Netflix e mercado da nostalgia:
acionamentos nostálgicos da Guerra Fria em Stranger Things
Letícia Xavier de Lemos Capanema1 e Luiz Alberto Rodrigues Gonçalves2
Resumo
Este estudo se insere no campo das investigações sobre a memória midiatizada, em especial, a nostalgia na Cultura Pop, destacando como objeto de análise a série Stranger Things (Netflix, 2016-). A obra se caracteriza pelo forte apelo nostálgico aos anos 1980 e por ser resultante da análise de hábitos e preferências de consumo extraídos de dados de usuários da plataforma Netflix. Assim, busca-se examinar aspectos estéticos, narrativos e discursivos da representação da Guerra Fria na série, explorando suas conexões com os conceitos de nostalgia restauradora e nostalgia reflexiva definidos por Boym (2017; 2018). A análise se concentra na terceira e na quarta temporadas, destacando cenas e personagens com o fim de examinar os acionamentos nostálgicos na representação do conflito entre os Estados Unidos e a União das Repúblicas Socialistas Soviéticas, bem como suas relações com os cenários geopolíticos dos anos 1980 e do governo de Donald Trump (2017-2021). O estudo lança luz sobre o atual mercado da nostalgia na cultura das séries, explorando as relações entre passado e presente, assim como a criação de discursos nostálgicos restauradores e reflexivos.
Palavras-chave
Guerra Fria; Nostalgia; Stranger Things; Mercado da Nostalgia; Memória midiatizada.
1 Doutora em Comunicação e Semiótica pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo. Professora do Curso de Cinema e Audiovisual e do Programa de Pós-Graduação em Comunicação da Universidade Federal de Mato Grosso (UFMT). E-mail: leticia.capanema@ufmt.br.
2 Mestrando do Programa de Pós-Graduação em Comunicação da Universidade Federal de Mato Grosso (UFMT). Membro do Grupo de Estudos em Cinemas e Audiovisuais (GECAS/UFMT). E-mail: betomkt@gmail.com.
Juiz de Fora, PPGCOM – UFJF, v. 18, n. 2, p. 75-95, MAI./AGO. 2024 DOI 10.34019/1981-4070.2024.v18.43539
Netflix and the nostalgia market:
nostalgic triggers of the Cold War in Stranger Things
Letícia Xavier de Lemos Capanema1 and Luiz Alberto Rodrigues Gonçalves2
Abstract
This study falls within the field of investigations into mediatized memory, especially, nostalgia in Pop Culture, highlighting the series Stranger Things (Netflix, 2016-) as an object of analysis. The show is characterized by its strong nostalgic appeal to the 1980s decade and for being the result of the analysis of consumption habits and preferences extracted from user data from the Netflix platform. The aim is to examine esthetic, narrative and discursive aspects of the representation of the Cold War in the series, exploring its connections with the concepts of restorative nostalgia and reflective nostalgia defined by Boym (2017; 2018). The analysis focuses on the third and fourth seasons, highlighting scenes and characters in order to examine the nostalgic triggers in the representation of the conflict between the United States and the Union of Soviet Socialist Republics, as well as its relations with the geopolitical scenarios of the 1980s and the Donald Trump's government (2017-2021). The study sheds light on the current nostalgia market in series culture, exploring the relationships between past and present, as well as the creation of restorative and reflective nostalgic discourses.
Keywords
Cold War; Nostalgia; Stranger Things; Nostalgia Market; Mediatized memory.
1 Doutora em Comunicação e Semiótica pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo. Professora do Curso de Cinema e Audiovisual e do Programa de Pós-Graduação em Comunicação da Universidade Federal de Mato Grosso (UFMT). E-mail: leticia.capanema@ufmt.br.
2 Mestrando do Programa de Pós-Graduação em Comunicação da Universidade Federal de Mato Grosso (UFMT). Membro do Grupo de Estudos em Cinemas e Audiovisuais (GECAS/UFMT). E-mail: betomkt@gmail.com.
Juiz de Fora, PPGCOM – UFJF, v. 18, n. 2, p. 75-95, MAI./AGO. 2024 DOI 10.34019/1981-4070.2024.v18.43539
Introdução
Embora a nostalgia seja um fenômeno que atravessa as sociedades em suas variadas épocas, é com a indústria cultural que ela alcança níveis massivos, participando de modo significativo na construção de memórias coletivas (Halbwachs, 1990). A midiatização da memória (Bonin, 2006) – impulsionada pela emergência da imprensa, da fotografia, do cinema e dos diversos formatos audiovisuais e seus atuais modos de circulação – marca a relação das sociedades contemporâneas com o passado, dando novos contornos aos problemas da nostalgia. Para pensá-la, é preciso considerar as transformações da temporalidade social, as mudanças tecnológicas, econômicas e as novas práticas de consumo e de circulação de bens culturais. Assim, dentre as várias características da atual indústria cultural, destacamos o mercado da nostalgia (Ribeiro, 2018), sua instrumentalização (Castellano e Meimaridis, 2017) por plataformas de streaming, como a Netflix, e o retorno nostálgico aos anos 1980 (Bressan Junior e Lessa, 2018), fenômenos que marcam a cultura pop [1] contemporânea, em especial, a cultura das séries [2].
Neste estudo, compreendemos os acionamentos nostálgicos como um conjunto de estratégias (mercadológicas, estéticas, narrativas e discursivas) que apelam para o campo das memórias afetivas, sejam elas originárias de experiências vividas ou herdadas/transmitidas. Os acionamentos nostálgicos em relação à década de 1980 podem ser identificados em diversos produtos audiovisuais contemporâneos. O cinema, por exemplo, tem dado grande importância ao fenômeno da nostalgia, reavivando não apenas estéticas e universos narrativos, mas também astros de antigas franquias com produções recentes como Top Gun: Maverick (2022), Jurassic World: Domínio (2022) e Indiana Jones e o Chamado do Destino (2023). Já nas plataformas de streaming, temos assistido ao retorno de antigos sucessos da televisão, como Twin Peaks: the return (2017) e Gilmore Girls: A Year in the Life (2016), assim como a criação de séries originais que se passam na década de 1980, como This is Us (2016-2022), ou séries derivadas de produções dos anos 1980, como Cobra Kai (2018), produzida a partir da franquia de filmes Karatê Kid, e Stranger Things (2016-), objeto deste estudo.
Stranger Things é uma série criada em 2016 pelos irmãos Matt Duffer e Ross Duffer repleta de referências a contextos históricos e à cultura pop dos anos 1980. O enredo aborda as aventuras fantásticas de pré-adolescentes na pequena cidade de Hawkins (EUA), no início dos anos 1980, atravessadas por "teorias conspiratórias envolvendo o governo americano, extraterrestres, experimentos científicos, sobrenatural" (Ribeiro, 2018, p. 5). Dentre os elementos referenciados na obra, destacamos o contexto geopolítico da Guerra Fria – presente como conjuntura de fundo em toda a série –, buscando compreender os discursos que atravessam suas reconfigurações estéticas e narrativas, bem como suas relações com o cenário estadunidense sociopolítico contemporâneo.
A Guerra Fria foi um conflito político-ideológico entre os Estados Unidos (EUA) e a União das Repúblicas Socialistas Soviéticas (URSS) surgido com o fim da Segunda Guerra Mundial e que se estendeu pelo período de 1947 a 1991. Esse contexto é caracterizado por uma tensa polarização geopolítica em dois blocos, um alinhado ao capitalismo, capitaneado pelos EUA, e outro, ao socialismo, tendo a URSS como potência central. Ainda que não tenha resultado em embates bélicos diretos entre as duas potências, a Guerra Fria se caracterizou pelas interferências dos EUA e da URSS em diversos conflitos regionais que envolviam questões ideológicas e geopolíticas. Além disso, o período é também marcado pela prática da espionagem, por embargos econômicos, propaganda ideológica, desenvolvimento nuclear e a chamada corrida tecnológica e espacial. Como veremos, muitos desses elementos são representados em Stranger Things. A temática da Guerra Fria, também recorrente em produtos televisivos e cinematográficos da década 1980, tem ambientação nas quatro temporadas da série, com maior ênfase na terceira e na quarta.
Ao examinar os modos como Stranger Things propõe acionamentos nostálgicos relacionados ao conflito geopolítico, levantamos as seguintes indagações: que tipo de relação nostálgica é criada pela série em sua representação da Guerra Fria? Ao trazer referências temáticas, narrativas e estéticas, como a série cria um discurso sobre o conflito? Como as representações da Guerra Fria presentes na série dialogam com contextos pretéritos e contemporâneos?
Para explorar essas questões, são explicitados os principais eixos teóricos-conceituais deste estudo, como as classificações sobre o fenômeno da nostalgia, erigidas pela teórica da cultura Boym (2001; 2017) e comentadas por Oliveira (2016), e as discussões sobre o viés nostálgico que atravessa certos produtos da atual indústria televisiva, desenvolvidas pelas pesquisadoras Armbruster (2016) e Pallister (2019). Nos amparamos também no trabalho de Niemyer sobre mídia e nostalgia (2014) e nas reflexões de Ribeiro (2018) sobre o mercado da nostalgia. Em seguida, é apresentada uma breve contextualização da Netflix, ressaltando a maneira como a plataforma tem instrumentalizado a nostalgia (Castellano e Meimaridis, 2017), em especial, por meio do uso de mineração de dados de usuários para acionamentos nostálgicos de forte apelo a públicos multigeracionais (Bressan Junior e Lessa, 2018). Por fim, a análise se volta a aspectos estéticos, narrativos e discursivos da representação do conflito geopolítico em personagens e cenas extraídas da terceira e quarta temporadas de Stranger Things. Por meio da análise estilística (Ferraraz e Hergesel, 2017) e contextual o estudo nos permite observar os modos com que a série permeia discursos, colocando em relação passado e presente, isto é, provocando sentidos e reverberações entre representações de elementos dos anos 1980 e contextos atuais.
Modos da nostalgia
A nostalgia é um fenômeno que se relaciona diretamente com a maneira pela qual o ser humano cria afetos e discursos para lidar com o passado. Embora não seja possível determinar desde quando esse sentimento faz parte da sociedade, afetando individual e coletivamente as pessoas, há como identificar o período histórico em que a palavra foi utilizada pela primeira vez. Ao contrário do que se supõe – por suas raízes gregas nostos de “voltar à casa” e algia, que significa anseio – o vocábulo nostalgia foi criado em 1688 pelo erudito suíço Johanes Hofer em sua tese de medicina. Segundo Boym:
Contrariamente à nossa intuição, nostalgia veio da medicina, não da poesia ou da política. Não nos ocorreria pedir uma receita médica para nostalgia. Ainda no século XVII, a nostalgia era considerada uma doença curável, semelhante a uma severa gripe comum. Médicos suíços acreditavam que ópio, sanguessugas e uma viagem aos Alpes suíços curariam os sintomas nostálgicos. (2017, p. 153).
Se o termo nostalgia surge para nomear uma patologia clínica, com o passar do tempo, ele passa a adquirir um significado mais amplo, referindo-se a uma condição incurável da modernidade (Boym, 2001).
A nostalgia não é anti-moderna; ela não é necessariamente oposta à modernidade, mas sim contemporânea a ela. Nostalgia e progresso são como Jekyll e Hyde: pares e imagens espelhadas um do outro. A nostalgia não é apenas uma expressão de saudade local, mas resultado de uma nova compreensão do tempo e do espaço (…). (Boym, 2017, p. 154)
De uma doença que podia ser curada de formas tão peculiares, como resgata historicamente Boym, ao sentido de desejo de voltar para casa adquirido no século XX, a nostalgia representa um sintoma de nossa época, uma emoção histórica. Sobretudo, um manejo do tempo como espaço, tornando possível revisitar aquela “casa” (nostos) já familiar, recusando-se a se “render a irreversibilidade do tempo que atormenta a condição humana.” (Boym, 2001, p. 15) (tradução nossa). [3]
A nostalgia é um sentimento complexo relacionado ao anseio pelo retorno para um outro tempo, geralmente para a infância, quando a temporalidade era percebida lentamente. O passado é para os nostálgicos quase sempre visto de forma retrospectiva, a partir das fantasias sobre o tempo que se foi definitivamente. A nostalgia pode levar a um estado de recolhimento a “uma dimensão utópica – que apenas não é mais dirigida ao futuro. Algumas vezes, nem sequer é diretamente dirigida ao passado, mas sim tangencialmente. O nostálgico sente-se sufocado dentro dos limites convencionais de tempo e espaço” (Boym, 2017, p. 154). Esse sentimento leva à melancolia em seu caráter de consciência individual e autocentrada. Mas a nostalgia também pode ser prospectiva, sob o viés de transformação dessas fantasias pretéritas, com os pés fincados nas necessidades do presente, na perspectiva de um futuro e na responsabilidade em relação à sua chegada. Além disso, ela pode ser permeada pela relação entre a biografia individual e a biografia de grupos ou nações, entre as memórias pessoais e coletivas [4].
Assim, de acordo com Boym (2001; 2017), o fenômeno da nostalgia pode ser compreendido em dois modos operantes: o restaurador e o reflexivo. Para a autora, a nostalgia restauradora é centrada no nostos (casa), busca a reconstrução da terra perdida e apresenta dois eixos principais: a restauração das origens e a teoria da conspiração. Boym identifica na nostalgia restauradora a noção maniqueísta do bem contra o mal, sendo o inimigo aquele que se apresenta contra essa casa do eterno retorno. Já a nostalgia reflexiva, segundo a autora, tem como base a algia (o anseio) e adia esse retorno ao lar, a partir das contradições geradas ao se olhar para o passado.
Oliveira (2016) ressalta algumas tendências e estruturas narrativas das tipologias propostas por Boym. Em sua síntese, o autor aponta que a nostalgia restauradora busca a reconstrução trans-histórica do lar perdido, vincula-se às noções de verdade e tradição, tendo sua retórica mais voltada a valores morais do que ao passado em si, e apresenta-se muitas vezes ligada a uma simplificada noção de identidade nacional. Por sua vez, a nostalgia reflexiva, pode ser irônica e inconclusa, volta-se ao tempo histórico, considera a irrevocabilidade do passado, e é ligada à memória social.
Contudo, como ressalta Boym (2001), os modos da nostalgia restauradora e reflexiva não são exatamente opostos ou binários. O sentimento nostálgico pode ser simultaneamente restaurador e reflexivo. Para Oliveira (2016), ainda que a autora busque fazer distinções entre as tipologias nostálgicas, não é possível traçar uma linha exata que demarque a fronteira entre elas. Como veremos na análise de Stranger Things, as categorias propostas por Boym podem auxiliar a observar as complexas relações que se estabelecem em acionamentos nostálgicos, considerando uma ampla modulação e coexistência entre a nostalgia restauradora e a reflexiva.
Nostalgia e os novos modos de consumo midiático
Como nos lembra Bonin (2006), os problemas da memória cultural ganham outras nuances à medida que surgem novas mídias que lhe possibilitam não só outras materialidades, mas também “produzem novas modalidades narrativas, enquadramentos distintos da memória de acordo com lógicas de operações das mídias, com seus gêneros e formatos” (Bonin, 2006, p. 138). A memória cultural midiatizada alimenta as práticas nostálgicas ao fornecer repertórios e representações do passado que são, muitas vezes, comercializados para apelar ao desejo das pessoas de reconectar-se emocionalmente com elementos familiares de épocas pretéritas. Essa relação entre memória midiatizada e mercado da nostalgia destaca como as mídias desempenham um papel crucial na formação e na exploração das lembranças (e esquecimentos) culturais.
Autoras como Niemeyer e Wentz (2014) têm identificado uma certa tendência nostálgica no atual panorama midiático. As autoras investigam como diferentes formas de mídia (televisão, cinema, internet) evocam sentimentos nostálgicos e como esses sentimentos são utilizados e manipulados na cultura contemporânea. Discute-se o papel da nostalgia na formação de identidades pessoais e coletivas, argumentando que a mídia não apenas reflete, mas também molda e intensifica nossos anseios nostálgicos.
A obsessão da cultura pop contemporânea pelo passado é também observada por Reynolds (2011), sendo por ele denominada de “retromania”. Tal fenômeno, segundo o autor, é potencializado pela “cultura do arquivo”, ou seja, práticas de acesso a arquivos digitais de música, filmes entre outros que permitem uma curadoria pessoal do passado, transformando a maneira como consumidores interagem com a cultura.
O recente “boom de nostalgia” (Neimyer, 2014) e o fenômeno da “retromania” (Reynolds, 2011) se amparam, entre outros fatores, em importantes alterações nos modos de circulação e consumo de produtos midiáticos. Novas tecnologias (como os processos de digitalização, compactação e arquivamento) e novas plataformas de mídia (como o streaming, redes sociais e comunidades on-line) facilitaram o acesso, a redistribuição e o consumo de conteúdos pretéritos.
A utilização do apelo nostálgico em conteúdos consumidos em massa é evidentemente anterior à emergência dos dispositivos digitais em rede. No entanto, sua presença se intensifica com o advento de plataformas on-line, em especial, com a emergência do streaming. A ampliação da oferta de conteúdos nostálgicos se relaciona, entre outros fatores, à grande capacidade de armazenamento e distribuição de arquivos dentro dessas plataformas, que se tornam imensos catálogos de filmes e programas televisivos de diversas épocas e procedências, acessíveis ao usuário por meio de mecanismos de busca e de recomendação. Assim, as plataformas de streaming potencializam o mergulho nostálgico no imenso oceano de conteúdos armazenados e catalogados.
Para a pesquisadora de mídia e cultura nostálgica Armbruster (2016), a conexão entre nostalgia e a indústria televisiva pode ser categorizada de duas formas: conteúdos criados intencionalmente com acionamentos nostálgicos – como é o caso de Stranger Things – e aqueles que reativam conteúdos de outras épocas, como revivals/reboots de séries – por exemplo, o revival de quatro episódios Gilmore Girls: A Year in the Life (Netflix, 2016). Para Armbruster (2016) a nostalgia pode ser também categorizada pelo público, em relação a sentimentos acionados ao assistir a filmes ou séries que não foram criados intencionalmente nostálgicos, mas que, ao serem assistidos décadas depois, oferecem a esse público sentimentos de nostalgia, como por exemplo a série Friends (1994-2004), hoje disponibilizada em plataformas de streaming.
Hutcheon e Valdés reforçam a importância do estado de espírito e a reação, afirmando que “nostalgia não é algo que você ‘percebe’ em um objeto; é o que você ‘sente’ quando dois momentos temporais diferentes, passado e presente, se juntam para você e, muitas vezes, carregam um peso emocional considerável” (2000, p. 22)(tradução nossa) [5].
Como afirma Pallister (2019), na atual cultura pop, é notável a amplificação da oferta de produtos com atmosfera nostálgica a partir do advento de serviços de streaming. Conforme explica a autora, o papel da chamada plataforma de streaming, especialmente a Netflix, é tornar-se “um produtor de nostalgia e um ponto de acesso para respostas nostálgicas a conteúdos previamente circulados” (2019, p. 7). Seja pelo catálogo de filmes e séries produzidos em décadas anteriores e que adquiriram a aura nostálgica, seja pela produção de conteúdo original com viés nostálgico, a Netflix tornou-se uma potência comercial, utilizando-se mercadologicamente do fenômeno da nostalgia.
Stranger Things, big data e a instrumentalização da nostalgia
A nostalgia é uma ferramenta central para o ambiente das plataformas de streaming, sendo propícia a sucessos de audiência e engajamento nas redes sociais devido ao seu forte apelo afetivo. Alguns filmes e séries utilizam elementos nostálgicos para criar um elo sentimental com o público, já conectado com qualquer elemento que traga à tona o saudosismo. Como afirmam Castellano e Meimaridis, a instrumentalização da nostalgia tem se mostrado “como um importante recurso de aquisição e manutenção de espectadores a partir da apropriação do passado como um expediente rentável” (2017, p. 74). Mais do que isso, a mercantilização da nostalgia na cultura pop é capaz de cooptar públicos multigeracionais que se sentem atraídos pela reconexão com memórias vividas ou mesmo herdadas. Como nos lembra Ribeiro, no mercado da nostalgia, “o passado – sobretudo através de seu apelo emocional – vende muito. Mobiliza de tal forma a economia de bens materiais e simbólicos de diversos países que é mesmo difícil de mensurar” (2018, p. 10). Dessa maneira, nos interessa observar a cultura pop contextualizada em um cenário econômico dominado pelas grandes empresas de tecnologia (big techs) em que prospera um lucrativo mercado da nostalgia, sendo a série Stranger Things um caso exemplar dessa conjuntura.
Stranger Things virou um fenômeno cultural em pouco tempo, gerando um público de fãs comparado a outros fenômenos mais antigos da TV e mesmo do cinema. “É aquele raro sucesso cruzado apreciado por crianças, adolescentes e pais. Seus atores são agora celebridades internacionais; seus personagens são sensações nas redes sociais” (Vogel, 2018, p. 8). Esse sucesso foi alcançado mesmo sem uma estratégia de divulgação massiva em sua primeira temporada. Como destaca Joseph Vogel, “além de Winona Ryder, o show não tinha estrelas reconhecíveis. Nem foi promovido com uma típica blitz de mídia” (2018, p. 8). Ao chegar na segunda temporada, alcançou o patamar de maior sucesso da Netflix, sendo assistido em mais de 190 países por centenas de milhões de pessoas.
Conforme o roteirista Ygor Palopoli (2022) publicou em sua conta do Twitter, Stranger Things foi, provavelmente, uma das primeiras séries da Netflix a construir seu universo narrativo a partir do uso de algoritmos, por meio da mineração de dados de usuários da própria plataforma, utilizando uma estratégia computacional baseada na interpretação da big data – grande volume de dados de difícil processamento, mas que têm sido usado pelo mercado para extrair informações de consumo e resolver problemas de negócios (Oracle, 2022). Em sua thread no Twitter, Palopoli (2022) explica que a série foi criada para viralizar, a partir de informações extraídas de dados de usuários.
No ano de 2016, a Netflix lançava sua mais ambiciosa aposta até o momento no streaming: a série “Stranger Things”, que anos depois, ainda em 2022, se provaria um sucesso absoluto. O sucesso, no entanto, foi calculado através de uma estratégia chamada Big Data. [Que se caracteriza por] reunir as informações dos consumidores-alvo com o fim de realizar um produto que os agrade baseado no que eles já gostavam. Fazer “Stranger Things” foi como criar um refrigerante. E os gostos estavam lá, com cada minuto do que você via sendo coletado e estudado. (Palopoli, 2022)
Palopoli explica que a série foi desenvolvida a partir da análise de dados de usuários da plataforma, sendo capaz de identificar o que as pessoas mais gostam de consumir, bem como os conteúdos e elementos de maior engajamento. A plataforma percebeu, a partir da big data, que evocar os anos 1980 é uma das maiores tendências de mercado. Embora a mineração de dados tenha sido elemento essencial para conquista de públicos para a série Stranger Things, sua precisão e sua eficácia são questionáveis, visto que outros conteúdos nostálgicos também baseados em pesquisas de preferências de públicos não tiveram o mesmo sucesso, como é o caso das séries The Get Down (2016) e Cowboy Bebop (2021), canceladas após a primeira temporada. Tais contradições nos apontam para um cenário ainda mais complexo em que as tendências reveladas pela análise de dados são importantes, mas não determinantes para a aderência de públicos, sendo essencial considerar também outros fatores e aspectos qualitativos que os algoritmos não são capazes de revelar.
Stranger Things foi construída com base na interpretação dos dados recolhidos pela Netflix e a partir do imaginário dos anos 1980, com referências estéticas e narrativas do período, de forma a agradar espectadores de diversas idades. Para a geração de 10 a 20 anos, a série se apresentou como um convite a conhecer aquela época da qual seus pais tanto falam, supostamente “quando tudo era melhor”, as crianças brincavam nas ruas sem preocupação, sem telefone celular ou demais telas o tempo todo. De acordo com Bressan Junior e Lessa, “os elementos da década de 1980 proporcionam um prazer no público jovem que acompanha a série por conter neles uma afetividade acompanhada com as reminiscências vividas por seus grupos de referência” (2018, p. 149). Para a geração que hoje tem entre 40 e 50 anos, a série ofereceu uma viagem à década tão desejada e povoada de memórias de infância e juventude. E, para quem tem entre 60 e 70 anos, uma forte nostalgia da época em que seus filhos eram crianças. Assim, públicos multigeracionais foram cooptados, atraídos por experiências nostálgicas diversas.
Goulart nos chama atenção para certas particularidades do atual mercado da nostalgia, como a “forma fragmentada com que o passado é apropriado” (2018, p. 3). A autora problematiza como o apelo nostálgico no mercado de bens culturais desenvolveu novas sensibilidades em relação ao passado e formas peculiares de acionar experiências pretéritas. Esse cenário tem criado, na cultura juvenil, uma espécie de nostalgia de um passado que não foi vivido pelos jovens, mas por seus pais e avós. Assim, além de ser pautada pelo imediatismo e pelo excesso de informação, a cultura juvenil contemporânea tende à centralidade no presente e a uma percepção fragmentada e descontínua do passado e do futuro. Nesse contexto, o mercado da nostalgia ganha uma embalagem atrativa para o público juvenil, despertando uma relação nostálgica com um tempo não vivido, mas transmitido por essa memória cultural e midiatizada, em formato de produtos.
Articulando as classificações de Boym às discussões em torno dos acionamentos nostálgicos praticados pela Netflix, considerando o viés mercadológico da nostalgia e seu alcance a públicos multigeracionais, propomos uma análise da série Stranger Things tendo como recorte analítico o modo como ela pratica representações da Guerra Fria. Assim, buscamos observar como se dão as construções nostálgicas restauradoras e as reflexivas em relação ao conflito geopolítico representado na série. Para desenvolver a análise, percorremos dois eixos metodológicos: a) a análise estilística (abordando aspectos estéticos, narrativos e discursivos), que se dará por meio da seleção de cenas e personagens que julgamos representativos do modo como a série propõe representações da Guerra Fria. Segundo Hergesel e Ferraraz, a estilística é “a combinação de recursos expressivos dentro de um discurso que, independentemente da modalidade como se manifesta, ajuda a criar laços afetivos entre os interlocutores e averigua a relação que determinado produto midiático estabelece com a sociedade em que está inserido” (2017, p. 28); b) a análise contextual, levando em conta a relação da série com o contexto político, social, cultural e mercadológico na qual se insere e à qual se refere, acionando relações temporais de presente e passado. Assim, a análise aqui proposta consiste na investigação das relações estabelecidas entre o “texto” de uma série nostálgica e o seu contexto, ou seja, sua materialidade estética e narrativa, os discursos que carrega e as circunstâncias de sua criação.
E a história se repete como farsa
Fruto de um mercado da nostalgia baseada na interpretação de dados, que dialoga com públicos heterogêneos e atraídos por diferentes acionamentos nostálgicos, a série Stranger Things apresenta inúmeras referências à história e ao imaginário criado em torno dos anos 1980. Dentre os diversos elementos referenciados na série, buscamos examinar os modos pelos quais ela aborda a Guerra Fria. Como já mencionado, o contexto geopolítico que marcou a segunda metade do século XX foi recorrentemente retratado no entretenimento televisivo e cinematográfico dos anos 1980, em especial, em narrativas de aventuras destinadas ao público infanto-juvenil.
Na série, os acionamentos nostálgicos relativos à Guerra Fria se dão, sobretudo, pelas referências ao imaginário (estético, narrativo e discursivo) produzido pela ¬estadunidense dos anos 1980 a respeito dos soviéticos e das sociedades de base comunista. Como se sabe, a vilania em torno do comunismo e de indivíduos provenientes de países de regime socialista, como a URSS e a China, foi amplamente explorada pela indústria cultural estadunidense, pautada por estereótipos e maniqueísmos.
Em Stranger Things, série que surge 25 anos após o fim da Guerra Fria, a representação do conflito se dá principalmente pela presença de personagens russos, caracterizados de forma estereotipada como vilões, que fazem da guerra tecnológica e do uso de espiões seu modus operandi. Além disso, a série tece contraposições entre o capitalismo e o socialismo soviético, especialmente centradas nos acontecimentos em torno do shopping center – templo do consumo capitalista que apresenta, em seu subsolo, o universo sombrio de um secreto laboratório comandado por soviéticos.
Além disso, Stranger Things é uma série lançada em 15 de julho de 2016, poucos meses antes da eleição de Donald Trump como presidente dos EUA. A partir de uma análise contextual, buscamos compreender possíveis ressonâncias entre um cenário sociopolítico permeado por discursos nostálgicos conservadores repletos de referências à era Reagan (1981-89) e a emergência de uma série nostálgica que se volta à década de 1980 propondo representações da Guerra Fria.
Assim, ao observar os modos como são realizados acionamentos estéticos, narrativos e discursivos na representação da Guerra Fria, destacamos pontos que nos parecem pertinentes: a criação de um universo diegético pautado pela dicotomia entre o mundo real e o temido “mundo invertido”; a construção de personagens; e a configuração de um discurso anticomunista, que reverbera no contexto político estadunidense no período de exibição da série.
O consumismo versus o comunismo e a metáfora do mundo invertido
Stranger Things é uma série nostálgica que exalta o consumismo a partir de um dos seus maiores símbolos, o shopping. Na terceira temporada ocorre a inauguração do Starcourt Mall, com a presença de grande público consumindo tudo que a economia de livre mercado oferece. Ao mesmo tempo, em seu subsolo, soviéticos realizam experimentos secretos, buscando o acesso ao “mundo invertido”, representando também o próprio sistema socialista como o inverso do que seria o mundo “normal”: o mundo capitalista. Não por acaso, os experimentos soviéticos são o avesso do shopping (templo do consumismo), lados diametralmente opostos desse microcosmo social, localizado em Hawkins – cidade interiorana em que é gestado o “mal soviético” sob o solo do “sonho americano”.
O mundo invertido, apresentado desde a primeira temporada, ganha nuances cada vez mais sombrias ao longo da série, sempre apresentado como um ambiente obsoleto, precário e parado no tempo, ou seja, um mundo pouco atrativo se comparado ao solar e colorido “mundo de cima”, onde vive a população de Hawkins que se diverte com as regalias do capitalismo e do consumismo.
Contudo, na terceira temporada, a partir da exaltação ao patriotismo e ao consumo de supérfluos no shopping, percebemos certa ambivalência na retratação do “sonho americano”. Embora, em diversos momentos, a série contraponha o american way of life, paraíso do consumo, às privações do socialismo soviético, em outras ela apresenta, ainda que sem muita profundidade, certas fraturas do sistema capitalista e do livre mercado. No segundo episódio, há uma cena que apresenta a questão do consumismo e o desequilíbrio trazido para a economia da cidade de Hawkins com o shopping, levando o comércio local à falência e causando o desemprego da população. A cena finaliza com o prefeito convencendo o xerife a dispersar a multidão que protesta, encerrando a conversa com um fato que demonstra que o patriotismo da população de Hawkins fará com que todos se esqueçam dos protestos e não trará prejuízos para sua campanha pela reeleição:
Prefeito Kline: Sabe o que acontece em quatro dias?
Xerife Hopper: Dia da Independência
Prefeito Kline: Correto. E vou dar a maior festa que essa cidade já viu. Fogos, música, atividades e muito mais. Vou dar o meu melhor. Sabe por quê? Porque, no fim, é só do que os eleitores se lembrarão. (Stranger Things, 2019, T03E02)
O capitalismo favoreceu o grande monumento ao consumo, o shopping, prejudicando o comércio local, ocasionando o fechamento de pequenos negócios. Conforme o plano do prefeito, o que era motivo para protestos será esquecido pelas festividades patriotas do Dia da Independência, garantindo assim seus objetivos políticos de reeleição. Embora não se aprofunde no tema, a série apresenta uma certa consciência dos mecanismos alienantes do capitalismo, como o consumismo e o patriotismo, além do oportunismo do prefeito em suas artimanhas para se manter no poder.
Personagens
Em relação aos personagens, já na primeira temporada, Eleven (Millie Bobby Brown), uma menina com poderes insólitos, é considerada uma ameaça pelos militares estadunidenses por acreditarem se tratar de uma garota russa – logo, um perigo para a segurança nacional. Ainda na primeira temporada, o vilão é Dr. Brenner (Matthew Modine), um cientista que manipula os sentimentos de Eleven para treiná-la no uso de seus poderes sobrenaturais em nome do governo dos Estados Unidos, em um experimento secreto sob a fachada do Departamento de Energia de Hawkins. Essa narrativa demonstra que a série também apresenta nuances de vilania do lado dos Estados Unidos. Na terceira temporada, no entanto, a representação dos soviéticos como inimigos é fortemente ampliada e potencializada pela data de lançamento pela Netflix, 4 de julho de 2019, Dia da Independência dos EUA. Tal estratégia fortalece essa representação do patriotismo estadunidense em contraponto aos antagonistas soviéticos que são apresentados.
Em relação à caracterização dos personagens, os russos são predominantemente retratados como homens mais velhos e abjetos, de expressão sombria, ambientados em laboratórios subterrâneos e espaços militares de tecnologia e recursos precários e obsoletos. Nesses cenários, predominam tons escuros, azulados ou terrosos, há pouca luz natural. De modo geral, são versões caricatas de como os estadunidenses enxergavam (ou ainda enxergam) os russos no auge da Guerra Fria (Figura 01). Em especial, na quarta temporada, personagens e cenas ambientadas na pequena cidade de Kamtchatka (extremo oriente russo) são apresentados de modo farsesco, satirizando situações que compõem o imaginário estadunidense sobre a vida na Rússia soviética.
Figura 01 – Representação de militar russo.
Fonte: Stranger Things. (2019, TP. 03 – E. 01).
Em grande parte, a série se ampara no clichê do vilão russo que utiliza tecnologias que não funcionam adequadamente e que pratica maldades contra seu próprio concidadão. No 1º episódio da 3ª temporada, numa sala secreta, localizada no subterrâneo do shopping de Hawkins, há uma falha no equipamento e três homens morrem queimados. O chefe dos cientistas tenta explicar em russo: “Camarada General, estamos perto. O senhor pode ver nosso progresso. Só precisamos de mais temp...”. Nesse momento o chefe é levantado pelo pescoço e morre pelas mãos de Grigori (Figura 02), uma referência ao personagem de Arnold Schwarzenegger no filme Exterminador do Futuro (1984), de James Cameron.
Figura 02 – O cientista-chefe dos soviéticos é assassinado por seu camarada.
Fonte: Stranger Things. (2019, TP. 03 – E. 01).
Os estereótipos e maniqueísmos presentes na série não passaram incólumes pela leitura de membros do Partido Trabalhista Progressista (PLP), um partido comunista marxista-leninista anti-revisionista dos Estados Unidos, que ressaltaram em seu site:
Os homens russos são absolutamente maus para com os trabalhadores. NÃO é assim que os comunistas agem. Para completar, a escolha de usar linguagem comunista entre os vilões zomba da história. Embora a União Soviética já tivesse revertido para o capitalismo, é conveniente para a mídia capitalista construir o patriotismo dos EUA por meio de embalagens anticomunistas. A câmera vai do laboratório para as montanhas do que se supõe ser a Rússia. O chefe geral e Grigori caminham em direção ao seu helicóptero particular sobre um castelo cinza e nevado com uma bandeira comunista ondulante. ESTA é a sede do mal – longe dos subúrbios americanos cheios de pastos verdes e piscinas segregadas. (Progressive Labor Party, 2019) (tradução nossa) [6].
Ainda na quarta temporada, há um personagem que foge à regra estética e narrativa da vilania dos soviéticos, o cientista russo Alexei (Alec Utgoff) – que estava infiltrado nos Estados Unidos em pesquisas secretas para o governo comunista (Figura 03).
Figura 03 – O amigo russo Alexei, apelidado de Smirnoff pelo xerife Hopper.
Fonte: Stranger Things. (2019, TP. 03 – E. 05).
Neste caso, foi apresentado um personagem amigável, facilmente atraído pelo consumismo oferecido pelo american way of life. Tal personagem, posteriormente, passa a colaborar com os estadunidenses em troca de pequenos agrados da cultura de consumo capitalista: a bebida frozen e os desenhos Looney Tunes e Pica Pau. Alexei torna-se aliado dos capitalistas quando abraça o consumismo, assumindo uma caracterização do típico estadunidense, divertindo-se na festa do 4 de julho, uma sátira ao estereótipo dos estadunidenses.
O anticomunismo de ontem e de hoje
Na quarta temporada, há ainda mais representações de russos como inimigos, pois um dos personagens principais, o xerife Hooper, está preso em um campo de concentração de Kamtchatka, no extremo leste da Rússia. Trata-se da temporada com maior índice de violência, incluindo cenas de tortura e diversos assassinatos. Tal maneira de apresentar os soviéticos dialoga com a paranoia anticomunista que ressurge nos EUA com ascensão de Donald Trump, que é eleito presidente em 2016 com o discurso nostálgico restaurador da Era Reagan, reavivando o slogan Make América Great Again. O ano de 2016 foi também o lançamento da primeira temporada de Stranger Things, como ressalta o site do PLP:
O show se passa em uma época em que a propaganda anti-soviética era tão americana quanto uma torta de maçã, uma campanha liderada pelo Partido Democrata e seus meios de comunicação liberais. Esta temporada imita a histeria anticomunista dos anos 80, como visto em filmes como Amanhecer Violento (Red Dawn, de 1984). A principal diferença entre então e agora é o declínio relativo do poder dos EUA. (Progressive Labor Party, 2019) (tradução nossa) [7].
Difícil não relacionar o pânico anticomunista dos anos 1980, representado pela série, com o contexto das eleições de 2016 que elegeu Donald Trump. Ainda que sejam cenários geopolíticos muito distintos, é marcante o discurso nostálgico restaurador da campanha de Trump e o reavivamento do anticomunismo, intensificado em 2020 com a desinformação em torno da pandemia de Covid-19 que teve sua origem na China, outra potência socialista frequentemente retratada como vilã na cultura pop estadunidense.
De maneira geral, as referências nostálgicas presentes na série ocorrem de forma a reforçar a narrativa anticomunista e o perigo russo. Como ressalta Gilbert (2019), a partir da terceira temporada, Stranger Things “é mais profundamente informada pela paranoia americana do que nunca, à medida que o programa começa a explorar obras clássicas inspiradas na Guerra Fria do meio dos anos 80”. A série apresenta fortes relações intertextuais, por exemplo, com o filme Amanhecer Violento (1984), de John Milius, que retrata um grupo de adolescentes que luta contra uma tentativa de invasão soviética em solo estadunidense. Ou em citações diretas, como na cena em que, na terceira temporada, os adolescentes da cidade vão ao cinema para assistir ao filme O Dia dos Mortos (1985), um terror zumbi de George A. Romero que retrata o militarismo.
Considerações Finais
Ao mesmo tempo em que a série apresenta referências da nostalgia restauradora, com a representação romantizada do american way of life e o anticomunismo, tendo como antagonista a figura do vilão russo, há também o olhar reflexivo da nostalgia perante os atos do governo estadunidense em relação aos experimentos científicos para transformar crianças em armas para uso militar, mostrando os abusos cometidos em prol do objetivo de “tornar a América grande novamente”.
A nostalgia restauradora também está presente na caracterização do capitalismo, com a febre consumista tomando conta da cidade a partir da inauguração do shopping. E em seu contraponto, há também a representação dos efeitos negativos do extremo capitalismo no elemento do shopping, a quebra do comércio local e a revolta da população – um enfoque da nostalgia reflexiva presente na terceira temporada.
Stranger Things é uma série de ficção e fantasia que retrata um mundo onde o sobrenatural existe na forma de criaturas extraídas do universo do RPG (role-playing game), como Demogogon e Vecna, e onde crianças são torturadas mentalmente em experimentos do governo estadunidense. Assim, podemos afirmar que, na quarta temporada, o governo dos Estados Unidos é retratado também como vilão, assim como essas criaturas do mundo invertido e os comunistas. Tem-se então um olhar reflexivo para a década de 1980, na forma de sátira de todos esses estereótipos. Por outro lado, a nostalgia restauradora presente na série dialoga com discursos políticos e ideológicos da Era Trump, endossando a romantização do passado e uma leitura geopolítica achatada e maniqueísta.
Dessa maneira, pode-se dizer que Stranger Things é uma série resultante do mercado da nostalgia baseada no uso da big data que reconfigura, em tom farsesco, a paranoia anticomunista que marcou o contexto da Guerra Fria e, ao mesmo tempo, é sintoma de seu tempo, ao apresentar ressonâncias com discursos presentes na realidade externa à série, marcada pela eleição de Donald Trump e a nova ascensão da ideologia reacionária nos EUA.
Notas
[1] A partir da perspectiva de Sá, Carneiro e Ferraraz (2015), compreendemos a cultura pop como “termo aglutinador de um campo de ambiguidades, tensões, valores e disputas simbólicas acionado por manifestações culturais populares e midiáticas oriundas do cinema, fotografia, televisão, quadrinhos, música, plataformas digitais, redes sociais, etc.” (p. 4, 2015).
[2] Segundo Silva (2014), a atual cultura das séries se caracteriza não apenas pela sofisticação narrativa, mas também por novas formas de circulação e hábitos de consumo que ganharam propulsão com a tecnologia do streaming e a emergência de diversos dispositivos portáteis de recepção. Soma-se a isso, um crescente mercado ocupado por plataformas on-line de capital transnacional que atuam na produção e na distribuição em nível global, como é o caso da Netflix.
[3] “Surrender to the irreversibility of time that plagues the human condition.”
[4] Segundo Halbwachs (1990), a memória do indivíduo, em sua vida particular, só é efetivamente constituída quando amarrada à memória do grupo no qual está inserido afetivamente, constituindo uma esfera maior produtora e transmissora da tradição, a memória coletiva de cada sociedade.
[5] “Nostalgia is not something you ‘perceive’ in an object; it is what you ‘feel’ when two different temporal moments, past and present, come together for you and, often, carry considerable emotional weight.”
[6] “The Russian men are downright evil towards the workers. That is NOT how communists roll. To top it off, the choice of using communist lingo among villains mocks the history. While the Soviet Union had already reversed into capitalism, it’s convenient for the capitalist media to build U.S. patriotism through anti-communist packaging. The camera pans from the lab to the mountains of what’s assumed to be Russia. The head general and Grigori walk towards their private helicopter above a snowy, gray castle mounted with a waving communist flag. THIS is the headquarters of evil—far from the American suburbs filled with green pastures and segregated pools.”
[7] “The show is set at a time when anti-Soviet propaganda was as American as apple pie, a campaign spearheaded by the Democratic Party and its liberal media outlets. This season mimics the anti-communist hysteria of the ‘80s, as seen in movies like Red Dawn (1984). The main difference between then and now is the relative decline of U.S. power.”
Artigo submetido em 04/03/2024 e aceito em 20/06/2024.
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