Vera, a Grande Mãe:

arquétipos na construção da protagonista de Aos Nossos Filhos

Rodrigo Cássio Oliveira1

Resumo

O trabalho traz uma análise fílmica da construção da personagem Vera no filme Aos nossos filhos (2019). O objetivo é descobrir e explicar a funcionalidade dos arquétipos que operam nas relações de Vera com as demais personagens da obra. As principais referências teóricas utilizadas foram os estudos de Erich Neumann sobre o arquétipo da Grande Mãe e de Christopher Vogler sobre os arquétipos no cinema narrativo. Desse modo, o trabalho seguiu uma linha de investigação sobre arquétipos que tem origem na psicologia analítica de C. G. Jung, apropriando-a a uma investigação narratológica específica sobre personagens. Descrevemos e analisamos as funções de cada arquétipo identificado no filme, ressaltando aqueles que compõem Vera e Sérgio, um doppelgänger da protagonista. Concluímos que a ambivalência que está na base do arquétipo da Grande Mãe faz de Vera uma personagem complexa, a qual reflete ao mesmo tempo as propriedades da Mãe Bondosa e da Mãe Terrível. Concluímos ainda que, na caracterização de Vera, o arquétipo da Grande Mãe é associado a outros. E promove a transformação da personagem, permitindo a solução dos principais conflitos dramáticos que movem a narrativa.

Palavras-chave

Arquétipos; personagens; cinema brasileiro; análise fílmica; narratologia.

1 Doutor em Estética e Filosofia da Arte pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). Professor adjunto da Universidade Federal de Goiás (UFG), vinculado ao PPG de Comunicação da Faculdade de Informação e Comunicação (FIC). E-mail: rodrigocassio@ufg.br.

Vera, the Great Mother:

archetypal elements in the construction of the protagonist in Aos nossos filhos

Rodrigo Cássio Oliveira1

Abstract

This paper presents a film analysis of the construction of the character Vera in the movie Aos nossos filhos (2019). Our goal is to discover how archetypes operate in narrative and to explain their functionality in Vera’s relationships with other movies’ characters. Erich Neumann’s studies on the Great Mother archetype and Christopher Vogler’s theory of archetypes in narrative cinema were the main theoretical references used in the analysis. Therefore, the framing used to investigate archetypes in this work was based on the analytical psychology of C. G. Jung. We appropriated it to a specific narratological study about film characters. Each archetypical function identified in the film was described and analyzed, highlighting those that set Vera and Sérgio, a protagonist’s doppelgänger. In conclusion, we found that the Great Mother’s archetype ambivalence made Vera a complex character who reflected, at the same time, the properties of the Good Mother and the Terrible Mother. Furthermore, we found that the Great Mother archetype is associated with other archetypes in Vera's characterization, promoting the character's transformation and leading to the resolution of the key dramatic conflicts in the narrative.

Keywords

Archetypes; characters; Brazilian cinema; film analysis; narratology.

1 Doutor em Estética e Filosofia da Arte pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). Professor adjunto da Universidade Federal de Goiás (UFG), vinculado ao PPG de Comunicação da Faculdade de Informação e Comunicação (FIC). E-mail: rodrigocassio@ufg.br.

Introdução

Este trabalho é uma análise da construção de Vera (vivida pela atriz Marieta Severo), uma das protagonistas de Aos nossos filhos (2019), longa-metragem de ficção dirigido por Maria de Medeiros. O filme narra a jornada dessa personagem em busca da superação de um trauma adquirido na ditadura militar do Brasil, época em que foi guerrilheira e prisioneira política. Ao mesmo tempo, o filme narra a história de Tânia (interpretada por Laura Castro), filha que Vera teve com o advogado Fernando (vivido por José de Abreu) quando retornou ao Brasil depois de anos vivendo na França, já no período da anistia. A relação entre mãe e filha está no cerne da narrativa, que problematiza a maternidade e a condição da mulher em diferentes contextos sócio-históricos, tendo como pano de fundo as transformações da sociedade brasileira.

Defendemos que Vera é uma protagonista que possui as características ambivalentes da Grande Mãe, uma forma arquetípica destacada pelos estudos do psicanalista junguiano Neumann (2021). Para chegar a esse ponto, revisitaremos as teorias sobre arquétipos desenvolvidas por Campbell (2007) e Vogler (2015), ambos influenciados pelas ideias fundamentais de Jung a respeito do assunto, sendo o segundo um relevante intérprete dos arquétipos aplicados especificamente ao estudo do cinema de ficção.

Embora tenham ganhado impulso teórico a partir dos estudos sobre o inconsciente, os arquétipos se expressam materialmente no âmbito da interpretação da obra e são acessíveis a qualquer analista de filmes interessado em estudá-los. A recorrência dos arquétipos no cinema pode ser verificada empiricamente pela análise das narrativas. Com base nessa premissa e na arquetipologia que Vogler desenvolveu para o cinema, analisaremos as relações de Vera com outras personagens de Aos nossos filhos, de modo a entender a maneira pela qual o arquétipo da Grande Mãe atua conjuntamente com outros arquétipos na caracterização da protagonista.

Arquétipos e o cinema

O conceito de arquétipo foi elaborado por C. G. Jung em investigações que o conduziram ao rompimento com a psicanálise de Freud e à criação da psicologia analítica. Jung definiu os arquétipos como formações do inconsciente coletivo essenciais para a psique humana: “enquanto o inconsciente pessoal consiste em sua maior parte de complexos, o conteúdo do inconsciente coletivo é constituído essencialmente de arquétipos” (Jung, 2000, p. 53).

A equiparação dos arquétipos com os complexos, descobertos por Freud, evidencia a separação entre as noções de inconsciente individual (psicanálise) e inconsciente coletivo (psicologia analítica), embora preserve o caráter estruturante universal das duas formações: “o conceito de arquétipo constitui um correlato indispensável da ideia de inconsciente coletivo, e indica a existência de determinadas formas na psique que estão presentes em todo tempo e em todo lugar” (Jung, 2000, p. 53).

De acordo com Williamson (1985), a psicologia de Jung atualizou a teoria da forma (eidos) de Platão, retirando-a do domínio da epistemologia filosófica para remodelá-la em uma doutrina moderna do inconsciente. Vale notar que em Os arquétipos e o inconsciente coletivo o próprio Jung inicia a sua argumentação remontando a autores e formas de conhecimento diversos que, desde a antiguidade, contribuíram tanto para a compreensão do conceito de arquétipo como para a noção de inconsciente coletivo. Da nossa parte, compreendemos que a universalidade – de fato, correlata à que encontramos no idealismo platônico – é o cerne do modus operandi dos arquétipos, que são estruturas fundamentais não sujeitas à temporalidade nem às contingências da realidade empírica.

Em artigo no qual oferece um panorama das principais teorias dos arquétipos e de suas aplicações na análise de filmes, Anaz (2020) explica o conceito a partir de Jung, diferenciando as suas manifestações empíricas do substrato universal que está radicado no inconsciente humano:

O arquétipo, enquanto fenômeno psíquico, materializa-se quando é expresso simbolicamente nas criações artísticas e narrativas. Ele manifesta-se como imagens psíquicas específicas e peculiares cujo conteúdo significante é apreendido pela consciência. É necessário, portanto, compreendê-lo em dois âmbitos: o do arquétipo em si, que é irrepresentável, pois ocorre no nível inconsciente da mente humana; e das imagens simbólicas ou arquetípicas (Anaz, 2020, p. 255).

A base arquetípica do inconsciente coletivo seria composta, então, por formas abstratas vazias que a cultura se encarrega de preencher na história humana, originando as manifestações concretas dos arquétipos nos produtos culturais. Essas estruturas vazias, que são os arquétipos em si, agem como uma matriz geradora daquilo que aparece no espaço-tempo em nossa experiência da realidade.

Muito influenciado pela psicanálise, e em particular pelas ideias de Jung, Campbell (2007) analisou narrativas mitológicas presentes na história de diferentes culturas em seu livro O herói de mil faces. Com base em uma coleta robusta de dados sobre as narrativas da humanidade, Campbell aventou a hipótese de que uma estrutura comum se faz valer em todas as épocas nos mais variados produtos narrativos, ainda que sofrendo modulagens que revestem e adaptam tal estrutura ao cenário particular de cada momento. Esse padrão narrativo, nomeado pelo autor de monomito, ou jornada do herói, corresponderia a uma forma universal válida para a expressão dos arquétipos fundamentais que perduram, hereditariamente, no inconsciente coletivo.

A obra de Campbell promoveu um encontro profícuo entre a teoria da narrativa e a teoria dos arquétipos. Para o autor, as manifestações culturais dos arquétipos na história são um objeto de estudo ao mesmo tempo antropológico e narratológico. Isso porque a experiência humana no interior das culturas é necessariamente marcada pelo ato de contar histórias: “os arquétipos a serem descobertos e assimilados são precisamente aqueles que inspiram, nos anais da cultura humana, as imagens básicas dos rituais, da mitologia e das visões” (Campbell, 2007, p. 27-8).

Os elementos estruturantes da jornada do herói estão presentes, por exemplo, tanto nas narrativas fundadoras de religiões e de pátrias como em filmes ou séries de TV do nosso tempo, o que mostra a grande amplitude dessa abordagem. Esses elementos podem ser encontrados na história de Siddharta Gautama ou nos vários westerns estrelados por John Wayne. Eles estão presentes na peregrinação de Jesus Cristo ou na trajetória anti-heroica de Walter White, protagonista da série Breaking Bad.

Apesar disso, o cinema e outros produtos audiovisuais não foram objetos do estudo direto de Campbell, cujos interesses principais eram a religião, a mitologia e a literatura. No livro A jornada do escritor, publicado originalmente no começo dos anos 1990, Vogler (2015) assumiu a tarefa de levar as ideias de Campbell para o campo do cinema e aprofundar a análise dos arquétipos nos filmes. Roteirista profissional com experiência em Hollywood, Vogler demonstrou a utilidade de uma arquetipologia para a construção de histórias no cinema. Desse modo, em seu livro, tipificou e analisou os oito principais arquétipos que, na sua visão, podem ser encontrados na maioria dos filmes que contam histórias.

Os arquétipos estudados por Vogler são o herói, o mentor, o guardião do limiar, o arauto, o camaleão, a sombra, o aliado e o pícaro [1]. Não se trata de uma lista exaustiva, segundo o próprio autor. Porém, a recorrência desses arquétipos é evidenciada pelos muitos exemplos de filmes citados no livro, o que justifica tomá-los como aqueles que mais se sobressaem no cinema narrativo de diferentes épocas.

Em termos práticos, o reconhecimento de um arquétipo gera expectativas cognitivas nos espectadores, as quais se baseiam no conhecimento acumulado que estes possuem sobre como funcionam as narrativas. Sabemos, por exemplo, que o aparecimento de um arauto implica em mudança na vida do herói, seja este arauto um mensageiro em Édipo Rei, de Sófocles, seja ele um afilhado da família Corleone em The Godfather, de Francis Ford Coppola. Em outro exemplo, nos filmes épicos os arquétipos de mentores são fáceis de ser percebidos, impulsionando o herói ao desenvolvimento de suas habilidades e preparando-o para uma jornada bem-sucedida – como o Mestre Yoda, que treina Luke Skywalker em Star Wars: uma nova esperança (1977).

Para Vogler, os arquétipos podem se configurar tanto funções assumidas pelas personagens como também máscaras temporárias que o herói assume na sua jornada. Não é necessário – nem mesmo recomendável – que uma personagem assuma um único arquétipo na história. Quanto mais complexas, mais as personagens manifestam diferentes arquétipos, adaptando suas facetas de acordo com as circunstâncias da história e a relação com os demais personagens. Do mesmo modo, quanto mais as personagens manifestam diferentes formações arquetípicas, mais eles reverberam a universalidade dos arquétipos, o que evidencia a flexibilidade do conceito:

Os arquétipos são uma linguagem infinitamente flexível de personagens. Eles apresentam uma maneira de entender que função um personagem está determinando num determinado momento da história. […] Os arquétipos podem ser usados para construir personagens que sejam únicos e símbolos universais das qualidades que formam um ser humano completo, além de ajudar a tornar nossos personagens e histórias psicologicamente realistas e verdadeiros no que diz respeito à sabedoria ancestral dos mitos (Vogler, 2015, p. 128).

Na análise dos arquétipos de Aos nossos filhos, procuraremos explicar justamente a função das personagens a partir das circunstâncias que eles vivem na história, priorizando a construção da protagonista Vera, e, portanto, as relações que a envolvem no filme. Sustentamos que o arquétipo da Grande Mãe, que dá a tônica da caracterização de Vera, age no sentido de fortalecer o realismo e a veracidade da personagem, ao mesmo tempo em que a leva a participar da história da representação desse arquétipo, que é muito importante para numerosas culturas humanas – como demonstrado pela pesquisa de Neumann (2021), a quem nos referiremos para embasar nosso ponto de vista.

Análise dos arquétipos em Aos nossos filhos

Em A jornada do escritor, Vogler afirma que “a polaridade é um princípio essencial da narrativa, regido por poucas regras simples, mas capaz de gerar conflitos infinitos, complexidade e envolvimento do público” (Vogler, 2015, p. 393). Em Aos nossos filhos, a polarização entre os temperamentos, as visões de mundo e os objetivos de Vera e Tânia definem os conflitos que movimentam a narrativa. As duas personagens são aguerridas e não renunciam ao que querem, mas observam a realidade de perspectivas muito diferentes, o que estabelece o princípio essencial comentado por Vogler em seu livro.

A busca de Vera pela verdade, sugerida já em seu nome, é uma obsessão traumática que a torna alguém excessivamente franca. As causas políticas que ela defende são as dos anos de chumbo, com ênfase sobre a pobreza e a desigualdade social. Tânia, por sua vez, é sensível às causas da comunidade LGBTQI+, mas não tem um perfil militante tão acentuado. Ela é focada em prestar concurso para magistratura, e seus amigos têm a expectativa de que ela combata a homofobia ao aplicar a lei como juíza. Tânia e sua companheira, Vanessa (Marta Nobrega), estão há um longo período tentando engravidar por meio de inseminação artificial. Os sucessivos fracassos e a falta de dinheiro para insistir no projeto são um fator de estresse que contamina a harmonia do casal.

Vera tem dificuldade para compreender a relação homoafetiva da filha e se mantém alheia aos acontecimentos da vida dela. A obsessão de Tânia é tornar-se mãe, mas o abismo que a separa de sua própria mãe a inibe, impedindo-a, por exemplo, de aceitar a inseminação em seu próprio útero. Tânia é muito mais próxima de seu pai, o que explica seu nome, oriundo do latim tatianus, que significa “semelhante a Tácio”, isto é, semelhante ao pai.

As personagens secundárias da narrativa são Sérgio, suposto filho de uma companheira de cárcere de Vera na ditadura; Clarisse, amiga de Vera dos tempos da ditadura e que a ajuda na administração da ONG Positivida, instituição que ampara crianças e jovens soropositivos abandonados, intermediando a adoção deles; Caíque, jovem garoto portador de HIV, amparado pela Positivida, que deseja ser adotado e depende das decisões de Vera; e o casal homoafetivo Antônio e Pedro, amigos próximos de Tânia, que tentam adotar Caíque.

Na Figura 1, a seguir, organizamos a rede de interações de Aos nossos filhos para facilitar a identificação dos arquétipos que operam na construção das personagens. O critério para elaboração do esquema foi a ocorrência de cenas em que as personagens interajam diretamente. Embora a história trate principalmente dos conflitos geracionais e interpessoais entre mãe (Vera) e filha (Tânia), de modo que ambas são protagonistas, é notória a proeminência de Vera como personagem que mais sustenta relações. Não há personagens que não se relacionem diretamente com ela no filme, sendo esta uma condição exclusiva de Vera.

Figura 1 - Rede de relações entre personagens de Aos Nossos Filhos.

https://encurtador.com.br/qNgSU

Fonte: Elaboração própria (2024).

Aos nossos filhos é tanto sobre Vera como sobre Tânia, mas é Vera que está no centro da ação, o que se expressa no seu poder decisório e na sua capacidade de influenciar as demais personagens. Um caso especial é o da personagem Sérgio, que é uma derivação egóica de Vera – ou seja, uma alteridade que não é propriamente um Outro. Embora se apresente como filho de uma amiga que Vera conheceu quando estava presa na ditadura, Sérgio é uma projeção da mente da personagem. Sendo assim, ele se relaciona exclusivamente com Vera, ainda que sua influência sobre ela tenha consequências nas demais relações – principalmente com Tânia.

Com base na classificação de Vogler (2015) e nas relações entre personagens que expusemos na Figura 1, elaboramos a seguir, na Tabela 1, uma exposição dos arquétipos que estão em operação nas relações diretas de Vera com outras personagens do filme. Não é uma lista que pretende abarcar todos os arquétipos encontrados em Aos nossos filhos, mas sim aqueles que Vera e Sérgio colocam em operação no filme, uma vez que são estes, propriamente, os arquétipos definidores das relações mais importantes na construção da protagonista.

Tabela 1 – Arquétipos que operam na construção de Vera em Aos nossos filhos.

Personagem arquétipo em relação a características do arquétipo

Vera

Mentora

Caíque

Vera oferece proteção e orienta Caíque, inclusive presenteando-o no início do filme (gesto típico desse arquétipo). É a função do cuidado, da motivação e da preparação, que faz de Caíque um filho simbólico da personagem. Parcela bondosa da Grande Mãe (Mãe Bondosa).

Sombra

Tânia

Vera representa as emoções reprimidas e os sentimentos mal resolvidos de Tânia. Em contraste com a máscara anterior, Vera age como um empecilho para Tânia, tratando-a com severidade e desmotivando-a na busca de seus objetivos. Parcela terrível da Grande Mãe (Mãe Terrível).

Heroína

Sociedade

Vera sacrifica suas próprias necessidades para servir aos outros, o que é um comportamento abnegado típico dos heróis. Ela conserva a característica heroica desde a juventude, quando combateu a ditadura. No tempo presente da história, sua dedicação à Positivida é o maior exemplo de heroísmo.

Sérgio

Arauto

Vera

Sérgio anuncia para Vera a necessidade de uma mudança, provoca-a a deslocar-se da sua condição psicológica inicial, estimula a experiência do luto e prepara-a para o nascimento da neta.

Aliado

Vera

Sérgio acompanha Vera em sua transformação interior. A personagem assume o arquétipo de aliado na medida em que se transforma em confidente e tem uma escuta privilegiada da protagonista.

Sombra

Vera

Sérgio representa o trauma, o lado obscuro da memória de Vera, sendo também um monstro que precisa ser suprimido. A sua superação é o desafio que ele mesmo impõe à protagonista, razão pela qual ela o obriga a desaparecer.

Fonte: Elaboração própria (2024).

A Tabela 1, como se vê, leva em conta a proposição de Vogler sobre os arquétipos serem máscaras variáveis que as personagens assumem em diferentes momentos da história. Poderíamos dizer que Vera é a personagem que atinge o maior nível de complexidade em Aos nossos filhos, o que reflete a multiplicidade de formas arquetípicas que a mascaram e a levam a exercer funções variáveis.

Vera desempenha respectivamente as funções de mentora, sombra e heroína para as personagens Caíque, Tânia e a sociedade como um todo; ao mesmo tempo, ela sofre a influência de Sérgio, que atua como seu arauto, seu aliado e sua sombra. A centralidade de Vera na trama do filme indica que a função arquetípica da Grande Mãe intervém em todas as relações da protagonista. De fato, o arquétipo da Grande Mãe é essencial para a identidade de Vera, porque se associa a outros arquétipos e determina a tônica das suas interações com os outras personagens, como detalharemos a seguir.

Vera como Grande Mãe

A construção de Vera como Grande Mãe nos remete às investigações sobre arquétipos do psicólogo junguiano Neumann (2021). Na obra A grande mãe: um estudo histórico sobre os arquétipos, os simbolismos e as manifestações femininas do inconsciente, Neumann analisou imagens arquetípicas do feminino em numerosos artefatos da história da arte e dos ritos religiosos, delineando as características do arquétipo e o modo como ele opera no inconsciente coletivo.

A noção de maternidade que compõe o arquétipo da Grande Mãe não se estabelece apenas pela filiação genética, pois refere-se, antes de tudo, a uma condição psíquica e, portanto, simbólica [2]. Também a ideia de “grande” é simbólica, denotando a superioridade dessa figura, que é representada em inúmeros exemplos da produção cultural de civilizações históricas.

Na psicologia analítica, a imagem da Grande Mãe tem caráter primordial, expressando um estado de indiferenciação anterior às distinções acarretadas pelo desenvolvimento do ego. Ou seja, um estado no qual a delimitação do self ainda não ocorreu plenamente. Como observa Raffaelli (2002, p. 25), “[as imagens primordiais] seriam ‘engramas’ mnêmicos resultantes da condensação de processos similares que decorreram ao longo da evolução humana e, por isso, podem ser encontrados em todas as culturas e todas as épocas”. A integração de aspectos contrastantes nos símbolos produzidos pelas culturas evidencia o caráter primordial das imagens que dão origem a eles, e que são estudadas por Jung e seus continuadores teóricos.

Segundo Neumann, a Grande Mãe pode ser definida como uma forma maternal que concilia os aspectos dicotômicos de duas formas correlatas presentes na história dos símbolos: a Mãe Bondosa e a Mãe Terrível. Neumann compreende que essa junção do positivo (bondade) e do negativo (maldade) é o traço mais importante da definição do arquétipo, uma vez que a sua ocorrência é, basicamente, o resultado de uma síntese entre os dois polos: “a terceira forma [correlata às formas da Mãe Bondosa e da Mãe Terrível] é aquela da Grande Mãe, que é boa e má, e permite a união de atributos positivos e negativos” (Neumann, 2021, p. 35).

Os aspectos ambivalentes que constituem o arquétipo materno são apontados também pelo próprio Jung (2000, 2014). Encontramos análises importantes sobre o tema na parte IV de Os arquétipos e o inconsciente coletivo e na parte II de Símbolos e transformação, sendo essa obra indicada pelo próprio autor como uma fonte de documentação e descrição minuciosa sobre as qualidades opostas recorrentes do arquétipo materno.

Em Aos nossos filhos, Vera reúne atributos positivos e negativos do arquétipo da Grande Mãe e realiza uma síntese deles durante a sua jornada. A parcela positiva ou bondosa de Vera é vista, por exemplo, na relação com o garoto Caíque, em contraste explícito com a relação que ela mantém com a filha Tânia, na qual a ação da sua parcela negativa, ou terrível, pode ser percebida. Em artigo que analisa a ocorrência do arquétipo da Grande Mãe no filme Anticristo (2009), de Lars Von Trier, Anaïs Cabart é pontual sobre a ambivalência dessas personagens femininas: “capaz de dar a vida e tomá-la de volta, a Grande Mãe é ao mesmo tempo reconfortante, porque é nutritiva e protetora, mas também é assustadora por causa do seu aspecto destrutivo” (Cabart, 2020, p. 251, tradução nossa) [3]. A nosso ver, essa afirmação vale tanto para a personagem de Charlotte Gainsbourg no filme de Von Trier como para a Vera de Aos nossos filhos.

Iniciemos a análise de Vera pelo seu aspecto positivo. De acordo com Neumann (2021, p. 142), “o feminino, em sua qualidade protetora e acolhedora, congrega em si a vida da família e do grupo sob o símbolo da casa”. Em Aos nossos filhos, Vera dá acolhimento e proteção a Caíque, bem como aos demais internos da Positivida. O espaço da ONG representa uma casa simbólica governada por Vera, que ali exerce o papel de matriarca e dá vazão ao ímpeto benfeitor e afável da Grande Mãe.

É digno de nota que, ao exercer papel ativo no processo de adoção de Caíque, Vera expressa igualmente um poder normalizador que causa desconforto às personagens que se submetem a ela – não apenas ao próprio Caíque, que por vezes se desentende com a tutora, mas principalmente ao casal Antônio e Pedro, que vê seus planos de adoção objetados por Vera.

O acolhimento maternal de Caíque também classifica Vera, na terminologia de Vogler, como uma mentora: “o arquétipo do mentor tem relação íntima com a imagem do pai ou da mãe” (Vogler, 2015, p. 80). As funções dramáticas desse arquétipo são o ensino, a motivação e o oferecimento de recompensas aos seus mentorados. Essas três funções são devidamente cumpridas por Vera, que ensina, motiva e recompensa Caíque em quase todas as cenas em que aparecem juntos, de modo que a parcela bondosa do seu arquétipo maternal é destacada nessa linha de ação do filme.

A parcela terrível da Grande Mãe, por sua vez, é enfatizada na relação de Vera com a verdadeira filha. Tânia é tolhida e limitada pela mãe, o que valida a afirmação de Vogler sobre o arquétipo da sombra: “o arquétipo conhecido como sombra representa a energia do lado obscuro, os aspectos não expressos, desconhecidos ou rejeitados de alguma coisa. Em geral, é o lar dos monstros suprimidos de nosso mundo interior” (Vogler, 2015, p. 112). Mesmo não conseguindo abalar as convicções de Tânia, Vera impõe a ela a necessidade de conviver com seus monstros – ou seus traumas –, agindo como um entrave psicológico relevante para a personagem.

De acordo com Vogler (2015, p. 112), “a função da sombra no drama é desafiar o herói e lhe dar um oponente digno de ser combatido”. A oposição que Vera faz às decisões de Tânia sobre maternidade é um dos conflitos centrais de Aos nossos filhos, impondo a Tânia o desafio de lidar com a influência de Vera. Esse desafio é verbalizado desde a primeira cena do filme, quando Vanessa diz à companheira que ela tem um problema com a mãe, interrompendo uma transa logo no início – o fundo psicanalítico da cena é incontornável, com a figura de uma mãe castradora que se interpõe em meio ao ato sexual, inibindo a sexualidade da filha.

Assim, podemos afirmar que os arquétipos da Grande Mãe e da sombra confluem na relação entre mãe e filha, uma vez que o lado terrível de Vera, decorrente da sua força e capacidade de influência, se expressa pela presença fantasmagórica que ela tem na consciência de Tânia.

Nesse ponto, convém fazer uma digressão sobre a complexidade adquirida por Vera em decorrência dos diferentes arquétipos que a formam. Vera coloca em perspectiva a sua história de vida e reflete sobre as decisões categóricas que precisa tomar, sendo uma típica personagem redonda e complexa, para usar aqui a terminologia proposta nos anos 1920 por E. M. Forster (1985). Os demais personagens de Aos nossos filhos, com exceções de Tânia e Sérgio, e até certo ponto Vanessa, são planos e tendem ao estereótipo [4].

Essa diferença entre as personagens principais (mais redondos e complexos) e as secundárias (mais planos e estereotipadas) condiz com o que Anaz argumenta sobre o tema, mobilizando a noção de arquétipo para tratar da complexidade psicológica das personagens de filmes e séries: “enquanto o personagem arquetípico, composto por um ou vários arquétipos, apresenta características psicológicas, morais e comportamentais contraditórias (positivas e negativas), o personagem estereotipado apresenta apenas um desses aspectos (positivo ou negativo)” (Anaz, 2020, p. 264).

Podemos observar essa diferença, por exemplo, na caracterização de Fernando e Vanessa, que complementam o núcleo familiar de Vera. Fernando corresponde ao estereótipo do homem inábil que é eclipsado por uma mulher forte. Todas as suas tentativas de cortejar Vera são rechaçadas por esta, que tem sempre a última palavra. A conexão de Fernando com a filha é um enlace de solidariedade que os une contra a força irrefreável de Vera, mas Fernando não é capaz de progredir psicologicamente. Restrito a um estereótipo masculino limitante, ele não duvida de nada, não questiona a realidade e busca a todo custo abrandar os conflitos (por exemplo, quando sugere a Tânia que deixe Vanessa ir para os EUA, chegando a levá-la para o aeroporto). Não por acaso, Fernando é abandonado pelo filme e desaparece na cena final, que consagra a família matriarcal de Vera com o nascimento da sua neta. Em Aos nossos filhos, a única personagem masculina adulta e heterossexual é vista como débil, inepta e descartável, sendo por fim excluída do núcleo familiar.

Vanessa, por sua vez, embora seja secundária na trama, é uma personagem levemente complexa. As suas alterações de humor, que incluem separar-se de Tânia e depois voltar repentinamente para ela, permitem associá-la ao camaleão, um arquétipo que Vogler define como mutante e instável: “os camaleões mudam de aparência e de humor, e é difícil para o herói e para o público defini-los […] [então] a lealdade ou sinceridade [dos camaleões] é sempre questionável” (Vogler, 2015, p. 104). Apesar disso, Vanessa não tem espaço suficiente na trama para se desenvolver, e a sua função psicológica, isto é, a sua instabilidade essencial, é aproveitada sobretudo para impulsionar a mudança interior de Tânia. A sua falta de lealdade a Tânia é perdoada como uma ação intempestiva, mas compreensível, frente às dificuldades que o casal encontra no caminho para a maternidade.

Ao contrário do estereotipado Fernando, que não sustenta as contradições e a complexidade, Vanessa contribui indiretamente para a resolução dramática do filme, sendo provida de uma função psicológica arquetípica bem definida.

Em linha com o que Anaz propõe sobre personagens arquetípicos complexos, notamos que a complexidade de Vera fortalece a sua posição de heroína na história de Aos nossos filhos: “um herói é alguém que está disposto a sacrificar suas próprias necessidades em favor de outros” (Vogler, 2015, p. 67). A filantropia de Vera, a sua resistência política, a sua fortaleza física e emocional – ainda que combalida pelo trauma – são demonstrações de virtudes heroicas. Em todos estes exemplos, a configuração do arquétipo da Grande Mãe, em sua parcela protetiva e governante, soma-se ao arquétipo do herói para construir a protagonista. Vera é uma Grande Mãe sempre disposta a agir para proteger a sociedade, mesmo ao custo da ruína de sua vida pessoal.

A experiência com Sérgio tem o aspecto de uma transferência terapêutica e transformadora para Vera, aperfeiçoando o seu caráter heroico por meio da conquista da reconciliação com a filha. Sérgio é o arauto de Vera quando anuncia uma nova circunstância de sua vida (tornar-se avó). Ele também é aliado, quando se posiciona ao seu lado para dar o apoio emocional que ela precisa. Sérgio opera ainda como sombra, refletindo a mente de Vera, já que a própria existência dele depende da projeção mental da personagem.

O encontro de Sérgio com Vera tem todos os aspectos de uma anunciação, o que pode ser explicado a partir de Vogler, uma vez que os arautos são portadores de transformações: “os arautos têm a importante função psicológica de anunciar a necessidade de mudança” (Vogler, 2015, p. 98). Como que reforçando essa condição de arauto, Sergio é também um duplo de Vera, uma entidade enigmática que só pode ser interpretada à luz dos traumas e medos da protagonista. Vestindo uma blusa de capuz, a personagem chama por Vera, na primeira vez em que se encontram, durante uma caminhada noturna nas ladeiras da comunidade em que se situa a Positivida. Nessa situação propícia para uma aparição fantasmagórica, as escolhas de mise en scène, incluindo o tom do diálogo, insinuam que a personagem é um doppelgänger e apenas Vera pode vê-lo.

Observamos aqui uma modulação desse tipo de personagem cuja origem remota é particularmente encontrada nas mitologias egípcia e nórdica, e que foi adotado desde a ascensão do romance moderno para figurar em diferentes gêneros narrativos como o horror, o fantástico, os romances policiais ou o surrealismo. Como observa Schargel (2020, p. 116):

O duplo se relaciona à loucura e muitas vezes até a própria morte. Sendo um espírito, uma personalidade reprimida, uma entidade física, ou qualquer outra manifestação, o doppelgänger traz consigo, na grande maioria das narrativas, a desgraça. E o drama muito se dá pelo sósia significar o “estranho”, o “Eu” sem ser o “eu”. Portanto, mesmo quando não significa a morte literal do personagem, o “estranho” significa sua morte figurada. A morte da sua identidade. A morte do “Eu”.

Sérgio é um tipo de duplo que não tem as características físicas de Vera, mas seguramente prenuncia uma morte figurada para a personagem. A possibilidade de finalmente vivenciar o luto pelo filho que a ditadura lhe tomou só se torna real para Vera depois que ela revisita a sua história, vasculhando memórias dolorosas sob o estímulo de Sérgio. Em certo sentido, portanto, Sérgio traz consigo o horror. Mas, ao mesmo tempo, atua pela libertação de Vera, tornando-se seu aliado arquetípico na medida em que a relação dos dois ganha densidade.

Segundo Vogler (2015, p. 117), “aliados cumprem o importante papel de humanizar os heróis, acrescentando outras dimensões à personalidade ou os desafiando a serem mais abertos e equilibrados”. Arquétipo comum nas tragédias de Shakespeare, o aliado traz à tona aspectos profundos da personalidade do herói. Aliados costumam ser guias que apontam os caminhos que o herói deve seguir para expressar a sua identidade. Sérgio exerce precisamente tais funções, influenciando Vera a realizar o enterro simbólico do filho perdido na ditadura, de modo que o seu luto finalmente fosse vivido. A presença de Sérgio na vida de Vera é um fenômeno correlato aos pesadelos que ela tem – e nessa dimensão onírica da subjetividade da personagem há mais uma referência do filme ao saber psicanalítico.

Entretanto, Sérgio também questiona a origem traumática da personalidade de Vera, vestindo a máscara da sombra. Vera se encanta com Sérgio, mas igualmente o teme. Ele próprio é uma expressão do trauma da protagonista: “[a sombra é] a parte obscura dentro de nós contra a qual sempre lutamos, tentando combater hábitos e medos antigos” (Vogler, 2015, p. 112).

Podemos dizer que Sérgio é um doppelgänger que expressa a força de vontade de Vera para superar os seus traumas e avançar na vida. Por isso, Vera é também quem decide quando Sérgio deve partir. Essa decisão é mostrada na cena em que os dois se beijam – um gesto cujo sentido romântico é apenas superficial, sendo, no fundo, uma espécie de ajustamento egóico da protagonista. Se a aparição de Sérgio como um fantasma havia sido um sintoma da perturbação de Vera com seu próprio passado, o seu desaparecimento é necessário para que a personagem recupere uma boa saúde psíquica, bem como para que novos laços sejam construídos com Tânia, que estava prestes a se tornar, ela própria, uma mãe.

Considerações Finais

Este artigo analisou a construção da personagem Vera, uma das protagonistas do filme Aos nossos filhos, a fim de identificar os arquétipos que operam tanto como máscaras da própria personagem como também das demais personagens com que ela se relaciona – dentre as quais se sobressai Sérgio, projeção egóica de Vera, que tem função narrativa importante como um propulsor das mudanças da personagem no decorrer da sua jornada.

O arquétipo da Grande Mãe foi o principal conceito explorado pela pesquisa, sendo essencial na caracterização da personagem. Durante a análise, pudemos confirmar a sua relevância e explicar a sua transversalidade, ou seja, a sua associação a outros arquétipos para compor Vera.

Nosso entendimento do arquétipo da Grande Mãe foi erigido diretamente das reflexões de Jung (2000, 2014) e Neumann (2021) no âmbito da psicologia analítica, e o confrontamos com os arquétipos estudados por Vogler (2015) em sua apropriação ao cinema narrativo das pesquisas de Campbell (2007) sobre a jornada do herói. Concluímos que Vera é uma personagem complexa, atravessada por diferentes funções arquetípicas, as quais fazem avançar os conflitos dramáticos que estão no cerne da narrativa – na maior parte oriundos, direta ou indiretamente, da relação conturbada de Vera com sua filha, Tânia.

Embora sem a intenção de esgotar as possibilidades de leitura do filme a partir de uma teoria dos arquétipos, esperamos ter mostrado, com nossa análise, quais são os arquétipos elementares que estão na base da construção de Vera. Trata-se de uma personagem heroica e abnegada, que passa por um processo de redenção de suas memórias apavorantes na história do filme. Essa redenção é motivada pelo luto tardio do filho que ela perdeu durante a ditadura, e se apresenta como condição para que Vera experimente uma nova maternidade – a qual é configurada pela reconciliação com a filha Tânia, bem como pelo prosseguimento geracional que o nascimento de sua neta arremata.

Em Aos nossos filhos, o arquétipo da Grande Mãe torna Vera uma personagem complexa, investida com as ambiguidades que expressam as duas dimensões complementares da Mãe Bondosa e da Mãe Terrível. As forças positivas e negativas que agem na relação de Vera com as demais personagens fazem dela uma protagonista multifacetada, introspectiva e misteriosa – qualidades que complementam a sua veracidade ferina e a sua grave espontaneidade.

Em As estruturas antropológicas do imaginário, Durant (2012, p. 235) observa que “em todas as épocas e em todas as culturas os homens imaginaram uma Grande Mãe, uma mulher materna para a qual regressam os desejos da humanidade”. Esse imaginário ativo sobre o arquétipo materno seguramente persiste nos produtos da cultura contemporânea, e o estudo da ocorrência da Grande Mãe em personagens do cinema é um tópico de pesquisa pertinente tanto para a abordagem antropológica como para a abordagem psicológica que estão no arcabouço dessa teorização. Para além de tais disciplinas humanísticas, o estudo dos arquétipos no cinema oferece também contribuições para a narratologia fílmica, e esperamos ter demonstrado isso por meio da nossa análise.

Notas

[1] Facultamos ao leitor buscar explicações sobre cada arquétipo em Vogler, e comentaremos adiante, durante a análise do filme, apenas aqueles que dizem respeito à personagem Vera.

[2] Segundo Ribeiro (2023, p. 30), “a Grande Mãe, como arquétipo, existe tanto na psique feminina quanto masculina, podendo igualmente ser constelada em complexos no homem também”.

[3] Capable de donner la vie et de la reprendre, la Grande Mère est à la fois réconfortante, tant elle est nourricière et protectrice, et effrayante par son aspect destructeur.

[4] Mieke Bal (2021) argumenta que a complexidade não deve ser uma condição para o estudo narratológico de personagens, pois isso implicaria na exclusão de gêneros inteiros como as narrativas mitológico-religiosas (a exemplo da Bíblia ou do Alcorão), ou as ficções populares como contos de fada ou histórias de detetives. Não obstante, consideramos que a complexidade é uma categoria importante, haja vista a sua operacionalidade em narrativas como a do filme analisado aqui.

Artigo submetido em 12/08/2024 e aceito em 19/02/2025.

Referências

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