florestiano  
Com base no levantamento bibliográfico, apresenta-se a seguir os principais eixos de  
análise da produção acadêmica no campo educacional que dialogam com o pensamento  
educacional de Florestan Fernandes. É importante ressaltar que tais eixos apresentam conexões  
Raí Vieira Soares  
entre si, considerando a sua apreensão numa perspectiva de totalidade da realidade social  
brasileira.  
a) Desenvolvimento e educação  
Como apresentado anteriormente, a questão do desenvolvimento é um dos eixos centrais  
da obra de Florestan Fernandes, o autor considera que na dinâmica do capitalismo há diferentes  
ritmos de desenvolvimento, ainda que interdependentes entre si, a partir de uma relação entre  
“centro” e “periferia”, “desenvolvimento” e “subdesenvolvimento”. Dessa forma, o  
desenvolvimento capitalista apresenta diferentes conformações em cada realidade nacional e,  
ao mesmo tempo, está inserido na dinâmica do capitalismo mundial (Fernandes, 1973; 1976).  
Por esta razão, o capitalismo dependente é o “fio condutor” de análise do autor para análise da  
realidade brasileira, do contexto latino-americano e seus históricos dilemas, inclusive no campo  
educacional.  
Partindo desse pressuposto de análise, no artigo de Shiroma e Zanardini (2022)  
encontra-se uma exposição sobre as principais concepções de desenvolvimento presentes no  
Brasil e as implicações sobre a concepção de educação sob a orientação da teoria marxista da  
dependência. Nesse sentido, as autoras destacam que o neodesenvolvimentismo e o  
desenvolvimento sustentável, como concepções de desenvolvimento do século XXI, não são  
alternativas concretas ao neoliberalismo, assim como não contribuem para a superação dos  
históricos dilemas educacionais do Brasil. Na verdade, são concepções de desenvolvimento que  
expressam uma ideologia do falseamento da realidade social, com intervenções que se  
restringem a ideia de mitigar a extrema pobreza sem questionar a dependência e o capitalismo  
contemporâneo na sua face financeirizada. Sobre o pensamento de Florestan Fernandes, as  
autoras dialogam com a obra Sociedade de classes e subdesenvolvimento (Fernandes, 2008a)  
ao tratar sobre as especificidades da economia capitalista dependente.  
354  
Outro artigo que parte da concepção de capitalismo dependente é de autoria de Silva,  
Santos e Santos (2022). Os autores tratam sobre a reprodução da dependência no capitalismo  
contemporâneo e a histórica subordinação do Brasil às potências mundiais e aos representantes  
do capital internacional, como as “recomendações” dos organismos internacionais. Para isso,  
dialogam com a obra Capitalismo dependente e classes sociais na América Latina (Fernandes,  
1973). As implicações de tais “recomendações” que funcionam mais como imposições,  
resultam em processos de mercantilização da educação superior e fomento a uma mentalidade  
privatista no âmbito educacional, impactando diretamente na concepção da educação como  
direito e favorecendo os representantes dos setores privatistas de educação, os conglomerados  
Libertas, Juiz de Fora, v. 25, n. 1, p. 338-362, jan./jun. 2025. ISSN 1980-8518  
Atualidade do pensamento educacional de Florestan Fernandes  
educacionais que encontraram nessa área um valoroso nicho de lucratividade, inclusive com  
apoio do Estado. Tal reflexão está na mesma direção do artigo de Andrade e Motta (2022), no  
qual as autoras tratam sobre o processo de empresariamento da educação, um campo de  
negócios permeado pelo dualismo privatismo x precariedade.  
Esses artigos demostram a atualidade do debate sobre capitalismo dependente e as  
implicações sobre a educação, pois mesmo com as transformações do capitalismo  
contemporâneo em tempos de crise não se rompeu a dependência que, como fenômeno  
estrutural, se dinamiza permanentemente no interior da dinâmica do capitalismo. É importante  
destacar que o tema do capitalismo dependente não tem implicações apenas para o campo da  
educação, mas também várias áreas como: questão urbana e agrária, saúde, direitos humanos,  
democracia, racismo, dentre outras.  
b) Educação básica e educação superior  
Nos artigos selecionados surgiram algumas questões que tratam sobre educação básica  
e seus dilemas contemporâneos. No âmbito da educação básica, destacam-se os artigos de:  
Viana (2022), Alencar e Yannoulas (2022), e, Azevedo e Amaral (2022). No primeiro artigo,  
Viana (2022) trata sobre do processo de contrarreforma do ensino médio, entendido como um  
retrocesso nas políticas educacionais. Segundo a autora, o chamado “novo ensino médio”  
atendeu às requisições dos organismos internacionais e expressa uma concepção de educação  
utilitarista e dualista, na medida em que reproduz uma visão de mundo burguesa e, ao mesmo  
tempo, oferece diferentes formas de educação para diferentes classes sociais, com implicações  
para o trabalho docente, com a lógica das competências incidindo inclusive sobre a Base  
Nacional Comum Curricular (BNCC), precarizando o trabalho e a formação docente,  
fragilizando a autonomia docente e submetendo-a às avaliações externas (Viana, 2022). Para  
tratar de tais questões, a autora dialoga com Florestan Fernandes com o livro Capitalismo  
dependente e classes sociais na América Latina (Fernandes, 1973) para apreender a  
particularidade do Estado e as frações burguesas na economia capitalista dependente.  
Já o artigo de Alencar e Yannoulas (2022) trata sobre o tema da educação domiciliar na  
agenda da nova direita, resultado da fusão entre neoliberalismo e neoconservadorismo. Segundo  
as autoras, as propostas neodireitistas de defesa da educação domiciliar, ao reforçar uma  
concepção educacional privatista e individualista, configuram-se como um ataque ao direito à  
educação, ao seu sentido social e seu caráter democrático. Além disso, as autoras chamam a  
atenção para o fato de que os projetos de lei que pautam a regulamentação da educação  
domiciliar ferem o princípio constitucional de responsabilidade e dever do Estado com a  
355  
Raí Vieira Soares  
educação básica. Ademais, as autoras ressaltam que o não acesso à escolarização é um dos  
traços constitutivos da particularidade da formação social brasileira. Dessa forma, a  
reivindicação de setores pela educação domiciliar se contrapõe à noção de educação como  
direito na Constituição Federal de 1988. Para tratar dessa dificuldade do reconhecimento e da  
garantia da educação como direito, as autoras lançam mão das reflexões de Florestan Fernandes  
em Capitalismo dependente e classes sociais na América Latina (1973) e Sociedade de classes  
e subdesenvolvimento (2008a), no que tange à dialética entre “moderno” e “arcaico” e a  
conformação da dominação burguesa no capitalismo dependente.  
Por fim, o artigo de Azevedo e Amaral (2022) trata de um tema não muito recorrente: o  
direito à educação para crianças migrantes, apátridas e/ou refugiadas. Os autores enfatizam que  
o direito à educação básica não se resume apenas à matrícula, mas também envolve o processo  
de ensino com apoio, acolhida e orientação. Ao buscar compreender os fundamentos dos  
desafios da escola pública e da educação básica, os autores buscam subsídios em Florestan  
Fernandes nas obras Educação e Sociedade no Brasil (Fernandes, 1966) e O desafio  
educacional (Fernandes, 2020b). Com isso, os autores defendem a indissociabilidade entre  
matrícula e ensino para garantia do direito à educação básica e a necessidade da formação para  
docentes e para a equipe gestora das escolas com vistas ao atendimento às crianças que se  
encontram nas situações mencionadas acima.  
356  
No que tange à educação superior, o artigo de Duarte e Lima (2022) caracteriza um  
processo de fascistização da educação superior a partir da reestruturação das universidades  
federais no período de 2016-2021. Para as autoras, essa reestruturação foi uma ofensiva  
burguesa conservadora às universidades conduzida pelos governos de Michel Temer e Jair  
Bolsonaro que teve como impactos: redução do orçamento destinado à educação; mudanças  
nos projetos pedagógicos e de gestão administrativa; a nomeação de interventores nas  
instituições federais de ensino; e o Programa Future-se, projeto de avanço do privatismo  
educacional no interior da universidade pública. Tal período foi marcado pelo aprofundamento  
dos traços fascistoides constitutivos da natureza das frações burguesas no Brasil. Para  
fundamentar estas reflexões, as autoras se fundamentam em Florestan Fernandes para tratar dos  
dilemas educacionais e da natureza da burguesa no capitalismo dependente, assim são citadas  
as obras: A Revolução Burguesa no Brasil: ensaio de interpretação sociológica (Fernandes,  
1976); Poder e Contrapoder na América Latina (Fernandes, 1981); Brasil: em compasso de  
espera (Fernandes, 1980); Circuito Fechado: quatro ensaios sobre o “poder institucional”  
(1979a); e, Apontamentos sobre a “teoria do autoritarismo” (1979b).  
Libertas, Juiz de Fora, v. 25, n. 1, p. 338-362, jan./jun. 2025. ISSN 1980-8518  
Atualidade do pensamento educacional de Florestan Fernandes  
O artigo de Oliveira e Santos (2022) discorre sobre o processo de expansão da educação  
superior no Brasil na primeira década do século XXI, em particular, durante os governos  
petistas e as implicações para o trabalho docente, como: a precarização das condições de  
trabalho; o distanciamento dos espaços de organização política de classe; a responsabilização  
individual sobre o docente pelas práticas de ensino e pesquisa; bem como o fortalecimento do  
individualismo e a competitividade na dinâmica universitária. Tais processos são, na  
perspectiva dos autores, expressões da contrarreforma da educação superior brasileira que  
reatualizam traços e dilemas históricos da universidade na realidade brasileira. Para isso,  
dialogam com o pensamento de Florestan Fernandes nas obras Universidade Brasileira:  
reforma ou revolução? (Fernandes, 2020a), A Revolução Burguesa no Brasil: ensaio de  
interpretação sociológica (Fernandes, 1976), Pensamento e ação: o PT e os rumos do  
socialismo (Fernandes, 1989); Florestan Fernandes na Constituinte: leituras para a reforma  
(Fernandes, 2014).  
Ainda sobre educação superior, são pertinentes os artigos de Silva, Santos e Santos  
(2022), já citado anteriormente, que se debruça sobre o processo de mercantilização da  
educação superior no capitalismo dependente e a subordinação às requisições dos organismos  
internacionais. Além deste, cita-se ainda o artigo de Lages e Macêdo (2022) que discute a  
formação política no âmbito da educação superior de mulheres vinculadas à Marcha Mundial  
de Mulheres. Os autores refletem sobre a formação política na educação superior e, em  
particular, no trabalho de professores/as, assim como, a importância da aproximação com os  
movimentos sociais. Sobre formação política, os autores dialogam com A formação política e  
o trabalho do professor de Florestan Fernandes (2019), texto em que o autor apreende o  
trabalho docente necessariamente compromissado com uma formação crítica para a cidadania.  
Como é possível observar, o pensamento educacional de Florestan Fernandes contribui com  
várias questões atuais no campo da educação básica e educação superior.  
357  
c) Direito à educação, questão racial e ações afirmativas  
O reconhecimento e garantida do direito à educação são um dos históricos dilemas  
educacionais da realidade brasileira. Nessa perspectiva, o artigo de Rodrigues (2022) aborda a  
atuação de Florestan Fernandes como deputado constituinte e sua luta pelo direito à educação.  
Nesse processo, ele denunciou os limites da “transição democrática” brasileira e defendeu a  
necessidade de o texto constitucional incorporar reformas estruturais necessárias à  
democratização efetiva e à garantia da justiça social. No campo educacional, defendeu a  
participação popular e de professores nos debates, além da destinação do orçamento público  
Raí Vieira Soares  
exclusivamente para a educação pública. O artigo de Rodrigues (2022), baseado numa análise  
de discursos, textos e documentos, evidencia a participação ativa de Florestan Fernandes na  
Constituinte, reafirmando o seu compromisso histórico com a defesa do direito à educação, com  
a escola pública, com os/as trabalhadores/as da educação e com a democracia ampla e efetiva  
da sociedade brasileira.  
Também nessa direção, o artigo de Cláudia Monteiro Fernandes (2022) recupera o  
pensamento educacional de Florestan Fernandes, como Universidade Brasileira: reforma ou  
revolução? (Fernandes, 2020a) e A formação política e o trabalho do professor (Fernandes,  
2019) para discutir a importância das políticas de ações afirmativas como estratégias de redução  
das desigualdades raciais e de gênero na educação superior. A autora apresenta os impactos da  
política de cotas na universidade na graduação e pós-graduação, com uma mudança no perfil  
de estudantes, a exemplo do aumento do número de estudantes negros/as, mulheres negras, de  
baixa renda e oriundos/as da escola pública. Todavia, tal processo é permeado de contradições  
e variações, conforme as regiões do Brasil e as diferentes áreas de conhecimento. Mesmo com  
desafios, as ações afirmativas na universidade podem contribuir por meio do diálogo entre  
saberes, o fomento da organização estudantil para a redução das desigualdades educacionais.  
Cabe lembrar que a questão racial ocupa um lugar de atenção no pensamento de Florestan  
Fernandes, a exemplo de A integração do negro na sociedade de classes (Fernandes, 2008b),  
dentre outros textos, no qual o autor já problematiza o mito da democracia racial na sociedade  
brasileira.  
358  
Também numa perspectiva de democratização do acesso à educação superior, o artigo  
de Rebouças, Chaves e Marinho (2022) apresenta a experiência de um projeto de extensão de  
uma universidade estadual e suas contribuições para o processo de formação profissional,  
sobretudo para a afirmação de uma concepção de universidade e extensão populares alinhada  
às necessidades sociais. Nessa direção, os autores dialogam com Universidade Brasileira:  
reforma ou revolução? (Fernandes, 2020a) para afirmar a importância de defender uma  
concepção de universidade pública, gratuita, laica, de qualidade e socialmente referenciada,  
assim como uma extensão articulada à pesquisa e com uma formação humana integral e crítica.  
Também dialogando com estas questões, o artigo de Gomes Vicente (2022) trata da  
experiência dos cursinhos populares no Brasil, destacando que são iniciativas que buscam  
reduzir as desigualdades no acesso ao ensino superior no Brasil. Para isso, a autora chama  
atenção para o fato de que na formação social brasileira e de capitalismo dependente as  
trajetórias juvenis de acesso à universidade são profundamente desiguais e a experiência dos  
cursinhos populares pode contribuir na redução das desigualdades sociais. Porém, segundo a  
Libertas, Juiz de Fora, v. 25, n. 1, p. 338-362, jan./jun. 2025. ISSN 1980-8518  
Atualidade do pensamento educacional de Florestan Fernandes  
autora, os cursinhos são permeados por diferentes concepções pedagógicas, uma de caráter mais  
utilitarista com função apenas voltada à aprovação no vestibular e, outra, de caráter crítico e de  
compromisso com a formação humana integral.  
Por último, o artigo de Cassol, Canan e Vani (2022) também discute a questão da  
formação, mas articulada ao debate sobre tecnologias e políticas públicas. Para isso, os autores  
defendem a necessidade de uma formação tecnológica voltada para a coletividade humana e  
não para o mercado capitalista e consumista. Para tratar de tal tema, os autores fazem uma  
crítica ao Estado no capitalismo contemporâneo e resgatam as contribuições de Florestan  
Fernandes com sua obra Capitalismo dependente e classes socais na América Latina (1973). A  
exposição de tais questões e eixos de análise aponta a importância da obra de Florestan  
Fernandes tanto no debate sociológico como no debate educacional, abrindo múltiplas  
possibilidades de diálogo e articulação com questões do tempo presente.  
Considerações finais  
Diante das questões e apontamentos levantados acima, compreende-se que os dilemas  
educacionais contemporâneos devem ser apreendidos na dinâmica do capitalismo dependente  
brasileiro e o pensamento educacional florestiano apresenta muitas contribuições críticas nessa  
direção. Florestan Fernandes como um sociólogo, intelectual-militante preocupado com as  
desigualdades sociais, assumiu a defesa da educação pública o que fez com que a questão  
educacional ocupasse um lugar de relevo em suas problematizações, mesmo não sendo um  
pedagogo. Mesmo assim, “pode-se dizer que as preocupações educacionais acompanham toda  
a trajetória de Florestan Fernandes manifestando-se em todas as facetas de sua rica existência”  
(Saviani, 1996, p. 71). Ademais, o levantamento bibliográfico demonstrou as múltiplas  
possibilidades de diálogo com o pensamento do autor. Portanto, sua obra é fundamental para  
pensar a realidade brasileira e seus históricos desafios educacionais, assim como dialoga  
diretamente com a proposta de formação do Serviço Social brasileiro, no qual é central o  
entendimento dos processos sócio-históricos, o rigoroso trato teórico-metodológico da  
realidade social e as particularidades da formação sócio-histórica da sociedade brasileira,  
conforme aponta as diretrizes curriculares da Associação Brasileira de Ensino e Pesquisa em  
Serviço Social (Abepss, 1996).  
359  
No contexto contemporâneo de crise estrutural do capital, de avanço do neoliberalismo  
e neoconservadorismo o que implica em reconfigurações na intervenção do Estado e no  
conteúdo e direção das políticas sociais, é fundamental a luta estratégica em defesa da educação  
pública como fez Florestan Fernandes. Além disso, em tempos de negacionismo é fundamental  
Raí Vieira Soares  
a defesa da autonomia do trabalho docente, a importância da pesquisa científica e a produção  
de conhecimentos numa perspectiva crítica que contribua para a leitura da realidade social e  
atenda a um projeto de desenvolvimento compromissado com os interesses coletivos e  
populares.  
Como se pode observar, a obra de Florestan Fernandes é atual, vasta e densa o que  
ultrapassando os limites deste texto. Porém, como mais um exercício de “aproximações  
sucessivas”, como nos ensina a perspectiva materialista histórica e dialética de pesquisa, espera-  
se que o tema tenha despertado o interesse na leitura deste sociólogo. Espera-se, também, que  
as reflexões expostas possam contribuir com os debates coletivos na perspectiva de luta em  
defesa da educação pública gratuita e de qualidade e vinculada às necessidades dos “de baixo”.  
Mesmo com muitos desafios, é imprescindível o fortalecimento das lutas sociais, das  
resistências coletivas e da organização popular nesta trajetória.  
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A recepção do direito à centralização de capital  
no contexto da produção do espaço urbano  
The reception of law to capital centralization in the context of urban space  
production  
Murilo Amadio Cipollone*  
Resumo: Favorecendo-se do instrumental  
epistemológico do materialismo histórico-  
dialético, fundamentado na crítica da forma  
jurídica estruturada por Evgeni Pachukanis,  
com a modalidade procedimental que lhe atribui  
Abstract: Drawing on the epistemological  
instrumentality of historical-dialectical  
materialism, based on Evgeni Pachukanis'  
critique of legal form and Edelman's procedural  
modality  
of  
formulating  
theoretical  
Edelman,  
consistente  
em  
formular  
developments from the immanent critique of  
judicial decisions – in addition to the theoretical  
support of Henri Lefebvre for the understanding  
of the urban –, the article investigates the  
process of reception of the law to the  
centralization of capital in the context of urban  
production. It is a critique of the way in which  
the legal form reproduces and makes effective  
the post-fordist economic infrastructure in order  
to expand the rates of exploitation of the  
working class.  
desenvolvimentos teóricos a partir da crítica  
imanente de decisões judiciais – além do  
suporte teórico de Henri Lefebvre para o  
entendimento do urbano –, o artigo investiga o  
processo de recepção do direito à centralização  
de capital no contexto da produção do espaço.  
Cuida-se, assim, da crítica do modo pelo qual a  
forma jurídica reproduz e torna eficaz a  
infraestrutura econômica pós-fordista, no  
sentido de expandir as taxas de exploração da  
classe trabalhadora.  
Palavras-chaves: Centralização de capital;  
Keywords: Centralization of capital; Legal  
Forma jurídica; Crítica do direito; Urbano.  
form; Critique of law; Urban.  
Introdução  
O objetivo central do artigo não é outro senão destacar o modo pelo qual a forma jurídica  
reproduz e funcionaliza o processo de acumulação e reprodução do capital. Isso no sentido de  
contribuir com a expansão da agenda de pesquisa estruturada por Evgeni Pachukanis1.  
* Universidade de São Paulo. E-mail: muriloamadio8@usp.br  
1 Na introdução de sua obra maior, A teoria geral do direito e o marxismo, Pachukanis (2017, p. 55) ao relatar que  
“crítica marxista da teoria geral do direito está apenas começando. Não é de imediato que serão alcançadas  
conclusões cabais nesta área; elas devem se basear num estudo aprofundado de cada um dos ramos do direito  
tomado separadamente”, deixa claro que suas contribuições fundamentam e estruturam uma agenda de pesquisa  
DOI: 10.34019/1980-8518.2025.v25.45296  
Esta obra está licenciada sob os termos  
Recebido em: 18/07/2024  
Aprovado em: 13/01/2025  
Murilo Amadio Cipollone  
Expliquemos detalhadamente.  
Parte-se da verificação de que, sob o modo de acumulação pós-fordista, há a expansão,  
desmesurada e sem precedentes, da forma mercadoria e das taxas de exploração. Nesse  
processo, claro, o direito é indispensável à concretização do projeto das classes dominantes. Tal  
fenômeno, e isso é central para o argumento aqui manufaturado, tem destaque naquilo que é  
chamado pela tradição lefebvriana de “produção do espaço”. O conceito, em síntese, versa sobre  
aquele momento em que a cidade se produz como condição para a realização do ciclo do capital,  
isto é, o momento no qual o espaço se atrela visceralmente aos diferentes momentos da  
produção, circulação, distribuição, trocas etc., estruturando mesmo o movimento da  
acumulação. Isso, por óbvio, será analisado mais detidamente em seu devido momento. Esse  
processo tem sua materialidade, a qual deve ser identificada.  
Mais que isso: deve-se destacar, preliminarmente, que a reestruturação produtiva pós-  
fordista implica, sobretudo, na centralização de capital, o que, a partir da premissa exposta  
acerca da produção do espaço, tem impacto direto na forma pela qual o trabalho social e, pois,  
a produção, circulação e realização de valores, se processa no urbano. Essas mudanças, que  
possuem, como não poderiam deixar de ser, extensões jurídicas, serão o ponto focal da pesquisa.  
Isso, sempre, no ensejo da demonstração dos compromissos do direito, ponto de vista  
privilegiado para a observação do desenvolvimento do modo de produção capitalista (Edelman,  
2016, p. 19-23) e da forma pela qual se manufatura a acumulação de capital.  
364  
Para tanto, o artigo, além dessa brevíssima nota introdutória, conta com duas grandes  
seções. A primeira sistematiza as contribuições e o aporte epistemológico de Henri Lefebvre  
acerca da “revolução urbana” e da produção do espaço, no sentido de permitir a correta  
localização histórica do processo de centralização de capital, fundamental parcela da  
reestruturação produtiva promovida pelo neoliberalismo. Na medida em que estiver  
devidamente estruturada tal argumentação, estaremos aptos a proceder à seção seguinte, a qual  
cuida da análise de decisões judiciais e do modo geral pelo qual o direito se estrutura para  
recepcionar esse processo de centralização de capital, seguindo de perto o procedimental  
edelmaniano.  
Em apertada síntese, a hipótese principal a ser demonstrada é de que o ramo do direito  
do trabalho, ao viabilizar que grande parte das relações produtivas à nível da produção do  
espaço escape à sua circunscrição temática – a qual, de alguma forma, implica em limites às  
a ser ampla e longamente desenvolvida. Daí o interesse para, singelamente, contribuir para o seu alargamento,  
acatando o proposto pelo jurista soviético.  
Libertas, Juiz de Fora, v. 25, n. 1, p. 363-387, jan./jun. 2025. ISSN 1980-8518  
A recepção do direito à centralização de capital no contexto da produção do espaço urbano  
taxas de exploração – assegura e contribui à continuidade do processo de centralização do  
capital e de expansão das taxas de exploração. O próprio Karl Marx, no capítulo 8, Seção III,  
do Livro I d’O Capital, ao relatar as lutas pela redução das jornadas de trabalho na Inglaterra  
do século XIX, destaca a importância das conquistas dos trabalhadores nessa seara.  
Repare: não se trata, de modo algum, de fazer apologia do “uso tático do direito do  
trabalho”, mas apenas da constatação de que, para a superação da forma jurídica e do modo de  
produção capitalista, é de pouco interesse que a relação de exploração se dê pelo negativo da  
forma-contrato de trabalho. Elevar o grau da tensão, assim, transformando a dialética negativa  
em uma dialética positiva é indispensável para a estruturação da luta, até mesmo porque isso  
comprometeria, de alguma forma, a continuidade da centralização de capital na intensidade em  
que ela agora se desenha. Além disso, trata-se de pôr termo à falsa dualidade colocada pelo  
judiciário entre contrato de trabalho e relação de emprego – posta no sentido de realizar o  
processo de subsunção hiper-real do trabalho ao capital, conforme será visto.  
Para cumprir seus objetivos e, mormente, demonstrar sua hipótese, o artigo se vale do  
procedimental metodológico edelmaniano, consistente em formular desenvolvimentos teóricos  
a partir da crítica imanente de decisões judiciais, o qual se destaca do cabedal epistemológico  
do materialismo histórico-dialético, fundamentado na crítica da forma jurídica estruturada por  
Evgeni Pachukanis (Batista; Cipollone; Amaral, 2023). Dessa maneira, entende-se que o  
escrutínio dos enunciados jurisprudências alcança a exposição daqueles discursos ideológicos  
que sedimentam a operacionalidade da forma jurídica, no sentido de informar a reprodução  
das condições de produção capitalistas. Vejamos.  
365  
A centralidade do espaço à acumulação de capital  
O salto epistemológico dado por Henri Lefebvre permite que seja estabelecida a correta  
relação entre a cidade e os diferentes modos de produção ao longo da história. Ou seja, muito  
embora urbanização e industrialização estejam visceralmente atreladas, o fenômeno da  
“cidade” é anterior ao modo de produção capitalista. Ocorre, assim, que ao longo da história,  
destacando-se dos diferentes modos de produção, diferentes tipos de cidade foram estruturadas.  
Reivindicando um novo aporte metodológico, destaca o francês que teorias da dele  
divergentes, “numa extrema confusão, esquece-se ou se coloca entre parênteses as relações  
sociais (relações de produção) das quais cada tipo urbano é solidário” (Lefebvre, 1999, p. 15).  
Especificamente, dessa forma, a organização da cidade no modo de produção capitalista,  
denominada inicialmente cidade industrial e, como se verá num segundo momento, sociedade  
urbana, “resulta da urbanização completa, hoje virtual, amanhã real” (Lefebvre, 1999, p. 15).  
Murilo Amadio Cipollone  
Dessa forma:  
Aqui, reservaremos o termo “sociedade urbana” à sociedade que nasce da  
industrialização. Essas palavras designam, portanto, a sociedade constituída  
por esse processo que domina e absorve a produção agrícola. Essa sociedade  
urbana só pode ser concebida ao final de um processo no curso do qual  
explodem as antigas formas urbanas, herdadas de transformações  
descontínuas (Lefebvre, 1999, p. 15).  
Importante, assim, ter em vista que a cidade, tal como hoje manifestada (“o urbano”)  
nasce da industrialização, surgindo, pois, com o processo de explosão das antigas formações  
urbanas. Tal definição, ao mesmo tempo em que acaba com a falsa perspectiva de que qualquer  
cidade seja a sociedade urbana, é capaz, como dito, de vincular a análise às relações de  
produção. Mais que isso, potencialmente, derruba a ideologia inapta a destacar as  
descontinuidades históricas do desenvolvimento da cidade, as quais ocultam a real  
especificidade da realidade urbana, estruturada para a reprodução das relações de produção,  
como se passará a destacar.  
Antes de tudo, porém, deve-se reiterar que, quando do começo da industrialização, a  
cidade já tinha uma realidade vinculadora. Por motivos de delimitação temática, não será  
possível proceder à reconstrução, como faz Lefebvre, dos diferentes tipos de cidade ao longo  
da história. Interessa, contudo, reforçar, que a sociedade urbana emerge dos embates com as  
formas de cidade que a precederam.  
366  
Destarte, foi a partir da generalização da industrialização que um processo de  
urbanização intenso e distinto pôde ser levado a cabo. Com ele, pois, forma-se a cidade  
industrial, que conduzirá à sociedade urbana. Já em 1845, Engels, ao descrever o processo  
inglês de urbanização, isso revelava:  
Há sessenta ou oitenta anos, a Inglaterra era um país como todos os outros,  
com pequenas cidades, indústrias diminutas e elementares e uma população  
rural dispersa, mas relativamente importante; agora é um país ímpar, com uma  
capital de 2,5 milhões de habitantes, imensas cidades industriais, uma  
indústria que fornece produtos para o mundo todo e que fabrica quase tudo  
com a ajuda das máquinas mais complexas (Engels, 2008, p. 58).  
Ato contínuo, Lefebvre destaca, que no curso do processo de industrialização e de  
urbanização, ocorreu o que chama de implosão-explosão,  
[..] ou seja, a enorme concentração (de pessoas, de atividades, de riquezas, de  
coisas e de objetos, de instrumentos, de meios e de pensamento) na realidade  
urbana, e a imensa explosão, a projeção de fragmentos múltiplos e disjuntos  
(periferia, subúrbios, residências secundárias, satélites etc.) (Lefebvre, 1999,  
p. 26).  
Nesse cenário, o crescimento da produção industrial cria, assim, a sua própria realidade.  
Por outras palavras, a indústria remaneja a cidade antiga de acordo com suas necessidades. A  
Libertas, Juiz de Fora, v. 25, n. 1, p. 363-387, jan./jun. 2025. ISSN 1980-8518  
A recepção do direito à centralização de capital no contexto da produção do espaço urbano  
reprodução das relações de produção, no que se inclui a perpetuação da compra e venda da  
força de trabalho, a circulação de mercadorias, o consumo, a movimentação da propriedade  
etc., exigem que suas demandas sejam atendidas mesmo pelo espaço urbano, que se articulará  
para tanto.  
Nesse contexto, sugere Lefebvre que a realidade urbana “torna-se causa e razão. O  
induzido torna-se dominante (indutor)”. Isso designa que “a realidade urbana, modifica as  
relações de produção, sem, aliás, ser suficiente para transformá-las. Ela torna-se força  
produtiva, como ciência. O espaço e a política do espaço ‘exprimem’ as relações sociais, mas  
reagem sobre ela” (Lefebvre, 1999, p. 26-27). Portanto, antes induzida e gerada mesmo pela  
grande indústria, a cidade passa a dominá-la. Ambos os processos históricos se entrelaçam em  
uma complexa relação dialética.  
Daqui em diante, a sociedade urbana se generaliza e invade todos os níveis de  
reprodução da vida. A cidade é tornada mercadoria e a urbanização surge como estratégia de  
ordenamento e controle. Mais que isso, a própria construção do espaço urbano deixa de ser uma  
obra coletiva com seu próprio sentido e se torna um produto, distante de si mesmo e realizado  
apenas no sentido de concretizar os interesses das classes dominantes. Marques sintetiza o  
exposto:  
Na cidade industrial houve o crescimento e multiplicação das trocas e da  
mercadoria, que venceram seus obstáculos e atingiram todo o cotidiano.  
Assim a cidade industrial precedeu o que o autor chama de zona crítica,  
momento em que a problemática urbana toma proporções mundiais. A  
realidade urbana que se afirma como dominante não se vincula apenas ao  
consumo, modifica a produção e as relações de produção e torna- se também  
força produtiva.  
367  
Destaca-se que todo o processo descrito acima não é natural, sem intenções e  
vontades. Há uma estratégia de classe, e aqueles que possuem o capital  
intervêm a todo momento (Marques, 2020, p. 82).  
Lapidarmente, trata-se de traduzir toda a cidade para os parâmetros da forma  
mercadoria. O entendimento de que, após o processo de implosão-explosão, a realidade urbana  
não mais seja, tão somente, induzida pela industrialização, mas que, de fato, passe a induzir  
transformações na produção e nas relações de produção, tornando-se, pois, uma força produtiva,  
conduz à perspectiva de que a produção do espaço se torna fundamental para a acumulação do  
capital, abrindo, assim, possibilidades para a realização da reprodução social.  
Trata-se do momento no qual o modo de produção capitalista, para se expandir, totaliza  
os diferentes momentos de realização da vida através da reprodução das relações sociais de  
produção e da própria produção do espaço. Lefebvre, nessa direção, destaca que o processo de  
produção se expandiu para todo o espaço, de forma que este tenha se tornado central na  
Murilo Amadio Cipollone  
sociedade capitalista. Por esses termos, tem-se que a produção do espaço diz respeito à  
possibilidade de realização do ciclo do capital. Carlos, sobre a formação do mais-valor no  
urbano, sintetiza:  
Do ponto de vista de sua reprodução, o espaço urbano revelaria, em síntese,  
dois momentos da acumulação que se interpenetram. No primeiro momento o  
espaço produzido se torna mercadoria, assentado na expansão da propriedade  
privada do solo urbano no conjunto da riqueza. Trata-se, de um lado, do espaço  
fragmentado pelo setor imobiliário, que entra no circuito de produção da  
riqueza criando o espaço material (construído). O resultado é a cidade como  
mercadoria a ser consumida e, nessa direção, seus fragmentos são comprados  
e vendidos no mercado imobiliário, sendo que a moradia é uma mercadoria  
essencial à reprodução da vida. Mas também revela-se o momento da  
produção do espaço, em que a cidade se produz como condição para a  
realização do ciclo do capital como possibilidade de realização dos momentos  
envolvidos e necessários da produção, circulação, distribuição e troca, o que  
exige a criação de lugares definidos com características próprias a esse  
movimento de acumulação (Carlos, 2016, p. 120).  
Em uma palavra, da mesma forma em que a produção do espaço se traduz como a  
expansão da propriedade privada do solo, que deve ser mercantilizada, também se revela como  
o momento da produção da cidade strictu sensu para a realização do ciclo do capital,  
destacando- se nesse processo a produção do cotidiano e suas necessidades – infraestrutura,  
moradia, alimentos etc.  
O espaço se organiza, assim, na sociedade urbana, como a pedra de toque da articulação  
entre a acumulação de capital e o mais-valor. A produção da própria cidade, como falado, é  
indispensável nesse processo. Destarte, o espaço é central à acumulação de capital, e, além  
disso, seu operativo possui lógica própria. Ana Fani Alessandri Carlos, nesse sentido, reitera  
didaticamente os dois níveis da produção do espaço, que se desenvolve, ao mesmo tempo,  
368  
[...] através da produção da habitação, uma mercadoria intercambiável no  
mercado imobiliário, sem o qual a função da moradia não se realiza; e através  
da produção da própria cidade pelo trabalho social presente e acumulado ao  
longo da história (Carlos, 2015, p. 50).  
Com isso, somos colocados no rumo de nossa análise. A produção da própria cidade  
pelo trabalho social presente nela é indispensável à compreensão da reestruturação produtiva  
promovida pelo neoliberalismo; sobretudo, se temos em vista o fato aqui reiterado de que a  
realidade urbana induz alterações nas relações de produção. A cidade é ela toda forma-  
mercadoria, ao mesmo tempo em que é o veículo da materialização do ciclo do capital. Harvey  
dá uma boa dimensão da extensão da materialidade da produção da cidade (do cotidiano), o que  
[...] inclui não apenas os trabalhadores da construção, mas também todos  
aqueles que facilitam a reprodução da vida cotidiana: cuidadores e  
professores, os responsáveis pelos sistemas de esgoto e pelo metrô, os  
encanadores e eletricistas, montadores de andaimes e operadores de  
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A recepção do direito à centralização de capital no contexto da produção do espaço urbano  
guindastes, trabalhadores de hospitais e os motoristas de caminhões, ônibus e  
táxis, os trabalhadores de restaurantes e artistas, os caixas de banco e os  
administradores da cidade (Harvey, 2012, p. 246)  
Ou seja, o conjunto do trabalho social depositado para a produção e reprodução da  
cidade é imprescindível para o entendimento da infraestrutura produtiva capitalista. Voltar-se,  
pois, à materialidade desse processo é um passo importante do entendimento do modo de  
acumulação atual. A produção do espaço, assim, é um ponto de inflexão da infraestrutura  
econômica contemporânea. Isso se deve ao fato de que grande parte da produção de mercadorias  
se volta à manutenção do cotidiano das cidades, as quais, concomitantemente, operacionalizam  
o ciclo do capital, o qual exige dimensões cada vez maiores na medida em que se expande.  
Interessa fazer pontuar, entretanto, que a produção do espaço não é algo fixo e  
determinado, mas, em verdade, articula-se com o modo de acumulação. Em uma palavra, a  
produção do espaço urbano no fordismo é diferente do modo pelo qual o espaço é produzido  
no neoliberalismo. Compreender a reestruturação produtiva operada atualmente é indispensável  
para o diagnóstico e crítica da sociedade capitalista.  
Sabe-se que o neoliberalismo responde pela expansão, sem precedentes, da forma  
mercadoria e das taxas de exploração da classe trabalhadora. Sabe-se, ademais, que a  
centralização de capital é uma das formas pela qual o projeto hegemônico solidifica-se ao longo  
de desenvolvimento do capitalismo. O pós-fordismo é, talvez, a expressão mais aguda de todo  
esse processo. A produção do espaço não escaparia a essa lógica; pelo contrário, é,  
provavelmente, sua faceta mais dramática.  
369  
Nesse sentido, Joachim Hirsch (2010, p. 157-170), além de identificar as tendências à  
“informalidade e precarização” das relações salariais e de trabalho, aborda a oligopolização  
absoluta das corporações à nível internacional e do sistema de regulação – o que, em outros  
termos, pode ser tratado como centralização de capital. Sobretudo, porém, Hirsch destaca como  
aspecto fundante do pós-fordismo a abertura de “novas esferas sociais para a valorização do  
capital”, as quais se voltam, mormente, ao setor dor serviços, operacionalizadas pelas novas  
tecnologias de informação e comunicação. Além disso, o autor alemão, no curso de sua  
caracterização do neoliberalismo, trata das mudanças das relações de espaço e tempo, que  
acompanham o novo de acumulação, cujo encurtamento responde pela diminuição do ciclo do  
capital.  
Como tudo sob a sociedade mercantil, essas transformações operam-se, mormente, no  
urbano. Se em modos de acumulação ancestrais a produção do espaço poderia se dar à margem  
do grande capital – mas, repare, jamais fora da lógica de sua acumulação –, hodiernamente, a  
Murilo Amadio Cipollone  
reestruturação produtiva faz com que quase tudo subsuma-se ao grande capital,  
oligopolizado/centralizado, o que implica em esgarçadas taxas de exploração da classe  
trabalhadora.  
Exemplifiquemos. Uma rápida volta nas ruas é suficiente. Compõe a produção do  
espaço, por exemplo, a alimentação – fundamento da reprodução da força de trabalho – e,  
portanto, a compra e venda da mercadoria comida. Nas cidades, é cada vez mais difícil  
encontrar banquinhas de comida, vendedores de café da manhã nas estações de trens e metros,  
pequenos carrinhos de cachorro-quente etc. O que se tem, em escala crescente, são enormes  
redes de comida processada que prestam tais serviços no cotidiano das cidades. Quando um  
trabalhador ou uma trabalhadora, em seus longos deslocamentos precisam comer algo,  
recorrem, em terminais de ônibus, estações de metrôs e mesmo nas ruas, a grandes empresas,  
que ocupam todos os cantos e esquinas da cidade. Não tem sido incomum ver o mesmo letreiro  
de uma enorme rede internacional de pequenos mercados/conveniências se espalhar pelo centro  
da cidade de São Paulo. Aprodução do cotidiano nunca gerou tanto lucro às classes dominantes.  
Isso quando os habitantes da cidade, sobretudo a pequena e a grande burguesia,  
deslocam-se para comprar a própria comida, porque até mesmo o processo de trânsito  
“vendedor- comprador final” foi mercantilizado. E isso não é novo. Muito embora os correios  
prestem serviços há dezenas de anos, a maior parte das mercadorias sempre foi encontrada por  
seus compradores na loja física de um comércio – fazer suceder ao substantivo loja, o adjetivo  
física já demonstra, por si, a transformação. Comprar uma fechadura ou dobradiça, implicava  
em ir à uma loja de ferragens; um pão, à padaria; um livro, à livraria etc. etc. Hoje, uma fração  
da classe trabalhadora, altamente precarizada, operacionaliza uma nova frente de valorização  
do capital, a entrega massificada de produtos. A aceleração do ritmo de consumo e, da mesma  
forma, do ciclo do capital, é evidenciada por esse processo. Trata-se, pois, da demonstração de  
que, de fato, o pós-fordismo e sua cidade esforçam-se pela criação de novas esferas sociais para  
a acumulação de capital.  
370  
Há ainda um exemplo bastante elucidativo. Aplicativos (portanto, parte da indústria que  
opera a tecnologia) que aglomeram prestadores e prestadoras de serviços que, anteriormente,  
estavam sujeitos a exploração direta daqueles que compravam sua força de trabalho, no sentido  
de apropriar-se de parte de seu trabalho. É o caso, por exemplo, de diaristas, que, comumente,  
acordavam um salário com seu contratante e prestavam seus serviços. Atualmente, é bastante  
comum que, além daquele ou daquela que terá a casa limpa pela diarista, também os acionistas  
(porque tais empresas normalmente são sociedades anônimas), dirigentes etc. desses aplicativos  
processam a exploração dessa trabalhadora ou desse trabalhador.  
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A recepção do direito à centralização de capital no contexto da produção do espaço urbano  
Trata-se de exemplos relativos à produção do espaço que experimentam um grande  
processo de centralização do capital e de precarização do trabalho a ele subsumido – isso para  
não falar de outras realidades, como as grandes incorporadoras, as empresas concessionárias  
etc. as quais também operam processo de centralização no contexto da produção do cotidiano.  
Assim como as transformações urbanas, no que diz respeito à espacialidade mesmo, o direito  
também se articula para recepcionar e funcionalizar o movimento até aqui descrito. Em sendo,  
pois, este um artigo que se propôs a contribuir com a expansão do programa de pesquisa  
estruturado por Pachukanis, deve-se passar ao desenvolvimento da crítica imanente da forma  
jurídica incidente sobre o processo em tela.  
A recepção pela forma jurídica  
O mais paradigmático caso para o direito acerca da reestruturação produtiva e urbana  
processada pelo pós-fordismo não é, senão, o daqueles que prestam serviços como motoristas  
e entregadores de aplicativos. Talvez porque o contingente de trabalhadores inseridos nessa  
nova esfera social de acumulação seja bastante expressivo: de até 1,4 milhão (IPEA, 2021).  
Destarte, da mesma forma em que uma grande fração da classe trabalhadora é empurrada para  
esse buraco, também o é o direito. Assim, são milhares os processos que tramitam envolvendo  
a questão do “reconhecimento do vínculo empregatício”; ou por outras palavras, a luta, através  
da forma jurídica, que pleiteia a incidência da forma-contrato nesta relação de exploração.  
Desse modo, os trabalhadores são arremessados à falsa dualidade, que existe no direito do  
trabalho, entre contrato de trabalho e vínculo empregatício.  
371  
Portanto, a perspectiva sob a qual se erigem essas considerações deriva da constatação  
da subsunção hiper-real do trabalho ao capital no pós-fordismo, o que implica num reforço à  
contratualização; isto é, reforço da relação de exploração econômica classista, muito embora  
ocorra o afastamento da lógica da relação de emprego através da forma-contrato de trabalho.  
Justamente por isso que a análise aqui desenvolvida deter-se-á sobre os embates que orbitam  
esse objeto pontual – o qual, entretanto, tem sua lógica estendida para os demais.  
Desde logo, deve-se ter em vista que a classe trabalhadora está, como quase sempre,  
espremida pelo dilema da forma jurídica. Por um lado, há o judiciário que se debate em torno  
do falso dilema entre contrato de trabalho e vínculo empregatício. Assim, se por um lado a  
maior parte dos magistrados alega que as relações de produção se alteraram a tal ponto no curso  
da história que, hoje, haveria formas de trabalho que não constituiriam vínculo empregatício  
algum, de tal sorte a ser imprescindível afastar a incidência do contrato de trabalho e, do mesmo  
modo, de um “sistema protetivo mínimo”, por outro, há aqueles que argumentam pela clara  
Murilo Amadio Cipollone  
necessidade de incidência da forma-contrato de trabalho, uma vez que essas relações de  
explorações constituiriam evidente vínculo empregatício. Em suma, giram em falso. Isso  
porque as relações de trabalho precarizadas, uberizadas, que afastam as normas da CLT, não  
deixam de aprofundar a lógica contratual e, assim a ideologia jurídica.  
Os números mostram que aqueles que operacionalizam o direito se interessam, de fato,  
em afastar a incidência do contrato de trabalho das relações de exploração. Tendo em vista  
apenas as centenas (576) de processos que chegaram, até maio de 2022, às cortes superiores  
com o assunto “reconhecimento de relação de emprego”, dos julgados (340), apenas 1,76% (6)  
foram providos ou parcialmente providos pelos ministros (Mazzotto, 2022).  
Ou seja, a orientação dada pelos tribunais é a de não fazer incidir a forma jurídica na  
relação de exploração, de tal modo que nela não exista, para todos os efeitos, a forma-contrato  
de trabalho. O que se pretende é que essa ausência “formal” seja capaz de designar mesmo a  
ausência de uma relação de exploração reconhecida pelo direito do trabalho – o que implica em  
frágeis freios à expansão desmesurada da taxa de exploração. Pretende-se, pois, que tal ausência  
legitime a “uberização” do trabalho por meio de um suposto vínculo de cooperação, não de uma  
relação de emprego. Não obstante, há, conforme dito, o aprofundamento da contratualização da  
exploração econômica a partir da subsunção hiper-real do trabalho ao capital, já que é através  
da ideologia jurídica que, sobretudo, ocorre a reprodução do modo de produção capitalista.  
Vejamos.  
372  
O que abre as perspectivas não poderia ser senão a constatação de Friedrich Engels e  
Karl Kautsky, em seu O socialismo jurídico, a qual destaca que “a concepção burguesa de  
mundo é uma concepção jurídica” (Engels; Kautsky, 2012, p. 18-19). Tal vai de encontro às  
percepções de Pachukanis, que depreendeu, a partir das contribuições e do método marxiano,  
que, sobre o modo de produção de capitalista, a quase totalidade da atividade social desenrola-  
se sob a forma de trocas, mormente sob a forma de atos de compra e venda, jurídica e  
contratualmente intermediados. A representação e operação do mundo pela burguesia, desse  
modo, tem no apelo à forma jurídica – destacadamente à forma contrato – a expressão máxima  
de sua sociabilidade, a qual implica no mascaramento da exploração de classes.  
Na teoria de Evgeni Pachukanis, a forma-contrato ocupa uma posição de destaque, de  
modo a consubstanciar-se como a relação jurídica por excelência, “que se faz presente como  
mediação jurídica das práticas de exploração capitalista e de todas as práticas ligadas à produção  
material da vida numa sociedade em que a riqueza se apresenta como uma imensa coleção de  
bens permutáveis no mercado” (Biondi, 2019, p. 13). Além disso, deve-se pontuar ainda que o  
contrato é a expressão jurídica de relações econômicas elementares, e que implica na apologia  
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A recepção do direito à centralização de capital no contexto da produção do espaço urbano  
da liberdade, da igualdade e da democracia burguesa, formas essas que se estabelecem com  
base no mercado capitalista. Em suma, “o contrato é, pois, o momento mais elevado da  
mediação jurídica no interior do processo econômico capitalista” (Biondi, 2019, p. 13).  
Lembremos que o contrato surge no mercado como forma necessária à troca de  
mercadorias, destacadamente da compra e venda da força de trabalho, a qual – em sua operação  
fundamental– opõe burgueses, compradores da mercadoria “força de trabalho”, e proletários,  
seus vendedores. Tal permuta implica, assim como as demais, conforme observou já Marx nos  
capítulos II e IV do Livro I d’O Capital, um ato de vontade, comum aos participantes, um ato  
no qual os agentes reconhecem-se reciprocamente como proprietários dos bens que oferecem  
para o outro. Assim, a conexão estabelecida pelos proprietários das mercadorias – seus  
“guardiães” no vocabulário marxiano, ou os sujeitos de direito da análise pachukaniana – é uma  
relação jurídica, estabelecida pela forma-contrato. Em suma, o contrato é a contraface da  
relação entre as mercadorias, que não podem ir ao mercado senão através de seus  
representantes/guardiães, os quais se relacionam juridicamente como iguais, livres e  
proprietários; o contrato é, portanto, o meio ideológico-material que permite a essa interação  
existir. Assim, no pensamento de Pachukanis, o contrato pode ser juridicamente compreendido  
como  
[...] um acordo de vontades autônomas celebrado entre dois ou vários sujeitos  
de direito (livres e iguais) e destinado a produzir certos efeitos jurídicos para  
tais sujeitos, e que é feito nos limites da lei, a qual é igualmente uma vontade,  
‘mas uma vontade geral, à diferença das duas (ou várias) vontades  
mencionadas em primeiro lugar, que são vontades particulares’” (Biondi,  
2019, p. 14).  
373  
É na esteira de tal compreensão que Pachukanis afirmará que é “somente na sociedade  
burguesa capitalista, em que o proletário surge como sujeito que dispõe de sua força de trabalho  
como mercadoria, a relação econômica, de exploração é mediada juridicamente pela forma de  
contrato” (Pachukanis, 2017, p. 63-64). Assim, “o contrato de trabalho é o negócio jurídico  
materialmente mais relevante, já que a contratualização do consumo mercantil da força de  
trabalho é condição para que a circulação mercantil seja economicamente sustentável numa  
escala capitalista” (Biondi, 2019, p. 15).  
Muito embora a perspectiva jurídica burguesa queira identificar nos contratos um mero  
acordo de vontades para a obtenção de determinado fim, o qual compreende partes contrárias  
com interesses específicos, e que congrega em si características como o caráter sinalagmático  
e a liberdade das partes para contratarem, decidindo, inclusive, as suas cláusulas, o aporte  
epistemológico do materialismo histórico-dialético, permite-nos observar que as partes  
contratantes, dentro do “contrato social” capitalista, são dissonantes enquanto classe, de tal  
Murilo Amadio Cipollone  
sorte que podemos verificar o fato de que a tensão da luta de classes está sempre a espreitar  
esse contrato, que nada mais é do que a imposição da vontade de uma delas em detrimento da  
outra.  
Portanto, a forma-contrato encerra em si a defesa da propriedade privada dos meios de  
produção, já que sacraliza a força de trabalho como trabalho e, portanto, oculta a exploração  
econômica. Conclui Biondi que “o contrato, nesse sentido, é a expressão jurídica mais plena do  
contrato entre vontades presumidas como livres, que tem como forma precisamente, o  
consentimento, abrigando, não obstante, um conteúdo oposto, isto é, a dominação burguesa”  
(Biondi, 2019, p. 22).  
Bernard Edelman relata que “[...] as obrigações contratuais apresentamse, então, como  
a última trincheira do direito de propriedade” (Edelman, 2016, p. 47). Assim, destaca o fato de  
que os contratos se prestam justamente, a partir da ideologia jurídica, ao ocultamento de uma  
fração da dominação burguesa, de tal forma que as disputas por eles dinamizadas tendem a  
reproduzir o projeto hegemônico.  
Em suma, o contrato de trabalho – leia-se, a contratualização do trabalho, uma vez que  
tal não se encera nos parâmetros jurídicos da CLT – é o modo pelo qual a tensão fundamental  
da luta de classes no capitalismo é, ao mesmo tempo, sedimentada e ocultada. Através dele, a  
relação de exploração pretende fazer-se dissipar, na medida em que apresenta a relação do  
burguês, comprador da força de trabalho, e do trabalhador, seu vendedor, como uma relação  
entre iguais, livres, proprietários e, mais que isso, detentores de vontades autônomas e livres.  
Entretanto, a reestruturação produtiva que toma espaço no modo acumulação pós-  
fordista, tem como uma de suas características, conforme relatado, a precarização e  
informalização do trabalho. Esse movimento se processa, mormente, pelo negativo da forma  
contrato de trabalho, tal como disposto pelas normas da CLT. Ou seja, parcela importante das  
relações de exploração tem se estruturado às margens do contrato de trabalho tal como  
hodiernamente conhecido. O que, entretanto, não conduz ao fim da contratualização da  
sociedade, mas, pelo contrário, à sua absoluta materialização.  
374  
Antes de proceder à sistematização e à crítica da forma jurídica a partir dos enunciados  
jurídicos dos tribunais, deve-se tratar da articulação do pós-fordismo com a subsunção hiperreal  
do trabalho ao capital, o que elucidará a crítica da forma pelo qual o direito recepciona a  
centralização do capital no contexto da produção do urbano. Vejamos.  
Diferentemente de outros modos de produção, no capitalismo, a ideologia não cumpre  
a função de justificar a exploração econômica; pelo contrário, assegura-se mesmo de escondê-  
la. E isso se fundamenta pela absoluta separação entre trabalhadores e meios de produção, o  
Libertas, Juiz de Fora, v. 25, n. 1, p. 363-387, jan./jun. 2025. ISSN 1980-8518  
A recepção do direito à centralização de capital no contexto da produção do espaço urbano  
que conduz a força de trabalho a ser explorada – como nunca antes fora – através do  
assalariamento, pelo qual a compra e venda da mercadoria força de trabalho se dá por meio da  
forma jurídica, de modo que seja a ideologia jurídica, nos termos do já disposto, a responsável  
por proceder a esse ocultamento. Em uma palavra, a ideologia jurídica é central para a  
compreensão da subsunção do trabalho ao capital ao longo das diferentes etapas do modo de  
produção capitalista (Orione, 2021, p. 523).  
O que importa é destacar que, com o tempo, “o capital passa a organizar todas as fases  
do processo de conhecimento na perspectiva produtiva e, com a fragmentação do saber daí  
proveniente, aumenta a submissão de trabalhadores” (Orione, 2021, p. 522). Ocorre, assim,  
alterações das relações sociais como um todo, e não apenas no mundo do trabalho. Nesse  
instante, diz Orione:  
Todos os poros da vida são afetados pela subsunção do trabalho ao capital —  
passando a subsunção a assumir proporções não mais apenas reais, mas hiper-  
reais, no sentido de que, a partir do que alguns autores costumam chamar de  
pós-modernidade, ela teria integrado características que intensificam a  
violência na produção, necessitando, no entanto, de uma forte carga ideológica  
a respaldá-la (Orione, 2021, p. 523).  
Analogamente, o avanço tecnológico, articulado com as pretensões da dominação da  
burguesia, faz emergirem novas qualidades na relação entre a violência da exploração  
econômica e a ideologia. Dessa forma, a classe trabalhadora assume um novo posto no processo  
de colaboração de classes, a partir, por exemplo, da figura do “trabalhador empreendedor”,  
fundamento da “uberização” do trabalho. Orione conclui, nesse sentido:  
375  
Esta mudança na ideologia jurídica é fundamental e somente é possível porque  
a subsunção, por meio de tecnologias como a inteligência artificial, internet  
das coisas e robótica, por exemplo, viabiliza um patamar jamais atingido  
anteriormente de domínio do saber pelo capital, que invade também de  
maneira absoluta o cotidiano da classe trabalhadora. À universalização da  
forma jurídica assistimos concomitantemente a uma universalização, para  
todas as esferas das relações sociais, do processo de subsunção do trabalho ao  
capital (Orione, 2021, p. 525-526).  
Assim, a tecnologia garante a expansão do domínio do saber pelo capital, o que o  
autoriza entremear-se no cotidiano da classe trabalhadora e, pois, estender as práticas  
ideológicas que obnubilam a violência capitalista. A partir disso,  
Sai de cena a protagonista figura do trabalhador colaborador, entra em palco  
a personagem do empreendedor. Acolaboração de classes não deixa de existir,  
mas a ideia é de que todos e todas se transformem em pequenos capitalistas  
(como se isso fosse possível!), se tornando diretamente responsáveis, de  
maneira mais ativa possível, pela reiteração das práticas reprodutivas típica do  
capital. Cada trabalhador passa a ser, ao mesmo tempo, responsável imediato  
pela violência sobre outros trabalhadores e pela ideologia do mérito. A  
colaboração, na subsunção do trabalho ao capital, na sua versão hiper-real,  
Murilo Amadio Cipollone  
assume, assim, outro patamar, já que aquele que colabora também empreende.  
Logo, a hiper-realidade consegue nos fazer ver mais de perto a violência  
produzida, mas, ao mesmo tempo, nos torna, além de suas vítimas, seus  
cúmplices. E, nessa cumplicidade, passamos a adotar soluções cada vez mais  
individualistas [...] (Orione, 2021, p. 526, grifo nosso).  
Na medida em que a ideologia jurídica pretende extinguir a figura do “trabalhador  
colaborador”, aqueles que operacionalizam o direito, do mesmo modo, almejam impor o  
afastamento do contrato de trabalho, como se assim afastassem a relação de emprego, isto é, de  
exploração, pelo capitalista, da força de trabalho dos operários. De tal maneira, almeja-se  
perfazer o ciclo da figura do “empreendedor” – que se responsabiliza pelos seus eventuais  
sucessos e certos infortúnios –, cristalizando, assim, a discussão jurídica em torno de uma falsa  
dualidade e mantendo o prolongamento da lógica contratual, mais escondida do que nunca, por  
toda a sociedade.  
Disposta a razão pela qual, no pós-fordismo, a precarização – sobretudo daqueles  
trabalhadores ocupados em produzir o cotidiano – se dá pelo negativo da forma-contrato de  
trabalho, deve-se passar à sistematização e crítica dos enunciados jurídicos que pretendem  
legitimar esse processo. Neles, encontram-se, pelo óbvio, formas de articular a falsa dualidade  
relatada.  
Se a maior parte dos acórdãos diz que há “novas formas de trabalho” que não se  
constituem como “relação de emprego”, de modo a autorizar, mais diretamente, a consolidação  
de um vínculo de “colaboração” entre “empresários”, e, assim, a subsunção hiper-real do  
trabalho ao capital; uma pequeníssima parte deles pretende fazer incidir nessas mesmas “novas  
formas de trabalho”, as regras da CLT. Ambas as perspectivas, entretanto, autorizam a extensão  
da contratualização da sociedade e, portanto, a continuidade do projeto hegemônico das classes  
dominantes. Comecemos pela crítica da perspectiva derrotada, que não representa a ínfima parte  
das sentenças, mas deve ser lembrada a fim de se demonstrar que o projeto da classe  
trabalhadora não pode ser representado pela forma jurídica.  
376  
Nesse sentido, lê-se, nos poucos exemplos de sentença que dão provimento ao  
reconhecimento do vínculo empregatício em questão, que:  
Os princípios do valor social do trabalho e da livre iniciativa, função social da  
propriedade, máxima efetividade dos direitos constitucionais, da dignidade da  
pessoa humana e da centralidade da pessoa humana na ordem jurídica e social  
possuem assento constitucional. Para o jusfilósofo Kant: a essência real do ser  
humano é a sua dignidade, que é o valor que compõe tudo aquilo que não tem  
preço ou, em outras palavras, ela não é um bem fungível, pois não pode ser  
substituído por um equivalente. Nessa trilha, não é o trabalho humano uma  
mercadoria, pois está intimamente ligado à dignificação da pessoa humana,  
uma vez que o ser humano, fortemente, busca sua razão de ser no desempenho  
de atividades laborais, as quais viabilizam o acesso a bens jurídicos aptos à  
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A recepção do direito à centralização de capital no contexto da produção do espaço urbano  
sua dignidade, ainda que sob o manto do patamar civilizatório mínimo ou  
mínimo existencial.  
As novas formas de trabalho, sobretudo aquelas intermediadas por  
plataformas digitais, a exemplo da UBER, desafiam esse sistema protetivo  
mínimo, impondo a necessidade de imprimir um olhar mais atento às novas  
modalidades de trabalho humano. [...]  
O ponto de partida da análise deve ser, necessariamente, a garantia inafastável  
da dignidade da pessoa humana. Nesse sentido, é o direito e as relações dele  
decorrentes que devem se adequar ao homem, garantindo a sua dignidade. Não  
o contrário. Não cabe ao homem se despir de seu padrão civilizatório mínimo,  
representado, em parte, pelos direitos trabalhistas de assento constitucional,  
para se adaptar às dinâmicas emergentes no mercado de trabalho.  
Cabe ao Estado-Juiz, na falta de leis específicas, corrigir esse equívoco,  
assegurando o equilíbrio das relações contratuais e o patamar mínimo de  
direitos garantidos aos trabalhadores no âmbito constitucional (TRT11, 2022,  
p. 6-7, grifo nosso).  
Tem-se, no trecho destacado, a invocação da filosofia kantiana para justificar a  
imprescindibilidade do “sistema protetivo mínimo” – que seria o direito do trabalho e o contrato  
de trabalho – o qual garantiria o perfazimento da forma sujeito de direito. Ora, há uma completa  
afinidade entre o sujeito de direito e o sujeito kantiano dotado de razão, o “fim em si mesmo”,  
tal como tratado pela juíza. Dos imperativos categóricos e hipotéticos de Kant, extraem-se  
conclusões importantes acerca da racionalidade que sustenta a lógica de reprodução capitalista.  
Dos ensinamentos do filósofo alemão, do mesmo modo, destaca-se a universalização da figura  
do sujeito de direito. Acerca disso, destaca Marcus Orione que:  
377  
Essa universalização é importante fator, assim, para que os princípios morais,  
ligados à razão, sejam acessíveis a todos os homens, com destaque para a  
igualdade e a liberdade, independentemente mesmo de questões como a sua  
origem social. Daí ser fácil concluir que os elementos externos, como os  
impulsos decorrentes da natureza humana (fome ou frio, por exemplo) ou pela  
pobreza (fome, frio, causados pela situação social) não seriam impeditivos de  
que o ser humano pudesse realizar o percurso da razão, aparentemente  
disponível a qualquer homem. Nessas situações, estamos diante de  
imperativos hipotéticos. Esse dado é fundamental para a consolidação da  
lógica do capital, na medida em que o mais pobre dos homens, ao poder fazer  
o percurso nobre da razão e cumprir as leis morais impostas à humanidade,  
também é igual e livre – condição primordial para a perpetração do contrato  
de compra e venda da sua força de trabalho e para o correspectivo sucesso da  
lógica de acumulação típica do capital. Aqui também, como veremos em  
momento oportuno, estão assentadas as bases para outra noção componente  
da forma jurídica: a ideologia contratual.  
Veja-se, ainda nesta linha, que o raciocínio anterior somente funciona na  
medida em que nenhum homem deve ser tido como um meio, mas deve  
aparecer sempre como um fim em si mesmo. Logo, ao dar esmola, para  
atender ao seu desejo altruísta ou para obter abatimento no imposto de renda,  
passou-se a usar o outro homem como instrumento para a satisfação de algo  
que tem um significado egoístico, que atende mais aos desejos de minha  
natureza do que à racionalidade humana. Assim é que deve ser encarado tal  
enunciado em Kant.  
O sujeito de direito universalizado do capitalismo pressupõe o sujeito kantiano  
Murilo Amadio Cipollone  
dotado de razão, também universalizada. A razão humana, para que prevaleça  
como postulado que tudo funda, não deve possibilitar a exclusão ou privilégios  
de ninguém, ao menos no plano das ideias. De forma idealizada, todos devem  
ser livres e iguais, pois este é o plano da razão para toda a humanidade.  
(Orione, 2022, p. 79-81, grifo nosso).  
Orione conclui revelando a forma pela qual se entrelaça a filosofia kantiana com a  
reprodução das relações de produção capitalistas. Nesse percurso, destaca nela a centralidade  
da mercadoria força de trabalho – que a juíza insiste em tratar, mesmo sob o modo de produção  
capitalista, como meio de dignificação da existência, a qual teria suas razões nas atividades  
laborais. Assim,  
Não podemos ter sequer a mera impressão, para vender a nossa força de  
trabalho, de que somos apenas um meio. Devemos conceber, enquanto  
elemento da própria racionalidade, que somos iguais e livres para fazê-lo.  
Caso contrário, alguns homens, os que compram a força de trabalho, estariam  
utilizando outros, aqueles que a vendem, como um meio; e nenhum homem  
deve ser visto de maneira instrumental para o outro promover a acumulação  
que o enriquece e que a alguém empobrece. Além disto, devemos nutrir a  
crença de que somos mais do que proprietários apenas da nossa força de  
trabalho, para que possa viver a razão nos moldes idealizados por Kant. Se  
assim não o fosse, qual seria a diferença do modo de produção capitalista de  
um escravista, por exemplo? Não são a igualdade e liberdade que determinam  
o capitalismo, mas as suas ideias, as suas representações, indispensáveis à  
justificação moral de que os homens são um fim em si mesmo – não podendo  
ser pensados como um meio para a mera satisfação dos interesses dos demais.  
As suas aparências são mais importantes do que as suas essências – que sequer  
seriam factíveis no capitalismo, onde não importa a igualdade real, mas sim a  
igualdade de forças de trabalho, para fins da perfeição das trocas de  
equivalentes. Kantianamente, somos empurrados para o mundo das  
378  
representações, deixamos  
o
plano do essente  
e
nos colocamos  
confortavelmente no plano do aparente, completando-se a mágica capitalista  
do fetiche da mercadoria. O sujeito universalizado do capitalismo é  
responsável pela visão de mundo racional do que sejam a liberdade e  
igualdade. Até a percepção desta relação essente/aparente nos é retirada, já  
que operamos apenas no plano do “para si” (a forma como o homem  
capitalista enxerga o objeto, a razão), olvidando o plano relacional  
estabelecido de modo determinado com o “em si” – relação (em si/para si) que  
somente é resgatada por Hegel, em contraposição a Kant (Orione, 2022, p. 80-  
81, grifo nosso).  
A consciência de si kantiana, dessa forma, ao passo em que generaliza a razão,  
equiparando os seres-humanos como livres e iguais, é o substrato necessário para o  
perfazimento da forma sujeito de direito e da continuidade da subsunção do trabalho ao capital  
através da forma- contrato de trabalho. Não à toa aparece na justificativa por parte do judiciário  
para a extensão da forma jurídica.  
Antes de adentrar as questões estritamente jurídicas – que ocupam a maior parte da  
sentença, na qual a juíza demonstrará que o trabalho de motoristas e entregadores através dos  
aplicativos se enquadra nos requisitos dos artigos 2º e 3º da CLT –, são invocados outros  
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A recepção do direito à centralização de capital no contexto da produção do espaço urbano  
argumentos para sustentar a necessidade de reconhecimento do vínculo empregatício. Vejamos.  
A UBER alega que é empresa de tecnologia e não de transporte. Contudo, não  
é isso que emerge dos fatos. A tecnologia (plataforma digital algorítmica) é  
apenas um meio para a prestação de serviços de transporte. Vale dizer, os fins  
econômicos da reclamada são alcançados pelos serviços de transporte  
prestados e remunerados pelos consumidores e não pela disponibilização da  
plataforma por si só.  
Porém, o que ocorre, na verdade, é a evidente exploração de mão de obra dos  
motoristas, sob o manto de um algoritmo que deixa predefinido o dirigismo  
da prestação dos serviços, sabendo quanto cobrar em cada caso, quando  
suspender ou excluir motoristas, etc.  
A plataforma não alcança seus fins sem o trabalho realizado pelos motoristas,  
ainda que não haja ordens diretas de uma chefia. O algoritmo programado pela  
reclamada é apto o suficiente a fiscalizar e dirigir a prestação pessoal dos  
serviços. O formato da relação, ainda que moderno e gerenciado por um  
algoritmo, torna evidente a subordinação jurídica (clássica, objetiva e  
estrutural), ainda que sob releitura do seu conceito, ou subordinação dita  
algorítmica pela doutrina, ou mesmo a subordinação psíquica (TRT11, 2022,  
p. 8-9, grifo nosso).  
Diferentemente do que será argumentado por aqueles juízes que querem afastar a  
incidência da forma-contrato de trabalho nessa relação, a juíza aqui destaca que há “evidente  
exploração de mão de obra dos motoristas”. Dessa forma, afasta qualquer argumento que  
pretenda identificar nesse caso alguma “relação de parceria” ou mesmo algum modo de  
“empreendedorismo” por parte do trabalhador. Portanto, a juíza se soergue contra a subsunção  
hiper-real do trabalho ao capital.  
379  
Ao final, dispõe acerca dos cinco elementos constituintes do vínculo empregatício.  
Pretende ela, assim, demonstrar que a relação de trabalho é, de fato, o que é. Assim, a juíza se  
contrapõe à “reviravolta jurídica”, que tem lugar de tempos em tempos, e que permite ao direito  
acompanhar o grau de desenvolvimento das relações e do modo de produção capitalista – tal  
como dispôs Bernard Edelman (Edelman, 1976, p. 62). Não por acaso, seu entendimento é tão  
dissonante que mais parece legitimar o entendimento contrário.  
Antes de mais, deve-se destacar que a “controvérsia jurídica” reside apenas no elemento  
referente à subordinação – como não poderia deixar de ser. Mesmo assim, faz-se necessário  
destacar algo acerca de cada um dos cinco requisitos que constam nos artigos 2º e 3º da CLT  
para que o direito reconheça o vínculo empregatício. Vejamos.  
Nesse sentido, sobre pessoalidade, infere que “restou caracterizado pela prestação de  
serviços efetivada por uma pessoa física (reclamante) sem a possibilidade de substituição por  
outrem” (TRT11, 2022, p. 19). Acerca da onerosidade, aponta que é um requisito “mais que  
evidente, uma vez que há não só há a intenção de percebimento de remuneração por parte dos  
motoristas de aplicativos, mas o próprio adimplemento de tal pagamento por parte da  
Murilo Amadio Cipollone  
plataforma” (TRT11, 2022, p. 19). No que diz respeito à alteridade, destaca que fica bem  
“evidenciado, uma vez que a reclamada é detentora dos ônus da atividade econômica, uma vez  
que arca com os custos de manutenção da plataforma digital, mantém empregados para prestar  
apoio aos motoristas do aplicativo, aufere os prejuízos decorrentes da baixa demanda e oferece  
cortesias aos seus clientes/usuários, sem custos para os motoristas” (TRT11, 2022, p. 20). Em  
relação à habitualidade, que já também se pretendeu problematizar, aponta que:  
Embora mitigado por possibilidade de inativações, os motoristas da  
plataforma não podem ficar inativos por longos períodos, sob pena de  
punições, ainda que mascaradas sobre outros títulos ao alvedrio do algoritmo.  
Além disso, os motoristas percebem incentivos para a ativação ao trabalho,  
mormente em épocas festivas, quando a demanda pelos serviços é bem maior.  
Aliado a tudo isso, vale salientar que a prestação de serviços de forma diária  
não é requisito da relação empregatícia. É que a não eventualidade não se  
confunde com a continuidade, este requisito de relação empregatícia  
doméstica (mais de dois dias na semana) (TRT11, 2022, p. 20).  
Finalmente, no que tange a subordinação, o argumento conclusivo da juíza – destacado  
da análise das cláusulas de trabalho pactuadas entre os trabalhadores e os aplicativos – reside  
no fato de que, subordinação é a “antítese do poder de direção da atividade  
econômica/empresarial. Assim sendo, é a situação jurídica em que o prestador de serviços  
(empregado) acolhe o poder de direção da atividade econômica/empresarial no modo de  
realização da prestação dos serviços. (TRT11, 2022, p. 22). Desse modo, compreende o conceito  
como a “inserção do trabalhador na dinâmica do tomador de seus serviços, independentemente  
de receber (ou não) suas ordens diretas, mas acolhendo, estruturalmente, sua dinâmica de  
organização e funcionamento” (Delgado, 2006, p. 667). Em vista disso, infere a juíza que,  
380  
Assim sendo, vale ressaltar que os motoristas de aplicativos da reclamada não  
podem escolher o preço das viagens, trajetos a serem percorridos e quais  
clientes vão transportar (limite de cancelamentos de corridas). O percentual  
das viagens auferido pela reclamada é dinâmico, os recibos são emitidos pela  
própria plataforma, fiscalização e controle por GPS e meios telemáticos,  
controle da forma da condução do veículo e velocidade, etc. Tais fatos não  
condizem com a autonomia defendida pela reclamada (TRT11, 2022, p. 25).  
Dessa forma, demonstra que a relação de trabalho analisada é caracterizada por  
subordinação direta, e, ao passo em que compreende todos os requisitos da legislação, deve  
fazer nela incidir a forma-contrato de trabalho.  
O escopo da materialidade da forma jurídica, entretanto, acompanha e reproduz o grau  
de desenvolvimento do modo de produção capitalista. Destarte, o direito se adequa às  
necessidades da acumulação e da reprodução de capital. Parece, pois é isso o que ocorre, que  
não é do interesse das classes dominantes que, no curso da reestruturação produtiva do  
pósfordismo, que a subsunção do trabalho ao capital ganhe novos dados. Desse modo, os  
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A recepção do direito à centralização de capital no contexto da produção do espaço urbano  
juristas armam a falsa dualidade mencionada, confundido contrato de trabalho com relação de  
emprego.  
Em sendo assim, correm os juristas, e o direito mesmo, no encalço da acumulação de  
capital. Nesse percurso, devem ocorrer as “reviravoltas jurídicas” citadas, as quais pretendem  
abrigar, pela vil retórica, as condições necessárias ao processo de reprodução das relações de  
produção. Já se sabe que a orientação da corte superior é o de não reconhecer o vínculo  
empregatício. Resta, assim, dispor de suas justificativas.  
Salta aos olhos, em primeiro lugar, ao se olhar para um dos acórdãos que negam  
provimento ao reconhecimento do vínculo empregatício, o argumento de que os “novos  
formatos de trabalho” são diferentes da “típica fraude à relação de emprego”. Assim, caberia ao  
juiz saber discriminar adequadamente cada qual a fim de não barrar o “desenvolvimento  
socioeconômico do país”. Vejamos:  
Em relação às novas formas de trabalho e à incorporação de tecnologias  
digitais no trato das relações interpessoais – que estão provocando uma  
transformação profunda no Direito do Trabalho, mas carentes ainda de  
regulamentação legislativa específica – deve o Estado-Juiz, atento a essas  
mudanças, distinguir os novos formatos de trabalho daqueles em que se está  
diante de uma típica fraude à relação de emprego, de modo a não frear o  
desenvolvimento socioeconômico do país no afã de aplicar as regras  
protetivas do direito laboral a toda e qualquer forma de trabalho (TST, 2021,  
p. 7).  
381  
Na literalidade desse enunciado, que se reproduz, ipsis litteris, em mais de uma  
oportunidade, há a distinção anunciada entre trabalho e contrato de trabalho – exposta no texto  
como “relação de emprego”. Assim, não pretende o direito reconhecer a relação de exploração  
econômica que se processa atravessada pela dominação absoluta do saber pelo capital, na qual  
há a figura do trabalhador empreendedor, “parceiro”, como uma relação de emprego, que deve  
ser transpassada por um “sistema protetivo mínimo”.  
Há mais. Não deve o direito atrapalhar o processo de acumulação. Isso, a decisão diz  
por si mesma. Entretanto, naquilo que narra o magistrado, aparece a concepção de que a  
valorização do capital se traduz como “desenvolvimento socioeconômico do país”, algo que  
beneficiaria a todos, sem qualquer distinção de classe. Isso é bastante relevante, já que o “mito  
do interesse coletivo” que atravessa toda a ideologia jurídica e a representação do político no  
modo de produção capitalista é responsável por sustentar o projeto das classes hegemônicas. O  
ocultamento da exploração econômica classista é, assim, uma pré-condição de seu  
funcionamento – e a isto se prestam as práticas ideológicas reiteradas, como as do direito –; os  
interesses das burguesias realizados pelo modo de produção capitalista, assim, apresentam-se  
como interesses gerais, coletivos.  
Murilo Amadio Cipollone  
A análise do ministro continua. Agora traz à sua decisão a análise do insuspeito Mariano  
Otero, diretor de operações da UBER para a América Latina, acerca dos “serviços prestados”  
pela empresa. Ao assistir a uma palestra sua em Montevideo, o juiz, Ives Gandra, relata ter  
ouvido que:  
a plataforma UBER não servia apenas para que o celular servisse para se  
conseguir transporte, mas também para se conseguir trabalho, ligando cliente  
a motorista. Bastaria a alguém sem trabalho contatar com o UBER, mesmo  
sem ter veículo, que a empresa inclusive facilitaria todos os trâmites para se  
obter inclusive financiamento de veículo e começar a trabalhar (TST, 2021, p.  
7-8)  
Acreditando, pois, na palavra de um dos administradores da empresa, o magistrado  
conclui que:  
Tal quadro apontou para o desenvolvimento de uma ferramenta de  
impressionante potencial gerador de trabalho e atividade econômica, que pode  
se ver frustrada em caso de equivocado enquadramento em moldes  
antiquados, estabelecidos para relações de produção próprias da 1ª Revolução  
Industrial, quando já vivenciamos a 4ª Revolução Industrial, da Era Virtual.  
No Brasil, ainda carecemos de marco regulatório legal para o trabalho com  
uso de plataformas digitais (TST, 2021, p. 8, grifo nosso).  
Supostamente, assim, teria havido uma completa transformação nas relações de  
produção e, portando, do modo de produção entre os séculos XIX e XXI, de tal sorte que, na  
infraestrutura econômica, não haveria mais dominação classista alguma. Tal como pretende o  
contemporâneo operativo da ideologia jurídica, pela qual os trabalhadores devem ser todos  
elevados à categoria de pequenos capitalistas, empreendedores. Diante disso, deveria o direito,  
argumenta o juiz, reconhecer diferentes formas de trabalho, a fim de se adequar à suposta  
evolução da sociedade. Trata-se, não mais, do que um lugar comum da prática ideológica  
reiterar a necessidade de atualização do direito frente a supostas inovações no âmbito das  
relações produtivas e da sociabilidade de modo geral. Com isso, pretende-se fazer com que a  
forma jurídica acompanhe o grau de desenvolvimento do modo de produção capitalista, de tal  
sorte que responda, de forma ótima, às necessidades da acumulação.  
382  
O ministro, em seu acórdão, até aqui, tenta evidenciar que as “novas formas de trabalho”  
não constituem “fraude à relação de emprego”, na medida em que não existiria, de fato, relação  
de exploração, já que seriam, capitalistas e trabalhadores, não mais do que empreendedores  
parceiros, já que não foi firmado contrato de compra e venda da força de trabalho. Assim, tenta  
legitimar a falta de contrato de trabalho pela própria falta de contrato de trabalho. Ora, não é  
relação de emprego, porque não se vê contrato de trabalho; e não há contrato de trabalho porque  
não se vê relação de emprego.  
Tendo isso constatado, parte à apreciação de dois elementos da relação de emprego para  
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A recepção do direito à centralização de capital no contexto da produção do espaço urbano  
o direito que julga serem controversos nos casos em questão, a habitualidade e a subordinação.  
Diz, dessa forma, que, além de ser uma forma de trabalho “elegida exclusivamente pelo  
motorista”, a habitualidade “fica mitigada nesses casos, uma vez que inexiste a obrigação de  
uma frequência predeterminada ou mínima de labor pelo motorista para o uso do aplicativo,  
estando a cargo do profissional definir os dias e a constância em que irá trabalhar” (TST, 2021,  
p. 08). Assim, o ministro desconsidera a punição contida no algoritmo do aplicativo para  
trabalhadores que ficam muito tempo inativos, o que chega mesmo a impossibilitar a  
continuidade do trabalho sem determinada habitualidade da prestação dos serviços, e alega que  
o trabalhador é livre para trabalhar quando bem quiser.  
Acerca do controle do empregador sobre os resultados e processo de trabalho, isto é, a  
subordinação, que deriva, mormente, do poder diretivo, Ives Gandra sugere ser “latente a ampla  
autonomia do motorista em escolher os dias, horários e forma de labor, podendo desligar o  
aplicativo a qualquer momento e pelo tempo que entender necessário, sem nenhuma vinculação  
a metas determinadas pela Uber ou sanções decorrentes de suas escolhas (TST, 2021, p. 09).  
Assim, em que pesem todas as limitações e exigências feitas pelos aplicativos, tal como  
dispostas em suas cláusulas, o juiz é seguro em afirmar ser o trabalhador o responsável pela  
forma e pelos resultados do trabalho. O que se verificaria, seria, desse modo:  
[...] é a necessidade de observância de cláusulas contratuais (como, p.e.,  
valores a serem cobrados, código de conduta, instruções de comportamento,  
avaliação do motorista pelos clientes), com as correspondentes sanções no  
caso de descumprimento, para que se preserve a confiabilidade e a  
manutenção do aplicativo no mercado concorrencial, sem que, para isso, haja  
ingerência no modo de trabalho prestado pelo motorista. Em outras palavras,  
o estabelecimento de regras de procedimento na execução dos serviços não se  
confunde com o poder diretivo do empregador, não tendo o condão de  
caracterizar a subordinação jurídica (TST, 2021, p. 09, grifo nosso).  
383  
Dessa forma, diz que as sanções derivadas do descumprimento das normas do processo  
de trabalho não constituem uma parcela do poder diretivo, mas tão somente uma necessidade  
para a manutenção da confiabilidade no mercado concorrencial. Como se o propósito fosse  
legítimo para justificar os meios. Em sua reclamação, cumpre destacar, o trabalhador sugeriu  
que haveria, em sua relação, “subordinação estrutural”. O magistrado, após dizer que o conceito  
“não encontra amparo na legislação trabalhista”, infere que:  
Não cabe ao Poder Judiciário ampliar conceitos jurídicos a fim de reconhecer  
o vínculo empregatício de profissionais que não atuam enquadrados no  
conceito legal de subordinação, devendo ser respeitada a modernização das  
formas de trabalho, emergentes da dinâmica do mercado concorrencial atual  
e, principalmente, de desenvolvimentos tecnológicos, nas situações em que  
não se constata nenhuma fraude (TST, 2021, p. 10).  
A “reviravolta jurídica” que se assiste, parece acontecer a partir da passividade. As  
Murilo Amadio Cipollone  
“novas formas de trabalho” surgem, no curso da “dinâmica do mercado concorrencial” e do  
“desenvolvimento tecnológico” e, ao passo em que não possuem contrato de trabalho, não se  
constituem como uma relação de emprego, de forma que não deve mesmo haver contrato de  
trabalho. Esse é o raciocínio exposto pelo ministro, que ecoa em quase todos os juízes do direito  
do trabalho – haja vista os números supracitados.  
Finalmente, destaca-se que a estrutura argumentativa se prolonga das cortes superiores  
para os demais tribunais, de modo a permitir à forma jurídica completar suas tarefas. Isso pode  
ser visto, por exemplo, num acórdão do Tribunal Regional do Trabalho da 2ª Região:  
No caso em testilha, a ausência do principal requisito caracterizador do liame  
empregatício, qual seja, a subordinação, bem como a utilização concomitante  
de plataformas concorrentes, emerge do depoimento pessoal do próprio  
reclamante, o qual declarou em Juízo "que era o depoente que escolhia os dias  
e horários em que iria prestar serviços; que somente trabalhava com Uber, mas  
poderia usar outro aplicativo; que não se recorda se ficou sem usar o aplicativo  
entre julho e novembro de 2020; que acha que nesse período já tinha sido  
desligado da plataforma". Tais declarações demonstram a presença de enorme  
autonomia na prestação de serviços, totalmente incompatível com a existência  
de vínculo de emprego. Registre-se que a dinâmica da prestação de serviços  
por meio de aplicativos de transporte de passageiros, tais como UBER,  
CABIFY e 99TÁXI, amplamente utilizada nos dias atuais, apresenta  
peculiaridades que não permitem o reconhecimento da existência de relação  
de emprego nos moldes estabelecidos no art. 3º da CLT.  
Com efeito, o recorrente não estava sujeito a um efetivo poder diretivo  
exercido pela reclamada, desempenhando suas atividades com autonomia e  
conforme sua conveniência. Não bastasse isso, recebia 75% ou 80% do valor  
bruto das corridas realizadas (a depender da categoria - Uber X ou Uber  
Black), ficando a reclamada com 25% ou 20% de tal montante, o que denota  
que não se tratava de um mero assalariado, laborando em verdadeira parceria  
com a referida empresa detentora do aplicativo (TRT2, 2021, p. 3, grifo  
nosso).  
384  
Considerações finais  
O pós-fordismo, mais pontualmente, sua reestruturação produtiva, nos interessou por  
duas razões centrais: (i) porque provoca a centralização do capital no contexto da produção do  
espaço urbano; e, (ii) porque aprofunda a lógica contratual da sociedade capitalista, através da  
passagem à subsunção hiper-real do trabalho ao capital, sendo que o direito e a ideologia  
jurídica são aquelas formas que reproduzem esse processo com maior nitidez – daí nosso  
interesse em estruturar sua crítica. As duas razões, por óbvio, se articulam. Isso porque a  
centralização de capital é, antes de tudo, processada pela ideologia jurídica, a qual sustenta sua  
materialização. Além disso, a perspectiva do urbano autoriza a correta localização de uma  
importante nova esfera social forjada à acumulação de capital, que se apoia no desenvolvimento  
de novas tecnologias de transporte e comunicação.  
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A recepção do direito à centralização de capital no contexto da produção do espaço urbano  
O objetivo, anunciado desde o começo, não era outro senão contribuir para a expansão  
da agenda de pesquisa crítica estruturada por Evgeni Pachukanis. Nesse sentido, havia a  
pretensão de compreender o modo pelo qual o direito recepciona a subsunção hiper-real do  
trabalho ao capital. Para tanto, foi necessário trazer à baila um caso paradigmático da  
atualidade: o dos motoristas e entregadores por aplicativos – dramático aja vista o contingente  
de trabalhadores com ele envolvidos.  
Da mesma forma, num primeiro momento, fez-se um esforço teórico no sentido de  
localizar, pelo método, o espaço ocupado por esses trabalhadores para a reprodução do modo  
de produção capitalista. Disposto isso, pode-se partir à sistematização e crítica dos mais  
caricatos enunciados que orientam o debate jurídico. A partir deles, pode-se chegar a algumas  
considerações.  
Aprimeira constatação revela que há uma falsa dualidade posta, pelo direito do trabalho,  
entre contrato de trabalho e relação de emprego. Isso é, aqueles que processam a forma jurídica,  
querem crer que a ausência de contrato de trabalho implica, do mesmo modo, na ausência de  
relação de exploração econômica. Tal se articula com a forma pela qual o trabalho se subordina  
ao capital no pós-fordismo. A ideologia jurídica almeja extinguir a figura do trabalhador  
colaborador, para fazer emergir a do trabalhador empreendedor. O que se quer é transformar  
todos os trabalhadores em pequenos capitalistas, responsáveis pela violência contra os outros  
trabalhadores e pela ordem ideologia do mérito. Assim, na medida em que o capital é capaz de  
controlar todo o saber do processo de produção – dado o nível do desenvolvimento tecnológico  
– é também capaz de controlar todo o cotidiano dos trabalhadores e, pois, das práticas reiteradas  
que os interpelam, estruturando subjetividades cada vez mais solidárias ao seu projeto de  
acumulação.  
385  
Portanto, dado que se quer estar diante da relação entre dois capitalistas, o que deve  
haver – e é justamente isso que defendem os enunciados jurídicos –, não é senão um “contrato  
de colaboração”, que afasta o contrato de trabalho, e, da mesma forma, o “sistema protetivo  
mínimo”. Haveria, desse modo, para o direito, “novas formas de trabalho”, sob as quais não  
devem incidir as leis da CLT.  
Entretanto, as aparências não são capazes de afastar a realidade, na qual há, em verdade,  
o prolongamento da contratualização da sociedade e da ideologia jurídica, no sentido de  
autorizar a expansão da centralização do capital e das taxas de exploração dos trabalhadores.  
Dessa forma, o que se tem é a que reestruturação produtiva do pós-fordismo – cujo palco  
principal não é outro senão a cidade e a produção do espaço urbano –, encontra, como sempre,  
sustentáculos na forma jurídica, que, mesmo aparentemente distante, oferece o aporte  
Murilo Amadio Cipollone  
necessário à reprodução do projeto hegemônico das classes dominantes.  
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dias atuais, apresenta peculiaridades que não permitem o reconhecimento da existência de  
relação de emprego nos moldes estabelecidos no art. 3º da CLT. 2021. Acórdão em Recurso  
n. 1001152- 84.2021.5.02.0055. Relator: Marcelo Freire Gonçalves.  
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dignidade da pessoa humana. Centralidade da pessoa humana na ordem econômica e  
social. Valor social do trabalho e da livre iniciativa, função social da propriedade e da  
máxima efetividade dos direitos constitucionais. Vínculo de emprego. Subordinação  
386  
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387  
Educação e trabalho: considerações sobre o  
processo de formação humana  
Education and work: reflections on the process of human formation  
Luiz Carlos de Souza Junior*  
Resumo: O presente artigo objetiva refletir  
sobre o processo de formação humana. Assim,  
busca recuperar o debate sobre a educação a  
partir da perspectiva de totalidade e de sua  
relação com o trabalho — em sentido  
ontológico —, com base na teoria marxiana e  
marxista, para pensar sua importância na  
construção do homem enquanto um ser social.  
Para além da compreensão ontológica sobre a  
educação, discute sobre como ela representa um  
dos temas centrais em nossa sociedade,  
disputada por classes sociais antagônicas, num  
contexto político e socioeconômico, que sob a  
égide neoliberal, impõe crescentes obstáculos  
para sua efetiva universalização enquanto um  
direito. Destarte, a partir de uma revisão  
bibliográfica, conclui que a educação formal,  
por si só, não representa a totalidade ideológica  
(é um dos componentes) que alicerça o sistema  
capitalista e tampouco possui capacidade de  
construir isoladamente uma alternativa radical  
de caráter emancipador.  
Abstract: This article aims to reflect on the  
process of human formation. Thus, it seeks to  
recover the debate on education from the  
perspective of totality and its relationship with  
work — in an ontological sense —, based on  
Marxian and Marxist theory, to think about its  
importance in the construction of man as a  
social being. In addition to the ontological  
understanding of education, it discusses how it  
represents one of the central themes in our  
society, disputed by antagonistic social classes,  
in a political and socioeconomic context, which  
under the neoliberal aegis, imposes increasing  
obstacles to its effective universalization as a  
right. Thus, based on a bibliographical review,  
it concludes that formal education, in itself,  
does not represent the ideological totality (it is  
one of the components) that underpins the  
capitalist system and nor does it have the  
capacity to construct in isolation a radical  
alternative of an emancipatory nature.  
Palavras-chaves: Educação; Trabalho; Ser  
Keywords: Education; Work; Social Being;  
Social; Formação Humana.  
Human Training.  
Introdução  
O artigo em tela possui como objetivo analisar o processo de formação humana a partir  
da relação entre educação e trabalho. Dessa maneira, é essencial problematizarmos sobre a  
concepção de educação aqui defendida — uma práxis social crucial para o desenvolvimento do  
* Universidade Federal de Juiz de Fora. E-mail: souza.luiz@ufjf.br  
DOI: 10.34019/1980-8518.2025.v25.45802  
Esta obra está licenciada sob os termos  
Recebido em: 30/08/2024  
Aprovado em: 22/01/2025  
Educação e trabalho: considerações sobre o processo de formação humana  
homem enquanto ser social, consequentemente, voltada para o processo de emancipação do  
gênero humano —, bem como acerca dos limites postos à sua universalidade diante do avanço  
da agenda neoliberal.  
A vinculação entre o sistema socioeconômico vigente e o desenvolvimento do processo  
educacional é necessária, tendo em vista que, para além da formação humana, a educação é  
vista como um dos fatores condicionantes para o desenvolvimento de determinado país e  
solução para muitas adversidades.  
Assim dizendo, devemos considerar que, assim como outros temas centrais em nossa  
sociedade, a educação representa uma disputa entre classes sociais antagônicas. Por um lado,  
as políticas públicas desta área atendem ao interesse das classes dominantes ao proporcionarem  
a formação (ainda que mínima) fundamental para capacitação e adequação da classe  
trabalhadora a um determinado ciclo econômico e modo de produção; por outro, esta mesma  
classe trabalhadora demanda a democratização do acesso e permanência a uma educação  
pública, laica, universal e de qualidade, que garanta uma formação em sentido amplo (e não  
apenas direcionada para qualificação da força de trabalho).  
Um debate que, de acordo com Motta (2017), destaca a função educadora por parte do  
Estado, na direção de adequação dos processos educativos em virtude das necessidades  
inerentes a cada etapa do processo de desenvolvimento do modo de produção capitalista. Nessa  
perspectiva, a educação formal representa uma das formas da classe dominante absorver e  
assimilar as demandas da sociedade em geral, tanto ao nível cultural quanto econômico. Por  
conseguinte, na configuração atual do processo de produção e reprodução da vida material, a  
educação, no sentido de formação da força de trabalho, é vista como um investimento para o  
aumento da produtividade e competitividade, que representam mantras da lógica social vigente.  
Fato que justifica nossa intenção em pautarmos a discussão sobre a educação e sua  
relação com o desenvolvimento do gênero humano para além do debate apresentado por Motta  
(2017) quando se refere ao fetiche da sociedade do conhecimento e à ideologia da  
empregabilidade e das competências. Essas concepções representam formas de colocar e  
legitimar a concepção de educação enquanto uma mercadoria e responsabilizar individualmente  
os trabalhadores pelo desenvolvimento do país e, principalmente, pela sua própria condição  
socioeconômica.  
389  
Nessa conjuntura de desemprego estrutural, de precarização do trabalho e do  
aumento da pobreza, a função estatal educativa se realiza em várias frentes  
que não somente a formação da força de trabalho necessária ao mercado ou  
pela conformação de novo tipo, dado o padrão de acumulação flexível. Insere  
tais aspectos, porém, principalmente focado na grande massa de trabalhadores  
que compõe os segmentos estagnados e pauperizados do exército industrial  
Luiz Carlos de Souza Junior  
de reserva, ao mesmo tempo, em que intensifica a mercantilização do setor de  
educação (Motta, 2017, p. 69).  
Diante de tal cenário, Motta (2017) ressalta que o processo da educação formal, que  
objetiva alcançar o conformismo da população, é reforçado pela ideologia do capital social, que  
observamos frequentemente através do discurso do empreendedorismo, denominado pela  
autora como uma forma de autoexploração da força de trabalho.  
Portanto, após essas considerações introdutórias, procuraremos, a partir de uma pesquisa  
embasada em fontes bibliográficas, elucidar sobre as questões inerentes à educação e sua  
intrínseca relação com o processo de produção/reprodução da vida material e de construção do  
homem enquanto um ser social.  
Sobre a relação ontológica entre trabalho e educação  
O primeiro item deste artigo propõe uma discussão sobre a construção do homem  
enquanto ser social e o consequente desenvolvimento da educação enquanto práxis social. Tal  
proposta possui relevância pelo fato de haver a necessidade de pensarmos, inicialmente, na  
educação de maneira geral para podermos delimitar alguns desafios no que tange à sua inserção  
e função numa sociedade de classes, em especial na sociedade capitalista.  
Dito isto, torna-se imperioso partirmos da compreensão de que, ao falarmos sobre o  
homem enquanto ser social, consideramos aqui o trabalho enquanto sua categoria fundante.  
Essa afirmação coloca que, a partir do trabalho, foi possível o salto ontológico que permitiu um  
afastamento1 maior das barreiras naturais postas ao processo de produção e reprodução da vida  
material do homem.  
390  
Para discussão, optamos por iniciar nossa reflexão teórica retomando algumas  
observações sobre o conceito de trabalho, tendo em vista sua centralidade no processo de  
(re)produção das relações sociais, como algo que funda o mundo dos homens. Lessa (2012)  
retoma o pensamento de Lukács sobre o salto ontológico realizado no trabalho, que transpõe a  
existência humana de determinações meramente biológicas, ou melhor, considera não haver a  
chamada existência social sem o trabalho.  
Afirmamos que o trabalho é a categoria fundante do ser social por representar um marco  
histórico para a própria produção da vida humana. Trata-se de uma ação, que numa acepção  
mais primária, é executada para satisfação de uma necessidade, por mais básica e biológica que  
seja. Dessa forma, a partir da relação entre homem e natureza, ocorrem transformações de  
1 Cabe ressaltar que a utilização do termo afastamento remete justamente ao fato de que o ser social possui uma  
contínua e necessária relação com a natureza, por razões óbvias.  
Libertas, Juiz de Fora, v. 25, n. 1, p. 388-412, jan./jun. 2025. ISSN 1980-8518  
Educação e trabalho: considerações sobre o processo de formação humana  
ordens objetivas e subjetivas, que vão se tornando cada vez mais complexas ao longo da  
história.  
Desse modo, é enunciada a categoria ontológica central do trabalho: através  
dele, realiza-se, no âmbito do ser material, um pôr teleológico enquanto  
surgimento de uma nova objetividade. Assim, o trabalho se torna o modelo de  
toda práxis social, na qual, com efeito — mesmo que através de mediações às  
vezes muito complexas —, sempre se realizam pores teleológicos, em última  
análise, de ordem material. É claro, como veremos mais adiante, que não se  
deve exagerar de maneira esquemática esse caráter de modelo do trabalho em  
relação ao agir humano em sociedade; precisamente a consideração das  
diferenças bastante importantes mostra a afinidade essencialmente ontológica,  
pois exatamente nessas diferenças se revela que o trabalho pode servir de  
modelo para compreender os outros pores socioteleológicos, já que, quanto ao  
ser, ele é a sua forma originária. O fato simples de que no trabalho se realiza  
um pôr teleológico é uma experiência elementar da vida cotidiana de todos os  
homens, tornando-se isso um componente imprescindível de qualquer  
pensamento, desde os discursos cotidianos até a economia e a filosofia. O  
problema que aqui surge não é tomar partido a favor do caráter teleológico do  
trabalho ou contra ele; antes, o verdadeiro problema consiste em submeter a  
um exame ontológico autenticamente crítico a generalização quase ilimitada  
— e novamente: desde a cotidianidade até o mito, a religião e a filosofia —  
desse fato elementar (Lukács, 2013, p. 47).  
Contudo, antes de estabelecermos tais conexões, cabe destaque sobre a definição de  
Marx (2017) sobre o trabalho que se apresenta como um processo de relação entre o homem e  
a natureza, em que, através da sua ação, ele a transforma para satisfazer suas necessidades.  
Neste intercâmbio orgânico no processo de transformação da natureza, o homem modifica  
também a si.  
391  
Nesse sentido, verifica-se que ainda que se exponha a relação direta entre a constituição  
da existência social e o trabalho, não é possível dizer que se encerra nesse ponto, já que as  
relações sociais são construídas mediante complexos que vão além dos atos do trabalho, tendo  
em vista que, de acordo com Lessa (2012), a própria relação do homem com a natureza  
pressupõe a relação entre os próprios homens. Fato este, resultante em novas necessidades.  
Marx (2017) estabelece uma diferença2 entre tal processo de trabalho exclusivo ao  
homem daquele tipo de trabalho na sua primeira forma, instintiva. Para ele, a concepção de  
trabalho em questão é aquela em que, no final do processo, é obtido um resultado idealizado  
anteriormente, logo, podemos afirmar que se trata de uma atividade orientada para um  
determinado fim.  
A essência do trabalho consiste precisamente em ir além dessa fixação dos  
seres vivos na competição biológica com seu mundo ambiente. O momento  
2
Marx (2017) exemplifica tal diferença ao comparar uma abelha na construção dos favos de suas colmeias ao  
trabalho de um arquiteto. Segundo ele: “... o que desde o início distingue o pior arquiteto da melhor abelha é o fato  
de que o primeiro tem a colmeia em sua mente antes de construí-la com a cera” (Marx, 2017, p. 255-256).  
Luiz Carlos de Souza Junior  
essencialmente separatório é constituído não pela fabricação de produtos, mas  
pelo papel da consciência, a qual, precisamente aqui, deixa de ser mero  
epifenômeno da reprodução biológica: o produto, diz Marx, é um resultado  
que no início do processo existia “já na representação do trabalhador”, isto é,  
idealmente (Lukács, 1978, p. 4).  
Tratamos sobre uma das principais distinções entre o homem e a natureza, a qual é uma  
característica primordial para compreendermos o trabalho, pois, vemos que a partir de uma  
necessidade específica o homem analisa as diversas alternativas para execução de sua ação e  
antecipa em sua consciência o resultado desejado. Essa antecipação em sua consciência é  
denominada como prévia ideação ou teleologia. Ou seja, a partir de um movimento que ocorre  
através da captura da realidade, de maneira aproximada (tendo em vista o limite do âmbito  
teórico), o homem consegue externar sua objetividade subjetivada.  
Dessa maneira, com base no que assinalamos acima, consideramos o trabalho como uma  
ação inerente e exclusiva ao homem, já que a diferença desta para uma ação meramente  
instintiva está no fato de uma projeção anterior do resultado. Nesse sentido, diferenciamos as  
relações naturais, postas por nexos estritamente causais, daquelas que pressupõem a  
necessidade de um pôr teleológico. Referimo-nos então ao salto ontológico, que mediado pelo  
trabalho e pela linguagem, resulta em ações conscientes.  
Portanto, se apontamos o trabalho como um meio para satisfação de determinada  
necessidade, podemos observar que, de acordo com Masson (2016), seu objetivo representa a  
motivação desta ação, e, a prévia ideação só se efetiva na realidade enquanto pôr, o que  
demanda investigação das formas mais adequadas para sua execução.  
392  
O processo de trabalho previamente idealizado que se materializa, denominado como  
objetivação, gera um determinado objeto, que antes existia apenas no âmbito da idealização  
humana e representa o resultado de uma transformação da realidade. Esse processo também  
produz uma nova situação, pois a realidade não é mais a mesma, tendo em vista que ambas as  
partes do processo se transformaram: o homem e a natureza, como afirmamos anteriormente.  
Ao realizar um processo de trabalho, o homem adquire novos conhecimentos e habilidades,  
assim, além de construir uma realidade objetiva, também se constrói enquanto indivíduo.  
Com isso podemos perceber a determinação do processo de trabalho para o  
desenvolvimento da história, ao possuir um caráter contínuo de transformação que produz  
novas necessidades e possibilidades, resultantes em novos processos de trabalho, que, como  
podemos perceber, são compostos por prévias ideações e objetivações. Por meio do trabalho, o  
homem aprimora habilidades e constrói conhecimentos que vão além daqueles que se encerram  
no produto final, o que permitiu o desenvolvimento de conhecimentos científicos, artísticos,  
Libertas, Juiz de Fora, v. 25, n. 1, p. 388-412, jan./jun. 2025. ISSN 1980-8518  
Educação e trabalho: considerações sobre o processo de formação humana  
filosóficos, dentre outros, que tornaram nossa sociedade mais sofisticada e complexa.  
Afirmar a centralidade ontológica do trabalho pressupõe considerar sua transcendência  
em relação ao sistema capitalista, isto é, afirmamos sua característica histórica que ultrapassa  
as diferentes formas de organização social. Reconhecer tal centralidade não inviabiliza a crítica  
de suas formas postas em modelos societários distintos ao longo da história, por ser justamente  
o contrário, já que o trabalho posto como categoria fundante do ser social é tido como o caminho  
para superação do trabalho abstrato. Desse fato deriva a importância de não os tomar como  
sinônimos, o que seria um engano caro à análise da realidade social e do objeto em questão.  
A busca pela satisfação de determinada necessidade representa o fio condutor do  
trabalho, contudo, ainda que tratemos da relação entre homem e natureza, são necessárias outras  
mediações, tais como: a educação, linguagem, sociabilidade, ciência, entre outras. O próprio  
desenvolvimento do pôr teleológico ressalta a importância do conhecimento crescente dos  
nexos causais presentes na realidade.  
Nesse sentido, Triginelli e Souza Junior (2017) demonstram que essa relação de dupla  
transformação (tanto do homem quanto da natureza), mediada pelo trabalho, faz com que a  
forma de vida e existência do homem possam ser alteradas, elevando esse ser social ao longo  
do desenvolvimento histórico. Portanto, para os autores, através do afastamento das barreiras  
naturais, a realidade se torna cada vez mais histórica, social e humana. Questão crucial para o  
processo de formação humana, tendo em vista que através das transformações postas pelo  
trabalho o homem faz a história.  
393  
Sobre a ação de “fazer história”, Marx e Engels (2007) apontam que o primeiro  
pressuposto para a existência humana é que os homens devem estar em condições de viver para  
poder executá-la. Logo, antes de tudo, precisam comer, beber, um lugar para morar, algo para  
vestir, dentre outras coisas. Daí resulta a importância da categoria trabalho — produção dos  
meios para satisfazer tais necessidades —, considerada o primeiro ato histórico.  
Lukács (2013) retoma o debate sobre o desenvolvimento da humanização do homem e  
consequente afastamento de sua barreira natural3 através da capacidade do homem produzir,  
através do trabalho, meios além do estritamente necessário para sua reprodução material e  
social. Para o autor, até os estágios mais primitivos representam um complexo de complexos, e  
exemplifica tal apontamento por outra determinação fundamental para o ser social: a  
linguagem. Dessa forma, refere-se ao tipo de pôr teleológico4 que não tem por finalidade a  
3
Para Lukács (2013), é possível falar apenas de um afastamento da barreira natural e nunca de seu  
desaparecimento.  
4 Lukács (1978) aponta que essas novas posições teleológicas possuem relação direta com a divisão do trabalho.  
Luiz Carlos de Souza Junior  
transformação da natureza, e sim, de um que possui o objetivo de levar outros homens a  
executarem outro pôr teleológico desejado.  
Portanto, se quisermos apreender a reprodução do ser social de modo  
ontologicamente correto, devemos, por um lado, ter em conta que o  
fundamento irrevogável é o homem em sua constituição biológica, em sua  
reprodução biológica; por outro lado, devemos ter sempre em mente que a  
reprodução se dá num entorno, cuja base é a natureza, a qual, contudo, é  
modificada crescentemente pelo trabalho, pela atividade humana; desse modo,  
também a sociedade, na qual o processo de reprodução do homem transcorre  
realmente, cada vez mais deixa de encontrar as condições de sua reprodução  
“prontas” na natureza, criando-as ela própria através da práxis social humana.  
(Lukács, 2013, p. 171).  
Cabe ressaltar que, para Triginelli e Souza Junior (2017), o desenvolvimento dessas  
outras categorias (inteiramente sociais) fundamentais ao ser, como a linguagem, são necessárias  
à estruturação da vida social produtiva e mantém a prioridade ontológica do trabalho.  
Maceno (2019) destaca a importância da linguagem, pois, ao tratar o trabalho como um  
ato consciente, observa a necessidade de os homens estabelecerem formas de se comunicarem  
entre si. Em outras palavras, a linguagem representa mais uma das habilidades desenvolvidas a  
partir do trabalho — considerando-o enquanto uma atividade que prescinde da cooperação entre  
os homens —, possível de realizar-se à medida que estes passaram a nomear o mundo a sua  
volta e transmitiram entre seus pares, ao longo das gerações, o conhecimento acumulado (tanto  
através da linguagem oral quanto da escrita).  
394  
Contudo, além da linguagem, Maceno (2019) atribui tal característica também aos  
germes do conhecimento científico, tendo em vista que os homens precisam realizar uma  
reflexão prévia da realidade e conhecer os meios necessários para a transformação da natureza.  
Essa necessidade de conhecimento científico permite que, processualmente, o homem conheça  
o mundo à sua volta e desenvolva a capacidade de ampliá-lo e de generalizar conteúdos  
aplicáveis para resolução de outras situações.  
Dessa maneira, podemos perceber que no processo de reprodução da vida material, o  
homem desenvolve sua capacidade valorativa e formas de agir para além do ato de trabalhar,  
fato que impulsiona historicamente o desenrolar de diferentes modelos societários. Tendo em  
vista que o afastamento crescente das barreiras naturais resulta numa diminuição do tempo de  
trabalho socialmente necessário para reprodução da vida material, o que, por sua vez, permite  
desenvolver outros complexos sociais, além do intercâmbio com a natureza.  
Ao exemplificar ainda mais a especificidade do ser social, Lukács (2013) destaca o  
complexo de atividades denominado como educação, que consiste em capacitar os homens a  
reagir adequadamente aos acontecimentos e situações novas que ocorram em sua vida. Assim,  
Libertas, Juiz de Fora, v. 25, n. 1, p. 388-412, jan./jun. 2025. ISSN 1980-8518  
Educação e trabalho: considerações sobre o processo de formação humana  
representa um processo fulcral no que tange à reprodução das relações sociais e, em sentido  
amplo, permite considerar que a educação do homem nunca estará realmente concluída.  
Segundo Lukács (2013), “[...] a problemática da educação remete ao problema sobre o  
qual ela está fundada: sua essência consiste em influenciar os homens no sentido de reagirem a  
novas alternativas de vida do modo socialmente intencionado” (Lukács, 2013, p. 178). Logo, o  
desenvolvimento dos pores teleológicos do ser social e dos processos educacionais contribui  
diretamente para um aperfeiçoamento e divisão do trabalho, que nesse estágio não é apenas  
técnica, mas também social.  
Para Masson (2016), ao tratarmos a educação enquanto práxis social, devemos  
considerar que esta possui uma relação de dependência ontológica5 e de relativa autonomia em  
relação ao trabalho. Nesse caso, há uma dependência ontológica, pois o trabalho — enquanto  
categoria ontológica — é a raiz do surgimento de outras dimensões da vida humana. E é possível  
verificar uma relativa autonomia pelo fato de a educação não ser uma emanação direta do  
trabalho, o que não representa nem inferioridade, nem superioridade a ele.  
Por causa disso, é importante pontuarmos algumas considerações conceituais sobre a  
categoria trabalho. Masson (2016) resgata o pensamento de Marx ao afirmar que ele abordou o  
trabalho enquanto categoria antes de analisá-lo na sociedade capitalista, questão aprofundada  
posteriormente na obra de Lukács.  
395  
Posto isto, observamos que, em suma, a satisfação de uma determinada necessidade  
exige do homem um movimento baseado em sua capacidade teleológica. Porém, ainda que seja  
uma ação abstrata, não devemos afirmar que é algo que emerge espontaneamente da consciência  
humana, tendo em vista haver uma intrínseca relação entre teleologia e causalidade. De uma  
forma mais simples, a abstração da qual tanto nos referimos parte do real, do concreto.  
A importância do conhecimento reside na possibilidade de escolha entre as diferentes  
alternativas de execução de um pôr teleológico. Além do conhecimento prévio da natureza e, a  
partir deste, o homem necessita, por exemplo, de conhecimento para produção de ferramentas  
e melhores meios que o auxiliarão no ato de sua objetivação. Sendo posta aí uma articulação  
entre liberdade (não em seu sentido abstrato) e necessidade no ato da produção das condições  
materiais de reprodução da vida humana6.  
5 Sobre a questão da dependência ontológica, Rossi (2018) destaca que está relacionada à maneira como a educação  
é vinculada com o determinado tipo de trabalho em uma forma de sociedade específica, sendo assim, responsável  
pela transmissão de conhecimentos, valores, habilidades, entre outros, necessários para sua reprodução. O autor  
utiliza como exemplo a sociedade feudal, demonstrando como o complexo educacional era responsável por moldar  
e manter a relação de suserania e vassalagem.  
6
À medida que o homem trabalha e submete a natureza às suas necessidades, amplia-se o leque de alternativas  
postas a este homem. A liberdade apenas pode se expressar a partir deste processo. Quanto maior for o universo  
Luiz Carlos de Souza Junior  
À vista disso, a relação entre homem e natureza possui em si um caráter formativo, pois,  
através dela, o homem constrói as possibilidades de desenvolver-se enquanto gênero. Conforme  
afirmamos anteriormente, nesse primeiro momento tratamos a educação pelo seu sentido  
ontológico, o que, nesse caso, significa afirmar que, em termos práticos, não se trata de trabalho,  
tendo em vista que não se coloca diretamente numa relação de transformação da natureza.  
Porém, a educação tem como função a transformação da consciência de outros homens, sendo,  
portanto, considerada um pôr teleológico secundário.  
Falar sobre o caráter formativo do trabalho reafirma o pensamento de Saviani (2007) de  
que sua relação com a educação é de identidade, já que no ato da produção os homens  
educavam-se e também às gerações futuras. Por isso, o autor expõe a relação entre educação e  
trabalho a partir de seus fundamentos histórico-ontológicos. Históricos por tratar-se de um  
desenvolvimento ao longo do tempo e ontológicos por fazerem parte da construção do próprio  
ser da humanidade.  
Segundo Saviani (2007), nas comunidades primitivas a educação era identificada com  
a própria vida em si, em razão disso, a utilização da concepção de que “educação é vida”;  
afirmação posteriormente transformada por uma lógica de educar para a vida. A divisão do  
trabalho e, consequentemente, do homem em classes sociais também resulta na divisão da  
educação, expondo a necessidade de formas distintas de oferta à classe dominante e para a  
classe dominada, marcada principalmente pela cisão entre trabalho manual e trabalho  
intelectual.  
396  
Ontologicamente, a educação é a responsável pela generalização do conhecimento da  
humanidade, sendo uma atividade inerente às demais que compõem a sociabilidade. Assim,  
percebemos que, independentemente do modelo de organização social ao longo da história,  
tanto o trabalho quanto a educação estarão presentes.  
A objetivação, na educação, se dá pelo pôr do fim, a partir da relação entre  
teleologia e causalidade, gerando, pois, um processo de generalização de  
novos conhecimentos e habilidades para o conjunto da sociedade. Por isso, o  
conhecimento desenvolvido numa situação singular pode ser útil em  
diferentes circunstâncias e se tornar patrimônio da humanidade. Assim como  
o trabalho, toda práxis social cria, continuamente, o novo, tanto subjetiva  
quanto objetivamente, o qual deve ser generalizado para preservar e  
aperfeiçoar a sociedade (Masson, 2016, p. 34).  
Se destacamos as potencialidades para o gênero humano presentes tanto ao nos  
referirmos ao trabalho quanto à educação, devemos pensá-las para além de seu sentido  
ontológico, através de suas respectivas implicações no âmbito da sociabilidade organizada sob  
de possibilidades, maior será a capacidade de o homem exercer sua liberdade.  
Libertas, Juiz de Fora, v. 25, n. 1, p. 388-412, jan./jun. 2025. ISSN 1980-8518  
Educação e trabalho: considerações sobre o processo de formação humana  
a égide da lógica burguesa. Assim, nos deparamos com uma das contradições relacionadas ao  
trabalho nessa perspectiva, já apontada por Marx (2010a) em seus Manuscritos Econômico-  
Filosóficos, ao afirmar o crescimento da pobreza do trabalhador diretamente relacionado ao  
aumento da riqueza que ele produz.  
Quer dizer, se num primeiro instante falamos sobre uma categoria ontológica de dupla  
transformação, onde ao produzir uma determinada mercadoria o homem produzia a si, tratamos  
nesse momento sobre um resultado de um pôr teleológico que se apresenta na condição de um  
ser estranho. Um estranhamento que não se limita apenas ao resultado, mas ao processo de  
trabalho na totalidade.  
Examinamos o ato do estranhamento da atividade prática, o trabalho, sob dois  
aspectos. 1) A relação do trabalhador com o produto do trabalho como objeto  
estranho sobre ele. Esta relação é, ao mesmo tempo, a relação com o mundo  
exterior sensível, com os objetos da natureza como um mundo alheio que se  
lhe defronta hostilmente. 2) A relação do trabalho com ato da produção no  
interior do trabalho. Esta relação é a relação do trabalhador com a sua própria  
atividade como uma [atividade] estranha não pertencente a ele, a atividade  
como miséria, a força como impotência, a procriação como castração. A  
energia espiritual e física própria do trabalhador, a sua vida pessoal — pois o  
que é vida senão atividade — como uma atividade voltada contra ele mesmo,  
independente dele, não pertencente  
a
ele.  
O
estranhamento-de-si  
(Selbstentfremdung), tal qual acima, o estranhamento da coisa (Marx, 2010a,  
p. 83).  
397  
Tal estranhamento, segundo Marx (2010a) resulta no processo de redução da  
potencialidade do homem enquanto ser genérico, fazendo com que o trabalho represente um  
meio de vida para sua existência, em outros termos, a essência humana assume um caráter  
individual, em um movimento de estranhamento do homem pelo homem. Aspecto este,  
diretamente relacionado ao advento da propriedade privada.  
Darcoleto (2016) toma como base a produção de Mészáros para discutir acerca das  
contribuições do filósofo húngaro para a educação enquanto mediação7. Assim, de acordo com  
Darcoleto (2016), Mészáros concebe que o trabalho representa uma mediação com a natureza  
tida como de primeira ordem e, ao considerar o homem enquanto parte da natureza, coloca o  
trabalho como uma atividade automediadora. Diante disso, com o avanço histórico do controle  
do capital, este atinge uma característica de mediação de segunda ordem (contrária à anterior),  
tendo em vista que passa a representar uma atividade alienada e alienante.  
Para Mészáros (2016), a mediação de primeira ordem representa o fundamento  
7 Cabe mencionar que, ao tratarmos sobre a categoria mediação, concordamos com o debate proposto por Pontes  
(2016) quando se refere a essa como resultado das expressões históricas da relação entre homem e natureza e seus  
decorrentes. Ao longo do texto, tratamos aqui o trabalho enquanto a mediação central do processo de humanização  
do homem, afirmando sua importância tanto na relação entre homem e natureza quanto entre o homem e a  
sociedade.  
Luiz Carlos de Souza Junior  
ontológico da condição humana a partir da sua relação com a natureza e com o próprio ser  
humano, enquanto a mediação de segunda ordem pode ser interpretada como uma mediação  
dessa primeira, já que só pode existir tendo-a como base. Então, as mediações de segunda ordem  
subordinam a atividade produtiva essencial às determinações econômicas de determinado  
período, enfatizando o caráter da individualidade e reificação das relações sociais, colocando o  
trabalho, já em seu caráter assalariado, como propósito da autorreprodução humana em sentido  
físico. A atividade produtiva, que constitui fonte da consciência humana, é alienada quando  
desviada do seu caráter mediador da relação entre homem e natureza. Sendo o trabalho a  
condição de existência do homem, a superação da alienação passa necessariamente pela  
contraposição de sua manifestação em forma alienada, justificando a importância, para melhor  
compreensão, de separar o trabalho em seu sentido ontológico de sua determinação histórica.  
Conforme destacamos, temos como cerne da nossa discussão a afirmação do homem  
enquanto ser social. A partir disto, entendemos que a mediação, enquanto categoria ontológica,  
é constitutiva desse ser e das relações sociais, presente em qualquer sociedade. Nesse sentido,  
de acordo com Pontes (2016), a mediação pode ser vista também como um construto da razão  
na busca pela compreensão do movimento de determinado objeto.  
Apresentarmos essas ponderações sobre mediação no debate da educação nos auxilia na  
árdua tarefa de apreendermos suas raízes histórico-concretas, bem como sua constituição  
sistêmica. Por trazermos as questões da educação a partir de sua totalidade, entendemos que as  
medições são necessárias para a articulação de seu movimento dinâmico e contraditório, e, com  
isso, buscamos combater qualquer tipo de análise com caráter imediato e desistoricizado do  
tema.  
398  
Para Darcoleto (2016), as relações sociais no capital não possuem caráter de estabilidade  
e nem podem, já que estão direcionadas para a finalidade de máxima expropriação do  
trabalhador, numa busca crescente de lucro e manutenção da ordem sociometabólica do sistema.  
Por isso, a redução do homem à sua individualidade está diretamente relacionada com a sua  
necessidade de sobrevivência e reprodução das personificações do capital e trabalho sob a  
lógica capitalista.  
A preponderância das mediações de segunda ordem em detrimento das  
medições de primeira ordem faz com que o ser humano se distancie cada vez  
mais da sua própria condição humana, privando-se do acesso aos produtos que  
ele mesmo produziu, em particular, e, especialmente e de modo mais amplo,  
das conquistas objetivas da humanidade. Desse modo, as relações que o  
homem estabelece, seja no seu trabalho e/ou nas suas relações com os seus  
semelhantes, tornam-se cada vez mais desprovidas de sentido para a sua vida.  
Em outras palavras: o homem é alienado do produto do seu trabalho e,  
portanto, de si. E estando ele alienado do produto do seu trabalho e também  
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Educação e trabalho: considerações sobre o processo de formação humana  
de si próprio, conforme Marx e Mészáros, o homem está alienado do gênero  
humano (Darcoleto, 2016, p. 99).  
Elencar o debate sobre o processo de estranhamento relacionado ao trabalho — não mais  
do ponto de vista ontológico e sim, enquanto trabalho abstrato — é importante, uma vez que,  
conforme afirma Schlesener (2016), a lógica presente nas relações econômicas também está  
presente nas demais instâncias da vida social. Sendo o conjunto dessas relações sociais a base  
para as construções das representações ideológicas responsáveis pela compreensão do homem  
de si e do mundo ao redor. Não por acaso, a autora questiona a importância de uma educação  
emancipadora para a formação de uma consciência crítica, o que obviamente perpassa pelo seu  
sentido formal e institucionalizado.  
Schlesener (2016) retoma o pensamento de Marx em sua crítica à filosofia hegeliana ao  
afirmar a necessidade de a filosofia partir do empírico, o que não significa uma representação  
do senso comum, mas sim de uma análise do conjunto das relações responsáveis pelo processo  
de produção e reprodução da vida material. Assim, segundo a autora, a teoria seria uma  
referência, ainda que provisória, para compreensão do real, com necessidade de reformulação  
constante, tendo em vista a própria dinâmica da realidade.  
Pensamento que nos auxilia no entendimento de abordarmos sobre a relação entre  
trabalho e educação, desde os aspectos mais gerais enquanto categorias (independente do  
modelo sócio-histórico) até a submissão destes à lógica do capital. Pois, a partir das relações  
inerentes ao cotidiano dos homens e seu processo de reprodução social, ocorre a construção do  
que estes pensam sobre si e o mundo ao redor. Se falamos que o pensamento parte do concreto,  
consideramos também que as representações ideológicas, perpetuadas em grande medida pela  
educação formal, estão intimamente ligadas à organização do trabalho nessa sociedade.  
Ao aprofundarmos essa relação percebemos que a divisão do trabalho, conduzida pela  
crescente racionalização do capital traz consigo um processo de fragmentação técnica e  
científica — exemplificada pela separação do conhecimento em áreas cada vez mais específicas  
— que resulta numa barreira ainda maior para compreensão da realidade social, principalmente  
pelo viés da totalidade. Atualmente, a organização do processo de trabalho exige, simultânea e  
contraditoriamente, polivalência e especialização (cada vez mais detalhada), gerando impacto  
considerável no modelo de educação formal.  
399  
Nessa direção, Schlesener (2016) pauta sua discussão sobre a educação a partir de  
fundamentos importantes para construção argumentativa que pretendemos elaborar, sendo  
estes: a educação é realizada em todas as esferas da vida, sendo a de caráter formal um destes;  
em diferentes modelos societários, a educação formal cumpre determinados objetivos, o que  
Luiz Carlos de Souza Junior  
atualmente estão direcionados a formação para o mercado de trabalho; e, por fim, esse modelo  
de educação também é permeado pelas contradições inerentes à organização social vigente.  
Assim, a autora resgata o pensamento de Lukács para pensar em estratégias diante desse  
contexto, principalmente numa tentativa de debater acerca das possibilidades de efetivação de  
uma educação crítica, relacionada ao conceito de emancipação e pleno desenvolvimento  
individual e coletivo do gênero humano. O que é atravessado pela superação de uma  
racionalização formal — própria do sistema capitalista — que gera a chamada reificação8. De  
acordo com Schlesener (2016), Lukács considera que a racionalização formal presente na  
estrutura social do capitalismo vai além da organização do trabalho na indústria e se estende à  
estrutura do Direito, do Estado e da Administração em geral. Fato que representa uma  
objetivação burocrática da realidade econômica que, por sua vez, necessita de uma determinada  
formação de consciência e subjetividade para sua manutenção.  
Da perspectiva de Lukács, pensar na relação entre educação e emancipação  
significaria começar basicamente pela crítica da ciência completamente  
reificada. Uma crítica a ser estendida ao contexto social e político, visto que  
o conhecimento positivo, completamente envolvido na reprodução do sistema,  
não tem condições de fazer a crítica à sociedade capitalista (Schlesener, 2016,  
p. 60).  
Tal citação corrobora com Lin e Schlesener (2016), que, ao retomarem as proposições  
de Marx e Engels e relacionarem com a temática da educação9, afirmam que no contexto do  
capital, a ciência passa a representar um instrumento de poder, sendo mais uma das estratégias  
de expropriação da classe trabalhadora. Ou seja, as instituições que compõem o modelo formal  
de educação consolidam as bases do modo de produção capitalista.  
400  
Portanto, a educação representa uma das determinações que fazem parte da engrenagem  
necessária ao bom funcionamento da sociedade de classes, já que, sua própria organização no  
âmbito das instituições formais, privam o homem da compreensão plena do seu processo  
criativo e de sua intencionalidade na práxis cotidiana. Em suma, atinge diretamente o  
desenvolvimento da capacidade valorativa, já que o indivíduo é condicionado para exercer  
determinada função na sociedade de classes, que tem como base a divisão social do trabalho.  
Dessa maneira, Lin e Schlesener (2016) destacam que a ciência não representa um fim  
8 Lukács (2016), ao abordar sobre a reificação no sistema capitalista, recorre ao caráter enigmático da mercadoria,  
onde a relação entre homens dá lugar a uma “objetividade fantasmagórica” de uma relação entre coisas, ocultando  
a essência fundamental no âmbito da produção. O homem confronta o resultado de seu trabalho e enxerga algo  
independente dele, e tal estranhamento passa tanto pelo aspecto objetivo quanto pelo subjetivo. Assim, podemos  
observar como a universalidade da forma mercantil se concretiza a partir da abstração do trabalho humano.  
9 Lin e Schlesener (2016) consideram que, apesar de a educação não ter sido um tema desenvolvido por Marx num  
texto específico, é possível encontrá-la como pano de fundo em sua obra. Tendo em vista que a crítica à estrutura  
do capitalismo e a proposição de uma nova ordem social exigem uma necessária transformação da sociedade e da  
subjetividade dos sujeitos.  
Libertas, Juiz de Fora, v. 25, n. 1, p. 388-412, jan./jun. 2025. ISSN 1980-8518  
Educação e trabalho: considerações sobre o processo de formação humana  
em si e que a educação está presente nas diferentes esferas responsáveis pela condição de vida  
dos trabalhadores. Assim, no âmbito da educação formal, as autoras enxergam duas  
possibilidades, sendo a primeira uma perspectiva de negação do gênero humano relacionada à  
prática alienante instituída pela lógica da gerência científica. Já a segunda, um viés direcionado  
à emancipação, com um significado limitado no âmbito formal, mas ainda sim com um  
potencial inovador no sentido de formação e organização política do movimento dos  
trabalhadores, com a elaboração de uma práxis revolucionária.  
A questão da educação é instigante, principalmente porque implica explicitar  
as contradições vigentes no contexto do capitalismo, a fim de propor  
transformações radicais. Nesse contexto, a escola desempenha uma função  
limitada, embora tenha sido chamada, ao longo dos anos, a exercer uma  
atividade questionadora e inovadora para as classes trabalhadoras. Sua ação  
pode ter um significado inovador se combinada com outras formas de  
formação nascidas da organização política do movimento dos trabalhadores.  
De outra forma, continuará cumprindo a função para a qual foi criada: adaptar  
os indivíduos à ordem social vigente, formando-os para o trabalho e  
disciplinando-os para a vida social. (Lin; Schlesener, 2016, p. 90).  
Para Mészáros (2008), os processos educacionais e os processos sociais mais  
abrangentes estão intimamente ligados, ou seja, a educação está posta como instrumento de  
reprodução da ideologia dominante. Sendo assim, uma discussão sobre a reformulação dos  
processos educacionais é inconcebível, sem que antes ocorra uma transformação significativa  
nos processos sociais, fazendo com que as práticas educacionais cumpram um papel  
fundamental de mudança.  
401  
Os modelos antigos de educação pregavam a ideia de que as medidas educacionais de  
reforma fossem efetuadas apenas para remediar alguns efeitos gerados sobre a ordem  
reprodutiva capitalista, porém, sem alterar seus princípios fundamentais. Assim, vê-se que  
limitar as alterações no campo educacional a medidas corretivas significa abandonar seu  
objetivo de mudança.  
Limitar uma mudança educacional radical às margens corretivas interesseiras  
do capital significa abandonar de uma só vez, conscientemente ou não, o  
objetivo de uma transformação social qualitativa. Do mesmo modo, contudo,  
procurar margens de reforma sistêmica na própria estrutura do sistema do  
capital é uma contradição em termos. É por isso que é necessário romper com  
a lógica do capital se quisermos contemplar a criação de uma alternativa  
educacional significativamente diferente (Mészáros, 2008, p. 27).  
O modelo de educação institucionalizada, especialmente nos últimos 150 anos, serviu  
não apenas ao propósito de fornecer os conhecimentos e o pessoal necessário ao modelo  
produtivo de expansão do capital, mas também para transmitir uma ideologia que legitima os  
interesses das classes dominantes. Seja de maneira “internalizada”, através dos indivíduos  
Luiz Carlos de Souza Junior  
devidamente educados e aceitos, ou via uma dominação estrutural e uma subordinação  
hierárquica e implacavelmente imposta.  
De acordo com Antunes (2012), Mészáros entende que a educação em seu caráter  
formal, ou como afirmamos acima, institucionalizada, é apenas uma parte naquilo que  
corresponde ao processo de internalização. Tendo em vista que, além do período de inserção  
em instituições formais de educação, a dominação ideológica perdura ao longo de toda a vida  
dos indivíduos. Por conseguinte, observa-se que a educação formal não representa a força  
ideológica principal (embora fundamental) que consolida o capitalismo, e, ao mesmo tempo,  
não possui a capacidade, por si só, de fornecer uma alternativa radical de caráter emancipador.  
Em contrapartida, ainda com os limites expostos, não devemos desconsiderar que a  
educação também pode ser compreendida através do seu viés emancipatório, defendido por  
Mészáros (2008) como uma forma de “contrainternalização”. Portanto, vê-se o conhecimento  
como fundamental e necessário para transformar a realidade social de maneira efetiva, para  
além de uma mudança política, em busca da emancipação humana em sentido pleno.  
Nessa orientação, Antunes (2012) resgata as preposições de Mészáros, de que não se  
deve negar a educação formal, já que, como apontamos, há um potencial não-alienado presente  
mesmo nas instituições que refletem uma forma alienada, mas, é preciso que essa capacidade  
emancipadora seja demonstrada praticamente e não por premissas abstratas.  
402  
Em Mészáros, então, não se trata de simplesmente abolir as instituições  
formais de ensino e esperar daí qualquer superação dos complexos e  
abrangentes problemas da autoalienação humana. Tampouco se resolve esse  
problema pela via reformista [...] (Antunes, 2012, p. 87).  
Ao basear sua argumentação a partir da obra de Mészáros, Antunes (2012) entende que  
atribuir a responsabilidade pela emancipação humana — posta como superação positiva da  
autoalienação — a qualquer esfera da práxis social de maneira isolada, dentre elas a educação  
formal, não deixa de ser uma forma de idealismo. Então, ao pensarmos num processo de  
transformação qualitativa, é necessário que se articule a busca pela universalização da educação  
com a luta pela universalização do trabalho (enquanto atividade humana autorrealizadora), o  
que de fato representaria possibilidade de superação do caráter alienante.  
Para Mészáros, exatamente em virtude dessas apreensões, um projeto  
educacional emancipatório, se intenta algum êxito concreto, alguma  
materialidade transformadora, tem necessariamente de estar articulado a um  
projeto societal revolucionário, e ainda, além disso, necessita do próprio  
processo de transformação em curso, tanto porque é a própria situação social  
cambiante que necessariamente ajusta, adéqua, redefine, conforma o próprio  
projeto educacional, quanto porque é tão somente por meio da educação que  
se torna possível transformar em “força operativa efetiva” aqueles  
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Educação e trabalho: considerações sobre o processo de formação humana  
inicialmente “apenas princípios e valores orientadores genéricos” (Antunes,  
2012, p. 123).  
Cabe ressaltar que, de acordo com Marx (2012), defender a universalização de uma  
educação popular não é o mesmo que incumbir ao Estado o papel de educador do povo. Para  
ele, o Estado deveria ser educado e rigorosamente, pois, uma coisa é atribuí-lo à tarefa da  
definição de recursos, capacitação dos docentes, fiscalização, etc., outra é defini-lo enquanto  
educador. “Educação popular igual? O que se entende por essas palavras? Crê-se que na  
sociedade atual (e apenas ela está em questão aqui) a educação possa ser igual para todas as  
classes?” (Marx, 2012, p. 45).  
Isto é, Marx (2012) questiona como o Estado seria responsável por educar da mesma  
maneira classes sociais distintas, tendo em vista a necessidade de um tipo de formação diferente  
para cada uma delas em prol da manutenção da ordem burguesa. Ainda ressalta que defender a  
utilização de impostos para os custos de uma formação “gratuita” é diferente de propor uma  
educação universal. Para Marx (2012), nem o Estado e nem a Igreja devem exercer influência  
na educação.  
Diante da crítica de Marx ao Programa de Gotha acerca da Educação, dois  
aspectos são essenciais. O primeiro diz respeito à necessidade de o  
proletariado reconhecer que o Estado não irá propor algo que vá contra ele  
mesmo e que seus interesses representam os interesses dominantes. Com isso,  
a Educação, dentre outros fatores, precisa conduzir o proletariado para a  
conscientização de sua classe, de modo a reconhecer e não aceitar as  
imposições da classe dominante. O segundo aspecto refere-se à mudança  
estrutural e revolucionária. É que a transformação da sociedade só será  
efetivada com a mudança no modo de produção das relações entre os  
trabalhadores e, sobretudo, com a abolição da propriedade privada. A  
Educação nesse cenário está imersa no trabalho, para possibilitar aos  
trabalhadores a união dos ideais rumo à sociedade comunista (Lin; Schlesener,  
p. 80, 2016).  
403  
De maneira mais enfática, Maceno (2019) aponta que, se pensamos a universalização  
da educação no sentido de acesso igualitário ao patrimônio cultural construído historicamente,  
devemos descartá-la na sociedade de classes. Assim como explicitado nos parágrafos acima,  
ainda que se amplie o acesso à educação, na sociedade capitalista os indivíduos têm acessos  
variados ao conteúdo, já que nem todos devem ter a mesma educação. Questão que, no âmbito  
da sociedade de classes, não é contraditória, mas sim necessária para sua reprodução social.  
“As ideias da classe dominante são, em cada época, as ideias dominantes, isto é, a classe  
que é a força material dominante da sociedade é, ao mesmo tempo, sua força espiritual  
dominante” (Marx; Engels, 2007, p. 47). A partir desse trecho retirado da obra A Ideologia  
Alemã, Marx e Engels (2007) nos auxiliam a compreender como a relação de exploração do  
trabalho vai além da esfera da produção. No texto em questão buscamos problematizar esse  
Luiz Carlos de Souza Junior  
apontamento a partir de um debate acerca do processo da formação humana.  
De acordo com Albinati (2012), a escola, posta como instituição mediadora, reflete em  
seu interior a complexificação da divisão do trabalho, relações de classes e alienações inerentes  
à lógica do capital. Portanto, o que está em jogo é a possibilidade de o indivíduo transcender  
sua particularidade e não reduzir sua capacidade de conhecimento apenas a um aprendizado  
teórico. Contudo, é fundamental reconhecer os limites da educação formal, para que não se  
atribua à escola o papel de resolver as expressões da questão social na contemporaneidade.  
Ao considerarmos o homem como um ser social, afirmamos aqui sua capacidade de  
construir a história, entretanto, isso não pode ser realizado de maneira fortuita, tendo em vista  
que ele depende das condições materiais objetivas postas pelo seu período histórico.  
Em Sobre a Questão Judaica, Marx (2010b) estabelece a diferenciação entre  
emancipação política e emancipação humana10, pois se trata de uma definição de direitos que  
garante o egoísmo do homem, como indivíduo membro da sociedade civil. Destaca que a  
liberdade alcançada pelas revoluções burguesas é a liberdade pela propriedade privada, o que  
não modifica as particularidades da desigualdade social. Questão que também aparece nos  
Manuscritos Econômico-Filosóficos quando Marx (2010a) afirma que a emancipação no  
âmbito da sociedade da propriedade privada se manifesta pelo viés da emancipação política.  
Contudo, esta representa apenas modificação no que tange ao caráter da servidão, tendo em  
vista que não altera estruturalmente a condição da opressão humana, posta justamente na  
relação do trabalhador com a sua produção.  
404  
Consequentemente, concordamos com Mészáros (2016) que a questão da educação não  
será resolvida apenas por meio de transformações políticas em seu aspecto formal, pois a crise  
da educação reflete uma crise que é estrutural. É preciso combater um modelo de educação  
voltado para uma formação que capacite apenas para o gerenciamento da economia e a  
construção de quadros para o controle político.  
Sob tal aspecto, pensar numa educação em sentido amplo significa buscar um processo  
de formação humana continuada que rompa definitivamente com os valores de uma “falsa  
consciência”, postos por uma sociedade pautada no viés da propriedade privada dos meios de  
produção. Tratamos aqui sobre a importância da construção de outra sociedade, que pressupõe  
o trabalho com real possibilidade de formar uma nova concepção do gênero humano e,  
consequentemente, de educação. Abordamos sobre a educação a partir de duas possibilidades  
postas: uma direcionada à negação do gênero humano através de seu caráter alienante e outra  
10 Para Marx (2010b), a emancipação plena só será possível quando o homem se tornar um ser genérico, reconhecer  
e organizar suas próprias forças como sociais, de modo a não a separar de si como força política.  
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Educação e trabalho: considerações sobre o processo de formação humana  
com o viés direcionado à sua emancipação, em direção ao reino da liberdade.  
O trabalho na sociedade burguesa e os impactos para o processo educativo  
do trabalhador  
Se objetivamos aqui apontar algumas possibilidades para que a educação, enquanto uma  
das determinações da reprodução da vida social dos homens, possa contribuir para o  
desenvolvimento crítico em sentido pleno, devemos pensar num processo formativo  
intimamente relacionado à práxis humana. Questão que carrega uma obviedade, mas que, para  
além da questão semântica, está carregada de sentido histórico.  
Ao buscarmos alicerce na teoria marxista, nos colocamos numa posição contrária ao  
idealismo, pois compartilhamos o entendimento de que a consciência humana se desenvolve a  
partir da realidade, e não o inverso. O pensamento e a produção do conhecimento partem da  
práxis cotidiana, desse fato deriva o caráter fulcral do seu desvelamento. Dessa forma, podemos  
perceber como a teoria, ainda que permeada de contradições, fundamenta as ações sobre a  
realidade, e ambas são dinâmicas e mutáveis.  
Compreender as condições sociais e históricas presentes no processo de produção da  
vida material faz com que o homem consiga visualizar sua relação com a natureza mediante  
novas possibilidades. A superação das condições postas na sociedade capitalista e acirramento  
da divisão social do trabalho carregam o potencial de dar luz a uma produção de conhecimento  
além do seu caráter formativo direcionado ao trabalho, como, por exemplo, a utilização do  
tempo livre para o desenvolvimento artístico; o que representaria a superação do caráter  
formativo do trabalho voltado apenas para execução de determinado ofício.  
405  
Insta mencionar que tratamos também aqui a educação pela sua condição indissociável  
à vida na totalidade, e não necessariamente ligada às instituições. Logo, o conhecimento não  
pode ser considerado um fim em si, e a superação da sociedade de classes mostra um horizonte  
que rompa a barreira entre trabalho intelectual e manual, que seja oposta ao modelo atual de  
fragmentação do conhecimento.  
A possibilidade de construção de uma práxis revolucionária gesta as reais condições de  
um processo formativo voltado realmente para o enriquecimento do gênero humano. O que  
exige um movimento que inclui uma formação política capaz de desvelar as amarras inerentes  
ao modelo educacional sob a ótica do capital, que, como salientamos, atua numa clara  
perspectiva disciplinar e de adaptação à ordem social vigente.  
Dessa forma, cabe ressaltar que, concordamos com Darcoleto (2016), na afirmação de  
que a educação representa uma mediação indispensável para a continuidade da humanidade, já  
Luiz Carlos de Souza Junior  
que é crucial para a construção da subjetividade através da relação entre indivíduo e gênero  
humano (assim como a arte, a política, a ciência, etc.). Tal relação faz com que cada indivíduo  
seja único, ainda que tenha acesso ao mesmo tipo de conhecimento de outros sujeitos.  
Contudo, nos questionamos novamente sobre como e, principalmente, para que os  
indivíduos estão sendo formados na contemporaneidade e como a educação está presente nesse  
processo. O modelo educacional atual faz com que muitas das vezes os sujeitos se  
responsabilizem por não alcançarem a mobilidade social pretendida e, supostamente,  
estimulada. As condições objetivo-materiais dão cada vez mais lugar ao discurso do esforço  
individual.  
Daí reside a importância de debatermos sobre a real possibilidade de universalização da  
educação no capitalismo, o que, pela sua própria configuração, é inviável. Contudo, a educação  
traz consigo um movimento contraditório, que ao buscar compreender a sociedade aponta que  
o modelo vigente pode ser superado.  
É muito comum na discussão acadêmica e/ou política atribuir à educação  
tarefas hercúleas como: dar conta das desigualdades sociais, promover a  
construção de uma “cidadania crítica”, ser “humanizadora”, e vários outros  
rótulos. Há também outra perspectiva, por existirem posturas que  
desvalorizam a educação e acreditam que ela nada pode no tocante à  
transformação social. Na contramão dessas duas linhas de raciocínio,  
entendemos que o correto equacionamento da educação passa pelo  
entendimento — a partir da ontologia marxiana — da sua dependência  
ontológica, autonomia relativa e determinação recíproca para com o trabalho  
(Rossi, 2018, p. 41).  
406  
Na citação acima, Rossi (2018) sinaliza alguns dos dilemas relacionados ao debate sobre  
educação, que, em maioria, levam a uma postura de transformação da sociedade, por si só e  
descolada dos outros complexos sociais, ou a um caráter pessimista que necessariamente leva  
ao conformismo e manutenção da ordem.  
Sobre a consideração do autor acerca da articulação entre educação e trabalho, citamos  
anteriormente que a dependência ontológica está relacionada ao fato do desenvolvimento da  
educação ser vinculado aos atos do trabalho ao longo do processo histórico, tendo-o como  
categoria fundante do ser social e necessária para existência humana. Logo, não poderíamos  
estar aqui falando sobre educação se não houvesse o trabalho.  
A autonomia relativa corresponde à expansão do conhecimento, em suas diferentes  
áreas, através da sua relação com outros complexos sociais mediados por teleologias  
secundárias11, como, por exemplo, as especificidades cada vez mais fragmentadas na ciência e  
11 Ao considerar o trabalho a partir de seu caráter teleológico (que demanda um conhecimento concreto), Lukács  
(1978) ressalta que seu desenvolvimento é uma característica ontológica, portanto, ao longo da história observa-  
Libertas, Juiz de Fora, v. 25, n. 1, p. 388-412, jan./jun. 2025. ISSN 1980-8518  
Educação e trabalho: considerações sobre o processo de formação humana  
distantes do ato originário do ser social. Já a determinação recíproca faz referência às múltiplas  
influências que o trabalho e a educação estabelecem entre si, aqui falamos das formas  
estabelecidas entre a humanidade e a natureza e dela entre si.  
Conforme o raciocínio posto até aqui, a forma de estruturação do trabalho sob a égide  
do capital age diretamente sobre a organização dos demais complexos sociais, não sendo a  
educação diferente. Portanto, entendemos haver limites claros ao nos referirmos ao seu  
potencial “humanizador” de maneira isolada, contudo, como as próprias contradições da  
dinâmica dessa sociedade permitem, possibilita-se desenvolver ações para além de posturas  
fatalistas.  
[...] até o estágio mais primitivo do ser social representa um complexo de  
complexos, onde se estabelecem ininterruptamente interações, tanto dos  
complexos parciais entre si quanto do complexo total com suas partes. Apartir  
dessas interações se desdobra o processo de reprodução do respectivo  
complexo total, e isso de tal modo que os complexos parciais, por serem —  
ainda que apenas relativamente — autônomos, também se reproduzem, mas  
em todos esses processos a reprodução da respectiva totalidade compõe o  
momento predominante nesse sistema múltiplo de interações (Lukács, 2013,  
p. 162).  
Enquanto categoria ontológica, destacamos a educação como o complexo social  
responsável pela transmissão do conhecimento produzido pelo homem, contudo, na  
contemporaneidade e em sentido subjetivo, o que podemos considerar como uma educação de  
qualidade? Se pensarmos os complexos sociais a partir da função estabelecida na estrutura  
organizacional do trabalho, vemos que os apontamentos anteriores nos levam à conclusão de  
que na ordem do capital a educação está direcionada à formação que perpetue essa lógica.  
Portanto, uma educação de qualidade seria aquela direcionada para uma formação de adequação  
e reprodução desse sistema.  
407  
Dessa maneira, percebemos que no capitalismo não é necessário, muito menos  
interessante, que o acesso ao patrimônio cultural da humanidade seja universal. Posto que as  
classes sociais demandam acúmulo de conhecimentos diversos, que garantam a reprodução de  
um modo de vida cada vez mais intenso no que tange à exploração do homem sobre o homem,  
em prol do lucro e acumulação da propriedade privada.  
Considerações finais  
Tendo em conta o exposto até aqui, observamos que uma perspectiva de educação  
se a separação (sempre relativa) entre conhecimento, finalidades e meios no trabalho concreto. Percebemos o  
quanto algumas áreas da ciência desenvolveram-se ao ponto de representarem campos autônomos de  
conhecimento, sem perderem influência sobre as finalidades e os meios para efetivação do trabalho.  
Luiz Carlos de Souza Junior  
voltada para um viés revolucionário não deve ser limitada simplesmente à ampliação da  
transmissão de conhecimento, mas, principalmente, à construção de formas de apreensão crítica  
deste. Nesse sentido, concordamos com o pensamento de Rossi (2018), pois, ainda que  
tenhamos limites no âmbito da educação institucionalizada, é possível a construção de uma  
práxis educativa articulada com os interesses da classe trabalhadora.  
Devemos ressaltar que a emancipação humana (mesmo que inviável em uma sociedade  
capitalista) deve ser um norte para essa prática, para não limitarmos essa proposta a um caráter  
reformista e de aperfeiçoamento dos conceitos de cidadania e democracia, inerentes à  
emancipação política burguesa. Pois, nenhuma reforma nesse sentido propõe a resolução da  
relação ontológica entre divisão social do trabalho e o caráter desigual de acesso à educação em  
sentido amplo.  
De acordo com Maceno (2019), se considerarmos a universalização da educação formal  
apenas na esfera do direito e de sua execução enquanto política pública, veremos que, ainda  
que seja realizada, permanecerá na esfera do capital. Mas ainda assim, na organização estrutural  
da nossa sociedade, quem tem acesso à educação formal (em seus diferentes níveis) tem mais  
possibilidades de se apropriar do acúmulo cultural produzido pelo gênero humano, mesmo que  
não seja de maneira igualitária.  
Com a ampliação da crise estrutural do capital e acirramento de suas contradições  
fundamentais, o discurso da universalização da educação responde à necessidade de  
justificativa para a naturalização do cenário posto. Pois, a formação passa a estar diretamente  
relacionada à empregabilidade, na qual a ausência de qualificação dos indivíduos seria a causa  
para o crescente desemprego. Porém, ainda que possamos falar de uma ampliação quantitativa  
do acesso, não podemos dizer o mesmo de seu caráter qualitativo.  
408  
[...] quanto mais intensa a crise do capital, maior será a necessidade que ele  
tem de subsumir à sua reprodução todas as dimensões da vida social. O que  
significa que também a educação será posta, cada vez mais, a serviço dessa  
reprodução. Não apenas do ponto de vista da formação de força de trabalho  
adequada aos interesses do capital, mas também do ponto de vista ideológico,  
isto é, da formação de pessoas para as quais esta forma de sociabilidade seja  
o horizonte máximo possível. Daí a ênfase na formação para a cidadania e a  
democracia e na crença na possibilidade de aperfeiçoamento constante desta  
ordem social (Tonet, 2016, p. 187).  
Tonet (2016) expõe que, para além do acesso aos conteúdos tradicionais, é preciso que  
as classes trabalhadoras construam um conhecimento de caráter revolucionário. O que não  
implica diretamente numa politização das diferentes áreas da ciência, mas na possibilidade de  
compreensão dos objetos de estudo como parte do processo de construção da totalidade do ser  
social. Uma articulação entre a concepção de mundo de maneira mais geral com as  
Libertas, Juiz de Fora, v. 25, n. 1, p. 388-412, jan./jun. 2025. ISSN 1980-8518  
Educação e trabalho: considerações sobre o processo de formação humana  
especificidades do saber, que leva ao entendimento sobre a quem o conhecimento produzido  
está servindo.  
O desenvolvimento de práticas educativas emancipadoras nas instituições formais de  
educação não é uma tarefa fácil e muito menos simples. Para Tonet (2016), pensar em atividades  
desse tipo remete à ampliação do acesso ao patrimônio cultural produzido pela humanidade,  
contudo, não como algo feito por si só, mas tendo como base que a realidade social é um produto  
histórico e social. Conforme citamos anteriormente, é fundamental o entendimento de que os  
homens são produtores da história.  
Atividades dessa ordem são cruciais para uma formação que problematize a crise  
oriunda da lógica de reprodução do capital e suas contradições inerentes, que, relacionadas ao  
debate da educação, permitem vislumbrar sua função social, limites e possibilidades. Assim,  
falamos sobre uma formação que, para além da construção de uma crítica radical, forneça  
subsídios para além do campo teórico e leve para um processo de transformação radical.  
Não por acaso, ao longo de nossa exposição, buscamos destacar o cuidado de não  
atribuirmos à educação a tarefa de ser exclusivamente responsável pela transformação da  
sociedade. Entendemos que a articulação de algumas das categorias teóricas postas pela  
tradição marxista nos auxilia para pensarmos acerca da problemática da educação para além da  
armadilha do senso comum, defendida até mesmo por setores da esquerda, da luta por uma  
educação cidadã.  
409  
Consideramos que a construção da cidadania moderna não representa uma simples  
concessão das classes dominantes, mas resultado de muitas lutas da classe trabalhadora,  
portanto, possui aspectos positivos. Contudo, tal concepção está diretamente vinculada aos  
limites da emancipação política e não pode ser pensada como um objetivo final, pois, segundo  
Tonet (2016), no modelo de sociedade atual, é possível ser cidadão e continuar sendo explorado.  
Se pensarmos na essência da cidadania da maneira como está posta, podemos compreendê-la  
como parte da engrenagem necessária para a reprodução social da ordem burguesa, já que, ainda  
que aponte para uma forma de liberdade, o faz limitadamente.  
Em função disso, Tonet (2016) aponta alguns requisitos para o desenvolvimento de  
atividades educativas emancipadoras, e inicia pela necessidade de conhecimento do conceito  
de emancipação humana, para que, ainda que seja um ponto norteador das ações, não se resuma  
a horizonte posto apenas no plano do idealismo. Além disso, é crucial a apropriação do  
desenvolvimento histórico da humanidade, em especial, da lógica inerente à sociabilidade atual  
e da natureza da educação, para que esta não represente apenas um instrumento de reprodução.  
O autor destaca também a importância da apropriação cada vez mais intensa do que há de mais  
Luiz Carlos de Souza Junior  
avançado nas diferentes áreas do saber, bem como a articulação dessas atividades com as lutas  
desenvolvidas pelas classes subalternas.  
Como dissertamos até aqui, afirmar que não cabe exclusivamente à educação a  
responsabilidade de uma nova sociabilidade não desconsidera sua importância enquanto  
mediação para construção da luta pela emancipação humana, pois, apenas nesse  
direcionamento, pode ser extraído o melhor sentido da luta por direitos e práticas institucionais  
na contemporaneidade.  
A contribuição marxiana para a educação, que vislumbra a emancipação  
social, como se tentou demonstrar, se constitui de um programa que inclui  
dimensões importantes do cotidiano dos trabalhadores, como as experiências  
vividas no mundo do trabalho, as experiências de auto formação teórico-  
política da classe, mas também pela radicalização democrática do direito de  
acesso ao saber socialmente produzido. Essa perspectiva representa um  
paradigma fundamental para basilar as discussões atuais, nestes tempos em  
que tudo mudou e nada é novidade (Sousa Junior, 2010, p. 173).  
Diante do atual cenário de acirramento da crise inerente ao desenvolvimento predatório  
do capital, buscamos, para além de apontar os limites, trazer alguns dos apontamentos que  
possam contribuir ao debate que relaciona as possibilidades da construção direcionada ao  
interesse da classe trabalhadora. Nessa direção, Sousa Junior (2010) ressalta a importância da  
escola (aqui consideramos as instituições formais de ensino em todos os níveis) como um  
espaço importante para a socialização do conhecimento.  
410  
É sabido que a crise atual traz novos desafios às lutas sociais, uma vez que a  
precarização crescente relacionada ao trabalho coloca a disputa por direitos e garantia de  
políticas sociais como busca por “privilégios”, o que obviamente reflete na educação. A  
mundialização do capital e suas formas contemporâneas de organização estabelecem uma  
relação contraditória com o papel do Estado na garantia de uma educação pública, gratuita e de  
qualidade. Melhor dizendo, a luta pela democratização do ensino passa pelo debate do Estado  
enquanto principal financiador e pela dinâmica imposta pelos interesses dos mecanismos  
internacionais e instituições privadas.  
Tais reflexões nos levam ao acordo com o pensamento de Mészáros (2008) e Sousa  
Junior (2010) de que não há cisão pela busca de transformações sociais e transformações  
especificamente no âmbito da educação. Sendo que fazem parte de um único processo e não há  
possibilidade de sucesso se pensarmos nelas de maneira separada.  
A nossa época de crise estrutural global do capital é também uma época  
histórica de transição de uma ordem social existente para outra,  
qualitativamente diferente. Essas são as duas características fundamentais que  
definem o espaço histórico e social dentro do qual os grandes desafios para  
romper a lógica do capital e, ao mesmo tempo, também para elaborar planos  
Libertas, Juiz de Fora, v. 25, n. 1, p. 388-412, jan./jun. 2025. ISSN 1980-8518  
Educação e trabalho: considerações sobre o processo de formação humana  
estratégicos para uma educação que vá além do capital, devem se juntar.  
Portanto, a nossa tarefa educacional é, simultaneamente, a tarefa de uma  
transformação social ampla e emancipadora. Nenhuma das duas pode ser  
posta à frente da outra. Elas são inseparáveis. A transformação social  
emancipadora radical requerida é inconcebível sem uma concreta e ativa  
contribuição da educação no seu sentido amplo, tal como foi descrito neste  
texto. E vice-versa: a educação não pode funcionar suspensa no ar (Mészáros,  
2008, p. 76).  
Destarte, mesmo ao salientarmos algumas das contradições postas à educação formal,  
não podemos deixar de apontar que suas instituições ainda representam um lócus privilegiado  
para a classe trabalhadora ter acesso aos saberes fundamentais para sua formação. Bem como,  
a potencialidade, já exposta, de uma articulação mais próxima entre trabalho e educação, a fim  
de romper com a divisão entre atividades manuais e intelectuais.  
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412  
Libertas, Juiz de Fora, v. 25, n. 1, p. 388-412, jan./jun. 2025. ISSN 1980-8518  
As implicações da organização do trabalho para  
a interprofissionalidade na saúde mental  
Changes in work organization and their contributions to interprofessional  
work in healthcare  
Karina Faustino de Carvalho Tetéo*  
Edla Hoffmann**  
Resumo: Este artigo objetiva analisar como as  
transformações do mundo do trabalho  
influenciam na materialização do trabalho  
interprofissional na área da saúde, visto que, em  
seu processo de desenvolvimento, essa área é  
marcada pela forte influência do modo de  
produção capitalista. Apresenta resultados  
parciais de uma pesquisa de mestrado  
fundamentada no método dialético-crítico.  
Trata-se de um estudo de enfoque misto,  
contemplando uma abordagem quanti-  
qualitativa, desenvolvida a partir de uma ampla  
revisão bibliográfica e de pesquisa de campo  
através de entrevistas semiestruturadas. Os  
resultados apontam que grande parte dos  
dispositivos de saúde mental pesquisados se  
encontra pautada no trabalho multiprofissional,  
sem o exercício da interprofissionalidade, pois  
permanecem centrados em ações individuais,  
sem trocas e ações integradas entre os(as)  
profissionais. Tal conjuntura aponta para um  
Abstract: The aim of this article is to analyze  
how transformations in the world of work  
influence  
the  
materialization  
of  
interprofessional work in the healthcare sector,  
given that, in its development process, this area  
is marked by the strong influence of capitalist  
modes of production. It presents the partial  
results of a master's research based on the  
dialectical-critical method. It is a study with a  
mixed approach, including a quantitative and  
qualitative approach, developed from a wide-  
ranging literature review and field research  
using semi-structured interviews. The results  
show that a large part of the mental health  
facilities surveyed are based on multi-  
professional work, without the exercise of  
interprofessionality, as they remain centered on  
individual actions, without exchanges and  
integrated actions between professionals. This  
conjuncture points to  
a
complex and  
challenging scenario for the materialization of  
work, considering the absence of an organized,  
effective and resolutive health network, which  
guarantees continuous and articulated actions  
and services.  
cenário complexo  
e
desafiador para  
a
materialização do trabalho, considerando a  
ausência de uma rede de saúde organizada,  
efetiva e resolutiva, que garanta ações e serviços  
contínuos e articulados.  
Palavras-chaves:  
Interprofissionalidade;  
Keywords:  
Interprofessionality;  
Trabalho interprofissional; Saúde mental.  
Interprofessional work; Mental health.  
* Universidade Federal do Rio Grande do Norte. E-mail: karinafct@hotmail.com  
** Universidade Federal do Rio Grande do Norte. E-mail: edla.hoffmann@ufrn.br  
DOI: 10.34019/1980-8518.2025.v25.45835  
Esta obra está licenciada sob os termos  
Recebido em: 31/08/2024  
Aprovado em: 13/02/2025  
Karina Faustino de Carvalho Tetéo; Edla Hoffmann  
Introdução  
As particularidades da área da saúde reafirmam a necessária discussão sobre o trabalho  
interprofissional, considerando o intenso processo de especialização entre as categorias  
profissionais e abordagens no cuidado em saúde. Trata-se de uma área com intensos embates  
antagônicos, marcada por um modelo médico-assistencial focado na doença com relações  
centralizadas e verticalizadas e inserida em uma lógica neoliberal, que demarca o árduo  
processo da saúde como direito constitucional.  
Discutir o trabalho interprofissional e sua efetivação na área da saúde requer pensar a  
respeito do seu processo de desenvolvimento, pois essa área é fortemente marcada pelo modo  
de produção capitalista, expresso na divisão do saber, na intensa subdivisão das profissões, na  
tecnificação, na fragmentação das relações de trabalho e na perda da dimensão coletiva do  
trabalho, aspectos que mercantilizam a saúde e a tornam refém dos interesses do mercado. Esse  
cenário é produto das intensas transformações das condições e relações de trabalho, resultantes  
da implementação de um amplo processo de reestruturação do capital, que institui um novo  
regime de acumulação como resposta à crise do capital.  
Portanto, as transformações no modo de produção capitalista irão impulsionar os  
estudos sobre a interprofissionalidade, uma vez que a intensa especialização leva à  
concentração de aspectos restritos e dificulta a percepção de totalidade do indivíduo e do  
trabalho coletivo. Assim, a divisão social e técnica do trabalho, juntamente com a fragmentação  
da produção, levará também à fragmentação do conhecimento, o que evidencia a apropriação  
do capitalismo nos processos de trabalho, ao transformá-lo funcional às suas necessidades  
(Matos, 2013). Desse modo, a interprofissionalidade sozinha não é capaz de superar a  
fragmentação do saber, considerando o processo histórico das relações sociais da ordem  
burguesa, funcional à reprodução ampliada do capital e da produção de riqueza (Tonet, 2013).  
Este artigo objetiva analisar como as transformações do mundo do trabalho  
influenciam na materialização do trabalho interprofissional na área da saúde, tendo como foco  
a saúde mental. Para tanto, apresenta resultados parciais da pesquisa de mestrado intitulada O  
trabalho interprofissional na saúde mental: particularidade do município de Parnamirim/RN1,  
do Programa de Pós-graduação em Serviço Social da Universidade Federal do Rio Grande do  
Norte (UFRN), que analisou o trabalho desenvolvido nos serviços de saúde mental em um  
município2 do Rio Grande do Norte.  
414  
1 Esta pesquisa foi submetida ao Comitê de Ética e Pesquisa da UFRN/HUOL, sendo aprovada por meio do parecer  
consubstanciado n. 5.685.106.  
2
O município em questão compõe a região metropolitana de Natal/RN, com uma estimativa populacional de  
Libertas, Juiz de Fora, v. 25, n. 1, p. 413-438, jan./jun. 2025. ISSN 1980-8518  
As implicações da organização do trabalho para a interprofissionalidade na saúde mental  
A investigação teve seus fundamentos no método dialético-crítico, utilizando-se de uma  
abordagem de enfoque misto, contemplando uma pesquisa quanti-qualitativa (Prates, 2012).  
Foi desenvolvida por uma ampla revisão bibliográfica e pesquisa de campo, por meio de  
entrevistas semiestruturadas, seguindo um formulário contendo questões abertas e fechadas,  
pautado em conteúdos favoráveis à apreensão do objeto.  
O estudo contemplou uma amostra do tipo não probabilística intencional, composta por  
18 (dezoito) profissionais de categorias distintas3 (sendo três de cada serviço), que integram as  
equipes dos serviços de saúde mental da Rede de Atenção Psicossocial (RAPS) do município  
em questão, em todos os níveis de complexidade, sendo eles: CAPS AD III, CAPS II, CAPS  
infanto-juvenil, Consultório na Rua, Unidade de Pronto Atendimento e Equipe  
Multiprofissional de Atenção Especializada em Saúde Mental. A aproximação com os(as)  
participantes da pesquisa se deu através de contato prévio, primeiro com a direção de cada  
serviço, de modo a identificar os(as) profissionais de acordo com os critérios de inclusão e  
exclusão4. As entrevistas foram agendadas com os(as) participantes e realizadas de acordo com  
a disponibilidade deles(as), em seus locais de trabalho, em observância a um espaço que  
garantisse o sigilo e a privacidade e que proporcionasse maior interação entre a entrevistadora  
e os(as) entrevistados(as).  
Os dados derivados das entrevistas foram submetidos à técnica de Análise de Conteúdo,  
seguindo o processo organizativo que sugere as etapas de pré-análise, exploração do material,  
tratamento dos resultados obtidos e interpretação, conforme Bardin (2004). As falas foram  
categorizadas a partir da análise temática e frequencial.  
415  
Diante do exposto, este artigo está estruturado em quatro seções, sendo a primeira esta  
introdução; a segunda seção traz o debate sobre a categoria trabalho, com ênfase na divisão  
social e técnica do trabalho e suas incidências nos processos de trabalho na saúde; a terceira  
seção problematiza as particularidades da interprofissionalidade e os elementos importantes  
para a sua compreensão; a quarta trata das expressões do trabalho interprofissional na área da  
252.176 habitantes, sendo assim a 3ª cidade mais populosa do estado do Rio Grande do Norte, de acordo com o  
último censo do IBGE (2022).  
3 Dentre os quais: 01 gestora, 04 assistentes sociais, 02 educadoras físicas, 02 enfermeiros(as), 03 psicólogas, 02  
pedagogas, 01 médica psiquiatra, 01 médico generalista e 01 terapeuta ocupacional.  
4
Foram utilizados como critérios de inclusão profissionais de nível superior, de categorias distintas, com no  
mínimo seis meses de trabalho no dispositivo da RAPS ou que sejam bem integrados à equipe. Nos casos em que  
mais de três profissionais se enquadravam nesses critérios, foram escolhidos(as) das categorias que não tinham  
sido contempladas, com maior tempo de experiência no dispositivo e maior tempo de formação profissional. Os  
critérios de exclusão englobam profissionais que não estavam em efetivo exercício de sua profissão (afastamento,  
licença ou atestado médico) e/ou profissionais inseridos(as) em outras linhas de cuidado não relacionadas a de  
saúde mental.  
Karina Faustino de Carvalho Tetéo; Edla Hoffmann  
saúde, especificamente na área de saúde mental; por último, as considerações finais compõem  
o fechamento e as proposições do presente estudo.  
A divisão social e técnica do trabalho na perspectiva marxiana e suas incidências  
na área da saúde  
Na perspectiva do referencial teórico-crítico, o trabalho apresenta uma dupla  
dimensão: como agente transformador da realidade humana e como responsável pela  
valorização do capital, o qual vem, ao longo do tempo, intensificando suas formas de extração  
de mais-valia para assegurar a sua reprodução e hegemonia mediante a sua capacidade de  
alienar, subordinar e escravizar o ser humano.  
Parte-se do pressuposto de que o trabalho é elemento fundante do ser social, porque é  
através dele que o ser humano produz meios de subsistência para satisfazer suas necessidades.  
Marx (2011) afirma que o trabalhador nada pode criar sem a natureza, uma vez que é nela que  
o trabalho se realiza. A partir do movimento de modificar a natureza e satisfazer as suas  
necessidades materiais, o ser humano também modifica a si mesmo, posto que ambos sofrem  
alterações.  
Por esse motivo, o processo de trabalho é, “em primeiro lugar, a atividade orientada a  
um fim, ou o trabalho propriamente dito; em segundo lugar, seu objeto e, em terceiro, seus  
meios” (Marx, 2011, p. 189). Em outras palavras, o processo de trabalho é o modo como se  
realiza determinada atividade para se chegar a uma determinada finalidade, que visa atender as  
necessidades e expectativas humanas. Nesse caso, desenvolve-se uma das características  
próprias do trabalho humano: a capacidade teleológica5, através da qual o trabalhador consegue  
projetar, consciente e racionalmente, o resultado a ser alcançado pelo seu trabalho (Marx,  
2011).  
416  
Nessa perspectiva, ao pensar as condições e relações de trabalho e as profundas  
transformações e reestruturações que elas vêm sofrendo ao longo dos tempos, observa-se que  
as influências desse processo, além de estarem presentes nos aspectos de vida social, política e  
intelectual do ser humano (Marx, 2008), também afetam de forma significativa a sua relação  
com os meios e os instrumentos de produção e, principalmente, com o produto do seu trabalho.  
Esses aspectos são profundamente acentuados pela acumulação capitalista, que rouba a  
5 A capacidade teleológica do ser social diz respeito à sua capacidade de projetar o propósito das suas ações e, por  
meio delas, modificar a si próprio e a natureza. Marx (2011) explica que o trabalho consiste na interação entre o  
ser humano e a natureza, na qual o homem, através de suas ações, interage, regula e controla seu metabolismo com  
a natureza, o que só é possível porque o homem, ao contrário dos animais irracionais, projeta e idealiza as suas  
ações, tornando-se, assim, o único ser capaz de executar trabalho (Tetéo, 2015).  
Libertas, Juiz de Fora, v. 25, n. 1, p. 413-438, jan./jun. 2025. ISSN 1980-8518  
As implicações da organização do trabalho para a interprofissionalidade na saúde mental  
capacidade teleológica do ser humano, deixando-o alheio ao resultado do seu trabalho (Tetéo,  
2015). Assim, em um determinado momento, as forças produtivas materiais e as relações de  
produção existentes se contradizem e desse conflito surgem entraves que dão espaço para  
mudanças nas bases estruturais da sociedade. As transformações pelas quais passam as forças  
produtivas afetam as relações de produção, ou o contrário, precisamente por ambas estarem  
interligadas, de modo que a primeira refere-se às relações do ser humano com a natureza,  
enquanto a segunda expressa a relação do ser humano com o processo produtivo (Tetéo, 2015).  
Nesse contexto, na análise marxiana será a produção manufatureira a responsável por  
introduzir a divisão do trabalho no processo de produção e trazer para esse cenário a ideia de  
cooperação e da figura do trabalhador parcial e do trabalho coletivo. Esse último, por agregar a  
soma de vários trabalhadores parciais, representa o aumento da força produtiva e a redução do  
tempo de produção, já que produz mais em menos tempo. Apesar disso, esse processo torna-se  
fragilizado, na medida em que o fracionamento do processo produtivo provoca o isolamento  
das fases da produção e dificulta a aplicação de meios coletivos de trabalho (Marx, 2011).  
Batista (2014) acrescenta que, ao agregar a soma de trabalhos parciais, o trabalho  
coletivo passa a ser a soma de habilidades, destreza e força, por isso o todo somente pode ser  
compreendido por aqueles que conseguem pensar o processo. Contudo, essa compreensão não  
atinge a dimensão ontológica, pois desconsidera os aspectos que constituem cada parte em si,  
visto que, mesmo que tenha a visão da totalidade, o trabalhador está reduzido à sua  
especialidade. Sendo assim, o autor afirma que “a totalidade não é compreendida enquanto  
unidade que se constrói na diferença” (Batista, 2014, p. 222).  
417  
Marx (2011) explica que um produto para chegar ao seu estado final percorre  
diferentes processos parciais que ocorrem separadamente. Porém, se o processo produtivo for  
analisado em sua totalidade, é possível identificar que o produto se encontra em todas as fases  
de produção, ao mesmo tempo. Essa simultaneidade ocorre devido à “forma cooperativa geral  
do processo total” (Marx, 2011, p. 289), uma vez que as partes do processo são desenvolvidas  
por um trabalhador ou grupo de trabalhadores que realizam etapas de trabalhos diferentes,  
porém complementares e articuladas.  
Por essa razão, assevera-se que, assim como nos modos de produção que lhe são  
posteriores, a divisão manufatureira apresentada por Marx (2011) também estabeleceu uma  
relação capital/trabalho que pressupõe condições desiguais nas relações de poder e na  
correlação de forças existentes. Todavia, conforme as análises de Batista (2014), esse era apenas  
o início dessas problemáticas, tendo em vista que as fases da maquinaria e da indústria moderna,  
sucessoras da manufatura, intensificaram ainda mais o cenário de exploração e alienação dos  
Karina Faustino de Carvalho Tetéo; Edla Hoffmann  
trabalhadores ao incorporarem alguns aspectos organizacionais e técnicos do modelo  
manufatureiro (Batista, 2014). Essa nova fase do modo de produção capitalista Revolução  
Industrial traz inovações para as relações de produção, porém, na perspectiva do autor, irá  
superar a manufatura, mas não a eliminará em sua totalidade, principalmente pela manutenção  
dos processos de trabalhos parciais, a exemplo dos modelos de produção taylorista6 e fordista7  
que se espalharam pelo mundo e influenciaram significativamente as áreas de produção.  
A crise de acumulação do padrão taylorismo-fordismo, provocada pela redução das  
taxas de lucro, foi um dos fatores que contribuíram para a intensa crise econômica do capital  
durante as décadas de 1960 e 1970, a qual, diferentemente do caráter cíclico8 das crises  
vivenciadas no passado (período de 1929 a 1933), torna-se fundamentalmente estrutural, com  
caráter universal, de alcance global e com escala de tempo extensa e contínua, expressando o  
encontro do capital com seus próprios limites e contradições (Mészáros, 2011).  
As manifestações dessa crise se apresentam na implementação de um amplo processo  
de reestruturação do capital que afetam fortemente o mundo do trabalho, tendo em vista que a  
sobrevivência do capitalismo passou a exigir a instauração de um novo regime de acumulação  
e novas formas de controle da classe trabalhadora. Assim, a produção baseada nos padrões  
taylorista-fordista é substituída por uma produção flexível (acumulação flexível) em que os  
modos de trabalho e de vida são pautados na flexibilização, fragmentação e precarização do  
trabalho (Antunes, 2018).  
418  
Esse processo de reestruturação produtiva incorpora as tecnologias resultantes dos  
avanços técnico-científicos, bem como o aumento das forças produtivas e a redução da demanda  
de trabalho vivo. Há fortemente nesse cenário a substituição da força de trabalho humana por  
máquinas, o que vai consolidar a automação e intensificar as contradições do mundo do  
trabalho. Destacam-se nesse momento modelos de produção alternativos aos anteriores, cujo  
exemplo mais significativo se expressa no toyotismo9.  
O capitalismo redefine sua configuração e abre espaço para novas modalidades de  
trabalho, porém com velhos padrões de existência, pois suas relações sociais permanecem  
assentadas sobre o trabalho assalariado, com compra e venda da força de trabalho a ser  
6
Caracteriza-se como um processo de produção em série, padronizada, com vistas à alta produtividade e para o  
favorecimento dos processos de acumulação, através da fragmentação e da hierarquização do trabalho.  
7
“Esse modelo trouxe grandes impactos para a produção em massa da indústria automobilística, ao apresentar,  
dentre os seus princípios, a padronização da produção em larga escala, que exigia a aceleração da produção e,  
consequentemente, acarretava a aceleração do ritmo de trabalho do operário” (Tetéo, 2015, p. 55).  
8
Considerava-se crise cíclica, pois “alternava fases de desenvolvimento produtivo com momentos de  
‘tempestade’” (Mészáros, 2011, p. 18).  
9 O toyotismo baseia-se em uma produção direcionada a partir da demanda e, assim, os produtos passam a ser  
produzidos em menor escala, maior variedade e em menor tempo (princípio do just-in-time) (Antunes, 2018).  
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As implicações da organização do trabalho para a interprofissionalidade na saúde mental  
realizada, conforme suas necessidades (Druck, 2011). Da mesma forma, mantém o trabalho  
sobre os níveis da informalidade e de aspectos precários e flexibilizados, que apenas assumem  
novas dimensões e se acentuam após a crise de 2008, momento em que o capital atinge a fase  
da financeirização e da mundialização em escala global (Antunes, 2018).  
Esse período pós-crise de 2008 é marcado também pela presença de novas formas de  
trabalho que trazem para o cenário internacional as expressões de uma nova reestruturação  
produtiva (ou reestruturação produtiva pós-crise) e será protagonizado pelo novo proletariado  
da era digital, o qual encontra nas novas tecnologias de informação e comunicação (TICS) a  
centralidade para sua materialização que, no que lhe concerne, irá compor o conjunto de  
características responsáveis por impulsionar as transformações das novas formas de  
acumulação flexível capitalista, junto ao aumento significativo da imigração, da uberização do  
trabalho e da Indústria 4.010 (Tonelo, 2020). Essa última, também denominada de Quarta  
Revolução Industrial ou “era da comunicabilidade e da interconectividade” (Tonelo, 2020),  
estabelece uma hegemonia informacional-digital no mundo produtivo e promove a ampliação  
do trabalho morto e a consequente redução do trabalho vivo, com processos produtivos ainda  
mais automatizados e robotizados, de modo que a logística de produção seja controlada  
digitalmente por máquinas e robôs (Antunes, 2018).  
Não há como recusar que o nível de dependência das novas tecnologias chegou a  
patamares sem precedentes, nunca vistos na história da humanidade, de forma que na área da  
saúde não seria diferente. É perceptível a expansão técnico-científico-digital do capital com a  
ampliação e a intensificação do trabalho morto nos espaços de saúde, por meio de  
equipamentos, sistemas organizacionais e de informações; produção de insumos, medicamentos  
e vacinas; realização de exames e diagnósticos; procedimentos técnicos, tratamento,  
laboratórios, ensino e pesquisa, como também na reorganização do trabalho coletivo, gestão e  
oferta de serviços de saúde. Em suma, os avanços tecnológicos podem ser observados em todas  
as dimensões da área, particularmente no âmbito da saúde mental. Essa expansão ocorre por  
meio do uso exacerbado de medicação, tecnificação do cuidado, relações verticalizadas,  
supremacia do saber “psiquiátrico”, bem como fortalecimento da lógica manicomial e das  
práticas isoladas, fatores que vão repercutir na fragilização do cuidado com liberdade e  
acolhimento e na reciprocidade e trocas de experiências, dados que podem ser vistos na seção  
três.  
419  
10  
“Proposta que nasceu na Alemanha, em 2011, concebida para gerar um novo e profundo salto tecnológico no  
mundo produtivo (em sentido amplo), estruturado a partir das novas tecnologias da informação e comunicação  
(TIC), que se desenvolvem de modo cérebro” (Antunes, 2020, p. 13).  
Karina Faustino de Carvalho Tetéo; Edla Hoffmann  
Além disso, cabe ressaltar que o modo de produção da sociedade capitalista é construído  
com base em uma divisão social e técnica do trabalho que fragmenta as relações, impulsiona o  
processo de alienação do(a) trabalhador(a) e, assim, contribui para que ele(a) não se perceba  
como parte do trabalho coletivo. As consequências desse processo na área da saúde se  
expressam na intensa presença das especialidades que, ao serem legitimadas pela sociedade no  
processo de compartimentalização do conhecimento, refletem na dificuldade de integração  
dos(as) profissionais nas ações e atividades coletivas realizadas em seus espaços sócio-  
ocupacionais (Costa, 2019). Com isso,  
O usuário – e suas necessidades – assume papel de mero objeto de intervenção,  
e o trabalho em equipe passa a não ter sentido numa lógica em que cada  
profissional faz o que lhe compete, sem a preocupação de (re)significar as  
relações estabelecidas na produção dos serviços de saúde. A colaboração, o  
agir comunicativo, a interação, passam a não fazer parte da dinâmica do  
processo de trabalho em saúde, com forte agravante para todo o Sistema de  
Saúde (Costa; Borges, 2015, p. 754).  
Essa fragmentação do trabalho entre os(as) profissionais é definida pela literatura  
como silos profissionais ou tribalismo das profissões, os quais se caracterizam pelos processos  
de formação das profissões ao se concretizarem de forma isolada (Costa, 2019). Expressam  
também uma “forte tendência de formar profissionais de saúde em suas habilidades e  
competências específicas” (Costa; Borges, 2015, p. 754), que caracterizam suas identidades  
profissionais e, ao longo do processo formativo, apontam disparidades na relevância social das  
profissões, bem como a elitização entre os(as) profissionais médicos(as) e a hierarquização das  
relações profissionais com as demais categorias.  
420  
Tais aspectos implicam modificações nas formas de organização do trabalho e na sua  
própria natureza e promovem reordenamento estrutural no modo de produzir saúde (Souza,  
2009). No Brasil, a discussão sobre as mudanças nas práticas sociais e no modo de gerir saúde  
ganha intensidade com o Movimento da Reforma Sanitária, que reconhece o referencial da  
determinação social da saúde11, enfatiza a necessidade do caráter multiprofissional das ações e,  
consequentemente, favorece a abertura para a intervenção de outros profissionais (Peduzzi,  
1998).  
Não se esgotam aqui as possibilidades de discussão sobre esses novos modos de gerir  
o trabalho e não restam dúvidas de que essas transformações irão incidir diretamente nas  
11 “Entende-se que os fatores econômicos como a renda, emprego e organização da produção interferem na saúde  
de grupos populacionais. [...] Nesse sentido, a determinação social da saúde é um referencial teórico que discute a  
abrangência da coletividade e do caráter histórico-social do processo saúde-doença, não colocando em foco  
discussões de dados epidemiológicos individuais. Propicia explicitar a relação entre o biológico e o social [...]”  
(Wiese, 2020, p. 149).  
Libertas, Juiz de Fora, v. 25, n. 1, p. 413-438, jan./jun. 2025. ISSN 1980-8518  
As implicações da organização do trabalho para a interprofissionalidade na saúde mental  
relações e condições de trabalho em todas as esferas da sociedade. No entanto, interessa para  
essa discussão apreender as influências desse processo na área da saúde, assim como na gestão  
e oferta dos serviços, tendo em vista ser um fator primordial para compreender a fragmentação  
do saber e os esforços para romper com essa lógica através do trabalho interprofissional diante  
dessa nova dinâmica produtivista.  
A interprofissionalidade e sua interface com a fragmentação dos saber  
O debate acerca do trabalho interprofissional no Brasil ainda é marcado por muitas  
confusões e limitações. Observa-se na literatura uma discussão importante sobre o trabalho em  
equipe, mas o debate sobre o trabalho interprofissional traz novos elementos para essa discussão  
ao apresentá-la como resposta para visão/ação compartimentada, fragmentária e individual  
presente na assistência à saúde e, ainda, como forma de diminuir “a alienação do trabalhador”  
(Furtado, 2009, p. 2), considerando a divisão social do trabalho proposta nos modos de  
produção capitalista.  
Nesse sentido, o termo interprofissionalidade ganha espaço junto às discussões sobre  
trabalho em saúde, tendo em vista a necessidade de repensar a organização dos processos de  
trabalho e a formação em saúde, como modo de superar os desafios que se apresentam na  
realidade dos serviços. Seu conceito e história, ainda pouco explorados na literatura brasileira,  
421  
se apresentam em meio  
a
confusões  
e
relações equivocadas aos termos  
“multiprofissionalidade”, “multidisciplinaridade” e “interdisciplinaridade”, atribuídos muitas  
vezes como sinônimos (Cecim, 2018).  
Para este estudo, cabe apreender a diferenciação entre interdisciplinaridade e  
interprofissionalidade, com a compreensão de que essa discussão não se limita a diferenciações  
semânticas, mas se faz necessária para que seja possível identificar suas expressões na realidade  
concreta da área da saúde. Parte-se do ponto inicial que define as palavras pela utilização dos  
termos “disciplinar” e “profissional”. Na perspectiva de Cecim (2018, p. 1740),  
Se disciplina é recorte ou domínio de informação técnica ou científica,  
profissão é recorte de ofício, de poder de exercício formal de uma ocupação.  
Disciplina é domínio de conhecimento, profissão é habilitação de exercício  
ocupacional, [...] onde se faz tão necessária a reversão em potências de  
integração, interseção e desfragmentação, uma vez que se almeja trabalhar em  
equipe, ainda que por uma obrigatoriedade.  
Ellery (2018) também corrobora a discussão ao analisar aspectos que diferenciam os  
termos interprofissionalidade e interdisciplinaridade e afirma:  
Enquanto a interdisciplinaridade busca ser uma resposta ao conhecimento  
fragmentado de numerosas disciplinas, que resultou em uma divisão artificial  
do conhecimento, a interprofissionalidade visa reduzir a fragmentação das  
Karina Faustino de Carvalho Tetéo; Edla Hoffmann  
práticas profissionais, objetivando, no campo da saúde, ao alcance de  
melhores resultados dos cuidados aos usuários/pacientes (Ellery, 2018, p.  
146).  
É certo que o conceito de interdisciplinaridade vem sendo histórica e socialmente  
apresentado a partir de diversas concepções, posto que seu sentido polissêmico/dicotômico  
compõe umas das grandes discussões no campo dessa temática. Ivani Fazenda, uma das  
pioneiras no estudo do tema, afirma que “é impossível a construção de uma única, absoluta e  
geral teoria da interdisciplinaridade” (Fazenda, 1994, p. 13). No entanto, observa-se que é  
comum encontrar na literatura a interdisciplinaridade e as demais modalidades do trabalho  
coletivo  
(transdisciplinaridade, multidisciplinaridade, pluridisciplinaridade) sendo  
apresentadas como formas de superação da fragmentação do saber e da intensa especialização  
na área profissional, que levam a aspectos isolados e ofuscam a percepção de totalidade de uma  
determinada realidade, objeto ou indivíduo. Por essa razão, a escolha pela interdisciplinaridade  
parece um pouco óbvia, uma vez que, entre a fragmentação e a unificação do objeto, enxergá-  
lo através de suas diversas dimensões possibilita um conhecimento mais amplo sobre os  
aspectos que o constituem.  
Em última análise, Ivo Tonet aponta críticas a respeito da interdisciplinaridade como  
sendo “uma solução equivocada para um problema mal equacionado” (Tonet, 2013, p. 726). A  
crítica do autor não é para a interdisciplinaridade em si, mas para o contexto social que produz  
a necessidade dessa prática, uma vez que,  
422  
Para entender como se chegou até esta situação faz-se necessário apreender a  
trajetória do ser social a partir dos seus fundamentos originais, tanto em  
termos históricos como em termos ontológicos. Em termos históricos, porque  
a própria modernidade já é o resultado de uma longa trajetória. E em termos  
ontológicos, porque é preciso buscar, na natureza do ser social, os  
fundamentos que deram origem ao processo de fragmentação (Tonet, 2013, p.  
730).  
Dessa forma, sendo o trabalho considerado pelo marxismo como o ato fundante do ser  
social, é a partir da análise da relação entre ambos que se pode “compreender que o ser social  
é uma totalidade, isto é, um conjunto de partes articuladas, em constante processo” (Tonet,  
2013, p. 730). Trata-se de entender, através do trabalho, como ocorreu ao longo da história o  
processo que levou à complexificação do ser social, sua fragmentação e especialização, tanto  
na realidade material como no campo de conhecimento (Tonet, 2013).  
Análise semelhante é realizada por Guerra (2023), ao afirmar que “a  
interdisciplinaridade se apoia em uma premissa equivocada”, por acreditar que é possível a  
integração entre saberes e práticas, em uma sociedade que se alimenta da “fragmentação,  
divisão, hierarquização, autonomização, abstração e formalismo das especializações e do  
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As implicações da organização do trabalho para a interprofissionalidade na saúde mental  
conhecimento, como determinação necessária à manutenção do status quo” (Guerra, 2023, p.  
171). Desse modo, a relação entre a divisão social do trabalho no capitalismo e a divisão social  
das Ciências Sociais torna-se ainda mais evidente e contribuiu para desmistificar a ideia de que  
as especializações podem ser superadas através do esforço individual de cada profissional, sem  
a compreensão de que a divisão social do trabalho encontra seu modo de ser no capitalismo  
(Guerra, 2023). Por esse motivo, pouco adianta a interdisciplinaridade tentar agregar os  
conhecimentos e ações fragmentados com a divisão do trabalho, sem antes superar as  
contradições entre “os que pensam e os que executam” (Guerra, 2023, p. 173).  
Em resumo, considera-se que a interdisciplinaridade sozinha não é capaz de superar a  
fragmentação do saber, se levar em consideração o processo histórico das relações sociais  
baseadas em princípios capitalistas que envolvem a sua formação, tornando funcional a  
reprodução do processo capitalista de produção de riqueza (Tonet, 2013). Portanto, transpor a  
interdisciplinaridade e concretizá-la no cotidiano dos serviços de saúde, através do trabalho  
interprofissional, requer o enfrentamento das forças antagônicas presentes nesses espaços, as  
quais se configuram por uma lógica profissional que expressa a delimitação do território de  
cada profissão e o grau de “dominação” de uma categoria sobre a outra.  
A proposta da interprofissionalidade ocorre de forma a proporcionar o  
desenvolvimento de práticas integradas, compartilhadas e de colaboração entre os(as)  
profissionais de saúde que trabalham juntos(as), a fim de superar a fragmentação das práticas  
em saúde e dar respostas mais resolutivas as necessidades de saúde dos(as) usuários(as) (Ellery,  
2018). Em razão disso, a discussão sobre o trabalho interprofissional torna-se fundamental na  
elaboração de novas formas de produção do cuidado em saúde, dada a necessidade de superação  
do modelo assistencial de saúde centralizado na doença e na hegemonia do modelo tradicional  
de prática e formação dos(as) profissionais de saúde, ainda realizada de maneira  
compartimentada e tecnificada.  
423  
Nas discussões realizadas por Cecim (2017), a concepção de interprofissionalidade  
aparece associada a tudo aquilo que pode ser desenvolvido como “núcleo comum”, tudo que  
pertence ao campo e tudo aquilo que se realiza mediante apoio. Nesse contexto, o “núcleo  
comum” é responsável pela junção de várias categorias profissionais em grupos de  
compartilhamento voltados para as práticas colaborativas12, que se desenvolvem em situações  
12  
Como práticas colaborativas na atenção à saúde, a Organização Mundial de Saúde (OMS) entende que elas  
ocorrem quando “profissionais de saúde de diferentes áreas prestam serviços com base na integralidade da saúde”  
(OMS, 2010, p. 13), o que inclui envolvimento não apenas dos sujeitos, mas também suas famílias e comunidades,  
para que assim a atenção à saúde possa alcançar todos(as) da rede de serviços (OMS, 2010).  
Karina Faustino de Carvalho Tetéo; Edla Hoffmann  
específicas e lugares concretos, a partir de processos de construção, trocas, apoio e  
compromisso, em busca de maior resolutividade (Cecim, 2017).  
A essa discussão, acrescentam-se as noções de campo e núcleo de conhecimentos e  
práticas, elaboradas por Campos (1998), ao discutir a institucionalização dos saberes e sua  
organização em práticas, através da formação de núcleos e de campos como dimensões para  
efetivação do trabalho colaborativo. Por núcleo, o autor denomina “o conjunto de saberes e de  
responsabilidades específicos à cada profissão ou especialidade” (Campos, 1998, p. 248) e que  
demarcam as suas diferenças, a sua identidade e seu trabalho. Enquanto o campo refere-se aos  
“saberes e responsabilidades comuns ou confluentes a várias profissões ou especialidades”  
(Campos, 1998, p. 248), ou ainda, às demandas que extrapolam as atribuições específicas e  
exigem o apoio de outras profissões para concretizar a sua teoria e prática.  
De modo geral, a discussão sobre campo e núcleo ressalta a importância da integração  
entre disciplinas e profissões (saberes e práticas) e, consequentemente, contribui para a  
efetivação da integralidade do cuidado, pois amplia o olhar sobre o sujeito e seu contexto de  
vida, por meio do estímulo ao trabalho coletivo, multiprofissional ou interprofissional. Com  
isso, evidencia-se a importância do trabalho interprofissional nos serviços de saúde, como  
condição necessária para a efetivação da integralidade, uma vez que, através dela, é possível  
apreender as necessidades de saúde dos(as) usuários(as) de forma mais ampla (Furtado, 2009).  
424  
A interprofissionalidade como elemento estruturante do cuidado em saúde: análise  
de uma experiência na saúde mental  
A partir do movimento da Reforma Psiquiátrica, a assistência em saúde mental passa  
a exigir um debate sobre a interprofissionalidade, tendo em vista a necessidade de romper com  
os aspectos asilares instituídos pelos hospitais psiquiátricos. Desse modo, as intervenções que  
antes possuíam um viés predominantemente psiquiátrico começam a ser substituídas por ações  
que contribuem com a construção da autonomia dos(as) usuários(as) diante das suas condições  
de saúde. Nessa perspectiva, a discussão sobre o trabalho em equipes multidisciplinares e  
interprofissionais na saúde mental representa um significativo avanço para superação da lógica  
manicomial e suas práticas isoladas.  
Vasconcelos (2010, p. 42) destaca que, com a Reforma Psiquiátrica, “o campo da  
saúde mental é chamado a refazer-se por inteiro, a ampliar o foco de abordagem e a romper  
com as delimitações dos saberes tradicionais na área”, em busca de uma reposição de  
conhecimentos sustentados sobre um conjunto de rupturas e novas premissas, o qual não seja,  
portanto, apenas um novo somatório ou rearranjo simples dos antigos saberes parcializados.  
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As implicações da organização do trabalho para a interprofissionalidade na saúde mental  
Nesse sentido, o autor aponta a necessidade da formação e fortalecimento de equipes  
interprofissionais, nas quais profissionais de diferentes áreas devem atuar com vistas ao  
fortalecimento da reciprocidade, ou seja, a troca de experiência profissional a favor do  
tratamento de usuários(as), favorecendo também o enriquecimento mútuo das equipes de  
trabalho (Vasconcelos, 2010).  
Como elemento novo no debate atual em Saúde Mental, a proposta da  
interdisciplinaridade e da interprofissionalidade não visa intervir na totalidade da vida social,  
mas como ação potencializadora da autonomia profissional quando possibilita ações com  
outros(as) profissionais a partir da quebra de paradigmas, como a centralidade do saber médico  
e a segregação de saberes, da qualidade de serviços e do reconhecimento dos direitos da pessoa  
com adoecimento e sofrimento psicossocial, o que leva à potencialização de sua cidadania  
(Vasconcelos, 2010).  
No entanto, a consolidação desses modelos de trabalho esbarra em uma conjuntura  
permeada por dificuldades que ultrapassam a Política Nacional de Saúde Mental (PNSM), uma  
vez que abrangem a efetivação das políticas sociais, a regressão dos direitos sociais, a retenção  
de gastos com políticas públicas e o estreitamento da sua relação com o mercado. Tais fatores  
revelam o conjunto de medidas neoliberais que se baseiam no trinômio da “austeridade,  
privatização e desregulamentação” e se acentuam através das estratégias utilizadas pelo capital  
para enfrentar sua crise econômica, atingindo diretamente a oferta de ações e serviços de saúde  
mental (Rosa; Guimarães, 2019).  
425  
Desse modo, a materialização e a efetivação Reforma Psiquiátrica e de suas  
reinvindicações se defrontam com os limites oriundos das estratégias e respostas do capital para  
enfrentamento da crise estrutural em curso desde a década de 1970, dentre os quais: a  
reestruturação produtiva, a mundialização e financeirização do capital, o neoconservadorismo  
e as contrarreformas do Estado, cujo objetivo é a reprodução do capital (Soares, 2013). Essas  
estratégias tendem a precarizar as políticas sociais e restringir a oferta de serviços e assistência  
à população e, dessa forma, representam um conjunto de tensionamentos que recaem sobre a  
concretização das conquistas da reforma psiquiátrica e da luta antimanicomial, tendo em vista  
os retrocessos que insistem numa lógica manicomial e retomada do modelo de segregação e de  
desassistência dos indivíduos em adoecimento psíquico (Costa et al., 2020).  
Os impactos dessa conjuntura na realidade da RAPS do município analisado13 se  
manifestam na precarização estrutural e funcional dos equipamentos de saúde mental, com  
13 O desenho da RAPS do município estudado segue o modelo de diretrizes preconizadas na Portaria n. 3.088/11,  
sendo composta pelos seguintes serviços: 29 Unidades Básicas de Saúde, 01 Equipe Consultório na Rua, 03  
Karina Faustino de Carvalho Tetéo; Edla Hoffmann  
implicações significativas nas relações de trabalho e na qualidade das ações e serviços  
ofertados, os quais acabam sendo conduzidos sem a devida atenção às necessidades de saúde  
da população e do trabalho profissional. Isso ocorre porque os dispositivos da RAPS nem  
sempre obtêm contrapartidas municipais necessárias para a sua implementação e amplo  
desenvolvimento, dado que questões fundamentais não são asseguradas (Concentino; Tetéo;  
Freire, 2024).  
Tal cenário evidencia a ausência de uma rede de saúde organizada, efetiva e resolutiva,  
que assegure ações e serviços contínuos e articulados e, da mesma forma, garanta a  
integralidade da atenção à saúde e favoreça o compartilhamento de competências e  
responsabilidades no cuidado em saúde mental. Essa realidade chama a atenção para a  
intensificação do processo de sucateamento e desmonte dos equipamentos da rede, que  
agregam, dentre outras limitações, a escassez de profissionais, a falta de recursos materiais, a  
ausência de capacitações para os(as) profissionais, além da existência de estruturas físicas que  
violam as normativas legais14 e externam os desafios que fazem parte da atual conjuntura do  
município (Concentino; Tetéo; Freire, 2024).  
Dadas essas considerações, torna-se relevante compreender que a materialização da  
interprofissionalidade nos serviços de saúde mental do município, frente às múltiplas  
representações dos(as) profissionais em relação às situações do cotidiano, aparece de forma  
associada às práticas colaborativas e ao trabalho em equipe, sendo caracterizada por momentos  
de: acolhimento dos(as) usuários(as), reuniões de equipe, discussões/estudos de caso, realização  
de oficinas e resoluções de demandas. No entanto, com frequência, também aparece associada  
a algo que ocorre de forma mais pontual, que depende da demanda e, por isso, não possui um  
planejamento prévio, ou ainda como algo que depende da equipe que está “trabalhando no dia”,  
pois alguns(as) profissionais não apresentam predisposição para o trabalho coletivo.  
Torna-se relevante pontuar que o conhecimento em torno das expressões teóricas que  
envolvem o termo interprofissionalidade pode contribuir para que as suas formas de  
manifestações sejam identificadas no cotidiano dos serviços de saúde. Contudo, os resultados  
do estudo revelaram que as falas dos(as) profissionais entrevistados(as) retratam uma  
compreensão confusa e equivocada sobre interprofissionalidade que, uma vez ou outra, se  
confunde com interdisciplinaridade ou multiprofissionalidade. Chama a atenção o fato de esses  
termos serem ocasionalmente vinculados à interação de vários conhecimentos, ligados a um  
426  
Centros de Atenção Psicossocial (CAPS AD III, CAPS II, CAPSi), 02 Unidades de Pronto Atendimento - UPA e  
01 Hospital Geral Estadual.  
14 Ver Portaria n. 336, de 19 de fevereiro de 2002.  
Libertas, Juiz de Fora, v. 25, n. 1, p. 413-438, jan./jun. 2025. ISSN 1980-8518  
As implicações da organização do trabalho para a interprofissionalidade na saúde mental  
objetivo em comum. Nota-se que a concepção de interdisciplinaridade, por vezes, é confundida  
com o que caracteriza a interprofissionalidade, na medida em que é associada ao trabalho em  
si, com menções ao “trabalho em conjunto”, “trabalho junto em equipe”, “prática que é  
conjunta”, “ações e intervenções”. Por sua vez, a fragilidade da compreensão do termo  
interprofissionalidade também é expressa quando ele é utilizado como sinônimo de  
multiprofissionalidade, ou seja, uma ação que envolve profissionais de categorias distintas, com  
ações isoladas, mas com o mesmo objetivo.  
Esse distanciamento do conceito e dos fundamentos do trabalho interprofissional é  
reforçado pela compreensão de alguns profissionais acerca do desenvolvimento desse modo de  
trabalhar a partir do exercício de atividades isoladas, diante do que compete a cada profissional,  
e não especificamente no desenvolver de um trabalho integrativo e colaborativo. Alguns  
profissionais, mesmo sendo a minoria, apresentam definições que se aproximam mais do que é  
o trabalho interprofissional, ao abordarem a necessidade do trabalho pautado em ações  
conjuntas, colaborativas e com a interação entre os conhecimentos, como apresentado na  
seguinte fala:  
Eu acho que o trabalho interprofissional é a gente entender que aquele  
usuário tem múltiplas necessidades. É se juntar enquanto equipe para pensar  
a terapêutica daquele paciente, para pensar a saúde, os cuidados em saúde  
daquele paciente. É um trabalho que é conjunto. É eu entender que eu tenho  
uma equipe que pode pensar junto comigo o que é melhor para aquele  
paciente (Profissional 12).  
427  
Mesmo que a proposta dos serviços substitutivos seja de ampliar as possibilidades do  
modelo de atenção à saúde mental, essa diversidade na forma de trabalhar, principalmente para  
os(as) profissionais que preferem exercer suas atividades de forma isolada, pode representar  
riscos para os princípios da Reforma Psiquiátrica, uma vez que resgata características  
assistenciais do modelo manicomial, dentre as quais está a retomada do modelo biomédico, sem  
atenção aos aspectos biopsicossociais.  
Costa-Rosa (2013), ao analisar a inserção da interprofissionalidade no campo  
psicossocial, aborda dois elementos importantes para essa discussão: a divisão do trabalho na  
saúde mental e sua relação com a divisão do trabalho na ciência, que, por sua vez, é fruto da  
divisão social e técnica do trabalho do modo de produção capitalista. A partir disso, o autor  
agrupa a variabilidade da divisão do trabalho em dois grupos, os quais ele denomina de “modo  
taylorista” e “integração em profundidade” (Costa-Rosa, 2013).  
O primeiro grupo caracteriza-se pela predominância da psiquiatria, visto que o projeto  
terapêutico é decidido pelo(a) psiquiatra, enquanto os(as) demais profissionais são  
Karina Faustino de Carvalho Tetéo; Edla Hoffmann  
colocados(as) como “auxiliares”. Sua semelhança com o modo de produção taylorista, cujas  
relações verticalizadas estimulam a hierarquia de poder, contribuiu para que o autor  
denominasse esse primeiro grupo de “modo taylorista” (Costa-Rosa, 2013). No segundo grupo,  
ao contrário do primeiro, a integração entre as categorias profissionais é mais evidente e os(as)  
profissionais são distribuídos(as) de acordo com a necessidade de cada caso. A ação coletiva  
está presente nas decisões desde o planejamento até execução. Esse modelo se assemelha mais  
aos pressupostos da Reforma Psiquiátrica que o primeiro grupo, pois amplia o olhar sobre o  
indivíduo a partir dos aspectos psíquicos, sociais e culturais presentes em sua realidade, por  
isso, Costa-Rosa (2013) o denomina de “integração em profundidade”.  
Mediante esse aspecto, observa-se que em alguns dos serviços a integração com o  
psiquiatra ainda é um desafio para a assistência integral à saúde mental. É certo que o lugar  
histórico que a psiquiatria ocupa na atenção à saúde mental, somado às exigências de um novo  
perfil profissional após a Reforma Psiquiátrica, realça críticas direcionadas às práticas dessa  
profissão, porém isso não exclui a necessidade de mudanças que são necessárias nos demais  
núcleos profissionais (Costa-Rosa, 2013), visto que nos serviços de saúde a categoria médica,  
ao longo dos anos, vem sendo dissociada das demais da equipe, cuja denominação aponta para  
“equipe médica” e “equipe multiprofissional ou técnica”, como duas equipes distintas. No  
entanto, não seria o(a) médico(a) também parte da equipe multiprofissional? Ao que parece,  
nos serviços de saúde mental, essa distinção é notória, pois, no cotidiano, essa diferença não  
está apenas na nomenclatura, mas também se apresenta nos espaços de trabalho. Esse fato é  
justificado nas narrativas dos(as) profissionais que trazem relatos de poucas ou nenhuma  
interação entre as duas equipes “Sempre foi um tabu, ainda é um tabu na sociedade integrar  
o médico à equipe” (Profissional 11).  
428  
O desafio de integrar a categoria médica aos(às) demais profissionais, por vezes, aparece  
associado à organização dos processos de trabalho, seja através da forma como é realizada a  
distribuição de horários desses(as) profissionais, sem tempo para planejamento e atividades  
coletivas, seja pela falta de abertura para o trabalho em equipe e/ou pela alta demanda para  
psiquiatria, aspectos que acabam reduzindo o trabalho médico à prática clínica das consultas,  
como expressa a seguinte fala:  
Bom, eu acho que tem duas situações aí: primeiro, que geralmente os  
profissionais, eles têm um horário muito restrito. Segundo, eu percebo que  
essa abertura vai muito realmente do profissional. A gente já trabalhou com  
psiquiatra que tinha essa abertura, que eu achava fundamental, mas não eram  
todos os profissionais que estavam disponíveis pra isso, às vezes por questão  
de tempo, até porque a demanda da psiquiatria é muito expressiva.  
(Profissional 2).  
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As implicações da organização do trabalho para a interprofissionalidade na saúde mental  
A característica que envolve a falta de abertura ou disponibilidade para o trabalho  
interprofissional não aparece como específica da categoria médica, dado que outros(as)  
profissionais também acabam por não desenvolver atividades em equipes, alegam falta de  
tempo ou simplesmente não se identificam com essa proposta de trabalho. A resistência de  
alguns(as) profissionais em trabalhar de forma integrada a outros no exercício da  
interprofissionalidade tende a configurar nos serviços de saúde mental um trabalho fragmentado  
que dificulta a relação e o diálogo entre os(as) profissionais(as). Nesse sentido, concorda-se  
com Costa (2019, p. 49), ao discutir:  
Na realidade do trabalho em saúde, é possível encontrar profissionais aptos e  
implicados com a lógica do trabalho em equipe, da integração das práticas  
profissionais e da colaboração [...] Por outro lado, também é possível perceber  
profissionais de saúde pouco afeitos ao trabalho em equipe, que compreendem  
que a lógica do trabalho em saúde é exatamente essa: cada um fazer o que lhe  
cabe, como forma de defesa das identidades profissionais.  
No esforço de buscar compreender em que situações os(as) profissionais sentem a  
necessidade de colaboração dos(as) outros(as) profissionais, verificam-se situações como:  
momentos de crise ou surto dos(as) usuários(as); casos mais complexos (que trazem risco para  
o indivíduo); que envolvem vulnerabilidade econômica ou outras demandas sociais; que tratam  
da violação de direitos; na realização das atividades em grupos; na conclusão do diagnóstico;  
demandas das linhas de cuidado (no caso, violência contra mulheres e crianças); ou ainda,  
quando ocorrem dúvidas quanto às intervenções clínicas; quando se identificam demandas para  
outros(as) profissionais e/ou quando são necessárias mais informações sobre a realidade do(a)  
usuário(a). Nesse contexto, a Psicologia e o Serviço Social recebem destaque como as  
profissões que conseguem ter uma maior inclinação para o desenvolvimento do trabalho  
interprofissional e que acabam sendo procuradas com maior frequência pelas demais profissões,  
o que não elimina a importância do conjunto das profissões para a realização do trabalho  
interprofissional.  
429  
Tais condições apresentam-se como fatores que podem fragilizar o desenvolvimento  
do trabalho interprofissional mediante os interesses subjetivos de cada profissional, que nem  
sempre coincidem com os interesses coletivos. Desse modo, ao considerar a lógica da  
interprofissionalidade a partir de conceitos como cooperação, práticas colaborativas e trabalho  
em equipe, infere-se que, apesar de ainda pouco presente nas ações dos serviços pesquisados  
que compõem a RAPS, o trabalho interprofissional se apresenta em construção no cotidiano  
desses serviços.  
Karina Faustino de Carvalho Tetéo; Edla Hoffmann  
Esses aspectos contribuem para o fato de que grande parte dos dispositivos encontra-  
se pautada no trabalho multiprofissional, sem necessariamente exercer a interprofissionalidade,  
comprovados nas ações individuais, em que vários profissionais atendem um(a) usuário(a),  
porém sem trocas e ações integradas entre eles(as) e, ainda, através dos desafios para a  
materialização do trabalho interprofissional, que se constituem como importantes limites para  
manutenção dos serviços da RAPS e consolidação das propostas da Reforma Psiquiátrica.  
Nas narrativas apresentadas, um dos desafios colocados para a efetivação da  
interprofissionalidade nos dispositivos de saúde mental do município pesquisado encontra-se  
na ausência de tempo para planejamento e desenvolvimento das atividades, principalmente pela  
dificuldade de os(as) profissionais estarem todos(as) ao mesmo tempo presentes no serviço, o  
que ocorre com aqueles(as) em que a distribuição da carga horária é de 20h, 30h ou 40h  
semanais, mas, principalmente, com aqueles(as) em que os(as) profissionais desenvolvem suas  
atividades em escala de plantões de 12h ou 24h (CAPS AD III e a UPA) e, assim, constituem  
equipes instáveis que nem sempre conseguem articular atividades coletivas, tendo em vista as  
inconstâncias apresentadas, como destacado na fala seguinte: “o principal desafio é conseguir  
aglutinar hoje os profissionais no dia e no horário planejado para as atividades, seja ela de  
estudo de caso, de reunião ou de planejamento das atividades” (Profissional 2).  
Consequentemente, ocorre também que, “Dependendo da situação de cada usuário, a equipe  
percebe que não dá para ficar com intervenções fragmentadas e senta para conversar. Porém,  
fica fragmentado porque só é o grupo que está no dia. E os encaminhamentos, às vezes, não  
tem o reflexo de uma decisão da equipe” (Profissional 2).  
430  
Essa configuração, além de não favorecer o trabalho interprofissional, contribui para  
a descontinuidade da assistência e para o rompimento dos vínculos que, por ora, devem ser  
construídos entre equipe-usuários(as)-instituição. Cabe destacar que uma das principais  
estratégias de trabalho na saúde mental é a proposta de vinculação entre serviço-profissional-  
usuário(a), o que não ocorre nos dispositivos que funcionam com escalas de plantões, tendo em  
vista a inconsistência dos dias e horários de trabalho. Com isso, os espaços de articulações, de  
trocas e de diálogos profissionais, para a realização de estudos de caso, construção de projetos  
terapêuticos e demais ações que favoreçam a ampliação do cuidado em saúde mental, acabam  
sendo limitados pela falta de organização dos processos de trabalho e gestão adequada do  
tempo.  
Soma-se a esse contexto a precarização das condições de trabalho que se apresentam,  
dentre outras formas, através da: sobrecarga de trabalho, precarização das estruturas físicas e  
escassez de recursos materiais para o desenvolvimento das atividades. O primeiro, ocasionado  
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As implicações da organização do trabalho para a interprofissionalidade na saúde mental  
pelo número reduzido de profissionais, acarreta o aumento significativo das demandas  
reprimidas, expressas nas extensas listas de espera de pessoas aguardando atendimento em  
serviços com atendimentos regulados (no caso dos ambulatórios), além das demandas  
reprimidas dos serviços de porta aberta. Esse contexto resulta no adoecimento dos(as)  
profissionais e/ou em limites para execução de atividades que ultrapassem o modelo  
ambulatorial e individual, o que acaba limitando os atendimentos e a qualidade da assistência  
ofertada. Apenas um dos serviços apresentou melhoria nas condições de trabalho nos últimos  
tempos, no entanto, os recursos conquistados somente foram possíveis através da intervenção  
dos profissionais e, principalmente, do Ministério Público, como demonstra a fala da  
profissional: Então tem muitas coisas que conseguimos com esforços próprios ou de pessoas  
que conhecem o serviço e que ajudam. Nunca através da Prefeitura. Através da Prefeitura, só  
se com decisão judicial” (Profissional 13).  
Esses aspectos chamam a atenção para o fato de que a insuficiência de recursos  
materiais e de profissionais para realização das atividades acarreta a ausência delas. A esse  
respeito, um dos profissionais destaca:  
Desde que nós começamos, já enviamos várias listas com relação aos  
materiais que são fundamentais, os básicos, e não tivemos acesso. Então,  
trabalhamos trazendo praticamente o que vamos precisar. Qualquer tipo de  
instrumento que fomos precisar para as nossas intervenções, se não tivermos  
em casa e não trouxermos, nos limitamos muito ao básico do básico  
(Profissional 12).  
431  
Por consequência, o cuidado com a saúde mental acaba centralizado no processo de  
medicalização e retoma o modelo biomédico da psiquiatria, com critérios de diagnósticos  
formulados apenas através dos sintomas físicos, sem compreensão dos aspectos que levam ao  
agravo do adoecimento, como expõe o trecho a seguir: “Eu vejo que as pessoas que  
participavam do grupo, que já estavam mais estabilizadas, às vezes aparecem aqui e surtam.  
Porque elas não estão tendo de fato um acompanhamento, não estão fazendo outras atividades.  
Só estão tomando remédio” (Profissional 7).  
Perante o exposto, a centralidade no uso de medicamentos para atender as demandas  
do adoecimento psicossocial acaba por se tornar agente principal nas ações, o que leva os  
demais profissionais a exercerem papéis secundários na execução das atividades coletivas. Esse  
cenário contradiz as formulações da Reforma Psiquiátrica e da Luta Antimanicomial ao  
concentrar o cuidado nos aspectos patológicos e biológicos, que tendem à medicalização da  
vida social, sem atenção aos fatores biopsicossociais. Logo, essas questões representam um  
grande retrocesso, que vai ao encontro dos interesses representados pelos empresários dos  
Karina Faustino de Carvalho Tetéo; Edla Hoffmann  
hospitais psiquiátricos e da indústria farmacêutica, cujas intenções tendem a limitar o(a)  
usuário(a) ao diagnóstico e à prescrição de medicamentos (Rosa; Guimarães, 2019).  
Além disso, a precarização das condições de trabalho também contribui para a alta  
rotatividade de trabalhadores(as) dos serviços que compõem a rede, o que ocorre por pedidos  
de exonerações, por adoecimento, por afastamento e/ou por remanejamento. Vale destacar que  
muitos desses remanejamentos são realizados pela gestão municipal como forma de suprir a  
necessidade de alguns dispositivos, o que acaba acontecendo em detrimento da composição da  
equipe dos demais serviços.  
Do ponto de vista da gestão, a rotatividade de profissionais configura-se meramente  
como um dimensionamento dos recursos humanos e pode ser vista apenas sob a ótica  
burocrática e administrativa. Porém, no campo assistencial, essas ações, além de deixar equipes  
incompletas, fragilizam a organização dos processos de trabalho e resultam na fragilidade da  
constituição dos vínculos entre trabalhadores(as), usuários(as) e seus familiares, colocando em  
risco a continuidade do cuidado em saúde mental. Consequentemente, também fragilizam a  
construção de autonomia dos(as) usuários(as) diante das suas singularidades e subjetividades.  
Esse cenário expressa as consequências da conjuntura neoliberal com a adoção de um  
projeto de saúde que compromete a qualidade e a continuidade dos serviços prestados no campo  
da saúde mental. Com isso, os desafios apresentados revelam uma série de elementos que  
limitam a efetivação dos princípios da Reforma Psiquiátrica e afirmam o processo de desmonte  
da Política de Saúde Mental no município em questão. A ausência de uma assistência em saúde  
mental mais efetiva, a falta de investimentos em recursos materiais e humanos, a sobrecarga  
profissional diante das altas demandas e equipe reduzidas e a forma como são organizados os  
dispositivos existentes evidenciam um cenário complexo e desafiador para a materialização do  
trabalho interprofissional.  
432  
Em face dessa conjuntura, a discussão sobre educação interprofissional em saúde  
também é parte determinante para o processo de enfrentamento dessa realidade. Bellini e Arena  
(2021) argumentam que reconhecer as contradições que permeiam a atual conjuntura a partir  
de uma formação profissional em saúde que “privilegie o coletivo, o real, o contexto, diminui  
o risco de interpretações caolhas da realidade, de análises despolitizadas ou situadas em um  
mundo que se encerra no aparente e no imediato” (Bellini; Arena, 2021, p. 258). Contudo, a  
pesquisa revela a ausência de momentos de qualificação e educação permanente em saúde,  
somando-se ao fato de os(as) profissionais apresentarem pouca ou nenhuma experiência  
anterior de trabalho na área de saúde mental. A análise da insuficiência desse processo de  
Libertas, Juiz de Fora, v. 25, n. 1, p. 413-438, jan./jun. 2025. ISSN 1980-8518  
As implicações da organização do trabalho para a interprofissionalidade na saúde mental  
formação de profissionais na área de saúde mental pode ser feita com base na seguinte  
declaração:  
Falta capacitação no município com os profissionais que estão aqui no  
serviço. Quem vem para cá tem uma fala quase unânime, que é: ‘a gente  
nunca escolheu vir pra cá, escolheram por nós’, porque não é o que a gente  
quer. Eu não sou capacitada, não fui treinada para isso, eu não tenho  
experiência (Profissional 3).  
Observa-se que a falta de capacitação dos profissionais na área de saúde mental é um  
problema que vem desde a formação acadêmica. Dito isso, no que se refere ao processo de  
formação dos(as) profissionais entrevistados(as), foram considerados para análise dos dados  
aspectos como: as vivências da educação interprofissional nas experiências das graduações,  
pós-graduações, estágios, disciplinas, projetos e programas acadêmicos. Nessa perspectiva,  
apesar de reconhecerem a relevância da interprofissionalidade para o desenvolvimento do seu  
trabalho, apontam as falhas que tiveram no seu processo formativo, tendo em vista a ausência  
de atividades que estimulassem essa metodologia de trabalho e o formato ainda fragmentado e  
individualizado da educação superior na área da saúde. No relato de sua experiência, uma das  
profissionais afirma: “A formação da gente é fragmentada. O meu processo de formação na  
faculdade foi fragmentado. Ninguém falou de contexto integrado, multidisciplinado. Ninguém  
falou!” (Profissional 10). Essa realidade torna-se ainda mais complexa diante dos desafios  
postos tanto pela falta de uma educação interprofissional quanto pela ausência da educação  
permanente em saúde ou pelas próprias limitações dos serviços (estruturais e funcionais).  
Sem dúvidas, a realidade dos dispositivos estudados não se limita aos desafios aqui  
apresentados, pois se compreende que muitos deles estão além do que a realidade aparente  
possa expressar nos achados da pesquisa. Considera-se também que a conjuntura que se inicia  
com a crise do capital, na década de 1970, e que se perpetua até os dias atuais, com a forte  
presença das ideias neoliberais e a significativa banalização dos direitos sociais, traz para a  
saúde mental desafios com proporções maiores do que é possível analisar nesses dados.  
Diante disso, a análise realizada possibilita afirmar que o trabalho interprofissional  
tem potencialidades que aprimoram o trabalho na saúde mental. No entanto, é inegável que ele  
enfrenta diversos obstáculos, uma vez que está inserido em um cenário de mudanças que  
impactam diretamente a sua materialização e limitam a sua efetivação. Esse contexto também  
destaca a necessidade de estratégias que superem a focalização, a fragmentação e a precarização  
que afetam as políticas sociais, incluindo a política de saúde mental.  
433  
Karina Faustino de Carvalho Tetéo; Edla Hoffmann  
Considerações finais  
Observa-se que os modelos de produção capitalista, dentre os quais o fordista-  
taylorista, a acumulação flexível e a recente Era digital (com a presença das TICs), carregam  
em suas características relações de trabalho cada vez mais precarizadas, fragmentadas, baseadas  
na divisão do conhecimento e na subdivisão das profissões, com expressões no intenso processo  
de especialização entre as categorias profissionais e no trabalho individualizado. Essas  
características também impactam na gestão e oferta dos serviços de saúde e na organização dos  
processos de trabalho, cujas relações tendem a ser hierarquizadas e verticalizadas.  
Por essa razão, os aspectos que envolvem o trabalho multiprofissional, e de forma mais  
expressiva os desafios de torná-lo interprofissional, implicam a transformação de estruturas  
institucionais, de valores e hábitos já construídos pelas profissões envolvidas, assim como o  
enfrentamento da precarização e o sucateamento da Política de Saúde, que afetam diretamente  
a sua concretização e efetivação.  
A pesquisa mostrou que, mesmo sendo indispensável nos serviços de saúde mental, o  
trabalho interprofissional esbarra em uma série de desafios e tensionamentos que intensificam  
a compartimentalização do trabalho e, ainda, que muitos profissionais exercem uma atuação  
isolada, sem interação com outros saberes e, consequentemente, sem proximidade com a  
totalidade social que envolve o(a) usuário(a), o que põe em risco a integralidade do  
atendimento.  
434  
Na realidade da RAPS do município estudado, os retrocessos são vivenciados  
diariamente através de iniciativas retrógradas e arbitrárias da gestão municipal, que tendem à  
precarização e ao sucateamento dos serviços de saúde mental. Tais iniciativas são  
manifestações da hegemonia neoliberal que tentam reduzir a importância e a qualidade dos  
serviços públicos, ao mesmo tempo que ampliam a atuação do setor privado. Esses fatores  
abrem espaço para a mercantilização da saúde, submetendo-a às necessidades do mercado,  
mediante a redução de recursos orçamentários para as políticas sociais, o que,  
consequentemente, impacta sobre a não concretização das necessidades em(de) saúde e da não  
efetivação do direito à saúde (Carnut; Ferraz, 2021).  
Acrescentam-se ainda os inúmeros desafios que contrariam as normativas legais e  
constituem-se como fatores limitantes para o trabalho interprofissional nos serviços de saúde  
mental do município. Dessa forma, foi possível constatar que esses serviços, apesar de serem  
compostos por equipes multiprofissionais, nem sempre vão desenvolver um trabalho  
interprofissional, pois os desafios tendem a favorecer práticas isoladas, com pouca ou nenhuma  
interação entre os(as) profissionais.  
Libertas, Juiz de Fora, v. 25, n. 1, p. 413-438, jan./jun. 2025. ISSN 1980-8518  
As implicações da organização do trabalho para a interprofissionalidade na saúde mental  
Este estudo mostra ainda que, apesar de reconhecer a importância do trabalho  
interprofissional para assistência à saúde das pessoas em sofrimento psicossocial, alguns(as)  
profissionais apresentam uma concepção equivocada e confusa sobre interprofissionalidade ou  
trabalho interprofissional que, por vezes, se confunde com interdisciplinaridade ou  
multiprofissionalidade. Esse aspecto pode ser visto como consequência do forte processo de  
fragmentação herdado da divisão social e técnica do trabalho, que resultou em uma formação  
profissional baseada em ações individualizadas e com ausências de projetos educacionais que  
incentivem a interprofissionalidade.  
Muitos desafios podem ser vivenciados no percurso que contempla o trabalho  
interprofissional nos serviços de saúde, uma vez que não basta propor iniciativas para o  
fortalecimento dessas práticas nos serviços existentes e reconhecê-la como uma das formas de  
superar as ações fragmentadas e reducionistas na esfera da saúde. Torna-se necessário, também,  
pensar em estratégias que assegurem o desenvolvimento da interprofissionalidade no contexto  
de enfrentamento à ordem societária que amplia e mantém a fragmentação e divisão do  
conhecimento e do trabalho em saúde.  
Diante desse cenário, os(as) profissionais(as) envolvidos(as) necessitam, para além da  
compreensão da totalidade que abarca o(a) usuário(a), compreender os fenômenos que  
envolvem a atual conjuntura da sociedade brasileira, ainda engrenada por ideais neoliberais que  
tendem à precarização das políticas sociais e à opressão dos direitos humanos. Nesse sentido, a  
compreensão acerca da interprofissionalidade exige a apreensão dos aspectos que influenciam  
historicamente as relações de trabalho, considerando que o modelo de produção capitalista  
incide diretamente no tipo de relação que o ser humano vem estabelecendo com os seus meios  
e instrumentos de produção e, principalmente, com o produto do seu trabalho.  
435  
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O invisível salta aos olhos: saúde mental e  
residência multiprofissional no Hemorio  
The invisible catches the eye:  
mental health and multiprofessional residency at Hemorio  
Bruna Alves da Motta*  
Keiza da Conceição Nunes**  
Ingrid de Assis Camilo Cabral***  
Resumo: Este artigo teve como objetivo  
analisar a percepção dos residentes do programa  
multiprofissional do Instituto Estadual de  
Hematologia Arthur de Siqueira Cavalcanti –  
Hemorio referente à experiência na residência e  
suas implicações na saúde mental desses  
sujeitos. Trata-se de uma pesquisa exploratória  
de caráter quanti-qualitativo, fundamentado no  
Abstract: This article aimed to analyze the  
perception of residents of the multidisciplinary  
program at State Institute of Hematology Arthur  
de Siqueira Cavalcanti – Hemorio regarding the  
experience in the residency and its implications  
on the mental health of these subjects. This is an  
exploratory research of a quantitative and  
qualitative nature, based on the critical-  
dialectical method. The study is supported by  
bibliographical analyses and field research  
carried out from August to September 2023. It  
was found that 88.2% of the respondents had  
some implication in their mental health. In  
método crítico-dialético.  
O
estudo está  
sustentado em análises bibliográficas e pesquisa  
de campo realizada no período de agosto a  
setembro de 2023. Verificou-se que 88,2% dos  
pesquisados tiveram alguma implicação em sua  
saúde mental. Além disso, o estudo evidenciou  
as contradições que permeiam a Residência  
Multiprofissional em Saúde, como também  
apontou suas potencialidades. Dentre as quais,  
um importante espaço de formação em saúde, e  
também um local de sofrimento mental. Desse  
modo, este trabalho visou contribuir para  
maiores reflexões e propor realizações de  
estudos com delineamento interventivo para que  
essa realidade seja modificada.  
addition,  
contradictions  
the  
study  
that  
highlighted  
permeate  
the  
the  
Multidisciplinary Residency in Health, as well  
as pointed out its potentialities. Among which,  
an important space for health training, and also  
a place of mental suffering. Thus, this work  
aimed to contribute to further reflections and  
propose studies with an interventional design so  
that this reality can be changed.  
Palavras-chaves: Saúde mental; Residência  
Keywords: Mental health; Multiprofessional  
multiprofissional; Residentes.  
residency; Residents.  
* Instituto Estadual de Hematologia Arthur de Siqueira Cavalcanti. E-mail: mottabruna@id.uff.br  
** Instituto Estadual de Hematologia Arthur Siqueira Cavalcanti. E-mail: keizanunes@gmail.com  
*** Instituto Estadual de Hematologia Arthur Siqueira Cavalcanti. E-mail: ingridcabral.as@gmail.com  
DOI: 10.34019/1980-8518.2025.v25.47156  
Esta obra está licenciada sob os termos  
Recebido em: 15/01/2025  
Aprovado em: 16/05/2025  
Bruna Alves da Motta; Keiza da Conceição Nunes; Ingrid de Assis Camilo Cabral  
Introdução  
A motivação para a realização deste estudo surge da vivência na residência  
multiprofissional no Instituto Estadual de Hematologia Arthur de Siqueira Cavalcanti  
(Hemorio)1. Após o ingresso nesta modalidade de pós-graduação e a reflexão das circunstâncias  
na qual a residência multiprofissional se insere, origina-se a inquietação a respeito da saúde  
mental dos profissionais residentes na instituição.  
No Hemorio, a residência multiprofissional em Hematologia e Hemoterapia tem início  
em 2017, dotada de regimento próprio revisado periodicamente. Originalmente, as vagas foram  
destinadas às áreas de Serviço Social; Enfermagem; Biologia/Biomedicina. Anos depois, em  
2020, foram incorporados os profissionais odontólogos.  
Hoje, a especialização em modalidade de residência é composta pelas quatro profissões  
anteriormente citadas. Anualmente, doze vagas são disponibilizadas, sendo distribuídas três  
vagas igualmente entre as categorias profissionais. De acordo com o Regimento Interno, o  
ingresso ocorre por meio de processo seletivo incluindo um ou mais dos seguintes instrumentos:  
provas objetivas de múltipla escolha; provas práticas; análise de currículo e/ou entrevista.  
Portanto, podendo ter até 24 residentes do programa multiprofissional ao longo de um ano, a  
saber: doze R1 e doze R2.  
De início, ressaltamos que a construção deste trabalho foi realizada a partir da rotina  
experienciada no processo de residência, isso significa que, a pesquisadora também é afetada  
pelas relações e condições estabelecidas no campo de pesquisa.  
440  
Em síntese, como sujeito ativo no processo de viver, pesquisar, pensar e escrever sobre  
o tema, esta escrita é permeada de experiências, sentimentos e afetos. Parafraseando Silveira e  
Conti (2016), o ponto de partida de uma pesquisa é aquilo que “nos passa, nos toca, nos  
acontece”. Em última instância é o que me passa, me toca e me acontece. E esse movimento  
nos atravessa quando nos colocamos em relação com o campo de pesquisa.  
Em primeiro lugar, o que “nos passa, nos toca e nos acontece” na atualidade em relação  
a uma significativa parcela de egressos do ensino superior na área da saúde é a grande procura  
por esta modalidade de pós-graduação. Observando os dados divulgados pelo Ministério da  
Educação (MEC) sobre os candidatos à residência por intermédio do Exame Nacional de  
1 O Hemorio é uma unidade pública de saúde que presta assistência a pacientes com doenças hematológicas. Seus  
eixos de atuação dividem-se em Hematologia e Hemoterapia. Além disso, é também o hemocentro coordenador  
do estado do Rio de Janeiro, dispensando bolsas de sangue para unidades públicas e particulares conveniadas de  
saúde do Estado.  
Libertas, Juiz de Fora, v. 25, n. 1, p. 439-462, jan./jun. 2025. ISSN 1980-8518  
O invisível salta aos olhos: saúde mental e residência multiprofissional no Hemorio  
Residência (ENARE)2, entre 2021 e 2022 houve um aumento significativo de 70% de  
candidatos às vagas de residência em todo o país.  
Em tese, a residência em saúde é direcionada aos recém-formados, sendo este o requisito  
em alguns programas e editais. Porém, diante do contexto de desemprego estrutural, o ingresso  
na residência vem se tornando uma alternativa de renda e subsistência. Em muitos casos, os  
profissionais ingressam em duas residências de forma consecutiva, e apenas não fazem uma  
terceira residência devido a impossibilidade instituída por lei3.  
Outro fator que nos chama atenção é o aumento exponencial do adoecimento mental da  
população nos últimos anos. Segundo a Organização Mundial da Saúde - OMS (2022), antes  
da pandemia, em 2019, cerca de 970 milhões de pessoas no mundo estavam vivendo com um  
transtorno mental, 82% dos quais em países de média e baixa renda. Durante a pandemia da  
Covid-19, houve o agravamento do adoecimento mental. Nesse contexto, a depressão e a  
ansiedade aumentaram mais de 25% apenas no primeiro ano da pandemia.  
Além dessas premissas fundamentadas em dados numéricos, a vivência rotineira na  
residência transparece, por meio do adoecimento constante dos colegas residentes  
multiprofissionais, a necessidade de identificar a correlação entre saúde mental e residência.  
Evidenciamos nos estudos sobre essa temática que, num primeiro momento, as referências  
bibliográficas sobre essa discussão estão direcionadas à residência médica e a uma análise sobre  
a qualidade dos serviços de saúde ofertados para a população por profissionais médicos. Dessa  
maneira, a discussão e emersão desse tema voltado, também, para os profissionais  
multiprofissionais envolvidos no cuidado em saúde é algo urgente e que não pode ser ignorado.  
Outrossim, a relevância desta pesquisa está nas poucas produções de trabalhos de  
conclusão de residência (TCR) sobre este tema, de forma que foram encontrados trabalhos sobre  
esse assunto, mas em sua maioria produzidos pelos gestores desses espaços. Observamos que,  
em sua maioria, os trabalhos e as pesquisas estão direcionados à elucubração do serviço/prática,  
e não a estruturação dos programas. A discussão sobre a configuração da residência e a saúde  
de seus participantes pode levar à ponderação de possíveis caminhos a serem trilhados pelos  
programas e os integrantes do seu corpo.  
441  
2 O ENARE trata-se de um processo seletivo unificado para ingresso nas residências médicas, uniprofissionais ou  
multiprofissionais em hospitais universitários geridos pela Empresa Brasileira de Serviços Hospitalares (Ebserh).  
A primeira edição ocorreu em 2020.  
3
De acordo com os artigos 1 e 2 da Resolução nº 1, de 27 de dezembro de 2017 da Comissão Nacional de  
Residência Multiprofissional em Saúde, é vedado ao egresso de programa de residência repetir programas de  
Residência, nas modalidades uni ou multiprofissional, em áreas de concentração que já tenha anteriormente  
concluído, sendo permitido ao egresso realizar programa de Residência em apenas mais uma área de concentração  
diferente daquela concluída.  
Bruna Alves da Motta; Keiza da Conceição Nunes; Ingrid de Assis Camilo Cabral  
Como constatado, dos dezoito TCR’s multiprofissionais produzidos no Hemorio que  
tivemos acesso4, não há sequer uma produção direcionada à reflexão do programa. Logo, esse  
cenário nos apresenta a necessidade de desenvolvimento de pesquisas que se debrucem na  
reflexão sobre a estrutura da residência multiprofissional.  
Nesse sentido, residência e saúde mental são campos férteis para mediação e discussão,  
considerando a complexidade histórica e a tensão advinda dos interesses antagônicos existentes  
nesses campos, como veremos ao longo deste estudo.  
Salientamos que este artigo teve suas análises, reflexões, e pontuações pautados na  
consideração de que o processo de participação na vida política, social, cultural e econômica  
não é linear. Sendo assim, existe a necessidade de contextualizar a saúde mental inserida nas  
relações de produção e reprodução da vida no capitalismo. A partir dessa perspectiva, este artigo  
abordará as questões relacionadas à saúde mental como uma expressão da “questão social”.  
A análise proposta neste artigo também se ancora em questões estruturais que sustentam  
os dados encontrados e orientam sua interpretação. A crise atual do capitalismo, marcada pela  
reconfiguração do papel do Estado e pela intensificação das desigualdades sociais, é um pano  
de fundo indispensável para compreender os impactos sociais e emocionais enfrentados por  
profissionais em formação. Nesse contexto, a contrarreforma do Estado, materializada por meio  
de políticas de austeridade, cortes orçamentários e flexibilização das relações de trabalho,  
implica diretamente na precarização das condições de ensino e de trabalho nas Residências em  
Saúde. Esses elementos se entrelaçam ao debate teórico crítico acerca da Residência  
Multiprofissional, que denuncia o deslocamento de seu propósito formativo para uma lógica  
produtivista. Portanto, compreender a experiência da residência exige o reconhecimento dessas  
determinações macroestruturais e das tensões que configuram o campo da saúde no Brasil.  
Sabemos que a inserção em uma residência é complexa e imbuída de significados, e  
essa experiência pode afetar direta ou indiretamente a saúde mental do indivíduo. Nessa  
perspectiva, o objetivo deste artigo é analisar a experiência na residência multiprofissional e  
suas implicações na saúde mental dos residentes multiprofissionais no Hemorio. Ressaltamos  
com isso, a importância de um olhar mais apurado para os profissionais que são responsáveis  
pelos cuidados em saúde.  
442  
Por fim, destacamos a potência desta pesquisa diante da oportunidade de debatermos  
este tema. Em muitos espaços a realização desta seria impossibilitada, visto que os assuntos  
abordados podem ser sensíveis e apresentar as fragilidades das instituições. Portanto,  
4
Os trabalhos encontram-se disponíveis na biblioteca do Instituto Estadual de Hematologia Arthur de Siqueira  
Cavalcanti.  
Libertas, Juiz de Fora, v. 25, n. 1, p. 439-462, jan./jun. 2025. ISSN 1980-8518  
O invisível salta aos olhos: saúde mental e residência multiprofissional no Hemorio  
celebramos a possibilidade e o privilégio de realizar este estudo no Hemorio, instituição de  
referência no estado do Rio de Janeiro e no Brasil.  
Para alcançar o nosso objetivo, realizamos um estudo exploratório embasado no método  
crítico-dialético, utilizando a abordagem quanti-qualitativa. Conforme Minayo e Sanches  
(1993), ambas as abordagens são de natureza distintas. Enquanto a quantitativa atua em níveis  
da objetividade, o método qualitativo interpreta a subjetividade, entre eles: valores, crenças,  
hábitos, atitudes e opiniões.  
O projeto de pesquisa elaborado foi submetido e aprovado pelo Comitê de Ética em  
Pesquisa (CEP) do Hemorio5. A pesquisadora respeitou os critérios éticos das pesquisas com  
seres humanos segundo a Resolução 466/12 e 510/16 que orientam os critérios éticos para  
participação de seres humanos em pesquisas.  
A coleta de dados ocorreu no período de agosto a setembro de 2023, com aplicação de  
questionário semiestruturado disponível na plataforma online Google forms6. Para validação do  
instrumento, realizamos um estudo piloto com dois ex-residentes multiprofissionais. A partir  
desse teste, foram realizadas as modificações sugeridas pelos participantes e consideradas  
necessárias pela pesquisadora.  
O universo da pesquisa foi constituído pelos residentes inseridos no programa entre os  
anos de 2017-2022, perfazendo cinquenta e quatro participantes7. Os critérios de inclusão  
contemplaram os residentes matriculados no período de recorte da pesquisa, contudo,  
excluíram-se os residentes que permaneceram menos de 60 dias matriculados e a pesquisadora.  
Diante dos critérios determinados, um total de 50 participantes foram elegíveis. O  
contato foi efetuado por meio de e-mail no qual constava o link para acesso ao questionário,  
onde continha o Termo de Consentimento Livre Esclarecido (TCLE) em que os sujeitos  
pesquisados optaram por concordar, após serem informados sobre os objetivos, riscos e  
benefícios, da pesquisa. É de suma importância frisar que em todas as etapas deste artigo o  
sigilo foi garantido.  
443  
Foram coletados 36 retornos, equivalentes a 72% dos participantes. Sendo que 68%  
concordaram em responder e 4% manifestaram o desejo de não participar. Esses dados foram  
5 Número do Parecer: 6.179.002.  
6
O Google forms é uma ferramenta online que permite a criação de formulários e questionários para pesquisa e  
avaliação. A escolha por esse modelo de aplicação se justifica pela dinâmica da vida cotidiana, assim,  
possibilitando alcançar o maior número de candidatos em menor período.  
7 O quantitativo informado considera o somatório do número de vagas ofertadas pelo programa ao longo do tempo  
estipulado pela pesquisa.  
Bruna Alves da Motta; Keiza da Conceição Nunes; Ingrid de Assis Camilo Cabral  
organizados, mapeados e sistematizados. Os dados da etapa quantitativa foram apresentados  
em gráficos e tabelas que foram analisados por meio de estatística descritiva.  
As respostas qualitativas foram categorizadas em dados que classificam as unidades de  
significados. “Um sistema de categorias é válido se puder ser aplicado com precisão ao conjunto  
da informação e ser produtivo no plano das inferências” (Bardin, 1977, p. 55). Nesta etapa,  
estabelecemos categorias analíticas para as respostas coletadas na pesquisa de campo, buscando  
articulações importantes entre estas e o referencial teórico.  
A pesquisa de campo foi rica em informações, relatos e ponderações. Por isso, nem  
todos os dados foram analisados e as falas foram selecionadas de maneira que assegurou o sigilo  
dos participantes, ou seja, qualquer escrita que pudesse identificar o sujeito pesquisado foi  
retirada.  
Os participantes foram identificados com o nome do pássaro símbolo da instituição em  
que a pesquisa foi realizada: “Tiê-sangue". Utilizamos o primeiro termo da palavra seguido de  
um numeral para diferenciar os entrevistados. Além de ser emblemático, a escolha por essa  
nomenclatura ocorreu, pois os pássaros estão constantemente associados à ideia de movimento  
e liberdade, elementos que estão relacionados à saúde mental e às lutas políticas e sociais neste  
campo.  
444  
Quem somos?  
Somos quem podemos ser  
Sonhos que podemos ter  
(Somos quem podemos ser, 1988).  
Dos elegíveis para participar da pesquisa, obtivemos um percentual de 72% de  
respostas. A predominância da participação se ateve ao Serviço Social (29,4%) e a Enfermagem  
(29,4%), enquanto com menor participação, a Odontologia (14,7%).  
É relevante salientar que os dados foram analisados a partir da perspectiva ampliada de  
saúde. Considerando essa concepção, a pesquisa traçou o perfil dos residentes do Hemorio  
compreendendo que a situação socioeconômica é um determinante no processo saúde-doença.  
Desse modo, a Tabela 1 apresenta os dados referentes ao perfil do público-alvo da pesquisa.  
Libertas, Juiz de Fora, v. 25, n. 1, p. 439-462, jan./jun. 2025. ISSN 1980-8518  
O invisível salta aos olhos: saúde mental e residência multiprofissional no Hemorio  
Tabela 1: Perfil socioeconômico dos residentes.  
Nº (%)  
Idade  
Até 24 anos  
Entre 25 e 30 anos  
Acima de 30 anos  
Masculino  
Feminino  
Casado (a)  
Solteiro (a)  
Divorciado (a)  
União Estável  
Preto  
Pardo  
Branco  
Sim  
Não  
Sim  
Não  
6 (17,6)  
15 (44,1)  
13 (38,2)  
2 (5,9)  
32 (94,1)  
8 (23,5)  
21(61,8)  
2 (5,9)  
Gênero  
Estado Civil  
3 (8,8)  
Raça/cor  
10 (29,4)  
11 (32,4)  
13 (38,2)  
7 (20,6)  
27 (79,4)  
29 (85,3)  
5 (14,7)  
8 (23,5  
10 (29,4)  
16 (47,1)  
15 (44,1)  
19 (55,9)  
Filhos  
Uso de transporte coletivo  
Tempo de locomoção  
Até 30 min.  
Entre 31 min a 60 min.  
Acima de 60 min.  
Sim  
Bolsa como principal fonte  
de renda familiar  
Não  
Fonte: autoria própria.  
445  
Dentre os resultados obtidos, destacamos para análise a categoria raça/cor, pois  
percebemos durante a pesquisa bibliográfica que os artigos apresentam de forma incipiente o  
perfil de residentes em diferentes instituições, e nos poucos em que encontramos esses dados,  
não existe uma discussão profícua sobre esse tema.  
Os resultados apontam que há uma predominância da raça/cor negra8 (61,08%) no perfil  
dos residentes no Hemorio. Compreendemos que reconhecer-se enquanto pessoa da raça/cor  
negra, é um processo histórico com diferentes significados. Carneiro (2011, p. 58) sinaliza que  
“[..] a identidade étnica e racial é um fenômeno historicamente construído ou destruído”. Ainda  
de acordo com a autora, existe em nosso país uma ausência ou confusão de identidade racial  
atribuídas a miscigenação9.  
8 Partimos da concepção de que a categoria “negro” compreende o conjunto de pardos e pretos.  
9 “Aqui, aprendemos a não saber o que somos e, sobretudo, o que devemos querer ser. Temos sido ensinados a usar  
a miscigenação ou a mestiçagem como carta de alforria do estigma da negritude: um tom de pele mais claro,  
cabelos mais lisos ou um par de olhos verdes herdados de um ancestral europeu são suficientes para fazer alguém  
que descenda de negros se sentir pardo ou branco, ou ser “promovido” socialmente a essas categorias. E o acordo  
tácito é que todos façam de conta que acreditam” (Carneiro, 2011).  
Bruna Alves da Motta; Keiza da Conceição Nunes; Ingrid de Assis Camilo Cabral  
Como um dos elementos que fazem parte desse processo, citamos “a dor da cor” que  
perpassa o indivíduo. Isso indica que se identificar através da autodeclaração como pessoa negra  
é perceber-se suscetível a sofrer opressões, o que pode representar um local imbuído de  
sofrimento da vítima de racismo.  
Embora, no Brasil, haja escassez de produção de dados e estudos sobre os danos  
emocionais causados às vítimas de racismo, é de conhecimento geral que os mecanismos  
discriminatórios produzem nesses sujeitos um dos elementos mais perversos do racismo: o  
sofrimento mental (Carneiro, 2011).  
Além disso, o cenário da pesquisa também evidencia que as residentes, são  
majoritariamente do gênero feminino (94,1%). Essa taxa expressiva, corrobora para o debate  
sobre a divisão sexual do trabalho e a construção dos papéis sociais atribuídos historicamente  
ao gênero desde o Brasil colônia. Neste caso, o papel do cuidado é reforçado quando  
comprovamos que o mercado de trabalho na saúde é majoritariamente constituído por mulheres,  
conforme dados do Conselho Nacional de Secretarias Municipais de Saúde (Conasems). “No  
Brasil, dos seis milhões de profissionais do setor, 65% são mulheres [...]. Em áreas como  
fonoaudiologia, nutrição e serviço social, elas ultrapassam 90% de presença, e 80% em  
enfermagem e psicologia” (Teixeira, 2021, p. 43).  
Diante do exposto até aqui, concluímos que as residentes multiprofissionais do Hemorio  
são, em sua maioria, mulheres negras. Portanto são atravessadas pela questão de gênero e raça  
que perpassam a sociedade e consequentemente o ambiente de trabalho. “A participação da  
mulher negra no mercado de trabalho é marcada pela desigualdade. O caráter discriminatório  
desse processo a designa para atividades com menor remuneração e sem expressão nas  
hierarquias de poder” (Teixeira., 2021, p. 46).  
446  
Para a manutenção de uma lógica dominante e perpetuação dessa hierarquia, a  
reprodução de violências é necessária, por isso, a discussão dessas categorias analíticas são  
indispensáveis na construção do debate sobre saúde mental, pois são fatores geradores de  
sofrimento dado a lógica patriarcal e racista. “Na própria compreensão de sociedade e em seus  
inúmeros conflitos, a raça é um marcador de desigualdade econômica. Raça, assim como  
gênero, são elementos importantes para a problematização das desigualdades sociais” (Teixeira,  
2021, p. 47).  
Os dados também apontam que essas mulheres são majoritariamente solteiras (61,8%),  
sem filhos (79,4%), com idade acima dos 25 anos que fazem/faziam uso de transporte público  
(mais de 80%) com um tempo de deslocamento que ultrapassa os 30 minutos para chegar à  
instituição de formação.  
Libertas, Juiz de Fora, v. 25, n. 1, p. 439-462, jan./jun. 2025. ISSN 1980-8518  
O invisível salta aos olhos: saúde mental e residência multiprofissional no Hemorio  
Contudo, compreendendo a lógica desigual na qual mulheres negras estão inseridas  
socialmente, não podemos deixar de ressaltar a importância de essas ocuparem o lugar numa  
pós-graduação com formação em serviço, um lócus privilegiado, tendo em vista o percentual  
ínfimo de mulheres negras que tem acesso a graduação. E sua inserção no ensino superior se  
deve muito às políticas de cotas adotadas nos últimos anos. Portanto, vemos e consagramos a  
existência de mulheres negras neste espaço como símbolo de luta, resistência e visibilidade.  
De onde viemos, onde chegamos, para onde vamos…  
Todos os dias eu venho ao mesmo lugar  
Às vezes fica longe, difícil de encontrar  
Mas quando o neon é bom  
Toda noite é noite de luar  
(Somos quem podemos ser, 1988).  
Assim como o perfil socioeconômico, o histórico acadêmico/profissional também se faz  
relevante para discussão do tema em questão. Desse modo, o perfil acadêmico e profissional  
das residentes está exposto na Tabela 2.  
Tabela 2: perfil acadêmico/profissional  
Nº (%)  
Profissão  
Biomedicina/Biologia  
Enfermagem  
Odontologia  
Serviço Social  
Privada  
9 (26,5)  
10 (29,4)  
5 (14,7)  
447  
10 (29,4)  
12 (35,3)  
22 (64,7)  
12 (35,3)  
11 (32,4)  
11 (32,4)  
14 (41,2)  
20 (58,8)  
30 (88,2)  
4 (11,8)  
Universidade que cursou a graduação  
Tempo de formado  
Pública  
Menos de 1 ano  
De 1 a 4 anos  
Mais de 4 anos  
Sim  
Não  
Sim  
Já possuía pós-graduação  
Primeira residência  
Não  
Sim  
Não  
21 (61,8)  
13 (38,2)  
Já tinha experiência profissional  
na área da saúde  
Fonte: autoria própria.  
Quando questionados sobre o tempo de formado ao ingressar na Residência  
Multiprofissional, a resposta foi equilibrada, sendo há menos de um ano a predominância  
(35,3%).  
Um número expressivo de 88,2% está inserido na primeira residência. Entretanto, 61,8%  
já possuíam experiência na área da saúde e 41,2 % já possuíam algum título de pós-graduação.  
Bruna Alves da Motta; Keiza da Conceição Nunes; Ingrid de Assis Camilo Cabral  
Os dados apresentados podem ser um indicativo da precarização da política de saúde,  
especificamente da precarização dos vínculos e das formas de contratação instáveis.  
A Política de Saúde, assim como as demais políticas públicas, têm sofrido reflexos do  
neoliberalismo, com constantes cortes e formas de precarização. Um dos elementos mais cruéis  
dessa precarização são as modalidades de contratação em que estão sendo submetidos os  
profissionais de saúde. Nos últimos anos, verificamos um aumento excepcional de vínculos  
frágeis que são geridos por Organizações Sociais (OS’s) e a Empresa Brasileira de Serviços  
Hospitalares (Ebserh). As condições de trabalho precárias decorrentes da “flexibilização” da  
contratação e privatização dos serviços de saúde podem explicar o número significativo de  
participantes que já têm experiência em saúde, porém decidiram por ingressar na residência  
(Silva; Castro, 2020).  
Como é de conhecimento, desde a década de 1990 os ideais econômicos brasileiros são  
pautados no neoliberalismo que tem como um de seus pilares a flexibilização do trabalho e a  
pouca interferência do Estado na economia. O Neoliberalismo e a desresponsabilização do  
Estado em relação aos bens e serviços públicos, corrobora para a agudização das desigualdades  
nas relações sociais estabelecidas pela contradição capital x trabalho.  
Perante as considerações realizadas e diante do resultado da Tabela 2, surge o  
questionamento: a Residência é um meio para qualificação profissional ou para inserção no  
mercado de trabalho?  
448  
Para respondermos a essa pergunta, é essencial compreendermos as configurações no  
mundo do trabalho hoje. O modelo de “acumulação flexível” tem como consequência o  
aumento gradual de um exército industrial de reserva que, em contrapartida, garante cada vez  
menos oportunidades e postos de trabalho. Logo, a residência é vista como uma saída para o  
crescente desemprego estrutural (Harvey, 2011).  
A Residência Multiprofissional em saúde não é exatamente um campo de trabalho, mas  
é uma etapa de formação que visa preparar os profissionais de saúde para um mercado mais  
amplo e competitivo. Ela oferece a oportunidade de adquirir conhecimentos, habilidades e  
competências em um ambiente de aprendizado prático, o que pode tornar os profissionais mais  
qualificados e aptos a exercer suas funções em diversos contextos de saúde.  
Porém, observamos no cenário atual, um esvaziamento do sentido da residência  
multiprofissional em saúde, que pode ocorrer quando a modalidade de ensino é desviada de  
seus objetivos originais e princípios fundamentais, que é a formação em saúde. Alguns dos  
desafios que podem levar à perda do sentido original da residência multiprofissional incluem:  
ausência de integração, priorização de tarefas burocráticas, falta de supervisão adequada e a  
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O invisível salta aos olhos: saúde mental e residência multiprofissional no Hemorio  
carga horária excessiva que expressa as condições de trabalho exaustivas que podem  
comprometer a qualidade da formação, tornando a residência mais uma questão de quantidade  
de horas do que de qualidade do aprendizado.  
Os estudos de Silva (2018) apontam um aumento em investimentos financeiros públicos  
em residências multiprofissionais:  
Sobre a evolução do financiamento de bolsas via MEC, observa-se um  
aumento de cerca de 700% entre os anos de 2010 e 2014. Conforme Relatório  
MEC (BRASIL, 2014), no ano de 2010 foram concedidas 414 (quatrocentas  
e quatorze) bolsas; em 2011, 1.193 (mil, cento e noventa e três) bolsas; em  
2012, 1.750 (mil, setecentas e cinquenta); em 2013, 3.155 (três mil, cento e  
cinquenta e cinco); e no ano de 2014 foram 3.322 (três mil, trezentas e vinte e  
duas) bolsas (Silva, 2018, p. 204-205).  
Na ausência de postos de trabalho e uma bolsa atrativa, atualmente fixada no valor de  
R$ 4.106,9010, muitas vezes, a residência é uma alternativa ao desemprego. Como reflexo disso,  
quatro participantes estão na segunda residência. Um desses relata que se sentiu sobrecarregado  
por tratar-se da segunda residência: “Um período bastante complexo. Além do fato de ser minha  
segunda residência, o que para mim significou uma sobrecarga [...]” (Tiê 1).  
Observamos que as condições objetivas de vida, como o meio de prover as necessidades  
básicas, são elementos determinantes para tomada de escolhas, como o fato de ingressar em  
uma segunda residência. Como confirma a fala do nosso participante: “A residência custou um  
preço alto que eu e muitos, antes e depois de mim, por necessidade se encontram compelidos  
a pagar. Nesse contexto, não dá pra sair porque está insatisfeito” (Tiê 2).  
449  
A partir dessas falas, podemos inferir algumas reflexões para além do desemprego  
estrutural e da acumulação flexível. No período em que os participantes estiveram na residência  
aconteceram dois grandes marcos políticos e socioeconômico: a Reforma Trabalhista - que nós  
iremos denominar de contrarreforma11 - e a pandemia do Coronavírus.  
A contrarreforma trabalhista teve como símbolo a promulgação da Lei da Terceirização  
(Lei nº 13.429, de 31 de março de 2017), que implica em uma série de desmontes de direitos.  
Essa medida em conjunto com outras representa o desmonte da Consolidação das Leis  
Trabalhistas (CLT) aumentando a insegurança e a precarização dos trabalhadores, onde as  
negociações entre capital e trabalho são marcadas por imensa desigualdade, mais ainda no  
contexto de recessão e desemprego.  
10 Valor referente ao ano de 2024.  
11  
O termo contrarreforma designa as transformações conduzidas pelo Estado que, conforme Behring (2008),  
adaptam as políticas nacionais às exigências do capitalismo mundial na tentativa de recompor a hegemonia  
burguesa. Assim, o termo “reforma” seria indevido por se tratar de "uma escolha político-econômica, não um  
caminho natural diante dos imperativos econômicos" (Behring, 2008, p. 198).  
Bruna Alves da Motta; Keiza da Conceição Nunes; Ingrid de Assis Camilo Cabral  
Outro fato que transformou o mercado de trabalho foi a pandemia causada pelo  
Coronavírus no ano de 2020, que impactou a população mundial evidenciando e aprofundando  
as desigualdades estruturalmente construídas, inclusive nas dinâmicas dos serviços de saúde.  
Durante este período houve um aumento do desemprego que fez com que profissionais que já  
concluíram uma residência buscassem uma segunda residência como saída para suporte  
financeiro e manutenção de suas condições básicas de subsistência.  
Portanto, para evitar a perda do sentido da residência multiprofissional em saúde, é  
importante que as instituições responsáveis, os preceptores e os próprios residentes estejam  
comprometidos com os objetivos originais do programa, que incluem a formação profissional  
de qualidade, a integração entre as diversas áreas da saúde e a prestação de cuidados de saúde  
eficazes.  
Como estamos…  
Toda vez que falta luz  
Toda vez que algo nos falta  
(Alguém que parte e não volta)  
O invisível nos salta aos olhos  
Um salto no escuro da piscina  
(Somos quem podemos ser, 1988).  
Como já mencionado, a vivência em uma residência é complexa. Porém, cada indivíduo  
tem experiências distintas desse mesmo movimento. Concordamos então que a vivência pode  
ser coletiva, entretanto, a experiência é individual e singular. É nesse sentido que os relatos de  
experiência ora se complementam, ora se refutam.  
450  
Para alguns, o aprendizado e o crescimento profissional, são os pontos mais relevantes,  
vejamos a seguir:  
[...] através desses medos tive um amadurecimento profissional, que hoje  
atuando como assistente social trago para minha atuação todos os pontos  
positivos que vivenciei na residência e com os pontos negativos, meus medos,  
busco minha mudança a cada dia. A residência me proporcionou crescimento  
profissional, pessoal, conhecimentos e principalmente grandes amizades (Tiê  
3).  
Eu acho que evoluí muito no lado profissional e pessoal. No lado profissional,  
pude aprender e ter acesso a diversas metodologias/equipamentos de ponta  
que são utilizados na minha área e que talvez eu não pudesse aprender/ter  
acesso em outro lugar fora do Hemorio. Então, aprendi muitas coisas novas e  
aperfeiçoei o que já tinha relacionado à minha profissão (Tiê 4).  
Bom, depois do término da residência, pude concluir que a pós-graduação no  
Hemorio foi uma grande base para a minha vida profissional (Tiê 5).  
Libertas, Juiz de Fora, v. 25, n. 1, p. 439-462, jan./jun. 2025. ISSN 1980-8518  
O invisível salta aos olhos: saúde mental e residência multiprofissional no Hemorio  
Contudo, a maior parcela dos entrevistados afirma que a residência tem implicações na  
saúde, causando diversos sintomas e até mesmo diagnósticos de transtornos mentais durante a  
residência, como veremos ao longo deste artigo.  
Quando questionados se a residência teve atravessamentos em sua saúde mental,  
obtivemos um percentual de 88% de respostas positivas. Um número tão expressivo que nos  
causa inquietações.  
Gráfico 1: Implicações da residência na saúde mental.  
Fonte: autoria própria.  
451  
Os motivos pelos quais as respostas acima foram afirmativas são diversos. Todavia, não  
conseguiremos esgotar essa temática aqui. Por isso, destacamos para o debate alguns elementos  
que se repetem nas escritas dos participantes.  
De início, a extensa carga horária de 60 horas semanais é um dos elementos que  
observamos reiteradas vezes nesses relatos:  
A vivência na residência é bem complexa, a começar que a carga horária da  
residência já é extensa, carga horária extenuante traduz falta de tempo para  
realizar atividades profissionais e pessoais fora do ambiente de trabalho.  
Depois de 10 horas, você vai conseguir chegar em casa e estudar? Ter vida  
social e ter 8 horas de sono? (Tiê 6).  
Sem sombra de dúvidas foi o período mais difícil da minha vida! Por que além  
da carga horária de 60h que deve ser cumprida, as atividades para fazer em  
casa no único dia de folga, não nos deixa viver e respirar (Tiê 7).  
Foi difícil. A carga horária era extensa, fazíamos dez horas diárias de segunda  
a sábado na instituição, todas as semanas (Tiê 8).  
A residência proporciona um ambiente de muito aprendizado. No entanto, a  
extensa carga horária associada ao grande tempo de deslocamento para chegar  
à instituição apresenta grande impacto negativo no desenvolvimento  
Bruna Alves da Motta; Keiza da Conceição Nunes; Ingrid de Assis Camilo Cabral  
acadêmico [...] (Tiê 9).  
Carga horária extensa, sem infraestrutura para acolher o residente para que  
realize seu estudo didático, o que poderia ser deixado para ser realizado em  
casa, porém era obrigatória o cumprimento de toda carga horária dentro da  
instituição (Tiê 10).  
É um processo bem cansativo, por se tratar de 60H semanais, mas sobretudo  
pelas inflexibilidades da residência em si [...] visto que muitos setores iniciam  
suas atividades a partir das 8h e temos que chegar às 7h (Tiê 11).  
Ademais, o modelo pelo qual o controle dessa carga horária é realizado na instituição,  
dá-se por meio do ponto biométrico que é utilizado para averiguação do cumprimento das horas  
de serviço. A forma de controle exercida através do ponto biométrico com marcação de entrada  
e saída foi apontada pelos participantes como um grande dificultador em virtude, inclusive, da  
não flexibilização de ajuste no horário/ compensação.  
Ponto biométrico como uma forma de ter controle da hora de entrada e saída  
e obrigar o residente a repor minutos de atraso o que causa angústia caso falte  
horas para completar a carga horária diária. Obrigatoriedade de chegar às 7  
horas da manhã sendo que os atendimentos iniciam às 8 horas da manhã (Tiê  
6).  
Para o residente é constante a sensação de ser "mais uma mão de obra" por um  
lado enquanto por outro é cobrado produção teórica. As bases para esta  
produção têm se mostrado bastante deficitárias indo desde a própria estrutura  
física no serviço para tal, como computadores e locais de estudos silenciosos  
e que se adequem ao extenso horário que é cobrado e controlado por meio do  
ponto eletrônico e também questões que se relacionam a elementos da  
estrutura subjetiva que são impactados pela dinâmica de "estudo no serviço"  
em uma instituição de saúde (Tiê 12).  
452  
Numa perspectiva crítica, a carga horária estabelecida de 60 horas semanais expressa a  
superexploração do trabalho. Na atual ordenação em que a sociedade se encontra, a residência,  
além da função de formar e qualificar a força de trabalho, é apropriada para garantir o acúmulo  
e a valorização do capital.  
Ressaltamos que em 2007, houve alteração na carga horária a ser cumprida por esses  
profissionais, sendo permitida a realização de 40 horas semanais.  
A Portaria 45/2007 estabeleceu a composição e as atribuições da Comissão  
Nacional de Residência Multiprofissional em Saúde (CNRMS), assim como a  
carga horária semanal das atividades desenvolvidas nos programas de  
residência, entre 40 (quarenta) e 60 (sessenta) horas. Definiu, também, que os  
programas de residência multiprofissional e em área da saúde deveriam ser  
desenvolvidos em parceria entre gestores e instituições formadoras em áreas  
justificadas pela realidade local, considerando as necessidades locais e  
regionais, o modelo de gestão, a realidade epidemiológica, a composição das  
equipes de trabalho e a capacidade técnico-assistencial (BRASIL, 2007a). A  
portaria possibilitava que os programas de residência multiprofissional se  
desenvolvessem com o patamar de 40 horas semanais. O estabelecimento  
dessa variação na carga horária, considerando 20% da mesma voltada para  
Libertas, Juiz de Fora, v. 25, n. 1, p. 439-462, jan./jun. 2025. ISSN 1980-8518  
O invisível salta aos olhos: saúde mental e residência multiprofissional no Hemorio  
atividades teóricas, demonstrava certa coerência metodológica com o discurso  
de uma formação que considera o residente como um sujeito no processo de  
formação, no trabalho e na gestão do SUS (Silva, 2018, p. 203).  
Entendemos, porém, que o processo de formação integral do ser humano está  
diretamente relacionado ao trabalho e, consequentemente, ao processo pedagógico. Como  
afirma Tonet (2021), o trabalho é o ato ontológico-primário do ser social, além de ser uma  
atividade eminentemente social.  
[...] a essência humana é produzida pelos próprios homens. O que o homem é,  
é-o pelo trabalho. A essência do homem é um feito humano. É um trabalho  
que se desenvolve, se aprofunda, se complexifica ao longo do tempo: é um  
processo histórico (Saviani, 2007, p. 154).  
Entretanto, dentro do capitalismo, a formação integral do homem é impossibilitada pelas  
desigualdades sociais e pela superexploração do trabalho que apresenta contrariedades  
provenientes dessa estrutura, que tem por característica imanente a divisão da sociedade em  
classes, onde a educação e o trabalho adquirem relações com características particulares que se  
complexificam. Sendo assim, como conciliar, na sociedade de hoje, uma dinâmica que relaciona  
educação, trabalho e ainda a saúde mental? A resposta a essa pergunta pressupõe o debate sobre  
a descaracterização de algo que faz parte da essência do ser social: o trabalho.  
Outro fator relevante para os participantes é a necessidade de compensação de horas de  
atestado médico, que para alguns é uma norma que causa insatisfação/descontentamento. Assim  
está evidenciado nas narrativas a seguir:  
453  
Reposição de atestado de doença: ter a necessidade se repor horas de dias que  
a pessoa está adoecida e incapacitada de, muitas vezes, ter contato com outras  
pessoas e trabalhar (Tiê 6).  
[...] a relação estabelecida entre o programa/coordenação de área e geral e a  
carga horária, como se a exigência das 60 horas fosse o que determina a  
qualidade formativa […] ainda inclui-se a falta de flexibilidade, em nome das  
60 horas, em casos de adoecimento ou outros problemas da vida cotidiana.  
Nota-se que não há uma reflexão profunda e sincera sobre os impactos dessa  
carga horária na saúde física, mental e também na própria qualidade do  
trabalho prestado e frases como "essas são as regras", "quando prestou prova  
já sabia que eram 60 horas" são exaltadas além de um movimento de  
intensificação de cobranças e outros meios retaliativos frente aos  
questionamentos. Há uma naturalização do desgaste, do sacrifício, da  
desumanização desses profissionais que chega ao ponto de reposição de carga  
horária devido a adoecimento mesmo quando esse é oriundo da atividade  
laborativa (Tiê 12).  
Conforme o regimento interno:  
Art. 17º - Será permitida a interrupção temporária do Programa nas seguintes  
situações:  
a) Licença médica para tratamento de saúde, de até 5 dias no ano, consecutivos  
ou não, com percepção de bolsa, mediante apresentação de atestado médico;  
Bruna Alves da Motta; Keiza da Conceição Nunes; Ingrid de Assis Camilo Cabral  
§ 1 º - No afastamento que exceder o período indicado na alínea a deste Artigo,  
deverá ser reposto ao final do PRM e/ou até 10 dias úteis do período de férias  
da residência, sem pagamento da bolsa (Hemorio, 2023, p. 6).  
A instituição na qual o estudo foi executado, baseia-se na Resolução nº 5 de 7 de  
novembro de 2014, para justificar a compensação da carga horária, incluindo as de atestado  
médico:  
Art. 4º A promoção do Profissional da Saúde Residente para o ano seguinte e  
a obtenção do certificado de conclusão do programa estão condicionados:  
I - ao cumprimento integral da carga horária exclusivamente prática do  
programa (Brasil, 2014).  
A resolução acima, em momento algum afirma que os atestados médicos não são  
justificativas para abono de faltas ou confirma que existe a necessidade de compensar estes.  
Logo, o que impera é a compreensão de cada instituição. Cabe a cada unidade a elaboração do  
seu programa, a partir da interpretação das resoluções/leis/portarias e demais instrumentos  
legais.  
Porém, entendemos que a ausência de uma política pública que gerencie a residência  
multiprofissional em saúde em todo o território nacional, assim como existe na política de  
educação, abre diversas brechas para a exploração ainda mais profunda do trabalho. A  
construção de uma política pública de residência envolveria a padronização, institucionalização  
e criação de um arcabouço legal e regulatório que estabelecesse diretrizes para a residência.  
A transformação de programas isolados e com regimentos internos diferenciados em  
uma política pública unificada seria uma mudança significativa que implicaria uma abordagem  
mais ampla e estruturada para a formação de profissionais de saúde. Como bem evidenciado  
no artigo a seguir:  
454  
O conflito entre a organização do trabalho e o funcionamento psíquico pode  
levar ao adoecimento, o que ressalta a importância de uma readequação dessas  
resoluções com um olhar mais humanizado. Propõe-se amenizar essa  
problemática com a redução da carga horária para os residentes, fato que já  
ocorre em diversos países (Coêlho et al., 2018, p. 3.495).  
Além disso, o residente é um sujeito que vive na linha tênue do “binômio estudo-  
trabalho”, não tem vínculo empregatício, como escrito em sua legislação específica, porém,  
possui carga horária extensa e contrato de dedicação exclusiva12 que o impossibilita de vir a ter  
vínculo empregatício durante a residência (Coêlho et al., 2018).  
12 A dedicação exclusiva é uma característica apenas da Residência Multiprofissional. Na Residência Médica, a  
Lei 11.381/2006, revogou a legislação que regulamentava a dedicação exclusiva do médico residente.  
Libertas, Juiz de Fora, v. 25, n. 1, p. 439-462, jan./jun. 2025. ISSN 1980-8518  
O invisível salta aos olhos: saúde mental e residência multiprofissional no Hemorio  
Simultaneamente, o residente é considerado estudante, mas também é requisitado como  
trabalhador. Silva e Castro (2020) concordam que reiteradas vezes, os residentes acabam por  
ser utilizados como mão de obra explorada.  
[...] entendemos que o trabalho em saúde e a prolongada jornada de trabalho  
do residente inscrevem-se nos marcos da exploração do trabalho pelo capital.  
Ou seja, ainda que haja particularidades no “trabalho” do residente, essas  
particularidades não alteram sua condição de trabalhador (ainda que  
temporário) no modo de produção capitalista. Nesses marcos, entendemos que  
60 horas semanais são uma maneira de intensificação da exploração do  
trabalho, incompatíveis com as propostas de formação inscritas na RMS  
(Silva; Castro, 2020, p. 81-82).  
Os relatos dessa pesquisa também condizem com essa argumentação:  
Nenhuma relação é linear ou sem conflitos, porém, em alguns momentos,  
houve excesso e uma certa confusão na compreensão do lugar da residência  
na unidade, levando ao equívoco de abordagens e direcionamentos baseados  
na dicotomia residente/funcionário (Tiê 2).  
As equipes estavam reduzidas e, durante o primeiro ano, os residentes muitas  
vezes taparam o buraco da falta da equipe, independentemente do que dizia o  
cronograma pré-estabelecido para aquele dia. Não posso negar que isso  
melhorou durante o segundo ano. Mas no geral, por ser uma residência nova,  
alguns preceptores não sabiam como lidar com o residente e esse não lugar  
entre trabalhador e estudante (Tiê 8).  
Em primeiro lugar encontra-se a forma como os profissionais envolvidos  
diretamente no acompanhamento e formação dos residentes que tem um  
olhar/modo de lidar com o residente onde o aspecto de que estes são  
profissionais já formados em suas respectivas áreas mesmo que em um  
processo de formação em serviço. Desta forma se constitui uma relação onde  
o conhecimento recém adquirido durante a graduação é menosprezado [...]  
Para o residente é constante a sessão de ser "mais uma mão de obra" por um  
lado enquanto por outro é cobrado produção teórica (Tiê 12).  
455  
A própria forma de organização do programa implica em questões que  
colocam o residente ora como profissional, o que acarreta responsabilidades  
como tal, ora como simples estudantes sendo por vezes infantilizados em  
função disso (Tiê 13).  
Afinal, quem são os residentes na engrenagem do capitalismo? Como constatamos  
acima, os residentes são a base de uma cadeia onde ora são tratados como estudantes, ora como  
profissionais, de acordo com a necessidade dos serviços. Sabemos que o custo da mão-de-obra  
de um residente muitas vezes é mais econômico do que a de um servidor, devido à natureza do  
seu vínculo, além de ser renovada constantemente. Assim a residência garante a manutenção  
do exército industrial de reserva.  
Ademais, sabemos que a forma como a residência atualmente se configura, situa os  
profissionais residentes em uma cadeia de autoridade que apresenta o coordenador da  
Bruna Alves da Motta; Keiza da Conceição Nunes; Ingrid de Assis Camilo Cabral  
COREMU no topo dessa hierarquia e, por último, o residente. Entretanto, no organograma  
elaborado por Coêlho et al. (2018) o residente sequer é representado nessa hierarquia.  
Organograma 1: Hierarquia da Residência Multiprofissional em Saúde.  
Fonte: Coêlho et al., 2018.  
Essas desigualdades no campo do poder, de alguma forma, geram maior probabilidade  
de conflitos internos, falha na comunicação, entre outras situações. Em alguns relatos, essas  
relações estão associadas ao autoritarismo e ao assédio. Entendemos que há uma correlação  
entre as relações de gênero, raça, o lugar que o residente ocupa - nem profissional nem estudante  
- e a reprodução da opressão.  
456  
Há um número significativo de participantes que relatam ter sofrido algum tipo de  
assédio13, por isso, anular esse elemento iria contra o título deste artigo. Visto isso, pontuamos  
estas falas para que sejam visibilizadas e gerem reflexão para se pensar formas de combater  
qualquer tipo de assédio.  
Entendemos que essa pesquisa, para muitos participantes, foi o espaço em que tiveram  
a oportunidade de expressarem as questões que apareceram durante a residência, sem medo de  
consequências. Ou seja, um espaço onde suas “vozes” seriam “ouvidas" no anonimato.  
[...] Muitas vezes são vistos como um “peso” ou “alguém que ganha mais do  
que eu, então precisa ser explorado”, e acredito que essa não é a proposta da  
residência. A proposta é formar especialistas, não pessoas sem autonomia,  
13 A cartilha do Ministério Público do Estado do Rio de Janeiro (2018) configura o assédio moral como uma  
exposição dos trabalhadores a situações humilhantes e constrangedoras, de forma repetitiva e prolongada no  
tempo, no exercício de suas funções. Já o assédio sexual consiste em constranger colegas por meio de cantadas e  
insinuações constantes, com o objetivo de obter vantagens ou favorecimento sexual.  
Libertas, Juiz de Fora, v. 25, n. 1, p. 439-462, jan./jun. 2025. ISSN 1980-8518  
O invisível salta aos olhos: saúde mental e residência multiprofissional no Hemorio  
com medo de errar porque serão muito julgadas/comparadas/expostas ou  
exploradas por alguém que simplesmente não quer fazer o seu trabalho (Tiê  
4).  
Para além disso, as inúmeras questões de assédio moral [...] (Tiê 11).  
Agora, com relação à experiência diária com a residência em si, acho que  
existe muita tensão, pressão e cobrança (e até maldade mesmo) nas relações  
hierárquicas que atrapalham muito que tenhamos uma vivência mais leve.  
Punições por eventos que desconhecemos, tratamento diferenciado entre  
residentes, tensões nos Estudos de Caso, exigência de participação das ações  
mensais e a sensação de estar sempre sendo vigiados e obrigados a pisar em  
ovos são desgastantes (Tiê 14).  
Me envolvi com a residência e sofri assédio [...] decidi buscar outro local para  
minha formação (Tiê 15).  
[...] também passei por situações de assédio sexual relacionado a um  
funcionário da instituição (Tiê 16).  
[...], ressalta-se que no dia a dia, diferentes elementos pontuados aqui e outros  
que não foram citados corroboram para um ambiente onde o assédio moral é  
perpetuado e naturalizado e justificado em nome de uma formação adequada  
para o mercado de trabalho (Tiê 22).  
Apesar dos relatos de assédio, não é possível afirmar se foi realizado algum  
procedimento legal em relação a tal ato. Essa informação não foi coletada, pois o questionário  
não possuía perguntas específicas sobre o tema e não foram fornecidos nas narrativas dos  
participantes.  
457  
Diante de um cenário como esse, o adoecimento físico e mental apresenta-se como  
resultado da vivência da residência. Os relatos de sintomas físicos associados ao processo de  
residência evidenciam gastrite, espasmos musculares recorrentes, e no que tange aos sintomas  
mentais houve uma frequência de respostas das seguintes manifestações: irritabilidade extrema,  
ansiedade, insônia ou distúrbio do sono, angústia, estresse e cansaço como ressaltamos em  
algumas falas a seguir:  
Uma realidade, neste período tem sido a presença constante do distúrbio de  
sono (insônia), um cansaço excessivo, físico e mental, problemas  
gastrointestinais e relacionados à imunidade que permanecem mesmo com a  
estabilização mediante medicamentos, acompanhamento psicológico e  
psiquiátrico (Tiê 12).  
Crises de ansiedade e angústia de ter que retornar ao Hemorio a cada novo dia  
(Tiê 17).  
Crises sistemáticas de ansiedade e na própria unidade sofri desmaio pelo  
desgaste físico e mental (Tiê 18).  
Antes da residência já tinha diagnóstico de transtorno de ansiedade que já  
estava controlada a alguns anos. Com a residência as crises de ansiedade  
voltaram e a terapia ajudava bastante, mas em um certo momento tive que  
interromper as sessões de terapia por falta de tempo [...] (Tiê 19).  
Bruna Alves da Motta; Keiza da Conceição Nunes; Ingrid de Assis Camilo Cabral  
Distúrbios de sono e ansiedade. Estive no Hemorio no período da pandemia.  
E como eu estava longe da minha família com certeza isso teve um impacto  
bem grande na minha saúde mental. Também a rotina inicial de trabalho  
durante os primeiros meses de pandemia também era bem exaustiva e mexeu  
muito com o emocional (Tiê 20).  
Foi de grande aprendizado e amadurecimento profissional, mas foram os dois  
anos de maior piora no quadro de saúde físico e mental devido ao alto nível  
de estresse e cansaço (Tiê 21).  
A partir dessas explanações verificamos que os sintomas são decorrentes do processo  
de ser residente e as condições oferecidas neste processo. O tempo dedicado à residência e a  
dinâmica do trabalho, por vezes, impõe o afastamento da família e a impossibilidade da  
realização do autocuidado, como terapia ou atividades de lazer.  
Perante isto, 76,5% do universo dessa pesquisa relatou que precisaram de acolhimento  
em saúde mental, sendo que ao descreverem onde encontram esse acolhimento, grande parte  
diz que encontrou suporte entre os próprios residentes e/ou com profissional qualificado através  
do plano de saúde.  
Diante dos relatos e diagnósticos de transtornos mentais citados, a Síndrome de Burnout  
nos chama atenção por tratar-se de uma doença decorrente do ambiente de trabalho e por  
observarmos que diversas manifestações citadas são sintomas de esgotamento profissional,  
conforme prevê o Ministério da saúde, o que pode significar um número maior de  
adoecimentos, porém, sem diagnóstico de um especialista. Os estudos de Cavalcanti et al.  
(2018) e Perniciotti et al. (2022) apontam a ligação das residências com o diagnóstico de  
transtornos mentais, dando destaque para a prevalência no número de Burnout14.  
Segundo o Ministério da Saúde, a doença  
458  
Síndrome de Burnout ou Síndrome do Esgotamento Profissional é um  
distúrbio emocional com sintomas de exaustão extrema, estresse e  
esgotamento físico resultante de situações de trabalho desgastante, que  
demandam muita competitividade ou responsabilidade. A principal causa da  
doença é justamente o excesso de trabalho. Esta síndrome é comum em  
profissionais que atuam diariamente sob pressão e com responsabilidades  
constantes, como médicos, enfermeiros, professores, policiais, jornalistas,  
dentre outros (Brasil, 2019).  
Nossa pesquisa demonstra que, dos sujeitos que tiveram acesso à um profissional  
especialista, oito tiveram diagnóstico relacionados à saúde mental, sendo três diagnosticados  
com Síndrome de Burnout.  
Ainda conforme Perniciotti et al. (2022), a síndrome em questão tem aumentado em  
profissionais da saúde de forma geral. Contudo, durante os anos de treinamento em programas  
14 Em 2019, a síndrome foi codificada na Classificação Internacional de Doenças CID 11 (código QD 85).  
Libertas, Juiz de Fora, v. 25, n. 1, p. 439-462, jan./jun. 2025. ISSN 1980-8518  
O invisível salta aos olhos: saúde mental e residência multiprofissional no Hemorio  
de residência, a prevalência é mais elevada, o que faz com que tenhamos um olhar mais atento  
para a Síndrome de Burnout, que já é considerada pela OMS como uma questão de saúde  
pública e, como tal, deveria ser pensada uma forma de diagnosticar e tratar esse adoecimento.  
No Brasil, aproximadamente 30% dos trabalhadores brasileiros sofreram com a  
Síndrome de Burnout em 2022. De acordo com o estudo da International Stress Management  
Association (Isma), o Brasil ocupa o segundo lugar em número de casos diagnosticados,  
superado apenas pelo Japão.  
Destacamos que algumas ações são realizadas para dar suporte ao residente na  
instituição pesquisada. Recentemente, foi implementada e incluída no cronograma da  
residência a atividade denominada de “InterAgir”. São ações em grupos que ocorrem  
mensalmente, sendo coordenada por uma profissional da enfermagem e um psicólogo.  
Além disso, os relatos também demonstram que os afetos e relacionamentos que nascem  
durante a convivência dos residentes são combustíveis para permanecer na jornada que tem  
como objetivo o título de pós-graduação. O acolhimento entre os pares é, segundo os  
entrevistados, um diferencial que traz conforto emocional.  
Apesar disso, encontramos uma taxa de desligamento considerável (29,4%) no  
programa, mas não foi possível identificar a sua causa. O questionamento que fica é se esses  
números têm relação com as questões de saúde mental. Se a resposta for sim, precisamos pensar  
em estratégias para lidar com tal situação, buscando mudanças para o modelo de residência  
multiprofissional instituído no Brasil, pois, embora o estudo tenha sido nessa instituição, há  
casos semelhantes em outras unidades.  
459  
Considerações finais  
A saúde mental tem sido negligenciada por anos, seja pelo seu histórico estigmatizante,  
marginalizado ou desconhecido. Essa negligência tem como elemento crucial, sua manifestação  
invisível ou invisibilizada. Em suma, este estudo buscou trazer uma centelha de luz para a saúde  
mental daqueles que cuidam/tratam da saúde de terceiros e por, muitas vezes, esquece ou é  
esquecido do próprio cuidado de si.  
Foram apresentados os principais elementos que atravessaram a saúde mental dos  
participantes da pesquisa durante a residência. Entretanto, este ensaio não busca limitar ou  
apenas pontuar as limitações de processo de residência multiprofissional, e nem tem a pretensão  
de propor ações internas específicas. Este estudo é um pontapé para que as gestões em toda a  
sua hierarquia pensem no cuidado dos residentes, desta vez, a partir das perspectivas deles.  
Bruna Alves da Motta; Keiza da Conceição Nunes; Ingrid de Assis Camilo Cabral  
Nosso objetivo é proporcionar a reflexão sobre o tema e fomentar que, coletivamente,  
busquemos uma nova configuração de residência multiprofissional, já que os estudos  
desempenhados neste texto comprovam que a residência da forma como está organizada é um  
ambiente adoecedor.  
Como um sistema que objetiva produzir saúde naqueles que o utilizam é, ele  
mesmo, gerador de doenças naqueles que o fazem rodar? Esse paradoxo que  
só pode surgir com a alienação do homem de seus meios de produção não deve  
persistir se quisermos otimizar nosso cuidado para todos neste sistema que  
queremos universal (Marinho et al., 2022, p. 92).  
O resultado dessa pesquisa é apenas um recorte de como a apropriação da Residência  
como forma de maximização da produção e minimização dos gastos, reforça a lógica do  
trabalho na forma em que é concebido hoje, e como isso se materializa na saúde mental.  
Os elementos apresentados não são um caso isolado apenas da instituição. O resultado  
reflete a sociedade e a forma pela qual é realizada a produção e a reprodução da vida. Numa  
sociedade que opta pelo lucro em detrimento da vida e da saúde, a exploração de uma mão de  
obra barata é essencial. E infelizmente, os residentes ocupam esse lugar.  
Para tanto, mudanças precisam ser iniciadas. No plano macro, implementar a residência  
como uma política pública é um passo. Para isso, é necessário o apoio de autoridades  
governamentais em diferentes níveis, bem como o envolvimento de instituições de ensino  
superior, serviços de saúde e outras partes interessadas. Isso requer um planejamento cuidadoso  
na elaboração da regulamentação e diretrizes.  
460  
A transformação da residência em uma política pública é uma medida importante para  
garantir que a formação de profissionais de saúde atenda às necessidades da sociedade e  
contribua para a qualidade e equidade na prestação de serviços de saúde. Os benefícios podem  
ser substanciais em termos de força de trabalho qualificada e atendimento de saúde eficaz.  
No plano institucional, a criação de um projeto multiprofissional em saúde mental  
poderá trazer grandes benefícios, com espaço de escuta e formação, como o debate sobre  
assédio. Isso demonstra um compromisso com o bem-estar e a formação de profissionais de  
saúde, garantindo que eles estejam preparados para enfrentar os desafios da prática assistencial  
e clínica de maneira saudável e sustentável.  
Portanto, concluímos que durante a residência, os sujeitos envolvidos atravessam  
processos que causam sofrimento, porém, também encontraram abrigo e afeto que os faz  
permanecer e suportar a jornada. Residência, no sentido literal, significa moradia, localidade  
onde uma pessoa vive, durante dois anos os residentes vivem intensamente no Hemorio, e neste  
tempo algumas pessoas fazem morada dentro uma das outras.  
Libertas, Juiz de Fora, v. 25, n. 1, p. 439-462, jan./jun. 2025. ISSN 1980-8518  
O invisível salta aos olhos: saúde mental e residência multiprofissional no Hemorio  
Em síntese, realizar esta pesquisa e apresentar algumas considerações acerca do rico  
material que resultou desta, teve grande relevância para aquela que escreve e que vivencia a  
residência. Desejamos ainda que para um número ínfimo da sociedade, o invisível esteja  
materializado nesta pesquisa e, que a partir dessa visibilidade, sejam realizadas reflexões e  
debates - e sendo, talvez, utópica - que esse ensaio consiga auxiliar na criação de uma nova  
forma de organização de residência multiprofissional em saúde, não só no Hemorio, mas  
também no Brasil.  
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462  
Libertas, Juiz de Fora, v. 25, n. 1, p. 439-462, jan./jun. 2025. ISSN 1980-8518  
Judicialização da saúde pública e trabalho  
profissional: de estratégia a fluxo institucional1  
Judicialization of public health and professional work:  
from strategy to institutional flow  
Clara Stephanie Andrade Pereira*  
Resumo: Este artigo propõe debater  
a
Abstract: This article proposes to debate the  
health judicialization and its implications on the  
professional work field showing a critical and  
Marxian perspective. This is a theoretical and  
reflective study carried out through the  
following methodologies: bibliographic review;  
judicialização na saúde e suas implicações para  
o campo do trabalho profissional à luz de uma  
perspectiva crítica e marxiana. Trata-se de um  
estudo teórico e reflexivo realizado através das  
metodologias:  
revisão  
bibliográfica;  
qualiquantitativa; e observação participante.  
Esta pesquisa tem como objetivo contribuir para  
a produção teórica e crítica no campo das  
ciências sociais aplicadas e especialmente para  
o Serviço Social. Destaca-se como principal  
resultado que o recurso da judicialização é  
utilizado frequentemente como estratégia de  
garantia à acesso dos usuários do Sistema Único  
de Saúde (SUS) a bens e serviços em saúde.  
Diante disso, reconhecemos a judicialização  
como parte da fetichização das relações sociais  
capitalistas, abordando as contradições do uso  
deste recurso no campo do trabalho profissional,  
destacando a necessidade da defesa coletiva  
pelo efetivo financiamento do SUS.  
qualitative-quantitative;  
and  
participant  
observation. This research aims to contribute to  
theoretical and critical production on applied  
social sciences´ field, mainly for Social Work.  
The main result is that judicialization is  
frequently used as a strategy to guarantee  
Unified Health System (SUS) users' access to  
health goods and services. Said that, this work  
intends to draw attention to judicialization as  
part of the fetishization of capitalist social  
relations and the contradictions of this resource  
usage in the professional work field,  
highlighting the need for collective defense for  
effective financing of the SUS.  
Palavras-chaves: Estado; Judicialização;  
Keywords: State; Judicialization; Health;  
Saúde; Neoliberalismo; Serviço Social.  
Neoliberalism; Social Work.  
1
Este estudo foi financiado pela FAPERJ - Fundação Carlos Chagas Filho de Amparo à Pesquisa do Estado do  
Rio de Janeiro, Processo SEI 260003/001060/2025.  
* Universidade Federal do Rio de Janeiro. E-mail: boscoliclara@gmail.com  
DOI: 10.34019/1980-8518.2025.v25.45675  
Esta obra está licenciada sob os termos  
Recebido em: 20/08/2024  
Aprovado em: 11/12/2024  
Clara Stephanie Andrade Pereira  
Introdução  
Na política de saúde, frequentemente, a judicialização tem sido requisitada enquanto  
estratégia de sobrevivência àqueles que não conseguem acesso à política de saúde pública ou à  
assistência em saúde através dos recursos administrativos disponíveis (Fernandes, 2023; Diniz,  
2013). Essa estratégia de busca pela efetivação do direito revela contradições antigas do campo  
jurídico, como a suposta efetividade da justiça burguesa para aqueles que conseguem acessá-  
la. Além disso, evidencia que a operacionalização da política de saúde, incluindo os recursos  
orçamentários, tem sido insuficiente para garantir o direito à universalidade de acesso e  
tratamento (Andreazzi, 2017) como está previsto nos marcos constitucionais e nas Leis que  
consolidam, regulam e organizam as ações e serviços em saúde pública no Brasil - Lei 8.080/90  
e 8.142/90.  
Nossa análise parte da perspectiva de que, ao restringir a luta pela efetivação do direito  
ao recurso jurídico formal da judicialização de determinadas necessidades coletivas, contribui-  
se para a despolitização do debate na arena pública (Barison, 2014). Assim, a questão social é  
tratada como um problema individual do sujeito, capaz de ser resolvido pela adequação ao  
poder do "cumpra-se".  
Objetivamos, com essa abordagem, elevar o debate sobre a judicialização para o campo  
do trabalho profissional, desvelando as contradições inerentes à relação entre a política de saúde  
pública no Brasil, a Justiça e o Direito. Questionamos de que forma essas esferas dialogam na  
busca pela efetivação do direito e o que elas ocultam ao desconsiderar as características sócio-  
históricas do campo jurídico, do Direito no Estado burguês e da consolidação da política de  
saúde no contexto do aprofundamento neoliberal no Brasil.  
464  
Esta pesquisa tem como base teórico-metodológica os fundamentos do pensamento  
marxista – o materialismo histórico-dialético, desenvolvido originalmente nas obras de Marx  
no século XIX e revisitado por diversos autores ao longo do tempo. Partindo dessa perspectiva,  
é a realidade que mostra sua dinâmica, e não o pesquisador que constrói a dinâmica da realidade  
com base em hipóteses e conceitos. Netto (2009, p. 8) expressa que, para Marx, “o  
conhecimento teórico é o conhecimento do objeto tal como ele é em si mesmo, na sua existência  
real e efetiva, independente dos desejos, das aspirações e das representações do pesquisador”  
À luz de uma perspectiva marxista e marxiana, recorremos também à revisão  
bibliográfica como metodologia de pesquisa, buscando referenciar autores que, diante da  
universalidade proposta pelo tema, o particularizam na dinâmica da realidade social brasileira.  
Tomamos essa chave de análise como referência, em oposição à hegemonia das bibliografias  
predominantes sobre a judicialização da política de saúde, que são forjadas sob a perspectiva  
Libertas, Juiz de Fora, v. 25, n. 1, p. 463-479, jan./jun. 2025. ISSN 1980-8518  
Judicialização da saúde pública e trabalho profissional: de estratégia a fluxo institucional  
liberal do Direito. Essa perspectiva ratifica a centralidade do poder judiciário em emitir juízos  
e determinar o acesso a recursos ou serviços de saúde (Barroso, 2009) e de outros campos da  
vida social, ocultando questões cruciais sobre a organização, competência e os conflitos entre  
os poderes, além dos limites do Direito burguês nas relações sociais produzidas pelo modo de  
produção capitalista.  
Utilizaremos essa problemática da disputa sobre o direito de dizer o que é o direito  
(Bourdieu, 1989) enquanto recurso analítico, entretanto para nós é igualmente relevante nos  
debruçarmos sobre os efeitos da judicialização do acesso ao direito à saúde a partir das questões  
objetivas enfrentadas pelas(os) usuárias(os), e trabalhadoras(es) do Sistema Único de Saúde,  
especialmente das(os) assistentes sociais. Para fundamentar essas questões, tomamos também  
como norte a metodologia de observação participante, facultada através das experiências  
profissionais da autora, especialmente durante a residência multiprofissional com ênfase em  
Serviço Social em um Hospital Universitário.  
A simbiótica relação entre teoria e prática, ensejadas desde o processo de formação em  
Serviço Social, acrescidas às experiências profissionais, e a busca pelo aprimoramento  
intelectual através da qualificação profissional nos espaços de formação permanente, nos  
conferem a competência de investigar as questões relevantes e cadentes ao nosso tempo, à nossa  
profissão e às Ciências Humanas e Sociais Aplicadas.  
465  
Recorremos também à análise qualiquantitativa sobre os trabalhos publicados acerca do  
tema da “Judicialização da Saúde pública” nos anais dos principais encontros de trabalhadores  
e pesquisadores do Serviço Social: Encontro de Pesquisadores em Serviço Social (ENPESS) e  
Congresso brasileiro de Assistentes Sociais (CBAS). Com essa abordagem, buscamos  
identificar as tendências hegemônicas acerca do debate sobre a perspectiva do Serviço Social.  
Durante nossa pesquisa bibliográfica sobre os anais do Encontro de Pesquisadores em  
Serviço Social (ENPESS) em 2018 e 2022, encontramos apenas um artigo sobre o tema da  
judicialização. Ainda durante a nossa pesquisa bibliográfica, especialmente sobre os anais do  
Congresso brasileiro de Assistentes Sociais (CBAS), nos anos de 2019 e 2022, encontramos o  
total de 11 artigos sobre o tema.  
Tabela 1: Trabalhos publicados nos anais do ENPESS, 2018 e 2022, que abordam o tema da Judicialização da  
Saúde.  
ENPESS 2018  
01  
ENPESS 2022  
0
Fonte: Elaboração própria.  
Clara Stephanie Andrade Pereira  
Tabela 2: Trabalhos publicados nos anais do CBASS, 2019 e 2022, que abordam o tema da Judicialização da  
Saúde.  
CBASS 2019  
04  
CBASS 2022  
07  
Fonte: elaboração própria.  
Uma análise qualitativa sobre os trabalhos supracitados nas tabelas 1 e 2, demonstra que  
todas estas pesquisas acerca do tema da Judicialização da Saúde partem da experiência  
profissional de assistentes sociais em seus espaços sócio ocupacionais, bem como da  
experiência de graduandos durante o estágio obrigatório em Serviço Social. Tal empenho  
recobra o que Teixeira (2006) categoriza como sistematização da prática.  
Asistematização da prática é “antes de tudo uma estratégia que lhe recobra sua dimensão  
intelectual, posto que põe em marcha uma reflexão teórica, assim como possui uma dimensão  
“realimentadora da própria condução de seu trabalho” (Teixeira, 2006, p. 5), ou seja, a  
sistematização da prática é um momento essencial durante o qual podemos fazer uma avaliação  
crítica de nosso trabalho, dos instrumentos utilizados, do aporte teórico metodológico  
mobilizado em nossas intervenções profissionais, e das estratégias de enfrentamento às  
demandas postas no cotidiano profissional.  
Tal análise assenta também no tipo de evento, em matéria de Serviço Social, que tem  
recebido e aprovado o maior, ainda que não muito expressivo, contingente de trabalhos acerca  
do tema; o congresso de assistentes sociais brasileiros (CBASS) afirma-se como o principal  
espaço em que os trabalhadores e estagiários encontram para socializar suas pesquisas.  
No âmbito das produções acadêmicas, ainda são muito tímidas as que abordam o tema  
da Judicialização na Saúde no campo do Serviço Social. Tratando de dissertações e teses, a  
produção mais recente que encontramos, é uma tese do ano de 2023 do programa de Pós  
Graduação em Serviço Social da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), intitulada “O  
direito à saúde e contradições da sua judicialização no Brasil” da Dra. Rafaela Bezerra  
Fernandes.  
466  
Quando buscamos orientações sobre o tema dentro das publicações do conjunto  
profissional CFESS/CRESS2, encontramos um significativo debate sobre a profissão no campo  
sociojurídico, como o livro “Sociojurídico em debate”, reúne palestras do 2º seminário nacional  
do Serviço Social no campo sociojurídico na perspectiva da concretização de direitos. Neste  
mesmo livro temos o registro da I conferência de título “A Judicialização da Questão Social -  
2
Conselho Federal de Assistentes Sociais; Conselho Regional de Assistentes Sociais.  
Libertas, Juiz de Fora, v. 25, n. 1, p. 463-479, jan./jun. 2025. ISSN 1980-8518  
Judicialização da saúde pública e trabalho profissional: de estratégia a fluxo institucional  
desafios e tensões na garantia dos direitos”, que de forma mais ampla traz elementos  
importantes que também aparecem no trabalho profissional na Saúde Pública. Entretanto, não  
encontramos produções que particularizem o debate da judicialização dentro da política de  
Saúde, portanto não abordando as suas especificidades.  
Com a pesquisa, concluímos que o tema da judicialização da saúde, embora não seja  
novo, não possui expressividade no âmbito das produções científicas da categoria profissional.  
Entretanto, observamos, também, a direção social estratégica do projeto ético político do  
Serviço Social brasileiro expressa a sua hegemonia nas produções científicas analisadas.  
Judicializar ou não judicializar? Eis a questão.  
A implementação das políticas sociais a partir da perspectiva valorativa dos Estados  
neoliberais altera substancialmente as condições de manutenção e reprodução da vida da classe  
trabalhadora e dos/as subalternos. No contexto de expansão imperialista mundial, a disputa  
acirrada de produção de novas tecnologias, também as crises cíclicas de superprodução do  
capital cada vez mais recorrentes, induzem a necessidade de reorganização dos arranjos  
econômicos e políticos de manutenção do capital, de superexploração da força de trabalho e,  
como aponta Virgínia Fontes (2010; 2018), do surgimento de novas formas de expropriação de  
direitos.  
467  
As mudanças introduzidas nos processos de produção e nos mecanismos jurídicos  
normativos do Estado burguês, criam um cenário de esgotamento do papel civilizatório do  
capitalismo contemporâneo. Behring (2008; 2021) e Corletto (2010) reconhecem que no Brasil  
o projeto de contrarreformas neoliberais objetiva-se no desmonte das leis trabalhistas, na  
terceirização e flexibilização dos serviços, no aumento do empreendedorismo como fuga do  
desemprego, na ascensão do mercado de serviços do terceiro setor e no aparecimento de  
diversas formas jurídicas contratuais entre empregado e empregador.  
Nos países de capitalismo dependente, como é o Brasil, esse cenário é mais assustador  
quando associado ao subfinanciamento e desfinanciamento das políticas sociais, produzindo  
ainda mais desigualdade social. Na política de saúde, esse projeto político-econômico  
neoliberal incide diretamente sobre a desresponsabilização do papel do Estado, especialmente  
do poder executivo e legislativo, voltado a elaborar, planejar, implementar e efetivar políticas  
sociais que atendam as necessidades históricas e atuais da classe trabalhadora e dos/as  
subalternos no Brasil.  
Os efeitos desse projeto na vida social dos usuários da política de saúde pública, defronte  
a omissão dos poderes executivo e legislativo (em esfera federal, estadual e municipal) em  
Clara Stephanie Andrade Pereira  
garantir a universalidade de acesso à saúde, e à assistência direta em saúde tem provocado cada  
vez mais a procura pela intervenção do poder judiciário (Barison, 2015; Fernandes, 2023), para  
inquirir as esferas supracitadas, e através do poder do “cumpra-se” decidir como esses poderes  
devem agir diante da ineficiência em promover as ações e serviços de que concernem à sua  
competência.  
Algumas chaves centrais para compreender o uso do recurso da judicialização passam  
por sistematizar as necessidades sociais apresentadas pelas/os usuárias/os do Sistema Único de  
Saúde (SUS) que justificam que ele esteja sendo requisitado e utilizado; e através da  
sistematização investigar se os princípios e diretrizes do SUS, inscritos nos marcos legais do  
suposto “Estado Democrático de Direito”, estão ou não sendo efetivados. Aliás, os princípios e  
diretrizes do SUS podem ser plenamente realizados no Estado burguês?  
Uma outra questão importante para o nosso debate sobre a judicialização diz respeito ao  
trabalho profissional das/dos assistentes sociais nos espaços sócio ocupacionais da área de  
saúde. O que leva a/o assistente social a ser requisitado, quando reconhecida a competência do  
seu conhecimento instrumental, a orientar as/os usuárias/os a buscar a efetivação de direitos  
através do recurso da judicialização, e com quais intencionalidades essas ações têm sido  
orientadas.  
O que faz um assistente social diante da profunda precarização dos serviços e bens de  
saúde? Como agir frente à extrema focalização da política de assistência social e à insuficiência  
de medidas voltadas para a proteção de idosos e pessoas com deficiência? Quais estratégias  
adotar diante da fragilidade das políticas de apoio às mulheres vítimas de violência doméstica  
e aos jovens afetados pela violência do Estado? Além disso, como lidar com a ausência de  
políticas públicas voltadas às famílias, especialmente considerando que as mulheres são  
frequentemente as principais cuidadoras e assumem a maior responsabilidade pelo cuidado no  
âmbito da saúde? E, por fim, quais caminhos seguir frente aos desafios na implementação da  
Política Nacional de Saúde Integral da População Negra e LGBTQIAPN+? Essas questões  
revelam a complexidade do trabalho do(a) assistente social em um cenário marcado por  
desigualdades e insuficiências nas políticas públicas.  
468  
Diante dessas dificuldades em orientar, encaminhar e acompanhar as/os usuárias/os na  
busca do acesso aos recursos materiais e humanos indispensáveis para o tratamento de saúde, e  
em alguns casos, imprescindíveis para a desospitalização, considerando a integralidade do  
cuidado e o direito à vida, que a judicialização passa a ser uma estratégia (contraditória)  
requisitadas por assistentes sociais que atuam na política de saúde.  
O que nos provoca reflexão é se este recurso, amplamente requisitado por profissionais  
Libertas, Juiz de Fora, v. 25, n. 1, p. 463-479, jan./jun. 2025. ISSN 1980-8518  
Judicialização da saúde pública e trabalho profissional: de estratégia a fluxo institucional  
e usuários/as, tem se consolidado como o único ou principal mecanismo de acesso a direitos,  
deixando de ser uma estratégia pontual para se tornar parte do fluxo institucional. Além disso,  
questiona-se se, diante do sucateamento e do subfinanciamento da política de saúde pública e  
das demais políticas sociais, os/as assistentes sociais estariam reforçando soluções individuais  
em detrimento de alternativas coletivas, sucumbindo às seduções das narrativas neoliberais.  
Supervalorização do poder judiciário e as contradições da judicialização da  
política de saúde no Brasil  
A promulgação da Constituição Cidadã de 1988, além de positivar os direitos  
fundamentais, também atribuiu ao Poder Judiciário a função de justiciabilidade3, atribuindo-lhe  
o protagonismo no processo de interpretação constitucional, deslocando-o em última instância  
para o Supremo Tribunal Federal (de acordo com o artigo 102 da CF/88). Tal organização tende  
a dinamizar uma dada cultura jurídica e o caráter regulador e controlador característico deste  
poder, estruturado em uma concepção de coesão social da Justiça brasileira “enquanto formas  
institucionalizadas das ideias de Direito e Justiça” (Souza, 2006, p. 62).  
Desde a redemocratização do Estado brasileiro (1988), temos um cenário em que os  
atores juristas ganham determinado valor para decidir sobre a vida social dos “sujeitos de  
direito”, ampliando a regulação social para campos mais coletivos, como os direitos sociais: da  
saúde, da educação, e da assistência etc. Os avanços desta atribuição ao Poder Judiciário,  
atribuíram-lhe uma prática jurídica debruçada à interpretação do texto constitucional  
democrático, contornando-lhe uma feição não somente punitivista, mas também um  
instrumento de fortalecimento de defesa da cidadania.  
469  
Com a prerrogativa da interferência deste poder diante da questão social que se agudiza  
com a mundialização e ascensão do neoliberalismo, a função de justiciabilidade, em nossa  
hipótese, está o tornando protagonista político da busca pelo acesso a direitos sociais. Nessa  
medida, Machado (2008, p. 73) afirma que no campo do direito se estabelecem duas correntes  
de pensamento: “uma que vê no ativismo político do judiciário um empecilho para o  
desenvolvimento da cidadania e outra que atribui a este fenômeno uma forma de ampliação da  
própria cidadania”. Essa afirmação expressa as contradições de qualquer outro trabalho liberal,  
ou seja, em seu interior há disputas ideológicas quanto ao “monopólio do direito de dizer o que  
é o direito” (Bourdieu, 1989, p. 212), sendo este o lócus que permite demonstrar as contradições  
da sua própria forma.  
3
Ajusticiabilidade é o afiançamento estatal dos direitos como contrapartida do monopólio da justiça pelo Estado”  
(SAES, 2008, p. 88).  
Clara Stephanie Andrade Pereira  
O direito seria, em sua essência, um direito de classe, de classe dominante; o  
que não impede, porém, que se configure como um fenômeno complexo que  
não pode ser analisado com vista somente à “essência” classista do direito.  
Deve o direito ser visto tendo em conta a reprodução do complexo social total  
a qual envolve tanto a mediação das classes sociais quanto a linguagem, a  
divisão do trabalho e o próprio cotidiano (Sartori, 2010, p. 79).  
No Brasil, o denominado Estado democrático de direito nasceu sob o espectro de seus  
algozes, ou seja, existiu um descompasso entre a modernização das instituições democráticas  
burguesas - compostas hegemonicamente pela classe dominante e que, segundo Almeida  
(2014), tem como característica fundamental ser de tom “personalista e conservador” - e os  
interesses políticos desta mesma classe que buscou democratizar suas instituições, mas sem  
abrir mão dos seus valores e privilégios.  
Ademais, considerando o processo de expansão de direitos inaugurados com a  
Constituição de 1988, é importante ressaltar, como nos lembra Keller e Keller (2020), que esse  
salto democrático convive com o aprofundamento de uma cultura de cenário de crise. Tal  
ideologia sugere as reformas neoliberais como respostas às necessidades coletivas, ocultando  
os reais interesses privados da classe dominante.  
Todas as mudanças introduzidas nos processos de produção a partir da crise de 1970,  
por meio da reestruturação produtiva, financeirização e competitividade do mercado, e pela  
decadência do Walfare State - que no Brasil nunca se realizou plenamente - criam um cenário  
de esgotamento do papel civilizatório do capitalismo contemporâneo (Netto, 2012). Nestas  
condições, o neoliberalismo surge como síntese de respostas a esta realidade que se  
complexifica e que exige novos ordenamentos no plano econômico, político e social a fim de  
garantir as altas taxas de lucro das elites internacionais, e dos caprichos das burguesias  
nacionais.  
470  
O neoliberalismo, como a razão do capitalismo contemporâneo, aparece como um  
“sistema de normas que hoje estão profundamente inscritas nas práticas governamentais, nas  
políticas institucionais, nos estilos gerenciais” (Dardot; Laval, 2016, p. 30), ou seja, nas relações  
sociais capitalistas. Neste contexto de profundas transformações sociais, o que a judicialização  
revela é que os direitos constitucionais não podem ser realizados, ao menos parcialmente, pois  
carecem de vontade política e organização econômica.  
Ora, se a universalidade do direito à saúde gozasse de efetividade, e as políticas sociais  
atendessem às necessidades sociais, o poder judiciário não estaria sendo alvo de ajuizamento  
como os que vemos e orientamos em nosso exercício profissional, desde os mais complexos  
aos mais simples, como, por exemplo: os de acesso a tratamento adequado ao/à usuário/a, a  
vaga em leito hospitalar, a vaga para tratamento oncológico. Acesso a medicamentos de baixo  
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e alto custo reconhecidos pela Anvisa, cadeiras de rodas e higiênicas, medidor de glicose,  
oxigenioterapia, vagas em residência terapêutica, transporte para tratamento de saúde, e tantos  
outros.  
Quem são os sujeitos de direito?  
Um aspecto essencial para nossas análises é a compreensão de que a estrutura jurídica  
na sociedade burguesa pressupõe a conexão entre os sujeitos de direito, livres proprietários de  
mercadorias, e o processo de troca dessas mercadorias. Essa relação tem um caráter puramente  
formal, e essa formalidade só pode ser revelada por meio das bases teóricas de Marx e do  
pensamento marxista a respeito do modo de produção capitalista e da mercadoria.  
Marx (1985) revela que os produtos do trabalho humano, realizados como valor de uso  
- trabalho concreto - expressam o caráter ontológico do trabalho. Trata-se, portanto, de  
reconhecer a centralidade ontológica do trabalho em qualquer organização social para o  
processo de autoconstrução do ser social. O trabalho, como modelo primordial de práxis, revela-  
se em toda atividade humana e tem como finalidade atender às necessidades humanas, sendo  
central para o desenvolvimento do ser social.  
No modo de produção capitalista, o caráter ontológico do trabalho assume uma  
processualidade negativa em face do valor de troca - trabalho abstrato. Essa nova valoração da  
atividade trabalho tem sua determinação histórica no modo de produção capitalista, sendo fruto  
do desenvolvimento das forças produtivas, das técnicas, da substituição do trabalho artesanal  
para industrial, e principalmente do assalariamento do trabalho, alterando a relação do ser  
humano com a atividade trabalho. Para Marx (1985), essa relação de troca reduz o caráter do  
trabalho como atividade vital e consciente para uma atividade alienada e hegemonicamente  
quantitativa em um processo de coisificação do homem.  
471  
Marx consegue desvelar a respeito do conteúdo da forma valor, a noção de que o valor  
atribuído a determinada mercadoria só pode ser confrontado em virtude de outra mercadoria,  
sendo a força de trabalho a objetivação mais barata dessa relação de troca. Dessa estrutura  
econômica, essencialmente composta de interesses privados e antagônicos, edifica-se uma  
estrutura social para atender às necessidades dessa forma específica de organização do trabalho  
no modo de produção capitalista.  
Pachukanis (1998, p. 68), ao analisar a relação entre mercadoria e sujeito de direito, dirá  
que “toda relação jurídica é uma relação entre sujeitos. O sujeito é o átomo da teoria jurídica, o  
seu elemento mais simples, que não se pode decompor”. Ao estabelecermos uma relação entre  
a realidade concreta e as formas como se constituem as relações jurídico-formais entre os  
Clara Stephanie Andrade Pereira  
sujeitos de direito na cotidianidade, veremos que a propriedade é apenas o meio pelo qual os  
sujeitos estabelecem relações universais.  
Ainda que a abstração formal do sujeito de direito pressuponha a existência da  
propriedade, as formas jurídicas objetivadas em relações contratuais não são feitas entre duas  
ou mais propriedades, pois a coisa (os meios de produção, a mercadoria, a força de trabalho e  
todas as relações sociais capitalistas) em si não possui vontade tampouco razão, elas não se  
autodenominam e estabelecem por si só seus próprios valores, é o ser social quem possui razão,  
e é por meio dele que se estabelecem relações universais, “assim, o vínculo social, enraizado  
na produção apresenta-se simultaneamente sob duas formas absurdas; por um lado como valor  
de mercadoria, e, por outro, como capacidade do homem ser sujeito de direito” (Pachukanis,  
1998, p. 71).  
Nas análises de Kashiura (2012, p. 70) “a relação entre sujeito e coisa é fundamento  
para a relação entre sujeito e sujeito - toda relação entre sujeitos de direito é, antes de tudo, uma  
relação entre proprietários” A universalidade do sujeito de direito, proprietários que se  
relacionam de maneira livre e jurídica, está intimamente relacionada à universalidade da livre  
circulação de mercadorias.  
Ante estas sumárias reflexões sobre a forma e a objetivação dos “sujeitos de direito”, é  
possível compreender as complexas mediações existentes entre a universalização da forma e a  
objetivação do Direito. É fundamental que saibamos discernir que o Estado não é o lócus da  
vontade geral (Hegel, 1997), mas sim o lócus de disputa de interesses antagônicos (Marx, 2013)  
e, portanto, as relações de desigualdades e dominação constitutivas do modo de produção  
capitalista, irão se expressar em todos os campos da vida social.  
472  
Assim, a abstração da forma “sujeito de direito” embora revestida de uma suposta  
universalidade na qual todos somos sujeitos de direito protegidos pelos mesmos imperativos da  
lei, sustenta-se apenas em sua forma abstrata. Na vida objetiva, quando determinada classe  
dominada necessita recorrer ao Estado para ter direitos reconhecidos, constatamos que são  
reproduzidas as mesmas relações de dominação e desigualdades do cotidiano.  
Para as/os assistentes sociais, é imprescindível desvelar as relações antagônicas entre os  
interesses dos nossos usuários – sujeitos de direito – e os interesses em disputa de toda uma  
superestrutura que compõe o Estado, principalmente na conjuntura atual de desmonte e  
desfinanciamento das políticas sociais, bem como das formas atualizadas de conservadorismo  
e criminalização da pobreza. A clareza de como os interesses antagônicos objetivam-se no  
cotidiano, nos convida a refletir e criar alternativas que dinamizam e expressam a luta de  
classes, e a função do Estado como “produto e a manifestação do antagonismo inconciliável  
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das classes” (Lenin, 2007, p. 37), e não apenas reiterando alternativas reificadoras no cotidiano  
profissional.  
Assistentes sociais: o que fazer?  
É comum no cotidiano profissional, as/os assistentes sociais serem acionadas, tanto  
pelos usuários quanto pela equipe multiprofissional, para dar respostas quanto às necessidades  
biopsicossociais que agudizam as questões clínicas dos usuários, e/ou inviabilizam o tratamento  
preconizado. Para respondê-las, buscamos nos atentar às respostas profissionais que articulam  
a nossa instrumentalidade aos recursos disponíveis e indisponíveis. Ou seja, articular respostas  
que visam uma finalidade específica, pois, como nos mostra Guerra (2000) “é por meio desta  
capacidade, adquirida no exercício profissional, que os assistentes sociais modificam,  
transformam, alteram as condições objetivas e subjetivas e as relações interpessoais e sociais  
existentes num determinado nível da realidade social: no nível do cotidiano”.  
É comum em nosso cotidiano profissional encontrar usuários que não possuem recursos  
materiais próprios para custear o tratamento preconizado, como acesso a medicamentos; acesso  
a insumos como equipamentos especializados; acesso a transporte para tratamento de saúde;  
acesso a bens e serviços em geral.  
Na ausência de recursos que possibilitem o acesso ao tratamento de saúde recomendado,  
os usuários do Sistema Único de Saúde, assim como a equipe multiprofissional, acionam o  
Serviço Social para solicitar respostas às suas necessidades, as quais, quase sempre, não teremos  
de forma imediata. O que percebemos é que, na ausência de recursos institucionais e  
administrativos que atendam as demandas apresentadas, e sob o manto do imediatismo do  
cotidiano institucional, as/os assistentes sociais buscam encaminhar as questões solicitadas de  
forma pragmática.  
473  
Diante do esgotamento ou ausência de recursos para questões sociais que não se  
resolvem imediatamente, pois encontram-se no campo da práxis política e necessitam de  
mobilização e correlação de força favorável aos interesses da classe trabalhadora e subalternos  
(aqui objetivadas como nossos usuários), por vezes buscamos na alternativa da judicialização  
as respostas para a demanda institucional apresentada, tornando o uso contencioso deste recurso  
parte do fluxo institucional, fortalecendo a perspectiva de supervalorização do poder judiciário  
e a despolitização da questão social.  
Portanto, ao assumir para o Serviço Social a responsabilidade de atender  
pragmaticamente as requisições institucionais sem fazer um debate coletivo sobre as  
dificuldades de objetivar direitos na atual conjuntura, contribuímos para a despolitização das  
Clara Stephanie Andrade Pereira  
questões requisitadas, portanto, não encaramos o enfrentamento coletivo defronte às questões  
estruturais da sociedade, esvaindo o debate sobre as políticas sociais na era neoliberal para os  
pequenos grupos militantes e não para a massa dos trabalhadores e usuários dos serviços.  
Diante do silêncio ensurdecedor da ausência deste debate nas instituições e no interior  
do nosso serviço profissional, posicionamentos reificados, desprovidos de crítica, politização e  
mobilização, fortalecem a política neoliberal, dificultando cada vez mais o trabalho dos  
profissionais na política de saúde, e especialmente a oferta do cuidado ao usuário.  
Dessa forma, é importante salientar que, quando o fluxo do trabalho profissional  
contribui para a intensificação da judicialização, o ônus da burocracia, da morosidade e das  
dificuldades de acesso aos direitos recai diretamente sobre o usuário, enquanto a  
responsabilidade coletiva da sociedade é deslocada. Os problemas estruturais, agravados pelo  
aprofundamento da barbárie no capitalismo, deixam de ser debatidos e enfrentados na esfera  
política, sendo transferidos para os processos administrativos judiciais, para as mesas de  
acórdãos e para as secretarias de saúde municipais e estaduais, onde frequentemente são  
engavetados e descontextualizados de suas raízes sistêmicas.  
O processo de judicialização de direitos por meio de recursos jurídicos, como observado  
na experiência do Estado do Rio de Janeiro através da Câmara de Litígios de Saúde, tem se  
tornado naturalizado na prática profissional. Isso leva a uma orientação frequente dos usuários  
e seus familiares a recorrerem a esse caminho jurídico, muitas vezes sem que a dimensão  
educadora e mobilizadora da profissão seja devidamente exercitada, conforme nos alertam  
Abreu e Cardoso (2009).  
474  
Ao apostar nessa estratégia, questionamos se o percurso da judicialização é viável para  
a família? E se essa família possui os recursos materiais e espirituais necessários para buscá-lo  
e aguardar por uma resolução através dele? Muitas vezes, ao apostarmos na família como  
unidade responsável pelo cuidado, especialmente as mulheres, contribuímos ainda mais para a  
culpabilização da família, reforçando o familismo nas políticas sociais (Mioto et al, 2018).  
Ademais, as/os assistentes sociais estão preocupados sobre como os efeitos dessa  
estratégia estão afetando a dinâmica do cotidiano profissional dos trabalhadores do Sistema  
Único de Saúde? E mais, estão preocupados se o demasiado uso do recurso da judicialização  
não está ocultando uma dimensão mais coletiva sobre as necessidades dos usuários?  
É fundamental considerar se o uso contencioso desse recurso não está, como alerta  
Barroso (2009, p. 3), apresentando "sintomas graves de que pode morrer de cura". Caso  
contrário, corremos o risco de nos distanciar do verdadeiro sentido do trabalho que nossa  
formação intelectual nos confere, pautado nos princípios do projeto ético-político profissional,  
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Judicialização da saúde pública e trabalho profissional: de estratégia a fluxo institucional  
que privilegia a transformação social e o fortalecimento dos direitos coletivos.  
É necessário, portanto, não demonizar o recurso da judicialização, pois ela possui uma  
função específica e contraditória nos marcos da redemocratização do Estado, podendo garantir  
direitos ao mesmo tempo em que controla quem poderá acessá-lo e de que forma irá acessá-lo.  
Porém, é preciso estar atento à dimensão coletiva que a individualização da demanda através  
da judicialização costuma ocultar, e não esgotar o trabalho nesta perspectiva de orientação. É  
preciso ir além e direcionar nosso trabalho profissional em articulação com os movimentos  
institucionais e os movimentos sociais que lutam pela ampliação das políticas sociais e da  
universalidade do direito à saúde pública.  
Dentro das instituições, uma estratégia para trazer essas questões à tona é garantir o  
espaço de educação permanente da equipe, sendo este um valor inegociável, sobretudo  
importante para criar estratégias mais coletivas sobre as questões apresentadas. Ademais, a  
mobilização social das famílias e da equipe de saúde e o trabalho educacional com esses atores  
são fundamentais para construir fissuras no cotidiano. São nesses espaços coletivos que as  
estratégias individuais revelam-se como um sedutor engano.  
Quanto à profissão, a direção hegemônica adotada pelo Serviço Social, desde o  
rompimento com o conservadorismo recorre à apreensão teórico crítica da realidade social e  
profissional numa perspectiva histórica e de totalidade, bem como dos fundamentos ontológicos  
da ética. Esta perspectiva nos convoca a compreender os mecanismos ideológicos de  
reprodução da ordem do capitalismo e da complexidade e aprofundamento da barbárie  
contemporânea.  
475  
Este direcionamento hegemônico está materializado no Código de Ética da(o)Assistente  
Social (1993), e também no projeto de formação profissional, a partir das Diretrizes  
Curriculares da ABEPSS (1996). Do mesmo modo, se expressa na Política de Educação  
Permanente do Conjunto CFESS/CRESS, nos eventos de caráter científico e formativo e nos  
posicionamentos políticos hegemônicos da categoria profissional em face das desigualdades e  
dos antagonismos presentes na realidade.  
Buscamos, com os elementos apresentados, trazer à tona as contradições da  
judicialização na política de saúde que se revelam desde a função de justiciabilidade atribuída  
à Justiça, até como esse processo histórico dinamiza as requisições e o trabalho profissional  
das/os assistentes sociais na política de saúde. Buscamos também assegurar durante nossas  
análises uma perspectiva crítica sobre a complexidade do tema, que exige fôlego para garantir  
a unidade entre o universal e o particular.  
Para prosseguir em nossas análises finais, é impreterível tratarmos sobre a face burguesa  
Clara Stephanie Andrade Pereira  
do Estado e do Direito no Brasil, logo porque o campo jurídico historicamente forjou-se sobre  
os interesses da burguesia, estando alicerçado a ela, sendo não apenas o espírito, como também  
a carne, e que apenas recentemente passou a ser um meio pelo qual os direitos positivados na  
Constituição de 1988 devem ser protegidos e garantidos pelos operadores do direito,  
constituindo o famigerado “Estado Democrático de Direito” em que na esfera abstrata todos  
somos cidadãos, sujeitos de direitos, com direitos e deveres relacionados à cidadania. Tal  
abstração apresenta uma suposta universalidade, mas ao analisarmos mais atentamente veremos  
que “sobre a nudez forte da verdade [a abstração sujeito de direito não passa de] um manto  
diáfano da fantasia”4  
Considerações finais  
Para Lukács, assim como a política, o direito está intimamente ligado à forma secundária  
do pôr teleológico, sendo ele capaz de “extrair um determinado comportamento coletivo”  
(Carli, 2012, p. 9). Seu lugar na práxis social está relacionado à reprodução da sociabilidade  
burguesa, “configurando-se como uma mediação que é própria da sociedade burguesa — e que  
somente aí se desenvolve enquanto tal com toda a sua completude” (Borgianni, 2013, p. 418).  
No mesmo caminho, Alapanian irá dizer que “o Direito, a ordem jurídica, é fruto do  
poder político” (2008, p. 32). Portanto, corrobora-se com a ideia de que é com o surgimento do  
Estado burguês que o direito aparece como “conjunto de normas que regulam a vida em  
sociedade, um ordenamento jurídico que tem como fim estabelecer os limites mínimos nos  
quais a sociedade deve funcionar sem que ocorra a sua autodestruição” (Alapanian, 2008, p.  
33).  
476  
Como construímos durante nossa análise, sendo a esfera da economia e da política um  
lócus de disputas entre interesses particulares e antagônicos, e sendo o Direito um poder do  
Estado fruto da Política; no modo de produção capitalista, o Direito será então um Direito  
burguês, comumente aplicado para garantir a não autodestruição do poder político do Estado  
burguês.  
O Direito na sociedade capitalista objetiva a dominação do Estado burguês, portanto,  
durante o desenvolvimento do ser social, e diante dos conflitos políticos próprios da luta de  
classes precisou se complexificar, ganhando novas valorações. O Direito passou então a não ser  
apenas um poder de coerção (Foucault), mas também de consenso (Gramsci), e é este lócus  
político que permite demonstrar a sua contradição.  
4
Epígrafe de: QUEIRÓS, Eça de. A Relíquia. S. Paulo: Publifolha, 1997. (Biblioteca Folha).  
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Judicialização da saúde pública e trabalho profissional: de estratégia a fluxo institucional  
O que buscamos concluir com essa análise é que, se nas esferas da economia e da  
política os sujeitos distinguem-se a partir dos seus interesses, havendo uma hegemonia dos  
interesses da classe dominante; na esfera do Direito essa contradição também aparece, portanto,  
o Direito está, na generalidade, voltado às aspirações da burguesia, sendo ele um Direito  
burguês.  
Mas o Direito, como também vimos, também comporta movimentos de tensões, e sendo  
ele a esfera abstrata que regula a vida social nos marcos burgueses, pode assumir novas  
valorações quando provocado politicamente a expressar as necessidades do seu tempo. Assim,  
em alguns momentos históricos o Direito poderá estar mais voltado às forças reacionárias, e em  
outros momentos históricos voltado às forças mais democráticas, embora sob a direção do modo  
de produção capitalista, jamais abandonará sua essência burguesa.  
Podemos concluir, então, que o direito não é um emaranhado de leis que permite a seus  
operadores aplicá-las de forma neutra e homogênea, como se todos fossemos iguais na condição  
de sujeitos de direito na ordem burguesa, pois como destacado anteriormente, a forma sujeito  
de direito tem o seu valor real na mercadoria, e seu fundamento estará sempre voltado à proteção  
da propriedade privada.  
Nos limites da sociabilidade burguesa, a função da Justiça e do “Estado Democrático de  
Direito” é tensionada pelos interesses mercantis e privados, hegemonizados pela burguesia. Os  
termos sujeito de direito e cidadão, ocultam o valor mercantil pelos quais são mediadas todas  
as relações sociais. Portanto, nos limites desta sociabilidade, somos sujeitos de direitos, quando  
fazemos parte de um segmento de classe, que em determinado tempo histórico, e por meio de  
muita luta, obteve conquistas no campo dos direitos juridicamente reconhecidos.  
No entanto, para a maioria, essa justiciabilidade é historicamente negada em face da  
efetivação dos interesses particulares da burguesia. A suposta “neutralidade” atribuída à Justiça  
esconde, também, a dimensão política da atuação dos operadores do direito e das instituições,  
ao garantir, por meio deste poder, mecanismos de manutenção da propriedade privada sobre  
aparatos jurídicos e normativos que reforçam a hegemonia da sociabilidade burguesa.  
Neste cenário, a judicialização da política de saúde, quando utilizada por assistentes  
sociais, usuários e trabalhadores do SUS, de forma a individualizar a questão social, estará, via  
de regra, esbarrando nos limites do direito burguês. A morosidade, a burocracia e a falta de  
efetividade da justiça burguesa é propositalmente um mecanismo de dificuldade para quem,  
através dela, gostaria de ter seu direito reconhecido e efetivado.  
477  
Portanto, quando recorremos à justiça burguesa a fim de buscar a efetivação do direito  
individual, perdemos a dimensão coletiva e política em torno do debate e luta pela ampliação  
Clara Stephanie Andrade Pereira  
dos direitos e concretização de um verdadeiro SUS universal e com a devida qualidade e oferta  
de serviços prestados com acesso a insumos, tratamentos e medicamentos, enfim, acorde às  
necessidades e demandas de saúde da população.  
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Do chão à tela: dimensões da proteção social de  
jovens na pandemia de covid-19  
From ground to screen: dimensions of protection for young people during  
the covid-19 pandemic  
Bruna Carolina Silva dos Reis*  
Sônia Regina Nozabielli**  
Júlia Bezerra Nunes do Amaral***  
Patrícia Leme de Oliveira Borba****  
Resumo: A pandemia de covid-19 impôs novas  
formas de vivenciar a escola que repercutiram  
no público juvenil, em suas trajetórias escolares  
e na composição de apoios sociais. Esse texto é  
resultado de uma pesquisa dedicada a apreender  
as dimensões da proteção social de jovens de  
ensino médio neste período. Foram  
entrevistados seis jovens de duas escolas da rede  
pública de Santos-SP, que indicam processos  
simultâneos e contraditórios de proteção e  
desproteção social, evidenciados nos desiguais  
acessos à educação, mesmo no interior da escola  
pública. Para além da escola, família, trabalho,  
assistência social, território, coletivos juvenis e  
religião aparecem como dimensões de apoio  
significativo para atravessar esse período,  
embora distantes de uma proposta política de  
garantia de proteção social com acesso  
universalizado. Ressalta-se a importância de  
estratégias intersetoriais e em diálogo com as  
juventudes, em que as diferentes políticas  
Abstract: The covid-19 pandemic imposed new  
ways of experiencing school that impacted  
young people, their educational trajectories, and  
the composition of social support systems. This  
text is the result of research aimed at  
understanding the dimensions of social  
protection for high school students during this  
period. Six young individuals from two public  
schools in Santos-SP were interviewed,  
revealing simultaneous and contradictory  
processes  
of  
social  
protection  
and  
disempowerment, highlighted by unequal  
access to education, even within the public  
school system. Beyond school, family, work,  
social assistance, community, youth collectives,  
and religion emerged as significant sources of  
support to navigate this period, although they  
fall short of a political proposal to ensure  
universal social protection. The importance of  
intersectoral strategies and dialogue with young  
people is emphasized, where different social  
policies address their life needs.  
sociais se dediquem  
necessidades de vida.  
a
responder suas  
Palavras-chaves: Juventudes; Proteção Keywords: Youth; Social protection; Covid-19  
Pandemic; School.  
social; Pandemia de Covid-19; Escola.  
* Universidade Federal de São Carlos. E-mail: bruna.reis@estudante.ufscar.br  
** Universidade Federal de São Paulo. E-mail: snozabielli@unifesp.br  
*** Universidade Paulista. E-mail: julia.nunes03@outlook.com  
**** Universidade Federal de São Paulo. E-mail: patricia.borba@unifesp.br  
DOI: 10.34019/1980-8518.2025.v25.46395  
Esta obra está licenciada sob os termos  
Recebido em: 05/11/2024  
Aprovado em: 28/03/2025  
Do chão à tela: dimensões da proteção social de jovens na pandemia de covid-19  
Introdução  
Em março de 2020, o Brasil anunciava sua primeira morte por covid-19, neste mesmo  
mês o país entrou em quarentena em face da iminência da transmissão comunitária e vimo-nos  
diante do fechamento de diferentes instituições, em especial das escolas e das universidades. A  
Secretaria Estadual de Educação de São Paulo (SEDUC) suspendeu as aulas presenciais no  
estado em 18/03/2020 a partir do decreto n. 64.864. Assim, a fim de possibilitar a manutenção  
do contato com os estudantes e continuidade do processo educativo, o Conselho Nacional de  
Educação publicou o parecer CNE/SP nº 5/2020 que permitia “atividades não presenciais para  
fins de cumprimento da carga horária mínima anual” (Brasil, 2020).  
Estabeleceram-se, portanto, novas formas de realização de atividades escolares em  
formato não presencial. Publicado pela SEDUC (2020), o “Documento orientador de atividades  
escolares não presenciais” apresentava aos municípios a possibilidade de adotar como  
estratégias a utilização das plataformas online para transmissão de videoaulas e divulgação de  
materiais digitais a partir das redes sociais, bem como, a transmissão de aulas a partir de  
televisão e rádio e, também, o envio e/ou entrega de material didático impresso. Não obstante,  
destaca-se um atraso para introduzir os programas de educação a distância nos estados e  
municípios (Barberia et al., 2020). No estado de São Paulo, por exemplo, ao final de 2020, 500  
mil estudantes não entregaram nenhuma atividade durante aquele ano letivo (Macedo, 2021).  
A partir das recomendações do referido Documento, as escolas iniciaram as atividades  
não presenciais. Ainda que não estivessem amplamente democratizados (Almeida; Dalben,  
2020), os meios digitais de comunicação celulares, tablets e computadores compõe o  
cotidiano de parcela da população. Entretanto, as atividades escolares não presenciais  
impuseram uma mudança no uso dos dispositivos. Para as juventudes, o ciberespaço anterior  
ao período pandêmico caracterizava-se enquanto meio, prioritário, de sociabilidade,  
ludicidade e comunicação. Assim, a pandemia impôs uma nova forma de vivencia-lo trazendo  
a escola para a tela dos dispositivos e exigindo o seu uso com a finalidade educacional.  
Além da questão da mudança subjetiva no sentido atribuído para o uso do ciberespaço,  
outra questão que se colocou foi de ordem objetiva: a ausência/precariedade dos dispositivos  
para o acesso dos jovens à escola. A pandemia, dessa forma, realçou a desigualdade já existente  
no processo de escolarização das juventudes, que incide fortemente nas juventudes pobres das  
escolas públicas, já que é onde se concentram as dificuldades de acesso aos dispositivos  
eletrônicos de qualidade, em especial, acesso a computadores, uma vez que a grande maioria  
dos estudantes acessava o conteúdo via celular e sinal de internet de baixa qualidade. Soma-se  
a isso outras séries de fatores que avolumaram os obstáculos ao processo de escolarização de  
481  
Bruna C. S. dos Reis; Sônia R. Nozabielli; Júlia B. N. do Amaral; Patrícia L. de Oliveira Borba  
jovens durante a pandemia, tais como: fragilidade/inadequação do acompanhamento das  
famílias às atividades escolares; precarização e má remuneração do trabalho de professores;  
insegurança alimentar; maior inserção de jovens estudantes no mercado de trabalho para  
contribuir com a renda familiar; dentre outras dimensões (UNICEF, 2021).  
Diante dessa realidade da pandemia, questionava-se, portanto: Com que(m) os jovens  
puderam contar diante da pandemia de covid-19? O que a ausência da escola presencial  
produziu aos jovens de ensino médio da rede pública? Ao migrarmos do chão da escola para a  
tela dos meios digitais de comunicação, de que forma se deu o processo de proteção social dos  
jovens?1  
Assim, o objetivo desta pesquisa foi apreender as dimensões da proteção social na  
realidade de jovens de ensino médio de escolas públicas no contexto da pandemia de covid-19.  
Além de analisar os impactos da pandemia de covid-19 na realidade das juventudes, com ênfase  
na ausência física da escola e entender o papel da escola pública na trajetória de proteção desses  
jovens.  
Na primeira parte do texto, apresentamos o conceito de juventudes, discutindo a  
construção histórica e sociológica da categoria. Em seguida, discorremos teoricamente sobre a  
perspectiva da proteção social na sociabilidade capitalista, com foco na Escola enquanto  
dimensão central para as juventudes no cenário pandêmico. O percurso metodológico e os  
desafios em meio à pandemia são abordados para posterior exposição e discussão dos  
resultados, a partir de narrativas dos jovens que colaboraram com a pesquisa. As narrativas  
explicitam a trajetória dos sujeitos no ensino médio e suas vivências durante o contexto  
pandêmico, com ênfase nas dimensões da proteção social.  
482  
Sobre a tessitura da categoria juventudes  
O perfil da juventude brasileira, segundo os dados mais recentes do Censo Demográfico  
(IBGE, 2022), indicam uma população de mais de 45 milhões de jovens entre 15 e 29 anos no  
país, ou seja, pouco mais de 22% da população. Em relação aos gêneros, na faixa etária entre  
15 e 24 anos há predominância do gênero masculino, já entre 25 e 29 anos predomina o gênero  
feminino. No que diz respeito à raça/cor, os jovens do Brasil se autodeclaram negros em sua  
1
Esse texto apresenta parte dos resultados da dissertação de mestrado intitulada “Do chão à tela: dimensões da  
(des)proteção social de jovens de ensino médio em tempos de pandemia de COVID-19”, defendida no início do  
ano de 2022 no interior do Programa de Pós-Graduação em Serviço Social e Políticas Sociais da Universidade  
Federal de São Paulo. Todos os procedimentos vigentes éticos para pesquisas envolvendo seres humanos foram  
cumpridos. A pesquisa foi autorizada pelo Comitê de Ética da Universidade Federal de São Paulo sob Certificado  
de Apresentação de Apreciação Ética (CAAE) nº37025820.0.0000.5505.  
Libertas, Juiz de Fora, v. 25, n. 1, p. 480-504, jan./jun. 2025. ISSN 1980-8518  
Do chão à tela: dimensões da proteção social de jovens na pandemia de covid-19  
maioria (59,5%). Já para classe social, o Atlas da Juventude de 2021 indica que há 10% a mais  
de chances de encontrarmos jovens na metade mais pobre da população brasileira.  
Em 2020, o Conselho Nacional da Juventude (CONJUVE) realizou pesquisa com o  
objetivo de conhecer os efeitos da pandemia na vida de jovens no Brasil, aplicando questionário  
junto a pessoas de 15 a 29 anos de todos os estados do país. Segundo dados da pesquisa  
Juventude e Pandemia (CONJUVE, 2020), 33% dos jovens que participaram desse estudo  
tiveram os rendimentos reduzidos, 27% tiveram que parar de trabalhar e 8% perderam  
totalmente a renda. Além disso, 6 em cada 10 jovens tiveram alguma alteração na sua carga de  
trabalho desde o início da pandemia.  
No que concerne a educação, campo de interesse do presente estudo, em 2020 mais de  
5 milhões de crianças e adolescentes estavam fora da escola ou sem atividades escolares  
(UNICEF, 2021). Já em relação ao ano de 2022, marcado pelo retorno ao ensino presencial,  
segundo os dados da Síntese dos Indicadores Sociais, 9,8 milhões de jovens entre 15 e 29 anos  
abandonaram a escola sem concluir a educação básica: 462 mil na faixa etária de 15 a 17 anos;  
4,7 milhões de 18 a 24 anos; e 4,6 milhões, de 25 a 29 anos. A maioria, 65,7%, não frequentou  
o Ensino Médio (IBGE, 2023).  
Esses dados confirmam nosso entendimento de um lugar plural e heterogêneo das  
diferentes vivências juvenis, assumindo, com isso, a denominação de juventudes. Corrobora-  
se, para tanto, com os estudos de Margullis e Urresti (1996) e Sposito e colaboradoras (2018)  
sobre a impossibilidade de assumir conceito unívoco sobre o que é ser jovem diante dos  
diversos sentidos atribuídos às experiências juvenis. Como também, na necessidade, apontada  
por Scherer (2015), em compreender a pluralidade que compõe a essência do fenômeno das  
juventudes, em seu caráter múltiplo e diverso. Portanto, ao adotar o termo juventudes, exige-se  
pensar em uma diversidade, ainda que compreendendo suas singularidades (Dayrell, 2003).  
O jovem, além disso, é apreendido como sujeito social que interpreta o mundo,  
empregando-lhe sentido e entendendo a posição que ocupa nele, bem como suas relações com  
outros sujeitos, sua história e singularidade (Dayrell, 2003). Essa apreensão parte da  
contraposição à perspectiva apontada por Abramo (1997) como prevalecente nas políticas  
públicas, noticiários e produções acadêmicas do jovem como “problema social”, na perspectiva  
da “desvantagem social” ou do “risco”, sobre o qual é necessário intervir, buscando uma  
salvação ou reintegração à ordem social.  
483  
As estruturas etárias são, dessa maneira, apreendidas enquanto construções sociais de  
base ontológica, sendo a construção da juventude fruto das alterações das forças produtivas  
ocorridas no século XX, ou seja, de transformações societárias (Scherer, 2020). Essas  
Bruna C. S. dos Reis; Sônia R. Nozabielli; Júlia B. N. do Amaral; Patrícia L. de Oliveira Borba  
construções sociais acerca das juventudes se constituem, pois, de aparências fetichizadas e  
fetichizantes. Constrói-se, no ideário liberal, uma imagem atrelada a um status de poder, já que  
esses sujeitos estariam em melhores condições para a competição e, portanto, seriam a  
representação das plenas forças de trabalho disponíveis a venda no mercado capitalista. Com  
isso, são percebidos enquanto sujeitos consumidores (Scherer, 2015). A juventude, bem como  
a infância, integra as relações mercantilizadas do modo de produção capitalista: com a venda  
de sua força de trabalho e como conteúdo ideológico, uma vez qualificadas como “futuro da  
nação” (Melo, 2024).  
Essa imagem do jovem enquanto signo de beleza e poder convive ao mesmo tempo e  
em campo de disputas com o estereótipo da juventude enquanto segmento perigoso,  
relacionada às classes perigosas. Entretanto, a juventude relacionada à ideia de desordem e  
problemas sociais é uma juventude específica: a pobre. É diante dessa perspectiva do jovem  
enquanto problema social que se impõe a ideia da juventude como grupo que precisa ser  
controlado e tutelado. Em uma lógica adultocêntrica, nega-se a voz das juventudes a partir da  
justificativa de que estes sujeitos não teriam capacidade de coordenar sua trajetória, desejos e  
manifestações (Scherer, 2015).  
Com isso, sob uma concepção dialética, busca-se analisar os nexos e relações no estudo  
das juventudes, reconhecendo que as múltiplas diversidades presentes na vivência juvenil não  
fragmentam o fenômeno e, dessa forma, não negam a luta de classes que os jovens experienciam  
(Groppo, 2004; Groppo; Silveira, 2020; Scherer, 2020). Pelo contrário, “compreender as  
juventudes na tessitura entre o uno e o múltiplo é fundamental para perceber as características  
que compõe essa categoria, e ao mesmo tempo negar perspectivas que pasteurizam e ressaltam  
concepções prévias deste segmento” (Scherer, 2015, p. 82).  
484  
A proteção social e a centralidade da escola para as juventudes sob os impactos da  
covid-19  
A proteção social estaria, no capitalismo, contida em um “jogo” ambivalente e  
intrínseco que permite, por vezes, certa garantia de interesses econômicos para as classes  
dominadas, porém que sejam compatíveis com os interesses políticos das classes dominantes  
(Pereira, 2016). Implica, assim, uma relação dialética que, conforme apontado por Scherer  
(2015), pode ser apresentada enquanto (des)proteção, reconhecendo sua ambivalência. Segundo  
o autor, o modo de produção capitalista gera um contexto de (des)proteção que tem se ampliado  
em uma conjuntura de retrocessos no campo das políticas sociais. O prefixo (des) aponta, pois,  
que proteção-desproteção, no capitalismo, são “processos simultâneos que dialeticamente se  
Libertas, Juiz de Fora, v. 25, n. 1, p. 480-504, jan./jun. 2025. ISSN 1980-8518  
Do chão à tela: dimensões da proteção social de jovens na pandemia de covid-19  
ocultam e se revelam no real” (Scherer, 2015, p. 17). Essa perspectiva dialoga com a ideia de  
Pereira (2016, p. 24) de que, no contexto capitalista “o termo proteção encerra em si um ardil  
ideológico, a ser teoricamente desmontado, visto que ele falseia a realidade por se expressar  
semanticamente como sendo sempre positivo”, além de que “sempre foi alvo de interesses  
discordantes entre os seus estudiosos, executores e destinatários” (Pereira, 2016, p. 24).  
Ao longo da história da humanidade a ideia de proteção social não se mostrou unívoca  
e assumiu diferentes características e diversos significados. Nesse sentido, Pereira (2016)  
afirma que a proteção social, a depender das mudanças estruturais e correlações de forças  
políticas em vigência, pode ser focalizada ou universal, priorizar uma abordagem de direitos de  
cidadania ou méritos exigidos pela competitividade econômica, responder às necessidades  
humanas ou do capitalismo, proteger ou punir. Com isso, faz-se sempre necessário adjetivá-la  
para que se possa caracterizar a que proteção social se refere. Além disso, o processo não segue  
um fluxo linear e progressivo; é maleável em relação à cobertura, compromisso e finalidade e,  
principalmente, não é inocente ou desprezível. Na sociedade capitalista, assume papel  
estratégico na correlação de forças, expressando as contradições do modo de produção  
capitalista (Pereira, 2016).  
Com a chegada da pandemia de covid-19 no Brasil, em março de 2020, o cenário de  
desigualdade de atenções e acessos é agudizado no país. Pinto e Cerqueira (2020) analisam que  
a intervenção do Estado brasileiro nesse contexto buscou, apenas:  
485  
desonerar os custos do e para o capital e encontrar formas legais, alternativas  
e ideológicas de assegurar o equilíbrio da relação custo/benefício para ação do  
capitalismo, apoiado na maior exploração da força de trabalho e na liberação  
integral para o uso do que é público para benefício privado, com especial  
atenção a estabelecer negócios onde o Estado atua com políticas e programas  
sociais (Pinto; Cerqueira, 2020, p. 44).  
Embasado por histórica institucionalização dos programas de incentivo ao voluntariado  
no Brasil, a principal estratégia de proteção social do governo de Jair Bolsonaro, presidente do  
país durante o período pandêmico, foi o Programa Nacional de Incentivo ao Voluntariado  
(Pátria Voluntária), orientado pela privatização da assistência social e moralização do trabalho  
e da pobreza. O programa não se tratava de uma política exclusiva para a juventude, mas incluía  
esse público tanto como destinatário da ação, como executor das práticas voluntárias. Diante  
do ideário neoliberal, a valorização do voluntariado contribui para o desmantelamento dos  
direitos sociais, uma vez que não se constitui enquanto ação paralela às políticas sociais, mas  
como forte concorrente e ameaça (Imperatori et al., 2022).  
Assim, “ações concretas que visam a proteção podem também impactar na desproteção  
enquanto ações fragmentadas, pontuais, precarizadas e que visam unicamente ao fortalecimento  
Bruna C. S. dos Reis; Sônia R. Nozabielli; Júlia B. N. do Amaral; Patrícia L. de Oliveira Borba  
da lógica do capital” (Scherer; Gershenson, 2016). Para as juventudes, esse contexto, segundo  
Scherer (2015), vem se aprofundando nos últimos anos já que as políticas sociais - organizadas  
e geridas pelo Estado burguês - destinadas aos jovens têm respondido as suas necessidades  
sociais de forma distante de uma perspectiva de universalidade de direitos.  
O Estado e as políticas sociais que são implementadas por ele ampliam condições de  
proteção social de seus cidadãos, e, em consonância com a concepção de Sposati (2014), a  
proteção social pode ser lida como “ter certeza de” e “contar com”. No primeiro ano de  
pandemia, segundo os dados coletados na pesquisa Juventude e Pandemia (CONJUVE, 2020),  
34% dos jovens estavam pessimistas ou muito pessimistas sobre o futuro, o que pode estar  
relacionado com a incerteza gerada pelo contexto em relação a diversos aspectos da vida. Além  
disso, houve significativa piora em diversos aspectos que demonstram diferentes dimensões da  
vida dos sujeitos: 73% nas atividades de lazer e cultura, 70% no estado emocional, 65% no  
condicionamento físico, 58% na disponibilidade de recursos financeiros, 55% na qualidade do  
sono e 42% na alimentação.  
No que diz respeito à vida escolar (CONJUVE, 2020), 65% dos jovens relataram ter  
aprendido menos com o ensino remoto, 50% acreditam que os estudos futuros serão adiados e  
9% apontam o pensamento de que poderão fracassar em relação aos estudos. Além disso, nos  
dados levantados pela pesquisa em 2020, 3 em cada 10 jovens consideravam largar os estudos;  
já em 2021 (CONJUVE, 2021), o número aumentou para 4 em cada 10 jovens.  
486  
A escola está no bojo da disputa entre projetos societários antagônicos: vinculado a  
política social, visando atender os interesses das classes dominantes e a (re)produção do status  
quo, mas, concomitante e potencialmente, tensionada pela classe trabalhadora a forjar a  
consciência das condições de exploração e dominação (Oliveira; Tejadas, 2024). Como também  
onde as juventudes “criam e estabelecem sentidos para a presença nessa instituição, onde  
vivenciam experiências importantes e necessárias para uma construção de significados em  
longo e em curto prazo” (Pereira; Lopes, 2016, p. 212).  
É na escola que se manifestam diferentes vivências experienciadas no âmbito das  
relações escolares, familiares e do acesso a direitos e políticas sociais de modo desigual pelos  
jovens. O “chão da escola” (Pereira, 2007) é eleito, portanto, enquanto espaço privilegiado para  
acessar as juventudes e apreender suas vivências e trajetórias de proteção social.  
Libertas, Juiz de Fora, v. 25, n. 1, p. 480-504, jan./jun. 2025. ISSN 1980-8518  
Do chão à tela: dimensões da proteção social de jovens na pandemia de covid-19  
O percurso metodológico: no meio do caminho tinha uma pandemia, tinha uma  
pandemia no meio do caminho2.  
Essa investigação desenvolve-se no “reflexo de escolhas teóricas, processos  
metodológicos, projetos societários, projetos profissionais e trajetória de quem escreve.”  
(Scherer, 2015, p. 15). Dessa forma, o movimento dialético de apreensão dos processos de  
existência e visão de mundo desses jovens se dá a partir de um caminho metodológico fundado  
no materialismo histórico-dialético, que apreende o mundo enquanto um processo de  
complexos (Marx; Engels, 1963) em que a realidade concreta é síntese de uma multiplicidade  
de relações traduzidas na totalidade (Kosik, 1978).  
Realizamos entrevistas em profundidade (Minayo; Costa, 2018) com seis jovens3 de 15  
a 18 anos de duas escolas públicas da cidade de Santos-SP, sendo uma de ensino regular e outra  
de ensino médio integrado ao técnico. As entrevistas aconteceram no formato remoto - a partir  
de encontros na plataforma digital @Google Meet - respeitando o distanciamento físico  
enquanto medida de prevenção à transmissão da covid-19.  
Os sujeitos da pesquisa foram identificados dentre aqueles que participavam do Projeto  
de Extensão Juventudes e Funk na Baixada Santista: territórios, redes, saúde e educação4, a  
partir de bolsa de Iniciação Científica do Ensino Médio (IC-EM)5 vinculada à pesquisa temática  
multicêntrica6. Optamos por realizar as entrevistas em profundidade com os jovens bolsistas  
levando em consideração o vínculo já estabelecido entre a pesquisadora e os estudantes o que,  
no contexto das atividades remotas em decorrência da pandemia de covid-19, contribuiu para a  
construção do campo e efetivação da pesquisa empírica.  
487  
A construção do percurso metodológico, nesse sentido, se deu de forma conjunta, com  
2
Adaptação livre do poema de Carlos Drummond de Andrade: “No meio do caminho”, publicado em 1928, na  
Revista de Antropofagia.  
3 O campo empírico foi atravessado pela pandemia de covid-19 e teve que ser readequado em razão do contexto  
de restrições para a realização das entrevistas no “chão da escola”. Assim, delimitamos a amostragem aos jovens  
que participaram do Programa de IC-EM diante do vínculo já firmado e, portanto, possibilidade de contato para  
efetivação da pesquisa.  
4
Projeto de extensão da Universidade Federal de São Paulo (UNIFESP) que atuou entre os anos de 2014 e 2023  
junto a escolas da rede pública estadual de ensino da Baixada Santista, desenvolvendo ações voltadas  
prioritariamente para jovens escolares, compreendidos em sua pluralidade e enquanto sujeitos sociais e de direitos.  
Foi coordenado pelas Profa. Dra. Cristiane Gonçalves da Silva e Profa. Dra. Patrícia Leme de Oliveira Borba,  
compondo as ações do Laboratório Interdisciplinar Ciências Humanas, Sociais e Saúde (LICHSS/UNIFESP) e do  
Núcleo UNIFESP da Rede Metuia – Terapia Ocupacional Social.  
5
Programa Institucional de Bolsas de Iniciação Científica Ensino Médio (PIBIC-EM) da UNIFESP, que tem como  
objetivo incentivar estudantes de ensino médio da rede pública e privada de ensino à aproximação da ciência.  
Estudantes são inseridos em atividades de pesquisa e orientadas por pesquisadoras da instituição.  
6
Pesquisa multicêntrica (2018-2024) com sede no Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo (USP),  
com participação da UNIFESP, campus Baixada Santista e Universidade Federal de São Carlos (UFSCar), campus  
Sorocaba. Teve como objetivo avaliar metodologias que garantam a eficácia e sustentabilidade de programas sobre  
sexualidade e prevenção junto aos jovens e a avaliação dos processos por meio dos quais isso ocorre.  
Bruna C. S. dos Reis; Sônia R. Nozabielli; Júlia B. N. do Amaral; Patrícia L. de Oliveira Borba  
a colaboração desses jovens. Assim, a pesquisa empírica contou com a contribuição direta de  
uma das jovens bolsista de IC-EM que, após a finalização de sua bolsa junto ao Projeto  
“Juventudes e Funk”, executou nova pesquisa de IC-EM vinculada a investigação do mestrado  
que dá origem a este artigo, além de ser uma das entrevistadas. Ela contribuiu para a  
construção do roteiro que orientou as entrevistas em profundidade; participou ativamente  
dessas entrevistas; colaborou com a transcrição dos materiais gravados e participou do  
processo de análise e discussão das entrevistas.  
Aponta-se, portanto, a experiência metodológica da pesquisa participante como  
possibilidade de vivência efetiva de compreensão do jovem enquanto sujeito social (Dayrell,  
2003), partindo do pressuposto de que são eles quem narram sua história nas entrevistas  
através daquilo que realmente lhes é caro, permitindo relembrar e refletir acerca de sua  
trajetória e construir análises conjuntas, advindas de saberes diversos.  
A partir das entrevistas foi possível construir seis narrativas de vida - dos jovens Julia,  
Mariana, Lucca, Letícia, Juan e Giovanni7 - que compõem os resultados dessa investigação  
articulados aos pressupostos teóricos que alicerçaram a pesquisa, com destaque para os  
estudos vinculados ao serviço social, à sociologia da juventude, à terapia ocupacional social  
e à educação. Dessa maneira, as narrativas foram compostas de modo a explicitar a trajetória  
dos jovens no ensino médio e suas vivências em meio a pandemia de covid-19, com ênfase  
nas dimensões de proteção social. Assim, parte-se da trajetória singular dos jovens para que,  
a partir dos fragmentos da realidade, seja possível apreender a totalidade que abarca a  
pluralidade das juventudes e seus processos de proteção social, inscritos na particular  
experiência de ser jovem no Brasil. As três primeiras narrativas se referem a jovens que  
estudavam em uma escola de ensino médio integrado ao técnico, já as três últimas a jovens  
que estudavam em uma escola de ensino regular.  
488  
Narrativas de proteção de jovens de ensino médio na pandemia de covid-19  
Júlia é uma jovem mulher que se identifica como parda, tinha 17 anos quando  
realizamos a entrevista e estava cursando o 3º ano no Ensino Médio. Desde sua primeira  
aproximação com o projeto de extensão, sempre foi muito comunicativa e deixou seus  
7
O nome dos jovens será utilizado sem pseudônimos ou abreviaturas, já que partimos do pressuposto de que  
evidenciar a identidade em uma narrativa de suas trajetórias de vida carrega a importância de compreendê-los  
como atores em suas vivências e experiências, detentores de suas histórias, sujeitos sociais. Essa decisão está em  
concordância com o artigo 9º da Resolução nº 510/2016 do Conselho Nacional de Saúde que determina as diretrizes  
éticas  
específicas  
para  
as  
ciências  
humanas  
e
sociais  
(Disponível  
em:  
http://conselho.saude.gov.br/resolucoes/2016/Reso510.pdf. Acesso em: 20 fev. 2022). Além disso, parte-se,  
também, da vinculação construída com os jovens e, assim, de seu assentimento.  
Libertas, Juiz de Fora, v. 25, n. 1, p. 480-504, jan./jun. 2025. ISSN 1980-8518  
Do chão à tela: dimensões da proteção social de jovens na pandemia de covid-19  
posicionamentos muito bem estabelecidos. Além de participar das entrevistas, ela também  
desenvolveu duas pesquisas de IC-EM: uma relacionada ao projeto de extensão como todos  
os jovens entrevistados e outra em colaboração com a investigação em tela.  
Sua família é composta pela mãe, pai e uma irmã mais nova. Tendo em vista a apreensão  
adotada nesta pesquisa acerca da proteção social a partir das ideias de “ter certeza de” e “contar  
com” (Sposati, 2014), bem como a concepção de que os sistemas de proteção social podem  
assumir formas mais ou menos institucionalizadas (Giovanni, 1998), a família é uma dimensão  
da proteção social muito importante na vida da jovem.  
Entretanto, se tem concordância com Paiva, Carraro e Rocha (2014) de que reconhecê-  
la como dimensão “não é pretexto para sua supervalorização, ou entificação, ou seja, sua  
pseudoafirmação como sujeito, uma vez que efetivamente isso é uma impossibilidade” (Paiva  
et al., 2014, p. 41). Julia apontou esse aspecto da responsabilização muito presente na trajetória  
de sua mãe:  
Como minha mãe era obrigada a se sustentar sozinha desde que tinha 10 anos,  
ela sempre falou que quando tivesse filhos não os faria trabalhar tão cedo  
assim. Eu me cobro sobre isso. Já vou fazer 18 anos, preciso arrumar um  
trabalho. Mas ela fala que se eu quiser ficar estudando, posso. Mas eu não me  
sinto mais confortável com isso (Entrevista com Julia, 2020)8.  
No que diz respeito ao trabalho, quando a entrevista foi realizada, ele ainda não era uma  
prioridade para a jovem, mas já era um desejo. Sposito, Souza e Silva (2018) chamaram atenção  
para esse cenário ao analisar os dados de um estudo realizado pelo Instituto Insper, que aponta  
aumento, entre os jovens de 15 a 17 anos, que apenas estudam e não trabalham. Esse aumento  
estaria relacionado às mudanças que ocorreram no plano econômico brasileiro durante as duas  
primeiras décadas dos anos 2000, assim, criaram-se melhores condições para que as famílias  
mais pobres pudessem adiar a entrada dos jovens no mundo do trabalho.  
489  
A pandemia impactou seus planos para o futuro, que incluíam cursar uma universidade  
e começar a trabalhar:  
Eu queria entrar na faculdade assim que saísse do ensino médio. Não sabia o  
curso, mas queria entrar na faculdade, trabalhar durante o tempo do curso.  
Mas aí eu vi que não é exatamente assim, dependendo do curso você não  
consegue trabalhar, não consegue conciliar. Agora eu não tenho muita fé que  
eu vá passar no ENEM esse ano, mas vou fazer (Entrevista com Julia, 2020).  
A escola, para ela, tem um lugar central no que diz respeito aos apoios e possibilidades  
de acesso a direitos e bens sociais, tanto em relação ao acolhimento dos sujeitos que a compõe,  
como também das possibilidades que podem ser construídas a partir dela:  
A ETEC é meio que um abraço de urso. A tia da limpeza te ajuda quando você  
8 Respeitaremos a forma de expressão dos jovens nas transcrições citadas ao longo do texto.  
Bruna C. S. dos Reis; Sônia R. Nozabielli; Júlia B. N. do Amaral; Patrícia L. de Oliveira Borba  
precisa, tem professores incríveis e eles realmente querem estar lá e só de eles  
estarem falando e olhando em seu olho quando falam já é muito bom. Hoje  
em dia, eu tenho certeza que na ETEC eu vivo um momento de debates de  
opinião que eu não teria em um colégio particular. Muitos momentos  
reflexivos, muita troca que eu não teria em um colégio particular. (Entrevista  
com Julia, 2020).  
Além disso, a jovem reconhece a escola pública enquanto um espaço de garantia de  
acesso a direitos sociais por meio do Estado. Durante a entrevista, quando questionei se sua  
família era beneficiária de algum programa social a jovem respondeu que:  
[...] o máximo que posso colocar foi o fato de eu ter entrado na ETEC, que é  
um colégio público, aí minha mãe não precisou pagar mais meu colégio,  
porque o ensino médio é bem mais caro, quase o preço de uma faculdade, às  
vezes até mais. E isso pesaria para caramba. Então eu ter entrado na ETEC foi  
o maior auxílio que poderia ter vindo de algo maior (Entrevista com Julia,  
2020).  
Mariana é uma jovem mulher, se identifica como branca, cursava o 2º ano do ensino  
médio e tinha 16 anos quando a entrevista aconteceu. Ela morava com a mãe e o pai em Santos  
desde que nasceu, na região conhecida como Orla, por se localizar nos entornos da orla da praia  
da cidade. A partir dos anos de 1980, o Centro Histórico da cidade, até então símbolo de  
nobreza, força econômica e de comércio diante da economia cafeeira, sofre um processo de  
desvalorização e decadência com a transferência da Bolsa do Café para a cidade de São Paulo.  
Com isso, a região da Orla vive um processo de valorização e enriquecimento a partir da  
especulação imobiliária e do deslocamento dos interesses econômicos para essa região. Dessa  
forma, atualmente, é ocupada por prédios e casas da classe média de Santos.  
490  
Ela sempre estudou em escolas da rede pública de ensino da cidade de Santos e o  
interesse pela ETEC se deu diante da qualidade do ensino e também da possibilidade de se  
aproximar da área de informática. No que diz respeito à escolha de Mariana pelo curso técnico  
em desenvolvimento de sistemas integrado ao médio, ele foi motivado pelo interesse da jovem  
em seguir essa área na universidade também, cursando Ciências da Computação. Abramo e  
colaboradores (2020) destacam que o acesso a uma escola pública de qualidade é um recurso  
explorado pelos jovens já que:  
As Escolas Técnicas Estaduais (Etecs) e os Institutos Federais de Educação,  
Ciência e Tecnologia (Ifes) aparecem como grandes recursos nesse sentido,  
seja pelo oferecimento de uma alternativa de qualificação profissional técnica,  
seja pela possibilidade de preparo para um melhor desempenho no ENEM,  
abrindo uma maior chance de acesso às universidades públicas (Abramo et  
al., 2020, p. 534).  
A escola aparece enquanto espaço em que os jovens se sentem acolhidos e podem contar  
“mesmo se der tudo errado”:  
Libertas, Juiz de Fora, v. 25, n. 1, p. 480-504, jan./jun. 2025. ISSN 1980-8518  
Do chão à tela: dimensões da proteção social de jovens na pandemia de covid-19  
Ah, a escola eu acho que, hoje em dia, tem um papel muito importante e a  
ETEC supre todas essas necessidades. A gente recebe bastante apoio, tanto  
psicológico, quanto de várias coisas. A gente sempre tem uma pessoa que tá  
lá pra ajudar a gente, que tá lá pra conversar... A gente tem até uma salinha  
que falam que é a "Salinha Zen", que no dia que a gente tá meio nervoso a  
gente pode ficar lá e dar uma descansada. Então eu acho que, principalmente,  
todos os alunos... A gente sabe que é um lugar de fuga, um lugar que a gente  
possa fugir quando começar a dar tudo errado. Então, a gente sabe que mesmo  
se der tudo errado vai ter lá alguém pra ajudar a gente, então eu acho que isso  
é muito importante e ajuda muito porque a gente vive nesse negócio de curso,  
técnico, de ensino médio... Então, a gente tem uma pressão maior (Entrevista  
com Mariana, 2020).  
Na pandemia, a escola teve um papel muito importante em dar apoio, motivação e  
esperança para que os jovens não desistissem de seus sonhos e objetivos. Como afirmam Pereira  
e Lopes: “Apesar de todas as dificuldades que vivenciam nesse contexto, [os jovens] veem a  
escola como um instrumento importante para tornar realidade seus projetos, fazendo com que  
nela permaneçam” (Pereira; Lopes, 2016, p. 211).  
Lucca é um jovem homem, que se identifica como branco, tinha 17 anos e estudava no  
2º ano do ensino técnico integrado ao médio, na área de desenvolvimento de sistemas, quando  
a entrevista aconteceu. Ele morava em Santos, também na região da Orla, com a mãe, o pai e  
um irmão mais velho. A família não é natural de Santos e se mudou para a Baixada Santista  
antes de Lucca nascer. Como não tem outros familiares na cidade, são muito unidos. Ele destaca  
o lugar da família como dimensão da proteção social dos jovens e, dessa forma, o que marca a  
passagem para a vida adulta é o fato de não ter mais a família para “contar”:  
491  
Eu acho que de criança para adolescente não tem uma marca de passagem,  
mas eu acho que adolescente para adulto tem, que é você começar a pensar  
por si mesmo, porque querendo ou não você ainda tem seu pai com você, a  
família com você para você contar. Ela vai estar cuidando de você. E quando  
você muda de adolescente para adulto você tem que começar a pensar quando  
você tem que começar a se agilizar para ter dinheiro, para pagar contas,  
faculdade se você precisar, então acho que é para adulto e adolescente que  
tem, mas para criança/adolescente não tem tanto (Entrevista com Lucca,  
2020).  
Para Abramo e colaboradores (2020), há “um senso partilhado de que a obrigação dos  
pais é apoiar os estudos de seus filhos até o fim do Ensino Médio. A partir daí, porém, os cursos  
profissionalizantes, ou o Ensino Superior, devem ser conquistados (bancados) pelos próprios  
jovens, essa etapa tem de ser um projeto deles mesmos” (Abramo et al., 2020, p. 534).  
A escola também é sentida pelo jovem como um lugar de refúgio:  
[...] agora eu sinto muita saudade porque [a escola] era como um refúgio que  
eu tinha tipo “ah deixa pra fora” e eu começava a pensar só nas coisas da  
escola e meus amigos tudo mais. Só que antes eu pensava: “Meu Deus, eu  
tenho que acordar!” E é o que dizem: "você só dá valor quando perde”. É a  
mais pura verdade, porque antes eu ficava de saco cheio de ter que acordar  
Bruna C. S. dos Reis; Sônia R. Nozabielli; Júlia B. N. do Amaral; Patrícia L. de Oliveira Borba  
cedo, hoje eu tenho saudade. Eu nunca precisei ter auxílio psicológico na  
escola, mas eu sei que a escola tem porque amigos meus já precisaram, então  
eu sempre tive a escola como uma outra vida, um outro campo. Eu saio da  
escola, volto pra casa, relaxo, volto pra escola (Entrevista com Lucca, 2020).  
Aponta-se, nesse sentido, a centralidade da escola enquanto espaço onde os jovens  
podem vivenciar acolhimento e acesso a diferentes recursos frente às necessidades sociais. Bem  
como destacado por Julia como “abraço de urso” e por Mariana como “lugar de fuga, onde pode  
fugir quando começa a dar tudo errado”, Lucca chama a escola de “refúgio”. Em diálogo com  
a proposta de Sposati (2014) de apreender a proteção social a partir da ideia de “contar com” e  
“ter certeza de”, a ETEC aparece para os jovens como uma dimensão que pode responder aos  
riscos e necessidades sociais das juventudes.  
A pandemia produziu impactos em sua organização de vida:  
[...] eu não tenho esse escape que é ir pra escola de bicicleta e olhar o mar  
enquanto eu ando... Para só ficar no computador. E dá uma saudade, às vezes,  
porque agora eu fico estudando o dia inteiro e não tem essa divisão. Uma coisa  
que eu falo bastante é que a divisão que tinha antes de escola/casa era bem  
aplicada: na escola você estuda e se você tá em casa você faz o que tem que  
fazer em casa, ou você fica em casa fazendo nada. Agora com essa quarentena  
você pode tá indo com teu computador, aí você pode estar fazendo coisa de  
casa na escola, ai depois você está fazendo coisa de escola na casa, então não  
tem mais limite de separar as coisas. E isso aconteceu bastante durante essa  
pandemia (Entrevista com Lucca, 2020).  
492  
Assim como indicado por Pereira e Lopes (2016), para além da valorização da escola  
enquanto promessa futura, ela também atua como um espaço que produz sentido no cotidiano  
dos jovens.  
Letícia é uma jovem, mulher, negra que, quando a entrevista foi realizada, tinha 17 anos  
e estava no 3º do ensino médio. Ela mora com a mãe na Zona Noroeste de Santos, que se  
encontra na parte continental da cidade, abriga 16 bairros e é caracterizada pelo adensamento  
populacional de baixa renda. No ensino fundamental, participou do projeto Jovem Doutor9,  
parceria entre a prefeitura de Santos e a Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo  
(USP), o que possibilitou ir até São Paulo e conhecer a USP. A partir disso, seu sonho passou  
a ser ingressar em algum curso na universidade, no entanto, para ela, manter-se em uma  
universidade pública em outra cidade não seria possível diante da renda da família, por isso  
9
O Jovem Doutor é uma atividade multiprofissional e multidisciplinar que envolve professores e estudantes dos  
ensinos fundamental, médio e superior. Utilizando recursos de Telemedicina, educação a distância e do Projeto  
Homem Virtual com o propósito de incentivar os estudantes dos ensinos médio e superior a realizarem trabalhos  
cooperados que promovam a saúde e melhorem a qualidade de vida de comunidades necessitadas através de uma  
ação sustentada (Alunos [...], 2019).  
Libertas, Juiz de Fora, v. 25, n. 1, p. 480-504, jan./jun. 2025. ISSN 1980-8518  
Do chão à tela: dimensões da proteção social de jovens na pandemia de covid-19  
optou por trabalhar através do Programa Jovem Aprendiz desde o ensino médio para poder  
juntar dinheiro e realizar seu sonho:  
Então, depois disso, que eu fiz esses planos na minha cabeça, que eu quis  
muito começar a trabalhar pra juntar o meu dinheiro e começar a fazer  
faculdade, porque também, caso eu não consiga passar na USP, eu vou ter que  
pagar uma. E aí, de qualquer forma, eu não ia ter o dinheiro... Eu ia ter que  
esperar pra arrumar um emprego de novo, então é mais fácil eu fazer o menor  
aprendiz, juntar o dinheiro e depois eu vejo o que eu faço da minha vida  
(Entrevista com Letícia, 2020).  
A esse respeito, para Abramo e colaboradores (2020), os modelos de transição linear  
têm se tornado cada vez mais inapropriados para o país, dessa forma, destacam que essa  
multiplicidade de modos de transição está condicionada pelas desigualdades brasileiras, sejam  
elas de renda, gênero, étnico-racial e de situação familiar. Com isso, para além de uma  
categoria, os estudantes trabalhadores vivenciam uma situação, já que ela não é uma etapa  
intermediária da vida e pode voltar a acontecer mais de uma vez ao longo das trajetórias, bem  
como é uma situação simultânea e não segue um padrão linear.  
Outra dimensão importante da trajetória de Letícia é seu envolvimento junto a um  
projeto social desenvolvido entre jovens do/no território. E é a partir da rede de jovens que  
Letícia cria processos de identificação com outros jovens e também com seu território, o que  
pode ser evidenciado quando, durante a entrevista, ela foi questionada sobre “com que ou com  
quem pode contar” diante das necessidades sociais:  
493  
Então, atualmente eu já sei que eu poderia contar com alguém do meu bairro,  
porque antes de abril eu não sabia... antes de conhecer a J.B. Ela faz um  
trabalho muito legal ali na comunidade, porque ela se juntou com o CRAS...  
Ou é CREAS? Eu sempre confundo com essas siglas, mas eu acho que é o  
CRAS. E eles dão cestas básicas e outros auxílios, então eu poderia me  
inscrever ali e ai eu poderia esperar por uma cesta ou outra coisa, caso eu  
estivesse precisando. Então eu poderia super contar com ela, porque ela ajuda  
muito, muito, muito (Entrevista com Letícia, 2020).  
Corrochano e Laczynski (2021), ao estudar coletivos juvenis nas periferias da cidade de  
São Paulo, compreendem que muitas dessas ações dos jovens começam no bairro porque ele  
representa uma dimensão mais familiar, em que os problemas vividos por eles são conhecidos  
e compartilhados.  
Além disso, o cenário pandêmico intensificou o desgaste de Letícia com a rotina cheia  
de compromissos: escola, trabalho, projetos sociais, música, lazer e relações. Para ela, as  
desigualdades da rede pública de educação, aprofundadas pela pandemia de covid-19, e o  
ensino a distância, geram desânimo e sensação de não estar apreendendo os conteúdos,  
agravadas, também, pela necessidade de mudar seus estudos para o período noturno:  
Não tem muito professor. Então eu sinto que não tô aprendendo nada. Também  
Bruna C. S. dos Reis; Sônia R. Nozabielli; Júlia B. N. do Amaral; Patrícia L. de Oliveira Borba  
pode ser essa questão do ensino a distância, que dificulta bastante. Mas eu  
sinto que o meu desempenho escolar, ele abaixou demais (Entrevista com  
Letícia, 2020).  
Ainda assim, mesmo diante da precarização apontado pela jovem em relação à escola,  
destaca-se que foi a partir dela que a Letícia se inseriu em projetos que representam importantes  
dimensões de sua vida: Jovem Doutor, IC-EM e projeto social. É a através de uma rede de  
proteção produzida pela escola pública que a jovem criou processos de identificação, acesso ao  
território e projeções de futuro.  
Juan é um jovem homem, branco, de 18 anos e, quando realizamos a entrevista, estava  
no 3º ano do ensino médio. Morava, desde que nasceu, na Zona Noroeste com a família: pai,  
mãe e um irmão mais novo.  
A família aparece como dimensão importante da proteção social para o jovem, mas o  
desejo de encontrar trabalho para alcançar independência aparece em seu discurso:  
Meu irmão mais novo ainda não trabalha, tem 13 anos, mas ele quer. Eu  
procurei trabalhar porque não gosto de depender dos outros, acho que ele  
também não. E ele tem mais vontade de ajudar que eu, entende? Mas acho que  
para contar seria meu pai e minha mãe (Entrevista com Juan, 2020).  
Há, nesse sentido, um destaque para a dimensão da responsabilização e sobrecarga da  
família (Horst; Mioto, 2017), quando Juan indica que o irmão, aos 13 anos, já tem o desejo de  
trabalhar para poder “ajudar em casa”. Também, como Letícia, participou do Programa Jovem  
Aprendiz, no entanto, quando realizamos a entrevista já havia encerrado seu tempo na  
aprendizagem. Nesse sentido, o jovem destacou as dificuldades em conciliar o ensino médio e  
o trabalho, principalmente, durante o período da pandemia de covid-19. A sobrecarga com  
trabalho e escola, muitas vezes, não deixou espaço para outras atividades, o que causou  
desânimo e, por vezes, vontade de desistir da escola, desejo que, segundo ele, foi compartilhado  
com outros colegas:  
494  
Eu vi, senti, ouvi e tentei conversar com pessoas, mas não foram muitos que  
vi desistindo, mas vi muita gente falando, e eu fui uma dessas pessoas, que  
estava ocupando minha cabeça demais, não tinha tempo para relaxar, tempo  
para mim, vou fazer o que der. E fiz isso. [...] Vi colegas que no fundamental  
era aluno destaque e no ano passado falar: não consigo mais e desistir  
(Entrevista com Juan, 2020).  
O caráter de proteção do trabalho para as juventudes fica evidente nos relatos do jovem,  
partindo da concepção de Scherer de que proteção e desproteção são “processos simultâneos  
que dialeticamente se ocultam e se revelam no real” (Scherer, 2015, p. 17), dessa maneira, o  
trabalho produz proteção no sentido de construir possibilidades de (sobre)vivência para o  
Libertas, Juiz de Fora, v. 25, n. 1, p. 480-504, jan./jun. 2025. ISSN 1980-8518  
Do chão à tela: dimensões da proteção social de jovens na pandemia de covid-19  
jovem: ajudar em casa e projetar o futuro; mas também produz desproteção ao dificultar o  
acesso à escola e ao lazer.  
Além disso, Juan também destacou o prejuízo para o aprendizado dos conteúdos durante  
a pandemia: “Pra mim, escola é lugar pra aprender e, ano passado, se aprendi duas ou três coisas  
foi muito” (Entrevista com Juan, 2020). Os jovens ouvidos pela Pesquisa Juventude e Pandemia  
também destacaram esse aspecto: 65% relataram ter aprendido menos com o ensino remoto  
(CONJUVE, 2020).  
As diferenças entre a realidade das duas escolas públicas que se apresentam como  
campo empírico da presente investigação ficam explícitas no relato dos jovens, demonstrando  
o impacto da desigualdade: “as consequências do afastamento social não afetam a todos da  
mesma forma, pois têm recorte de classe, étnico-racial e de gênero.” (Coutinho et al., 2021, p.  
239).  
Giovanni é um jovem homem, negro, tinha 16 anos e era estudante do 2º ano do ensino  
médio quando a entrevista aconteceu. Ele morava na Zona Noroeste com o pai e um irmão. Em  
relação ao território onde vive, o jovem acredita que não recebe a mesma atenção da gestão  
municipal que outros lugares da cidade, como a Orla da Praia. Por isso, a conexão com o seu  
bairro é limitada, já que há poucas opções de lazer, cultura e esporte:  
A Prefeitura quer privilegiar mais a parte rica que a pobre, então, na maioria  
das vezes, você vai na praia, na orla e está tudo perfeito. Só que aí você vai  
pro lado da Zona Noroeste e está tudo ao contrário né? Você vai para o lado  
bom da cidade, o lado rico e não tem nenhum problema e do outro lado está  
cheio de problemas. Por exemplo, como citei o lazer aqui no bairro, tem só  
uma quadra pública, mas está toda acabada e abandonada e se eles reformam,  
o povo não coopera também. Ou seja, tem-se as áreas de importância, se  
importam mais com alguns e os outros não” (Entrevista com Giovanni, 2020).  
495  
Desde o ensino fundamental, Giovanni é muito envolvido com representação estudantil.  
Foi presidente do grêmio estudantil de sua escola por três anos e, a partir dessa experiência,  
também participou como jovem vereador no Projeto Câmara Jovem da cidade de Santos10:  
Os projetos acrescentaram muito. Por exemplo, essa liberdade que falei, foram  
esses projetos que me auxiliaram nisso, pra não ter timidez, facilidade de  
conversar, dialogar e outras coisas também. No caso da Câmara Jovem,  
aprendi muito sobre legislativo, sobre as leis. E no Grêmio também. Aprendi  
muito sobre a importância do coletivo, entre aluno, escola, professor, diretoria  
e bairro (Entrevista com Giovanni, 2020).  
10  
Criado em 2014, diante do Decreto Municipal Legislativo nº 30/2014, o projeto elege 21 estudantes dos ensinos  
fundamental e médio da rede pública e privada de ensino de Santos. Tem como objetivo a formação política  
consciente das juventudes da cidade, como também a ampliação das vozes juvenis dentro do poder legislativo.  
Bruna C. S. dos Reis; Sônia R. Nozabielli; Júlia B. N. do Amaral; Patrícia L. de Oliveira Borba  
Destaca-se, nesse sentido, bem como na trajetória de Letícia, a centralidade da escola  
para produzir essas redes de proteção para as juventudes. A partir da escola ele construiu seus  
processos de identificação com a representação estudantil e, assim, com o coletivo do grêmio  
estudantil, o Projeto Câmara Jovem e a IC-EM.  
Giovanni não participa do Programa Jovem Aprendiz, mas era seu grande desejo que  
foi impossibilitado com o início da pandemia. Ele entende que o trabalho é uma oportunidade  
de autonomia, de contribuição com a renda da casa e de possibilidade de guardar dinheiro para  
a entrada na universidade. No entanto, para Giovanni, essa possibilidade foi impactada pela  
pandemia, assim, como indicado por Corseuil e Franca (2020) ao apontar distanciamento dos  
jovens do mercado de trabalho a partir do período de recessão econômica em decorrência da  
pandemia de covid-19.  
A pandemia impactou também a motivação para os estudos. Ele apontou, como motivos  
para isso, as dificuldades em lidar com as perdas de familiares por conta da covid-19, o acesso  
limitado aos dispositivos eletrônicos e à internet de qualidade, a desorganização da escola frente  
às formas de ofertar o conteúdo escolar e a perda da rotina dos jovens.  
Por fim, outra dimensão importante da vida de Giovanni é em relação à espiritualidade.  
Ele é um jovem evangélico muito envolvido com as ações sociais produzidas pelas igrejas no  
bairro:  
496  
Posso citar uma coisa, rapidinho? Por exemplo, quando tem ajuda da família...  
Como no meu caso... Porém meus amigos aqui em volta, no nosso bairro,  
como eu falei, tem uma assistência de ajuda às favelas, porém não alimenta  
todo mundo, tem muitas áreas que faltam. E, um lado muito do nosso bairro,  
é uma ajuda religiosa assim, nosso bairro tem muitas igrejas evangélicas que  
ajudam muito em questão de cesta básica, até assistência social das pessoas  
que necessitam... Eles procuram famílias que também estão precisando de, por  
exemplo, uma cesta, um alimento, até um gás (Entrevista com Giovanni,  
2020).  
A religião enquanto dimensão da proteção social das juventudes aparece apenas na  
trajetória de Giovanni, entretanto, ela se coloca muito presente nas vivências juvenis brasileiras  
(Santos; Mandarino, 2005). Vale, ainda, destacar a apreensão de Giovanni de que as ações da  
igreja conseguem acessar áreas que outras instituições não conseguem, sejam os coletivos do  
território ou os serviços socioassistenciais.  
Reflexões sobre o entrelaçar das narrativas  
A escola, campo empírico da presente investigação e, também, objeto de estudo por se  
apresentar enquanto dimensão da proteção social para as juventudes de ensino médio no  
Libertas, Juiz de Fora, v. 25, n. 1, p. 480-504, jan./jun. 2025. ISSN 1980-8518  
Do chão à tela: dimensões da proteção social de jovens na pandemia de covid-19  
contexto pandêmico, aparece na narrativa dos jovens entrevistados destacada por processos de  
proteção e desproteção, que se materializam de maneira dialética (Scherer, 2015).  
Assim, reitera-se que a proteção social no capitalismo não significa assegurar condições  
de igualdade, como também não está implicada em satisfazer apenas as necessidades sociais e  
traduzir-se em universalização de direitos. A proteção ocupa o lugar dos processos  
contraditórios e da disputa de interesses antagônicos (Pereira, 2016), o que fica evidente nas  
narrativas dos jovens colaboradores.  
As experiências relatadas pelos estudantes da ETEC nos apontam caminhos para uma  
escola que é sentida e apreendida pelos jovens como lugar em que se constroem processos de  
proteção social, mesmo em momentos de crise como vivenciados na pandemia de covid-19:  
para Julia ela é destacada como “abraço de urso”, para Mariana como “lugar de fuga, onde pode  
fugir quando começa a dar tudo errado” e para Lucca a escola é o “refúgio”.  
Ramos (2008) faz a defesa do ensino médio integrado ao técnico por razões ético-  
políticas e aponta-o como caminho possível para a escola única de Gramsci (2000), um espaço  
de acesso à cultura geral, humanista e formativa, equilibrando o aprendizado ao trabalho manual  
e intelectual, promovendo o desenvolvimento da “capacidade de pensar, de estudar, de dirigir  
ou de controlar quem dirige” (Gramsci, 2000, p. 49). Dessa maneira, propõe-se o rompimento  
com a dualidade educacional estrutural que fragmenta trabalho intelectual e trabalho manual  
em detrimento da defesa pela educação unitária que garanta o acesso a todos os  
conhecimentos socialmente construídos, sintetizando humanismo e tecnologia (Ramos, 2008).  
Ainda assim, cabe destacar as críticas apresentadas por Nosella e Gomes (2016), no que  
diz respeito à maneira como o ensino integrado se impõe no país. Os autores defendem que é  
no ensino médio regular que se encontra o caminho a ser percorrido à escola unitária, ao afirmar  
que o ensino integrado pulveriza o ensino médio, permitindo extrema multiformidade (Nosella;  
Gomes, 2016):  
497  
O Estado brasileiro mantém, nesse nível de ensino [médio], dois sistemas  
educacionais: o ensino médio regular e o ensino médio integrado. É a tensão  
entre um sistema minoritário de educação caracterizado por verbas  
específicas, estudantes previamente selecionados, boa estrutura física,  
frequentemente com cursos que podem chegar a quatro anos de duração, dois  
períodos diurnos de funcionamento, plano de carreira docente similar ao do  
magistério superior federal, atividades formativas no contraturno etc. e um  
segundo sistema de massa caracterizado por uma conceituação difusa e  
confusa sobre cidadania e trabalho, uma ilusória e complexa burocracia de  
Estado, escassez de recursos, estruturas físicas arcaicas e precárias, planos de  
carreiras frustrantes e metodologias inadequadas (Nosella; Gomes, 2016, p.  
18).  
Bruna C. S. dos Reis; Sônia R. Nozabielli; Júlia B. N. do Amaral; Patrícia L. de Oliveira Borba  
Dessa forma, ressalta-se o lugar privilegiado da ETEC no que diz respeito às  
experiências ofertadas aos estudantes, destacadas nas narrativas de Julia, Mariana e Lucca. Que  
bom seria se a realidade de todo o ensino médio público do país contasse com a estrutura desse  
sistema minoritário de educação, apontado por Nosella e Gomes (2016), reafirmado pelos  
jovens entrevistados.  
Já em relação aos pontos de conexão entre as duas escolas, pode-se afirmar que é na/pela  
escola que os jovens ampliam algumas de suas redes, uma vez que ela possibilita câmbios entre  
o território, os coletivos juvenis e a universidade pública. Assim, se tem concordância com  
Menezes, Arcoverde e Liberdi (2008) de que é na escola onde os jovens criam redes e teias de  
socialização, firmando sua identidade e demarcando território.  
Para além da escola, outras dimensões da proteção social são destacadas pelos jovens  
entrevistados: família, assistência social, trabalho, território, coletivos juvenis e religião. A  
família ganha centralidade nas narrativas de todos os jovens, reforçando um caráter de  
responsabilização da unidade familiar pelo bem-estar de seus membros (Esping-Andersen,  
1990), que desonera e desresponsabiliza o Estado. No que diz respeito às políticas sociais –  
com foco na assistência social, presente na narrativa de uma das jovens destaca-se o caráter  
focalizado em que se apresenta, traduzida nas cestas básicas distribuídas no CRAS do território.  
Em relação à dimensão do trabalho, a dialética proteção-desproteção está evidente em  
todas as narrativas. Destaca-se o desejo de que, a partir do trabalho, os jovens tenham acesso a  
recursos para satisfazer necessidades materiais, ao passo que também apresentam as  
dificuldades de conciliar trabalho e escola. Já a dimensão do território revela cartografias de  
desigualdades no espaço urbano evidenciadas pelos jovens da Zona Noroeste, que destacam as  
diferenças vivenciadas na região em detrimento da Orla da cidade de Santos.  
498  
A dimensão dos coletivos juvenis apresenta movimentos de resistência e rebeldia que  
se expressam nos territórios populares como forma de proteção social, por meio do engajamento  
e da organização política das juventudes. Por fim, a dimensão da religião aparece em uma única  
narrativa e, de modo contundente, explica como a ausência de proteção social pública é  
compensada pelo crescimento da ação solidária e filantrópica de base religiosa, em especial das  
igrejas evangélicas.  
Vale, ainda, mencionar que, mesmo diante de um processo dialético de proteção-  
desproteção social, os jovens colaboradores desta pesquisa tem “com quem contar” (Sposati,  
2014). Isso possibilitou, inclusive, que pudessem construir possibilidades de permanecer na  
escola em um cenário de crescimento contínuo da desistência escolar, em que, em novembro  
de 2020, mais de 5 milhões de crianças e jovens estavam fora da escola ou sem atividades  
Libertas, Juiz de Fora, v. 25, n. 1, p. 480-504, jan./jun. 2025. ISSN 1980-8518  
Do chão à tela: dimensões da proteção social de jovens na pandemia de covid-19  
escolares (UNICEF, 2021). A desistência escolar é aqui apreendida enquanto “um processo  
complexo, dinâmico e cumulativo de desengajamento do estudante da vida escolar. A saída do  
estudante da escola é apenas o estágio final desse processo” (Dore; Lüscher, 2011, p. 777).  
Assim, os jovens produzem e estabelecem sentidos para a permanência na escola (Pereira;  
Lopes, 2016), que se constroem também a partir dos suportes oferecidos por dimensões como  
a família, o território, a comunidade, os coletivos juvenis, o trabalho e por fim seus próprios  
sonhos.  
Nesse sentido, faz-se necessário colocar luz na importância das políticas públicas de  
educação, como o Programa Institucional de Bolsas de Iniciação Científica - Ensino Médio, do  
Conselho Nacional de Desenvolvimento Científica e Tecnológica (CNPq) operacionalizado  
pelas Instituições de Ensino Superior. A entrada na universidade compõe os projetos de futuro  
de todos os jovens entrevistados, a partir de outras dimensões já mencionadas, mas, também,  
da aproximação com a universidade pública a partir da IC-EM. Além do PIBIC-EM, destaca-  
se a potência que pode ser vislumbrada nas trajetórias juvenis acompanhadas da sua  
participação nos projetos de extensão promovidos pelas Universidades Públicas, tais como: o  
Programa Jovem Doutor, da USP, e o Projeto de Extensão Juventudes e Funk na Baixada  
Santista, da UNIFESP. Parte-se do pressuposto de que as práticas de extensão proporcionam  
materiais para o desenvolvimento de tecnologias sociais e realização de pesquisas, bem como  
possibilitam apreensão da realidade concreta e de possibilidades de intervenção baseadas na  
convivência, respeitando a singularidade dos sujeitos (Lopes et al., 2010).  
499  
Dessa forma, as redes criadas entre a universidade pública e a escola pública, a partir  
das práticas de extensão, permitem aos jovens acessos que constroem as possibilidades de  
sonhos. Essa relação da universidade com as escolas de ensino médio, por meio das práticas de  
extensão, pesquisa e, especificamente, da IC-EM, é promissora para a formação na universidade  
e nas escolas: estudantes e docentes envolvidos aprendem, ensinam, constroem conhecimentos  
e expandem áreas de interesse a partir da aproximação com a realidade e diferentes leituras de  
mundo, no entanto, são ações de baixo alcance pelo número de jovens que são contemplados  
por esse projeto, com pouca valorização no âmbito acadêmico, e portanto, com parcos recursos  
(Oliveira; Bianchetti, 2018; Leite et al., 2022).  
Por fim, apreende-se a importância de produzir redes junto às juventudes em que, no  
âmbito universitário, ensino, pesquisa e extensão dialogam com os jovens, possibilitando  
acesso a repertórios que rompem com subalternidades (Silva; Borba, 2018) e com aparências  
fetichizadas e fetichizantes pelas quais os jovens têm constantemente sofrido processos de  
invisibilidade (Scherer, 2015).  
Bruna C. S. dos Reis; Sônia R. Nozabielli; Júlia B. N. do Amaral; Patrícia L. de Oliveira Borba  
Considerações finais  
As diferentes experiências vivenciadas pelos jovens na escola pública demonstram  
processos simultâneos e contraditórios de proteção e desproteção social: a escola é apontada  
como dimensão que integra redes e permite conexões entre o território, os coletivos juvenis e a  
universidade pública; ao passo que também evidencia os desiguais acessos à educação, mesmo  
no interior da educação pública, quando comparadas a escola técnica e a escola regular.  
Ainda assim, as experiências relatadas pelos estudantes da ETEC puderam sugerir  
caminhos para uma escola que é sentida e apreendida pelos jovens como lugar em que se  
constroem processos de proteção social, mesmo durante a pandemia de covid-19. Dessa  
maneira, podemos vislumbrar sementes da Escola Única, idealizada por Gramsci, na  
experiência da ETEC, como possibilidade de vivência efetiva do desenvolvimento de ações  
formativas integradoras que promovam autonomia intelectual e cultural, tendo em vista a  
ampliação dos horizontes dos sujeitos e o comprometimento com a perspectiva da emancipação  
humana.  
A escola das telas também reverberou na aprendizagem e na subjetividade dos jovens.  
No que diz respeito à aprendizagem, para os jovens da escola de ensino regular a sensação de  
não ter aprendido nada durante o período remoto e o desejo pela desistência presente nas  
entrevistas nos parecem consequências da precarização da estrutura escolar e dos atrasos e  
mudanças constantes para/na implementação de programas de ensino não presencial nas escolas  
estaduais de ensino regular do estado de São Paulo. Já os jovens estudantes da escola de ensino  
técnico não se referem às questões de aprendizagem nas entrevistas haja vista que a ETEC,  
como toda a rede que compõe o Centro Paula Souza, optou pelo uso de uma mesma plataforma  
desde o início do ensino remoto, além de mapeamento das condições de acesso à internet dos  
estudantes, doação e empréstimo de equipamentos e disponibilização dos laboratórios de  
informática da escola mas se referem, prioritariamente, às perdas de vivências juvenis, como  
as idas à escola de bicicleta contemplando o mar.  
500  
Para além da escola, os jovens também destacaram outras dimensões que compuseram  
proteções sociais em suas trajetórias: família, trabalho, território, coletivos juvenis, religião e  
assistência social. Entretanto, essas diferentes dimensões ainda estão distantes de uma proposta  
política de acesso universalizado para as juventudes.  
Outro aspecto relevante é que os jovens entrevistados integram um grupo de sujeitos  
que permaneceu na escola durante a pandemia de covid-19. Num cenário de alarmante aumento  
de jovens que desistiram da escola durante e após a pandemia, apreende-se que eles puderam  
Libertas, Juiz de Fora, v. 25, n. 1, p. 480-504, jan./jun. 2025. ISSN 1980-8518  
Do chão à tela: dimensões da proteção social de jovens na pandemia de covid-19  
construir possibilidades de permanecer na escola: a partir da própria escola, entrelaçada com  
suas famílias, trabalho, território, comunidade, coletivos juvenis e seus sonhos.  
Na construção de sonhos possíveis para essas juventudes, destaca-se a importância de  
iniciativas como a Iniciação Científica de Ensino Médio e a potencialidade das redes criadas  
entre escola pública e universidade pública, por meio dos projetos de extensão. Desenhar  
projetos de futuro junto aos jovens tornam possíveis os sonhos desses sujeitos, no horizonte de  
uma contra hegemonia que contribua para o defronte das expressões da questão social na  
realidade vivenciada pelas diversas formas de experienciar as juventudes.  
Mas ainda questionamos: qual o impacto na vida dos seis jovens colaboradores da  
pesquisa, em longo prazo, em acessar a Iniciação Científica de Ensino Médio para sua formação  
humana, intelectual e política? O que acarretará em seus projetos e escolhas de vida o acúmulo  
de experiências como essas? Como perseguir desenhos universais de políticas públicas que  
ampliem a proteção social desses meninos e meninas inspiradas nessas experiências?  
Dessa forma, espera-se que essa pesquisa forneça materiais que subsidiem políticas  
sociais de proteção em favor das juventudes, com projeções na universalização, integração e  
horizontalidade, em diálogo constante e intermitente com os jovens, em sua pluralidade.  
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As teses do VI CBAS de 1989 nas trincheiras da  
luta antirracista do serviço social brasileiro:  
legado e atualidade  
The theses of the VI CBAS in 1989 in the trenches of the anti-racist struggle  
in Brazilian social work: legacy and current events  
André Henrique Mello Correa*  
Resumo: O presente artigo, valendo-se de  
pesquisa bibliográfica, tem como direção  
política e teórico-metodológica, trazer o legado  
e a atualidade das teses apresentadas no VI  
CBAS de 1989, evidenciando o pioneirismo de  
assistentes sociais negras no tensionamento  
deste debate já em idos dos anos 1980/1990,  
apontando-o como imprescindível para a  
profissão. Entendemos que o Serviço Social  
brasileiro, vive um momento ímpar no  
fortalecimento de uma direção antirracista,  
expressa nas agendas políticas das entidades da  
categoria Conjunto CFESS-CRESS, ABEPSS e  
ENESSO, bem como, inflexões na produção do  
conhecimento na área (dossiês temáticos, TCCs,  
dissertações, teses), o que não elimina desafios  
Abstract: The political and theoretical-  
methodological direction of this article, based  
on bibliographical research, is to bring to light  
the legacy and relevance of the theses presented  
at the VI CBAS in 1989, highlighting the  
pioneering role of black social workers in  
tensioning this debate back in the 1980s/1990s,  
making it essential for the profession. We  
believe that the Brazilian Social Service is  
experiencing  
a
unique moment in the  
strengthening of an anti-racist direction,  
expressed in the political agendas of the  
category entities Conjunto CFESS-CRESS,  
ABEPSS and ENESSO, as well as inflections in  
the production of knowledge in the area  
(thematic dossiers, TCCs, dissertations, theses),  
which does not eliminate major challenges for  
professional training and work, (re)configuring  
old-new dilemmas and (un)paths. In short, this  
is a debate that offers a breath of fresh air for the  
affirmation and defense of the Professional  
Ethical-Political Project, in dark times of the  
advance of conservatism in its reactionary  
character.  
de monta para  
a
formação  
e
trabalho  
profissional, (re)configurando novos-velhos  
dilemas e (des)caminhos. Em síntese, trata-se de  
um debate que oferece fôlego para a afirmação  
e defesa do Projeto Ético-Político profissional,  
em tempos sombrios de avanço do  
conservadorismo em seu caráter reacionário.  
Palavras-chaves: Mulheres negras; Serviço  
Keywords: Black women; Social Work;  
Social; Pioneirismo; Antirracismo.  
Pioneering; Anti-racism.  
* Universidade Estadual de Londrina. E-mail: ahmc.associal2019@gmail.com  
DOI: 10.34019/1980-8518.2025.v25.46710  
Esta obra está licenciada sob os termos  
Recebido em: 27/11/2024  
Aprovado em: 08/04/2025  
André Henrique Mello Correa  
Introdução  
Se muito vale o já feito, mais vale o que será.  
E o que foi feito é preciso conhecer para melhor prosseguir.  
(O Que Foi Feito Devera (De Vera), 1978).  
O debate acerca das relações étnico-raciais se coloca como incontornável na atual  
quadra histórica no radar do Serviço Social brasileiro, com centralidade na agenda das entidades  
da categoria profissional e importantes inflexões no campo da produção de conhecimento na  
área, dando fôlego para a defesa e afirmação do projeto Ético-Político profissional numa direção  
radicalmente anti-opressiva e exploratória e pela defesa da diversidade humana (Correa, 2024).  
Ainda, substancia a defesa de uma concepção de formação e trabalho profissional, radicalmente  
antirracista e anticapitalista, que vá além de mera adesão formal, ancorado numa crítica radical  
pela lente dos fundamentos (Elpídio; Valdo, 2022; Moreira, 2024).  
É importante o adendo e atenção que o debate das relações étnico-raciais não é inédito  
ao Serviço Social brasileiro, afirmar isso seria incorrer a uma desistorização da profissão e  
situá-la fora do circuito histórico de sua gênese, institucionalização e desenvolvimento, que  
permite percebermos as ausências e presenças, bem como, sob quais pressupostos teórico-  
analíticos historicamente às relações étnico-raciais informaram os quadros profissionais na sua  
autorrepresentação, no âmbito da formação e trabalho profissional (Ferreira, 2010), é certo que  
“contraditoriamente, o Serviço Social brasileiro carrega marcas indeléveis do racismo”  
(Almeida; Rocha; Branco, 2019, p. 180). Afinal, “[...] o Serviço Social faz parte da história das  
relações sociais, e por ela é impactada” (Elpídio; Valdo, 2022, p. 327).  
506  
Em outras palavras, esse movimento que incide na profissão, não decorre de forma  
endógena, muito pelo contrário, é no movimento da história que o tempo presente aporta  
inflexões centrais, que sumariam um “acerto de contas com a história”, que possibilita um  
diálogo franco e aberto, postulando limites, dilemas, polêmicas e horizontes coletivos acerca  
do debate das relações étnico-raciais e todo seu vigor, ou seja, os avanços nesse cenário que  
nos cerca, trazem dimensionamentos novos.  
Com este intento, propõe-se um exercício de resgatar o legado e a atualidade das teses  
apresentadas por um grupo de assistentes sociais negras, situadas no eixo Rio-São Paulo, na  
ocasião do VI Congresso Brasileiro de Assistentes Sociais (CBAS), realizado em Natal (RN)  
em 19891. Entendemos que estas produções, demarcadas naquele momento histórico-  
1 Agradeço imensamente à companheira Suelma Inês Alves de Deus e ao companheiro Joilson Santana Marques-  
Júnior, pela disponibilização das duas teses publicadas na ocasião do VI CBAS de 1989, no formato de scanner e  
fotocópia impressa. Trata-se de material de arquivo pessoal, que entendo como importante documentação histórica  
da profissão. Destaco que o mesmo, assim, como ao que parece um conjunto de outras teses de outros eixos, não  
foram publicados no livro Serviço Social: as respostas da categoria aos desafios conjunturais: IV Congresso  
Libertas, Juiz de Fora, v. 25, n. 1, p. 505-527, jan./jun. 2025. ISSN 1980-8518  
As teses do VI CBAS de 1989 nas trincheiras da luta antirracista do serviço social brasileiro: legado e atualidade  
conjuntural da realidade brasileira; da rearticulação do movimento negro e de mulheres negras  
e do próprio Serviço Social no seu processo de renovação e crítica ao conservadorismo e  
tradicionalismo profissional, trazem importantes caminhos prospectivos para a luta antirracista  
no tempo presente.2  
Destacar o legado e o papel das pioneiras nessa discussão, é um exercício de luta pela  
história e memória, num momento em que verifica-se um acampamento de forma mais direta  
da agenda antirracista no interior do Serviço Social brasileiro (Correa, 2024), onde, também,  
verifica-se um enegrecimento da categoria profissional, ensejado pela entrada de estudantes  
negras/os, indígenas e quilombolas e de docentes na área, ainda que não encerre desafios (Cfess,  
2022; Alves; Ortiz, 2023).  
Parte substantiva das reflexões, aqui empreendidas, derivaram da pesquisa de mestrado  
“A história não avança pedindo permissão”: a agenda antirracista do Serviço Social brasileiro  
e as construções coletivas na afirmação do Projeto Ético-Político (2024), ainda, o acúmulo  
teórico-metodológico que subsidia essa análise decorre de revisão bibliográfica em torno da  
discussão empreendida (Lira, 2019; Almeida, Rocha, Branco, 2019; Gonçalves, 202) e de  
outras fontes em especial destaque entrevistas em mídias digitais fundamentalmente em  
podcasts e canal de youtube, a exemplo do exímio trabalho do Podcast Práxis Preta e da página  
do instagram @literapretaseso, bem como a série Femenagens Nossos passos vêm de longe!  
iniciativa do Comitê Assistentes Sociais no Combate ao Racismo do CRESS-SP, que traz  
importantes referências de assistentes sociais negras que construíram e constroem em vida o  
Serviço Social brasileiro3.  
507  
Organizamos a exposição em dois momentos, mais suas sínteses conclusivas. Num  
primeiro movimento, buscou-se destacar o legado e a atualidade das teses do VI CBAS (1989)  
e o papel do pioneirismo das assistentes sociais negras no acampamento desse debate já na  
década de 1980 no interior do Serviço Social brasileiro, chamando a atenção para a unidade de  
gênero-raça-classe, ao que pese os desafios postos no seio da profissão e nos setores de esquerda  
marxista no período (Farias, 2017). Na sequência, considerando o “Serviço Social na História”  
Brasileiro de Assistentes Sociais, Congresso Chico Mendes. São Paulo: Cortez, 1991. As teses encontram-se  
publicadas no formato de anexo na dissertação de mestrado de Correa (2024).  
2 Ainda, que precedendo esse marco que delimitamos no trato das teses do VI CBAS de 1989, tenhamos a presença  
de importantes nomes no seio da profissão que com pressupostos distintos já apontavam a importância e atenção  
para a questão racial nas suas elaborações em idos dos anos 1940-1960, a exemplo de Sebastião Rodrigues Alves;  
Maria de Lourdes Vale Nascimento e Ivone Lara. Consultar: Alves (1967); Santos (2022); Rocha (2022);  
Gonçalves e Lira (2024).  
3
N.E: Destaca-se a recente defesa da Tese de Doutorado de Flávia de Brito Souza, em 06/12/2024, pelo  
PPGSS/UFSC, com o título: ESCREVIVÊNCIAS NO SERVIÇO SOCIAL: histórias e trajetórias sobre o  
protagonismo de assistentes sociais negras na análise da questão racial no Serviço Social. Certamente, incorrendo  
em análise mais elucidativa e imprescindível acerca deste protagonismo destacado.  
André Henrique Mello Correa  
trazemos à baila alguns elementos que situam o debate das relações étnico-raciais na agenda  
das entidades da categoria no tempo presente. Por fim, em sínteses conclusivas, reafirma-se a  
importância desse debate enquanto uma agenda investigativa coletiva, bem como, o caráter de  
femenagem a estas assistentes sociais, que esta singela contribuição buscou realizar.  
“Nossos passos vêm de longe”: o papel das Assistentes Sociais negras na história –  
nas trilhas dos anos 1980 e a emergência do debate acerca das relações étnico-  
raciais  
Acreditamos que a escrita e a produção intelectual também se inscrevem nas trincheiras  
da luta pela memória e legado histórico – “para que o amanhã não seja apenas mais um ontem”  
(AmarElo, 2019).  
O tema da luta da memória contra o esquecimento não é uma novidade, pois  
sabemos que o lembrar é sempre seletivo. [...] A memória é tanto forma de  
pensamento, como seu produto; ela está presente em uma multiplicidade de  
práticas sociais, como arte, literatura, testemunho, relatos de descendentes,  
narrativas historiográficas, memórias biográficas, arquivos, videotecas e  
demais instituições correlatas. Não só temos diferentes tipos de memória, –  
uns mais ativos, outros mais passivos – como eles, enquanto forma de  
pensamento, modificam-se de contexto a contexto (Santos, 2020, p. 105-106).  
Neste caminho, que atravessa a história construída e em construção, postulando o  
imperativo de que “nossos passos vêm de longe”, é que evidenciamos a atuação político-  
organizativa e o papel de Assistentes Sociais negras, na trajetória histórica da profissão,  
pioneiras no tensionamento e evidenciação acerca da centralidade do debate das relações étnico-  
raciais para o Serviço Social brasileiro, com importante atuação no processo de renovação  
profissional (Lira, 2019; Silva; Assis, 2019).  
508  
Logo a trajetória histórica das assistentes sociais negras contribuiu também na  
construção de um Serviço Social crítico, progressista e alinhado às demandas  
sociais de seu tempo, como a luta antirracista e a reivindicação de importantes  
pautas que atravessam as condições de vida da população negra (Silva; Assis,  
2019, p. 2).  
É neste rumo que destacamos os importantes nomes dessas assistentes sociais, algumas  
que já não estão entre nós, outras que seguem firmes nas trincheiras da luta antirracista: Fátima  
Cristina Rangel Sant’Anna, Mabel Assis, Magali da Silva Almeida, Benedita da Silva, Elisabete  
Aparecida Pinto, Suelma Inês Alves de Deus, Maria Inês da Silva Barbosa, Sarita Amaro,  
Conceição Muniz, Ester Vargem, Matilde Ribeiro, Lucia Maria Xavier de Castro, Márcia  
Campos Eurico, Claudia Durans, Eloisa Gabriel, Roseli da Fonseca Rocha, Mauricleia Soares,  
dentre outras tantas de uma nova geração de intelectuais, que vêm congregando importantes  
agendas de pesquisa acerca da matéria.  
A presença das(os) assistentes sociais negras(os) dessa geração com atuação  
Libertas, Juiz de Fora, v. 25, n. 1, p. 505-527, jan./jun. 2025. ISSN 1980-8518  
As teses do VI CBAS de 1989 nas trincheiras da luta antirracista do serviço social brasileiro: legado e atualidade  
na década de 1980 deram significativa contribuição ao processo de  
redemocratização nos sindicatos, nos movimentos sociais, nos partidos  
políticos progressistas e na renovação da profissão (Almeida; Rocha; Branco,  
2019, p. 170).  
Preliminarmente, chamamos atenção que não temos a pretensão, neste estudo, de uma  
abordagem teórico-metodológica acerca de uma biografia histórica e atuação de cada  
Assistente Social listada, nas trincheiras da profissão e seu fundamental papel na luta coletiva  
em torno da agenda antirracista, bem como a inserção nas trincheiras da militância em  
movimentos sociais, partidos, sindicatos, coletivos e outras instâncias e organizações.  
Em contrapartida, faremos um debate no seu escopo mais geral, apreendendo as  
mediações históricas de emergência das relações étnico-raciais no interior do Serviço Social  
brasileiro. Sabemos que as enveredações históricas não são tranquilas, mas acompanham o  
movimento conjuntural, que também evidenciam o conjunto de debates e formulações da  
categoria4.  
É nesse contexto e quadro cultural emergente que a década de 1980 e 1990 é marcada  
pelo início do debate acerca das relações étnico-raciais no âmago da profissão, de forma mais  
direta e sob outro patamar teórico-analítico5, ainda que de forma tímida e gradual, por  
profissionais e estudantes inseridas/os nos movimentos negros e de mulheres negras,  
fundamentalmente; contudo, verificando apenas nos anos 2000, mais precisamente, após 2010,  
um certo espraiamento acerca da matéria na agenda das entidades da categoria (Lira, 2019;  
Silva; Assis, 2019).  
509  
Na história das entidades da categoria a luta contra o preconceito e  
discriminação é assumida na agenda política no final dos anos 1980 e  
conduzida a partir de iniciativas locais ou regionais. A inserção de um número  
não muito significativo de assistentes sociais (porém atuantes) na militância  
partidária, nos movimentos feminista, de mulheres ou negro, do eixo Rio-São  
Paulo, colocou novas demandas e desafios para a profissão na construção de  
ações de combate a discriminações de gênero e raciais naquela conjuntura  
(Almeida, 2013, p. 142).  
4 N.E.: Exemplo disso, poderíamos evidenciar, acerca da não adoção da categoria “raça”, no Código de Ética de  
1993, no texto do VIII princípio – “Opção por um projeto profissional vinculado ao processo de construção de  
uma nova ordem societária, sem dominação, exploração de classe, etnia e gênero” (CFESS, 1993), que talvez  
expressa o acúmulo dos debates mais amplos acerca das relações étnico-raciais naquela quadra e as tendências  
teórico-metodológicas, suas apropriações e não apropriações, escanteamento e divergências. Certamente, muitas  
das Assistentes Sociais mencionadas participaram daquele momento histórico – assembleias, fóruns de discussão,  
debate e deliberações. C.f: Vila Nova, A. (2024). Código de Ética profissional da/o assistente social: ausências,  
apagamentos e invizibilizações da questão racial negra nas suas formulações e atualizações. Revista Serviço Social  
Em Perspectiva, 8(1), 117–135.  
5 N.E.: O que não suprime o campo de tendências distintas na sua emergência, mas que aqui não teremos condições  
de análise.  
André Henrique Mello Correa  
Nesse sentido, infere-se que esse protagonismo na história está medularmente  
relacionado com o espectro político brasileiro, que permeava o processo de renovação  
profissional e as organizações mais amplas da classe trabalhadora, a exemplo dos movimentos  
sociais, em especial aqui, os movimentos negros e movimento de mulheres negras. Silva e Assis  
(2019) evidenciam a vinculação desse protagonismo, à qual nos referimos:  
[...] esse protagonismo é anterior, e esteve alinhado ao ascenso das lutas  
sociais do país, sobretudo nos marcos da ditadura civil-militar, cujo  
movimento negro foi partícipe nas denúncias e resistência a esse episódio da  
história. Sendo assim, é importante apontar que o ativismo das assistentes  
sociais negras é inerente ao processo de reorganização do movimento negro  
contemporâneo, inaugurado com a fundação do Movimento Negro Unificado  
– MNU e posteriormente com o movimento de mulheres negras (Silva; Assis,  
2019, p. 2).  
Nesse terreno histórico-conjuntural, em 1978, dá-se a criação do Movimento Unificado  
Contra a Discriminação Racial (MUCDR), em São Paulo/SP; posteriormente, tendo seu nome  
alterado para “Movimento Negro Unificado”, o “MNU”, tendo significado, nas palavras de  
Domingues (2006, p. 114) – “[...] um marco na história do protesto negro do país, porque, entre  
outros motivos, desenvolveu-se a proposta de unificar a luta de todos os grupos e organizações  
anti-racistas em escala nacional”, assim tendo, como objetivo: “[...] fortalecer o poder político  
do movimento negro”. Domingues (2006), ainda destaca que:  
[...] a primeira atividade da nova organização foi um ato público em repúdio  
à discriminação racial sofrida por quatro jovens no Clube de Regatas Tietê e  
em protesto à morte de Robson Silveira da Luz, trabalhador e pai de família  
negro, torturado até a morte no 44º Distrito de Guainases. O ato público foi  
realizado no dia 7 de julho de 1978, nas escadarias do Teatro Municipal em  
São Paulo, reunindo cerca de 2 mil pessoas, e “considerado pelo MUCDR  
como o maior avanço político realizado pelo negro na luta contra o racismo”  
(Domingues, 2006, p. 113).  
510  
Destaca-se que o MNU6 foi, historicamente, espaço de militância, inclusive de  
Assistentes Sociais, no período. Importante registrarmos a análise referida pelas Assistentes  
Sociais Maria José Pereira, Matilde Ribeiro e Suelma Ines Alves de Deus, acerca do caráter  
assumido pelo Movimento Negro, na conjuntura em questão.  
O Movimento Negro a partir da década de 70 retoma a questão racial, a  
politiza e a insere no contexto dos movimentos sociais como resultado da  
elaboração de uma dupla consciência política, como menbro de uma raça e  
menbro de uma classe. Com essa atuação Movimento Negro pretende não só  
denunciar a discriminação racial, mas também participar da luta contra o  
6
N.E.: Tivemos dificuldades para acesso a documentos que ilustrassem de forma mais incisiva a atuação e as  
bandeiras do MNU na sua emergência, na década de 1980, consequentemente, sua memória histórica. Nota-se que  
o seu site encontra-se em atualização, não estando a disposição alguns documento que seriam subsídios  
importantes à análise, como Estatuto de Fundação, Plano de Lutas, Plano de Ação. MNU. Disponível em:  
Libertas, Juiz de Fora, v. 25, n. 1, p. 505-527, jan./jun. 2025. ISSN 1980-8518  
As teses do VI CBAS de 1989 nas trincheiras da luta antirracista do serviço social brasileiro: legado e atualidade  
sistema sócio-político-econômico vigente (Pereira; Ribeiro; Deus, 1989).  
Esse espraiamento das lutas mais amplas da classe trabalhadora e dos diferentes grupos  
sociais que a compõem em oposição à autocracia militar, pela retomada da democracia no  
Brasil, traz desdobramentos importantes ao debate acerca das relações étnico-raciais, na quadra  
histórica dos anos 1980, 1990 e 2000, considerando as articulações dos movimentos e  
organizações negras, indígenas e quilombolas para a Assembleia Constituinte de 1987 a 1988,  
em torno de uma agenda ampliada de reivindicações, cuja parte foi incorporada no texto da  
Carta Constitucional de 19887 (Lopes, 2011; Santos, 2015).  
Profa. Dra. Magali da Silva Almeida (2021) em entrevista concedida ao Podcast Práxis  
Preta, destaca os desafios postos nessa conjuntura e o caráter paulatino que o debate da questão  
étnico-racial foi assumindo, a exemplo que no ano da CF 1988, antecendendo-a, decorreu a  
Marcha do Movimento Negro contra a Farsa da Abolição, em todo o Brasil, em 11 de maio.  
Ainda, em outra entrevista, concedida a Janoário, Rocha e Dias (2013), Almeida (2013),  
rememora esse processo, destacando a participação ativa do Conselho Regional de Assistentes  
Sociais do Rio de Janeiro (CRAS-RJ), à época, do qual era vice-presidenta.  
Os Movimentos Negros (MN) se organizam nacionalmente com intuito de  
desmascarar a falácia da “democracia racial”, reforçando seu caráter de mito,  
e denunciam de forma organizada o racismo antinegro perpetrado pelo Estado  
e suas instituições. E nós – aqui coloco-me como militante do MN – nos  
engajamos na construção da Marcha Contra a Farsa da Abolição. Quando os  
MN assumem essa bandeira, essa agenda, eu estava militando no Conselho  
Regional de Serviço Social no Rio de Janeiro (na época CRAS-RJ), no cargo  
de vice-presidenta. Lembro-me que coloquei em pauta na reunião do  
conselho pleno do então CRAS a necessidade da entidade assumir essa  
bandeira de luta, ou seja a luta contra o racismo e suas mazelas. Assim,  
assumimos essa luta. Então, a nossa entidade é uma das entidades dos  
trabalhadores que, em conjunto com o MN, organiza a Marcha de 1988,  
participando do núcleo de organização estadual. Por conta dessa  
participação, passamos a ser uma referência para as outras entidades de classe  
no Rio de Janeiro sobre esse tema. Abrimos um leque de articulações do ponto  
de vista regional e estadual. Participei de muitos eventos no estado, fora do  
município do Rio de Janeiro, fui a todos os municípios da Baixada  
Fluminense, Campo Grande- Zona Oeste e demais regiões. Tem um registro  
histórico que até hoje não consegui recuperar. Trata-se de uma edição  
exclusiva do CEAP, sobre o centenário da Abolição na qual uma foto registra  
a presença do CRAS na capa da revista. Segurávamos um cartaz com o texto:  
“Pela vida, pela paz, racismo nunca mais. CRAS- 7ª Região”. O que eu  
quero dizer com essa memória é que a participação das assistentes sociais  
nesse movimento marca o pioneirismo da profissão e da regional do Rio de  
511  
7
Vale lembrar que o racismo passa a ser tipificado como crime inafiançável e imprescritível na Carta  
Constitucional que inaugura a república pós-ditadura (Brasil, 1988 - Artigo 5º XLII), asseverada no ano seguinte,  
pela Lei Caó (Lei nº 7.716/1989) - que define os crimes resultantes do preconceito de raça ou cor. Cap. VIII - Dos  
Indíos. Artigo 68. Aos remanescentes das comunidades dos quilombos que estejam ocupando suas terras é  
reconhecida a propriedade definitiva, devendo o Estado emitir-lhes os títulos respectivos (Brasil, 1988).  
André Henrique Mello Correa  
Janeiro nessa luta (Almeida, 2013, p. 232, grifos nossos).  
A articulação do MNU, como um marco significativo de reaticulação do Movimento  
Negro contemporâneo, antece a realização do III Congresso Brasileiro de Assistentes Sociais  
(CBAS), em 1979, conhecido como o “Congresso da Virada”, por ser inscrito na história como  
um marco na intenção de ruptura com o conservadorismo e tradicionalismo, até então  
hegemônico na profissão, com importantes desdobramentos no âmbito da formação profissional  
(graduação e pós-graduada), do trabalho profissional e na organização político-diretiva da  
categoria expresso nas suas entidades representativas (Guerra, Ortiz, 2009; Netto, 2015; Mota;  
Rodrigues, 2020).  
Essa mediação é fundamental para análise empreendida e corrobora para a afirmação de  
uma determinada direção social estratégica e a vinculação da categoria junto aos movimentos  
sociais que coadunam com o Projeto Ético-Político profissional.  
Ademais, seja nas esparsas produções e sistematizações teóricas e/ou nos espaços de  
debate da categoria profissional e movimento estudantil, preocupados com ações de combate  
às opressões de raça e etnia e na luta antirracista, temos como importante marco histórico de  
tensionamento em torno da matéria, o VI CBAS, ocorrido entre os dias 10 e 14 de abril de 1989  
– “Congresso Chico Mendes”, em Natal/RN, que contou com a participação de 3.500 presentes  
(profissionais e estudantes); organizado pelas entidades a época: ANAS, Associação Brasileira  
de Escolas de Serviço Social (ABESS), Conselho Federal de Assistentes Sociais (CFAS) e  
Subsecretaria de Serviço Social da União Nacional dos Estudantes (SESSUNE) (Correa, 2022;  
2024).  
512  
Tratava-se de um contexto na realidade nacional, cuja quadra histórica estava prenhe de  
determinações e contradições das mais profundas, após o processo e promulgação da Carta  
Constitucional de 1988 e sob a direção do executivo pelo presidente José Sarney (PMDB), no  
período de 1985-1990; com sucessão de Fernando Collor de Mello (PRN) 1990-1992; Itamar  
Franco (PMDB) 1992-1995; e Fernando Henrique Cardoso (PSDB) 1995-2003.  
Nesta enseada, do ponto de vista político-econômico, estava aberta na década vindoura  
o aprofundamento da agenda neoliberal e assalto ao fundo público pelo capital portador de  
juros, equacionado na financeirização das políticas sociais e seu caráter regressivo, dentro da  
lógica da agenda macroeconômica das agências multilaterais Fundo Monetário Internacional  
(FMI), Banco Mundial, Organização Mundial do Comércio (OMC) (Brettas, 2020).  
Os resultados catastróficos se expressaram no ataque aos direitos sociais do conjunto da  
classe trabalhadora, com repercussões mais brutas nos seus extratos marginalizados e  
subalternizados, por condição étnica, racial, sexual e geracional, assentado na lógica da  
Libertas, Juiz de Fora, v. 25, n. 1, p. 505-527, jan./jun. 2025. ISSN 1980-8518  
As teses do VI CBAS de 1989 nas trincheiras da luta antirracista do serviço social brasileiro: legado e atualidade  
superexploração da força de trabalho, em detrimento das necessidades médias do capital  
(Fagundes, 2022). Moura (1988) já havia feito um balanço de denúncia sobre as manutenções  
da dinâmica das desigualdades raciais no Brasil, 100 anos após a Abolição.  
A eliminação dos sistemas de proteção, social, a "flexibilização" dos direitos  
sociais dos trabalhadores, a destruição da malha de proteção social (como  
saúde, habitação e educação), a implantação de políticas “desreguladoras” das  
economias nacionais dos países periféricos, as privatizações dos segmentos  
estratégicos, o aumento vertiginoso do desemprego estrutural: tudo isto lança  
as populações pobres - majoritariamente negras - na dramática condição de  
excedente populacional descartável (Jornal da Marcha, 1995, p. 04).  
Nesse contexto dos anos 1990, de contrarreformas no âmbito do Estado, é realizada, por  
um conjunto de entidades, grupos, sindicatos, organizações e movimentos sociais negros8, a I  
Marcha Zumbi contra o Racismo, pela Cidadania e pela Vida, em 20 de novembro de 1995,  
reunindo mais de 30 mil pessoas, em Brasília, sendo um importante marco de denúncia do  
racismo no Brasil, evidenciando, deste modo, a isenção do Estado na ausência da adoção de  
medidas de promoção da igualdade racial voltadas à população negra, indígena e quilombola.  
Nesse momento, foi entregue um documento-compromisso ao então presidente  
Fernando Henrique Cardoso. Esse movimento massivo expressa um legado que ensejou  
importantes desdobramentos nas primeiras décadas dos anos 2000, durante os governos  
petistas, considerando sua demarcação política, e, de tal maneira, tensionando pautas e  
reivindicações históricas, no campo da promoção da igualdade racial (Domingues, 2007).  
513  
Sem dúvida, a análise das relações raciais no Brasil realizada pelas assistentes  
sociais negras no final da década de 1980 foi uma crítica contundente à  
persistência do mito da democracia racial, que desconsiderou o racismo como  
determinação das condições de vida e trabalho e processos de resistência da  
população negra desde a escravidão, através da qual se estruturou as relações  
de dominação / opressão com base na raça e no gênero, assimetrias e  
desigualdades (Almeida, Rocha, Branco, 2019, p. 169-170).  
Ademais, nesse período, ainda eram apresentadas “teses” nos CBAS – uma forma de  
comunicação, aprovada e deliberada em assembleias prévias ao encontro mais amplo  
propriamente dito. No VI CBAS (1989), foram apresentadas duas teses, concentradas no eixo  
Rio-São Paulo, respectivamente, Serviço Social e os Bastidores do Racismo, de autoria de  
Magali da Silva Almeida e Fátima Cristina Rangel Sant’Anna; e a tese – A questão racial  
8 Conforme expressa, o Jornal da Marcha (1995): “Sem prejuízo da pluralidade de concepções e ações políticas,  
coloca-se hoje, para a militância que combate o racismo, o enorme desafio de priorizar os anseios e os interesses  
maiores da população afro-brasileira, através da formação de um amplo arco de força e aliança capaz de pautar a  
questão racial na agenda dos problemas nacionais. Forjar a unidade no Tricentenário de Zumbi é um imperativo  
histórico que exige das entidades do Movimento Negro um exercício coletivo de descoberta de novas formas de  
relacionamento. Isto também resulta na defesa intransigente da postura ética e do objetivo comum de consolidar o  
Movimento Negro como elemento estratégico na transformação da sociedade brasileira” (Jornal da Marcha, 1995,  
p. 04).  
André Henrique Mello Correa  
enquanto elemento de uma prática transformadora, de autoria de Maria José Pereira, Matilde  
Ribeiro, Suelma Inês Alves de Deus (Almeida, 2013; Marques-Júnior, 2013; Vitorio, 2019).  
Contudo, no CBAS, não havia um Grupo de Trabalho (GT) específico, sendo tais teses  
incorporadas ao eixo geral Análise de Conjuntura Econômica, Política e Social na Realidade  
Brasileira e no Contexto Latino-Americano Referenciado ao Capitalismo Internacional que  
trouxe várias frentes relacionadas à discussão étnico-racial no Serviço Social – “elementos  
como diversidade, racismo, desigualdade, machismo foram abordados e ressaltados como  
imprescindíveis à formação e trabalho profissional” (Almeida; Rocha; Branco, 2019, p. 177).  
Dado o espectro político-conjuntural, a tese elaborada por Magali da Silva Almeida e  
Fátima Cristina Rangel Sant’Anna, traz elementos centrais que fogem da falsa dicotomia entre  
raça e classe, tendência que rondava setores dos partidos políticos de esquerda, sindicatos e do  
movimento negro, que ainda hoje, não eliminam distintas tendências e projetos societários entre  
a forma e o conteúdo político (Farias, 2017; Souza, 2024), defendem que “[...] lutar contra o  
racismo é lutar contra a exploração e opressão” (Almeida; Sant’Anna, 1989, p. 11).  
Entendemos que a luta pela construção do socialismo não consiste apenas na  
extinção da base econômica que determina a exploração capitalista. É  
fundamental que essa luta alcance as bases ideológicas que justificam as  
desigualdades por ela geradas (racismo, machismo, violência, etc…)  
(Almeida; Sant’Anna, 1989, p. 11).  
514  
Neste sentido, já percebe-se uma tenra crítica que muitos setores faziam a ideia de que  
raça dividiria a classe, trata-se de uma questão de método de análise “[...] discordamos da forma  
como alguns setores encaram a questão racial e tentam superá-la apenas pela via cultural.  
Temos como desafios mudar essa realidade. Isto sugere que a luta contra o racismo ser parte  
integrante da luta contra o capitalismo” (Almeida; Sant’Anna, 1989, p. 11).  
[...] é preciso termos nítido que não há divergências entre as lutas  
anticapitalista, antirracista e antissexista, pelo contrário, a luta contra o capital  
apenas se torna efetiva quando damos materialidade e reconhecemos os  
grupos que mais vivenciam as desigualdades produzidas no interior dessa  
sociedade de classes. [...] afirmamos que o que fragmenta a luta é uma visão  
generalista e abstrata de classe, que pouco ou nada diz sobre a realidade, em  
especial no Brasil, dada nossas particularidades sócio históricas. Assim,  
compreendemos que a luta antirracista tal como outras lutas antiopressões, não  
apenas representam e dão concretude a própria diversidade da classe que vive  
do trabalho, como são essenciais e necessárias para construir unidades  
estratégicas no contexto da luta mais geral do trabalho contra o capital  
(Moreira, 2024, p. 87, 95-96).  
No desenrolar da tese em questão, problematizam de forma teórico-crítica e  
fundamentam os elementos constitutivos da relação capitalismo e racismo, destacando a lógica  
do colonialismo, da exploração da mão de obra em distintos territórios, a particularidade que o  
Libertas, Juiz de Fora, v. 25, n. 1, p. 505-527, jan./jun. 2025. ISSN 1980-8518  
As teses do VI CBAS de 1989 nas trincheiras da luta antirracista do serviço social brasileiro: legado e atualidade  
racismo opera em nações distintas, a exemplo do Brasil, no qual dão ênfase para o aspecto de  
dominação ideológica caucionado pelo “mito da democracia racial”. Neste sentido, defendem  
a direção do debate: “Nosso objetivo é discutir a importância do Serviço Social trabalhar esta  
questão, ou seja, o racismo, pois ignorá-lo significa entender de forma limitada os problemas  
que afetam a classe trabalhadora” (Almeida; Sant’Anna, 1989, p. 10).  
Frente ao objetivo proposto, trazem em síntese desafios prospectivos já naquele período  
sobre a importância do debate ser acampado na agenda das entidades da categoria e no campo  
da formação e trabalho profissional.  
Que se assegure durante a formação profissional a articulação dos currículos  
de graduação e pós-graduação (em nível de pesquisa, ensino e extensão), com  
a questão racial, sendo o movimento estudantil e a ABESS vias possíveis e  
fundamentais de estimulação desse processo. Que os Conselhos Regionais  
criem fóruns específicos para discutir as Políticas Sociais do Estado  
capitalista, tendo em vista identificar o seu caráter racista. Que os sindicatos  
da categoria bem como a CUT, incorporem como plano de luta as condições  
de trabalho do negro e demais minorias (Almeida; Sant’Anna, 1989, p. 11).  
Ao que concerne a tese elaborada por Maria José Pereira, Matilde Ribeiro, Suelma Inês  
Alves de Deus, na qual evidencia a relação em torno da questão racial e as determinações da  
classe social, que se espraiam no cotidiano do trabalho profissional. Defendem que a — “A  
questão racial deve ser encarada de frente, não só a nível teórico, mas principalmente no  
cotidiano de nossa prática, visto que apresenta-se direta ou indiretamente nas questões sociais  
vividas pela população alvo do Serviço Social” (Pereira; Ribeiro; Deus, 1989). Nessa linha que  
reivindicam a centralidade deste debate enquanto uma dimensão importante da realidade, que  
não deve escapar ao Serviço Social.  
515  
Ainda, apontam, no nosso entendimento, um conjunto de estratégias e táticas, mediante  
a análise efetuada, que tem mostrado, no tempo presente, a atualidade das reflexões naquela  
dinâmica histórico-conjuntural:  
[...] o Serviço Social deve se aprofundar o conhecimento sobre a questão  
racial, instrumentalizando-se para uma intervenção diante dessa problemática.  
Vemos que um dos caminhos é o incentivo a criação de espaços de discussão  
a nível dos locais de trabalho, entidades da categoria, estabelecimento de  
ensino, sindicatos, associações, etc., além de grupos de estudos específicos  
(Pereira; Ribeiro; Deus, 1989).  
Marques-Júnior (2013) analisou as produções nos CBAS, referendando o VI CBAS  
como um marco acerca da matéria, – “É preciso reconhecer que a questão racial já permeava o  
fazer profissional desde os seus primórdios, mas é em 1989 que ela passa a ser reivindicada por  
algumas assistentes sociais como uma categoria de análise” (Marques-Júnior, 2013, p. 4). Neste  
estudo, o autor se debruçou sobre as produções do VI CBAS (1989) ao IX CBAS (1998).  
André Henrique Mello Correa  
Almeida (2021), sinaliza a incorporação da questão racial, enquanto eixo de trabalho, se deu no  
CBAS de 1995, que ocorreu em Salvador (BA). Outrossim, Marques-Júnior, observa que: “A  
apresentação de trabalhos sobre a temática de raça/etnia tem se mantido constante em uma  
média que fica em torno de três em cada congresso, o que nos dá a dimensão de como esse eixo  
vem sendo pouco pesquisado pela categoria” (Marques-Júnior, 2013, p. 9). Em suas sínteses, o  
autor chama a atenção ao evidenciar que:  
A questão central é que embora haja desde 1989 uma fração das assistentes  
sociais expondo a relevância desta questão, o ínfimo quantitativo de trabalhos  
apresentados sobre a temática, bem como a ausência de produção de grande  
circulação demonstra como a categoria não consegue incorporar a questão  
étnico/racial enquanto dimensão investigativa [...]. É preciso avançar  
entendendo que a produção teórica que embasa a formação profissional deve  
encampar a temática da questão racial e os desafios por ela propostos  
(Marques-Júnior, 2013, p. 10 e 18).  
É certo que os desafios da incorporação do debate étnico-racial, no que tange à produção  
do conhecimento, no período histórico demarcado, são inúmeros. Até aquele momento, apenas  
a obra de Sebastião Rodrigues Alves (1966) com baixíssima circulação, nos tempos de hoje,  
havia sido publicada, que tratava diretamente acerca da matéria, ainda com uma análise com os  
pressupostos teórico-metodológicos de seu tempo, isto é, vinculada ao Serviço Social  
tradicional (Ferreira, 2010).  
Tão somente no início do século XXI, ainda que escrito na década de 1980, que a  
produção do TCC, pela PUC-Campinas, de autoria da profa. dra. Elisabete Aparecida Pinto  
(1986), denominado O Serviço Social a Questão Racial: um estudo da relação do Serviço  
Social e Clientela Negra, é publicado como livro, sob o título O Serviço Social e a Questão  
Étnico-Racial (um estudo de sua relação com os usuários negros), em 2003, pela Terceira  
Margem Editora. Esta se insere de forma pioneira, ao se debruçar de forma mais sistematizada  
sobre esse debate no âmbito do trabalho profissional, referendando preciosa análise no âmbito  
dos espaços sócio-ocupacionais e as relações no seu íntimo, entre usuários, profissionais e  
equipe. Contudo, a obra se encontra esgotada e com pouco conhecimento a seu respeito no  
conjunto da profissão.  
516  
A timidez da matéria étnico-racial nos debates do Serviço Social brasileiro durante os  
anos de 1980 e 1990 nos parece ser explicado pela urgência de outras questões emergentes pós-  
movimento de reconceituação, que ganharam centralidade no debate da categoria profissional  
e suas vanguardas, naquele período. Nesta direção, podemos citar os pressupostos em torno do  
projeto de formação profissional, expresso no currículo de 1982 e, posteriormente, nas  
diretrizes de 1996 (ABEPSS, 1996) e em relação a estas, identifica-se o debate acerca do que  
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As teses do VI CBAS de 1989 nas trincheiras da luta antirracista do serviço social brasileiro: legado e atualidade  
se constituía o objeto da profissão: a questão social ou a política social, haja vista a ampliação  
desse campo no âmbito do Estado, após a Constituição de 1988.  
Contudo, isso não significa a ausência de grupos, ainda que bastante localizados,  
tensionando, no limite, o debate no interior da categoria. Afinal, a história não avança pedindo  
permissão. É reconhecendo limites que se avança, no acerto de contas com a história. Assim, a  
conjuntura porta inflexões sumárias e fundamentais que vêm demarcando a urgência e  
centralidade da incorporação desta agenda no interior da profissão no âmbito das entidades e  
na produção do conhecimento na área.  
Temos, como hipótese, que é precisamente nos anos 2000, após a III Conferência  
Mundial contra o Racismo, a Discriminação Racial, a Xenofobia e Formas Correlatas de  
Intolerância, realizada em Durban, na África do Sul em 20019, e da qual o Brasil é signatário e  
com a emergência e institucionalização das políticas de promoção da igualdade racial10, a partir  
da criação da Secretaria Especial de Políticas de Promoção da Igualdade Racial (SEPPIR), em  
2003, a entrada de estudantes negras/os, indígenas, quilombolas nas universidades públicas e  
docentes com agendas de pesquisa referentes à matéria, que vai-se avançando nesse escopo,  
não sem constrangimentos e disputas, operando-se inflexões ao debate das relações étnico-  
raciais na profissão.  
Nesta quadra, destaca-se o pioneirismo do CRESS/RJ, a partir da criação da Comissão  
Temática Gênero, Etnia e Diversidade Sexual11 (GEDS), ainda em idos de 2000, tendo como  
sua primeira coordenadora Magali da Silva Almeida.  
517  
Desde a sua criação, a GEDS vem fomentando a participação do CRESS/RJ  
em diversos espaços coletivos de defesa dos direitos de diferentes segmentos  
da sociedade civil atravessados pelo debate a que se propõe a comissão, que  
articula, também, estratégias de combate ao racismo, ao sexismo e à  
LGBTfobia com movimentos sociais e espaços acadêmicos (CRESS RJ [...],  
2020).  
Ademais, a partir daí, o que se manifesta de forma bastante presente, de maneira direta  
e indireta, são as categorias e discussões em torno dos determinantes étnico-raciais,  
principalmente nas deliberações no eixo de Ética e Direitos Humanos nos Encontros Nacionais  
do Conjunto CFESS-CRESS, exigindo-se, de alguma maneira, um aprofundamento sobre a  
9
Cf. Portal Geledés. Centro de Documentação e Memória Institucional. Brasil e Durban - 20 anos depois. São  
10 A exemplo das Leis 10.639/2003 e 11.645/2008, que estabelece as diretrizes e bases da educação nacional, para  
incluir no currículo oficial da rede de ensino a obrigatoriedade da temática “História e Cultura Afro-Brasileira e  
Indígena”; do Estatuto da Igualdade Racial (Lei nº 12.288/2010); da Lei de Cotas (Lei nº 12.711/2012) para o  
ingresso nas universidades federais e nas instituições federais de ensino técnico de nível médio.  
André Henrique Mello Correa  
matéria, considerando que já havia uma premência de outros eixos organizativos do  
planejamento dos Conselhos (Seguridade Social, Formação Profissional, dentre outros), que  
não contemplam o debate étnico-racial nas suas deliberações, nesse momento histórico. Assim,  
constata-se, a título de hipótese, que a emergência do debate na agenda dos direitos humanos,  
no seu aspecto mais geral, demarca uma direção em torno de uma bandeira de luta ampliada, o  
que não condiciona de maneira direta sua incorporação nos eixos de formação e trabalho  
(Correa, 2024).  
É na ocasião do 32º Encontro do Conjunto, realizado em setembro de 2003, que  
delibera-se a campanha encabeçada pela Gestão do Conjunto CFESS-CRESS triênio 2002-  
2005 – “Trabalho, Direitos e Democracia: A gente faz um país”, denominada “Campanha de  
combate ao racismo o Serviço Social mudando o rumo da história: reagir contra o racismo  
é lutar por direitos”, organizado pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ);  
Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ); CRESS/RJ 7º Região e ONG Fala Preta –  
Organização de Mulheres Negras. Tratando-se da primeira campanha de combate ao racismo  
do Conjunto (Vitório, 2019; Correa, 2024).  
Importante ressaltar que há poucos registros históricos de análise acerca do  
espraiamento dessa campanha no âmbito da profissão. Campanha que, ao que tange à  
conjuntura mais geral, insere-se no contexto posterior à Conferência de Durban, realizada em  
2001; da implementação, à época, da SEPPIR, em 200312, mesmo ano da promulgação da Lei  
nº 10.639, de 09 de janeiro de 2003, que altera a Lei º 9.394, de 20 de dezembro de 1996 (Brasil,  
2003), que estabelece as diretrizes e bases da educação nacional, para incluir no currículo oficial  
da Rede de Ensino a obrigatoriedade da temática “História e Cultura Afro-Brasileira”,  
posteriormente, alterada pela Lei nº 11.645 de 10 de março de 2008, para inclusão da temática  
indígena (Brasil, 2008).  
518  
Outro registro histórico de destaque, diz respeito ao pioneirismo do Grupo de Estudos  
das Relações Étnico-raciais e o Serviço Social (GERESS), em 2009, em São Paulo (SP), tendo  
sua primeira reunião no dia trinta de maio, na sede da organização Soweto local de militância  
de uma das integrantes. Trata-se de um encontro emblemático, reunindo assistentes sociais,  
mulheres negras para o debate acerca de uma preocupação candente13. (Questão [], 2013).  
12  
N.E.: Na ocasião, a SEPPIR foi criada pela Lei nº 10.678, de 23 de maio de 2003. A posse oficial em 21 de  
março de 2003, em Brasília, contou com um discurso do histórico militante do Movimento Negro – Abdias do  
Nascimento (1914-2011); bem como teve como sua primeira ministra titular a Assistente Social Matilde Ribeiro,  
hoje professora da UNILAB, e uma das pioneiras do debate acerca das relações étnico-raciais na profissão.  
13 “As assistentes sociais que participaram da formação do GERESS foram: Alinne Mayra Costa, Augusta Nunes  
dos Santos, Bernadeth Martins, Denise Bonifácio, Eliana Aparecida Francisco, Kajali Lima Vitório, Naiza Santos,  
Natalina Almeida de Jesus, Raquel Suzan, Samanta de Oliveira, Suelma Inês Alves de Deus” (Bonifácio; Vitório;  
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As teses do VI CBAS de 1989 nas trincheiras da luta antirracista do serviço social brasileiro: legado e atualidade  
Verifica-se na Carta apresentada na ocasião do I Colóquio Nacional das Questões Etnorraciais  
e o Serviço Social, realizado nos dias 24 e 25 de julho de 2010, na Universidade Estadual do  
Rio de Janeiro (UERJ), os objetivos do GERESS:  
Aprofundar as discussões sobre as questões étnico-raciais com a interface do  
serviço social, tanto junto aos profissionais, como para estudantes e, também,  
com a população usuária das políticas sociais setoriais; Produzir material  
acadêmico acerca da temática; Contribuir para a formação profissional, inicial  
e continuada, da categoria de assistentes sociais; Articular ações com os  
órgãos representativos da categoria: CFESS/CRESS SP; ABEPSS, ENESSO  
e outros; Reunir pesquisadores(as) da área de Serviço Social, com interesse  
nas questões étnico-raciais; Colaborar para a construção de políticas públicas  
setoriais com o recorte racial; Estabelecer parcerias com universidades e  
demais instituições que tenham interesse na temática. (Geress, 2010 apud  
Bonifácio; Vitório; Deus, 2018, p. 429).  
Tratam-se de importantes direcionamentos e proposições de um dos grupos mais  
antigos no âmbito do Serviço Social brasileiro, em atividade contínua. Feito o caminho de volta  
e referendando esse breve balanço do direcionamento e defesas presentes nas teses apresentadas  
no VI CBAS (1989), evento histórico que demarca um direcionamento da luta antirracista no  
bojo da profissão, tranzitamos para a seção seguinte, afim de situar em linhas gerais os  
caminhos e (des)caminhos do antirracismo postos ao Serviço Social brasileiro nesse tempo que  
nos convoca a radicalidade da crítica (Souza, 2024; Santana, Moreira, 2024).  
519  
Sankofa: “retornar ao passado, ressignificar o presente para construir o futuro” -  
a agenda antirracista do Serviço Social brasileiro  
O Serviço Social brasileiro, vive um momento importante na afirmação da agenda  
antirracista no âmbito das suas entidades representativas e na produção do conhecimento na  
área (Moreira, 2020; Correa, 2024). Verifica-se na cena contemporânea, ainda que não se  
configure um dado inédito, um acirramento na disputa da direção do debate racial no Brasil,  
como bem trabalhado por Souza (2024), em pelos menos três direções (i) liberal; (ii)  
culturalista; (iii) crítica. Atenta-se que essas direções trabalhadas pela autora possuem em seu  
cerne fundamentos interpretativos acerca do racismo, sua expressão concreta e formas de  
enfrentamento.  
Diríamos que o debate público acerca do combate ao racismo, seu caráter estrutural, das  
relações étnico-raciais, os estudos acerca da branquitude e as polêmicas em torno da identidade  
e identitarismo, estão postos na ordem do dia, com incomensuráveis reverberações na profissão,  
“[...] tendo em vista que o próprio movimento do real tem tensionado a profissão a passar a  
Deus, 2018, p. 429).  
André Henrique Mello Correa  
história a limpo e avançar no debate das relações étnico-raciais, sendo este um dos desafios  
mais candentes para o Serviço Social brasileiro na atualidade [...] (Moreira, 2024, p. 141).  
Nesta perspectiva é que entendemos que o tempo presente carrega avanços de uma  
agenda antirracista na profissão. Esta segue em constante construção no movimento da história.  
Esse movimento não é homogêneo, é permeado de avanços e recuos, muitas vezes, assim como  
não está isento de disputas e dissensos (de ordem teórico-metodológica, teórico-prática,  
político-institucional), que não devem ser despercebidos ou não dimensionados, haja vista os  
rebatimentos centrais para a formação e trabalho profissional.  
Neste sentido, temos que o debate das relações étnico-raciais, e sua devida importância  
não é hegemônica no âmbito da profissão, mas reflete disputas mais amplas, tensionamentos e  
(des)caminhos teórico-analíticos, no campo do trabalho profissional, que incidem inclusive no  
campo de uma adesão formal ou real ao antirracismo pela categoria profissional (Moreira,  
2024).  
É premente que esse debate e sua centralidade não sejam “individualizados”, isto é, que  
não seja tarefa apenas das/os estudantes e profissionais negras/os, indígenas e quilombolas  
inseridas/os com a discussão de forma tematizada, em espaços, eventos e organizações. Ao  
contrário, como defende Ribeiro (2004, p. 159), que seja tratado por toda categoria – “[...] como  
uma área investigativa e de conhecimento”.  
520  
Desta maneira, mobiliza-nos a não “perder de vista a realidade concreta e suas  
contradições, assim contribuindo de forma séria e comprometida na agenda antirracista do  
Serviço Social brasileiro, com vistas ao fortalecimento do Projeto Ético-Político, nas bases  
formativas e do trabalho profissional” (Correa, 2022, p. 440). É com essa premissa que  
acreditamos que o tempo presente, numa perspectiva do movimento do real, é permeado por  
marcantes inflexões que se rebatem a nível da cultura profissional, contribuindo, assim, para o  
que Netto (2016), evidencia como fundamental na contribuição de uma nova história do Serviço  
Social14  
Nesse diapasão, as entidades da categoria Conjunto CFESS-CRESS, ABEPSS e  
ENESSO, tem contribuído para o fortalecimento da direção do antirracismo nas trincheiras do  
Serviço Social brasileiro, através de posicionamentos, campanhas, documentos. Esse  
14  
O autor observa que o esforço de uma história nova, construída coletivamente deve se ater para a direção do  
compartilhamento de um quadro teórico-metodológico comum – a exemplo de Iamamoto e Carvalho, em Relações  
Sociais e Serviço Social no Brasil. Nessa direção, postula que: “a nova história do Serviço Social, tácita ou  
explicitamente reproduzirá idealmente (teoricamente) o movimento da profissão tomando partido frente ao seu  
presente e também detectando/esboçando algo do seu devir - igualmente, por essa razão, nenhuma história é  
“neutra”, “imparcial” ou “inocente” ou tem por objeto exclusivo o passado” (Netto, 2016, p. 59).  
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As teses do VI CBAS de 1989 nas trincheiras da luta antirracista do serviço social brasileiro: legado e atualidade  
movimento não é endógeno e acompanha as determinações mais gerais que se rebatem e se  
revelam na profissão.  
[...] frisamos que não são as entidades que pautam os debates e suas agendas  
políticas à revelia da realidade e das demandas que se colocam para a categoria  
profissional, no campo da formação e do trabalho. Mas antes, elas são parte e  
expressão do movimento da história e também refletem as disputas de projetos  
existentes no âmbito da profissão (Moreira, 2024, p. 181).  
A exemplo da entrada de estudantes negras/os, indígenas e quilombolas no ensino  
superior e a entrada na pós-graduação, destaca-se o papel dos Coletivos Universitários, bem  
como, a presença (ainda que ínfima) de docentes negras/os e suas agendas de pesquisa,  
considerando que “estas ações em conjunto, confrontam e desnaturalizam o mito da democracia  
racial, a meritocracia, o racismo institucional e acadêmico que dão ainda, a tônica de uma  
universidade seletiva e pouco democrática” (Elpídio, et al, 2024, p. 70).  
É a unidade em torno de projetos comuns e na afirmação da direção social estratégica  
que nos convida, na agenda do tempo presente, dados os tensionamentos e acúmulos históricos,  
afirmar que: “o combate ao racismo, não é uma escolha, trata-se de um compromisso da  
profissão” (Moreira, 2023). Concordamos ainda com a avaliação do autor, ao expressar:  
[....] avaliamos que é nos meados desta última década que tivemos um avanço  
expressivo desse debate na categoria, especialmente pelo fato das entidades  
profissionais estarem num movimento importantíssimo de reconhecimento da  
urgência em avançarmos no debate das relações étnico-raciais no campo da  
formação e do trabalho profissional, enquanto pressuposto para o  
fortalecimento da própria direção emancipatória do Projeto Ético-Político  
(Moreira, 2023).  
521  
Nesta enseada, destaca-se no âmbito do Conjunto CFESS-CRESS os importantes  
acúmulos, em termos de síntese: O caderno 3 (racismo), da série Assistente Social no combate  
ao preconceito (2016); a realização do 2º Seminário Nacional de Direitos Humanos (2019); a  
Campanha do Triênio 2017-2020 – “Assistentes Sociais no Combate ao Racismo”; Seminário  
Latino-Americano e Caribenho Serviço Social, Povos Indígenas e Direitos Humanos (2022),  
em parceria com a ABEPSS; o lançamento da Nota Técnica Quesito Raça/Cor/Etnia (2022); a  
Resolução CFESS nº 1.054, de 14 de novembro de 2023, que estabelece normas vedando  
condutas de discriminação e/ou preconceito étnico-racial no exercício profissional da/o  
Assistente Social; o lançamento do Comitê Antirracista do CFESS e articulações para  
implementação nos conselhos regionais pelo Brasil.  
Ao que tange a ABEPSS, verificamos como marcos fundamentais que ilustram a agenda  
antirracista no plano da entidade: a instituição dos Grupos Temáticos de Pesquisa (GTPs) em  
2010, em especial o acúmulo histórico do GTP Serviço Social, Relações de  
André Henrique Mello Correa  
Exploração/Opressão de Gênero, Raça/Etnia e Sexualidades; e de forma especial os  
desdobramentos a partir do biênio 2017-2018, com o lançamento dos Subsídios para o debate  
sobre a questão étnico-racial na formação profissional em Serviço Social (2018) e do  
documento “As cotas na pós-graduação: orientações da ABEPSS para o avanço do debate”  
(2018); a articulação da Comissão Temporária de Trabalho (CTT): Relações Étnico-Raciais e  
Formação Antirracista, culminando com a elaboração do documento “A inserção da  
educação para as relações étnico-raciais no âmbito da pós-graduação na área de Serviço  
Social nos últimos cinco anos (2017-2022) e o lançamento da Plataforma Antirracista da  
ABEPSS (2022); ainda, destaca o conjunto de lives acerca das relações étnico-raciais  
transmitidas pela TV ABEPSS no Youtube e a centralidade da agenda antirracista na gestão  
2023-2024, verificando-se importantes construções nas Oficinas Regionais – “Formação  
Antirracista e projetos societários no contexto de flexibilização do ensino superior”; a 7º Edição  
ABEPSS Itinerante: Diretrizes Curriculares, Debate Étnico-Racial e Projetos Pedagógicos e a  
realização do 18º ENPESS – “Relações de classe raça-etnia: desafios a uma formação  
emancipatória no Serviço Social.  
Esses acúmulos ensejam o fato de que:  
[...] a ABEPSS tem avançado no debate das relações étnico-raciais,  
compreendendo a relação entre as lutas anticapitalista, antirracista,  
antissexista e demais sistemas de opressão e dominação, reconhecendo a  
urgência deste debate no contexto da formação graduada e pós-graduada, bem  
como do trabalho profissional – numa perspectiva de indissociabilidade entre  
trabalho e formação, coerente com a lógica do projeto defendido  
hegemonicamente pela categoria (ABEPSS, 2022, p. 6).  
522  
Ao que importa o papel da ENESSO, Araujo (2023) faz um precioso balanço da agenda  
antirracista no âmbito da entidade. Talvez um dos momentos mais emblemáticos no tempo  
presente, ao que tange à atuação política do MESS e a luta antirracista, em nossa avaliação,  
tenha sido o Movimento #MárciaFica, iniciado na ocasião do 11º Seminário Anual de Serviço  
Social da Cortez Editora, em 07 de maio de 2018, durante a mesa – “Trabalho profissional e as  
explorações/opressões de sexo, raça e classe: a defesa do Projeto Ético-Político do Serviço  
Social”, em decorrência da iminente demissão da professora Márcia Campos Eurico, da ESS  
da PUC-SP. As/os estudantes ocuparam, no dia 21 de maio, dois prédios da universidade,  
Campus de Perdizes, denunciando o racismo institucional presente, considerando que Márcia  
foi a única professora negra, em 80 anos de existência do curso, conforme noticiado (Correa;  
Ortiz, 2023).  
É nesta toada político-reivindicativa que encontra eco na dinâmica da realidade que se  
impõe, reivindicando uma demanda concreta, na medida que denuncia o racismo institucional  
Libertas, Juiz de Fora, v. 25, n. 1, p. 505-527, jan./jun. 2025. ISSN 1980-8518  
As teses do VI CBAS de 1989 nas trincheiras da luta antirracista do serviço social brasileiro: legado e atualidade  
expresso na naturalização da ausência de docentes negras/os, no quadro geral do curso, que  
destacamos a centralidade do último Seminário Nacional de Formação Profissional e  
Movimento Estudantil de Serviço Social (SNFPMESS), que teve como tema – “A virada agora  
é preta! 40 anos do Congresso da Virada. Por uma práxis antirracista”, realizado entre os dias  
15 a 18 de janeiro de 2020, em Niterói/RJ, sediado pela Universidade Federal Fluminense  
(UFF) (Correa; Ortiz, 2023).  
A “virada”, nesta direção, é salientada como um devir constante, vinculada à realidade  
objetiva, conformada pelas contradições e tensionamentos na ordem do dia. Tal centralidade  
expressa nesse encontro da ENESSO, vem sendo debatida de forma expressiva na agenda da  
entidade há certo tempo, enquanto eixo organizativo dos encontros. Esse tema encontrou  
reverberação na conjuntura que o atravessava, principalmente, considerando o movimento do  
real e os acúmulos e direções oriundas nas outras instâncias da categoria profissional, como a  
Campanha do Conjunto CFESS-CRESS Assistentes Sociais no Combate ao Racismo (2017-  
2020) (CFESS, 2020) e o documento da ABEPSS Subsídios para o debate sobre a questão  
étnico-racial na formação em Serviço Social (ABEPSS, 2018) (Correa; Ortiz, 2023).  
É certo que a articulação dos CAs e DAs comprometidos com a luta antirracista,  
antissexista e anticapitalista, tal qual o fundamental papel de Grupos de Pesquisa e Extensão,  
que contam com a participação de docentes e discentes engajados nessa toada, a exemplo do  
“Coletivo Aya” (UFRGS); do Observatório de Racialidade e Interseccionalidade - ORI  
(UFBA); do Grupo de Estudos e Pesquisa sobre Questão Racial e Serviço Social - GEPEQSS  
(UFF Niterói); do Projeto de Extensão Interinstitucional – “Serviço Social: Estratégias de  
Enfrentamento ao Racismo no Cotidiano Profissional” (UFOP/UFF Niterói); do Grupo de  
Estudos acerca do Pensamento Social de Clóvis Moura (GEPEQSS - UFF Niterói e Interfaces  
- UFES), do Projeto Aquilombando a Universidade (UEL); dentre outros que, sem dúvida, vêm  
tensionando a dinâmica institucional frente à centralidade da matéria no processo formativo.  
Esse brevíssimo itinerário, revela o legado das assistentes sociais negras que  
construíram e constroem a profissão. Ainda, temos que avançar de forma inadiável no debate  
acerca dos povos originários e comunidades tradicionais, dando sua devida centralidade no  
âmbito desta agenda.  
523  
Neste itinerário, verifica-se o legado e a atualidade das formulações apresentadas nas  
teses do VI CBAS (1989), num momento de acerto de contas com a história por parte do Serviço  
Social brasileiro e o debate das relações étnico-raciais. Este deve ser pautado pela lente dos  
fundamentos e pela crítica ontológica-radical, afinal, “esta direção é decisiva na disputa com  
vertentes que colocam o debate do antirracismo no campo do estruturalismo, do culturalismo,  
André Henrique Mello Correa  
do subjetivismo, do liberalismo e do pensamento pós-moderno” (Elpídio, et al, 2024. p. 70).  
Assim, neste caminhar: “é o presente em aberto que esclarece o passado e abre seu devir”  
(Batistoni, 2021, p. 75).  
Sínteses conclusivas  
Buscamos nestas breves páginas trazer a baila o legado e a atualidade das teses  
apresentadas no VI CBAS de 1989, escrita de forma pioneira por um grupo de assistentes  
sociais negras do eixo Rio São Paulo. Trata-se de um material valiosíssimo e com importantes  
contribuições teóricas para a análise das relações étnico-raciais no seio da conjuntura do  
processo de renovação profissional em idos dos anos 1980-1990. O escopo teórico-  
metodológico das teses, se mostra mais do que atual, num momento em que a agenda das  
relações étnico-raciais chega com os dois pés na porta num acerto de contas com a história no  
interior da profissão. Ainda, este escrito se situa como uma singela femenagem e humilde  
contribuição de resgate da história e memória do pioneirismo das mulheres negras no  
acampamento dessa agenda, por vezes invisibilizadas, com árduas lutas e tensionamentos.  
Verifica-se desafios de monta que cercam o debate da luta antirracista no interior da  
profissão nas suas bases formativas e do trabalho profissional, ou seja, o debate não está dado,  
pronto e acabado. Muito pelo contrário, está prenhe de contradições que nos convida a  
estabelecer as mediações desse processo, assim, precisamos avançar em concordância com  
Moreira (2024) de uma mera adesão formal para uma adesão real do antirracismo na profissão.  
Ilustra esse quadro os distintos processos de implementação de disciplina específica  
acerca das relações étnico-raciais e seu desenho geral, como optativa ou obrigatória, carga  
horária, ou diluída num grande “guarda-chuva”, ofertada no formato remoto; ou, a não  
compreensão da totalidade a ser expressa na lógica curricular no conjunto das disciplinas nos  
três núcleos de fundamentação, assim, devendo o debate aparecer nas disciplinas de estágio,  
política social, ética, seminários temáticos, dentre outras.  
524  
Destaca-se também, a necessidade da adoção de ações afirmativas para ingresso de  
corpo discente e docente nos processos públicos a nível de graduação e pós-graduação. A  
presença de professoras/es negras/os, indígenas, quilombolas é bastante inexpressiva na pós-  
graduação, como aponta o relatório da ABEPSS (2022).  
Ainda, a não adoção do quesito raça/cor/etnia no processo de trabalho das/os assistentes  
sociais; a não adoção de estratégias e táticas de combate ao racismo no cotidiano; a emergência  
de processos ético relacionados a práticas discriminatórias; ou ainda, uma visão humanista-  
Libertas, Juiz de Fora, v. 25, n. 1, p. 505-527, jan./jun. 2025. ISSN 1980-8518  
As teses do VI CBAS de 1989 nas trincheiras da luta antirracista do serviço social brasileiro: legado e atualidade  
abstrata que tangencia as diferenças e nega a diversidade, subsumida em um “todos somos  
iguais”.  
Os desafios de ordem teórica-metodológica, também é um debate que nos chama a  
atenção. Sob quais tendências e pressupostos teórico-analíticos a produção do conhecimento  
acerca das relações étnico-raciais na área tem caminhado? E quais suas implicações em torno  
da forma e do conteúdo do antirracismo adotado?  
Longe de trazermos respostas prontas, o plano aqui almejado é de reflexões coletivas e  
saídas conjuntas. Assim, fortalecendo a direção do antirracismo no seio do Serviço Social  
brasileiro. O legado das assistentes sociais negras, suas formulações é um convite para essa  
empreitada, vamos juntas/os/es. É tudo pra ontem!  
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Filha de Xica Manicongo: entrevista com  
Adriana Lohanna dos Santos  
Samuel Francisco Rabelo*  
Adriana Lohanna dos Santos**  
E que amanhã, que amanhã possa ser diferente pra elas  
Que tenham outros problemas e encontrem novas soluções  
E que eu possa viver nelas, através delas e em suas memórias.  
(Oração Linn da Quebrada).  
Eixo 1 – Infância, família e os primeiros atravessamentos da identidade de gênero.  
Samuel Rabelo: Como as memórias da sua infância, sua relação com a família e os  
desafios enfrentados no ambiente familiar e escolar influenciaram o processo de descoberta e  
afirmação da sua identidade de gênero, e como a ausência de referências de mulheres trans ou  
travestis nessa fase impactou sua trajetória, incluindo a escolha do nome Adriana Lohanna?  
Adriana Lohanna: Como toda criança, todo “menino”, né, que é colocado pela  
sociedade como “menino”, eu brinquei. Dançava quadrilha junina, e meu tio era o marcador.  
Até hoje, sou muito ligada às tradições juninas, pois fizeram parte da minha infância. Sempre  
fui da Igreja Católica, cresci na Diocese de Propriá e participei de vários movimentos sociais  
da igreja. Fiz parte da Infância Missionária, rezava com um terço colorido. Nesse processo da  
infância, o que ficou foi a percepção de que eu era realmente o menino deslocado da realidade,  
o menino diferente, o menino que tinha as mesmas vontades, mas que não se encaixava nas  
mesmas possibilidades que as outras meninas. Eu tenho uma irmã, que tem um ano de diferença  
de mim, e era muito ligada a ela, não só pela proximidade da idade, mas também porque queria  
viver as mesmas experiências e o mesmo espaço dela, enquanto uma menina.  
Eu sabia desde cedo que era "bichinha", "viadinho", "mulherzinha" palavras  
relacionadas à orientação sexual, mesmo sem saber exatamente o que elas significavam. Para  
mim, eram apenas xingamentos, que eu ouvia na escola e nas interações sociais, entre os  
* Universidade Federal de Sergipe e Universidade Tiradentes. E-mail: samwrabello@gmail.com  
** Universidade Federal de Sergipe. E-mail: lohannafashion.com@hotmail.com  
DOI: 10.34019/1980-8518.2025.v25.47753  
Esta obra está licenciada sob os termos  
Recebido em: 10/03/2025  
Aprovado em: 23/06/2025  
Filha de Xica Manicongo: entrevista com Adriana Lohanna dos Santos  
colegas: "viadinho", "mulherzinha", "goiabinha". Eu aceitava esses xingamentos porque sabia  
que, como menino, isso fazia parte da minha vida, da minha relação com os outros meninos na  
família. A homofobia sempre esteve presente. Eu tinha um tio homossexual e ouvia do meu pai  
que, se eu fosse igual a ele, eu apanharia. Cresci ouvindo que ser homossexual ou travesti era  
algo ruim, que poderia até levar à morte, porque meu pai dizia que me espancaria se eu fosse  
como meu tio.  
Essas questões todas atravessavam a visão que eu tinha sobre ser homossexual, que era  
apontado como algo negativo, algo que a sociedade não aceitava. Quando alguém na escola ou  
na comunidade era visto como homossexual, era tratado com desprezo, como se fosse um ser  
inferior. Não tive referências de mulheres travestis ou transexuais na infância. As referências  
que eu tinha eram de homens homossexuais, que eram sempre marginalizados na cidade. Eram  
colocados em um espaço de desvalorização, de pessoas que não poderiam ser seguidas como  
exemplo. Foi somente na adolescência que comecei a entender mais sobre a travestilidade,  
através de uma professora trans chamada Marcele, que era pedagoga e travesti. Ela foi a  
primeira pessoa trans que eu conheci e foi quem me deu o nome "Lohanna".  
O nome Adriana veio como uma forma de respeitar a identidade do “menino Adriano”,  
que existiu antes da minha transição, enquanto "Lohanna" foi dado como um batismo pela  
Marcele, algo relacionado à tradição de outras mulheres travestis que, ao começarem a  
transição, recebiam um novo nome. Marcele foi quem me orientou nos primeiros passos dessa  
transição: o início da hormonioterapia, as primeiras perguntas, o processo de transição. Ela foi  
fundamental no meu processo de descoberta e aceitação de mim mesma.  
529  
Eixo 2: Tornar-se mulher transexual, negra e nordestina em um contexto de  
marginalização.  
Samuel Rabelo: Como foi sua experiência de transição em Sergipe, considerando os  
desafios de ser uma mulher trans, nordestina e negra em um estado marcado pelo racismo, pela  
transfobia estrutural e pela desigualdade social, e de que forma essas interseccionalidades  
impactaram suas oportunidades e os enfrentamentos necessários para afirmar sua identidade?  
Adriana Lohanna: Minha transição em Sergipe foi marcada por muitos desafios. Em  
2012, retornei à minha cidade, Japaratuba, após conseguir a sentença judicial de mudança de  
nome. Carregava uma trajetória de violências: em 2010, fui brutalmente agredida em uma festa  
de casamento matuto por um homem que, ao perceber que eu era uma mulher trans, me  
espancou dizendo que "viado tinha que apanhar". Essa dor me acompanhou por anos, e só em  
Samuel Francisco Rabelo; Adriana Lohanna dos Santos  
2023, exatamente no mesmo dia da agressão, pude passar por uma cirurgia de correção da  
mandíbula um ciclo que se fechou com resistência e cura.  
Minha transição foi pública e atravessada por episódios de exclusão, inclusive durante  
minha graduação em Serviço Social, quando fui impedida de usar o banheiro feminino. Aquilo  
me fez acelerar o processo de retificação de nome e buscar a redesignação sexual, pela qual  
ainda espero. Muitas pessoas não compreendem que minha afirmação de identidade nasceu da  
violência. Ouvi frases como “nenhum juiz vai dar nome de mulher para um veado”, que revelam  
o quanto o preconceito reduz nossa existência à genitália, sem entender quem somos.  
Ser uma mulher trans nordestina e negra impacta todas as dimensões da vida. No campo  
afetivo, a solidão é uma constante. Apesar de ser uma mulher inteligente e bonita, o preconceito  
estrutural, o machismo e o medo do julgamento afastam os homens. No Nordeste, há muitos  
“machos”, mas poucos homens têm coragem de amar livremente.  
Desde a infância, vivi exclusões: da escola aos espaços culturais, minha identidade foi  
sempre questionada. Cresci na comunidade rural Cruz Grande, sem referências trans ao meu  
redor. Ser quem eu sou nesse ambiente foi um ato de resistência. Como “menino do campo” e  
negra, sofri um apagamento duplo de gênero e de raça agravado pela minha origem pobre.  
Para a sociedade, meu destino seria a marginalidade. Mas ao me tornar mestra em Educação,  
rompi com as expectativas que tinham para o meu corpo.  
530  
Minha existência é prova de que resistimos, mesmo sem modelos anteriores. Minha vida  
é denúncia e afirmação. Sou mulher, sou negra, sou nordestina e existo.  
Eixo 3: Redes de apoio e coletividade trans/travesti.  
Samuel Rabelo: Como as redes de apoio e a coletividade trans/travesti foram  
fundamentais na sua trajetória como ativista e intelectual, e houve um momento em que essas  
redes salvaram sua vida ou dignidade?  
Adriana Lohanna: Minha rede de apoio começou a se formar quando fui proibida de  
usar o banheiro feminino na universidade, numa negação compartilhada até pela coordenação  
do curso de Serviço Social. Diante dessa violência, busquei acolhimento no movimento social  
e no Estado. Foi assim que conheci o Centro de Referência em Direitos Humanos e Combate à  
Homofobia, onde encontrei escuta e suporte. A partir dali, passei a integrar organizações como  
a Unidas e a Astra, dentro do projeto “Balcão de Direitos”, e encontrei referências  
fundamentais, como o delegado ativista Mário Leony, que fortaleceram minha militância. Com  
o tempo, essas redes cresceram. A Astra promoveu um debate sobre diversidade na Câmara de  
Vereadores da minha cidade, ampliando a visibilidade da causa trans. Na retificação do meu  
Libertas, Juiz de Fora, v. 25, n. 1, p. 528-543, jan./jun. 2025. ISSN 1980-8518  
Filha de Xica Manicongo: entrevista com Adriana Lohanna dos Santos  
nome, contei com o apoio inicial da Defensoria Pública, mas foi o advogado Thenisson Santana  
Dória hoje desembargador quem, de forma gratuita, levou meu processo até o fim.  
Minha história ganhou repercussão na mídia local, especialmente a luta pelo uso do  
banheiro feminino, noticiada pela TV Sergipe, Jornal da Cidade e Cinform. Essa visibilidade  
ajudou a consolidar novas redes e a fortalecer a luta por direitos. Em Sergipe, organizações  
como Astra, Unidas e Amosertrans seguem fundamentais, mas são as pessoas envolvidas nelas  
que realmente constroem o acolhimento. Muitas travestis e mulheres trans me procuram  
buscando ajuda, e, como fui acolhida um dia, hoje também estendo a mão.  
Antes de nós, existiam as “mães travestis” que acolhiam as mais novas. Hoje, seguimos  
esse legado. Quem foi ajudada ajuda outra, e assim vamos tecendo um elo coletivo de  
resistência. Todos os dias, novas trans iniciam suas jornadas enfrentando solidão, rejeição e  
violência. Por isso, é essencial que quem já percorreu esse caminho ofereça apoio e diga: você  
não está sozinha.  
Minha vida foi salva por essa coletividade. A luta pelo direito ao banheiro não foi apenas  
um episódio político foi uma experiência que redefiniu minha existência. Se não fosse essa  
rede, talvez eu não estivesse viva. Foram muitas as vezes em que me vi em depressão, sem  
forças, prestes a desistir. E foi uma palavra, um abraço, uma escuta de outra travesti que me  
manteve de pé. Essas redes não apenas evitam mortes elas devolvem sentido, reafirmam nossa  
existência. E é por isso que sigo: porque um dia me estenderam a mão, e hoje sou eu quem  
segura a de outras.  
531  
Eixo 4: O ativismo e as primeiras ocupações de espaços.  
Samuel Rabelo: Como foi sua inserção no movimento social LGBTQIAP+ e no  
ativismo transfeminista, e de que forma sua trajetória como a primeira mulher trans a ocupar  
diversos espaços institucionais reflete a importância dessas conquistas, os desafios enfrentados  
ao abrir caminhos e as experiências mais desafiadoras e transformadoras ao longo dessa  
jornada?  
Adriana Lohanna: Minha inserção no movimento LGBTQIAP+ e no ativismo  
transfeminista começou em 2009, ainda no segundo período da graduação. Entendi que não  
bastava falar apenas sobre identidade de gênero: era preciso lutar por educação, saúde,  
segurança e igualdade racial compreendendo a interseccionalidade que atravessa nossas vidas.  
Já integrava o movimento estudantil como secundarista pela União Sergipana dos Estudantes  
Secundaristas (USES), e essa atuação foi essencial para minha formação política e militante.  
Samuel Francisco Rabelo; Adriana Lohanna dos Santos  
Foi nesse contexto que me tornei a primeira mulher trans a conquistar marcos  
importantes em Sergipe: primeira assistente social trans do estado, primeira a acessar o  
mestrado em Educação na UFS, primeira a retificar nome e gênero por decisão judicial. Nada  
disso foi fruto de um plano foram respostas que construí diante da violência, da exclusão e  
da necessidade de afirmação. Sofri discriminações que me impulsionaram: fui proibida de usar  
o banheiro feminino na universidade, e enfrentei resistência ao tentar assumir um cargo de  
professora. O mestrado, por exemplo, foi minha resposta à negação do direito de ensinar.  
Escolhi o Serviço Social porque queria cuidar de pessoas, mas ser mulher trans nos  
espaços da educação infantil, especialmente na pedagogia, ainda gera estranhamento e  
resistência. A sociedade insiste em não reconhecer nossos corpos como legítimos,  
principalmente no trabalho com crianças. Enfrentei olhares de desconfiança e falas  
preconceituosas, mas também encontrei na docência uma forma de afirmar minha existência e  
romper estigmas.  
Ocupar esses espaços, mesmo sem ter sido planejado, me transformou. Não foi fácil:  
enfrentei o preconceito da sociedade e da minha própria família. Mas a resiliência me guiou.  
Sigo firme para que outras pessoas trans vejam que é possível ser protagonista da própria  
história. Não se trata de privilégio, mas de luta e resistência.  
O momento mais simbólico da minha trajetória foi quando ocupei um cargo de gestão  
na Secretaria de Inclusão do Estado, em 2013. Fui a primeira mulher trans em um cargo público  
de visibilidade em Sergipe. Sair do espaço negado da sala de aula para coordenar políticas  
públicas e direitos humanos foi revolucionário. As pessoas não imaginavam que um corpo trans  
poderia pensar e implementar políticas públicas e eu mostrei que era possível. Desde então,  
outras pessoas trans também passaram a ocupar espaços de gestão, e isso representa uma  
mudança concreta no cenário político. Minha maior contribuição é essa: transformar dor em  
luta e mostrar que nós, pessoas trans, podemos e devemos estar onde quisermos estar. Cada  
espaço que ocupo é uma ruptura com o silêncio imposto à nossa existência.  
532  
Eixo 5: Relacionamentos afetivos, desejo e a invisibilidade das relações com  
homens cisgêneros.  
Samuel Rabelo: Como você percebe as dinâmicas de afeto e desejo nos seus primeiros  
relacionamentos afetivos, incluindo a invisibilização dessas relações e suas implicações na  
autoestima, e se houve mudanças na forma como essas relações são construídas ao longo do  
tempo, ou se a clandestinidade ainda predomina?  
Libertas, Juiz de Fora, v. 25, n. 1, p. 528-543, jan./jun. 2025. ISSN 1980-8518  
Filha de Xica Manicongo: entrevista com Adriana Lohanna dos Santos  
Adriana Lohanna: Meus primeiros relacionamentos afetivos me revelaram um padrão  
recorrente na vida de muitas mulheres trans e travestis: a negação do afeto. Ainda muito jovem,  
percebi que os vínculos que envolviam nosso corpo e identidade estavam marcados por  
estigmas, silenciamentos e, sobretudo, pela clandestinidade. Os afetos dirigidos a nós são,  
muitas vezes, privados de legitimidade social tratados como segredos a serem escondidos, e  
não como relações dignas de serem vividas plenamente.  
Meu primeiro afeto surgiu ainda na infância, com um vizinho. Na época, não  
compreendia aquilo como amor, mas hoje sei que ali já havia um sentimento que desafiava o  
que a sociedade esperava de mim. Meu primeiro amor assumido veio em 2002, com Paulo  
(nome fictício), e trouxe à tona a impossibilidade concreta de viver aquele sentimento. Por mais  
que o afeto fosse mútuo, ele não podia assumi-lo bloqueado por barreiras familiares, religiosas  
e sociais. Recebi um e-mail dele dizendo que gostaria de corresponder, mas que não podia.  
Aquela foi minha primeira grande dor amorosa, e, ainda assim, ele permanece como uma  
lembrança afetuosa que nunca deixei de carregar.  
Ao longo da minha vida, percebi que muitas mulheres trans vivem experiências  
parecidas. Os homens que se relacionam conosco, mesmo desejando, fazem questão de manter  
isso em segredo. Para muitos, somos objeto de um prazer oculto, de uma transa rápida, mas  
jamais de um relacionamento público. Quando esses vínculos existem, raramente são  
reconhecidos como legítimos. A vergonha, o medo da rejeição social e o desejo de preservar  
uma masculinidade hegemônica acabam por nos relegar à margem amores possíveis apenas  
na penumbra.  
533  
Ainda hoje, mesmo após vivenciar uma união estável, vi meu relacionamento ser  
destruído pela pressão social. Quando a sociedade soube que eu era uma mulher trans, ele  
deixou de ser visto como um relacionamento válido. Fui questionada pela minha família, pela  
comunidade, e aquilo que era afeto virou um motivo de dor. O amor entre homens cisgêneros  
e mulheres trans ainda é considerado transgressor, vergonhoso, ilegítimo.  
Essa invisibilidade não apenas nos exclui do direito de amar e ser amadas, mas afeta  
profundamente nossa autoestima. Somos empurradas para relações desiguais, muitas vezes  
abusivas, sustentadas unicamente por nós emocional, afetiva e até financeiramente. Muitos  
homens nos procuram não por amor genuíno, mas por conveniência, por uma necessidade de  
preencher um vazio ou de encenar uma masculinidade que não conseguem sustentar com  
mulheres cis. E quando estão conosco, é na condição de segredo, de algo que não pode ser  
revelado.  
Samuel Francisco Rabelo; Adriana Lohanna dos Santos  
Nessa dinâmica, muitas de nós acabam se agarrando ao pouco que têm, aceitando  
migalhas emocionais como se fossem grandes banquetes. O medo da solidão, a rejeição social  
e o estigma nos empurram para relacionamentos onde somos sempre "menos": menos amadas,  
menos assumidas, menos reconhecidas. É um ciclo de dor que se retroalimenta, que mina nossa  
crença de que o amor, para nós, é possível.  
A sociedade ainda não compreende mulheres trans como sujeitos plenos de afeto.  
Enquanto identidades cisnormativas conseguem estabelecer vínculos com maior naturalidade,  
para nós o amor é sempre um campo minado: pode existir, mas precisa ser escondido; pode  
acontecer, mas não pode ser celebrado. Vivemos o que chamo de “amor nas sombras” —  
relações que ocorrem sem luz, sem reconhecimento, sem direito à existência pública.  
Contar essa história não é apenas desabafo é denúncia. É preciso falar sobre a  
estrutura que impede as mulheres trans de experimentarem o afeto como direito. É preciso  
desnaturalizar a violência travestida de paixão clandestina. Porque, no fim, nosso desejo é  
simples: amar e ser amadas. Mas, para isso, o mundo precisa nos reconhecer como dignas de  
amor fora das sombras, com toda a nossa humanidade.  
Eixo 6: Violências, transfeminicídio e a resposta estatal.  
Samuel Rabelo: De que forma a tentativa de transfeminicídio que você sofreu em 2010  
impactou sua trajetória pessoal e ativista, e o que essa experiência revela sobre as limitações do  
reconhecimento estatal, da legislação vigente e da resposta do sistema de justiça diante da  
brutalidade dos crimes de ódio contra travestis e mulheres trans no Brasil?  
534  
Adriana Lohanna: Aquela agressão foi um divisor de águas na minha vida. Naquele  
momento, perdi algo essencial: a capacidade de sorrir. Para uma pessoa trans, a identidade  
visual tem um peso enorme. Quando meu rosto foi desfigurado, foi como se parte da minha  
identidade tivesse sido apagada. Saí da cirurgia pensando: "Meu rosto não é mais meu." Eu não  
sabia mais quem era e o mais doloroso era imaginar como o mundo me veria dali em diante.  
A agressão tentou me matar, mas também me silenciar. Tentou apagar a mulher que eu  
sou. É isso que a transfobia busca: negar nossa existência. E o mais triste é perceber que, mesmo  
após 15 anos, ainda não avançamos como sociedade. Continuamos excluídas do trabalho, das  
escolas, até das famílias. Muitas vezes, somos vistas como ameaça, e nossa vida segue sendo  
invisibilizada.  
Se aquilo tivesse acontecido hoje, talvez fosse reconhecido como tentativa de  
transfeminicídio. Em 2010, não houve esse entendimento. A transfobia sequer era reconhecida  
como forma grave de violência. E isso mostra como o sistema de justiça ainda falha conosco.  
Libertas, Juiz de Fora, v. 25, n. 1, p. 528-543, jan./jun. 2025. ISSN 1980-8518  
Filha de Xica Manicongo: entrevista com Adriana Lohanna dos Santos  
Existe uma transfobia institucional que atravessa as polícias e o Judiciário. Os crimes contra  
pessoas trans são tratados com descaso, como se fossem banais. Falta uma legislação específica,  
aplicada com rigor, e falta também formação adequada das/dos profissionais de segurança  
pública.  
A crueldade contra travestis e mulheres trans não é só física, é simbólica. A sociedade  
quer apagar nossos corpos porque eles desafiam o que ela considera "normal". E essa violência  
externa se internaliza muitas de nós não suportamos essa pressão, essa dor, e adoecemos,  
muitas vezes chegando ao suicídio.  
Nossa luta não é só por sobrevivência, é por dignidade, por reconhecimento. O Estado  
nos deve uma resposta. Precisamos de leis que protejam nossa existência como se protege  
qualquer outra vida. Mas, mais que leis, precisamos de uma mudança de mentalidade. O que  
está em jogo é a nossa humanidade. A sociedade precisa entender que nós existimos e que  
existimos para ser respeitadas.  
Eixo 7: Memória, ancestralidade e a luta por sobrevivência.  
Samuel Rabelo: Qual o significado de Xica Manicongo1 para você e como as figuras  
históricas de travestis e mulheres transexuais, incluindo aquelas vítimas de transfeminicídio e  
violência estrutural, impactaram sua trajetória e identidade, e o que podemos fazer para resgatar  
e preservar suas histórias, fortalecendo a identidade coletiva das travestis e mulheres  
transexuais?  
535  
Adriana Lohanna: Eu acho muito importante refletir sobre a potência de Xica  
Manicongo. Sua história nos mostra que não estamos sozinhas e que existimos desde sempre.  
A travestilidade, a homossexualidade, a bissexualidade não são fenômenos recentes elas  
atravessam os tempos. Xica talvez não soubesse o que significava ser uma travesti, mas viveu  
sua verdade, mesmo sem essa linguagem. E isso também acontece com a gente, quando ainda  
crianças sentimos algo diferente, antes mesmo de entender quem somos.  
Para mim, a ancestralidade está em Xica, mas também em pessoas como Marcele, João  
Neri, e tantas outras pessoas que caminharam antes de mim. João foi um ancestral vivo que me  
ensinou muito sobre resistência e filosofia. Ancestralidade não está só no passado está nas  
1
Xica Manicongo é reconhecida como a primeira travesti não indígena documentada no Brasil e considerada a  
“traviarca da travestilidade” por sua expressão de gênero dissidente ainda no século XVI. Escravizada vinda do  
Reino do Congo em 1591 na Bahia, foi perseguida pela Inquisição por vestir-se com roupas femininas e afirmar  
uma identidade contrária às normas coloniais. Sua história, redescoberta por pesquisadores e reivindicada por  
ativistas, tornou-se símbolo da resistência de travestis e mulheres transexuais no Brasil, representando uma  
ancestralidade política que inspira as lutas por memória, dignidade e reparação.  
Samuel Francisco Rabelo; Adriana Lohanna dos Santos  
trocas cotidianas, nos encontros com pessoas que nos ajudam a ser quem somos. Recentemente,  
conheci uma senhora de 74 anos que me disse: "Essa sou eu. Carol." Isso é ancestralidade viva,  
resistência em forma de existência.  
Quando penso nas mulheres trans vítimas do transfeminicídio, como Laysa ou Milane,  
percebo como nossos corpos seguem sendo negados, mesmo dentro de casa. Muitas de nós  
vivem em alerta constante, com medo de sermos agredidas ou mortas. A violência que  
enfrentamos não é apenas física está nos olhares, nos cochichos, no silêncio. Muitas vezes,  
nem mesmo o suicídio é compreendido como consequência dessa exclusão social: é um  
empurrão da sociedade que nos nega acolhimento, amor e dignidade.  
Eu já me senti insegura na minha própria casa. E isso é o mais doloroso saber que  
nem os chamados "lugares seguros" são para nós. Quando digo que não há lugar seguro para  
pessoas trans, é porque vivemos numa sociedade que não reconhece nosso direito à existência.  
A violência, o apagamento e a solidão fazem parte da nossa realidade, e a sociedade ainda se  
nega a reconhecer sua responsabilidade nisso.  
Para mudar esse cenário, é preciso registrar essas histórias, não só por meio de inquéritos  
que pouco elucidam, mas através de estudos que mostrem os contextos sociais e culturais por  
trás de cada vida interrompida. Não basta dizer que foi um crime passional ou um suicídio. É  
preciso entender por que essa pessoa foi morta será que foi só uma relação mal resolvida, ou  
foi o simples fato dela existir?  
536  
Eu mesma já fui agredida por causa da minha passabilidade. Isso mostra como até  
mesmo a forma como somos lidas socialmente pode se tornar alvo de violência. Por isso,  
catalogar essas histórias é fundamental. A sociedade precisa entender que não somos ameaças,  
mas vidas legítimas, humanas. E só quando isso for compreendido é que poderemos construir  
um futuro mais justo, onde sejamos vistas como parte da humanidade dignas de viver, de ser  
e de amar.  
Eixo 8: Formação, trabalho profissional e enfrentamento às violências  
institucionais.  
Samuel Rabelo: Como a sua escolha pelo Serviço Social influenciou sua trajetória  
profissional, e como você avalia os avanços e desafios encontrados na profissão, especialmente  
no que diz respeito à articulação das categorias representativas e ao atendimento às demandas  
de travestis e pessoas transexuais, tanto na formação quanto na prática profissional?  
Adriana Lohanna: Eu nunca quis fazer Serviço Social; sempre desejei cursar Direito.  
Concorri ao Prouni para Direito, mas minha segunda opção era Serviço Social. Como a turma  
Libertas, Juiz de Fora, v. 25, n. 1, p. 528-543, jan./jun. 2025. ISSN 1980-8518  
Filha de Xica Manicongo: entrevista com Adriana Lohanna dos Santos  
de Direito não foi fechada, mesmo com minha nota maior, acabei ingressando em Serviço  
Social. Foi nesse momento que compreendi a importância do controle social e decidi abraçar o  
curso, que me permitiria atuar socialmente. Essa formação foi fundamental para minha  
trajetória e militância, dando-me base para compreender a conjuntura social, os direitos  
humanos e os espaços de luta.  
Porém, meus avanços foram poucos, enfrentando muitos desafios, principalmente na  
universidade. Um episódio marcante foi a proibição de uso do banheiro feminino para mim,  
uma clara transfobia institucional que a coordenação do curso e a universidade não combateram.  
Foi uma violação grave dos direitos humanos, e o silêncio institucional me causou muita dor,  
evidenciando como a violência contra pessoas trans pode ser naturalizada até em espaços  
acadêmicos.  
Vejo que, apesar de alguns progressos em gênero e diversidade, o Serviço Social ainda  
está distante de uma transformação real. A categoria ainda mantém práticas assistencialistas, e  
crenças religiosas e dogmas dificultam a defesa efetiva da diversidade. O respeito à diversidade  
precisa ultrapassar o discurso e se tornar prática cotidiana para que a profissão se torne mais  
justa e representativa.  
As categorias representativas, como CRESS e ENESSO, têm papel fundamental na  
organização e mobilização do Serviço Social, embora perceba hoje uma diminuição da força e  
visibilidade dessas instituições em relação ao passado. Ainda assim, acredito que elas são  
essenciais para a formação política e crítica das/dos estudantes, promovendo debates e análises  
que ajudam na construção de um/a profissional mais consciente e engajado/a.  
Minha formação política e militância se deram principalmente dentro dessas  
articulações, que me proporcionaram compreensão crítica da sociedade e das questões políticas  
que envolvem nossa atuação. Contudo, sinto uma lacuna nas instituições privadas, onde o  
debate político e social é menos presente, e as/os estudantes saem com uma visão técnica,  
limitada e sem o preparo crítico necessário para enfrentar as complexas realidades sociais.  
Samuel Rabelo: Como o Serviço Social lida com as demandas de travestis e pessoas  
transexuais desde a formação ao fazer profissional?  
537  
Adriana Lohanna: O Serviço Social ainda tem uma relação muito complicada quando  
se trata de lidar com as demandas de travestis e pessoas transexuais, tanto na formação  
acadêmica quanto no exercício profissional. Eu sou a prova viva disso. O Serviço Social, de  
certa forma, não soube lidar com o meu corpo, com a minha identidade, e isso se refletiu em  
diversas barreiras que eu enfrentei ao longo da minha trajetória. Para vocês terem uma ideia, eu  
Samuel Francisco Rabelo; Adriana Lohanna dos Santos  
sequer consegui realizar o estágio obrigatório, pois, em determinado momento, os espaços de  
Serviço Social não sabiam como lidar com a minha presença como uma pessoa trans.  
Eu ouvi de profissionais da área que seria complicado me oferecer um estágio porque,  
segundo eles, não saberiam como explicar para os usuários que um "homem queria ser mulher".  
Isso foi em 2011, 2012, um período em que a transfobia ainda era muito mais escancarada nos  
espaços institucionais, e o Serviço Social não se eximia desse processo de discriminação. Além  
disso, dentro da própria universidade, eu fui vítima de uma grave violação de direitos humanos.  
Eu passei por situações de discriminação que foram totalmente ignoradas pelo Conselho  
Regional de Serviço Social e pela coordenação do curso. Nada foi feito para reparar ou enfrentar  
essa transfobia institucionalizada. Isso mostra que o Serviço Social, enquanto campo de  
conhecimento e prática, ainda não incorporam de forma efetiva as demandas das pessoas trans.  
As discussões de gênero e diversidade estão presentes, mas de forma muito limitada. O pouco  
que se fala ainda é muito voltado para questões que envolvem pessoas lésbicas, gays e  
bissexuais, mas as questões trans ainda não são debatidas com a profundidade e a urgência que  
deveriam ter. Falta um compromisso real com essa pauta, falta a construção de estratégias  
concretas para garantir que travestis e transexuais tenham acesso à formação acadêmica e ao  
exercício profissional de maneira digna.  
Um dos poucos avanços que podemos reconhecer é a questão do uso do nome social no  
exercício profissional. O fato de conseguirmos, dentro da categoria, a possibilidade de exercer  
a profissão sendo reconhecidos pelo nosso nome social já é um passo importante. Mas isso, por  
si só, não é suficiente. Precisamos que a categoria vá além, que se comprometa com a formação  
de profissionais que compreendam a diversidade de gênero de forma plena, que saibam atender  
a população trans sem reproduzir discriminações e que, acima de tudo, respeitem as identidades  
trans dentro dos próprios espaços de formação e trabalho.  
538  
O que ainda falta e falta muito é que o Serviço Social realmente se comprometa com  
uma formação de base que tenha o respeito às identidades trans como algo central. Isso significa  
garantir que os cursos de Serviço Social incluam debates sobre a realidade da população trans,  
que os estágios sejam acessíveis para pessoas trans sem que haja discriminação, que as  
instituições que acolhem esses profissionais sejam capacitadas para compreender a diversidade  
e, principalmente, que as/os próprios assistentes sociais sejam formadas/os com um olhar crítico  
sobre as violências que essa população enfrenta.  
Samuel Rabelo: Como podemos avançar nos debates sobre a presença de travestis e  
pessoas transexuais no Serviço Social?  
Libertas, Juiz de Fora, v. 25, n. 1, p. 528-543, jan./jun. 2025. ISSN 1980-8518  
Filha de Xica Manicongo: entrevista com Adriana Lohanna dos Santos  
Adriana Lohanna: Eu acho que, para avançarmos nos debates sobre a presença de  
travestis e pessoas transexuais no Serviço Social, precisamos, antes de tudo, resgatar e  
aprofundar as discussões sobre gênero e orientação sexual. Não adianta discutir a inclusão de  
travestis e transexuais no Serviço Social sem antes desconstruir conceitos basilares, sem  
questionar aquilo que é tomado como natural e imutável. Precisamos desestabilizar conceitos  
que são extremamente caros para a sociedade, como o próprio conceito de sexo. Enquanto  
persistir essa noção hegemônica de que sexo está obrigatoriamente ligado à genitália, enquanto  
houver essa crença de que o que define um homem ou uma mulher é exclusivamente a  
configuração corporal ao nascer, as pessoas jamais conseguirão compreender plenamente a  
transexualidade.  
O Serviço Social ainda é um curso carregado de dogmas, um espaço que, em muitos  
momentos, se mantém preso a ideias arcaicas, permeadas por valores religiosos e concepções  
retrógradas sobre gênero e sexualidade. E isso se reflete diretamente na forma como a categoria  
trata ou melhor, negligencia as questões trans. Para que esse cenário mude, é fundamental  
uma atuação firme e incisiva das entidades representativas da categoria, das universidades e  
dos espaços de formação. Precisamos garantir que o debate sobre diversidade sexual e de gênero  
seja um pilar central dentro do Serviço Social, e não apenas um tópico periférico que aparece  
em momentos pontuais.  
539  
O primeiro passo para isso é construir um debate sólido sobre o que é gênero.  
Precisamos retomar perspectivas como a de Simone de Beauvoir, que já nos ensinava que  
ninguém nasce mulher, torna-se mulher. O mesmo vale para os homens. A identidade de gênero  
não é um dado biológico, mas sim uma construção social. Só conseguiremos avançar no debate  
sobre a presença de pessoas trans no Serviço Social se fizermos esse movimento de  
reconstrução teórica, se questionarmos as bases sobre as quais as identidades de gênero foram  
historicamente construídas. Além disso, é urgente que o Serviço Social abandone de vez a noção  
equivocada de que sexo e genitália são sinônimos. Enquanto essa visão reducionista continuar  
sendo reproduzida, a transfobia seguirá presente dentro da categoria. Precisamos que o Serviço  
Social tome para si o compromisso de enfrentar essas concepções excludentes, promovendo  
uma formação que prepare assistentes sociais para compreender a diversidade de forma ampla  
e aprofundada.  
E, acima de tudo, o que deve estar no centro desse debate é o respeito. Respeitar as  
pessoas pelo que elas são, pela forma como se identificam, e não pelo que se presume delas  
com base em uma visão limitada e biologizante. A educação é a chave para transformar esse  
Samuel Francisco Rabelo; Adriana Lohanna dos Santos  
cenário, e o Serviço Social, como uma área voltada para a garantia de direitos e para a promoção  
da justiça social, tem o dever de assumir essa luta.  
Para superar essas dificuldades, tive que me fortalecer internamente, buscar apoio nas  
minhas próprias vivências, pois durante um tempo estive sozinha naquele espaço. A luta não  
foi só minha, mas de todas as pessoas trans que chegaram antes de mim, que abriram o caminho  
e que, de alguma forma, me ajudaram a resistir e a conquistar espaços. A minha jornada também  
foi sobre visibilidade, mostrar que somos capazes de ocupar espaços de poder, de produção de  
conhecimento e de transformação social. Eu sabia que, se eu conquistasse esse espaço, não seria  
só para mim, mas para todas as mulheres trans, para que nossa existência fosse reconhecida e  
validada.  
Eixo 9: Futuro, sonhos e continuidade da luta.  
Samuel Rabelo: Quais são seus planos e sonhos para os próximos anos, tanto na sua  
vida pessoal quanto na militância, e como você enxerga a continuidade da luta de mulheres  
trans e travestis no futuro, especialmente o papel da próxima geração nesse processo, deixando  
uma mensagem para as novas gerações que buscam ocupar espaços acadêmicos, políticos e  
sociais?  
Adriana Lohanna: Meus planos para os próximos anos envolvem uma continuidade  
no desenvolvimento da minha trajetória tanto na educação quanto na militância. Um dos meus  
maiores sonhos é avançar para o doutorado, mas também desejo estar ativamente envolvida na  
construção de espaços de militância que possam atuar com profundidade nas questões que  
afetam nossas vidas. Acredito que devemos trabalhar para criar instituições e movimentos  
sociais que não apenas discutam nossas questões, mas que as compreendam de uma forma mais  
ampla, com o intuito de transformar a sociedade. Para isso, é preciso continuar fortalecendo a  
educação popular, porque ela tem o poder de conectar o saber acadêmico à realidade das ruas e  
das vivências diárias das pessoas. Acredito que é urgente que a sociedade compreenda a  
diversidade de nossas identidades, e que o conhecimento acadêmico e científico, muitas vezes  
distante das realidades da população, se aproxime das lutas sociais, promovendo o  
entendimento e o respeito.  
540  
O futuro da nossa luta, na minha visão, é um cenário onde as pessoas não questionem  
mais sobre a cirurgia de redesignação sexual ou sobre como definimos nossos corpos. A  
sociedade precisará, finalmente, reconhecer nossa identidade sem estar preocupada com o que  
temos entre as pernas ou com as mudanças no corpo. Precisamos de um futuro em que as  
pessoas vejam nossa humanidade, nossa essência, e nos respeitem pelo que somos e não por  
Libertas, Juiz de Fora, v. 25, n. 1, p. 528-543, jan./jun. 2025. ISSN 1980-8518  
Filha de Xica Manicongo: entrevista com Adriana Lohanna dos Santos  
uma norma pré-estabelecida que ainda está presente em muitos discursos sociais. Esse futuro  
será possível quando a sociedade deixar de associar nossas identidades de gênero a uma  
concepção restrita de sexualidade, permitindo que possamos existir sem a necessidade de  
justificativas externas sobre quem somos.  
Para as novas gerações de mulheres trans e travestis, vejo um papel fundamental de  
continuidade e evolução. Elas herdarão as lutas e conquistas, mas também terão a  
responsabilidade de expandir essas vitórias. A próxima geração deve entender o que já foi  
conquistado por todas as que vieram antes e como nossa história, marcada por resistências e  
vitórias, precisa ser preservada e transmitida. O desafio delas será garantir que nossa luta não  
retroceda, mas que avance, transformando a sociedade e os espaços que ocupamos, e garantindo  
que as futuras gerações conheçam e respeitem nossa história. É essencial que as novas gerações  
de mulheres trans e travestis se apropriem de seus direitos e ocupem os espaços acadêmicos,  
políticos e sociais com coragem e força, lembrando sempre que o acesso que têm hoje foi  
conquistado com muito esforço por aqueles que vieram antes delas.  
Para aquelas que estão entrando agora no ambiente acadêmico, deixo uma mensagem  
de força: não se esqueçam de que o acesso que vocês têm hoje é resultado da luta de muitas  
pessoas que enfrentaram preconceitos e barreiras. O caminho não é fácil, mas a presença de  
vocês é fundamental. Continuem a luta para concluir seus mestrados, doutorados e graduações,  
e, principalmente, tragam para a academia a nossa visão, nossas vivências e nossas resistências.  
É crucial que nossa história seja registrada, pesquisada e discutida dentro dos espaços  
acadêmicos. A academia tem o poder de dar visibilidade às nossas vivências, mas é necessário  
que sejamos nós mesmas a narrar nossas histórias, para que o mundo entenda que existimos e  
que nossa luta é legítima.  
541  
No campo político, sabemos que ainda temos um longo caminho pela frente. Temos  
conquistado alguns espaços no legislativo, mas o grande desafio é ocupar os espaços do  
executivo. Precisamos ter pessoas trans e travestis não apenas na câmara dos vereadores, mas  
também nas prefeituras, governos estaduais e, quem sabe, na presidência da república. Esse é  
um objetivo audacioso, mas possível, e é importante que nós, mulheres trans, possamos ter  
coragem para enfrentar essa batalha. Não basta ocupar os espaços, precisamos construir uma  
presença sólida e garantir que nossas pautas sejam debatidas e respeitadas em todas as esferas  
políticas.  
Acredito que, com coragem e determinação, podemos chegar a um ponto onde uma  
pessoa trans ocupe cargos de poder de forma natural, sem que a sua identidade seja um  
obstáculo. Seria um marco na nossa história, uma forma de garantir que nossa luta não tenha  
Samuel Francisco Rabelo; Adriana Lohanna dos Santos  
sido em vão e que nossa presença na política, assim como em todas as áreas da sociedade, seja  
definitiva. Para isso, as novas gerações precisam se engajar, se organizar politicamente e ocupar  
os espaços de poder, construindo um caminho que permita a visibilidade e o respeito pelas  
nossas identidades.  
Samuel Rabelo: Pergunta Chave: Como existir quanto a vida está em constante  
suspensão?  
Adriana Lohanna: Existir resistindo. Para mim, a autenticidade vem quando somos  
verdadeiras conosco mesmas, quando nossas ações, nossos sentimentos, refletem exatamente  
quem somos, e não o que os outros esperam de nós. A autenticidade, na minha perspectiva, não  
é algo que vem de agradar os outros ou de viver a partir das expectativas alheias. É sobre ser  
fiel ao que sonhamos, ao que almejamos, ao que temos certeza de que somos. Só assim,  
podemos realmente viver, sem mascarar nossa essência.  
A resistência, para mim, não é apenas uma luta externa contra o preconceito ou a  
violência. A resistência é interna também, é a coragem de levantar todos os dias e olhar para o  
que podemos fazer para avançar. A resistência é o reconhecimento de que o que fazemos hoje,  
por mais simples que pareça, pode ser o passo que abre portas para outra pessoa amanhã, alguém  
que vai olhar para nossa caminhada e ver que existe a possibilidade de resistir. Que, apesar de  
tudo, a vida pode ser vivida plenamente, com dignidade. Nunca desisti, porque resistir não é  
desistir. Não é deixar que o peso do mundo nos derrube, é encontrar forças onde parece não  
haver mais, é seguir em frente, um passo de cada vez, sempre com a consciência de que nossa  
luta é coletiva.  
542  
E, nesse viver, a vida também é política. Tudo o que fazemos, tudo o que somos, se  
reflete em nossa luta pela transformação. Desde a convivência com o vizinho até o colega da  
faculdade ou o colega de trabalho, cada pequeno gesto conta. Através de nossas ações, estamos  
ensinando o mundo sobre quem somos. Eu sempre tento mostrar, a cada pessoa com quem me  
cruzo, que, como trans, sou humana, sou um ser como qualquer outro. Tenho direito de existir,  
de ser amada, de trabalhar, de viver sem ser questionada pela minha identidade. Essa é uma luta  
constante, que não é apenas sobre estar presente, mas sobre estar plenamente visível, sobre  
conquistar o direito de ser vista como qualquer outra pessoa.  
Somos trans, mas antes de qualquer coisa, somos pessoas. Pessoas com direitos, com  
deveres, com sentimentos, com sonhos. Somos humanos. O maior desafio é mostrar para a  
sociedade que, como qualquer outra pessoa, também temos o direito de existir sem ser  
marginalizadas, sem ser invisibilizadas. E isso é um processo contínuo, de mostrar para cada  
Libertas, Juiz de Fora, v. 25, n. 1, p. 528-543, jan./jun. 2025. ISSN 1980-8518  
Filha de Xica Manicongo: entrevista com Adriana Lohanna dos Santos  
um que passamos pelo mundo como seres humanos plenos, com tudo o que isso envolve —  
com nossas dificuldades, com nossas conquistas, com nossas vitórias e nossas dores.  
E quando penso no que estamos construindo para o futuro, fico esperançosa, mas  
também consciente de que o caminho ainda é longo. O que fazemos hoje não é só para nós, mas  
para que outras pessoas, no futuro, não precisem passar pelas mesmas dificuldades, para que  
possam viver suas identidades com mais liberdade. A nossa luta não é só nossa, é para todas as  
futuras gerações que precisam ver que o direito de existir e viver de forma autêntica é algo que  
pertence a todos, sem exceção. E o nosso papel é mostrar que podemos ocupar todos os espaços  
acadêmicos, políticos, sociais e ser respeitadas da mesma forma que qualquer outra  
pessoa.  
Samuel Rabelo: Adriana, conte sempre conosco. Muito obrigado pela entrevista!  
543  
Tradução  
Considerações sobre o conceito gramsciano de  
“classes subalternas”*  
Massimo Modonesi**  
Por certo, a filosofia da práxis se realiza no estudo concreto da história  
passada e na atividade atual de criação de uma nova história. Mas é possível  
elaborar a teoria da história e da política, já que, se os fatos são sempre  
individuais e mutáveis, no fluxo do movimento histórico, os conceitos  
podem ser teorizados (Antonio Gramsci).  
A partir dos anos 1980, como reflexo da queda dos movimentos anticapitalistas e do  
triunfo do neoliberalismo, os conceitos de classe e de luta de classes os mais originais,  
críticos e radicais do marxismo tornaram-se particularmente incômodos, produzindo um  
movimento em que, consequentemente, os pós-marxistas rejeitaram tais conceitos; os mais  
ortodoxos os retomaram mecanicamente; outros marxistas, os contornaram ou os evitaram, de  
modo que apenas alguns marxistas empreenderam a árdua tarefa de atualizar o debate sobre  
classe e luta de classe na contemporaneidade. Independentemente de uma resolução  
conceitual, nas sociedades capitalistas contemporâneas o problema das classes continua a  
emergir e a se impor no âmbito da produção e circulação de mercadorias e ideologias, da  
organização e da hierarquia social que lhes correspondem, assim como atravessa as dinâmicas  
dos alinhamentos subjetivos políticos e culturais que as habitam.  
Na busca por chaves de leitura que tornem inteligíveis esses processos, consideramos  
possível e imprescindível sustentar e, ao mesmo tempo, afirmar na contemporaneidade uma  
abordagem classista que responda ao princípio da totalidade, ou seja, que articule a análise  
das dimensões sociais, econômicas, políticas e culturais. Para dar consistência a essa busca,  
*
“Considerazioni sul concetto gramsciano di ‘classi subalterne’”. Texto publicado originalmente na revista  
Critica Marxista (2019, nº 2). Reproduzido com a permissão do autor, concedida em junho de 2025. Traduzido  
por: Ana Lívia Adriano e Emilie Faedo Della Giustina – docentes da Universidade Federal Fluminense (UFF).  
** Universidade Nacional Autônoma do México (UNAM), Faculdade de Ciências Políticas e Sociais.  
DOI: 10.34019/1980-8518.2025.v25.49057  
Esta obra está licenciada sob os termos  
Recebido em: 09/06/2025  
Aprovado em:23/06/2025  
Considerações sobre o conceito gramsciano de “classes subalternas”  
contamos com um patrimônio de conhecimento histórico e com uma série de projetos teóricos  
elaborados por diversos autores e por distintas correntes do marxismo crítico1.  
Partindo desses pressupostos, dedicaremos as próximas páginas ao conceito de classes  
subalternas desenvolvido por Antonio Gramsci em seus escritos carcerários. Comportando  
grande atualidade e relevância tanto sociológica quanto política a noção de classes  
subalternas não foi devidamente estudada e analisada por Gramsci, apesar de ocupar um lugar  
fundamental na estrutura do seu pensamento. Nesse sentido, apresentaremos duas  
considerações: a primeira está relacionada ao adjetivo qualificativo de subalterno, no qual  
denominaremos da sequência subalternidade-autonomia-hegemonia. E, a segunda, associa-se  
ao substantivo classe e ao que denominamos fórmula classes subalternas.  
A sequência subalternidade-autonomia-hegemonia  
A origem e evolução do conceito de subalterno na obra de Gramsci foi reconstruída e  
analisada por vários autores2. Acrescemos a esse levantamento as contribuições dos Subaltern  
Studies3 que, embora tenham colaborado para a difusão do conceito, geraram mais equívocos  
do que esclarecimento em relação à sua consistência e alcance4. Denominamos de  
“subalternismo” esse uso indefinido do conceito, dado que culmina em uma abordagem  
essencialista de uma subjetividade reclusa na subalternidade e na exaltação de um subalterno  
autônomo, ativo, consciente e rebelde, ou seja, um subalterno não subalterno5.  
545  
Para sair desse impasse teórico, amplamente difuso no mundo acadêmico anglo-saxão,  
mas também através dos estudos culturais e pós-coloniais na América Latina, é oportuno  
retornar ao texto de Gramsci para reconhecer e destacar que o lugar e o papel que o conceito  
de subalternidade ocupa no seu pensamento gira em torno da sequência subalternidade-  
1 Um percurso descritivo de alguns dos autores mais influentes pode ser encontrado em Modonesi; Vela; Mingau.  
El concepto de clase social en la teoría marxista contemporanea, Cidade do México, Unam-Buap, 2017.  
2
BARATTA, G. Antonio Gramsci em contraponto. São Paulo: Unesp, 2011; J.A. Buttigieg, Sulla categoria  
gramsciana di “subalterno”, in G. Baratta, G. Liguori (a cura di), Gramsci da un secolo all’altro, Roma, Editori  
Riuniti, 1999; Id., Subalterno, subalterni, in G. Liguori, P. Voza (a cura di), Dizionario gramsciano 1926-1937,  
Roma, Carocci, 2009; M.E. Green, Sul concetto gramsciano di “subalterno” [2002], in G. Vacca, G. Schirru (a  
cura di), Studi gramsciani nel mondo 2000-2005, Bologna, Il Mulino, 2007; M. Modonesi, Subalternità  
antagonismo autonomia, Roma, Editori Riuniti, 2015. Guido Liguori, em dois artigos distintos, classificou de  
modo claro e bem documentado as diversas acepções que aparecem nos Cadernos: G. Liguori, Tre accezioni di  
“subalterno” in Gramsci, In Critica Marxista, 2011, n. 6, e Id., “Classi subalterne” marginali e “classi  
subalterne” fondamentali in Gramsci, In Critica Marxista, 2015, n. 4.  
3
Corrente historiográfica e interdisciplinar surgida na década de 1980 na Índia, de grande significado para os  
estudos dos subalternos. Contribuições e limitações desta corrente podem ser encontradas em MODONESI, M.  
Da subalternidade ao subalternismo: uma crítica gramsciana aos Subaltern Studies. In: DEL ROIO, M. (ed.).  
Gramsci: periferia e subalternidade. Edusp: São Paulo, 2017. [Nota das Tradutoras]  
4
Como já indicado por Buttigieg, Green, Modonesi, e da D. Arnold, Gramsci e la subalternità contadina in  
India, In G. Vacca, P. Capuzzo e G. Schirru, Studi gramsciani nel mondo. Gli studi culturali, Bologna, il Mulino,  
2008, e V. Chibber, Postcolonial theory and the specter of capital, London, Verso, 2013.  
5 M. Modonesi, Subalternità antagonismo autonomia, cit., pp. 38-52.  
Massimo Modonesi  
autonomia-hegemonia. Considero importante insistir nesse ponto e desenvolvê-lo até as  
últimas consequências6 porque há implicações teóricas essenciais não somente em relação à  
interpretação do pensamento de Gramsci, mas também às teorizações marxistas relacionadas  
aos processos de subjetivação política. Porque, dito de maneira mais simples, Gramsci não é  
um teórico da subalternidade, mas da sua superação, da saída da subalternidade, da construção  
histórica de um indivíduo social e político autônomo capaz de disputar a hegemonia. O desejo  
de compreender os subalternos fomenta o “espírito de cisão”7 próprio da vida e obra do autor,  
tendo como fio condutor a iniciativa autônoma das classes subalternas, sem, contudo, tomá-la  
como garantida e/ou essencializá-la.  
Nesse sentido, nos seus escritos carcerários, Gramsci dá a impressão de que  
intencionalmente recua um passo para poder avançar dois: apresenta a necessidade de retornar  
à história das classes subalternas e colocar em questão o terreno historiográfico para refletir  
sobre as etapas e processos que contribuem para a formação da autonomia e à consciência de  
classe8 enquanto condição para iniciar e manter a luta pela hegemonia (temática que deriva,  
em certo sentido, de Lenin, mas que é desenvolvida por Gramsci de modo original). Em um  
desenvolvimento lógico, seria possível argumentar que a noção de classes subalternas é a  
condição sine qua non para pensar e desenvolver a noção de hegemonia e que a autonomia  
constitui a mediação, o caminho indispensável ou - em termos dialéticos, a antítese da  
subalternidade, a parte integrante da síntese hegemônica que permite superar a contradição e  
que desfaz e refaz de maneira diversa o conflito de classe9.  
546  
Mas, independentemente das conjecturas teóricas ou metateóricas, inclusive no plano  
genealógico, na elaboração diacrônica e ramificada dos Cadernos, é fato que a formulação  
acerca dos subalternos precede a plena realização do conceito de hegemonia. Ao mesmo  
tempo, não se pode negar que também aconteça, se remontarmos a outros escritos e às origens  
6 Como já foi tratado em cfr. ivi, pp. 36-37 e, em geral, em todo o cap. 1.  
7 Gramsci descreve o “espírito de cisão” como a "aquisição progressiva da consciência da própria personalidade  
histórica" que deve se estender da classe protagonista às classes aliadas, surgindo como condição fundamental  
para disputar o campo ideológico da classe dominante (Q3, §49). Cf. DEL ROIO, M. Os prismas de Gramsci: a  
fórmula política da frente única (1919-1926). São Paulo, Boitempo: 2019. [Nota das Tradutoras]  
8
Que, além de serem argumentos inevitáveis no pensamento marxista, estavam no centro de suas reflexões à  
época do Ordine Nuovo e dos Conselhos de fábrica, assim como na sua posterior formação leninista em Moscou  
(cfr. ivi, pp. 24-26).  
9
Nas notas sobre classes subalternas no Caderno 3, de 1930, é formulado e apresentado pela primeira vez, de  
modo embrionário, uma das principais abordagens originais de Gramsci ao marxismo: a realização “orgânica”  
entre Estado e sociedade civil como realização da hegemonia das classes dominantes, a qual o portará, na  
sequência, a elaborar a noção de Estado ampliado, “sociedade política + sociedade civil”.  
Libertas, Juiz de Fora, v. 25, n. 1, p. 544-554, jan./jun. 2025. ISSN 1980-8518  
Considerações sobre o conceito gramsciano de “classes subalternas”  
leninistas da questão, a hegemonia da classe operária em relação à classe camponesa10. Para  
dizer de outro modo, se encontra antes e depois.  
Para Gramsci, é somente a partir da gradual conquista da própria autonomia que a  
trajetória política dos subalternos pode atravessar a sociedade civil, disputar a hegemonia e  
eventualmente conseguir tornar-se Estado, rompendo definitivamente a relação e a estrutura  
de dominação existente.  
§2 Critérios metodológicos. A história dos grupos subalternos  
é
necessariamente desagregada e episódica. É indubitável que, nas atividades  
histórica destes grupos, existe tendência à unificação, ainda que em termos  
provisórios, mas esta tendência é continuamente rompida pela iniciativa dos  
grupos dominante e, portanto, só pode demonstrada com o ciclo histórico  
encerrado, se este se encerra com sucesso. Os grupos subalternos sofrem  
sempre a iniciativa dos grupos dominantes, memo quando se rebelam e  
insurgem: só a vitória “permanente” rompe, e não imediatamente, a  
subordinação. Na realidade, mesmo quando parecem vitoriosos, os grupos  
subalternos estão apenas em estado de defesa, sob alerta11.  
Nesse sentido, o conceito de classes subalternas deve relacionar-se com o de classes  
hegemônicas, ao invés de simplesmente contrapor-se ao de classes dominantes. Nota-se,  
assim, a sequência de um hipotético processo de subjetivação: subalternidade (classes  
subalternas hegemonizadas), autonomia e consciência de classe, disputa hegemônica (contra-  
hegemonia), hegemonia (hegemonia alternativa). Uma trajetória abstrata no interior da qual  
aparecem e intervém, em uma teia de relações de força, atores e personagens concretos de  
diversas constituições: classes, grupos, massas, intelectuais, partidos, personalidades  
cesaristas12 e enfim um “príncipe” que poderia organizar e guiar o processo rumo a um  
desfecho revolucionário.  
547  
Sob esse ponto de vista, faz-se necessário observar que o conceito de subalterno é  
ambivalente, pela sua ancoragem na dominação e sua tendência em direção à autonomia,  
indica o caminho do assujeitamento à subjetivação. Essa ambivalência é sintetizada na frase  
em que Gramsci afirma que as classes subalternas estão sempre na defensiva, “também  
quando se rebelam”, mas deixam raros e preciosos traços de “iniciativa autônoma”, de espírito  
10  
Fresu, G. Stato, società civile e subalterni, in A.M. Baldussi, e P. Manduchi, Gramsci in Asia e in Africa,  
Cagliari, Aipsa Edizioni, 2010; A. Di Biagio, Egemonia leninista, egemonia gramsciana, in F. Giasi, (a cura di),  
Gramsci nel suo tempo, Roma, Carocci, 2008.  
11  
As referências aos Cadernos, inclusive as diretamente no texto, são de A. Gramsci, Quaderni del carcere,  
edizione critica dell’Istituto Gramsci, a cura di V. Gerratana, Torino, Einaudi, 1975; são efetuadas indicando a  
letra Q seguida dos números do caderno, parágrafo e página (nesse caso, Q 25, 5, 2283-2284).  
12  
Na elaboração gramsciana, o cesarismo é definido como um regime em que forças beligerantes  
(“progressivas” e “regressivas”) se esgotam mutuamente, abrindo espaço para uma “grande personalidade” que  
assume arbitrariamente o poder (Q9, XIV, §ꢀ133). [Nota das tradutoras]  
Massimo Modonesi  
de cisão, de consciência ou, em outras palavras, de independência e de autodeterminação de  
classe.  
Um trecho dos Cadernos em que Gramsci fala do “trabalhador coletivo” é exemplar  
em relação à tensão entre condição subalterna e tendência à autonomia, dado que nosso autor  
se refere à classe “ainda subalterna” e que “não é mais subalterna”, em termos de “cisão” e de  
“consciência” (Q9, 67, 1138). Sendo assim, de um lado, os subalternos aparecem como  
passivos ou apáticos, sofrem a iniciativa hegemônica, fundamentalmente a imposição não  
violenta e a assimilação da subordinação, ou seja, a internalização dos valores propostos, a  
partir dos quais as classes dominantes de fato dominam ou conduzem moralmente e  
intelectualmente o processo histórico.  
Gramsci assinala que também na rebelião ocorre esse dispositivo relacional, a partir do  
qual refuta implicitamente qualquer dualismo maniqueísta que pretenda cindir os indivíduos  
reais a partir da separação entre resistência, desobediência e submissão como momentos  
separados assim como refuta o dualismo espontaneidade-direção consciente.  
Com efeito, ao mesmo tempo em que são assujeitadas, as classes subalternas se  
subjetivizam porque são ativas. Gramsci estabelece as etapas e as formas de ação destas em  
uma tipologia processual, que parte da existência material dos subalternos e passa por  
diversas possibilidades e modalidades de afirmação da consciência por meio de progressos na  
sua autonomia social e política. Em síntese: “1) o formar-se objetivo (...) no mundo da  
produção (...) a sua origem como grupos sociais preexistentes”; “2) sua adesão ativa ou  
passiva às formações políticas dominantes” que buscam influenciar; 3) “o nascimento de  
novos partidos dos grupos dominantes para manter o consenso e controle dos grupos  
subalternos; 4) as formações próprias dos grupos subalternos com reivindicações de caráter  
restrito e parcial; 5) as novas formações que afirmam a autonomia dos grupos subalternos mas  
em velhos moldes; 6) as formações que afirmam a autonomia integral etc.” (Q25, 5, 2288).  
Giorgio Baratta habilmente destaca que o “etc” que segue o ponto 6 da famosa nota  
abre outras fases e níveis13, sendo a autonomia o caminho intermediário entre a subalternidade  
e uma nova hegemonia, que corresponde à tese na qual a autonomia (para Gramsci, encarnada  
no príncipe moderno, o Partido Comunista14) é a condição e o ponto de partida para  
empreender a luta pela hegemonia.  
548  
13 G. Baratta, op. cit., pp. 130-132.  
14 Gramsci, na esteira de Lenin, não confia em uma simples gestação espontânea e de baixo da autonomia e, por  
isso, não pode confundir-se com uma posição autonomista.  
Libertas, Juiz de Fora, v. 25, n. 1, p. 544-554, jan./jun. 2025. ISSN 1980-8518  
Considerações sobre o conceito gramsciano de “classes subalternas”  
O contraponto ou, se quisermos, a antinomia entre subalternidade e autonomia  
aparece, explicitamente ou implicitamente, em distintas passagens dos Cadernos. Um vínculo  
estreito que poderia parecer óbvio, mas não destacado suficientemente e negado  
implicitamente quando foi se separou o estudo e a análise da resistência (ou desobediência)  
das classes subalternas marginalizadas pela luta pela hegemonia das classes fundamentais: de  
um lado, a subalternidade como política autônoma que exalta as rebeliões e seus impactos  
ainda parciais, ainda circunscritos à consolidação cultural de comunidades em resistência; de  
outro, a subalternidade como expressão da eficácia da dominação que propicia uma história  
de impossibilidade de sucesso e de permanente fracasso dos projetos e dos desejos encarnados  
nos movimentos desde baixo.  
O conceito que Gramsci propõe, inclui e explica as ambiguidades e os aspectos  
contraditórios desse processo, as oscilações e as combinações entre aceitação relativa da  
dominação - como resultado da hegemonia - e sua recusa, ainda que relativa, por meio da  
resistência e da rebelião, como entre a espontaneidade e a consciência. Em outras palavras,  
evidencia o vínculo da subordinação (subservismo, desorganização, desagregação,  
espontaneísmo, etc.) e, simultaneamente, faz da base por uma teoria da conformação  
autônoma do indivíduo em um contexto de dominação e hegemonia, acentuando o processo  
de conquista e exercício das margens de autodeterminação através dos quais os subalternos  
iniciam a deixar de o ser.  
549  
“Classes subalternas” e “grupos sociais subalternos”  
Outra questão de grande importância diz respeito à fórmula “classes subalternas” –  
que utilizei, não por acaso, no lugar de “grupos sociais subalternos”.  
Prefiro usar a expressão gramsciana de “classes subalternas” por considerar que esta  
postula e combina elementos ou fundamentos indispensáveis para pensar os processos de  
subjetivação política: a condição classista, com suas determinações materiais no terreno  
socioeconómico e a subalternidade, como situação sociopolítica. O x e o y da genética  
marxista da práxis e da subjetivação, que aparecem claramente no interior dos Cadernos, na  
intenção e no esforço de Gramsci de qualificar e revisar a relação entre estrutura e  
superestrutura para além da metáfora marxiana, a fim de poder avaliar o lugar e o tempo da  
dimensão política, sem dissociar da dimensão econômica. Um exemplo representativo desta  
intersecção analítica se encontra na já mencionada passagem em que Gramsci fala da  
constituição do “trabalhador coletivo” como uma tendência para deixar de ser classe  
subalterna (Q9, 67, 1137-1138).  
Massimo Modonesi  
Neste quadro geral que entrelaça agency e estrutura, bem como a política e a  
economia, assinalarei brevemente duas questões problemáticas e ao mesmo tempo profícuas,  
para delinear o conceito de classes subalternas como instrumento de uma herança categorial  
da sociologia política marxista. A primeira localiza-se no uso dos substantivos classes e/ou  
grupos subalternos. A segunda relaciona-se com a distinção entre classes fundamentais e  
classes marginais, e a hierarquia entre estas.  
Classes e grupos subalternos. Nos Cadernos não se encontra um significado único de  
classe, à medida em que esta aparece como um conceito constantemente adjetivado15. Nos  
dois primeiros Cadernos, Gramsci utiliza os conceitos de “classes produtivas”, “populares” ou  
“classes trabalhadoras”, e somente no Q3 (14, 299), de 1930, introduz o conceito de “classes  
subalternas” sem, no entanto, deixar de usar com frequência o conceito de “classes populares”  
e, esporadicamente, “classes instrumentais”, “inferiores”, “produtoras”, “fundamentais”,  
“subalternas”, “trabalhadoras”, “pobres”, “operárias” e até “atrasadas e politicamente  
incapazes” (Q 19, 5, 1980)16.  
Parece então que, dentre os vários usos, o de “classes subalternas” não implica uma  
definição exclusiva ou excludente, e que, mesmo assim, é uma acepção que é evidenciada e  
adquire centralidade nas reflexões de Gramsci, no âmago da relação político-ideológica entre  
dominantes e dominados. Além disso, é preciso acrescentar que, em duas ocasiões, Gramsci  
aceita como sinônimas as expressões “classes subalternas” e “massas populares” (Q 14, 10,  
1664) ou “classes populares” (Q 15, 74, 1833). Gramsci insere-as nas suas notas sobre  
“classes subalternas”, ainda que estas não tenham o mesmo destaque. Desse modo, “classes  
subalternas” é e não é um sinónimo de “classes populares”, uma vez que este último  
significado parece ser mais descritivo do que analítico ou, se quisermos, de segunda ordem.  
É sabido que no Caderno 25, de 1934, na transcrição da nota de seis pontos, redigida  
em primeira instância em 1930, Gramsci substitui o substantivo “classe” por “grupo”.  
Importante assinalar porque tal questão não é mencionada pelos estudiosos de Gramsci –  
que essa substituição é apenas parcial, uma vez que o termo “classe” se mantém em uma  
passagem dessa mesma nota, na formulação mais geral. Posteriormente, na enumeração dos  
parágrafos do referido Caderno, introduz o termo “grupos subalternos”. A noção de “classe”  
550  
15  
Conceito operativo, segundo Raúl Mordenti (Classe, classi, in G. Liguori, P. Voza (a cura di), Dizionario  
gramsciano, cit., p. 132); por outro lado, Mordenti considera que a autocensura, devido à condição do cárcere,  
contribuiu para que não o utilizasse sistematicamente.  
16  
Por outro lado, como equivalente de “classe dirigente”, Gramsci utiliza também as fórmulas de “classes  
dirigentes”, “superior”, “classe hegemônica”, “classe burguesa”, e, esporadicamente, expressões como “classe  
intelectual”, “classe culta”, “classe política” e “classe revolucionária”.  
Libertas, Juiz de Fora, v. 25, n. 1, p. 544-554, jan./jun. 2025. ISSN 1980-8518  
Considerações sobre o conceito gramsciano de “classes subalternas”  
é, por um lado, utilizada por Gramsci nas notas posteriores ao Caderno 2517, enquanto a de  
“grupos” já havia aparecido anteriormente18. Green argumenta que se trata de “expressões  
intercambiáveis” e que não representam conceitos distintos para Gramsci19. Embora acabe por  
ser essencialmente verdadeira a um certo nível descritivo20, tal afirmação não explica a  
variação nem resolve o problema de nomenclatura envolvido, muito menos esclarece o  
estatuto do conceito de “classe” no pensamento de Gramsci.  
Seguindo o percurso do conceito de “classes subalternas”, não se pode argumentar que  
Gramsci abandona uma leitura classista dos processos políticos e, sendo esta uma fronteira  
entre marxismo e pós-marxismo, que sai do perímetro da tradição marxista. De todo modo,  
mesmo aceitando um eventual deslize semântico, reflexo da insatisfação com a precisão do  
conceito de classe, este não afetaria substancialmente o alcance teórico da tradição marxista  
dos Cadernos, uma vez que a perspectiva classista o estrutura de modo fundamental, do  
princípio ao fim. O resto pertence, de acordo com algumas polêmicas recentes, ao gênero dos  
romances policiais21.  
A introdução da noção de “grupo” é interna à análise classista e estabelece uma  
distinção qualitativa que não pode ser subestimada e que se presta a duas interpretações  
possíveis. A primeira é que Gramsci atribuiu um caráter mais preciso no uso da noção de  
classe, sem estendê-la levianamente às múltiplas formas de subalternidade para atribuir o  
conceito de classe a situações com maior densidade política, consciência, a classe em si ou,  
em alternativa, sublinhar o seu estatuto produtivo e estritamente operário de “classes  
instrumentais”. A segunda, mais importante e de natureza quantitativa, garantiria que os  
grupos possam e devam ser entendidos como frações de classe. Esta compreensão parece ser  
a mais apropriada aos termos do léxico marxista e se expressa como a hipótese mais provável,  
uma vez que - como assinalado - a noção de “classe” se mantém no plano mais geral,  
enquanto que na distribuição particular dos parágrafos a noção de “grupo” é introduzida.  
551  
17  
Como por exemplo no Caderno 27 (de 1935, Q 27, 1, 2312), em que em uma importante reflexão sobre o  
folclore, define o povo como “o conjunto das classes subalternas e instrumentais”, ou no Q29, 2, 2343.  
18  
No Caderno 8 de 1931-1932 (Q8, 153, 1033), depois no Caderno 14, miscelâneo, escrito entre 1932 a 1935  
(Q14, 34, 1691) e, no Caderno 15, de 1933 (Q 5, 66, 1830).  
19 Green, M. op. cit., p. 211.  
20  
De fato, no Caderno 10 (Q10 II, 41.XII) Gramsci refere-se a “grupos dominantes” e “classe superior” em  
conjunto com “classes subalternas” e, no Caderno 13 (Q13, 17), utiliza “grupos” para se referir às classes sociais.  
21  
Por exemplo, as que surgiram em torno dos Cadernos “desaparecidos”, a alegada “traição” de Togliatti, ou a  
“benevolência” de Mussolini ou a suposta conversão de Gramsci ao catolicismo durante a sua agonia. Sobre o  
assunto, ver A. D’Orsi (a cura di), Inchiesta su Gramsci. Quaderni scomparsi, abiure, conversioni, tradimenti:  
leggende o verità?, Milano, Accademia University Press, 2014.  
Massimo Modonesi  
Classes subalternas fundamentais e classes subalternas marginais  
A quais classes e grupos Gramsci se refere? Giorgio Baratta propôs a ideia de uma  
duplicidade interna na categoria de subalterno, que incluiria tanto os subalternos-proletários  
("classes instrumentais” em Gramsci) quanto os subalternos-subproletários (os  
marginalizados, às “margens da história”). Ao perguntar em quem Gramsci estava  
fundamentalmente pensando quando forjou esta categoria, Baratta responde fazendo  
referência à formulação de Gramsci no Caderno 27, no qual o “povo” é definido como “o  
conjunto de classes subalternas e instrumentais”. A partir desta definição, Baratta considerou  
duas hipóteses: na primeira, os subalternos se distinguem das classes produtivas e, na  
segunda, hipotetizou que o conceito de “subalterno” é mais amplo e inclui as “classes  
instrumentais”. Para eliminar a alternativa, ele se referiu à passagem do Caderno 3 no qual  
Gramsci menciona os “elementos mais marginais e periféricos dessas classes, que não  
alcançaram a consciência de classe em si”. Essencialmente, para Baratta, o conceito de  
“subalternos” inclui tanto os proletários como os subproletários 22.  
Liguori23 chega a uma conclusão semelhante, distinguindo “classes subalternas  
fundamentais” de “classes subalternas marginais”, demonstrando que Gramsci trabalha com  
vários significados da noção de “subalterno” sem tentar resolver o enigma de sua possível  
articulação ou a proeminência de um destes. Todavia, é evidente que a abertura conceitual  
implica que Gramsci considerou a condição de subalternidade como transversal a todo o  
espectro das classes exploradas e oprimidas e, ao mesmo tempo, um denominador comum  
para poder discernir tanto a diversidade da sua condição socioeconómica quanto sociopolítica  
(na linha espontaneidade-consciência) e a hierarquia que a compõe. Hierarquia que se sustenta  
por dois parâmetros, interno e externo: primeiro, sobre quem exercerá a hegemonia entre os  
subalternos e, segundo, sobre quem será capaz de sustentar a “autonomia na luta com os  
inimigos”24, a “classe subalterna mais avançada” que pode chegar mesmo a tomar o poder.25  
552  
22  
Giorgio Baratta, op. cit., pp. 120-123, também argumenta que a classe camponesa ocupa um lugar  
intermediário em uma estratificação interna dos subalternos.  
23 G. Liguori, “Classi subalterne” marginali e “classi subalterne” fondamentali in Gramsci, in Critica marxista,  
2015, n. 4.  
24  
“O estudo do desenvolvimento das forças inovadoras de grupos subalternos a grupos dirigentes e dominantes  
deve, portanto, procurar e identificar os processos através dos quais adquiriram autonomia face aos inimigos e a  
adesão dos grupos que os ajudaram ativa ou passivamente, uma vez que todo este processo foi historicamente  
necessário para se unificarem num Estado. O grau de consciência histórico-política a que estas forças inovadoras  
tinham progressivamente chegado nas várias etapas mede-se precisamente por estes dois critérios e não apenas  
pelo seu afastamento das forças anteriormente dominantes” (Q 25, 5, 2289).  
25  
“Outros exemplos podem ser extraídos de todas as revoluções passadas em que as classes subalternas eram  
numerosas e hierarquizadas por posição econômica e por uma homogeneidade. Os movimentos ‘espontâneos’  
das camadas populares mais amplas tornam possível a chegada ao poder da classe subalterna mais avançada  
através do enfraquecimento objetivo do Estado” (Q 3, 48, 331-332).  
Libertas, Juiz de Fora, v. 25, n. 1, p. 544-554, jan./jun. 2025. ISSN 1980-8518  
Considerações sobre o conceito gramsciano de “classes subalternas”  
Distinção e articulação como critérios metodológicos para incursionar-se no campo  
subalterno ou, como afirma Gramsci, na “área dos grupos subalternos”, que se apresenta  
como um conjunto de grupos que prospectam a dimensão de classe não como ponto de  
partida, mas como resultado de processos sociais e políticos de convergência (Gramsci utiliza  
um termo forte: “unificação”), em sintonia com as abordagens histórico-políticas de Marx e  
daqueles que se inspiraram em sua obra: a classe como relação e como um processo e não  
como um fato estatístico ou como um ator político pré-constituído em virtude das suas  
condições materiais de existência26.  
É surpreendente que uma contribuição tão importante e tão aberta isto é, suscetível  
de usos e desenvolvimentos seja tão pouco explorada no debate marxista27, salvo aparições  
esporádicas nos discursos políticos, progressivamente diluído ao passar pelo crivo dos estudos  
dos subalternos, dos estudos culturais e do pós-marxismo. Nesse percurso, apresentamos de  
modo particular as elaborações de Laclau, que retira de Gramsci o fundamento de classe  
esvaziando, assim, o conteúdo classista do conceito de hegemonia, sem considerar que o  
comunista sardo afirma que a hegemonia “nasce da fábrica” (Q 22, 2, 2146); o que, por sua  
vez, não significa que tenha nesta se encerrado, mas que não se pode ignorar as determinações  
materiais para compreender o seu surgimento28.  
Nesse sentido, a delimitação do conceito de “classes subalternas” pode se configurar  
como um instrumento analítico para o estudo dos processos e fenômenos sociopolíticos  
contemporâneos. Em nosso tempo, assim como no tempo de Gramsci, a questão subalterna  
não pode ser vista apenas retrospectivamente historiograficamente sob o prisma da  
história das classes subalternas. Essa compreensão implica em assumir a condição de  
subalternidade como um problema sociológico e político do presente, na qual envolve o  
trabalho fino e intenso de atualizar o significado das distintas condições de classe e dos traços  
subalternos que as atravessam.  
553  
26 Destaque das Tradutoras.  
27  
Ainda que encontrem ecos indiretos nas concepções de classe de Thompson e possíveis contatos com a de  
Poulantzas, aparece nas elaborações contemporâneas que procuram combinar a dependência económica da  
hierarquia na tomada de decisões como, por exemplo, a questão dos quadros - que tem precedentes nos debates  
dos anos 1960-1970 na França - desenvolvida pelo marxismo analítico, por E.O. Wright (M. Modonesi, A. Vela,  
M. Vignau, El concepto de clase social en la teoría marxista contemporánea, cit., pp. 87-106) ou a proposta de  
Jacques Bidet e Gérard Duménil, Altermarxisme. Un autre marxisme pour un autre monde, Paris, Puf, 2007, pp.  
97-156. Para uma abordagem das implicações teóricas do conceito de classe no debate sociológico atual, ver a  
obra de Marcelo Gómez, El regreso de las clases. Clase, acción colectiva y movimientos sociales, Buenos Aires,  
Biblos, 2014.  
28  
Entre outras coisas, é surpreendente que o debate sobre o marxismo/pós-marxismo de Gramsci se concentre  
em múltiplos aspectos, mas não considere imprescindível a variável crucial do classismo, exceto a posição de  
Laclau e Mouffe que a eliminam completamente na viragem teórica pós-marxista que operam sobre o conceito  
de hegemonia. Cf. E. Laclau, C. Mouffe, Egemonia e strategia socialista [1985], Genova, il Melangolo, 2011.  
Massimo Modonesi  
Se os traços que caracterizam as classes subalternas são aqueles assinalados por  
Gramsci desagregação, desorganização, espontaneísmo, subversivismo episódico e  
esporádico, estar sempre na defensiva é importante reconhecer que classes subalternas é um  
conceito que nos interpela diretamente e parece descrever o tempo presente. A involução  
subjetiva, em termos classistas, apresenta-se como a nossa questão meridional, o limite de  
nossa época e o nosso ponto cego teórico-político.  
Consequentemente, o desafio simultaneamente analítico e político-estratégico —  
consiste, no esforço de recuperar a centralidade da análise classista para compreender as  
sociedades capitalistas contemporâneas, em assumir a questão das classes subalternas como  
expressão que sintetiza tanto os limites quanto os horizontes de possibilidades teórico-  
práticas: a atividade de conhecer e de transformar, para que os subalternos deixem de ser  
subalternos.  
554  
Libertas, Juiz de Fora, v. 25, n. 1, p. 544-554, jan./jun. 2025. ISSN 1980-8518  
A Libertas 25-1 traz artigos que versam  
sobre os fundamentos da formação social  
brasileira, seus dilemas e impactos na  
conformação da sociedade contemporânea.  
Tratam-se de pesquisas oriundas da área de  
Ciências Humanas e Sociais, e, sobretudo da  
área de Serviço Social, na qual tais estudos  
têm logrado espaço e visibilidade.  
Apresentamos textos que visam entender a  
particularidade da formação social  
brasileira, as implicações e/ou relações dessa  
formação no mundo do trabalho, nas  
relações de gênero, sexualidade, raça/etnia,  
como também nas questões agrária, urbana  
e ambiental. O estudo da realidade brasileira  
impacta e contribui para a compreensão das  
particularidades da questão social, na  
conformação das lutas, dos direitos e das  
políticas sociais no país, temas complexos e  
imprescindíveis para a área de Serviço  
Social.