Internet como suporte para uma comunidade interpretativa transnacional de jornalistas
Natália Huf1
Resumo
Com o objetivo de compreender como os jornalistas que atuam em mídias digitais constroem suas carreiras, falam de seu trabalho e forjam sua identidade profissional, os pesquisadores Florence Le Cam e Fábio Henrique Pereira realizaram uma pesquisa sobre a identidade transnacional desses profissionais. A investigação está registrada no livro Um jornalista on-line mundializado: sócio-história comparativa, lançado em 2022. A obra é o nono volume da série Jornalismo e Sociedade, organizada pelo Programa de Pós-Graduação em Comunicação da Universidade de Brasília (UnB) e editada pela Insular. A partir de uma abordagem comparativa, os autores analisaram dados coletados em entrevistas com jornalistas do Brasil e da França, e também do Québec (Canadá) e da Bélgica, para traçar a sócio-história dos jornalistas on-line. A coleta de dados foi realizada ao longo de mais de uma década e, nas entrevistas com jornalistas dos países citados, os autores identificaram temas como condições e processos de trabalho, desenvolvimentos técnicos e tecnológicos da profissão, inovação e práticas cotidianas. Embora centrada nos cenários brasileiro e francês, a obra demonstra como o jornalismo on-line se constitui no imaginário social e se estrutura ao longo do tempo, constituindo uma comunidade interpretativa internacional que ultrapassa fronteiras e temporalidades.
Palavras-chave
Jornalismo on-line; Identidade profissional; Trabalho jornalístico; Sócio-história Comparativa; Resenha.
1 Jornalista. Doutoranda em Jornalismo na Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC) e mestra em Comunicação e Cultura Contemporâneas pela Universidade Federal da Bahia (UFBA). E-mail: natalia.huf@gmail.com.
Juiz de Fora, PPGCOM – UFJF, v. 18, n. 3, p. 206-212, set./dez. 2024 DOI: 10.34019/1981-4070.2024.v18.45116
Internet as a support for a transnational interpretive community of journalists
Natália Huf1
Abstract
To understand how journalists working in digital media build their careers, talk about their work and forge their professional identity, researchers Florence Le Cam and Fábio Henrique Pereira conducted a research on the transnational identity of these professionals. The investigation is documented in the book Um jornalista on-line mundializado: socio-historia comparativa [A globalized online journalist: comparative socio-history], released in 2022. The work is the ninth volume of a series called Jornalismo e Sociedade [Journalism and Society], organized by the Graduate Program in Communication at the University of Brasília (UnB) and published by Insular. Using a comparative approach, the authors analyzed data collected through interviews with journalists from Brazil and France, as well as from Québec (Canada) and Belgium, to trace the socio-history of online journalists. Data collection was carried out over more than a decade, and interviews with journalists from these countries revealed topics such as working conditions and processes, technical and technological developments in the profession, innovation and daily practices. Although focused on the Brazilian and French scenarios, the book demonstrates how online journalism takes shape in the social imaginary and evolves over time, constituting an international interpretative community that transcends borders and temporalities.
Keywords
Online journalism; Professional identity; Journalistic work; Comparative Socio-History; Review.
1 Jornalista. Doutoranda em Jornalismo na Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC) e mestra em Comunicação e Cultura Contemporâneas pela Universidade Federal da Bahia (UFBA). E-mail: natalia.huf@gmail.com.
Juiz de Fora, PPGCOM – UFJF, v. 18, n. 3, p. 206-212, set./dez. 2024 DOI: 10.34019/1981-4070.2024.v18.45116
O Atlas da Notícia (Dados […], c2024) mostra que existem 5.355 veículos jornalísticos digitais ativos no Brasil. O relatório da 6ª edição (Atlas […], 2023) da pesquisa mostra que, em 2023, pela primeira vez, o jornalismo on-line superou o rádio e o impresso no Sudeste, e é o segmento com o maior número de veículos na região; no Sul, chegou a 33% do total, com aumento em todos os três estados; vem avançando no Norte e Nordeste; e no Centro Oeste, começam a se estabelecer iniciativas de coletivos e sites independentes. Esse avanço do jornalismo na internet se reflete também nos resultados da pesquisa Perfil do Jornalista Brasileiro (Lima et al., 2022), que aponta que 61,5% dos jornalistas do país atuam em mídias on-line, confirmando a liderança do jornalismo digital.
O cenário é semelhante em outros países: por exemplo, nos Estados Unidos, o Pew Research Center conduz, desde 2004, a pesquisa histórica The State of the News Media, com o objetivo de coletar e analisar dados sobre o consumo de mídia pela audiência e sobre a indústria jornalística. Segundo um dos relatórios gerados pela pesquisa – o News Platform Fact Sheet (News […], 2024), divulgado em novembro de 2023 – a transição do jornalismo impresso para o digital impactou fortemente a indústria tradicional de notícias e a forma como as audiências estadunidenses consomem informação jornalística: hoje, dispositivos digitais são os principais meios utilizados por adultos dos Estados Unidos para se informar (58%), e as plataformas mais utilizadas são sites e aplicativos de notícias (29%), pesquisa em sites de busca (27%), redes sociais (19%) e podcasts (9%).
Em expansão desde seu surgimento [1], o jornalismo on-line é um dos segmentos que mais cresce em todo o mundo. A pandemia de Covid-19 impulsionou o consumo de notícias on-line e a criação de novos veículos; entretanto, a migração do jornalismo para a internet vem ocorrendo há pelo menos duas décadas, muito baseada em discursos sobre inovação, relações com os públicos e estratégias de sustentabilidade, além da emergência de novos atores no ambiente midiático, a saber, empresas de tecnologia como Google, Facebook, Microsoft, Apple e Amazon.
Com o objetivo de compreender como os jornalistas on-line trabalham, expressam o seu trabalho e constroem suas carreiras – ou seja, como forjam suas identidades profissionais –, os pesquisadores Le Cam e Pereira realizaram uma investigação sobre a identidade transnacional dos jornalistas que atuam em mídias digitais. A partir de uma abordagem comparativa, analisaram dados coletados em entrevistas com jornalistas do Brasil e da França, e também do Quebec (Canadá) e da Bélgica, para traçar a sócio-história dos jornalistas on-line.
Lançado em 2022, o livro Um jornalista on-line mundializado: sócio-história comparativa é o nono volume da série Jornalismo e Sociedade, fruto de parceria do Programa de Pós-Graduação em Comunicação da Universidade de Brasília (UnB) com a editora florianopolitana Insular. Os autores, Florence Le Cam e Fábio Henrique Pereira, são pesquisadores da Université Libre de Bruxelles (Bélgica) e da Université Laval (Canadá), respectivamente. Ambos são coeditores da revista Sur le journalisme-About Journalism-Sobre jornalismo e têm como interesse de pesquisa comum a identidade profissional dos jornalistas. Com um conselho editorial formado por pesquisadores filiados a instituições brasileiras, canadenses, francesas, portuguesas e uruguaias, a série Jornalismo e Sociedade reúne obras que visam situar o jornalismo como uma construção social e uma prática sociodiscursiva.
Dividido em duas partes, o livro é composto de uma introdução, quatro capítulos e uma conclusão. A primeira parte, intitulada “Jornalistas: perfis, carreiras, ideologias”, engloba os dois primeiros capítulos, dedicados ao cenário do jornalismo on-line no Brasil e na França e às relações estabelecidas pelos jornalistas de veículos digitais com seus pares, suas fontes, seus públicos e com atores externos. A segunda parte, “Sócio-história da circulação dos discursos sobre o jornalismo on-line”, trata das narrativas sobre mudanças e incertezas no jornalismo a partir de pesquisas realizadas por instituições internacionais e da construção da identidade profissional dos jornalistas on-line por meio desses discursos.
A pesquisa foi conduzida a partir de um protocolo metodológico específico: a primeira etapa, realizada entre 2010 e 2014, é centrada em entrevistas semiestruturadas com jornalistas brasileiros e franceses. Foram entrevistados 20 profissionais (dez de cada país) que atuavam em redações digitais. Uma nova série de entrevistas foi feita em 2015 e 2016, seguindo o mesmo roteiro de perguntas. Mas, dessa vez, com os dois pesquisadores em conjunto; foram realizadas cinco entrevistas, três na Bélgica e duas no Brasil. Uma vez coletados esses dados, foi feita uma análise comparativa, que levou à identificação de similaridades entre as realidades dos jornalistas on-line dos países estudados.
No terceiro capítulo (o primeiro da Parte 2 do livro), os autores fazem uma análise sobre os discursos de mudança e incerteza no campo jornalístico, com base em relatórios do Pew Reasearch Center e da World Association of Newspapers and News Publishers (Wan-Ifra), instituições que promovem estudos e análises sobre a indústria midiática, suas tendências e caminhos futuros. Além disso, utilizaram observações de campo e entrevistas conduzidas com jornalistas do Brasil, França e Québec (Canadá) e entrevistas em profundidade, realizadas em 2020 com profissionais da Argentina, Brasil, Canadá, França e Portugal, bem como dados de pesquisas como o Perfil do Jornalista Brasileiro 2013 e de análises fotográficas de redações digitais.
A partir de uma ampla coleta de dados ao longo de mais de uma década, Le Cam e Pereira identificaram a constituição de uma identidade transnacional dos jornalistas on-line, baseada nas condições e processos de trabalho similares e pela circulação internacional de discursos sobre o jornalismo digital. Esses discursos versaram sobre inovação e necessidade de acompanhar os desenvolvimentos técnicos e tecnológicos, descrevendo o jornalismo como um objeto em permanente mutação. Esses temas apareceram nas falas dos jornalistas entrevistados e, de certa forma, foram fundamentais para moldar a maneira como eles enxergam a profissão, suas práticas cotidianas, condições de trabalho e território profissional.
Os pesquisadores holandeses Deuze e Witschge (2016) propõem compreender o jornalismo como um objeto em constante movimento, e destacam a “reorganização dos ambientes de trabalho; a fragmentação das redações; a emergência de uma sociedade ‘redacional’, e a ubiquidade das tecnologias midiáticas” (p. 9) como tendências que conduzem a um profissional jornalista mais individual do que institucional, no sentido de que o profissional se torna um “empreendedor de si mesmo”, com responsabilidades individualizadas, como é característico do capitalismo contemporâneo.
Enquanto seres profissionais, os jornalistas possuem uma identidade que é caraterizada por Ruellan (2017, p. 10) como “plural, herdeira da literatura, da estética pictural, da política e da sociologia”. Assim como os pesquisadores holandeses, Ruellan entende o jornalismo como em permanente mutação e compreende que suas ordens simbólicas são constantemente transformadas por grupos ou indivíduos. “O ser profissional é o resultado da história, de sua própria história, mas também de uma história maior do que ele, que finca suas raízes no passado” (Ruellan, 2017, p. 9); o jornalismo, construído e constituído entre diferentes discursos, transformou-se e legitimou-se como profissão a partir de paradigmas funcionalistas (modelos), interacionistas (processos) e também pela junção de fatores como modelos econômicos e estatutos sociais (Fidalgo, 2008).
Na perspectiva funcionalista, o ser jornalista é associado com as atividades desempenhadas pelos profissionais, como produção de notícias, defesa do interesse público e promoção da democracia (Le Cam; Pereira; Ruellan, 2019). A perspectiva interacionista, no entanto, compreende que o jornalismo “sobreviveu estabelecendo sua especificidade e relações de poder com seu ambiente” (Le Cam; Pereira; Ruellan, 2019, p. 3). É neste paradigma – que tem como princípio o entendimento de que a vida profissional depende e está em constante interação com as trajetórias biográficas, e que os grupos profissionais se reconhecem a partir de seus parceiros (Fidalgo, 2008) – que se insere a pesquisa desenvolvida por Le Cam e Pereira (2022).
Partindo das entrevistas realizadas para a pesquisa, os autores afirmam que a identidade dos jornalistas on-line é permanentemente negociada e renegociada, e é afetada pela juvenização da profissão – dado identificado também pela pesquisa do Perfil (Lima et al., 2022), precarização das condições de trabalho, aumento das competências profissionais exigidas, baixos salários e pelas configurações materiais das redações, observações que vão ao encontro do que apontam Deuze e Witschge (2016). Nos discursos internacionais sobre jornalismo, os autores ressaltam transformações na concepção de público (que se desloca de um leitor esclarecido para um consumidor de notícias e conteúdos) e nos modelos econômicos adotados pelas organizações jornalísticas, além da emergência de novos formatos, redes sociais e mídias colaborativas (Le Cam; Pereira, 2022).
Os jornalistas on-line compartilham valores tradicionais da profissão, como compromisso com a verdade, defesa do interesse público e autonomia jornalística; esses valores são, também, questionados pelos entrevistados, que “se dizem pressionados a produzir, a seguir o fluxo de notícias, e são ‘encorajados’ a adotar a polivalência e a multi-competência e a difundir notícias produzidas por outros atores nas redes sociais” (Le Cam; Pereira, 2022, p. 105). Eles também são marcados pelas relações que estabelecem com seus pares (veículos concorrentes e colegas de profissão), suas fontes e seus públicos, além de atores como dispositivos e ferramentas tecnológicas, departamentos de marketing e recursos humanos das organizações, e os discursos sobre crise e inovação no jornalismo (Le Cam; Pereira, 2022).
A pesquisa de Le Cam e Pereira identificou a existência de uma identidade transnacional dos jornalistas on-line, que os autores descrevem como “mundializados”. Apesar das especificidades de cada país, as práticas, condições e processos de trabalho são mais semelhantes do que diferentes, e há um reconhecimento dos profissionais dos veículos digitais em meio às mudanças e permanências de suas práticas ao longo de mais de uma década. Embora centrada nos cenários brasileiro e francês, a obra demonstra como o jornalismo on-line se constitui no imaginário social e se estrutura ao longo do tempo, constituindo uma comunidade interpretativa internacional que ultrapassa fronteiras e temporalidades especialmente devido à internet, ambiente que contribui para a mundialização e estruturação das dinâmicas profissionais e identitárias dos jornalistas on-line.
Notas
[1] Embora seja possível falar de jornalismo digital desde a década de 1970 (Carlson, 1993), o livro resenhado e este artigo tratam do jornalismo on-line contemporâneo, resultante do processo de informatização das redações que se deu especialmente a partir dos anos 1990, com a introdução de computadores e, posteriormente, da internet.
Artigo submetido em 01/07/2024 e aceito em 16/10/2024.
Referências
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