Liberdade de expressão e ética em disputa no debate sobre ameaças ao jornalismo
Amanda Souza de Miranda1 e Lívia de Souza Vieira2
Resumo
Produtores de conteúdo da extrema-direita do Brasil mobilizam suas bases e militância digital em torno do debate sobre a liberdade de expressão. Ao mesmo tempo, entidades de defesa do jornalismo denunciam diversos episódios de violência contra jornalistas ameaçados em seu trabalho. O objetivo deste artigo é discutir os tensionamentos éticos que envolvem a apropriação do conceito de liberdade de expressão, distinguindo o fazer jornalístico ético da produção de desinformação em um ambiente digital desregulado. Para tal, utiliza-se três conjuntos empíricos: o relatório de assédio judicial da Associação Brasileira de Jornalismo Investigativo (Abraji), o caso dos blogueiros extremistas Allan dos Santos e Paulo Figueiredo e a instalação da Frente Parlamentar em Defesa da Liberdade de Expressão. Os resultados apontam que a insuficiência da técnica e da estética para distinguir o bom do mau jornalista e/ou produto colocam na ética o papel distintivo da atividade jornalística. Defende-se que a aplicação de princípios e valores à prática profissional é a única maneira de demarcar o jornalismo feito para o bem público daquele que atende a outros interesses.
Palavras-chave
Assédio judicial; Liberdade de imprensa; Desinformação; Ética jornalística; Extrema-direita.
1 Jornalista da Agência de Comunicação da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC). Tem pós-doutorado na ECA-USP. Doutora em Jornalismo pela UFSC. Repórter de política e ativista pelo direito à informação. E-mail: amanda.souzademiranda@gmail.com.
2 Professora da Faculdade de Comunicação e do Programa de Pós-Graduação em Comunicação e Cultura Contemporâneas da Universidade Federal da Bahia (UFBA). Doutora em Jornalismo pela UFSC. Editora da newsletter Farol Jornalismo. E-mail: liviasvieira@gmail.com.
Juiz de Fora, PPGCOM – UFJF, v. 19, n. 2, p. 6-18, mai./ago. 2025 10.34019/1981-4070.2025.v19.49292
Freedom of expression and ethics in dispute in the debate on threats to journalism
Amanda Souza de Miranda1 and Lívia de Souza Vieira2
Abstract
Far-right content producers in Brazil are mobilize their bases and digital activists around the debate on freedom of expression. At the same time, journalism advocacy organizations are reporting episodes of violence against journalists in the course of their work. This article aims to discuss the ethical tensions surrounding the appropriation of the concept of freedom of expression by actors from opposing ideological spectrums, distinguishing ethical journalistic practice from the production of disinformation in an unregulated digital environment. To this end, three empirical sets of data are used: the report on judicial harassment by the Brazilian Association of Investigative Journalism (Abraji), the case of extremist bloggers Allan dos Santos and Paulo Figueiredo, and the establishment of the Parliamentary Front in Defense of Freedom of Expression. The results indicate that the insufficiency of technique and aesthetics in distinguishing good journalists and/or products from bad ones highlights the role of ethics as the distinctive aspect of journalistic activity. It is argued that the application of principles and values to practice is the only way to distinguish journalism carried out in the public interest from that which serves other interests.
Keywords
Judicial harassment; Freedom of the press; Disinformation; Journalistic ethics; Far right.
1 Jornalista da Agência de Comunicação da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC). Tem pós-doutorado na ECA-USP. Doutora em Jornalismo pela UFSC. Repórter de política e ativista pelo direito à informação. E-mail: amanda.souzademiranda@gmail.com.
2 Professora da Faculdade de Comunicação e do Programa de Pós-Graduação em Comunicação e Cultura Contemporâneas da Universidade Federal da Bahia (UFBA). Doutora em Jornalismo pela UFSC. Editora da newsletter Farol Jornalismo. E-mail: liviasvieira@gmail.com.
Juiz de Fora, PPGCOM – UFJF, v. 19, n. 2, p. 6-18, mai./ago. 2025 10.34019/1981-4070.2025.v19.49292
Introdução
A polarização política entre extrema-direita e o campo progressista, que toma conta do mundo com cada vez mais evidências no que se refere ao processo eleitoral de países democráticos, também tem dominado a discussão sobre os conceitos de liberdade de expressão e liberdade de imprensa no Brasil. Isso porque, mobilizados por respostas a investigações criminais da Polícia Federal que repercutem no Supremo Tribunal Federal (STF), lideranças extremistas radicalizadas tentam se posicionar como promotores da liberdade de expressão e levar seus seguidores à compreensão de que os órgãos da justiça e do judiciário estão em uma ofensiva de censura no país.
Este artigo tem como objetivo discutir teoricamente os tensionamentos éticos que envolvem a apropriação do conceito de liberdade de expressão e de imprensa por atores de espectros ideológicos opostos, manifestando a distinção entre o fazer jornalístico e sua base ética e a produção de desinformação em um ambiente digital desregulado.
Entende-se que esse debate teórico é pertinente em um momento no qual, de forma oportunista, grupos radicalizados tentam equiparar estratégias de violência contra jornalistas mapeadas por organizações da imprensa com medidas de investigação e punição impetradas pelo Judiciário a perfis de militantes radicalizados nas redes sociais. Na prática, há uma tentativa de consolidar no debate político a ideia de que “jornalistas” de extrema-direita estão sendo perseguidos e se tornando vítimas do sistema, o que seria conduta de um estado supostamente ditatorial.
Com este artigo, amparadas sobretudo na reivindicação de um status de jornalismo a partir da sua ética, pretendemos demarcar que os riscos aos profissionais existem e são identificados mesmo em sociedade democráticas, mas que não estão relacionados às pretensas denúncias que o bolsonarismo vem tornando públicas de perseguição aos seus pares.
Para tanto, utilizaremos três conjuntos empíricos para realizar as discussões pertinentes à temática:
(a) O relatório de assédio judicial da Associação Brasileira de Jornalismo Investigativo (Abraji), que mapeia um tipo específico de violência contra jornalistas no Brasil;
(b) O caso dos blogueiros extremistas radicalizados Allan dos Santos e Paulo Figueiredo, citados em inquéritos da Polícia Federal com repercussão no STF;
(c) A instalação da Frente Parlamentar em Defesa da Liberdade de Expressão no Brasil, liderada por uma deputada extremista radicalizada, citada como uma das principais litigantes contra jornalistas no Judiciário brasileiro.
Entendemos que esses três conjuntos são representativos do debate instalado no país e nos auxiliam a demarcar por que o jornalismo e os jornalistas estão ameaçados na democracia, distinguindo ameaças reais de discursos políticos oportunistas e traçando uma linha de protagonismo à ética do jornalismo como principal delimitadora da atividade.
Extrema-direita e apropriação de conceitos do jornalismo
Canais on-line não oficiais da direita já são conhecidos e mapeados em pesquisas em Comunicação que buscam compreender como esse fenômeno tem disputado território com instituições mais sólidas da imprensa tradicional. Uma das constatações é de que a desconfiança prévia nos agentes tradicionais do jornalismo possibilita uma certa proliferação desses perfis (Massuchin et al., 2022).
Em meio a essa tendência, destacam-se dois ativistas da direita on-line que acionam suas redes pessoais com discursos de perseguição e tolhimento às suas liberdades como comunicadores. Allan dos Santos e Paulo Figueiredo contabilizam uma série de perfis, pois suas redes são constantemente suspensas por determinações judiciais, que já chegaram a ser descumpridas pelo X (Lin, 2024), razão pela qual nos concentramos na pesquisa dessa plataforma para coleta de recursos empíricos.
Allan dos Santos é formado em Filosofia e o fundador do Terça Livre, portal que se destacou durante os protestos contra a ex-presidenta Dilma Rousseff que culminaram em seu processo de impeachment, em 2016. Em 2018, apoiador de Jair Bolsonaro no processo eleitoral, já era uma das principais vozes da extrema-direita no ambiente digital (Caniato, 2025). Desde 2020 ele vive nos Estados Unidos e encontra-se foragido da Justiça brasileira, que decretou sua prisão em 2021 por suspeitas de atuação em organização criminosa, crimes contra honra e incitação a crimes, preconceito e lavagem de dinheiro.
Paulo Figueiredo é economista e foi comunicador na emissora Jovem Pan, mas afastado da sua programação já em 2021, investigado pelo Ministério Público Federal por disseminação de desinformação. Antes do espaço na emissora, Figueiredo, que é neto de João Figueiredo, ex-presidente do regime militar, já acumulava uma ficha corrida na Justiça, tendo sido preso em 2019 nos Estados Unidos, onde vive hoje, em liberdade.
Allan e Paulo são, além de personagens do ecossistema de Comunicação do ativismo da extrema-direita, parte de inquéritos policiais no Brasil. Ambos são investigados por recorrerem à desinformação para tumultuarem a democracia e desestabilizarem o sistema. Entre os seus feitos registrados pela Justiça brasileira estão o fato de Allan ter ligação com os organizadores do Capitólio, que resultou na invasão da Casa Branca por militantes que acreditavam em fraude nas eleições estadunidense de 2021. Já Figueiredo é uma das partes do inquérito que investiga a tentativa de golpe no Brasil. Ele é suspeito de influenciar, dentro do Exército, a adesão ao golpe nas eleições de 2022 (Bomfim et al., 2024).
O modo como eles performam em suas redes sociais e em eventos públicos a ideia de perseguição é um dos interesses deste artigo. Isso porque entendemos que eles se utilizam de conceitos centrais da defesa da atividade jornalística para se protegerem juridicamente e alimentarem a militância radicalizada.
Uma postagem de julho de 2023 na conta de Uelton Costa com mais de 20 mil likes e 6 mil retuítes no X traz um exemplo concreto disso (Costa, 2023). No texto, indica-se que Paulo Figueiredo e Allan dos Santos denunciaram restrições à liberdade no Brasil em evento da universidade americana na Flórida. O texto fala em censura e em asilo político, dois pontos de desinformação se considerarmos que não existe censura no Brasil e que nenhum deles é asilado politicamente. Além disso, tenta adotar um tom comovente e de vitimização aos personagens que promoveram, segundo investigações da Polícia Federal e decisões do Supremo, uma série de tensões políticas no país.
Liberdade de expressão e liberdade de imprensa
A disputa pelos conceitos de liberdade de expressão colide, no debate público, com os debates sobre liberdade de imprensa. Isso acontece porque, como destacam Sena e Scabin (2024), tradicionalmente, o acesso à liberdade de expressão precisa dos meios de comunicação para ser materializado. Ainda que esse ecossistema tenha se diversificado e ampliado com o fortalecimento das big techs que criaram novas plataformas de interação social, os conceitos se relacionam.
[…] a liberdade de imprensa deve ser tomada como parte da liberdade de expressão à qual indivíduos e grupos têm direito na sociedade. Quando esses conceitos são igualados, no entanto, a liberdade individual de pensamento torna-se representada pela produção informativa, jornalística e cultural de grupos e instituições de mídia como representantes de toda a sociedade. A combinação semântica dos dois termos desloca a liberdade do indivíduo para a imprensa (Sena; Scabin, 2024, p. 193).
Os autores prosseguem dizendo que “a liberdade de imprensa é justificada, então, pelo poder de fazer circular o pluralismo de ideias existente na sociedade, sendo representada como garantidora também da liberdade de expressão individual” (Sena; Scabin, 2024, p. 194). Nossa compreensão também vai nessa direção, mas delimitando aos jornalistas o direito de terem preservado de forma inegociável o seu direito à liberdade de imprensa assentada no compromisso ético com a verdade. Desse modo, já haveria uma exclusão desse mesmo direito àqueles que se projetam no debate público pelas vias da desinformação.
Não é coincidência, portanto, que Paulo Figueiredo, que se apresenta na biografia da conta do X como “jornalista censurado pelo Alexandre”, não tenha utilizado uma única vez o conceito de liberdade de imprensa para reivindicar aquilo que toma como seu direito (Figueiredo, 2025). A liberdade de expressão, por outro lado, aparece por três vezes na conta criada em fevereiro de 2025: em um comentário elogioso ao ex-presidente José Sarney por tê-lo defendido em uma entrevista, em uma crítica jocosa a uma notícia da Revista Fórum, da mídia independente, e em uma postagem na qual expressa a "necessidade de eleições livres, limpas e auditáveis com liberdade de expressão e participação da oposição" (Figueiredo, 2025).
Já Allan dos Santos, que criou sua “Conta de número 5", como apresenta na biografia, em janeiro de 2025, não recorreu aos conceitos para se defender, mas participou de uma interação com Grok, a inteligência artificial do X, na qual revela suas noções sobre jornalismo. A pedido de um usuário do X, a IA disse que “parece provável que ele minta compulsivamente". Allan, então, respondeu relativizando o conceito de verdade e afirmando “que como jornalista que sou, se um fato por mim descrito se concretiza posteriormente, nenhuma análise minha é verdadeira ou mentirosa, mas apenas desconhecida de seu banco de dados" (Santos, 2025). A IA seguiu sua réplica e acrescentou que o jornalismo exige “evidências verificáveis”, ao que então Allan respondeu que “quando algum jornalista noticia um perigo do qual poucos sabem, ele não precisa de uma quantidade específica de órgãos ou pessoas para que sua opinião seja validada” (Santos, 2025).
A troca de mensagens é simbólica para identificar, no discurso do ativista da direita, uma aparente confusão entre o direito de expressar uma opinião e o direito de se reivindicar jornalista para levar uma informação à audiência. Ainda, também consolida uma das discussões mais arraigadas a partir da ascensão de figuras como ele no debate público: a liberdade de expressão cobre a liberdade de desinformação? É possível reivindicar seu direito a propagar e difundir mentiras sob a justificativa de se estar fazendo jornalismo?
Juridicamente, a doutrina da real malícia tem sido acionada para distinguir aqueles que propagam notícias falsas com conhecimento de sua falsidade ou com temerário desprezo pela verdade daqueles que cometem equívocos, considerados erros jornalísticos. A tese foi fixada a partir de uma demanda da Associação Brasileira de Jornalismo Investigativo (Abraji) e assinala que a responsabilidade civil de jornalistas ou de órgãos de imprensa só ocorre quando há inequívoco dolo ou de culpa grave, com negligência profissional (Mourão et al., 2024). Esse entendimento garante que jornalistas que ajam de forma lícita, ainda que sujeitos a erros, possam ter sua liberdade garantida.
Barroso e Barroso (2023) – um dos autores ministro do STF e atual presidente da casa – discorrem sobre assunto transversal no artigo Democracia, mídias sociais e liberdade de expressão: ódio, mentiras e a busca da verdade possível, onde citam que, antes da propagação das redes sociais, a imprensa profissional podia ser responsabilizada por problemas relacionados a erros e desinformação já que a ela cabia investigar fatos e seguir os padrões da ética e da técnica jornalística. A defesa é por um ambiente digital com mais regulação e responsabilidade.
Encontrar o equilíbrio adequado entre a indispensável preservação da liberdade de expressão, de um lado, e a repressão do conteúdo ilegal nas redes sociais, de outro, é um dos problemas mais complexos de nossa geração. A liberdade de expressão é um direito fundamental incorporado em praticamente todas as constituições contemporâneas e, em muitos países, é considerada uma liberdade preferencial, que deve prevalecer prima facie quando em confronto com outros valores. (Barroso; Barroso, 2023, p. 296)
Esse equilíbrio também passa pela delimitação teórica que possa distinguir um jornalista no exercício da sua função de um agente político cujo papel no debate público seja disseminar desinformação, acionando discursivamente questões relevantes à democracia, como a censura, a liberdade de imprensa e a liberdade de expressão. Ao utilizarem esses conceitos, ativistas radicalizados como Allan dos Santos e Paulo Figueiredo tentam capturar uma discussão importante, que não deve servir como defesa aos processos judiciais nos quais estão envolvidos. Este é o tema do próximo tópico deste artigo.
O jornalismo ameaçado
Jornalistas do mundo todo estão expostos a riscos como o assassinato, o sequestro, o desaparecimento e a prisão. Trata-se de uma discussão séria, que cerca especialmente ambientes que prescindem de ferramentas de democracia e/ou que estão em estado de guerra. Segundo o Balanço 2024 dos jornalistas mortos, presos, feitos reféns e desaparecidos no mundo, feito pela organização Repórteres sem Fronteiras, Palestina e Paquistão são os lugares mais perigosos, mas também há países como México e Colômbia entre os destaques negativos do ranking (Repórteres Sem Fronteiras, 2024). Conflito, política local e crime organizado são os tópicos que levam o maior número de jornalistas à morte.
De acordo com o mesmo documento, há 550 jornalistas presos pelo mundo. China, Birmânia, Israel, Bielorrússia, Rússia e Vietnã se destacam negativamente na lista. Esses números também são utilizados como fonte de dados do Ranking Mundial da Liberdade da Imprensa, no qual o Brasil, em sua tradição democrática, ocupa a posição de número 63, tendo ganhado 19 posições em relação a 2024. O relatório salienta que 0 novo governo de Luiz Inácio Lula da Silva trouxe de volta uma normalização das relações entre as organizações estatais e a imprensa, após o mandato de Jair Bolsonaro marcado por uma hostilidade permanente ao jornalismo. “Mas a violência estrutural contra jornalistas, um cenário midiático marcado pela alta concentração privada e o peso da desinformação representam desafios significativos para o avanço da liberdade de imprensa no país” (Repórteres Sem Fronteiras, 2025).
Um dos tipos de ameaça à liberdade de imprensa que vêm sendo acompanhado pela Abraji no Brasil é o assédio judicial contra jornalistas, classificado como o “uso de medidas judiciais de efeitos intimidatórios contra o jornalismo, em reação desproporcional à atuação jornalística lícita sobre temas de interesse público” (Abraji, 2024).
Aqui, há uma demarcação relevante ao que se considera “atuação jornalística lícita", já que, quando se fala em jornalismo, presume-se a sua licitude. O que o relatório busca demarcar, no entanto, é a atividade jornalística que produz informações de interesse público, distinguindo-a daquela produzida por jornalistas que praticam atos ilícitos. A estes o documento sugere que a punição “seja não apenas proporcional e razoável, mas principalmente limitada aos casos mais graves, de má-fé causadora de danos realmente graves às vítimas" (Abraji, 2024, p. 10).
Esta nos parece ser uma demarcação importante entre o jornalismo que reivindica a liberdade de imprensa e de expressão como práticas essenciais à sua função e o ativismo extremista que busca nesses mesmos conceitos um aval para a prática de ilícitos.
A tentativa de captura dos conceitos, que é feita sob diferentes camadas, também chamou atenção em um episódio político ocorrido no Brasil, quando uma deputada federal bolsonarista foi alçada ao posto de líder da Frente Parlamentar em Defesa da Liberdade de Expressão. A deputada Júlia Zanatta utiliza o conceito de liberdade de expressão como bandeira, mas é citada pelo monitor de assédio judicial da Abraji como uma das principais autoras de processos contra jornalistas no país.
No evento de lançamento da Frente presidida por ela, em dezembro de 2024, não havia jornalistas participando como oradores. Mas a própria deputada, que tem formação em Comunicação com habilitação em Jornalismo, expressou que o objetivo do trabalho era o fortalecimento da democracia.
Dois meses depois, quando da vinda do Relator especial da Comissão Interamericana de Direitos Humanos para tratar da liberdade de expressão no Brasil, o grupo de parlamentares bolsonaristas também tentou utilizar os conceitos para defender ilicitudes praticadas por militantes de direita no dia 8 de janeiro de 2022, em Brasília, novamente fazendo uma apropriação do conceito como se fosse equivalente ao direito a cometimento de crimes, inclusive com violência física e patrimonial.
A análise que aqui pretendemos estabelecer, portanto, é de que os fundamentos que balizam a prática jornalística – as liberdades de imprensa e de expressão – precisam ser garantidos a partir de discussões que auxiliem o país a melhorar a sua posição no ranking da liberdade de imprensa e a combater táticas de intimidação e censura como o assédio judicial, resguardando o trabalho jornalístico que está alinhado ao interesse público.
À medida que o conceito passa por distorções ou apropriações discursivas equivocadas, é possível que se banalize ou, então, que ele deixe de servir ao que realmente deve: a defesa da democracia. Por isso, no próximo tópico, trazemos a ética jornalística como elemento definidor e demarcador da prática que pode e deve reivindicar seus espaços de liberdade, denunciando táticas de violência e assédio que possam constrangê-la. Fazemos isso por entendermos, a partir desses referenciais, que a atividade jornalística lícita é sobretudo ética, estando assentada em valores que, muito embora não tornem jornalistas imunes a erros, tornam sua boa-fé reconhecida de antemão.
A ética como elemento distintivo da atividade jornalística
No atual contexto midiático brasileiro, um jornalista não precisa ter diploma universitário para exercer a profissão. Para obter o registro profissional, basta que comprove experiência, ou seja, que documente o domínio da técnica. No ecossistema digital, criar um site jornalístico, esteticamente semelhante ao dos grandes veículos, é uma empreitada de baixo custo – se comparada à propriedade de um veículo impresso, um canal de TV ou rádio, por exemplo. Isso torna possível que qualquer cidadão se autointule jornalista e crie um site de notícias ou perfil em rede social com potencial de ser referendado por uma grande audiência. Allan dos Santos e Paulo Figueiredo são apenas dois exemplos disso.
Assim, técnica e estética parecem não ser mais suficientes para demarcar um bom jornalista ou um bom produto. Por “bom” nos referimos, filosoficamente, ao que é bom para a comunidade (bem comum), ao que é de interesse público. Como mencionamos anteriormente, a Abraji utiliza o conceito de jornalismo lícito para fazer a distinção entre o profissional e o que se diz jornalista, comete um crime e não quer ser processado por tal. Trata-se de uma distinção válida, mas demasiadamente atrelada a questões jurídicas para se efetivar (ou seja, há uma forte dependência da agência de outras instituições).
Com base no que foi discutido até aqui, a insuficiência da técnica e da estética colocam na ética o papel distintivo da atividade jornalística. Defendemos que a aplicação de princípios e valores à prática é a única maneira de demarcar o jornalismo feito para o bem público daquele que atende a outros interesses.
Tomemos a liberdade de expressão (que contempla a liberdade de imprensa) como princípio norteador de nosso argumento. Concordamos com Karam (2014) que a reflexão ética é um movimento de desalienação e de redefinição tanto do comportamento moral quanto dos princípios deontológicos e que, por isso mesmo, não deve ser entendida como uma abstração. É no questionamento cotidiano que a ética se efetiva, inclusive na atividade jornalística.
Nesse sentido, Ward (2010) propõe um framework que, metodologicamente, torna mais tangível a avaliação de condutas pelos jornalistas, que vão culminar na avaliação possível de um jornalismo ético. Em sua compreensão, “a ética jornalística estuda os princípios que devem guiar a conduta de jornalistas e deve regular suas interações com outros cidadãos” (Ward, 2010, p. 43) (Tradução nossa) [1], destacando seu caráter relacional. Ward propõe três níveis de raciocínio: (1) raciocínio sobre situações (prático); (2) raciocínio sobre estruturas (aplicado); (3) raciocínio sobre objetivos (filosófico).
Uma das bases que sustenta o framework de Ward é o ecletismo, uma forma pluralística de pensamento que se opõe ao monismo, esse que sustenta a existência de um único princípio ou critério supremo de certo ou errado. Para o ecletismo, a parte mais importante do raciocínio ético é o raciocínio holístico que equilibra princípios em diferentes contextos. E exemplifica: “A decisão do jornalista de não relatar o sequestro de um profissional humanitário em uma zona de guerra porque isso poria a vida da pessoa em risco coloca a prevenção de danos acima da liberdade de publicar” [2] (Ward, 2010, p. 65). Nessa situação, o jornalista decidiu pelo princípio ético da prevenção de danos, mas ele não é o único possível e pode dar lugar a outro princípio a depender da situação.
Ao recorrer à liberdade de expressão como princípio supremo, bolsonaristas de extrema-direita como Allan dos Santos e Paulo Figueiredo, bem como parlamentares como Júlia Zanatta optam pelo monismo de conveniência. Sob a ótica do ecletismo, a liberdade de expressão não é um princípio único e, a depender da circunstância, o mais ético pode ser a decisão por outro princípio (raciocínio sobre situações), a partir do que diz o código de ética dos jornalistas, por exemplo (raciocínio sobre estruturas), visando ao bem comum (raciocínio sobre objetivos). Esse argumento, sustentado na reflexão ética e na deontologia da profissão, não toca em questões jurídicas e/ou criminais, mas distingue de maneira clara como deve ou não deve ser a atividade jornalística ética.
Passamos a relatar um caso concreto: em junho de 2024, Allan dos Santos, que se apresenta como jornalista e criador do site de notícias Terça Livre, compartilhou mensagens atribuídas a Juliana Dal Piva, que supostamente mostrariam a jornalista confessando um plano do ministro do STF Alexandre de Moraes para prender o ex-presidente Jair Bolsonaro. A agência de checagem Aos Fatos fez a verificação e concluiu que as mensagens são falsas, destacando que “as peças de desinformação acumulam milhares de compartilhamentos no X e curtidas no Instagram” (Menezes, 2024).
Ao aplicar o esquema metodológico de Ward (2010), analisamos que, embora tenha a liberdade de expressão e a liberdade de publicar, Allan dos Santos colocou esses princípios acima da verdade dos fatos. Ao fazer isso, embora tenha recorrido a um valor ético, ele negligenciou outro que consta em diversos códigos de princípios e, por consequência, causou um dano que feriu não só o bem-estar da jornalista envolvida, como também ameaça outros tantos jornalistas, que podem ser vítimas de outras invenções. O raciocínio sobre objetivos, no nível macro e filosófico, evidencia a quebra do bem comum e, por isso, a conduta antiética – embora Allan dos Santos se apoie no princípio válido da liberdade de expressão.
Definir uma atitude como antiética, a luz desse quadro teórico, seria uma forma de distinguir a liberdade de expressão e de imprensa que estariam de fato ameaçadas daquelas que funcionam como recurso retórico para a defesa de táticas do ativismo beligerante. Este seria um passo importante para a demarcação do jornalismo como instituição sólida de defesa da democracia.
Considerações Finais
As dificuldades em delimitarmos um lugar para o jornalismo e o distinguirmos do ativismo de extrema-direita não se resolve facilmente e é problema prático e teórico para veículos e estudos no mundo todo. Mas, especialmente no Brasil, o uso dos conceitos de liberdade de expressão e de imprensa tem sido instrumento de equiparação entre problemas reais enfrentados por jornalistas e tentativas deliberadas de se defender de atos ilícitos praticados por pessoas investigadas sob suspeita de causarem danos à democracia.
Este debate fica mais visível quando comparamos denúncias graves relatadas por órgãos de proteção a jornalistas, como prisões, assassinatos e assédio judicial, com atividades investigadas por sua origem ilícita, como o uso deliberado de notícias falsas para que se fomente a instabilidade no país. Ao utilizarem conceitos caros à manutenção do ambiente democrático e que protegem jornalistas de arbitrariedades, grupos de ativismo da extrema-direita acabam fazendo o conceito ecoar de forma a tentar proteger aqueles que não estão em risco.
Os casos dos ativistas Allan dos Santos e Paulo Figueiredo são emblemáticos por ilustrarem como eles escolhem se posicionar como jornalistas, ainda que suas atuações atinjam frontalmente princípios éticos da profissão. Ao fazerem isso, incorporam as prerrogativas da profissão que protegem juridicamente, ainda que com recursos escassos, profissionais que correm riscos, que são perseguidos e intimidados por praticarem o jornalismo lícito. A liberdade de expressão entrou neste debate como conceito sugestivo para que não haja punição àqueles que cometem crimes ou danos a outrem.
Assim, visando a contribuir com a defesa teórico-conceitual do jornalismo voltado para o bem comum e para o interesse público, que transcende empresas e modelos de negócio, propomos que a ética jornalística seja entendida como um elemento distintivo da atividade jornalística. Na prática, isso pode fortalecer políticas públicas voltadas à proteção de jornalistas que estejam de fato com sua liberdade de expressão ameaçada e que não recorram ao conceito como motor de revanchismo político. Pode, ainda, sustentar peças jurídicas comprometidas com a defesa de jornalistas intimidados e/ou perseguidos.
No contexto atual, técnica e estética não são suficientes para diferenciar o bom do mau exercício da profissão. Por isso, é pela via da ética que podemos distinguir, mediante raciocínios práticos, aplicados e filosóficos (Ward, 2010) o jornalismo que informa daquele que confunde e promove a desinformação. É válido reforçar, mais uma vez, que ao se ampararem em um mecanismo de fortalecimento da democracia como a liberdade de expressão, ativistas radicais buscam a equiparação com vítimas reais, o que ocultaria, em muitos casos, seus desvios e ilicitudes.
Por fim, entendemos que os estudos em ética e deontologia do jornalismo estão em permanente atualização diante dos desafios de um ambiente digital cada vez mais desregulado e mediado por algoritmos. Cabe, portanto, aos pesquisadores em comunicação e em jornalismo enfrentarem esses problemas cotidianos a partir de abordagens teórico-conceituais que fortaleçam o campo não enquanto atitude corporativista, mas em defesa de uma atividade essencial às democracias que continuam tão ameaçadas. Este trabalho é uma tentativa de contribuir com essa arena de debates e reforçar a necessária distinção entre o jornalismo ético e o ativismo ilícito.
Notas
[1] Journalism ethics studies the principles that should guide conduct among journalists and should regulate their interactions with other citizens.
[2] The journalist’s decision to not report the kidnapping of an aid worker in a war zone because it would endanger the person’s life puts prevention of harm above freedom to publish.
Artigo submetido em 02/07/2025 e aceito em 21/08/2025.
Referências
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