Música clássica e cinemas autorais latino-americanos:

recorrências de repertório e modos de utilização

Luíza Alvim1

Resumo

O emprego de música preexistente é uma característica do cinema contemporâneo (Hubbert, 2014; Chion, 2019) e, no caso da música clássica, os repertórios barroco e minimalista se destacam. Observamos essas recorrências em nossa pesquisa de filmes contemporâneos autorais a partir de um mapeamento do repertório em filmes participantes dos festivais de Berlim, Cannes e Veneza. Neste artigo, detemo-nos na América Latina, com o objetivo de destacar quatro filmes que apresentam essas características de repertório, fazendo análise fílmica de sequências com música: Gloria (2013) e Uma mulher fantástica (2017), ambos de Sebastián Lelio, El Club (Pablo Larraín, 2015) e Birdman (Alejandro Iñarritu, 2014). Nos três primeiros, há música de Bach, Handel e Vivaldi, sendo a música desses dois últimos especialmente importantes na narrativa de Uma mulher fantástica. Em El Club destacam-se as obras do compositor Arvo Pärt e seu sentido espiritual é explorado. O também minimalista John Adams é utilizado em Birdman, num dos momentos de maior ambiguidade entre diegético e extradiegético. Também consideramos o conceito de “música de autor” de Gorbman (2007), que se refere à escolha da trilha musical pelo diretor do filme e ao seu consequente controle maior sobre a música. Para isso, recolhemos informações em entrevistas com os diretores e colaboradores, e observamos que o conceito se aplica principalmente a Sebastián Lelio.

Palavras-chave

Música; Cinema latino-americano; Cinema contemporâneo; Cinema autoral; Música preexistente.

1 Doutora em Comunicação pela Universidade Federal do Rio de Janeiro. Pós-doutoranda da Escola de Comunicação e Artes da Universidade de São Paulo, com bolsa CNPq. E-mail: luizabeatriz@yahoo.com.

Juiz de Fora, PPGCOM – UFJF, v. 18, n. 2, p. 173-190, MAI./AGO. 2024                                         DOI 10.34019/1981-4070.2024.v18.43251

Classical music and Latin American authorial cinema:

recurrences of repertoire and modes of use

Luíza Alvim1

Abstract

The use of pre-existing music is characteristic of contemporary cinema (Hubbert, 2014; Chion, 2019), and, in the case of classical music, the baroque and minimalist repertoire stands out. I observed these recurrences in my research about contemporary authorial films by mapping the repertoire in the films that took part in Berlin, Cannes and Venice film festivals. In this article, I focus on Latin America, with the aim to highlight four films that have these repertoire characteristics, proceeding to a film analysis of the sequences with music: Gloria (2013) and A Fantastic Woman (2017), both by Sebastián Lelio, El Club (Pablo Larraín, 2015) and Birdman (Alejandro Iñarritu, 2014). The first three feature music by Bach, Handel and Vivaldi, the latter two being especially important in the narrative of A Fantastic Woman. In El Club, works of composer Arvo Pärt stand out and their spiritual meaning is explored. The also minimalist composer John Adams is present in Birdman, in one of the most ambiguous moments between diegetic and extradiegetic. I also considered Gorbman’s (2007) concept of “auteur music”, which refers to the choice of music works by the film’s director and his consequent greater control over music. To this end, I gathered information in interviews with the directors and collaborators, and noted that the concept applies mainly to Sebastián Lelio.

Keywords

Music; Latin American cinema; Contemporary cinema; Authorial cinema; Pre-existing music.

1 Doutora em Comunicação pela Universidade Federal do Rio de Janeiro. Pós-doutoranda da Escola de Comunicação e Artes da Universidade de São Paulo, com bolsa CNPq. E-mail: luizabeatriz@yahoo.com.

Juiz de Fora, PPGCOM – UFJF, v. 18, n. 2, p. 173-190, MAI./AGO. 2024                                         DOI 10.34019/1981-4070.2024.v18.43251

Introdução

Este trabalho faz parte de um projeto de pós-doutorado em que pesquisamos o uso de música clássica [1] preexistente no cinema de autor contemporâneo dos anos 2010. Como observam Hubbert (2014) e Chion (2019), o emprego de música preexistente, em geral, é uma das características da estética da música no cinema contemporâneo. No caso da música clássica, constatamos um volume considerável de tal repertório não só em cinemas europeus, mas também em cinematografias de diversas partes do mundo, tal como as latino-americanas.

Na América Latina, a música clássica já faz parte de sua cultura há bastante tempo, tendo sido trazida para o continente desde o início da colonização nos séculos XV-XVI. Uma marca persistente desse transporte cultural é que, em muitas capitais latino-americanas, há teatros nos moldes europeus, além de que, ao menos no início do século XX, a música clássica fazia parte da educação na América Latina (Neher, 2009). Ou seja, se é uma música originalmente europeia, é transnacional há vários séculos.

No cinema contemporâneo latino-americano, há diretores que são, por si só, transnacionais, como os chilenos Pablo Larraín e Sebastián Lelio, os mexicanos Alejandro Iñarritu e Alfonso Cuarón e o brasileiro Walter Salles, entre outros, que, devido ao sucesso de suas produções iniciais, dirigiram filmes também nos Estados Unidos da América. Os dois momentos (o do sucesso interno e o da expansão para os EUA) são considerados por Tierney (2018) como transnacionais. E, justamente, em filmes desses diretores – sejam eles produções nos países de origem ou norte-americanas – é onde se encontra mais frequentemente o repertório clássico, de acordo com a nossa amostragem.

Para chegarmos a essa amostragem, usamos como metodologia um mapeamento das mostras principais dos festivais de Cannes (incluindo a Un certain regard), Veneza (incluindo a Orizzonti) e Berlim de 2011 a 2020, e buscamos as músicas dos filmes no site IMDb (©1990-2024), junto com a leitura de material teórico, o que fez, por vezes, corrigir algumas falhas do IMDb. Separamos, então, os filmes com música clássica preexistente e os analisamos com detalhe, ou seja, consideramos o repertório escolhido, a associação da música à caracterização de personagens, relações com a imagem, o ritmo e a narrativa e as motivações para a escolha da música. Quanto a esse último aspecto, procuramos entrevistas com os diretores e outros membros da equipe fílmica.

Optamos por esses festivais sediados em cidades europeias e não latino-americanas por serem eventos de alta visibilidade e que incluem toda uma parte mercadológica, em que são firmados acordos de distribuição mundial dos filmes, sendo os três considerados festivais “A” (De Valck, 2007). Muitos desses diretores, como no caso de Sebastián Lelio com seu filme Gloria (2013), tiveram o seu primeiro holofote ao ganharem prêmios nesses festivais – Lelio acabou sendo convidado a fazer um remake norte-americano, Gloria Bell (2019). Além disso, são as seleções desses três festivais o universo de onde partimos para o restante de nossa pesquisa, com cinematografias para além da América Latina.

Sobre a centralidade da figura do diretor no nosso trabalho, ela se dá porque os próprios festivais fazem essa centralização e porque um dos conceitos importantes para o nosso trabalho é o de “música de autor”, de Gorbman (2007). É uma característica que Gorbman encontra especialmente em diretores autorais do cinema contemporâneo, muitos dos quais se consideram melômanos, e o “autor” do conceito se refere ao diretor do filme, que escolhe a trilha musical do filme (daí, serem geralmente músicas preexistentes) a fim de expressarem sua visão autoral por meio dela. Salientamos que nem todos os diretores de nosso mapeamento podem ser considerados como melômanos e responsáveis por “música de autor”, mas, ainda assim, percebe-se um ensejo de controle por parte deles.

Neste trabalho, analisamos a utilização da música clássica em quatro filmes selecionados de diretores considerados transnacionais do nosso corpus inicial de 10 filmes da América hispânica: Gloria (2013) e Uma mulher fantástica (2017), ambos de Sebastián Lelio, El Club (2015), de Pablo Larraín e, por fim, Birdman (2014), de Alejandro G. Iñarritu. O critério para essa escolha foi o reconhecimento de características estéticas de repertório presentes em outros filmes autorais contemporâneos de nosso mapeamento geral e o papel relevante da música clássica em sua estrutura e conteúdo. Para os filmes El Club e Birdman, como são muitos trechos de música, diferentemente dos outros dois, fizemos tabelas para facilitar o entendimento. No caso de Birdman, a análise se concentrará mais na sequência com a utilização das músicas de John Adams e de Rachmaninoff, embora as outras sejam também evocadas.

Características estéticas gerais da música clássica no cinema contemporâneo

No cinema contemporâneo, há dois tipos de repertório clássico prevalentes: o barroco e a música minimalista, particularmente a do compositor contemporâneo estoniano Arvo Pärt. Chion (2019) chegou mesmo a designar um “efeito Arvo Pärt” no cinema contemporâneo, tal a constância da música do compositor. Um dos exemplos deste “efeito” pode ser observado no filme El Club.

Em relação ao repertório barroco, Greig (2021) constata a sua grande frequência de utilização no cinema a partir do pós-guerra, fato que teria como possíveis causas o apelo da rigidez métrica da música barroca e seus efeitos de simetria, além da permanência de alguns clichês vindos da época do cinema silencioso, como as associações gerais dessa música a significados de religiosidade, a um “tempo antigo” indeterminado e a nobreza ou elegância.

Dentre os compositores barrocos, Greig (2021) observou particularmente um revival do italiano Antonio Vivaldi após a Segunda Guerra Mundial. No nosso mapeamento de cinema contemporâneo, a presença de Vivaldi é significativa, mas a de Johann Sebastian Bach é ainda maior, sendo que obras dele estão em dois filmes analisados neste artigo, Gloria e El Club. Outro compositor barroco também presente é Georg Friedrich Handel, tal como em Uma mulher fantástica.

Quanto à música minimalista, Greig (2021) observa a sua ligação com o Barroco, em algo que poderia ser chamado de um “Novo Barroco” (New Baroque) por causa do interesse dos compositores minimalistas tanto em texturas quanto no caráter matemático da música barroca. Semelhante aos clichês da música barroca no cinema, o Neo-Barroco também serve para evocar o passado e as conotações tradicionais de imponência, formalidade e religiosidade.

A música do já mencionado Arvo Pärt corresponderia a um “minimalismo místico”. Segundo Maimets-Volt (2013), até o momento de desenvolvimento de sua pesquisa, a maior parte da música de Pärt utilizada no cinema correspondia ao estilo tintinnabuli, desenvolvido pelo compositor a partir dos anos 1970, como, por exemplo, nas obras Cantus em Memória de Benjamin Britten (de 1977) e Fratres (de 1977), presentes em nosso corpus. Pärt assim nomeou esse estilo porque as três notas da tríade (a base da música tonal ocidental) soam como um sino (Maimets-Volt, 2013), havendo caracteristicamente um silêncio e/ou reverberação após o soar das notas (Chion, 2019; Maimets-Volt, 2013). Ainda conforme Maimets-Volt (2013), tanto os diretores quanto o público enxergam na música de Pärt uma comunicação com o Uno, uma transcendência.

Outros compositores minimalistas bastante frequentes nas trilhas musicais contemporâneas são os norte-americanos Philip Glass e John Adams. Este último é parte da música preexistente de Birdman.

Filmes de Sebastián Lelio e música barroca

No filme Gloria (2013), de Sebastián Lelio, a música tem um papel muito importante, pois a personagem-título (interpretada por Paulina Garcia), uma mulher de meia idade e divorciada, ouve com frequência canções populares em seu carro ou em casa, cantarola as músicas e vai a lugares com músicas dançantes, onde espera se divertir e/ou encontrar um novo companheiro.

O gosto de Glória, portanto, é marcado pela canção popular. Porém, numa sequência a 95’ 17’’ de filme, ouvimos de forma extradiegética o famoso Adagietto da Quinta Sinfonia de Gustav Mahler – o mesmo utilizado por Luchino Visconti em seu icônico filme Morte em Veneza (1971). Gloria está no cabeleireiro, depois de ter se decepcionado definitivamente com a possibilidade de relacionamento com Rodolfo, um homem também de meia idade que encontrara num local de dança. É um momento melancólico, reforçado pela música de Mahler, porém relativamente curto (até 95’ 57’’). Vemos, primeiramente, Gloria com o cabelo em rolos sentada de perfil [2], depois, em contra-plongée, com uma hélice girando em torno de sua cabeça. A atriz Paulina Garcia relatou em entrevista que toda a seleção musical foi feita pelo diretor (Atriz […], 2013).

No entanto, para além das canções populares diegéticas e da música pós-romântica de Mahler extradiegética, há uma sequência no meio do filme (em 46’58’’) em que o filho da protagonista toca a Allemande da Partita n. 2 em ré menor BWV 1004 de Bach ao violino, numa reunião de família. O próprio ator Diego Fontecilla (também músico) foi responsável pela performance, que é destacada, pois vemos os momentos de afinação do violino e planos de Gloria assistindo ao filho tocar. Portanto, o Barroco, embora minoritário, já entra neste filme de Lelio. Aqui, representa um lado erudito da família de Gloria, sendo comum no cinema a associação do gosto pela música clássica a personagens intelectualizados ou de classes mais abastadas.

Por sua vez, em Uma mulher fantástica (2017), a diferenciação entre popular e erudito está explicitada no próprio filme. Vemos a protagonista Marina pela primeira vez cantando música popular num clube, mas, posteriormente, numa aula de canto, há a injunção do professor de que ela se dedique ao canto lírico. Marina é uma mulher transsexual, vivida pela atriz transsexual Daniela Vega, que é também cantora lírica. No filme, Marina vivia uma relação com um homem (chamado Orlando) que morre repentinamente e ela tem que enfrentar o preconceito e mesmo a suspeita de assassinato por parte da família do antigo companheiro.

Se em Gloria a música barroca era ouvida num só momento, embora não desprezível por ser uma performance diegética, em Uma mulher fantástica ela predomina, mas, nesse caso, foi uma solicitação de Daniela Vega, como podemos perceber nesta entrevista com a atriz/cantora:

No início [do projeto], Marina cantava pop, mas o problema é que eu não sei cantar pop. E este foi um desafio […]. Então, um dia, duas semanas antes da filmagem […], cantei uma ária [barroca…] para ele [Lelio]. Então, ele disse: OK. […] No dia seguinte ele apareceu com novas cenas que incluíam ópera (Vega; Lelio, 2018) (tradução nossa) [3].

Ou seja, neste filme, embora a música tenha passado pelo crivo final de Sebastián Lelio, como vemos no trecho seguinte da entrevista, Daniela Vega poderia ser considerada uma segunda instância autoral da música preexistente do filme. Lelio acabou escolhendo, entre as obras barrocas, uma extremamente famosa, quase um clichê musical, presente desde as partituras das Enciclopédias Musicais no cinema silencioso – está, por exemplo, no livro de Erno Rapée (1924) – a ária Ombra mai fu, de Handel. Como o diretor relata em entrevista:

Amo a música nos filmes […] e meus filmes têm muita música. E, neste caso, a personagem era uma personagem musical, porque ela é uma cantora. Então, além do score e das canções que ouvimos no rádio, há esses dois momentos – três momentos – em que ouvimos Marina cantar: uma salsa e duas árias barrocas. E, então, na última cena, em que ela finalmente canta num teatro […]. Estava com pressa porque precisávamos filmar e não sabia o que usar. Então, comecei a procurar árias barrocas que não fossem tão longas – para ser honesto, qualquer coisa com menos de 4 minutos. E, então, numa manhã de domingo, trombei com “Ombra mai fu”, que eu conhecia, que tinha já ouvido antes, mas não sabia o título. E fiquei tão tocado com ela… (Vega; Lelio, 2018) (tradução nossa) [4].

A tensão entre popular e erudito é, como já evocado, evidente na sequência da aula de canto. Nela, depois da conversa inicial com o professor – uma figura de traços paternos para Marina – a partir de 1h de filme, ela treina a ária Sposa son disprezzata (2018), de Geminiano Giacomelli, mas incorporada à ópera Bajazet, de Vivaldi (vê-se que a atriz/cantora ainda está em processo de aprendizado por causa de alguns momentos de insegurança). A letra da música tem relação com os sentimentos de Marina, esposa desprezada, embora não por um marido prometido, como no caso da ópera, mas sim pela família do companheiro morto. Do ambiente diegético, a música continua como extradiegética (indo até 61’29’’), numa sequência poética em que o vento impede Marina de continuar a caminhar pela rua e ela fica completamente inclinada para a frente, numa posição inverossímil, como numa representação da rejeição daquela família à sua existência.

Em meio a todo o desespero de Marina, ouvimos o Concerto para Bandolim em Dó Maior, de Vivaldi do rádio do carro dos amigos dela, a partir de 63’ 23’’, e, após Marina sair do carro repentinamente, continuamos a ouvi-la extradiegeticamente na imagem da personagem no ônibus indo até a missa pela morte do companheiro (até 65’ 02’’). A música dá uma sensação de urgência, um pouco no sentido do que Wes Anderson, um diretor melômano que usou frequentemente obras de Vivaldi para bandolim, afirmava buscar ao se inspirar no compositor (Perez, 2007).

No final do filme (96’ 18’’), quando a situação de Marina em relação à família do companheiro está mais assentada, ela canta Ombra mai fu, correspondente ao início da ópera Xerxes, de Handel, num recital em teatro (na verdade, ouvimos a parte instrumental antes, com Marina ainda no camarim). Sobre essa música o diretor destaca o achado da congruência de sentimentos do personagem da ária de Handel e de Marina:

A letra é […] pura gratidão: é alguém agradecendo a uma árvore pela sombra que ela oferece num dia tão luminoso. Alguém agradecendo a uma árvore por sua generosidade e proteção – estranhamente conectada com Orlando. Terminar o filme nesse estado de gratidão é provavelmente um grande indicador do lugar espiritual em que a personagem termina. Ela não está com raiva, ressentimento, ela não está nem ao menos OK, ela está em estado de gratidão. E esta é uma emoção muito específica. (Vega; Lelio, 2018) (tradução nossa) [5].

Sebastián Lelio, melômano assumido, fez, portanto, uma escolha consciente da música após a injunção de Daniela Vega de colocar ópera no filme.

Música e religiosidade em El Club, de Pablo Larraín

Na obra El Club, o também chileno Pablo Larraín, depois de seu sucesso No (2012), faz mais um filme no Chile sobre um assunto contundente antes de partir para sua série de biografias, a maioria de produção norte-americana. O clube do título é formado por padres da Igreja Católica que são afastados de suas atividades por pedofilia e mantidos em segredo em uma casa em um lugarejo no litoral, afastado dos grandes centros, e cuidados por uma mulher, que funciona como uma espécie de governanta. Sem muito o que fazer, dedicam-se a treinar um cão para competições de corrida no local. Essa vida pacata começa a ser perturbada quando um homem adulto de nome Sandokan – possivelmente abusado por alguns deles na infância – grita seus traumas a altos brados no local, ao passo que um padre externo é designado para investigar o tal clube.

Para a trilha musical do filme, Larraín utilizou principalmente a Sarabanda da Suíte para violoncelo n. 5 em dó menor BWV 1011, de Bach, Fratres (em duas versões: uma para quarteto de cordas e outra para cordas e percussão) e Cantus in Memory of Benjamin Britten, de Arvo Pärt, e uma obra do compositor britânico Benjamin Britten (o Canto Segundo da Primeira Suíte para violoncelo). Além de representarem as duas tendências mostradas do uso de música clássica no cinema contemporâneo (o repertório barroco e o “efeito Arvo Pärt”), em entrevista, o diretor as conecta pelo aspecto da religiosidade:

Toda a música [do filme] é religiosa. Arvo Pärt é um compositor ainda vivo e talvez um dos maiores gênios musicais vivos do mundo. Há uma conexão interessante aqui, porque há uma obra de Britten, que baseou seu trabalho em Bach, e uma das peças que usamos de Arvo Part é o “Cantus in Memoriam Benjamin Britten”. Então, todos esses compositores estão conectados um ao outro e eles todos produziram uma música muito mística e espiritual. A música no filme é percebida como muito religiosa e isso se dá porque foi composta a partir de uma perspectiva religiosa. É por isso que eu acho que ela se adequa tão bem. (Delgado, 2017, p. 468-469) (tradução nossa) [6].

Todas essas obras estão espalhadas ao longo do filme e não nos parecem que funcionem como leitmotiv, ou seja, de que sejam usadas sempre relacionadas ao mesmo personagem ou ao mesmo tipo de situação (Quadro 1).

Quadro 1 - Trechos de música clássica no filme El Club.

Tempo

Música

No filme

1

1’ 08’’ - 3’58’’

Fratres, quarteto de cordas, Arvo Pärt.

Mulher varrendo. Padres em atividades cotidianas. Padres com o cachorro na praia.

2

15’ 59’’- 16’28’’

Suíte para violoncelo n. 5, Sarabanda, Bach.

Padre Matías pega revólver enquanto Sandokan grita. Ele se suicida.

3

16’ 39’ - 17’16’’

Suíte para violoncelo n. 1, Canto Segundo, Britten

Sandokan se afasta. Os outros padres reagem.

4

31’22’’ - 32’ 30’’

Suíte para violoncelo n. 1, Canto Segundo, Britten.

Investigador corre na praia. Sandokan ajuda homens com barco.

5

32’ 52’’ - 34’ 08’’

Suíte para violoncelo n. 1, Canto Segundo, Britten.

Padre Vidal cuida do cão. Investigador conversa com governanta.

6

34’ 26’’ - 36’

Suíte para violoncelo n. 5, Sarabanda, Bach.

Investigador observa Sandokan trabalhando em loja. Padre Vidal treina o cão na praia.

7

49’ 18’’ - 50’ 21’’

Suíte para violoncelo n. 5, Sarabanda, Bach.

O cão perde a corrida. Vidal desolado. Sandokan observava e se afasta.

8

53’ 24’’ - 55’ 56’’

Fratres, quarteto de cordas, Arvo Pärt.

Sandokan fala com a mulher da loja sobre a vingança contra os padres. Fazem sexo.

9

62’09’’ - 64’ 22’’

Suíte para violoncelo n. 5, Sarabanda, Bach.

Sandokan carrega poltrona e se senta em frente à casa dos padres. Todos em atividades rotineiras.

10

73’ 06’’ - 76’ 17’’

Fratres para cordas e percussão, Arvo Pärt.

Padre Vidal arruma coisas. Os outros observam acampamento de Sandokan. Vidal conversa com jovens na praia. Os outros matam cachorros da cidade.

11

77’ 59’’ - 87’ 17’’

Cantus in Memory of Benjamin Britten, Arvo Pärt.

A governanta mata o cachorro de Vidal. Ela incrimina Sandokan pelas mortes. Vidal tenta convencer jovens a matar Sandokan e eles lhe batem. O povo bate em Sandokan. Vidal vê o cachorro morto. O investigador carrega Sandokan nas costas. Vidal diz à governanta que não vai perdoá-la.

Fonte: a autora (2024).

Quase no início do filme, ouvimos a versão de Fratres para quarteto de cordas de Arvo Pärt junto a imagens extremamente banais: uma mulher varre o chão, um homem alimenta a outro mais velho, outro homem trabalha na horta, e, ao final da música, vemos um homem treinando o cachorro na praia – o mesmo que estava nas primeiras imagens do filme – observado por outros quatro homens. São imagens que funcionam como a apresentação dos personagens (a governanta e os padres da casa) e sua banalidade de ações ganha uma transcendência com a música de Pärt.

Como podemos perceber no quadro 1, há alguns trechos em que a música – seja a Sarabanda de Bach, sejam as obras de Arvo Pärt – é utilizada em momentos de iconoclastia em relação aos significados religiosos comumente associados a essas peças, mesmo que a Sarabanda de Bach não seja uma obra sacra – Greig (2021) observou que a música barroca é às vezes usada como um estranhamento –: suicídio, sexo e muita violência dirigida a animais e homens nos últimos dois trechos.

De todo modo, há, no filme, uma perspectiva ou mínima esperança de redenção dos pecados e transcendência espiritual, como intencionado pelo diretor e materializado em seu longa-metragem, ainda que, nesse árduo caminho, muito mais violência seja perpetrada, tal como mostra o que acontece durante o trecho 11 do quadro 1. Com quase dez minutos de duração, este é um longo trecho com música, o Cantus in Memory of Benjamin Britten de Arvo Pärt, e funciona como um clímax do filme. A música liga ações distintas ocorrendo ao mesmo tempo (função comum da música do cinema) e extremamente violentas, como o espancamento do padre Vidal pelos jovens, a quem ele pedia o assassinato de Sandokan, e o espancamento mais grave de Sandokan pelos habitantes da cidade. Ao final, a imagem do padre investigador carregando Sandokan é como uma imagem de Cristo com a cruz, a mesma que se vê no quarto de Vidal.

Segundo Maimets-Volt (2013), a música de Arvo Pärt está comumente em filmes com histórias de injustiça, angústia, solidão ou com uma salvação por meio de sacrifício ou transcendência, elementos presentes em El Club. Para a autora, a música de Pärt traz para o filme o olhar do próprio divino sobre os personagens, o que nos parece pertinente a El Club, especialmente nos planos conjuntos dos padres na praia, em que sua culpa expiada por meio do isolamento é observada de um ponto de vista do alto. Maimets-Volt (2013) ainda considera como uma vantagem da música de Pärt a sua falta de sentimentalismo exagerado. No entanto, atualmente, como essas peças se tornaram praticamente um clichê do cinema (o “efeito Arvo Pärt” proposto por Chion), é algo discutível, mas uma análise mais profunda desse aspecto foge ao escopo deste trabalho.

Birdman, música clássica e ambiguidade entre diegético e extradiegético

De todos os filmes analisados neste artigo, Birdman (2014) é o único produzido nos Estados Unidos da América, com atores norte-americanos. O diretor mexicano Alejandro G. Iñarritu já havia obtido sucesso no seu primeiro longa-metragem, Amores brutos (Amores perros, 2000), filmado na capital mexicana, e prosseguiu com uma série de produções internacionais, sendo Birdman uma delas. Seu último filme, Bardo (2022), foi uma volta do diretor ao México.

Birdman é a história de um famoso ator de blockbusters de super-herói em forma de pássaro (Riggan, vivido por Michael Keaton) que resolve provar ser um “ator sério” ao produzir e protagonizar uma peça de teatro na Broadway. O filme tem muito uso de repertório clássico, ainda que chame mais a atenção a trilha original percussiva de Antonio Sánchez.

Quanto ao repertório clássico, são obras ligadas às estéticas romântica, pós-romântica e impressionista europeia (Tchaikovski, Mahler, Rachmaninoff e Ravel), além do compositor minimalista norte-americano John Adams (Quadro 2). Apesar de toda essa quantidade de música preexistente, não parece ter havido um sentido mais pessoal em sua escolha, tendo o diretor chegado a afirmar que poderia ter escolhido “qualquer música” (Hammond, 2014). Ao mesmo tempo, disse que queria que o filme tivesse música clássica, que ela viria da peça dentro do filme (Thompson, 2015).

Quadro 2 - Trechos de música clássica no filme Birdman.

Tempo

Música

No filme

21’ 29’’ - 22’ 10’’

Pavane pour une infante défunte, Ravel.

Corredores do teatro.

23’ 25’’ - 25’ 11’’

Sinfonia n. 9, I, Mahler.

Cena da peça.

41’ 13’’ - 42’ 50’’

Sinfonia n. 5, II, Tchaikovski.

Riggan em camarim move estojo com olhar. Cenas da peça.

63’ 41’’ - 65’ 17’’

Ich bin der Welt abhanden gekommen, Mahler.

Riggan no camarim, descontrolado. O ator Mike vai até o telhado e encontra Sam, filha de Riggan.

68’ 58’’ - 70’ 37’’

Sinfonia n. 9, I, Mahler.

Sam e Mike se beijam. Mike em cena da peça.

70’ 45’’ - 71’ 10’’

Sinfonia n. 4, II, Tchaikovski.

Riggan na coxia, a peça continua.

71’ 41’’ - 72’ 49’’

Sinfonia n. 5, II, Tchaikovski.

Cena da peça. Riggan vê Sam e Mike. Abre a porta da rua.

84’ 20’’ - 88’ 10’’

Piano Trio em lá menor, Passacaille, Ravel.

Final da briga de Riggan com a crítica. Ele sai e adormece na rua.

88’ 42’’ - 90’ 07’’

Chorus of Exiled Palestinians, John Adams.

Birdman atrás de Riggan. Cena de ação.

90’ 07’’- 90’ 47’’

Wild Nights, John Adams.

Riggan levita até alto do prédio.

91’ 29’’ - 91’ 31’’

Sinfonia n. 2, II, Rachmaninoff.

“Sorry, music”.

91’ 46’’ - 92’ 28’’

92’46’’ - 93’ 46’’

Sinfonia n. 2, II, Rachmaninoff.

Sinfonia n. 2, I, Rachmaninoff (após interrupção).

O voo de Riggan.

Pouso em frente ao teatro.

110’ 46’’ - 111’ 50’’

Sinfonia n. 2, II, Rachmaninoff.

No hospital, Riggan sobe à janela.

Fonte: a autora (2024).

Embora isso não se confirme totalmente, como veremos adiante, as músicas de Gustav Mahler [7] (trechos do Andante da Sinfonia n. 9 e de Ich bin der Welt abhanden gekommen), de Tchaikovski (o Andante cantabile da Sinfonia n. 5 e o Andantino da Sinfonia n. 4) e a Pavane pour une infante défunte, de Ravel parecem mesmo ser músicas diegéticas da peça. São obras de andamento calmo e predomínio de tonalidades menores, que contribuem para a melancolia tanto da peça dentro do filme quanto do filme em si. Dizemos que “parecem” estar na peça porque há, nesses trechos, uma ambiguidade de estatuto da música entre o diegético e o extradiegético, pois ela, por vezes, inicia-se em outro ambiente e termina com um dos personagens chegando próximo ao palco, ou vice-versa.

Esse caráter ambíguo é uma característica geral da música no filme, acontecendo também com os sons percussivos de Sánchez, que ouvimos desde o início até termos, após mais de 30 minutos, finalmente, a imagem visual do baterista tocando. Diferentemente do que o diretor afirmou, parte da música clássica não vem do ambiente da peça, mas sim da interioridade do protagonista Riggan, quando se manifestam ações de seu alter ego, o super-herói Birdman. Este aspecto acrescenta mais ambiguidade ainda à música e ao filme, entre realidade e fantasia [8], e fica evidente na sequência em que a voz over de Birdman, que desde o início ouvimos junto com ações do super-herói (tal como a movimentação de objetos), materializa-se na imagem. A visualização da fonte de um som que era antes só ouvido (nos termos de Michel Chion, uma desacusmatização do acúsmetro) serve também para explicar, segundo Souza Lima (2017), o processo de transformação do personagem Riggan/Birdman, esclarecendo a sua duplicidade.

A sequência começa só no terço final do filme, a 1h28min e 24s, quando Riggan está bem desconfiado de sua capacidade de ser bem-sucedido na peça. O homem-pássaro anda atrás dele na rua e reclama da empreitada no teatro e, junto com a voz over materializada, começamos a ouvir o Chorus of Exiled Palestinians da ópera The Death of Klinghoffer, de John Adams, na parte em que o coro exorta, com as cordas em staccato, com um caráter percussivo: Israel led all to waste (Israel destruiu tudo)[9].Logo depois, vemos imagens de explosões, tiros, mísseis, sons de helicópteros, comuns em filmes de super-herói, defendidos por Birdman. Dessa maneira, o filme transforma o seu espectador numa testemunha de “uma alucinação cujo conteúdo visual e sonoro é trabalhado de acordo com a imagética audiovisual de filmes de blockbusters” e faz um uso metalinguístico dos elementos audiovisuais, com uma paródia do gênero (Souza Lima, 2017, p. 145) (tradução nossa) [10]. Souza Lima também destaca que, no roteiro, Iñarritu escreveu sobre esta sequência que “o som é tão alto, que parece pertencer a outro filme” (Iñarritu et al., 2004, p. 96 apud Souza Lima, 2017, p.145). Curiosamente, parte deste “som alto” vem da própria música de John Adams, assim como os elementos percussivos, ainda que contribuam alguns efeitos sonoros acrescidos.

Depois desse momento paródico, Riggan ascende ao alto de um prédio e passamos a ouvir o coro Wild Nights, da obra Harmonium, de Adams, numa parte bem etérea da música (com a letra Were with Thee, que depois continua com Rowing in Eden), conferindo um ar de religiosidade, semelhante ao que é comumente aludido na recepção de obras de Arvo Pärt.

Na continuação da sequência, já no alto do prédio, um homem tenta demover Riggan do que parece ser um suicídio iminente. Riggan diz: “Desculpe, não posso falar, depois. Música!” Ouvimos, então, como se entrássemos rapidamente na mente de Riggan, dois segundos da parte “Moderato” do segundo movimento da Sinfonia n. 2 do compositor russo Sergei Rachmaninoff. Ainda indiferente às tentativas do homem, Riggan resolve pular: ouvimos novamente, antes mesmo do pulo, a mesma parte do segundo movimento da sinfonia de Rachmaninoff e Riggan voa como um pássaro (depois de uma breve interrupção da música, ela continua, mas, aí, com um trecho do primeiro movimento da sinfonia). Como observa Souza Lima (2017), é um momento de imersão na música, já que ela é praticamente o único elemento sonoro audível durante muito tempo. Contribuindo para essa imersão e reforçando o caráter alucinatório da sequência, está a grandiosidade romântica da música de Rachmaninoff. Então, em espelhamento ao estratagema utilizado para o início da música, ao chegar à calçada do teatro, Riggan diz ao porteiro: “Pare a música”, embora ele não tenha nenhum dispositivo que a justifique diegeticamente.

Souza Lima (2017, p. 147) destaca também o final do filme, com o mesmo trecho romântico do segundo movimento da Sinfonia n. 2 de Rachmaninoff como ligado ao alter ego Birdman, observando que, nesses dois momentos, há “uma representação visual de Riggan se tornando Birdman”. Para o autor, na sequência analisada anteriormente, a transformação é representada e, na segunda, é consumada, pois Riggan, já hospitalizado e com um nariz protético (ou seja, houve uma transformação física), olha para o exterior por uma janela e vê pássaros (seus sons estão bem presentes na trilha sonora), abre a janela e sobe ao parapeito, depois do que intuímos, pelo sorriso da filha do personagem ao olhar para o céu, a sua transformação definitiva em Birdman.

Além da sequência do voo, Souza Lima (2017) observa outro processo de desacusmatização da voz num momento logo anterior a ela (a 1h24min e 10s de filme), e destacamos também esta sequência porque nela ouvimos música do repertório clássico que não é música de cena da peça: a Passacaille do Trio para piano em lá menor de Ravel. Riggan acabara de discutir com uma importante crítica teatral num bar, sai, compra uma bebida, embriaga-se e dorme na rua. No início da sequência, ouvimos a Passacaille de Ravel e uma voz vociferando um texto de forma teatral, até que, quando Riggan sai do bar, vemos a origem da voz num homem, que começa a falar normalmente com o protagonista e lhe pergunta se a performance havia sido exagerada. Como numa alucinação, aqui, o ambiente teatral e o interior perturbado de Riggan se misturam, além de que a Passacaille de Ravel tem um andamento calmo e um caráter melancólico semelhante às outras músicas da peça.

Ao final de contas, parece-nos que a escolha musical de Iñarritu não se mostra tão aleatória quanto a entrevista dele faz crer.

Considerações Finais

Observamos que a música clássica foi bastante utilizada justamente pelos diretores de nosso corpus que são transnacionais. Dentre eles, levando em conta o conceito de Gorbman (2007) e a partir das entrevistas coletadas, Sebastián Lelio pode ser considerado como responsável por “música de autor”, embora, no caso de Uma mulher fantástica, tenha contado também com a contribuição fundamental da atriz Daniela Vega. Nos casos de Pablo Larraín e de Alejandro Iñarritu, não há como afirmar a partir das entrevistas encontradas e desses únicos filmes do mapeamento, sendo necessário um estudo mais aprofundado da música em outros filmes deles. Particularmente Larraín usou bastante música clássica preexistente do século XX em filmes anteriores, o que seria um estudo a se fazer.

Por outro lado, as recorrências musicais apontam para uma possível adequação dos filmes a aspectos estéticos prezados pelos grandes festivais, e os filmes analisados têm características comuns ao uso da música preexistente no cinema contemporâneo de autor em geral: uma grande presença do repertório barroco evocando elegância e/ou religiosidade e música minimalista contemporânea também evocando religiosidade. No caso do “efeito Arvo Pärt” observado por Chion, em nossa pesquisa, El Club está junto a vários filmes italianos (de Nanni Moretti, Paolo Sorrentino e Piero Messina), norte-americanos (de Terrence Malick e Bennett Miller), do russo Andrey Zvyagintsev e do franco-senegalês Alain Gomis. Nesses filmes, pode-se observar o aspecto da transcendência, da solidão, de situações difíceis e angustiantes, consideradas por Maimets-Volt (2013) como comuns na utilização da música de Pärt, tal como presentes em El Club.

Em Birdman, a música minimalista contemporânea de John Adams vem numa sequência em que ela se imiscui a uma representação metalinguística de filmes de super-herói e a música romântica de Rachmaninoff se salienta entre as demais pelo fato de que o protagonista dá asas literalmente ao seu alter ego. Apesar do especial destaque para Rachmaninoff e de um repertório romântico, pós-romântico e impressionista no restante do longa-metragem, as outras incursões musicais estão, na quase totalidade, como música de cena da peça dentro do filme – dentro da ambiguidade geral por que toda a música desse filme se caracteriza. Já as obras de John Adams se destacam por serem vocais e pela sequência fundamental a que dão início. Obras de Adams também foram bastante utilizadas em filmes do italiano Luca Guadagnino.

Desse modo, apesar das características individuais de cada um dos quatro filmes analisados, suas escolhas de repertório, assim como muitos dos significados a que se associam, há uma conexão a semelhantes aspectos estéticos de outros filmes autorais do cinema mundial.

Notas

[1] Com esta palavra, estamos nos referindo ao repertório erudito e não apenas ao período clássico.

[2] Delgado (2013) compara essa sequência com a sensação de envelhecimento do protagonista de Visconti.

[3] No original: “In the beginning, Marina sang pop, but the issue is that I don’t know how to sing pop, and, so, that was a challenge […]. So, one day, two weeks before the shoot […], I show up and sang an aria for him […]. And so he said: OK […]. The next day, he showed up with new scenes that included opera.”

[4] No original: “I love music in films [...], and my films have a lot of music. And, in this case, the character was a musical character, because she is a singer. So, apart from the score and the songs that we hear in the radio here and there, there were these two moments – three moments – when we hear Marina singing: a salsa and two baroque arias. And then, off course, the last scene, in which she is finally singing in a theater […]. I was in a hurry because we needed to shoot and I didn’t know what to use, and I, I just started to look for baroque arias that weren´t so long – to be super honest, anything below four minutes. And then, in a Sunday morning, I remember stambling with Ombra mai fu, that I knew, that I’ve heard before, but I didn’t know the title. I was so touched by it…”

[5] No original: “The lyrics are […] pure gratefulness: it’s someone thanking a tree for the shadow that it’s offering in such a luminous day. It’s someone thanking a tree for its generosity and protection – so it was strangely connected to Orlando. And to end the film in that state of gratefulness, which is probably a great indicator of the spiritual place in which the character ends up. She is not in anger, she is not in resentment, she’s not even OK with it, she’s in gratefulness. And that is a very specific emotion.”

[6] No original: “All the music is religious. Arvo Pärt is a composer who is still alive and perhaps one of the world’s living music geniuses. There’s a very interesting connection here because we had a piece from Britten, who based his work on Bach, and one of the pieces we used from Arvo Pärt is the Cantus in Memoriam Benjamin Britten. So all of these composers are connected to one another and they all produced a very mystic and spiritual music. The music in the movie feels very religious and this is because it was composed from a religious perspective. This is why I think it fits so well.”

[7] Embora chame a atenção a recorrência de Mahler em Gloria e Birdman, são usos muito distintos, como música extradiegética (uma instância mais autoral) e como músicas da peça, respectivamente.

[8] Esses dois aspectos se juntam no início do trecho da Sinfonia n. 5 de Tchaikovski, quando vemos Riggan mover um estojo com o seu olhar.

[9] A ópera, composta em 1990-1991, é baseada na história real do sequestro de um navio por palestinos, resultando na morte do passageiro judeu Leon Klinghoffer. O coro é um lamento dos palestinos por terem sido expulsos de suas terras pelos israelenses em 1948.

[10] No original: “a hallucination whose visual and auditory content is fashioned according to the audiovisual imagery of superhero blockbusters.”

Artigo submetido em 07/01/2024 e aceito em 30/07/2024.

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