O presente trabalho busca compreender como os profissionais do SAMU vivenciam um cotidiano que envolve a iminência de morte de pacientes. Realizou-se uma pesquisa clínico-qualitativa, com médicos e enfermeiros do SAMU de um município no Estado do RS. Como instrumento utilizou-se a Entrevista Semidirigida Individual, sendo os dados analisados através da Análise de Conteúdo Temática. Apesar do contato com situações potencialmente estressantes, os profissionais encontram formas para lidar de modo saudável com elas, como a apreciação do trabalho, a relação pontual com o paciente e a relação com a equipe. Destaca-se a importância dos espaços de trocas entre os profissionais.
This paper aims to understand how SAMU professionals experience a daily work that involves the imminence of patients’ death. A clinical-qualitative research was conducted with doctors and nurses from the SAMU in a municipality of the state of Rio Grande do Sul, Brazil. The instrument used was the semi-directed individual interview, and the data were analyzed through Thematic Content Analysis. Despite the contact with potentially stressful situations, professionals find ways to deal with them in a healthy way, such as appreciation of the work, punctual relationship with the patient, and relationship with the team. The importance of the spaces for exchanges between professionals is highlighted.
El presente trabajo busca comprender cómo los profesionales del SAMU vivencian su cotidianidad laboral que implica la eminencia de la muerte de los pacientes. Se realizó una investigación clínico-cualitativa, con médicos y enfermeros del SAMU en un municipio del Estado de Rio Grande do Sul. Fue utilizada la entrevista individual semi-dirigida, y los datos fueron analizados mediante el Análisis de Contenido Temático. A pesar del contacto con situaciones potencialmente estresantes, los profesionales consiguen encontrar maneras de lidiar de forma saludable con las mismas, entre ellas la apreciación del trabajo, la relación puntual con el paciente, y la relación con el equipo. Se destaca la importancia de esos espacios de intercambio entre los profesionales.
A Política Nacional de Atenção às Urgências (PNAU) surgiu com a finalidade de impulsionar avanços na construção do Sistema Único de Saúde (SUS), abrangendo desde as Unidades Básicas até os cuidados pós-hospitalares (
O serviço conta com dois tipos principais de ambulâncias, a saber: as de suporte básico, que incluem motorista, técnico de enfermagem e material básico para o primeiro atendimento às urgências; e as de suporte avançado, as quais contam com motorista, médico e enfermeiro, além de equipamentos para cuidados nas situações de risco iminente de vida (
O envolvimento dos profissionais com as situações de morte pode variar de acordo com o contexto da mesma, sendo o posicionamento subjetivo balizado por critérios decorrentes de questões de ordem ética, moral e social (
Além da baliza correspondendo à faixa etária do paciente, alguns estudos apontam uma diferença que remete ao tempo de atuação dos profissionais, indicando que os sentimentos negativos podem ser mais frequentes no início da atuação profissional (
Essa ideia da construção de uma preparação para lidar com a morte, adquirida pela prática, é corroborada pelo estudo de
Compreende-se que habituar-se com o fenômeno da morte não implica, necessariamente, que os profissionais estejam realizando um processo de elaboração das situações vivenciadas. Nesse sentido, entende-se que o espaço para o diálogo entre a equipe sobre as situações vivenciadas é de grande relevância ao processo de educação constante dos profissionais de saúde, proporcionando que os mesmos possam refletir acerca de sua atuação (
Aponta-se que existe uma escassez de estudos que tratem de forma aprofundada da relação dos profissionais de saúde com a morte no contexto específico do SAMU, o que valida a relevância de pesquisas que busquem investigar as complexidades envoltas no assunto. Nesse sentido, o presente estudo tem como objetivo compreender como os profissionais do SAMU vivenciam um cotidiano de trabalho que envolve a iminência de morte de pacientes.
O presente estudo trata-se de uma investigação exploratória-descritiva, fundamentada no método clínico-qualitativo, característico em pesquisas no campo da saúde. Esse método objetiva compreender os sentidos e as significações atribuídos aos fenômenos pelos diferentes atores sociais no campo saúde-doença (pacientes, familiares ou profissionais de saúde), através de múltiplos referenciais teóricos, os quais buscam dar conta da interdisciplinaridade envolta nesse cenário (
A natureza exploratória do estudo se encontra pautada na busca pela aproximação com a temática, visando construir novas interpretações a novos problemas (
A Base do Serviço de Atendimento Pré-Hospitalar Móvel do presente estudo funciona há cerca de 10 anos e é a única do município no qual foi realizada a pesquisa, localizado no interior do Rio Grande do Sul. Essa Base conta com três ambulâncias de Suporte Básico (SB) e uma de Suporte Avançado (AS) para a realização de atendimentos no município e para o transporte de pacientes a até 200km de distância. A equipe é composta por 48 profissionais, entre médicos, enfermeiros, técnicos de enfermagem e condutores, cuja carga horária varia de 18 a 48 horas semanais, geralmente em plantões de 12 horas de trabalho seguidas de 36 horas de descanso.
O cenário do estudo para a coleta de dados mais adequado é, segundo
Participaram do presente estudo médicos e enfermeiros integrantes do SAMU do município. Entre os 9 médicos e 5 enfermeiros do serviço, apenas um médico não concordou com sua inclusão, perfazendo assim um total de 13 participantes. A escolha por esses profissionais justifica-se em virtude de os mesmos estarem em contato direto com situações que envolvem maior risco de morte de pacientes.
Destarte, a organização do serviço delimita que os mesmos componham a tripulação das Ambulâncias de Suporte Avançado (ASA), veículo destinado ao atendimento e transporte de pacientes de alto risco em emergências pré-hospitalares e/ou de transporte inter-hospitalar que necessitam de cuidados médicos intensivos (
Em relação ao perfil dos participantes, destaca-se um predomínio do sexo masculino, considerando que eram 10 homens e 3 mulheres. O tempo de atuação profissional variou entre 9 meses e 18 anos; já o tempo de atuação no SAMU variou entre 2 meses e 8 anos, com média de 5 anos. Aponta-se ainda que, entre os 13 profissionais participantes, apenas 3 relataram não possuir outro emprego.
Visando preservar a identidade dos participantes, optou-se por omitir suas áreas de atuação. Assim, os mesmos serão identificados pela letra “E” seguida de um número de sua respectiva entrevista.
A coleta dos dados foi realizada por meio de entrevistas semidirigidas individuais - gravadas e transcritas na íntegra, mediante consentimento -, compostas por eixos norteadores que correspondiam a tópicos de discussão relacionados aos objetivos da pesquisa.De acordo com
Os eixos norteadores fizeram parte do projeto de pesquisa e foram construídos procurando abranger aqueles temas considerados pelos pesquisadores como relevantes de serem abordados pelos entrevistados a fim de obter o material de análise. Na presente pesquisa, os mesmos contemplaram aspectos referentes à trajetória profissional; ingresso no SAMU; vida pessoal antes e depois do ingresso; lembranças positivas e negativas do trabalho no serviço; a prática profissional na urgência e emergência; relação com paciente e família; relação com a equipe; a vivência de situações limites entre a vida e a morte de pacientes; a concretização da morte de pacientes durante atendimentos; enfrentamento dessas situações; impacto na vida pessoal; situações consideradas mais impactantes/mobilizadoras.
Para a realização da coleta de dados, inicialmente realizou-se um rapport, no qual foram feitos esclarecimentos acerca da pesquisa. Após a concordância dos participantes e assinatura do Termo de Consentimento Livre e Esclarecido, as entrevistas semidirigidas individuais foram realizadas. Tais procedimentos ocorreram conforme escala de trabalho e disponibilidade dos profissionais, no período entre os meses de agosto e setembro de 2019. O tempo médio de duração das entrevistas foi de trinta minutos, sendo que as mesmas, mediante a concordância dos participantes, foram gravadas em áudiopara, posteriormente, serem transcritas na íntegra para a análise. A gravação possibilita que a concentração do entrevistador esteja voltada unicamente ao entrevistado e à entrevista, o que permite a percepção de informações adicionais ao pesquisador (
Ademais, aponta-se que este estudo seguiu os princípios regidos pela Resolução 510 de 07 de abril de 2016, do Conselho Nacional de Saúde, a qual guia a ética nas pesquisas com seres humanos em Ciências Humanas e Sociais (
A análise dos dados foi realizada por meio da análise de conteúdo temática, a qual, segundo
Nesse sentido, destaca-se que foram seguidas algumas etapas, inerentes ao processo de análise de conteúdo em contexto de pesquisa clínico-qualitativo. Inicialmente foi empreendida uma leitura flutuante ou pré-análise; após, partiu-se para a etapa de categorização, que implicou em classificar e agrupar os elementos similares; por fim, foi feita uma subcategorização dos dados, a qual demanda a inclusão de tópicos relevantes em uma grande categoria (
Os profissionais do SAMU vivenciam um cotidiano marcado por situações que muitas vezes se colocam na ordem de um limite entre a vida e a morte. Os resultados indicam que a forma como esses sujeitos irão enfrentar essas situações pode ser atravessada por significações que os mesmos atribuem ao trabalho, à relação com o paciente e à relação com a equipe. Destarte, delimitaram-se três categorias, sendo elas: “O vício da adrenalina: “cachaça braba””, seguida de “Relação com o paciente: o tempo do translado” e “Relação com a equipe: perfeita sincronia”.
Sabe-se que o Atendimento Pré-Hospitalar (APH) envolve a tomada de decisões rápidas frente às situações atendidas. Com isso, os socorristas do SAMU estão expostos a situações de tensão que, muitas vezes, envolvem a iminência da morte (
Em concordância com essa lógica, os participantes do presente estudo trazem indicações de que o bom enfrentamento das situações vivenciadas no serviço de atendimento pré-hospitalar móvel diz de um perfil pessoal/profissional que converge para tal trabalho. Conseguir lidar com as situações-limite de um modo que as mesmas não tragam prejuízos, seja na realização de outros atendimentos ou na vida pessoal, parece ser um fator decisivo na permanência do profissional no serviço, visto que o contato com a morte é cotidiano no SAMU: “Se tu é o [profissional] do SAMU e tu vai te impactar com qualquer óbito que tu tiver... tu não vai conseguir trabalhar aqui, entendeu? Eu acho que é um pouco do perfil” (E3).
Segundo
Compreende-se, nesse sentido, que existem fatores estressores que permeiam o trabalho e que, em alguns casos, as mobilizações emocionais dos profissionais são maiores, como em óbitos infantis (
Todavia, apesar de tais atravessamentos em situações mais específicas, os profissionais indicam a possibilidade de ressignificação das vivências e da forma como se dá o trabalho no atendimento pré-hospitalar, como refere E1: “Eu gosto disso. Eu gosto disso, é sempre um desafio” e E5: “É viciante trabalhar, a gente diz que a gente é viciado em adrenalina”. Já E10 complementa as ideias apontadas pelos outros participantes ao indicar uma metáfora acerca do que seria o trabalho no SAMU, na urgência: “A urgência, ela vicia, é uma cachaça braba” (E10). O que implica na ideia de que é um trabalho que possivelmente para muitos não seja “tragável”, mas que acaba por viciar quem o ingere.
Em estudo realizado com objetivo de identificar as vivências de prazer no trabalho de socorrista em um SAMU da Região Centro Oeste do Brasil foram encontrados resultados semelhantes, uma vez que os profissionais afirmaram fazer o que gostam, revelando que o vício pela adrenalina ultrapassa os limites do trabalho. Segundo os autores, os profissionais referem o trabalho enquanto uma possibilidade de realização pessoal, característica importante para o prazer no trabalho (
Ademais, ainda que as situações sejam da ordem de um limiar entre a vida e a morte e que isso implique em altos níveis de estresse, os participantes se sentem realizados, pois há a possibilidade de efetuar uma ação que gere mudanças no desfecho que seria esperado, como indica E1:“Agora na situação crítica, numa situação assim, que o paciente tá ali entre a vida e a morte e eu tenho que fazer uma coisa nesse momento, nesse segundo para ajudar, é isso que eu gosto”.
Aponta-se que durante as entrevistas a maioria dos participantes referiu já ter um interesse anterior pela área da urgência e emergência, o que contribui para o entendimento de que os profissionais que trabalham no SAMU parecem ter feito uma escolha para estarem ali, ou, ao menos, uma escolha por permanecerem. Esses achados estão de acordo com o estudo de
Visto o intenso interesse dos profissionais pelo serviço, entende-se que, mesmo o que poderia ser significado como estressante, encontra possibilidades de ressignificação. Compreende-se, ainda, que os aspectos que influenciam nessa percepção envolvem a gratificação pessoal, o reconhecimento, a relação com a equipe e mesmo o ambiente de trabalho, conforme apontam os participantes: “[...] por isso que eu digo, hoje quem tá no SAMU de [cidade] é porque gosta. É porque gosta” (E10).
Quem trabalha no pré-hospitalar aqui gosta muito disso. [...] O pessoal pergunta porque eu trabalho no SAMU se eu posso trabalhar em outros lugares que pagam melhor [...] mas eu descobri ao longos dos anos que não é só o dinheiro que importa, a satisfação pessoal importa muito também. Então acho que é [...] isso assim, o reconhecimento das pessoas, o reconhecimento da equipe, a relação, o ambiente de trabalho, tudo isso somado. (E12).
A partir dessas falas, percebe-se uma satisfação proveniente do trabalho que sustenta sua continuidade.
Compreende-se que, ainda que o serviço do SAMU seja marcado por situações envolvendo a iminência de morte, o que implica em circunstâncias potencialmente estressoras aos profissionais, os mesmos significam o trabalho de forma favorável. Entende-se que isso pode ser atravessado pelo sentido atribuído pelos profissionais ao serviço, caracterizado pela apreciação do mesmo e pelo reconhecimento obtido. Além disso, constata-se que existem outros fatores que permeiam essa significação, entre eles a possibilidade de uma relação mais pontual com o paciente e, principalmente, a relação com a equipe, caracterizada pelo espaço para trocas e compartilhamento de vivências e saberes. Esses aspectos serão abordados de modo mais abrangente nas categorias a seguir.
O trabalho no SAMU possui o foco de realizar o transporte dos pacientes a um serviço hospitalar com a maior agilidade possível, o que implica em uma relação com o paciente caracterizada pela brevidade. Tal aspecto foi apontado pelos participantes, como evidencia-se nas falas de E2: “Na verdade, a gente não tem vínculo com nenhum paciente né, é aquele atendimento rápido, uma [...] intervenção rápida, e acabou ali”, e E7: “[...] porque é um serviço diferenciado [...], não tem o contato que tu tem com o paciente no hospital, é um contato que tu tem ali no momento, depois tu entregou o paciente e tu nunca mais vai saber dele”.
Conforme refere E7, por se tratar de um serviço focado na remoção e transporte do paciente a uma unidade hospitalar, o contato é muito breve e, portanto, a relação não envolve um vínculo emocional com o paciente/família ou com a situação. Isso permite que se estabeleça certo distanciamento afetivo, o que se coloca de forma diferente no contexto de uma unidade hospitalar, na qual o contato com o paciente é muito mais prolongado e intenso. Nesse viés, compreende-se que o tempo de internação, e o consequente vínculo estabelecido com o paciente e os familiares, pode se relacionar a maior sofrimento e tristeza diante do óbito (
Quanto ao aspecto do transporte de pacientes, já mencionado, destaca-se que este configura-se como uma ideia central que norteia o atendimento no SAMU “chegar precocemente à vítima após ter ocorrido um agravo à sua saúde [...] sendo imprescindível garantir atendimento e/ou transporte adequado para um serviço de saúde integrado à hierarquia do SUS” (
O participante traz sobre a possibilidade de se desvincular da situação estressante ao realizar essa passagem do paciente a outro serviço. Desse modo, pode-se compreender que o papel que os profissionais do SAMU ocupam, de transportadores dos pacientes, permite que eles não se envolvam emocionalmente com o paciente, o que parece se tornar um fator protetivo. De acordo com
Segundo E4, via de regra não se têm um conhecimento sobre a evolução do paciente após ele ser entregue em um serviço hospitalar, o que permite certa tranquilidade depois de ser realizada essa passagem dos cuidados, pois há a compreensão de que o serviço realizou todas as ações possíveis para a melhor evolução:
[...] Uma coisa que se sente muita diferença no APH é que tu atende o paciente numa situação crítica e depois, muitas vezes, tu não tem conhecimento do que aconteceu com esse paciente, mas também tem um lado meio que positivo assim, porque tu atendeu o paciente, encaminhou [...] pro intra-hospitalar e tu [...] fica um pouco mais tranquilo em relação a isso, né. (E4)
De acordo com o relato do participante depreende-se que, de certa forma, essa característica do serviço se coloca como uma estratégia protetiva em relação às evoluções negativas dos pacientes. A fala de E8, a seguir, complementa essa ideia, pois indica que a relação pontual que se estabelece permite que os profissionais consigam lidar de uma forma mais tranquila com as situações extremas para as quais são chamados. Com isso, os mesmos podem realizar ações de modo mais prático e direto, pois não se sentem tão pressionados como poderiam se estivessem mantendo um vínculo mais intenso com paciente e/ou família.
[...] e o fato de talvez os pacientes que a gente lida no SAMU não ter uma carga emocional maior por não termos vínculo ajuda também, com certeza. [...] eu acho que a... a pressão, às vezes, é bem menor, a nossa própria pressão. (E8)
Aponta-se que, frente à impossibilidade de cura e a morte de pacientes, o profissional necessita lidar com seu afeto em relação ao sofrimento do outro. Essa tarefa implica, muitas vezes, no uso de mecanismos, que os autores referem como “escudos ou máscaras”, como forma de proteção ao sofrimento frente aos outros, o que não anula sua sensibilidade, mas se coloca como um modo de resistência (
Considera-se que o SAMU, por suas características que envolvem um atendimento rápido e pontual às situações de urgência, força que a interação entre o profissional e o paciente também seja marcada por relações breves, o que se coloca como um fator protetivo ao estresse. Ao ter como objetivo o transporte do paciente a um serviço para a continuidade do atendimento, os profissionais conseguem manter um afastamento em relação ao sofrimento de pacientes e familiares.
A relação com a equipe foi indicada pelos participantes como uma característica favorável do trabalho no SAMU, através do sincronismo e da realização de um fazer integrado. Isso se deve por um domínio e compartilhamento de saberes que compõe o momento do atendimento, permitindo que cada profissional desempenhe uma ação que faz parte do conjunto: “Ah, a relação com a equipe é fundamental [...] ela tem que tá em perfeita sincronia. Nos atendimentos muitas vezes a gente nem fala um com o outro, porque cada um já sabe o que vai fazer” (E1).
A ideia trazida por E1 alude ao entendimento do sincronismo, visto que as ações ocorrem sem que seja necessária uma comunicação verbal entre os profissionais. Associa-se a isso a perspectiva de que no serviço cada profissional é muito bem capacitado, realizando as atividades sem que seja necessário que elas sejam delegadas. Isso permite que se construa uma relação de confiança entre os profissionais, viabilizando a integração e coordenação das ações a serem realizadas, o que torna o atendimento mais fluído e, inclusive, eficiente.
Compreende-se que a confiança está na ordem de uma convicção de que o outro tem capacidade de realizar um bom trabalho, oferecendo alguma previsibilidade acerca do comportamento das pessoas (
O trabalho realizado pelo SAMU implica que as ações sejam articuladas em torno de um objetivo comum, o que demanda que os trabalhadores se comuniquem adequadamente, antecipando ações uns dos outros. Ademais, no atendimento pré-hospitalar móvel é comum a exigência de uma inteligência inventiva e do improviso, para os quais a relação de confiança entre os profissionais é fundamental.
Para E6, o termo que poderia traduzir a forma como se estabelece o convívio entre os colegas no serviço é “família”, e isso se deve, inclusive, pelo tempo que eles passam juntos, seja durante os atendimentos ou no período em que estão na Base: “Ah, aqui a gente meio que se trata como uma família né, porque a gente convive mais tempo [ri] entre nós aqui do que com a própria família mesmo” (E6). Compreende-se que, entre outras variáveis, a satisfação no trabalho depende do relacionamento interpessoal, sendo o bom relacionamento com a equipe um fator fundamental para o prazer no trabalho (
De acordo com
Outro aspecto importante que diz respeito à equipe e à particularidade do serviço no SAMU, em comparação com outros serviços, é a relação que se estabelece entre as diferentes profissões. Na formação da ambulância de suporte avançado (SA), o condutor é responsável pela chegada da equipe em tempo hábil ao local chamado, pela segurança da equipe e, ainda, pelo auxílio nos procedimentos realizados com os pacientes; o médico é responsável pelo atendimento em situações de maior gravidade, estando preparado para reanimar e estabilizar o paciente durante o transporte; já o enfermeiro segue na ambulância para atender aos chamados e realizar intervenções não invasivas orientadas (
Desse modo, a cooperação torna-se essencial e estimula a construção de vínculos saudáveis que trazem benefícios para a saúde física e mental dos trabalhadores. Nesse sentido, os participantes do presente estudo indicam que durante o atendimento não há diferenciação, todos se unem em prol de realizar a melhor conduta possível, como refere o participante E3: “[...] Tu tem que se abaixar num canto para entubar um paciente, tu tem que carregar maca, porque tu vai [...] na ambulância com [colegas], então, invariavelmente tu precisa ajudar, em todos os aspectos”.
De acordo com
Um aspecto visual que pode exemplificar essa organização dos profissionais do SAMU é a vestimenta: os macacões utilizados pelos profissionais são iguais, seja para condutor, técnico de enfermagem, médico ou enfermeiro, diferenciando-se somente através de uma etiqueta colada indicando a categoria profissional e o sobrenome. Isso se distingue claramente em relação a outros serviços de saúde, principalmente hospitalares, nos quais, em geral, se pode identificar os profissionais pelas vestimentas, visto que, segundo
Outrossim, os participantes apontam que uma particularidade do serviço que facilita e aprimora o trabalho em equipe é a possibilidade de momentos de
Entende-se, assim, que o SAMU é marcado por um trabalho integrado, no qual não há imposição de uma hierarquia rígida. Soma-se a isso a existência de espaços e momentos de conversas e trocas acerca das ações realizadas durante o atendimento. Tais fatores apresentados se colocam como fundamentais para a elaboração das situações vivenciadas e diminuição do estresse nos trabalhadores do Serviço de Atendimento Móvel de Urgência.
Compreendeu-se, partindo deste estudo, que as estratégias utilizadas pelos profissionais implicaram a forma como os mesmos significam o trabalho, a relação com o paciente e a relação com os colegas da equipe. De acordo com os resultados obtidos, os participantes referem uma inclinação, que diz de um perfil profissional e pessoal, ao trabalho na área de urgência e emergência. Ademais, a satisfação da atuação no SAMU é caracterizada pela apreciação do serviço e reconhecimento obtido.
Em relação ao contato com o paciente, aponta-se que, devido às suas características singulares, o trabalho no SAMU implica um atendimento rápido e pontual às vítimas, proporcionando que a relação com o paciente também seja da ordem de uma brevidade. De acordo com os participantes, isso se coloca como um fator inerente ao serviço e que é protetivo ao estresse e ao possível adoecimento do trabalhador, pois gera um afastamento em relação ao sofrimento de pacientes e familiares.
Quanto ao relacionamento com a equipe, destaca-se que os profissionais o caracterizam como positivo, o que implica tanto na realização de um trabalho de qualidade - que envolve a atuação de uma equipe multiprofissional que age de forma integrada -, quanto na construção de relações positivas. Ressalta-se que os participantes indicaram que o serviço é marcado pela possibilidade de realizar compartilhamentos e trocas, o que se coloca como essencial para a elaboração das situações vivenciadas pelos mesmos, visto que é a partir da fala que eles podem encontrar possibilidades de ressignificar suas vivências. Nesse sentido, a lógica apresentada pelos participantes coloca-se como um exemplo de como o trabalho multiprofissional deve funcionar - visando a atuação compartilhada em busca de um objetivo comum; e baseado no constante diálogo e compartilhamento entre os profissionais, constituindo-se num importante fator de enfrentamento ao estresse.
Aponta-se que as limitações relativas ao presente estudo se traduzem no fato de que, visando preservar a identidade dos participantes, não foi identificada a categoria profissional nos depoimentos, o que limita possíveis comparações entre as mesmas. Desse modo, sugere-se a realização de estudos que visem o aprofundamento de percepções de diferentes profissionais, bem como a possibilidade de uso de instrumentos de coleta, que viabilizem trocas de experiências durante o processo de pesquisa. Indica-se ainda, a relevância de investigar tais vivências em diferentes contextos, buscando compreender a forma como o serviço vem se estruturando no país e objetivando aprimorar o atendimento ofertado à população a partir de um cuidado mais adequado aos profissionais que o realizam.