Um elogio da pesquisa:
resenha de Marxismo cultural e estudos de mídia, de Otávio Daros
Arthur Freire Simões Pires1
Resumo
Resenha de Marxismo cultural e estudos de mídia: trajetória e análise da obra de Douglas Kellner, de Otávio Daros. A obra se propõe a fazer uma investigação acerca do percurso e das contribuições desse destacado teórico estadunidense que, por circunstâncias explicadas no livro, acabou se tornando um teórico da Comunicação. O livro se divide, basicamente, entre uma contextualização do desenvolvimento desse autor enquanto pensador (identificando, assim, quais foram as influências, de onde partiu e quais os atravessamentos sobre seu pensamento) e uma exegese do que Kellner presta ao campo da Comunicação. Sem poupar críticas, Daros aponta eventuais generalizações e contradições do autor estudado, além de salientar as contribuições que, de fato, capilarizaram-se no campo e, até hoje, servem como referencial teórico do estudo de fenômenos midiáticos. O autor, ainda que jovem, demonstra muita capacidade e domínio. Excetuando pequenos deslizes, é um volume que apresenta o desenvolvimento de Douglas Kellner e tece uma análise minuciosa sobre seu legado para o campo da Comunicação. Foi constatado que se trata de uma obra que poderá facilmente ser incorporada a bibliografias acadêmicas em disciplinas da graduação e pós-graduação em Comunicação voltadas para a Teoria da Comunicação ou História do Pensamento em Comunicação.
Palavras-chave
Teoria da Comunicação; História das ideias; História do pensamento em Comunicação; Douglas Kellner; História do pensamento.
1 Doutorando e mestre em Comunicação pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUCRS), graduado em Jornalismo pela Universidade Federal de Pelotas (UFPel). E-mail: grohsarthur@gmail.com.
Juiz de Fora, PPGCOM – UFJF, v. 18, n. 2, p. 207-212, MAI./AGO. 2024 DOI 10.34019/1981-4070.2024.v18.44509
A praise of research:
review of Cultural Marxism and Media Studies, by Otávio Daros
Arthur Freire Simões Pires1
Abstract
Book review of Otávio Daros’s Marxismo cultural e estudos de mídia: trajetória e análise da obra de Douglas Kellner, de Otávio Daros. The work aims to investigate the trajectory and contributions of this prominent American theorist who, due to circumstances explained in the book, ended up becoming a Communication theorist. The book is basically divided between a contextualization of this author's development as a thinker (thus identifying the influences, his starting points, and the intersections in his thought) and an exegesis of what Kellner provides to the field of Communication. Without sparing criticism, Daros points out possible generalizations and contradictions in the studied author, in addition to highlighting the contributions that have, in fact, permeated the field and still serve today as theoretical references for the study of media phenomena. The author, although young, demonstrates great ability and mastery. With a few minor slips aside, it is a volume that presents the development of Douglas Kellner and provides a thorough analysis of his legacy to the field of Communication. It has been noted that this work could easily be incorporated into academic bibliographies for undergraduate and graduate courses in Communication focused on Communication Theory or the History of Thought in Communication.
Keywords
Communication Theory; History of ideas; History of thought in Communication Studies; Douglas Kellner; History of thought.
1 Doutorando e mestre em Comunicação pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUCRS), graduado em Jornalismo pela Universidade Federal de Pelotas (UFPel). E-mail: grohsarthur@gmail.com.
Juiz de Fora, PPGCOM – UFJF, v. 18, n. 2, p. 207-212, MAI./AGO. 2024 DOI 10.34019/1981-4070.2024.v18.44509
Resenha
Tenho como propósito nesta resenha discutir o livro Marxismo cultural e estudos de mídia: trajetória e análise da obra de Douglas Kellner, de Otávio Daros. O texto, segundo o autor, está vinculado aos estudos de história das ideias — contudo, pensado a partir das raízes comunicacionais da formação de Daros — e tem como desafio, como apresentado durante o primeiro capítulo, detectar e estruturar as contribuições de Kellner para os estudos comunicacionais e de cultura, situar as ideias do filósofo e examinar e discutir seu arcabouço teórico. Furto-me o direito de dizer aos leitores, antecipadamente, que o trabalho evidencia o elevado domínio de seu escritor sobre o tema — formado em Jornalismo, mestre e recentemente doutor em Comunicação Social — que, ainda no início de sua carreira, desponta como um dos grandes nomes do campo.
Há um evidente esforço — sugerido a partir do sumário e confirmado durante a leitura capítulo a capítulo — em elaborar gradativamente um aprofundamento de níveis de contextualização. O autor disserta, em outras palavras, sobre a difusão do pensamento marxista no continente europeu e sua penetração nos Estados Unidos (EUA), descrevendo o status quo político do país naquele período — marcado pela ascensão da New Left e pela influência de Herbert Marcuse —, em seu turno, caracterizado por Daros (2022, p. 43) como “de fervor político e embate de ideias”. O livro evidencia, além disso, o dissenso com a ortodoxia marxista naquele tempo histórico, o que ocasionou, como consequência, o desabrochar de novas perspectivas intelectuais e ideológicas (derivadas de pontos de vistas marxistas e frankfurtianas) na sociedade estadunidense da época. Influenciado por esse cenário — assim como preocupado com a sofisticação tecnológica, que, no seu entender, diversificava as formas capitalistas de dominação e repressão —, Kellner, dessa maneira, afasta-se de seus estudos sobre fenomenologia e existencialismo, aos quais se dedicava até então, e passa a se dedicar aos estudos do capitalismo avançado (qualificando-se como, segundo Daros, um teorizador) na esteira do viés crítico [1].
Durante esse trabalho de garimpo da trajetória intelectual de Kellner, Daros destaca com nitidez a influência dos clássicos frankfurtianos no pensamento kellneriano (e seu amadurecimento), destacando, em especial, as reflexões propostas a fim de preencher lacunas e arbitrariedades percebidas pelo teórico estadunidense. A principal delas critica a suposta visão classista de Adorno e alguns de seus correligionários acerca da cultura, que, ao que consta, foi paradigmática, havendo “a necessidade de aprofundamento analítico, para que não se confiram aspectos emancipatórios apenas a uma cultura tida como superior, o que reproduz uma visão simplista e limitada” (Daros, 2022, p. 60). Kellner, conforme exposto pelo autor, procurou, a fim de suplantar as lacunas e arbitrariedades da visão que o precedeu, chamar a atenção para o papel de dominação exercido pelos meios de comunicação de massa face à conjuntura estadunidense de larga produção de mercadorias culturais — as quais, segundo o filósofo estadunidense, favoreceriam esse processo.
Ao longo dos capítulos que precedem a análise mesma sobre o pensamento de Kellner, Daros realiza uma síntese consistente do pensamento dos autores e vertentes comentados por Kellner. Posto de outra forma, há uma preocupação do autor da obra em apresentar aos leitores a construção do pensamento de Kellner tal como ele é lido dentro dos estudos de Comunicação. O pesquisador brasileiro explica como as reflexões do pensador estadunidense são atravessadas por determinadas perspectivas intelectuais e como Kellner nelas se insere (afastando-se ou se aproximando). Trata-se de um esforço de pesquisa elogiável, principalmente, porque tanto enriquece a análise quanto demonstra maturidade no desenvolvimento da investigação; distanciando-a de trabalhos precários que subjazem a uma visão teleológica das ideias.
Em meio ao processo de apropriação, assim sendo, Kellner buscou incorporar à sua proposta teórica aspectos que julgava mais avançados em relação à tradição frankfurtiana. Há de se ressaltar sobre isso que Daros retoma, como efeito colateral, a influência de intelectuais envolvidos na assim chamada New Left [2], pois, a partir da apreensão de Kellner sobre John Dewey e, em especial, Paulo Freire, o autor do livro salienta as contrapartidas empíricas do conceito de Pedagogia Crítica da Mídia — sob a forma de media literacy [3]. A proposta aparece como uma resposta a questões historicamente colocadas e, dentre elas, o despreparo do público quanto as nuances do processo de dominação e opressão propagado pelas diferentes mídias através de seus produtos e táticas. Pois, como descrito pelo autor da obra, são muitas vezes “absorvidas inconscientemente pelos leitores/espectadores” (Daros, 2022, p. 114). Dessa maneira, a obra de Kellner visa possibilitar que o público, munido por uma compreensão multiperspectívica, passe a exercer uma leitura crítica daquilo que lhe é entregue e, ao mesmo tempo, despoje-se de visões totalizantes (como as fraquezas evidenciadas por Kellner, por exemplo, sobre a indústria cultural, de Adorno e Horkheimer). Esse movimento, portanto, está vinculado ao desencastelamento dos intelectuais, como defendido por Charles Wright Mills e o próprio Dewey (Brouwer; Squires, 2008), pois almeja (assim como estimula) a materialização de uma espécie de emancipação intelectual sobre essa cultura imposta pelas mídias. Isso é, aliás, catalisado por uma perspectiva otimista, pois, ao fim do século XX, Kellner via as tecnologias como elementos que poderiam possibilitar “a oportunidade de reivindicar a educação como um espaço público de autonomia pessoal e pluralidade” aos discentes (Daros, 2022, p. 118). A perspectiva kellneriana, portanto, entendia como fundamental que a reflexão se espraiasse, para além dos universitários, facilitando acesso a essa ideia de emancipação para mais setores da sociedade.
O oitavo capítulo se propõe a discutir o arcabouço de análises do estadunidense a partir do cinema, da televisão, do espetáculo e, ao fim, pensar epistemologicamente os exames kellnerianos. Até esta parte do texto, continua o consistente trabalho de exposição, fazendo breves intervenções sobre as considerações do autor estudado. Quando se insere, salienta limitações, pontos cegos e/ou contradições no processo de sustentação, como, ao fim do capítulo, é evidenciado que, de modo gradativo, o estadunidense abdica da tradição de crítica imanente para uma transcendente — “que passa a dominar os projetos” a partir de Media Spectacle “do autor” (Daros, 2022, p. 155). Daros, na sequência, dá robustez às suas críticas sobre o legado de Kellner, sendo, a primeira, uma limitação no que se refere à depreensão do estadunidense sobre Debord, caindo “nas generalidades que ele mesmo constatou” (Daros, 2022, p. 160). Outro ponto de questionamento se dá na ambição de estudar a totalidade das mídias que, no entanto, não se verifica; afinal, o filósofo “se detém no exame da televisão e do cinema” (Daros, 2022, p. 169), deixando qualquer outro meio fora da análise. O exame, através de um esforço dialético mais direto, confronta Kellner com alguns de seus críticos e/ou comentadores, realizando um balanço e oferecendo uma análise dos argumentos postos à baila por ambas as partes. Nesse processo, Daros (2022, p. 177) não deixa de salientar quando as críticas são injustas ou vazias: ele é chamado de esquerdista, “mas, no momento seguinte, não acrescenta argumento à discussão contra a proposta de teoria da cultura da mídia”.
Considerando o que foi exposto, entendo que a obra resenhada atende a seus objetivos com bastante êxito ao passo que realiza um exame profundo no largo arcabouço de Kellner. O pouco que pode se questionar ou alertar é periférico ou estilístico, então, não interfere na qualidade da publicação. A título de ilustração, Daros (2022, p. 32) assume a Europa Ocidental como o centro referente maior, refletindo em afirmações sem argumentação de que as regiões do Leste e Sul europeus são “regiões mais atrasadas”. Além disso, entendo que a tradução de media literacy – conforme a teoria linguística, para alfabetização – é uma escolha equivocada, pois sustento que o conceito adequado para se referir ao desenvolvimento de habilidades vinculadas a competências básicas é o do letramento. A alfabetização, segundo Soares (2004), está ancorada no processo de familiarização com um sistema de símbolos, nesse caso, o de como as mídias operam no processo de imposição cultural.
Com uma redação madura, Marxismo cultural e estudos de mídia carrega excelência na argumentação, tendo como principal valência o diagnóstico sobre o desenvolvimento do pensamento kellneriano. Trata-se de um texto corajoso porque Otávio Daros não se omite em criticar um grande autor, e elegante, pois as críticas não são, em momento algum, destrutivas. Sem exaltação ou nem execração, a obra se candidata a integrar diferentes relações bibliográficas vinculadas à Teoria da Comunicação, bem como um documento exemplar de como uma pesquisa de história do pensamento pode ser realizado, podendo ser rotulada, ao fim e ao cabo, como um elogio ao exercício de pesquisar.
Notas
[1] Convém destacar em nota a escolha da literatura utilizada a fim de fundamentar o embasamento histórico. Com destaque, dentre outros, para a obra Os últimos intelectuais, do historiador estadunidense Jacoby (1990), que apresenta um panorama dos intelectuais públicos no momento em que os Estados Unidos se assentavam em subúrbios e que as universidades fagocitavam a intelligentsia que, outrora, ocupava os jornais, as revistas e demais plataformas do debate público.
[2] New Left foi um movimento político surgido por volta de 1956, mas que teve seu auge entre as décadas de 60 e 70 do século XX. Com grande adesão de intelectuais, a New Left basicamente propunha uma alternativa, à esquerda, em relação às duas ideologias dominantes da época: “o imperialismo ocidental e o stalinismo” (Hall, 2010). Segundo Hall (2010) a New Left “representou a união de duas tradições relacionadas, mas diferentes — também de duas experiências ou gerações políticas. Uma foi a tradição que eu chamaria, por falta de um termo melhor, de humanismo comunista […]. A segunda é talvez mais bem descrita como uma tradição socialista independente, cujo centro de gravidade estava na geração estudantil de esquerda da década de 1950 e que manteve alguma distância das afiliações “partidárias’”.
[3] Para permanecer fiel aos argumentos do autor, Daros (2022, p. 119) define que na proposta de media literacy, “trata-se de um campo, relativamente recente, ainda em construção, que está despertando crescentemente o interesse de novos estudos”.
Artigo submetido em 08/05/2024 e aceito em 08/08/2024.
Referências
BROUWER, D.; SQUIRES, C. Public Intellectuals, Public Life, and the University. In: ETZIONI, A.; BOWDITCH, A. Public Intellectuals: an endangered species?. Lanham: Rowman & Littlefield Publishers, Inc., 2008.
DAROS, O. Marxismo cultural e estudos de mídia: trajetória e análise da obra de Douglas Kellner. Curitiba: UFPR, 2022.
HALL, S. Life and times of the first New Left. New Left Review, n. 61, 2010. Disponível em: https://l1nq.com/9BTx6 . Acesso em 5 fev. 2024.
JACOBY, R. Os últimos intelectuais: a cultura americana na Era da Academia. São Paulo: Edusp/Trajetória Cultural, 1990.
SOARES, M. Letramento e alfabetização: as muitas facetas. Revista Brasileira de Educação, n. 25, jan-abr, 2004. p. 5-17. Disponível em: http://www.scielo.br/pdf/rbedu/n25/n25a01.pdf