A família como convenção da representação dos imigrantes nos monumentos das cidades do ABC
Bruna Serafim Moura1 e
João Batista Freitas Cardoso2
Resumo
As cidades são compostas por memórias e histórias que representam os cidadãos que nela habitam. Os monumentos públicos são uma das formas de fazer essa representação, simbolizando a cultura regional, gerando sentido e identidade ao espaço urbano e à comunidade local. Têm a função de evocar o passado e preservar a memória, determinada por interesses políticos, econômicos e culturais. Neste sentido, o artigo visa discutir as formas de representações do monumento ao migrante, temática comum na construção de estátuas ao redor do mundo. O texto, primeiramente, define o monumento público com base nos estudos de memória. Posteriormente, por meio de um levantamento iconográfico e análise semiótica, contextualiza a representação da família nos monumentos ao imigrante. Com resultados baseados na amostra iconográfica e análise semiótica, foi possível apontar que a maioria das estátuas que referenciam imigrantes é representada pela família, composta por pai, mãe e filho. Essas figuras buscam exaltar o trabalho e a esperança em novos horizontes. Também se identificou hábitos de gênero na maioria das representações, em que as mulheres são comumente relacionadas às atividades domésticas e cuidados com os filhos enquanto os homens são associados ao trabalho.
Palavras-chave
Comunicação; Monumento público; Semiótica; Memória; Imigrante.
1 Mestre pelo Programa de Pós-Graduação em Comunicação da Universidade Municipal de São Caetano do Sul (USCS). Formada em Jornalismo com Pós-Graduação em Marketing pela mesma instituição. Profissional de Comunicação Interna. E-mail: bruna_s_moura@hotmail.com.
2 Doutor em Comunicação pela PUC-SP. Professor no Mestrado em Comunicação da USCS. Professor Visitante na Maestría em Proyetos Sociales da UABC (México). Professor do Centro de Comunicação e Letras da UPM. E-mail: jbfcardoso@uol.com.br.
Juiz de Fora, PPGCOM – UFJF, v. 17, n. 3, p. 171-188, set./dez. 2023 DOI: 10.34019/1981-4070.2023.v17.41340
The family as a convention for representing immigrants on monuments of ABC cities
Bruna Serafim Moura1 and
João Batista Freitas Cardoso2
Abstract
Cities are made up of memories and stories that represent the citizens who live there. Public monuments are one of the ways to make this representation, symbolizing regional culture, generating meaning and identity for urban space and the local community. They have the function of evoking the past and preserving memory, which is determined by political, economic and cultural interests. This article aims to discuss the forms of representation of the monument to the migrant, a common theme in the construction of statues around the world. The text, firstly, defines the public monument based on memory studies. Subsequently, through an iconographic sample and semiotic analysis, it contextualizes the representation of the family in monuments to the immigrant. With results based on the iconographic sample and semiotic analysis, it was possible to point out that the majority of statues that reference immigrants are represented by the family, composed of a father, mother and son. These figures aim to exalt work and hope for new horizons. Gender habits were also identified in most representations, in which women are commonly associated with domestic activities and childcare while men are associated with work.
Keywords
Communication; Public monument; Semiotics; Memory; Immigrant.
1 Mestre pelo Programa de Pós-Graduação em Comunicação da Universidade Municipal de São Caetano do Sul (USCS). Formada em Jornalismo com Pós-Graduação em Marketing pela mesma instituição. Profissional de Comunicação Interna. E-mail: bruna_s_moura@hotmail.com.
2 Doutor em Comunicação pela PUC-SP. Professor no Mestrado em Comunicação da USCS. Professor Visitante na Maestría em Proyetos Sociales da UABC (México). Professor do Centro de Comunicação e Letras da UPM. E-mail: jbfcardoso@uol.com.br.
Juiz de Fora, PPGCOM – UFJF, v. 17, n. 3, p. 171-188, set./dez. 2023 DOI: 10.34019/1981-4070.2023.v17.41340
Introdução
De acordo com Barthes (2001), a cidade é como um discurso, dialoga com seus habitantes e desperta identificação dos moradores com seus objetos e espaços. Sob essa perspectiva, as cidades são compostas por memórias e histórias que, de modo geral, representam a população que nelas habitam. Segundo Briceño Ávila (2002), os objetos construídos nas cidades para fins práticos se tornam figuras fáceis de ver, reconhecer e criar vínculos afetivos. A cidade, então, acaba sendo um território composto por representações que envolvem o reconhecimento e a sensibilidade humana. Para Ferrara (2008), a cidade pode ser estudada como meio ou mídia. Como mídia, a cidade é constituída pelos seus suportes construtivos, índices materiais e formais que aliam às características urbanísticas uma dimensão representativa, comunicativa.
Uma das formas de representação da população na cidade é o monumento público, que, em certa medida, simboliza a cultura regional de onde está instalado. O monumento público carrega em si crenças e valores da comunidade que contribuem para a formação da identidade e de uma memória coletiva. Ao mesmo tempo, visa atender a interesses já estabelecidos na sociedade, como políticos, econômicos e religiosos. De acordo com Le Goff (2013) o monumento segue em direção a dois sentidos, o comemorativo e a recordação, ambos caracterizados por alto poder de perpetuação. Choay (2014) complementa a ideia do monumento como recordação, que envolve a memória e a afetividade.
Um tipo de monumento comum em muitas cidades é aquele que homenageia a imigração. Esse fenômeno ganhou mais importância na sociedade no início do século XX, sendo possível encontrar diversas estátuas sobre a temática espalhadas por todo o mundo. Inserido neste contexto, o presente artigo objetiva discutir as formas de representações dos monumentos ao imigrante.
Para isso, com base nos estudos da memória, define “monumento público” e, depois, por meio de levantamento iconográfico e análise semiótica, contextualiza a representação da família nos monumentos ao imigrante. Utiliza como critério de seleção a representação da família, cuja imagem como signo referente à migração compõe a maioria dos monumentos das cidades da região do ABC Paulista, locus da pesquisa. O estudo tem como corpus de análise o Monumento aos Imigrantes Italianos de São Caetano do Sul (SP). A amostra foi definida por conveniência, que se baseia na viabilidade e disponibilidade, ou seja, no acesso dos pesquisadores ao monumento.
Monumento público, cultura e identidade
Os monumentos públicos carregam em si crenças e valores da comunidade, contando uma história, que visa atender a interesses já estabelecidos na sociedade, como políticos, econômicos e religiosos. Desse modo, representam a cultura de certa região em determinada época, de acordo com a ideia dos grupos dominantes que construíram e instalaram essas obras. Os índices materiais e formais da cidade servem à comunicação de uma ideologia que articula valores, diferenciando a cultura das outras (FERRARA, 2008).
Bauman (2012) apresenta o conceito de cultura baseada na ordem, evitando, assim, o aleatório e não previsível:
‘Ordem’ é o oposto de aleatoriedade, significa o estreitamento do leque de possibilidades. [...] ‘Construir a ordem’ significa, em outras palavras, manipular as probabilidades dos eventos. [...] Essa tarefa envolve dois requisitos: primeiro, deve-se projetar uma distribuição ótima das probabilidades; segundo, deve-se garantir a obediência às preferências projetadas. O primeiro requisito pressupõe a liberdade de escolha; o segundo significa sua limitação, ou mesmo sua eliminação total. (BAUMAN, 2012, p. 12)
Sob essa ótica, a cultura, ao mesmo tempo, permite e restringe. Ela é livre, mas obedece a certos padrões. Para Bauman (2012), o mundo da cultura oscila entre a criatividade e a regulação normativa, a novidade e a tradição. Porém, há regras a serem seguidas. A cultura, por vezes, acaba sendo algo pré-determinado por outras pessoas.
Lotman (1998) acredita que a cultura se baseia em símbolos mnemônicos naturais, como árvores, rochas e corpos celestes notáveis; bem como os criados pelo homem, como ídolos, túmulos e construções arquitetônicas nos locais que estão inseridos. Santaella (2003) reforça o conceito de Lotman para a cultura a partir do ambiente natural e social. Para a autora, a cultura baseia-se na organização simbólica e na transmissão desses valores, com a finalidade de representar o grupo e suas relações.
Há consenso sobre o fato de que cultura é aprendida, que ela permite a adaptação humana ao seu ambiente natural, que ela é grandemente variável e que se manifesta em instituições, padrões de pensamento e objetos materiais. Um sinônimo de cultura é tradição, outro é civilização, mas seus usos se diferenciaram ao longo da história. (SANTAELLA, 2003, p. 30)
Atrelando esses conceitos de cultura ao espaço urbano, Jeudy e Jacques (2006) explicam que a cultura consiste num meio de a cidade promover sua imagem de marca. As obras de arte expostas nas ruas mostram as características culturais da cidade, consagrando-as como verdades. A partir da vivência dos cidadãos e sua respectiva relação da cultura com a cidade, cria-se a cultura urbana:
A cultura da cidade é a dos cidadãos que fazem parte da cidade. Os que residem nela, os que trabalham nela e todos os que a frequentam. O que faz com que tal cidade seja reputada ‘cinza’, ‘fria’, ‘bela’, ‘dura’, ‘alegre’ etc., é o resultado de uma aliança entre as construções e as pessoas que produz uma atmosfera particular. (JEUDY; JACQUES, 2006, p. 70)
Lotman (1998) une os conceitos de cultura e memória, já que os dois caminham juntos, buscando no presente algo que aconteceu no passado. Algo que, por vezes, parece esquecido, mas que de tempos em tempos se manifesta novamente:
Os aspectos semióticos da cultura (por exemplo, história da arte) se desenvolvem de acordo com as leis que lembram as leis da memória, segundo as quais o que aconteceu não é aniquilado nem se torna inexistente, mas, após uma seleção e uma complexa codificação, passa a ser conservado, pois, sob certas condições, se manifesta novamente. (LOTMAN, 1998, p. 109) (tradução nossa) [1]
Além da cultura, os monumentos públicos também estão ligados à identidade do local de instalação. Bauman (2012) define “identidade”, acrescentando que esse conceito não é somente baseado em questões externas, mas também internas, e que ter uma identidade é uma necessidade humana universal:
A identidade pessoal confere significado ao ‘eu’. A identidade social garante esse significado e, além disso, permite que se fale de um ‘nós’ em que o ‘eu’, precário e inseguro, possa se abrigar, descansar em segurança e até se livrar de suas ansiedades. (BAUMAN, 2012, p. 34)
Silverstone (2014, p. 181) assevera que os seres humanos possuem necessidade em pertencer, “encontrando nossas identidades nas relações sociais que nos são impostas e nas que procuramos. Percebemos uma necessidade de pertencer”. Já Martino (2010) toma como base a identidade pelas narrativas, ao compartilhar um discurso, que resulta de experiências significativas transformadas em nossa memória.
A atribuição da identidade está ligada à cultura de cada indivíduo. Essa cultura permite-lhe construir uma identidade, isto é, montar uma mensagem dizendo ‘este sou eu’ para as outras pessoas, e, ao mesmo tempo, ler as outras pessoas, decodificar as mensagens que elas enviam em termos de identidade. (MARTINO, 2010, p. 15)
Goulart, Perazzo e Lemos (2005) tratam da identidade coletiva, constituída a partir da memória social de uma comunidade por meio da semelhança de si próprio a partir do reconhecimento do outro: “A identidade coletiva de um grupo processa-se a partir de sentimentos de pertencimento a esse grupo, garantido por imagens ou símbolos que permitem o reconhecimento do outro como a mim mesmo” (GOULART; PERAZZO; LEMOS, 2005, p. 158).
Sobre a criação de uma identidade local por meio dos monumentos, Knauss e Mauad (apud RAMOS, 2017, p. 227), afirmam que “com a construção de um monumento, os cidadãos ressignificam os diversos territórios do seu cotidiano e constroem [ou reforçam] a sua identidade com a cidade”.
A partir dos conceitos estudados neste tópico, pode-se dizer que os monumentos públicos estão, em certa medida, ligados à cultura e identidade das cidades em que estão instalados, trazendo significado simbólico por meio de suas representações.
Monumento, memória e família
De forma geral, o principal significado da palavra “monumento” envolve uma construção a fim de homenagear alguém ilustre ou algum fato histórico. Le Goff (2013), a partir de uma abordagem da memória e história, afirma que o monumento tem a função de recordar e evocar o passado, bem como perpetuar essa recordação para as próximas gerações.
A palavra latina monumentum remete à raiz indo-europeia men, que exprime uma das funções essenciais do espírito (mens), a memória (memini). O verbo monere significa ‘fazer recordar’, de onde ‘avisar’, ‘iluminar’, ‘instruir’. O monumentum é sinal do passado; Atendendo às suas origens filológicas, o monumento é tudo aquilo que pode evocar o passado, perpetuar a recordação, por exemplo, os atos escritos. (LE GOFF, 2013, p. 462)
O autor afirma que, desde a antiguidade romana, o monumento segue em direção a dois sentidos, o comemorativo e a recordação, ambos caracterizados por alto poder de perpetuação. O monumento segue em conjunto com o documento em relação ao material de memória, sendo que o primeiro se caracteriza pela herança do passado e o segundo como prova histórica, escolhida pelo historiador. “O monumento tem como característica o ligar-se ao poder de perpetuação, voluntária ou involuntária, das sociedades históricas” (LE GOFF, 2013, p. 476).
Choay (2014) compactua com o pensamento de Le Goff a respeito do monumento como recordação, envolvendo a memória e afetividade. Esse autor caracteriza o monumento público como um tipo de artefato edificado por uma comunidade que tem o propósito de preservar a memória de algo e, ainda, fazer com que as gerações futuras não esqueçam uma perspectiva desejável do passado. Nesse sentido, o monumento visa trazer uma lição ao presente e ao futuro, baseada numa memória coletiva que a comunidade busca reconhecer.
Ramos (2017) relaciona os monumentos públicos à imigração, e sua relação com a sociedade do passado, sendo considerados espaços de memória e lugares de rememoração nos locais onde estão instalados: “Os monumentos nas cidades não só fazem parte da imaginária urbana, mas demarcam a relação com os antepassados, com os pioneiros e os fundadores” (RAMOS, 2017, p. 231).
No que se refere especificamente a esse tipo de monumento, Ramos (2017) afirma que eles tendem a remeter, principalmente, às palavras “comemoração”, “homenagem”, “gratidão” e “esquecimento”. Esta última, em especial, relaciona-se ao conceito de memória, pois, sem os monumentos, as lembranças poderiam ser esquecidas. Entretanto, não podemos desconsiderar a ideia de que construir monumentos envolve, predominantemente, interesses políticos, econômicos e religiosos de grupos dominantes da época que estes foram construídos.
Gómez Aguilera (2004, p. 49) cita uma fala do escultor Siah Armajani, em que ele diz que a escultura pública tem função social baseada em necessidades concretas. Pode-se considerar que, ao construir monumentos à imigração, há uma necessidade concreta de preservação dessa cultura ou daquela memória. Para isso, regularmente, esse tipo de monumento é erguido em locais de grande visibilidade.
Uma característica também comum a esse tipo de monumento, e que interessa a este trabalho, é a representação da família tradicional, composta por pai, mãe e filho. Nas cidades da região do Grande ABC, locus da pesquisa, a maioria dos monumentos aos imigrantes mostra a figura de uma família: Santo André e São Bernardo do Campo [Figura 1]; São Caetano do Sul [Figura 9]; e Diadema [Figura 6].
Figura 1 - Monumentos aos Imigrantes nas cidades de Santo André (SP) e São Bernardo do Campo (SP).
Fonte: Autoria própria (2022; 2023).
Realizando um breve levantamento de monumentos aos imigrantes no Brasil e em outros países, é possível comprovar que a representação da família é recorrente. Martins (2003), explica que a representação da família está relacionada intimamente com a ideia de migração do final do século XIX. Segundo ele, havia a preferência por migrantes que vinham com a família para o país: “[...] os casados, com família, eram preferidos aos solteiros sozinhos. Em tudo operava um estereótipo seguro: relações de dependência, como as da família, que freassem a mobilidade do imigrante e sua capacidade de reivindicação” (MARTINS, 2003, p.59).
Desse modo, para esta análise foram selecionados apenas monumentos aos imigrantes compostos por família. Um exemplo de representação desse tipo é o Monumento Nacional aos Imigrantes [Figura 2], localizado em Caxias do Sul (RS). A obra foi inaugurada em 28 de fevereiro de 1954, durante o governo Getúlio Vargas. Ramos (2017) descreve que essa escultura enaltece o trabalho, a família e o desejo por novos horizontes.
Por sugestão do historiador João Spadari Adami e com o aval da maioria da Comissão Pró-monumento, a escultura deveria representar um casal de imigrantes pioneiros, jovens, corajosos, resolutos [...] acompanhados por um filho. (RAMOS, 2017, p. 238)
Figura 2 - Monumento Nacional aos Imigrantes em Caxias do Sul (RS).
Fonte: Sgorla (2019).
Na região capixaba de Domingos Martins (ES), exibe-se o Monumento ao Colono Imigrante [Figura 3], que apresenta uma família de imigrantes europeus recém-chegados. Construído em 1954 pelo escultor italiano Carlo Crepaz, radicado no Brasil, o monumento está localizado na Praça Arthur Gerhaldt. Como no exemplo anterior, o homem jovem segura uma ferramenta e olha para o horizonte, enquanto a mulher cuida do filho.
Figura 3 - Monumento ao Colono Imigrante em Domingos Martins (ES).
Fonte: Rocha (2017).
Na cidade de Valinhos (SP), o Monumento aos Imigrantes [Figura 4] se localiza na Praça José Ferraro. Segundo o portal da Prefeitura da cidade, a escultura é uma homenagem prestada aos imigrantes italianos e aos seus descendentes. A relação que se estabelece entre o homem e o trabalho, por meio da ferramenta, e da mulher com a família, no cuidado à criança de colo, reforça a hipótese de que a marcação de gênero é característica desse tipo de representação. Contudo, neste monumento, diferentemente dos anteriores, um segundo filho segura a mão do pai, sugerindo a formação, o aprendizado.
Figura 4 - Monumento aos Imigrantes em Valinhos (SP).
Fonte: Prefeitura de Valinhos (s.d.).
Diferente dos outros que representam imigrantes europeus, o monumento aos imigrantes na cidade de Santos (SP) homenageia a comunidade japonesa. Localizado à beira-mar, as figuras estão de costas para o oceano, simulando a chegada dos imigrantes japoneses que desembarcaram no porto de Santos em 1908, no navio Kasato Maru. Nota-se que os migrantes não utilizam vestimentas de camponeses, o homem está de terno, a mãe com coque e vestido longo, e o filho com camisa. A representação não sugere o trabalho braçal. O homem aponta para o novo destino, vê o futuro. Dessa forma, a imagem tem potencial para significar que é o homem que diz o caminho a seguir, e a mãe o segue, conduzindo o filho, ao apoiar as mãos nos ombros dele.
Figura 5 - Monumento aos Imigrantes Japoneses em Santos (SP).
Fonte: Keren (1998).
A cidade de Diadema (SP), por outro lado, chama a atenção para a migração interna. Na década de 1950, a cidade recebeu um grande número de migrantes vindos de diversas partes do país, principalmente do nordeste e sul de Minas Gerais. Esse monumento se difere dos outros, já que todos os membros da família, inclusive a criança, aparecem trabalhando na construção de uma edificação. As vestimentas das figuras aparentam ser mais modestas que os anteriores: eles usam chinelos; o pai está sem camisa e usa um chapéu típico de um trabalhador da construção civil. As figuras têm o olhar para baixo, focado apenas na obra, sem lançar o olhar ao futuro, como se observa nos outros monumentos.
Figura 6 - Monumento aos Migrantes Internos em Diadema (SP).
Fonte: Facebook – Centro de Memória de Diadema (2020).
Fora do Brasil, pode-se citar o Monument to the Immigrant, de Nova Orleans (EUA), localizado à beira do rio Mississipi, no Wonderberg Park. Construído pelo artista ítalo-americano Franco Alessandrini em 1995, a escultura representa, de um lado, uma família, e, no outro, uma figura esculpida como se fosse a frente de um navio. As mesmas relações entre trabalho e maternidade se estabelecem. Nota-se que, de modo geral, tanto o trabalho quanto a maternidade estão relacionados ao crescimento, ao desenvolvimento, à construção de uma vida nova, de um mundo novo.
Figura 7 - Monument to the Immigrant em Nova Orleans (EUA).
Fonte: New Orleans Historical (2019).
Em Adelaide, na Austrália, a Migrant Settlers Statue está localizada no pátio do Migrant Museum, na Kintore Avenue. A estátua apresenta uma família e está sobre uma base com as palavras “Coragem”, “Orgulho”, “Sonhos” e “Conquistas”. Esses termos reforçam a ideia de que as representações dos imigrantes devem servir ao discurso do crescimento, do progresso. Entretanto, não se percebe na figuratividade o olhar voltado ao horizonte, como nas outras representações. Ao contrário disso, as figuras apontam para caminhos diferentes.
Figura 8 - Migrant Settlers Statue em Adelaide (Austrália).
Fonte: State Library South Australia (2007).
Um rápido olhar sobre essa pequena amostra permite inferir que a representação da família nas estátuas dos imigrantes ao redor do mundo segue uma série de convenções, que buscam simbolizar um tipo de migração específica, de uma época determinada, e, principalmente, certa ideia de realidade da época que se deseja preservar.
O monumento aos imigrantes italianos: uma análise semiótica
Na investigação que dá origem a esta pesquisa, foram analisados quatro monumentos presentes nas cidades da Região do Grande ABC – Santo André e São Bernardo do Campo [Figura 1]; Diadema [Figura 6]; e São Caetano do Sul [Figura 9] –, mas neste artigo é apresentada apenas a análise do monumento ao imigrante italiano da cidade de São Caetano do Sul, por ser o principal objeto de estudo da pesquisa.
A análise buscou evidenciar o potencial de significação da estátua tendo como procedimento metodológico o percurso proposto por Santaella (2004). A semiótica de Peirce, à qual a autora se filia, apoia-se em três categorias básicas: primeiridade; secundidade; e terceiridade. Essas categorias servem não só para estruturar seu método científico, como também para classificar os diferentes tipos de signos.
No exame do monumento de São Caetano do Sul, a análise se deteve primeiramente na observação dos tipos de signos relacionados ao objeto (ícone, índice e símbolo) para inferir sobre os signos potenciais, relacionados ao interpretante (rema, dicente e argumento). Esse percurso analítico leva em conta o efeito que o signo é capaz de produzir na mente, nos termos de Peirce (2005), o interpretante imediato.
O interpretante é o efeito que o signo gera, ou pode gerar, em uma mente após passar pela percepção e ser relacionado com outros conceitos que estão no inconsciente. Como explica Santaella (2008), dizer que um signo representa um objeto significa dizer que ele traz para uma mente um objeto. Esse signo na mente é o interpretante, que se divide em três tipos: rema, no nível dos sentimentos; dicente, no nível da constatação de uma existência; e argumento, no nível do pensamento controlado.
Independentemente do tipo de signo, o interpretante pode ser: imediato, dinâmico ou final. O interpretante imediato, particularmente, é interno ao signo: “trata-se do potencial interpretativo do signo, quer dizer, de sua interpretabilidade ainda no nível abstrato, antes de o signo encontrar um intérprete qualquer em que esse potencial se efetive” (SANTAELLA, 2004, p. 24).
De acordo com Santaella (2004), é no interpretante que reside a razão de ser do signo. Ou seja, é na mente do indivíduo que se define os sentidos que podem ser atribuídos pelo signo ao monumento público a partir de um sistema de codificação compartilhado pela comunidade. No caso do objeto de análise, parte-se do princípio de que há um potencial interpretativo na representação da família como signo da imigração, que se fundamenta em um sistema cultural de codificação.
Dentro da lógica triádica de categorização do pensamento peirciano, os signos que estabelecem relação com o objeto também se dividem em três tipos: ícone, que sugere o seu objeto apenas em virtude de suas próprias qualidades, que são semelhantes às do objeto a que se refere; índice, que é resultado das marcas perceptíveis que o objeto deixou em um espaço e tempo preciso; e símbolo, que se fundamenta em uma convenção, que permite a compreensão da mensagem em um contexto pragmático.
No que se refere ao signo em sua relação com o objeto, e tendo como base as questões discutidas acerca da cultura, o interesse desta análise se volta em especial ao aspecto simbólico da representação. Peirce (2005, p. 71) afirma que o caráter representativo do símbolo consiste exatamente “em ser uma regra que determinará seu interpretante”. Segundo o autor, o símbolo se refere ao objeto por convenção, de modo que é assim que deve ser entendido. Santaella (2004, p. 132) acrescenta: “o símbolo é um signo cuja virtude está na generalidade da lei, regra, hábito ou convenção de que ele é portador e a função como signo dependerá precisamente dessa lei ou regra que determinará seu interpretante”. Peirce (2005) entende que tudo o que uma sociedade faz depende de representações transmitidas pelos símbolos. Sob essa concepção, é possível compreender o monumento público como um símbolo cultural, submetido a um sistema de codificação, determinado por certas convenções.
Considerando que esses símbolos são gerados por uma representação figurativa, a imagem da família, o exame deve também observar o hipoícone imagético, o ícone como imagem – Peirce também divide o ícone em três: imagem, diagrama e metáfora. O hipoícone imagético consiste no signo que representa seu objeto pela semelhança visual. Ou seja, a estátua se assemelha a um modelo de família, composto por pai, mãe e filho.
Os aspectos indiciais, por sua vez, interessam à análise já que são preponderantes nas circunstâncias extrassemióticas, aquelas em que, segundo Eco (2009, p. 136), “a significação se confronta com um quadro global de condições materiais, econômicas [...]”. No caso deste estudo, a localização é um fator determinante, pois indica a importância que se dá aos símbolos difundidos no monumento. O Monumento aos Imigrantes Italianos de São Caetano do Sul está localizado na entrada da cidade.
Figura 9 - Monumento aos imigrantes italianos.
Fonte: Autoria própria (2022).
No que se refere ao ícone, a imagem sugere uma família composta por pai, mãe e filho, com roupas de camponeses, sendo que a mãe carrega uma pequena bolsa, similar a uma sacola de tecido, e o bebê. O pai, por sua vez, segura um rastelo. Os trajes camponeses se justificam pelo fato de São Caetano do Sul ter recebido grande número de imigrantes italianos no final do século XIX para trabalho nas lavouras de café, – em função da abolição da mão de obra escrava –. Outro aspecto icônico na imagem é que tanto a figura masculina quanto a feminina aparentam um olhar sereno para o horizonte.
De acordo com Santaella (2004, p. 17), “ícones são qualissignos que se reportam a seus objetos por similaridade [...]. O ícone só pode sugerir ou evocar algo porque a qualidade que ele exibe se assemelha a uma outra qualidade”. No caso dessa imagem, o ícone serve à função simbólica – de acordo com a teoria de Peirce (2005), todo símbolo possui índices que, por sua vez, possuem ícones. Em outros termos, as semelhanças da estátua com um casal de migrantes com filhos (ícones) servem para se referir a uma espécie de objetos, a todos os migrantes italianos que chegaram à cidade (símbolo).
Considerando o aspecto simbólico, reforça-se o hábito da divisão de tarefas por gênero, sendo que as mulheres ficam com a função materna e os pais responsáveis pelo trabalho e sustento da família. Santaella (2004) assegura que a ação do símbolo se fundamenta no legissigno, estando habilitado para representar o que a lei prescreve. Nesse caso, a lei é uma convenção cultural da época: mulher relacionada à maternidade e, homem, ao trabalho.
A placa logo abaixo das figuras tem uma função indicial ao trazer uma explicação sobre o monumento e também sobre a imigração na cidade. Ela registra a importância da imigração italiana para o local e informa que os imigrantes foram os fundadores de São Caetano do Sul, vindos para trabalhar no campo. A localização se apresenta como uma importante circunstância extrassemiótica. A estátua está localizada na entrada da cidade, em uma das avenidas mais importantes do município, o que certifica o seu valor.
Por meio de uma representação simbólica, o monumento representa todas as pessoas vindas de diferentes pontos da Itália que chegaram à região. Os movimentos de migrantes do final do século XIX foram selecionados e codificados em meados do século XX para que pudessem ser conservados para as gerações futuras. Desse modo, homenageia não só os pioneiros e fundadores da cidade, mas, principalmente, os seus descendentes. Essa codificação segue linguagens consolidadas em outros monumentos da época e atende às normas impostas pelo próprio município. Há, nitidamente, uma intenção em gerar determinadas certezas sobre o passado da cidade (nível do interpretante dicente) e, com isso, sentimentos positivos em relação ao que deveria ser a própria história do cidadão sul-caetanense (nível do interpretante remático).
Ainda que a representação da família tenha algum lastro com a realidade, já que havia a preferência por migrantes que vinham com a família para o país, a imagem opera como um estereótipo com vista a criar uma ideia única de passado, seguindo um modelo que também se observa em estátuas de outros lugares: a ideia de construção da cidade por uma família jovem, europeia, com um olhar para o futuro.
Tendo como orientação certas normas estabelecidas, o monumento, mais que evocar o passado, mostra-se como uma forma de construir uma memória que atende aos interesses de grupos dominantes e tende a simbolizar a cultura regional com vista a consolidar uma identidade coletiva que atende a uma ideologia.
Se, por um lado, o monumento permite a manutenção de elementos da cultura de comunidades italianas na região, por outro, restringe elementos de outras culturas, que também participaram da construção da cidade, como, por exemplo, dos migrantes de países africanos ou das regiões do nordeste brasileiro. A tradição e a regulação normativa se impõem à diversidade. São esses traços da cultura e da identidade que se pretende que sejam apreendidos como verdades pelas futuras gerações, que faça com que os descendentes e não descendentes de italianos se sintam parte da história de uma comunidade.
Considerações Finais
Como procurou-se observar, o monumento evoca o passado e preserva a memória por meio de convenções estabelecidas por aqueles que desejam construir uma ideia de passado e, consequentemente, de presente e futuro baseado em uma memória coletiva. Nesse sentido, a lembrança é determinada por interesses políticos, econômicos e culturais. Por isso, os monumentos normalmente são expostos em lugares de grande visibilidade e trânsito.
É com esse olhar que se deve compreender a representação da família nos monumentos aos imigrantes. Se, por um lado, elas se reportam a um comportamento histórico, de privilegiar a migração de casais pelo motivo da segurança no desenvolvimento do trabalho, por outro, defendem a perpetuação de uma ideia estereotipada de constituição familiar. Representam os grupos sociais que, segundo esse ponto de vista, dedicam-se ao trabalho e almejam desenvolvimento e crescimento. Em outros termos, contribuem para o progresso da cidade ou região. Por isso, ainda de acordo com esse pensamento, devem ter a disposição e coragem dos jovens.
Entretanto, é preciso considerar que, como símbolos, as figuras das estátuas se referem também a outros tipos de imigrantes e descendentes: que não se enquadram na composição familiar tradicional, formada por pai, mãe e filho; que não concordam com as divisões de tarefas por gênero; ou não conseguiram mirar o horizonte de oportunidades do novo mundo.
Notas
[1] Los aspectos semióticos de la cultura (por ejemplo, la historia del arte) se desarrollan, más bien, según leyes que recuerdan las leyes de la memoria, bajo las cuales lo que pasó no es aniquilado ni pasa a la inexistencia, sino que, sufriendo una selección y una compleja codificación, pasa a ser conservado, para, en determinadas condiciones, de nuevo manifestarse.
Referências
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BAUMAN, Z. Ensaios sobre o conceito de cultura. Rio de Janeiro: Zahar, 2012.
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