Mídia, memória e testemunho em Argentina, 1985:
relatos da ditadura no Juicio a las Juntas
Eduardo Comerlato1
Resumo
Por meio dos conceitos de “mídia”, “memória” e “testemunho”, o presente trabalho realizou uma análise do filme Argentina, 1985 (2022), buscando compreender o que o Juicio a las Juntas significou para o povo argentino no ano de 1985. Deste modo, além de uma contextualização da ditadura militar vivida no país latino-americano, também assinalamos as características da transição democrática e como isso é evidenciado em significações por meio das imagens do longa-metragem. Este artigo analisa o filme como uma obra que busca exercitar a memória nacional argentina, relembrando os horrores da ditadura por meio dos relatos de testemunhos e reforçando o papel de personagens importantes, como os promotores Julio César Strassera e Luis Moreno Ocampo, responsáveis por criminalizar os militares que provocaram diversas violações de direitos humanos em uma das ditaduras mais brutais da América Latina. De um modo geral, esse contexto é promovido conforme o filme constrói as relações interpessoais dos protagonistas e cria um antagonismo entre a nova e a velha política que surgia na Argentina da década de 1980, tratando de reforçar a importância do julgamento para a atual identidade política e democrática do povo argentino.
Palavras-chave
Argentina; Cinema; Memória; Política; Testemunho.
1 Doutorando do Programa de Pós-Graduação em Comunicação Social da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUCRS), com bolsa Capes. Possui Mestrado em Ciências da Comunicação (Unisinos) e Graduação em Jornalismo (PUCRS). E-mail: educomerlato@hotmail.com.
Juiz de Fora, PPGCOM – UFJF, v. 17, n. 3, p. 103-119, set./dez. 2023 DOI: 10.34019/1981-4070.2023.v17.41887
Media, memory and testimony in Argentina, 1985:
the reports of dictatorship in the Juicio a las Juntas
Eduardo Comerlato1
Abstract
Through the concepts of “media”, “memory” and “testimony”, this work carried out an analysis of the film Argentina, 1985 (2022), seeking to understand what the Juicio a las Juntas meant for the Argentine people in the year 1985. In this way, in addition to the contextualization of the military dictatorship experienced in the Latin American country, we also highlight the characteristics of the democratic transition and how this is evidenced in meanings through the images of the film. This article analizes the film as a work that tries to exercise the Argentine national memory, remembering the horrors of the dictatorship through testimonial reports and reinforcing the role of important characters, such as prosecutors Julio César Strassera and Luis Moreno Ocampo, responsible for criminalizing the military that provoked many human rights violations in one of the most brutal dictatorships in Latin America. In general, this context is developed as the film creates the family relationship of the protagonists and points out an antagonism between the new and the old politics that emerged in Argentina during the 1980s, attempting to reinforce the importance of the trial for the current political and democratic identity of the people of Argentina.
Keywords
Argentina; Cinema; Memory; Politics; Testimony.
1 Doutorando do Programa de Pós-Graduação em Comunicação Social da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUCRS), com bolsa Capes. Possui Mestrado em Ciências da Comunicação (Unisinos) e Graduação em Jornalismo (PUCRS). E-mail: educomerlato@hotmail.com.
Juiz de Fora, PPGCOM – UFJF, v. 17, n. 3, p. 103-119, set./dez. 2023 DOI: 10.34019/1981-4070.2023.v17.41887
Introdução
De acordo com Huyssen (2000, p. 9), um dos fenômenos sociais mais surpreendentes das últimas décadas é a “emergência da memória como uma das preocupações culturais e políticas centrais das sociedades ocidentais”. Apesar de reconhecer que o contexto midiático e tecnológico da contemporaneidade caminhe para a constituição de “esferas globais”, o autor entende que a cultura da memória e seus discursos ainda “permanecem ligados às histórias de nações e estados específicos” (HUYSSEN, 2000, p. 16), projetando rastros que avaliam os traumas e o legado que o passado deixou em cada país.
O presente artigo busca demonstrar como isso efetivamente se manifesta ao analisar as imagens de um filme lançado em 29 de setembro de 2022: Argentina, 1985. Dirigido por Santiago Mitre, o longa-metragem aborda um dos momentos mais importantes da história política argentina, o Juicio a las Juntas. Este julgamento, que se iniciou em abril de 1985, foi realizado em um tribunal civil e condenou os comandantes das Juntas Militares da ditadura que ocorreu entre 1976 e 1983. Assim, após o testemunho de sobreviventes do período ditatorial, foi decretada a prisão de figuras militares importantes por conta de diversas violações dos direitos humanos.
Além da análise fílmica e de uma contextualização histórica que buscará compreender o que o julgamento representou para os argentinos após o sombrio período da ditadura cívico-militar, também dialogaremos com conceitos que serão capazes de nos ajudar a entender as particularidades do recente filme, como “memória”, “narrativa”, “testemunho” e “esquecimento”. Portanto, queremos interpretar as significações deixadas pelo filme, que busca reforçar, nos dias de hoje, a memória democrática e a identidade política conquistada pelo povo argentino na década de 1980.
O contexto político argentino: conselhos de guerra e desaparecimentos
Com similaridades em comparação aos seus vizinhos latino-americanos, a Argentina teve um contexto sociopolítico bastante conturbado durante o século XX. Conforme sofria alternâncias em seu governo, que em muitos momentos esteve caracterizado pela ascensão do movimento peronista, o país sofreu, somente entre os anos de 1930 e 1976, nada menos que “seis golpes liderados por militares, o que mostra a presença constante desses atores na cena política” (CAPELATO, 2006, p. 64). A intervenção que resultou na governança mais severa aconteceu em 24 de março de 1976, quando Maria Estela Martínez de Perón, a Isabelita Perón, foi deposta para a instauração de um governo militar intitulado Processo de Reorganização Nacional, cuja intenção “era de reprimir movimentos guerrilheiros, superar a desordem administrativa e a impotência das forças políticas dominantes para obter uma saída institucional à crise” (PRADO; PELLEGRINO, 2022, p. 175).
Cabe lembrar que a década de 1970 havia sido marcada pela atuação de movimentos de guerrilha ao longo de toda a Argentina, como os Montoneros, o Ejército Revolucionario del Pueblo e as Fuerzas Armadas Peronistas. Assim, antes mesmo do golpe, é reconhecida a ação de aparatos contrarrevolucionários, como a Aliança Anticomunista Argentina. Esta organização paramilitar se fez presente no governo de Isabelita Perón por meio de uma forte repressão bélica, “caracterizada por sequestros, tortura, desaparecimento de militantes e assassinatos” (CAPELATO, 2006, p. 65). Ao lado das justificativas econômicas, como a inflação que assombrava o país, este era o principal pretexto que seria utilizado pelos militares para legitimar o golpe; isto é, um “ideário militar que insistia que a sociedade tinha de ser salva do caos e da degeneração pela ação política” (PRADO; PELLEGRINO, 2022, p. 175), no qual os generais incorporaram o poder para combater as supostas “forças desagregadoras da nação” (PRADO; PELLEGRINO, 2022, p. 175).
Com o golpe, essa tática de repressão iria aumentar em uma escala surpreendente. Embora fosse previsível que o novo regime militar iria colocar em prática uma dura política de opressão, a escala e a natureza da violência se manifestaram com uma intensidade inédita:
As medidas iniciais se ajustaram a um repertório conhecido: a proibição da atividade política, a censura da imprensa, a detenção de dirigentes trabalhadores e a intervenção nos sindicatos. A elas se agregou a pena de morte, administrada de uma forma fora do comum. Primeiro, em relação às vítimas: ainda que o objetivo dos militares era acabar com a subversão, sua ação repressiva esteve longe de se limitar aos guerrilheiros. O próprio Videla disse que “terrorista não é apenas o portador de uma bomba ou arma, mas também aquele que espalha ideias contrárias à civilização ocidental e cristã”. (TORRE; RIZ, 2002, p. 127) (tradução nossa) [1]
Além da abrangência em relação às vítimas, destacou-se, igualmente, a metodologia de violência usada pelo Processo de Reorganização Nacional. Primeiramente, foram criados “conselhos de guerra” onde se poderia atribuir sentenças aos civis dentro de uma ampla gama de delitos. Embora a prática de criação de “tribunais militares” fosse comum na Argentina desde o século XIX, D'Antonio (2016) alerta para o fato de que somente após 1976 os conselhos se converteram em “corpos extrajudiciais concentrados em acusar civis por meio da figura do delito político” (D'ANTONIO, 2016, p. 2), configurando definitivamente a ideia dos “inimigos internos da nação”. Com isso, a infraestrutura repressiva multiplicou os centros de detenção clandestinos ao redor de toda a Argentina e, baseando-se nas três forças militares (Exército, Marinha e Aeronáutica), passou a sequestrar, interrogar, torturar e matar os inimigos internos nestes campos de concentração.
A partir de 1976, portanto, uma “onda de terror varreu o país” (TORRE; RIZ, 2002, p. 127), contabilizando 30 mil mortes e desaparecimentos, sobretudo, de operários (30,2%), estudantes (21%), empregados (17,9%) e docentes (5,7%). Essa violência teve um declínio na década de 1980. Nesta época, Tribess (2010, p. 106) identifica uma “série de acontecimentos que podem simbolizar e marcar temporalmente a transição para a democracia na Argentina”. Primeiro, deve-se entender que uma oposição começou se organizar por meio de protestos liderados por movimentos sociais, como Las Madres de Plaza de Mayo, a Confederación General del Trabajo e os próprios partidos políticos, que reapareceram na cena política conforme o plano de governo dos militares manifestava fracassos, sobretudo no setor econômico, com uma inflação que havia piorado consideravelmente.
Então, em 1982, o Processo de Reorganização Nacional sofreu outro golpe impactante: o insucesso da Guerra das Malvinas. Demonstrando um exacerbado patriotismo, o presidente Leopoldo Galtieri ordenou, em abril daquele ano, uma invasão às Ilhas Malvinas, iniciando um conflito territorial com o Reino Unido, em pleno Oceano Atlântico. As disputas se encerraram com a derrota argentina, em junho de 1982. Poucos dias depois, Galtieri renunciou ao poder e, alguns meses mais tarde, o general Reynaldo Bignone assumiu a Presidência, em um governo que pode ser considerado de “transição não-civil” (TRIBESS, 2010, p. 6), dado que o governante convocou eleições livres e diretas para outubro de 1983, nas quais o candidato Raúl Alfonsín foi eleito presidente.
Nesse período, O'Donnell (1997) identifica uma mudança de pensamento dos argentinos: enquanto nos primeiros anos da ditadura havia uma conformidade por parte da sociedade, que via o período anterior ao regime como uma época de caos, após os primeiros anos de 1980 surgiu um desgaste neste pensamento. Não apenas os erros cometidos nas Malvinas foram condenados, como também diversas denúncias de violação dos direitos humanos chegaram ao conhecimento do público:
Mais do que uma mudança de opinião, estamos diante de uma alteração de memória; trata-se de uma renovação da consciência histórica do passado, que mostra como a memória é uma construção sempre retroativa [...]. Com a transição democrática, teve início a construção de uma outra memória que não só procurou desconstruir o imaginário produzido pela ditadura, mas passou a representá-la como um teatro de horrores, introduzindo nele cenas de resistência que tiveram início quando as “Mães”, cansadas de procurar seus filhos nos Comissariados e Casernas, começaram, em sinal de protesto contra os desaparecidos, a rodar em silêncio e com um lenço branco na cabeça. (CAPELATO, 2006, p. 69)
Com esta mudança de mentalidade, evidenciada pelas manifestações nas ruas da Argentina, se propagou a ideia de que o estado de direito deveria voltar a reinar. Por sua vez, este novo cenário veio a reforçar outro grande problema social que ainda precisava ser resolvido durante a transição para a democracia: o dos desaparecidos, sobretudo porque, no final do regime, “os militares não estavam em condições de negociar, de forma vantajosa, sua saída da cena política, mas antes disso, destruíram grande parte da documentação concernente à repressão” (CAPELATO, 2006, p. 70).
Um dos primeiros atos de Raúl Alfonsín enquanto presidente foi executar um pedido que estava sendo feito em todo o país. No mês de dezembro de 1983, foi criada uma das primeiras comissões da verdade de toda a América Latina, a Comisión Nacional sobre la Desaparición de Personas (CONADEP), que trabalhou de forma coordenada com a Equipo Argentino de Antropología Forense para investigar restos humanos na busca por desaparecidos, mortos e bebês sequestrados.
De maneira notável, isso significou o primeiro passo dado na busca pela justiça, que ganhou forças quando o CONADEP publicou o informe intitulado Nunca más: informe final de la Comisión Nacional sobre la Desaparición de Personas, que reuniu mais de 7 mil arquivos acerca dos crimes cometidos pelas Juntas Militares, com uma documentação de cerca de 50 mil páginas. Graças a esse informe, ainda em 1983, pode-se tornar mais concreto um projeto que havia sido anunciado por Alfonsín, que era a ideia de julgar os militares em um tribunal civil, e não em uma instância militar. Então, após alguns intentos, tomou forma o Juicio a las Juntas (Julgamento das Juntas, em Português) que, a partir de 22 de abril de 1985, ocorreu no Palacio de Justicia de la Nación, em Buenos Aires. O julgamento foi comandado por seis juízes, que analisaram a sentença do promotor do caso, Julio César Strassera, que recebeu auxílios do fiscal adjunto Luis Gabriel Moreno Ocampo. As audiências ocorreram em 74 datas e reuniram 833 testemunhos, relacionados a um total de 703 casos analisados.
Em 9 de dezembro de 1985, a sentença considerou que as juntas haviam elaborado um sistema repressivo ilegal, cometendo delitos livremente, como a privação de liberdade, tortura, sequestro e assassinatos. Em termos de penas, o ex-presidente Jorge Rafael Videla e o general Emilio Eduardo Massera, que comandou o campo de concentração da Escuela de Mecánica de la Armada (ESMA), foram condenados à prisão perpétua. Já Roberto Eduardo Viola, Armando Lambruschini e Orlando Ramón Agosti receberam, respectivamente, a sentença de 17, 8 e 4 anos de reclusão. Os demais acusados, Omar Graffigna, Leopoldo Galtieri, Jorge Isaac Anaya e Basilio Lami Dozo, foram absolvidos por falta de provas.
As audiências, que quase tiveram de ser canceladas por conta de ameaças sofridas pelos fiscais, tornaram-se públicas para garantir transparência e notoriedade. Baseando-se em testemunhos, elas tomaram a forma de um julgamento oral, com mais de 530 horas de tribunal, que foram gravadas integralmente pela Argentina Televisora Color (ATC). Apesar disso, as audiências não foram transmitidas ao vivo a pedido dos militares, que estavam preocupados com as suas imagens. Assim, foi firmado um acordo de que as emissoras de televisão poderiam passar diariamente apenas um compilado de imagens com três minutos de gravação, mas sem som. Segundo Schejtman (2021), isso causou revolta nos jornalistas, que protestaram pela possibilidade de transmitir o julgamento, o que só surtiu efeito no dia da sentença final, que enfim foi televisionada ao vivo. Por outro lado, cabe salientar que todo o julgamento pôde ser ouvido no rádio, que não enfrentou tanta regulação de transmissão.
Com isso, considera-se o Juicio a las Juntas como um dos momentos mais importantes da história política argentina, destacando-se nos arquivos até hoje:
O Informe conhecido como Nunca más possibilitou a tomada de consciência coletiva em relação à amplitude da política de extermínio. Levando em conta que a memória social representa uma prática com marcas e suportes, pode se considerar que esse documento representa o ato de fundação da construção da memória da ditadura argentina e esse primeiro núcleo organizacional deu sequência a outras operações de memória nos anos seguintes [...]. O Julgamento das Juntas representou o segundo momento mais importante no que se refere aos marcos de memória, sobretudo porque consolidou a transição democrática. Nunca más definiu o lugar das vítimas e o Julgamento das Juntas instalou a cena da lei. (CAPELATO, 2006, p. 70-71)
No filme Argentina, 1985 temos uma narrativa que apresenta os bastidores do Juicio a las Juntas, representando os momentos de preparação do tribunal e de sua execução. Para tanto, o longa-metragem destaca a figura do promotor Strassera, que é tratado como um herói por seus esforços para condenar a ditadura militar.
Os relatos pós-ditadura de Argentina, 1985
Para nos ajudar na análise fílmica, introduziremos alguns conceitos importantes de Didi-Huberman (2021). Considerando o cinema como uma psicotécnica, o autor argumenta que o êxtase, estado emocional e perceptivo intenso experimentado diante de uma imagem impactante, deve ser pensado em termos de montagem, uma dimensão operatória que faz com que os conceitos possam surgir a partir do ponto de vista emocional. Justamente por isso, os trabalhos do filósofo costumam enfatizar a psicotécnica das artes, na qual as imagens são uma ferramenta de montagem associada às emoções:
As emoções não são para Eisenstein “pensamentos menores”: ele quer mostrar, pelo contrário, que o próprio pensamento é “emocional” no seu fundo, o que tem também como consequência um reconhecimento inteiro dos "fundamentos emocionais da forma" em geral. E a imagem, a obraz, seria precisamente o veículo privilegiado [...] para esse tipo de relação antropológica entre sensível e inteligível, ou entre emoções e noções do pensamento. Até mesmo entre tudo isso e a ação, isto é, a história e a política. [...]. Assim como um filme é ao mesmo tempo construção e movimento, diremos com Eisenstein, que uma imagem é sempre emoção e estrutura ao mesmo tempo: estruturação da emoção ou patetização da estrutura. (DIDI-HUBERMAN, 2021, p. 350)
Propondo um pensamento dialético, Didi-Huberman (2021) entende a necessidade de avaliar as emoções de acordo com o seu meio de aparição histórico, social e cultural. Por isso, pensar na natureza das emoções implica investigar, historicamente e politicamente, como elas acontecem e como elas são pensadas através das imagens. Para ele, as emoções não são algo, mas se tornam algo na medida em que sempre estão associadas às coisas ao seu redor, colocando-se “em conflitos, em tensões, e mesmo em explosões, os múltiplos fatores que se interpenetram” (DIDI-HUBERMAN, 2021, p. 358). Portanto, as emoções provocadas por uma imagem não dependem somente de sua techne, mas de todo um trabalho que as faz tomar uma forma, de acordo com o seu contexto de produção. O cinema, aqui, torna-se capaz de impulsionar essa característica, pois se vê como uma a reflexão da realidade, “palavra a ser entendida tanto no seu sentido psíquico quanto no seu sentido óptico” (DIDI-HUBERMAN, 2021, p. 358).
Como veremos a seguir, o ponto alto do êxtase promovido por Argentina, 1985 ocorre com a representação do tribunal, que ocupa os trechos finais do longa-metragem. No entanto, para que esse ápice efetivamente ocorra, há todo um trabalho de construção por meio de recursos narrativos que amplificam as estruturas e emoções das imagens. Para tanto, em nossa análise fílmica, valorizaremos a contextualização histórica do longa-metragem, bem como as características do roteiro por meio do conceito de narrativa, aqui entendido como o ato de articular diferentes acontecimentos em uma intriga mimética, capaz de produzir sentidos estruturais, simbólicos e temporais, como defende a lógica aristotélica de Ricoeur (2010).
Argentina, 1985 se inicia com cartões que indicam se tratar de um filme inspirado em fatos reais, explicando o contexto de transição democrática da época. A partir de então, o principal recurso narrativo do filme prontamente se manifesta: a aproximação feita ao personagem que se tornará o protagonista da trama, Júlio César Strassera. Assim, ficamos sabendo que o promotor ouvia rumores sobre a possível incumbência de comandar o Juicio a las Juntas. Com toques biográficos, o longa-metragem apresenta a vida íntima do promotor por meio de sua família que, assim como ele, também desenvolve um temor diante da tarefa de julgar os militares, grupo que ainda desfrutava de muito poder na Argentina.
Em sua narrativa, o roteiro destaca o clima de tensão vivido na Argentina no período. Isso é evidenciado pelo fato de que, quando Strassera é efetivamente chamado para imputar o processo, ele não consegue contar com a ajuda de seus colegas advogados, devido ao medo de repressão. Essa situação muda conforme o filme introduz outra peça-chave de seu elenco, o personagem Gabriel Moreno Ocampo, jovem designado promotor adjunto do processo. Ele torna-se crucial para a trama ao sugerir que a acusação do julgamento deveria ser feita por advogados de pouca experiência, uma vez que os juristas mais consagrados não estavam aderindo à causa por medo de repressão. Desse modo, o enredo narrativo passa a mostrar os promotores em sua busca para recrutar ajudantes em uma clara jogada de significação do filme: aqui, a ideia de uma equipe jovem se relaciona com a formação de uma democracia jovem na Argentina, contrastando com a velha política dos militares.
Apesar da tarefa ser complexa, principalmente diante da queima das evidências, o grupo de Strassera tem a ideia de provar que, durante a ditadura, houve um plano sistemático de adotar uma política baseada em forças repressivas em todas as regiões da Argentina. Isso poderia comprovar que a Junta Militar atuou de forma organizada, promovendo barbáries contra os “rebeldes subversivos”. Para tanto, seria necessário conversar com as vítimas que sobreviveram ao período, bem como com os familiares de mortos e desaparecidos.
Baseando-se no informe Nunca más, os advogados conduzem entrevistas e analisam documentos para formar a acusação. No que concerne ao roteiro, o filme busca exaltar, por um lado, o ânimo dos jovens advogados, que consideram o julgamento não só a maior oportunidade de suas carreiras, como também o grande responsável pelo futuro político da Argentina. Ao mesmo tempo, o longa-metragem jamais deixa de evidenciar o clima de tensão, mostrando-nos o medo dos protagonistas diante de possíveis atentados. Uma das cenas mais emblemáticas da primeira metade do filme é quando a equipe de acusação de Strassera se encontra acidentalmente com os advogados de defesa dos militares. Além das diferenças de idade, a imagem dos jovens se sobressai por sua união e pelo uso de cores mais vibrantes em seu vestuário, que é menos formal. Forma-se, assim, um dos primeiros trechos de oposição do filme, que é claramente valorizado pelo ângulo das câmeras e posicionamento dos atores.
Figura 1 - Defesa e acusação.
Fonte: Captura de tela do filme Argentina, 1985 (2022).
Faz-se necessário mencionar que, até o trecho mencionado, Argentina, 1985 deixa transparecer alguns traços ficcionais e aproxima a sua essência ao gênero do drama histórico-político. Por exemplo, os personagens Bruzzo, responsável por revelar que Strassera será o encarregado do processo, e Ruso, conselheiro do protagonista, jamais existiram na realidade. Assim, nota-se que alguns elementos poéticos surgem, enquanto estratégia narrativa, para decorar o enredo e tornar o longa-metragem autoexplicativo.
Nesse sentido, destacamos a construção das relações de Strassera e Ocampo com as suas respectivas famílias: enquanto o primeiro teme a segurança de seus filhos, o promotor adjunto vive um drama familiar na medida em que possui parentes militares e apoiadores do regime – sua mãe, inclusive, frequenta a mesma igreja que o ex-presidente Videla, que para ela era um homem bom. Com isso, fica claro que estas relações interpessoais, mesmo que fictícias, fazem parte de uma estratégia narrativa usada para construir a ambientação do filme, servindo como uma espécie de termômetro acerca das diferentes realidades sociais da Argentina na década de 1980.
Essas características de enredo, portanto, também ajudam a preparar o que classificamos como o êxtase de Argentina, 1985, que são as cenas do tribunal. Nelas, é possível perceber um grande respeito aos arquivos da época, pois os diretores buscam criar representações de como o tribunal efetivamente ocorreu, com cenas muito similares às gravações da época. Não somente a disposição do cenário e o vestuário dos participantes são idênticos, assim como os próprios ângulos de câmera se mantém os mesmos do passado, quando o evento foi filmado pela emissora ATC. Resgata-se, assim, uma espécie de “memória das mídias”, o que nos faz considerar que a precisão histórica se apresenta como uma estratégia estética que pode ser entendida enquanto inerente ao cinema desde os seus primórdios, que é a ideia de justamente exibir uma “impressão de realidade” (GUTFREIND; STIGGER, 2013, p. 182).
Nas representações do julgamento, o longa-metragem utiliza a própria disposição das audiências para criar uma produção de sentidos a partir do posicionamento dos personagens: de um lado, estão os promotores da acusação e, de outro, os defensores dos militares, em uma ideia de antagonismo [Figura 2] que é comum em filmes histórico-políticos, segundo Gutfreind e Stigger (2013). Essa estratégia promove o pensamento emocional ao confrontar o bem e o mal, sinalizando “amigos” e “inimigos” dentro da trama, como se a imagem pudesse nos proporcionar uma conciliação com a história.
Figura 2 - Oposição no tribunal.
Fonte: Captura de tela do filme Argentina, 1985 (2022).
No contexto dos tribunais, destaca-se também a figura dos testemunhos, que sempre estão centralizados frente aos juízes. Como atesta Ricoeur (2007), o testemunho é uma atividade capaz de englobar diferentes esferas, como a vida cotidiana, a memória arquivada e o próprio uso judicial. No filme, podemos ver como essa abrangência se manifesta, fazendo com que o testemunho funcione como um percurso epistemológico no nível da representação do passado, por meio da articulação narrativa, na qual há a proposta de contar algo que de fato ocorreu. Dessa forma, “o testemunho nos leva, de um salto, das condições formais ao conteúdo das ‘coisas do passado’ (praeterita), das condições de possibilidade ao processo efetivo da operação historiográfica”, inaugurando “um processo epistemológico que parte da memória declarada, passa pelo arquivo e pelos documentos e termina na prova documental” (RICOEUR, 2007, p. 170), atestando a realidade dos acontecimentos do passado. Por isso, entendemos os motivos de o testemunho ser uma estratégia narrativa recorrente no cinema, especialmente na sua representação como um sintoma da realidade, destacando-se como recurso narrativo em produções relacionadas a acontecimentos históricos traumáticos, como a Segunda Guerra Mundial e as ditaduras militares da América Latina, por exemplo.
Isso nos permite refletir sobre como os mais variados propósitos do testemunho se encontram no Juicio de las Juntas e na representação criada por Argentina, 1985. Inicialmente, há a evidente ideia judicial de comprovar a violência utilizada durante a ditadura, que tentava esconder os vestígios de seus crimes. Conforme os testemunhos da barbárie são veiculados pelas mídias no julgamento, eles efetuam um novo papel no processo epistemológico da memória dos argentinos no tocante ao regime, renovando-se até os dias de hoje, por meio da memória narrativa.
Assim, Ricoeur (2007) cria uma relação de sentido entre o testemunho e a memória em diferentes níveis. Ao propor uma fenomenologia da memória – ou, ainda, uma fenomenologia da realidade social –, o autor faz uma conexão entre a fenomenologia da memória individual e a sociologia da memória coletiva, entendidas por ele como fenômenos dialéticos:
Uma fenomenologia da memória, menos sujeita ao que arrisco chamar de preconceito idealista, pode extrair da concorrência que lhe faz a sociologia da memória uma incitação a se desdobrar na direção de uma fenomenologia direta aplicada à realidade social, no cerne da qual se inscreve a participação de sujeitos capazes de designar a si mesmos como sendo, em diferentes graus de consciência refletida, os autores de seus atos. Esses desenvolvimentos são encorajados pela existência de traços do exercício da memória portadores da marca do outro. Em sua fase declarativa, a memória entra na região da linguagem: a lembrança dita, pronunciada, já é uma espécie de discurso que o sujeito trava consigo mesmo. [...] Assim posta na via da oralidade, a rememoração também é posta na via da narrativa, cuja estrutura pública é patente. (RICOEUR, 2007, p. 138-139)
Será dentro da linguagem, sobretudo por intermédio da narrativa, que o passado poderá ser revisitado e até mesmo ressignificado, segundo Ricoeur (2010). Em Argentina, 1985, temos um excelente exemplo deste processo epistemológico, uma vez que os relatos das vítimas permitem acesso ao sombrio passado argentino, produzindo conhecimento acerca dos fatos. Em sua época, os testemunhos permitiram uma mudança de sentido frente ao governo das Juntas Militares, tornando público os horrores da ditadura por meio da articulação da linguagem. Hoje, em Argentina, 1985, podemos (re)lembrar estes testemunhos e ter uma noção do que era praticado nos campos de detenção e como o julgamento ocorreu na época. Seguindo o pensamento de Ricoeur (2010), compreendemos que, se a narração implica a memória, é graças à narrativa que podemos fazer essa conexão do presente-passado.
Figura 3 - Testemunho de Adriana Calvo Laborde: filme (esquerda) comparado ao arquivo original.
Fonte: Captura de tela do filme Argentina, 1985 (2022) e Memoria Abierta [2].
Não à toa os trechos mais emocionantes do filme são os relatos testemunhais, com destaque para a impactante narração de Adriana Calvo Laborde, professora sequestrada pelos militares quando estava grávida e que teve a sua filha em cativeiro. Neste trecho, fica claro como Argentina, 1985 não tem interesse em recriar as cenas das torturas em representações. Pelo contrário, tudo é registrado dentro da própria perspectiva do tribunal, em que as memórias das vítimas se tornam públicas. Além das similaridades com as gravações de 1985, visualizamos outra estratégia narrativa diante da ideia de que o relato testemunhal é autossuficiente, sendo capaz de impactar ao dar voz aos testemunhos e ressaltar a sua importância no julgamento. Com isso, não somente o que está sendo relatado importa, como também se valoriza o fato de que os testemunhos estão podendo falar, agora em um contexto democrático. Nesse sentido, os relatos se tornam ainda mais emocionantes, pois trazem a tensão e a coragem dos depoentes que, mesmo ameaçados pelos apoiadores da ditadura, aceitaram a tarefa de relatar os acontecimentos traumáticos e condenar os militares.
Conforme ocorre a repercussão do julgamento, Argentina, 1985 representa, pouco a pouco, a mudança da memória da sociedade acerca do regime militar. Isso pode ser observado, novamente, por meio das relações familiares dos protagonistas: em certo ponto do filme, a mãe de Moreno Ocampo, até então apoiadora dos militares, telefona para o filho para contar o seu espanto com os testemunhos, revelando ao promotor a sua opinião de que os militares deveriam ser presos.
Enquanto isso, outra estratégia narrativa exibida nos trechos finais do filme está na criação do famoso discurso de acusação de Strassera, que começou a ser escrito após o promotor receber o convite para se encontrar com o presidente Alfonsín. No longa-metragem, a produção desta alegação se mostra essencialmente um trabalho coletivo, uma vez que a composição do discurso é feita não somente por Strassera e sua equipe, como também por outros personagens que realizam sugestões de escrita, entre eles a família e os amigos dos promotores. Em nossa análise, entendemos que esse detalhe singelo faz alusão ao conceito de democracia, indicando que o discurso foi construído por todos os argentinos para garantir o surgimento de uma nova república que, a partir de então, lutaria pelos aspectos democráticos na política do país.
A leitura da acusação e a subsequente condenação dos militares fazem parte do encerramento do longa-metragem, representando, certamente, um dos momentos mais emblemáticos da memória nacional dos argentinos. Diante dos aspectos mencionados nesta análise fílmica, identificamos a operação de diversos conceitos estabelecidos por Ricoeur (2007), que argumenta sobre a pragmática da memória, considerando que ela é uma prática a ser exercitada. Com isso, a sociedade não deve apenas se lembrar das coisas que passaram, mas sim executar um propósito diante das lembranças. Em suas palavras, “lembrar-se não é somente acolher, receber uma imagem do passado, como também buscá-la, fazer alguma coisa” (RICOEUR, 2010, p. 71). Por isso, o autor argumenta sobre o trabalho e o esforço na recuperação das lembranças que, quando adentram a fase cognitiva, permitem o reconhecimento que consagra a busca bem-sucedida do passado e inscreve o ato de fazer memória na lista dos poderes e das capacidades humanas (RICOEUR, 2007). De certo modo, isso dialoga com o que Huyssen (2000) atesta sobre a rememoração produtiva, num sentido de que devemos fazer um esforço para distinguir os passados usáveis dos passados dispensáveis dentro de nossa cultura contemporânea:
No cenário mais favorável, as culturas de memória estão intimamente ligadas, em muitas partes do mundo, a processos de democratização e lutas por direitos humanos e à expansão e fortalecimento das esferas públicas da sociedade civil. Desacelerar em vez de acelerar, expandir a natureza do debate público, tentando curar as feridas provocadas pelo passado, alimentar e expandir o espaço habitável em vez de destruí-lo em função de alguma promessa futura, garantindo o “tempo de qualidade”; estas parecem ser necessidades culturais ainda não alcançadas num mundo globalizado, e as memórias locais estão intimamente ligadas às suas articulações. (HUYSSEN, 2000, p. 34)
O obstáculo, porém, é que o exercício do dever da memória, ou seja, o próprio uso da memória em busca do reconhecimento, também possibilita o abuso das lembranças, que Ricoeur (2007) entende como o momento em que a verdade da memória é ameaçada por uma mimética incorreta. Nesse sentido, a memória seria alterada em seu exercício por meio do abuso, podendo se tornar impedida, manipulada ou obrigada, o que afetaria, respectivamente, o nível patológico-terapêutico, o nível prático e o nível ético-político dos atores individuais e sociais. Apesar da abrangência do tema, destacamos o que o autor chama de “fenômeno da ideologia”, no qual as manipulações da memória ocorrem com fatores de reivindicação de identidade e das expressões públicas (RICOEUR, 2007).
Ao tratar do dever da memória no nível ético-político, Ricoeur (2007, p. 99) reflete que “a injunção só passa a fazer sentido em relação às dificuldades, vivenciada pela comunidade nacional ou pelas partes feridas do corpo político”, constituindo assim uma memória de acontecimentos traumáticos. Com isso, para combater o esquecimento, evoca-se a ideia de justiça, que procura extrair das lembranças traumatizantes o seu valor exemplar, transformando “a memória em projeto; e é esse mesmo projeto de justiça que dá ao dever da memória a forma do futuro e do imperativo” (RICOEUR, 2007, p. 101). Enfim, para Ricoeur (2007, p. 101), “o dever de memória é o de fazer justiça, pela lembrança, a um outro que não o si”, provando a intersubjetividade de sua fenomenologia.
Por isso, deve-se ressaltar que, no dever da memória, o ato de lembrar também significa não se esquecer. Por meio da manipulação das narrativas, que selecionam os acontecimentos do passado, podem surgir ideologias no intuito de reconfigurar a memória de um povo. Nesse sentido, Ricoeur (2007), inclusive, argumenta sobre os perigos de quando a memória é narrada de forma oficial, frequentemente apresentando abusos para apagar o que determinado grupo deseja esquecer. No caso das ditaduras latino-americanas, até os dias de hoje presenciamos diversas forças que buscam amenizar as barbáries por meio de uma “nova história”, que promove os regimes como algo positivo. Essa manipulação da memória, entretanto, não é necessariamente algo novo se pensarmos no conceito de anistia, que começou a ecoar nos países latino-americanos, ainda nas décadas de 1970 e 1980. Para Oliveira Dourado (2017), trata-se de um esquecimento comandado por meio de bloqueios às narrativas públicas das vítimas nos contextos de justiça:
Nesse sentido, ela [a anistia] é um esquecimento institucional, e como tal “toca nas próprias raízes do político e, através deste, na relação mais profunda e mais dissimulada com um passado declarado proibido”. Partindo da premissa que a anistia encobre as mazelas escarnecidas do povo, esta pode ser consagrada como abusos do esquecimento, uma forma de camuflar o que deveria estar escancarado. (OLIVEIRA DOURADO, 2017, p. 6)
Por conta disso, Argentina, 1985 se apresenta como uma representação da luta política contra os abusos do esquecimento em seu país, uma vez que, naquela época, havia o desejo de determinados grupos argentinos em perdoar os militares para facilitar a transição para a democracia. Com isso, Strassera acabou sendo promovido como protagonista e, de certa forma, herói do filme, justamente por seu papel de garantir a justiça do dever da memória.
Se o ato de lembrar é, na verdade, o ato de evocar uma imagem do passado, podemos analisar o Juicio a las Juntas e o filme Argentina, 1985 da seguinte forma: inicialmente, a figura do testemunho claramente adentrou a esfera pública argentina por via da configuração narrativa para mudar a opinião do povo acerca do então recente período ditatorial. Isso nos permite estimar que o julgamento, mesmo não sendo transmitido ao vivo, configurou-se em um evento midiático importante de sua época. Enquanto isso, nos dias de hoje, entendemos que o filme é uma estratégia para ressaltar e relembrar a importância do julgamento, seja provocando uma lembrança naqueles que acompanharam o julgamento na época, seja permitindo a chegada do evento para as novas gerações. Assim, há uma significação que reforça as identidades e as narrativas que surgiram no renascimento da democracia argentina durante a década de 1980.
Considerações Finais
Na busca por exercitar a memória de seu povo, Argentina, 1985 traz ao presente um dos momentos mais importantes da história argentina: o Juicio a las Juntas. Como abordado, a narrativa parte do individual para o coletivo conforme constrói os seus personagens e projeta o testemunho das vítimas que sobreviveram aos horrores promovidos pela ditadura militar ao longo dos sete anos. Por conta disso, consideramos que o filme realiza uma rememoração produtiva ao tornar claro o conflito político da época, que colocava em oposição a memória e o esquecimento, algo que pode ser visualizado na própria acusação proclamada pelo promotor Strassera, que no longa-metragem foi escrita de forma conjunta e democrática, em um ato simbólico:
Este julgamento e a sentença que proponho buscam estabelecer uma paz baseada não no esquecimento, mas na memória. Não na violência, mas na justiça. Esta é nossa oportunidade. Talvez seja a última. Senhores juízes, quero renunciar expressamente a toda pretensão de originalidade para este encerramento. Quero usar uma citação que não pertence a mim, porque já pertence a todo o povo argentino. Senhores juízes: “Nunca mais”. (ARGENTINA, 1985, 2022, 117 min)
Mesmo com incongruências históricas, traços de ficção e alguns clichês narrativos, Argentina, 1985 promove a ressignificação, a reconstrução e a repolitização do passado, evitando o esquecimento de um acontecimento que ocorreu no século anterior. Assim, as frases de Strassera durante a acusação do julgamento exemplificam muito bem a importância do tribunal, o que é reforçado constantemente pelo filme dirigido por Santiago Mitre.
Notas
[1] Las medidas iniciales se ajustaron a un repertorio conocido: la prohibición de la actividad política, la censura de prensa, la detención de dirigentes obreros y la intervención en los sindicatos. A ellas se agregó la pena de muerte, administrada de una forma que se apartó de todo lo conocido. En primer lugar, las víctimas. Aunque el objetivo de los militares era acabar con la subversión, su acción represiva estuvo lejos de limitarse a los guerrilleros. El propio Videla dijo que “un terrorista no es sólo el portador de una bomba o una pistola, sino también el que difunde ideas contrarias a la civilización occidental y cristiana.
[2] O projeto Memoria Abierta foi criado em 1999 por meio de uma aliança de diversas organizações de direitos humanos da Argentina, como a Asamblea Permanente por los Derechos Humanos, a Fundación Memoria Histórica y Social Argentina, as Madres de Plaza de Mayo - Línea Fundadora e outras. O objetivo do grupo é promover a reflexão da memória política da Argentina e fortalecer a democracia local. Para tanto, há a catalogação e disponibilização de um vasto arquivo institucional e pessoal, possibilitando pesquisas e debates sobre o passado social, cultural e político da Argentina, inclusive acerca dos acontecimentos envolvendo a ditadura militar do século XX. Os materiais de arquivo, como as filmagens do Juicio a las Juntas, podem ser acessados ou solicitados em: <https://www.memoriaabierta.org.ar/>. Acesso em: 19 ago. 2023.
Referências
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