Detetives do Prédio Azul em:

notas sobre imaginação, criação e apropriação lúdica

Arthur Fiel1

Resumo

O artigo busca evidenciar as relações possíveis entre imaginação, criação e apropriação lúdica pelo público infantil diante de narrativas midiáticas. Para tanto, analisamos as possibilidades de relação, inter-relação e cocriação do círculo mágico (Huizinga, 2001) aberto pela série Detetives do Prédio Azul (Gloob, 2012) em contínuo diálogo com seu público-alvo. Quanto à metodologia, o trabalho realiza uma análise descritiva, interpretativa e crítica (Vanoye; Goliot-Lété, 1994), que deixa à mostra as relações aqui pretendidas, partindo de um breve relato para, então, adentrarmos a discussão a partir de um vasto e rico referencial teórico que suporte a análise desta produção. Por fim, ao conciliar saberes oriundos de estudos da cultura, dos games e da experiência lúdica (Ferreira, 2020; Kishimoto, 2002), ao campo da psicologia (Brougère, 1998; Vigotski, 2018), das culturas das mídias e suas mediações (Setton, 2010; Martín-Barbero, 1997) e estudos relacionados ao brincar advindos da gramática da fantasia (Rodari, 2021), notamos que, no contexto do conteúdo analisado, tanto criadores quanto seu próprio público-alvo alimentam e retroalimentam o círculo mágico no qual estão inseridos a partir de um processo múltiplo de imaginação, criação e apropriação lúdica possibilitado pela própria narrativa.

Palavras-chave

Apropriação lúdica; Conteúdo audiovisual infantil; Processos de criação; Roteiro; Detetives do Prédio Azul.

1 Professor Adjunto do Departamento de Comunicação e do Programa de Pós-Graduação em Comunicação e Territorialidades (PÓSCOM) da Universidade Federal do Espírito Santo (UFES). Doutor em Comunicação (PPGCOM), bacharel e mestre em Cinema e Audiovisual (PPGCINE) pela Universidade Federal Fluminense. E-mail: arthur.fiel@ufes.br.

Juiz de Fora, PPGCOM – UFJF, v. 18, n. 1, p. 195-211, jan./abr. 2024                                         DOI 10.34019/1981-4070.2024.v18.41470

Blue Building Detectives in:

notes on imagination, creation and playful appropriation

Arthur Fiel1

Abstract

The article seeks to highlight the possible relationships between imagination, creation and playful appropriation by children in the face of media narratives. To this end, we analyzed the possibilities of relationship, inter-relationship and co-creation of the magic circle (Huizinga, 2001) opened by the series Detetives do Prédio Azul (Gloob, 2012) in contact and continuous dialogue with its target audience. As for the methodology, the work carries out a descriptive, interpretative and critical analysis (Vanoye; Goliot-Lété, 1994), which reveals the relationships intended here, starting from a brief report and then entering the discussion from a vast and rich theoretical framework that supports the analysis of this production. Finally, by reconciling knowledge from studies of culture, games and playful experience (Ferreira, 2020; Kishimoto, 2002), the field of psychology (Brougère, 1998; Vigotski, 2018), media cultures and their mediations ( Setton, 2010; Martín-Barbero, 1997) and studies related to playing arising from the grammar of fantasy (Rodari, 2021), we note that, in the context of the analyzed content, both creators and their own target audience feed and feedback the magic circle in which are inserted from a multiple process of imagination, creation and playful appropriation made possible by the narrative itself.

Keywords

Playful appropriation; Children's audiovisual content; Creation processes; Screenplay; Detetives do Prédio Azul.

1 Professor Adjunto do Departamento de Comunicação e do Programa de Pós-Graduação em Comunicação e Territorialidades (PÓSCOM) da Universidade Federal do Espírito Santo (UFES). Doutor Comunicação (PPGCOM), bacharel e mestre em Cinema e Audiovisual (PPGCINE) pela Universidade Federal Fluminense. Tem interesse em: conteúdos infantis, roteiro audiovisual, políticas públicas, mercado e produção audiovisual. E-mail: arthur.fiel@ufes.br.

Juiz de Fora, PPGCOM – UFJF, v. 18, n. 1, p. 195-211, jan./abr. 2024                                         DOI 10.34019/1981-4070.2024.v18.41470

Introdução

No dia 28 de setembro de 2018, no Rio de Janeiro, mais precisamente na Cinemateca do MAM, ocorreu a abertura do II Festival de Roteiro Audiovisual – o ROTA, naquele momento o segundo festival dedicado ao roteiro cinematográfico no país. Uma das mesas propostas pelo evento, alocada no primeiro dia de realização, foi intitulada Roteiro para Infância e Juventude (ROTA, 2018) e levou ao palco profissionais atuantes na escrita e realização de audiovisuais para o público infanto-juvenil com obras circulando nos cinemas e/ou em canais do mercado pago de televisão – hoje o maior exibidor de conteúdo infantil no Brasil (Fiel, 2019).

Durante a discussão que tomava conta da mesa e chamava a atenção do público, se faziam presentes tópicos como o que caberia ou não na escrita direcionada às diversas faixas etárias que compõem o período temporal da infância, casos de censura diante de temas tabus nos conteúdos infantis e, dentre muitos outros assuntos, alguns dos desafios intrínsecos ao processo de escrita e à realização de narrativas seriadas protagonizadas por crianças. Esse tópico, em particular, nos chamou a atenção quando uma das profissionais presente na mesa, até aquele momento integrante da sala de roteiro da série Detetives do Prédio Azul (Gloob, 2012), revelou que, com o passar do tempo e o crescimento das crianças que protagonizavam a narrativa, a sala de roteiristas se viu desafiada a encontrar uma forma de dar sequência à história sem afetar negativamente o envolvimento e o interesse do público pela obra. A resposta para a problemática, segundo ela, foi encontrada a partir da observação da experiência e do relato do público-alvo nas mídias e redes sociais, em especial através de vídeos postados em plataformas de vídeos, como o YouTube [1], e da forma como ele havia se apropriado dos elementos e da experiência proposta pela narrativa. Partindo disso, neste artigo buscaremos discorrer sobre imaginação, criação e apropriação lúdica das crianças, a partir da mediação midiática, em suas brincadeiras cotidianas.

Quanto ao procedimento metodológico, partiremos de uma revisão de literatura, exposta no referencial teórico a seguir, para então adentrarmos o campo da análise fílmica, como apresentada por Vanoye e Goliot-Lété (1994). No entanto, como este trabalho não se refere estritamente à análise da narrativa, mas às relações possíveis através dela, contamos com a contribuição de Setton (2010, p. 26), que indica a necessidade de concebermos “a análise dos fenômenos culturais da modernidade contextualizando um momento histórico e social específico”, como realizamos no tópico no qual apresentamos a obra a ser analisada.

Para dar suporte à nossa reflexão, enquanto referencial teórico, recorremos a estudos e trabalhos oriundos dos mais diversos campos do saber – da educação à filosofia (Kishimoto, 2002; Huizinga, 2001), da comunicação e da cultura das mídias à psicologia (Setton, 2010; Martín-Barbero, 1997; Brougère, 1998) – acerca dos jogos, da imaginação e das brincadeiras infantis (Ferreira, 2020; Vigotski, 2018; Rodari, 2020), a fim de compreender o modo como a apropriação lúdica dessa narrativa foi capaz de atravessar o círculo mágico do acontecimento e afetar a própria narrativa promotora da experiência lúdica sobre a qual discorreremos. Ainda nesse sentido, tomamos como ponto de partida algumas das inquietações e reflexões apresentadas por Ferreira (2020) acerca das relações entre apropriação lúdica e produção dos sentidos nos videogames.

O jogo, o brincar e a emergência de uma cultura lúdica na infância

Em Homo Ludens, obra de grande relevância para os estudos dos jogos e para sua compreensão como fenômeno cultural, Huizinga (2001) nos apresenta o jogo como:

uma atividade ou ocupação voluntária, exercida dentro de certos e determinados limites de tempo e de espaço, segundo regras livremente convertidas, mas absolutamente obrigatórias, dotado de um fim em si mesmo, acompanhado de um sentimento de tensão e de alegria e de uma consciência de ser diferente da vida quotidiana (Huizinga, 2001, p. 33).

Partindo dessa concepção e buscando uma outra analogia ao que pretendemos abordar, trataremos do jogo, por diversas vezes, como o brincar – termo que melhor se aproxima, em nossa língua, da experiência sobre a qual nos debruçaremos. Isso, no entanto, sem apagar ou distanciar as definições que, por conta própria, aproximam o caráter lúdico do jogo, da brincadeira e do brincar. Dessa forma, ao aproximarmos essas definições, a brincadeira e o brincar, assim como os jogos, se sujeitariam às regras próprias e a uma relação espaço-temporal que lhes diferenciariam da experiência ordinária da vida cotidiana.

Kishimoto (2002, p. 11), ao tratar sobre a experiência lúdica e a presença do jogo na vida da criança, aponta que “o jogo e a criança caminham juntos desde o momento que se fixa a imagem da criança como um ser que brinca”. Essa fixação da criança como um ser brincante ocorre já em seus primeiros meses de vida, pois é através de atitudes lúdicas, pequenas brincadeiras, que os adultos que as acompanham buscam se relacionar com elas (em especial, a mãe), como propõe Brougère (1998) quando define a relação entre mãe e filho como uma relação brincante. Para ele:

A criança começa por inserir-se no jogo preexistente da mãe mais como um brinquedo do que como uma parceira, antes de desempenhar um papel mais ativo pelas manifestações de contentamento que vão incitar a mãe a continuar brincando. A seguir ela vai poder tornar-se um parceiro, assumindo, por sua vez, o mesmo papel da mãe, ainda que de forma desajeitada, como nas brincadeiras de esconder uma parte do corpo (Brougère, 1998, p. 108).

Mesmo essas primeiras brincadeiras, tidas em seio familiar, vão compor a bagagem lúdica da experiência do sujeito – que é acumulada ao longo de toda sua vivência e acionada, reconfigurada e ressignificada por ele à medida que lhe for necessário utilizá-la. Para além de Huizinga (2001), Brougère (1998) também considera o jogo como um elemento cultural preexistente até mesmo à atividade lúdica. Para o autor:

Não se trata aqui de expor a gênese do jogo na criança, mas de considerar a presença de uma cultura preexistente que define o jogo, torna-o possível e faz dele, mesmo em suas formas solitárias, uma atividade cultural que supõe a aquisição de estruturas que a criança vai assimilar de maneira mais ou menos personalizada para cada nova atividade lúdica (Brougère, 1998, p. 108).

Assim, Brougère (1998) faz a ressalva de que o jogo e o brincar não devem ser somente compreendidos como elementos componentes de valores nas etapas do desenvolvimento da criança. É preciso compreender esses fenômenos em si mesmos e como lugar de emergência de uma cultura lúdica na qual o jogador, brincante, está inserido e na qual possui papel ativo em sua construção. É nesse espaço-tempo que o brincante acumulará experiências que lhe serão úteis para compreender não só as regras de cada jogo/brincadeira, mas as regras do jogar – os elementos que compõem o brincar e o distingue das demais atividades de sua vida cotidiana. Quanto mais ricas forem suas experiências anteriores, mais materiais estarão disponíveis para suas próximas vivências, sejam elas singulares ou coletivas. Desse modo, o brincante, ao alimentar sua imaginação, acrescenta à sua bagagem novos elementos que o acompanharão a cada vez que ele adentrar um novo círculo mágico.

Da cultura lúdica ao círculo mágico

A cultura lúdica, na perspectiva brougèriana, é construída nas relações sociais tidas durante o próprio brincar ao longo de toda a vida do sujeito brincante. Ratificam essa perspectiva também os estudos de Huizinga (2001) e Vigotski (2018). Estes, por sinal, se aproximam ainda mais ao tentarem caracterizar a experiência do jogo, da imaginação e da fantasia, a partir da constituição de algo como um “círculo”, uma experiência circular.

Vigotski (2018), na obra Imaginação e criação na infância, publicada originalmente em 1930, na União Soviética, realiza os seguintes apontamentos para, então, apresentar a existência desse círculo: “Ao adquirir uma concretude material, essa imaginação ‘cristalizada’, que se fez objeto, começa a existir realmente no mundo e a influir sobre outras coisas. Essa imaginação torna-se realidade” (Vigotski, 2018, p. 31). O autor segue:

Esses produtos da imaginação passaram por uma longa história que, talvez, deva ser breve e esquematicamente delineada. Pode-se dizer que, em seu desenvolvimento, descreveram um círculo. Os elementos de que são construídos foram hauridos da realidade pela pessoa, internamente, em seu pensamento foram submetidos a uma complexa reelaboração, transformando-se em produtos da imaginação (Vigotski, 2018, p. 31).

Tais produtos da imaginação, como já mencionado, são oriundos da cultura lúdica na qual o brincante esteve inserido. O contato social com os outros brincantes, por sua vez, enriquece e potencializa a capacidade imaginativa e criadora da criança envolvida na dinâmica do jogo, da brincadeira. Juntas, ao estabelecerem um pacto de suspensão da realidade e compartilharem as possibilidades apresentadas pelas dinâmicas do jogo, a partir de suas regras e delimitações espaço-temporais, estabelecem a existência do círculo mágico, termo cunhado por Huizinga em 1938.

A manutenção desse círculo, no entanto, está condicionada à performance de uma atitude lúdica por parte dos jogadores e brincantes inseridos na atividade em desenvolvimento. Esse termo, como elucida Ferreira (2020, p. 8), é relativo à “uma postura que seja capaz de aceitar as regras do jogo como parâmetros normais e passíveis de aceitação, por mais que tais regras, aleatórias que sejam, não façam sentido fora do ‘mundo de jogo’”. Já a manutenção da atitude lúdica, de acordo com o autor, é delimitada pelo próprio círculo mágico e por suas regras constituintes.

Ao realizar uma análise crítica da definição de círculo mágico, Ferreira e Falcão (2016) propõem que compreendamos o círculo não como uma estrutura que suprime o jogador (ou brincante) da sua realidade, mas como uma estrutura cognitiva de mediação entre os elementos do mundo do jogo e do mundo normal. No trabalho apresentado pelos autores, os objetos em análise são, precisamente, os videogames. Essa perspectiva, no entanto, é de grande utilidade para a análise que aqui apresentaremos, pois, no contexto da narrativa seriada escolhida, e na relação do público com os elementos componentes dela, as bordas do mundo real e do mundo da brincadeira são bastante aproximadas.

Criação, imaginação, liberdade e apropriação

Para Vigotski (2018), imaginação e criação são elementos indissociáveis da experiência humana. O autor entende que não só os artistas e cientistas são dotados de uma potencialidade imaginativa e criadora. Segundo ele, todos os seres humanos possuem a mesma capacidade, que se desenvolve de acordo com os estímulos, concretos e abstratos, e as condições materiais que cada sujeito possui em seu entorno. Ele também eleva a imaginação à base de toda atividade criadora e aponta sua presença em “todos os campos da vida cultural, tornando igualmente possível a criação artística, a científica e a técnica” (Vigotski, 2018, p. 16). Dessa forma, em sua perspectiva, toda criação humana tem origem no fértil terreno da imaginação.

Acerca dos estímulos abstratos e concretos, é preciso entender que eles podem ser oriundos de campos distintos, mas estão intrinsicamente ligados às relações sociais e ao ambiente no qual o sujeito está inserido. Ao mencionar a experiência das crianças em sua primeira infância, Vigotski (2018, p. 18) aponta que são as brincadeiras o melhor exemplo da “mais autêntica e mais verdadeira criação”. E complementa:

As brincadeiras infantis, frequentemente, são apenas um eco do que a criança viu e ouviu dos adultos. No entanto, esses elementos da experiência anterior nunca se reproduzem, na brincadeira, exatamente como ocorreram na realidade. A brincadeira da criança não é uma simples recordação do que vivenciou, mas uma reelaboração criativa de impressões vivenciadas. É uma combinação dessas impressões e, baseada nelas, a construção de uma realidade nova que responde às aspirações e aos anseios da criança. Assim como na brincadeira, o ímpeto da criança para criar é a imaginação em atividade (Vigotski, 2018, p. 18).

Numa brincadeira infantil, as crianças se dispõem a utilizar suas singulares bagagens lúdicas, coletadas em seu próprio meio e ambiente cultural, para entrar no jogo. É preciso, no entanto, considerarmos que, mesmo as crianças que pertençam a um mesmo ciclo social carregam uma bagagem particular, iniciada no ambiente no qual esteve inserida em seus primeiros meses e anos de vida. Assim, ao compactuarem com a entrada num círculo mágico que venha a suspender a realidade na qual se inserem, mesmo que temporariamente, elas compactuam que – com seus próprios meios e conhecimentos – a partir do valendo, uma atitude lúdica será performada por todos os envolvidos naquele círculo, a partir das regras que a brincadeira ditar. Nesse pacto, nem todo desvio das regras do brincar será considerado como ruptura na atitude lúdica dos brincantes. Isso, pelo fato de que nas brincadeiras, de modo geral – e aqui faz-se necessário diferenciá-las dos demais jogos – o espaço de criação e as tomadas de ações tendem a ser maiores do que o espaço dos videogames, por exemplo, mesmo que estes tenham graus diversos de abertura ou não para uma nova criação.

A partir dessa abertura para uma ação nova que altere, mas mantenha a dinâmica do brincar – ou seja, a integridade do círculo mágico – chegamos ao que Bonenfant (2015 apud Ferreira, 2020) vai chamar de apropriação lúdica ao analisar ações emergentes tomadas por jogadores que, diante do conhecimento das regras de um jogo, agem em prol de atingir seus objetivos, mesmo que de modo nem sempre previsto e/ou esperado pelos demais jogadores, também familiarizados com tais regras. Essa apropriação, como aponta Ferreira (2020), parte da compreensão das regras do jogo, da expertise do próprio jogador – que após esgotar o conhecer elementar das dinâmicas do jogo ousa jogar à sua própria forma – e, por fim, da liberdade lúdica que lhe é permitida pelo jogo.

É também Ferreira (2020), a partir do trabalho de Caillois (2017) [2] e Henriot (1983) [3], quem melhor apresenta uma síntese para a utilização da apropriação lúdica dentro da dinâmica dos jogos:

Em outras palavras, apropriar-se (ludicamente) de um jogo consiste em, a partir da apreensão de suas regras, realizar ações emergentes dotadas de sentido, as quais serão diferentes de jogador para jogador. Para que isso seja possível, o jogo deve propiciar certa liberdade lúdica – deve possuir jogo (jeu), no dizer de Henriot (1983). Essa liberdade lúdica não deve pender, idealmente, para nenhum dos dois polos do espectro delimitado de um lado pelo ludus, de outro pela paidia: pende-se para um lado e o jogador será reduzido a um realizador de ações completamente previstas e prescritas, sem nenhum poder de criação de sua parte; pende-se para outro lado e a completa liberdade – completa ausência de regras – esvaziará o jogador da atitude lúdica necessária para a adequada realização da atividade lúdica (Ferreira, 2020, p. 8).

Esse destaque à ideia de apropriação lúdica nos jogos e no brincar nos é relevante para entendermos o modo como a narrativa seriada de Detetives do Prédio Azul foi apropriada pelo público espectador e retornou ao espaço no qual a série foi concebida – à sala de roteiristas, como apontado no relato inicial deste trabalho. Assim, partindo da trajetória teórica até aqui empreendida, seguiremos para análise da narrativa buscando, através de reflexões teóricas e críticas, compreender as possíveis relações de apropriação lúdica que reconfiguraram a escrita da narrativa.

Os imbatíveis, os invencíveis, os inesquecíveis, Detetives do Prédio Azul!

Lançado em junho de 2012, o Gloob é o primeiro canal de conteúdo infantil da programadora Globosat, representante do Grupo Globo, no mercado pago de televisão. O seu surgimento no segmento fechado de televisão se relaciona também com a queda da presença da programação infantil nos conteúdos diários no canal aberto do grupo. Àquela época havia somente uma atração dedicada às crianças nas manhãs da Globo, o duradouro matinal TV Globinho, que resistiu no ar até 2015, tendo sido substituído na programação semanal, em 2012, pelo programa Encontro, apresentado por Fátima Bernardes, passando a ocupar apenas as manhãs de sábado no canal (Fiel, 2019).

Foi também nesse contexto, e diante da necessidade de promover um sucesso nacional no mercado pago, que foi lançado como carro-chefe do canal o seriado Detetives do Prédio Azul (2012), concebido pela autora Flávia Lins e Silva, produzido pela Conspiração Filmes e dirigido pelo cineasta André Pellanz em suas sete primeiras temporadas. A premissa da série gira em torno de três amigos, residentes de um prédio azul, na cidade do Rio de Janeiro, que decidem se unir para desvendarem os mistérios que ocorrem em seu prédio. Assim, criam um clube secreto e se autointitulam os Detetives do Prédio Azul. A cada novo episódio, eles vestem suas capas de detetives e vivenciam diversas aventuras, enfrentando, também, a ira da síndica.

O parágrafo anterior apresenta um elemento de extrema importância para o desenvolvimento da narrativa e para a análise aqui pretendida: as capas dos detetives. São elas que, ao serem vestidas, possibilitam a entrada das crianças no círculo mágico por elas criado. Com elas, as crianças não são apenas Capim, Mila e Tom (protagonistas das primeiras temporadas), mas sim, detetive Capim (Cauê Campos), detetive Mila (Letícia Pedro) e detetive Tom (Caio Manhente). As capas funcionam, nessa narrativa, como peça elementar para o ingresso no universo imaginado e criado pelas protagonistas. E não somente as capas, já que cada capa e cada detetive possui itens especiais que vão lhes ajudar a desvendar os mistérios que surgem no ar. Um desses itens é uma lupa, inspirada em outras narrativas com detetives protagonistas, e é ela, assim como as capas, que permite que as crianças perfomem a atitude lúdica necessária à manutenção daquela atmosfera. Os demais itens utilizados pelos detetives são retirados dos bolsos das capas de acordo com as necessidades e problemáticas apresentadas a cada novo episódio da narrativa. No geral, são itens comuns, pertencentes ao mundo real: escova de dentes, touca de natação, grampos de cabelo etc. Nesse ponto, o mundo real e o mundo do jogo não são colocados em pontos polares, mas se apresentam, por completo, misturados. Dessa forma, o círculo mágico da brincadeira é, ele próprio, elemento mediador do mundo do jogo com mundo externo, como defendem Ferreira e Falcão (2016) ao analisarem a imersão de jogadores em determinados tipos de jogos.

Esta mediação, por sua vez, pode se apresentar tanto de forma fluida – ao desenhar fronteiras que se mostrem borradas, no sentido de que não podem ser plenamente identificadas, que permitam que ficção e realidade se encontrem – quanto de forma mais sólida, fazendo realmente com que o usuário/jogador experimente um sentimento de deslocamento, de supressão espaço-temporal, através de um processo imersivo. Assim, nossa proposição é a de que o círculo mágico não separa efetivamente o “mundo do jogo” da realidade cotidiana, mas, antes disso, se estabelece como princípio de mediação, auxiliando o jogador a lidar com diferentes lados de um mesmo universo – e não com dois universos (Ferreira; Falcão, 2016, p. 78).

A partir da apresentação da premissa e dos elementos básicos que estruturam a narrativa, retomemos o relato da roteirista que apresentamos na introdução deste trabalho. Segundo ela, a cada ano eram lançadas duas temporadas da série na grade do Gloob. Nas primeiras, as narrativas possuíam cerca de 15 minutos de duração. Até a sétima temporada, a série foi protagonizada pelas personagens acima mencionadas – Capim, Mila e Tom –, porém, com o passar do tempo e o crescimento das crianças que interpretavam essas personagens, o desafio imposto à sala de roteiristas era o de manter o interesse, a atenção e a própria relação lúdica do público com a narrativa mediante a necessidade de troca de protagonistas. Esse desafio surge, especificamente em 2016, quando a série chegava em sua sétima temporada. Essa preocupação, por sua vez, tem origem em um fato histórico acerca do conteúdo infantil no audiovisual brasileiro que, por muito tempo, tinha no centro de suas narrativas figuras adultas que se utilizavam de seu apelo com o público para angariar a atenção e o afeto das crianças (Fiel, 2020).

Neste ponto da discussão, faz-se relevante chamarmos especial atenção ao lugar ocupado pelas mídias e plataformas de comunicação para a reformulação da narrativa a partir do contato com o círculo mágico que ela própria possibilitou ao seu público-alvo. Assim sendo, Setton (2010), ao se debruçar sobre os fenômenos culturais e midiáticos, nos traz uma relevante contribuição ao adicionar à compreensão dos fenômenos culturais a cultura das mídias. Segundo ela:

[…] as culturas, e entre elas a cultura das mídias, devem ser vistas enquanto processo; devem ser vistas nos atos de produção, nos atos que envolvem a divulgação e nos atos de promoção das mensagens, bem como nos atos de recepção daquilo que é produzido (Setton, 2010, p. 19).

Acerca dos trabalhos do campo dos estudos da recepção, Martin-Barbero se destaca no cenário latino-americano, ofertando-nos uma relevante contribuição aos estudos do campo da cultura e da comunicação. Para Martín-Barbero (1997), seria preciso romper com a ideia de etapas dentro do processo de comunicação e passar a estudá-lo como um todo processual. O autor também chama nossa atenção para a necessidade de lançar um olhar atento às práticas tidas entre os processos de produção e recepção das mensagens midiáticas, trazendo à tona a ideia de mediação, que, sinteticamente, podemos entender como a interação dinâmica que atravessa os meios e afetam a construção dos sentidos, podendo ocorrer através de lutas, aceitação, resistência, transformação ou negociação dos significados textuais no momento de sua recepção (Martín-Barbero, 1997).

Dessa forma, a mudança de protagonistas da narrativa era uma preocupação compreensível que, segundo a roteirista, deixou de existir quando gestores do canal e autores da narrativa passaram a observar, a partir do acesso a conteúdos produzidos por crianças presentes nas telas e mídias sociais, o modo como as crianças se relacionavam com a narrativa proposta e perceberam que esse relacionamento era pautado pela possibilidade do próprio público performar, nas brincadeiras em seu ciclo social, a atitude lúdica que lhe foi apresentada pela narrativa e, em especial, a partir da utilização de capas, semelhantes ou idênticas, às que os detetives usavam no seriado. Aqui, destaca-se a importância do aparato midiático na mediação dessa relação, como apresentado no parágrafo anterior. Foi através de tal mediação que o brincar de detetive das crianças, a partir da apropriação lúdica da narrativa, possibilitou que o seriado preservasse sua lógica e estrutura. Assim, para que houvesse uma continuidade do círculo mágico apresentado pela série, a cada necessidade de troca de detetive, os detetives que permaneciam no grupo tinham a missão de encontrar um novo agente para ocupar o espaço vago, o que também abria a possibilidade de substituição de detetives na vida das crianças extratelas numa eventual mudança de cidade e/ou escola, por exemplo.

O primeiro detetive a ser substituído foi Tom, que saiu do clubinho devido à mudança de sua mãe hipster para a Índia – forma que foi encontrada pelos roteiristas para justificar a saída do ator Caio Manhente, que na época estava com dezesseis anos e não mais cabia de forma adequada no corpo infantil que solicitava a narrativa. Assim, a capa verde precisava de um novo dono. No mesmo episódio em que Tom se despede do clubinho, surge o menino Pippo (Pedro Henrique Motta), novo morador do apartamento vago. O primeiro encontro de Pippo com os detetives Mila e Capim se dá quando ele é observado pelos agentes que estavam em missão para descobrir se ele possuía a atitude necessária para ingressar no clubinho e usar a capa verde deixada por Tom. Pippo, demonstrando astúcia, flagra os agentes o observando. Diante do flagra, a detetive Mila o questiona sobre como ele havia os encontrado, já que estavam escondidos e disfarçados. A resposta de Pippo é, por si só, uma apropriação e adaptação da clássica frase do detetive inglês Sherlock Holmes [4] “elementar, meus caros detetives”.

Assim, com o passar da capa, a série efetuou a troca de todos seus detetives entre a sétima e oitava temporada, com a saída de Mila e a entrada da detetive Sol. Essa foi a primeira troca de todo elenco protagonista ocorrida no seriado. Com essa troca, o novo elenco tinha como detetives protagonistas o trio de intérpretes Anderson Lima (detetive Bento), Letícia Braga (detetive Sol) e Pedro Henrique Motta (detetive Pippo). Diante da boa recepção dos novos detetives, sem danos ao envolvimento do público diante da narrativa, os autores e o canal, depois de mais sete temporadas, efetuaram uma nova troca de protagonistas. Em 2021 ingressam na narrativa os novos integrantes do clubinho – o detetive Max (Samuel Minervino), a detetive Flor (Nathália Costa) e o detetive Zeca (Stéfano Agostini), que deverão seguir com a narrativa pelas próximas temporadas. A seguir figuram os antigos e novos detetives.

Imagem 1 – Detetives Tom, Mia e Capim (2012-2017/8) – da esquerda para direita.

https://bit.ly/3Uja6gG

Fonte: EBC (2015).

Imagem 2 – Detetives Bento, Sol e Pippo (2017-2021) – da esquerda para direita.

https://bit.ly/3UCk5ii

Fonte: Folha Metropolitana (2020).

Imagem 3 – Os novos detetives Max, Flor e Zeca (2021) – da esquerda para direita.

https://bit.ly/3JB8aLA

Fonte: Plasse (2020).

A possibilidade de troca dos detetives, no entanto, é o que nos interessa. E, em nossa análise, ela só é possível a partir da liberdade lúdica derivada próprio círculo mágico da narrativa, ao permitir que em cada lar exista uma ou um possível detetive mirim. Afinal, o primeiro passo para entrar nesse clubinho é a postura investigativa (atitude lúdica) para desvendar os mistérios ao redor do lugar em que habitam. Tendo isso, é preciso então, que o brincante esteja devidamente caracterizado e equipado para entrar no jogo – aqui entram a capa, a lupa e os demais itens necessários para o desenrolar de uma investigação. Todas as demais ferramentas para o efetivo brincar e, assim, encontrar (criar) e solucionar os problemas da trama, ficam condicionados à sua própria imaginação e liberdade lúdica.

Bonenfant (apud Ferreira, 2020, p. 7) ratifica essa perspectiva ao afirmar que: “Sem liberdade lúdica, o jogador não mais joga: ele executa uma sequência de ações nas quais o sentido é definido a priori” (Bonenfant, 2015, p. 52) (tradução nossa) [5]. E acrescenta: “O jogo é necessariamente baseado numa liberdade permitida ao jogador, isto é, de ter um papel na atualização do jogo” (Bonenfant, 2015, p. 54) (tradução nossa) [6].

Como apresentamos, no caso da obra em análise, foi a mediação midiática – em especial dos conteúdos presentes nas redes sociais e nas plataformas de hospedagem de vídeos, como o YouTube – que possibilitou aos criadores da série acessarem conteúdos que demonstravam que a liberdade e atividade lúdica de seu público espectador (apresentado a ele pela própria narrativa) havia lhes concedido a possibilidade de reelaboração dos rumos da obra. A passagem da capa como fio condutor da atividade lúdica só foi possível porque houve espaço de observação e apropriação lúdica entre espectadores e criadores, um se apropriando da criação do outro. A brincadeira das crianças, observada pelos adultos a partir da mediação possibilitada pelas dinâmicas intrínsecas da cultura das mídias, abriu novas possibilidades para a continuidade da narrativa. Essa observação, junto a escuta atenta das demandas da criança e do brincar com ela, não buscando ensinar, mas a livre interação, é o que vai pautar um novo modo de concepção para as narrativas audiovisuais infantis (Fiel, 2020).

A respeito disso, Rodari (2020) faz a seguinte observação:

Quando brinca com a criança, o adulto tem a vantagem de dispor de uma experiência mais vasta. Portanto, é capaz de levar mais longe a imaginação. Por isso as crianças gostam que os pais as acompanhem na brincadeira. Por exemplo, se brincam juntos de construir algo, o adulto sabe calcular melhor as proporções e o equilíbrio, tem um repertório mais rico de formas para imitar etc. A brincadeira se enriquece, ganha em organicidade e duração, abre novos horizontes (Rodari, 2020, p. 110).

Há de se considerar, no entanto, que a citação de Rodari nos remete a uma faixa etária em que a criança precisa dessa presença adulta para avançar no jogo. Presença essa que, como jogador ou brincante, solicita do adulto o conhecimento das regras do jogo ao qual se dispôs a jogar com as crianças – algo que, provavelmente, compõe sua bagagem lúdica, considerando, por sua vez, a materialidade do jogo e as tecnologias presentes em seu tempo. Já no caso dos Detetives do Prédio Azul, tanto as protagonistas como seu público-alvo possuem uma bagagem lúdica suficiente para que, em correlação com seus pares, resolvam, da forma como melhor couber em seu círculo mágico, as situações nas quais elas estão inseridas. E, como apontamos, a principal ferramenta para solucionar essas situações é a mais pura e livre imaginação. A figura do adulto que evocamos aqui é aquela do adulto curioso que observa, escuta e se permite o envolvimento com a criação das crianças para apropriá-la à sua própria.

Brougère (1998), ao analisar a circulação de jogos criados por adultos, faz uma análise semelhante à atividade lúdica da criança na cocriação e reformulação das narrativas. Ele diz:

É claro que o jogo é controlado pelos adultos por diferentes meios, mas há na interação lúdica, solitária e coletiva, algo de irredutível aos constrangimentos e suportes iniciais: é a reformulação disso pela interpretação da criança, a abertura à produção de significações inassimiláveis às condições preliminares (Brougère, 1998, p. 115).

O que está exposto acima é o que Bonenfant (2015 apud Ferreira, 2020) vai chamar de espaço de apropriação lúdica, que se refere à liberdade interpretativa e de ação criativa, como Ferreira (2020) ratifica. Para Vigotski (2018), esse é o espaço da imaginação em atividade, um espaço de troca, de reelaborações e de ressignificações livres ao bem querer do criativo – do ser brincante.

O brincar de detetive é, para os brincantes, um ato de liberdade criativa, um espaço no qual a sua criação está condicionada, exclusivamente, mas não estritamente, ao conhecimento das “regras do jogo”, das dinâmicas da brincadeira, até que, solucionado o caso, seja encerrado o círculo mágico e elas retornem à normalidade de suas vidas cotidianas. Essa experiência, no entanto, como apresentamos, pode não se encerrar no fim da brincadeira, mas ganhar um novo contorno ao retornar ao espaço no qual o jogo foi criado, afetando e modificando os elementos que constituem a criação primária, algo que, neste caso, só foi possível pela mediação das mídias que se estabeleceu enquanto base desta relação. Em suma, o que afirmamos é que o acesso aos conteúdos criados pelas próprias crianças componentes do público-alvo da narrativa possibilitou aos criadores uma aproximação maior do círculo mágico aberto por aquela narrativa. Nesse sentido, é crucial entendermos os próprios aparatos midiáticos como plataformas possibilitadoras de expansão do círculo mágico – através do cinema, da televisão, da internet, das redes sociais etc.

Considerações Finais

Chegando aqui, após todo esse trajeto em uma amarelinha de teorias e análises críticas, apontamos, primeiramente, a potencialidade das narrativas audiovisuais infantis, suportadas por diversas mídias, em adentrar e compor os jogos e as brincadeiras das crianças, sendo por elas apropriadas e performadas em sua vida cotidiana. Percebemos também que, ao adentrar esse espaço, a partir da bagagem lúdica do seu público-alvo, as experiências estéticas e lúdicas proporcionadas por essas narrativas, nos mais variados suportes midiáticos e via mediação das mídias, passam a existir e constituir também um círculo mágico extratelas, possibilitadas por elas e apropriado ludicamente pelos brincantes que, neste círculo, se fazem presentes.

Percebemos também uma diferenciação de algumas brincadeiras infantis no tocante à liberdade e apropriação lúdica, quando comparadas com as dinâmicas presentes em alguns jogos. Isso, por concordarmos com o entendimento de Ferreira (2020), que compreende que, no caso dos jogos, esse espaço de apropriação se dá pelo “ato de torcer as prescrições de determinado jogo, subvertendo-as, para assim produzir experiências e sentidos novos com base nas idiossincrasias dos jogadores, não importando, aqui, as finalidades propostas” (Ferreira, 2020, p. 10). Nossa defesa é de que, no caso de apropriação de narrativas, suportadas por quaisquer que sejam as mídias (filmes, livros e até games), quando performada fora das telas, encontram no brincar das crianças um espaço mais amplo do que num jogo com um design controlado. Em relação a essa pesquisa, além de proporcionar a identificação dos elementos de transição dos personagens, a observação dos vídeos produzidos pelas crianças permite perceber que houve uma apropriação de elementos da linguagem midiática particulares da série como a caracterização dos personagens, a utilização de ângulos e enquadramentos específicos e a edição de imagens. Todos esses elementos contribuem para obtenção de uma estrutura narrativa convergente com a da série analisada, ao mesmo tempo em que contempla as adaptações e interações criativas das crianças. Todas essas questões são algo que, em nosso entendimento, demanda mais aprofundamento e observação dos estudos da cultura e comunicação.

Por fim, no tocante à escrita e construção de narrativas para as infâncias, compreendemos a grande relevância da observação atenta e respeitosa do brincar na vida das crianças, da presença dos jogos e das relações tidas nos mais diversos espaços ocupados pelos infantes para aqueles que desejam escrever para o público infantil. Assim, para conceber narrativas destinadas às crianças não é preciso, necessariamente ou exclusivamente, rememorar sua própria infância. Para encarar este desafio, é importante convidar aquela ainda preservada criança interior, com a bagagem lúdica por ela carregada em toda sua jornada, a brincar com as demais crianças que, neste exato momento do tempo, brincam nas salas de suas casas, nas ruas e com as diversas mídias com as quais estão em contato. Assim, para criar para o público infantil, é preciso que entendamos a importância de retornar ou inventar um novo círculo mágico.

Notas

[1] O que, em relação aos jogos, Bonenfant (2015 apud Ferreira, 2020) vai chamar de enciclopédia do jogador.

[2] Caillois propõe como ludus o jogo designado em consonância com os limites ditados por suas regras. Já paidia seria algo mais próximo de uma atitude lúdica não tão restrita às regras fixadas pelo jogo (Ferreira, 2020).

[3] No tratado Le Jeu (1983) acerca das regras do jogo, Henriot propõe que, a partir do domínio das regras e do íntimo conhecimento das dinâmicas do jogo, o jogador passa a “jogar com o jogo”, realizando com ele determinadas “jogadas” a partir liberdade e apropriação lúdica pelo jogo permitida.

[4] O personagem criado por Sir. Artur Conan Doyler, costuma dizer “elementar, meu caro Watson”, a seu assistente ao desvendar cada novo mistério. É um personagem clássico da literatura inglesa e universal.

[5] Sans liberté ludique, le joueur ne joue plus: il exécute un ensemble d’actions dont le sens est défini a priori.

[6] Le jeu est nécessairement basé sur une liberté accordée au joueur d’avoir un rôle dans l’actualisation du jeu.

Referências

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