O consumo no romance Mãos de Cavalo, de Daniel Galera

Luiz Siqueira1

Resumo

O romance Mãos de Cavalo, de Daniel Galera, alterna seus capítulos narrando a infância, adolescência e vida adulta de seu protagonista, ressaltando os seus aspectos físicos, morais e psicológicos. Ao longo do trajeto formativo narrado, notam-se menções a marcas publicitárias extradiegéticas, isto é, não fictícias. Uma vez que, conforme Lajolo (2001), a literatura mergulha no imaginário coletivo e o fecunda, e, segundo Gregorin Filho (2011), há uma diversidade de imagens disponíveis para escolha identitária do jovem, reflete-se sobre a importância concedida ao consumo das personagens nessa obra. Com uma abordagem essencialmente bibliográfica, destaca-se o modo como essas marcas publicitárias se articulam ao texto literário, buscando compreender tais manifestações à luz de perspectivas teóricas em relação ao consumo. Conclui-se que as marcas, percebidas como extradiegéticas, acrescentam informações à narrativa; os objetos são mais que utilitários, são comunicadores. À luz dos pressupostos teóricos de Bauman (2008) e Candido (2007), entre outros, entende-se que a recorrência às marcas publicitárias extradiegéticas nesse romance utiliza a cultura material como uma via de acesso aos indivíduos, ao mesmo tempo em que imprime à obra um sentimento de verdade.

Palavras-chave

Consumo; Cultura de consumo; Literatura e Publicidade; Mãos de Cavalo; Daniel Galera.

1 Doutorando em Estudos Literários no Programa de Pós-Graduação em Letras e Linguística da Universidade Federal de Goiás (PPGLL/UFG). É Mestre em Comunicação, na linha de pesquisa Mídia e Cultura (PPGCOM/UFG), Graduado em Comunicação Social – Bacharelado em Publicidade e Propaganda, pela mesma instituição (FIC/UFG), e em Letras – Licenciatura em Língua Portuguesa, pela Pontifícia Universidade Católica de Goiás (EFPH/PUC-GO). E-mail: siq.luizc@gmail.com.

Juiz de Fora, PPGCOM – UFJF, v. 18, n. 1, p. 74-89, jan./abr. 2024                                                         DOI 10.34019/1981-4070.2024.v18.40850

The consumption in the novel Mãos de Cavalo by Daniel Galera

Luiz Siqueira1

Abstract

Mãos de Cavalo, by Daniel Galera, alternates its chapters narrating the childhood, adolescence and adulthood of its protagonist, covering his physical, moral and psychological aspects. Throughout the narrated formative journey, there are mentions of advertising brands, in other words, non-fictional ones. As Lajolo (2001) argues, literature delves into the collective imagination and makes it fertile, and according to Gregorin Filho (2011), there is a diversity of images available for the young person’s identity choice, we reflect on the importance given to the character’s consumption in this novel. With an essentially bibliographical approach, the way in which these advertising brands are articulated with the literary text is highlighted, in an attempt to understand such manifestations in the light of theoretical perspectives on consumption. We conclude that the brands, perceived as extradiegetic, add information to the narrative; objects are more than utilitarian, they are communicators. In the light of the theoretical presuppositions of Bauman (2008) e Candido (2007), among others, it is understood that the recurrence of advertising brands in this novel uses material culture as a way of accessing individuals, while at the same time imparting a sense of truth to the work.

Keywords

Consumption; Consumer culture; Literature and Advertising; Mãos de Cavalo; Daniel Galera.

1 Doutorando em Estudos Literários no Programa de Pós-Graduação em Letras e Linguística da Universidade Federal de Goiás (PPGLL/UFG). É Mestre em Comunicação, na linha de pesquisa Mídia e Cultura (PPGCOM/UFG), Graduado em Comunicação Social – Bacharelado em Publicidade e Propaganda, pela mesma instituição (FIC/UFG), e em Letras – Licenciatura em Língua Portuguesa, pela Pontifícia Universidade Católica de Goiás (EFPH/PUC-GO). E-mail: siq.luizc@gmail.com.

Juiz de Fora, PPGCOM – UFJF, v. 18, n. 1, p. 74-89, jan./abr. 2024                                                         DOI 10.34019/1981-4070.2024.v18.40850

Introdução

Ao início de suas considerações em A personagem do romance, o crítico literário brasileiro Antonio Candido observa que, em geral, da leitura de um romance fica a impressão de uma série de fatos, organizados em enredo, e de personagens que vivem esses fatos. Para Candido (2007, p. 53), trata-se de uma impressão praticamente indissolúvel: “quando pensamos no enredo, pensamos simultaneamente nas personagens; quando pensamos nestas, pensamos simultaneamente na vida que vivem, nos problemas em que se enredam, na linha do seu destino”. À luz dessa reflexão, é possível cogitar que até mesmo ao leitor mais desatento não tenham passado despercebidas, no conjunto de impressões que podem ser suscitadas, as recorrências às várias marcas publicitárias ao longo do romance Mãos de Cavalo, do escritor nascido em São Paulo (mas gaúcho de criação) Daniel Galera.

Este romance, publicado em 2010 pela Companhia das Letras, alterna seus capítulos narrando três momentos da vida de seu personagem principal: a infância do “guri” de dez anos que percorre as ruas de Porto Alegre com a sua bicicleta; a adolescência do garoto cujo apelido é “mãos de cavalo”, conflituosa em meio a partidas de futebol, jogos de videogame e as primeiras experiências sexuais que moldam a formação de sua identidade; e a vida adulta de Hermano, médico cirurgião plástico dividido entre passar um tempo com sua filha de dois anos e a vontade de fuga da vida conjugal.

Logo nas primeiras páginas de Mãos de Cavalo, o leitor acompanha o “guri” de dez anos, que se autointitula “Ciclista Urbano”, a percorrer as ruas de Porto Alegre “com sua antiquada, porém feroz, Caloi Cross aro 20 com freio de pé, branca com adesivos de enfeites azuis, com pneus-balão vermelhos de garras salientes no lugar dos pretos e finos originais de fábrica” (Galera, 2010, p. 10) (grifo nosso). Algumas páginas depois, o leitor toma conhecimento de uma briga durante uma partida de futebol na Esplanada, diante da qual, com a tensão que se instala entre os jogadores, o dono da bola “colocava sua Penalty oficial debaixo do braço e saía de fininho para forçar o encerramento da partida, dissipar os jogadores e diminuir as chances de uma briga” (Galera, 2010, p. 37) (grifo nosso).

Desse modo, tanto no relato cinematográfico empreendido pelo narrador, que acompanha o “Ciclista Urbano” pelas ruas de Porto Alegre, quanto na narração da partida de futebol com o jovem Hermano e seus amigos, observam-se menções à Caloi aro 20 e à Penalty oficial usada no jogo de futebol. O que chama atenção nesses episódios, aos quais muitos outros podem ser somados, é que marcas publicitárias extradiegéticas são mencionadas, isto é, não são marcas fictícias, não foram criadas para compor o universo do romance.

Uma definição de marca é apresentada por Kotler e Keller (2006) que recorrem à Associação Americana de Marketing. Segundo os autores, marca pode ser definida como um nome, termo, sinal, símbolo, design.  Ou, ainda, uma combinação dessas de modo a identificar produtos ou serviços de um fornecedor, de modo a diferenciá-los de seus concorrentes. Com isso em mente, no romance de Galera, não se trata, pois, de uma bicicleta qualquer, tampouco de uma bola qualquer ou de objetos criados apenas na/pela ficção.

As relações entre a literatura e a publicidade no Brasil são de longa data. Consta na carreira literária de muitos escritores brasileiros a atuação como redatores publicitários, nos primórdios da Publicidade brasileira. Monteiro Lobato, Benedito Rui Barbosa, Paulo Leminski, João Ubaldo Ribeiro, José Silveiro Trevisan e Luís Fernando Veríssimo são nomes amplamente conhecidos que se prestam a exemplo da mencionada recorrência ao longo do tempo. No entanto, as relações entre as duas áreas não se restringem à atuação de escritores literários como redatores publicitários; ou melhor, em decorrência dessa atuação, essas relações são também de natureza “estrutural”, por assim dizer.

Carrascoza (2004), que transita com propriedade entre os meios literário e publicitário (além de pesquisador, professor universitário e romancista), recorre à origem da palavra “texto”: do latim textus, “tecido”. Sendo assim, considera o texto verbal como o produto do ato de tecer palavras que se entrelaçam para formarem significação. Nesse sentido, o texto publicitário deve ser “costurado” para atingir sua função persuasiva. O autor identifica então, nesse tipo de texto, a preponderância de dois modelos que se complementam: o apolíneo, que reveste esse texto com um caráter mais racional, construindo-o de acordo com o ideal almejado pelo público, e o dionisíaco, que o reveste de emoções. O nome que intitula o estudo de Carrascoza (2004) faz referência, em síntese, a esses dois princípios modelares: Razão e sensibilidade no texto publicitário. Não por acaso, as palavras “razão” e “sensibilidade” também nomeiam o primeiro romance da escritora inglesa Jane Austen que, publicado em 1811, relata o amadurecimento das irmãs Elinor e Marianne Dashwood, por sua vez representantes literárias dos mesmos princípios: o apolíneo e o dionisíaco.

Em suas reflexões sobre o texto publicitário, Carrascoza (2006, p. 79) observa que a presença de escritores literários na propaganda nacional contribuiu para “o transporte do campo associativo da literatura para a publicidade impressa brasileira”. Assim, nos poemas de Olavo Bilac, na descrição de Machado dos olhos de Capitu como “olhos de ressaca”, na poética de Drummond, em contos de Clarice Lispector, no projeto linguístico de Guimarães Rosa expresso em Grande sertão: veredas, entre outros, observa-se relações paradigmáticas de associação por analogia, ou seja, a técnica de “palavra-puxa-palavra”, presente no mundo literário de onde “a publicidade no Brasil buscou o para a elaboração de seus textos às portas do terceiro milênio” (Carrascoza, 2006, p. 54).

Se recorreu-se à literatura como um modo para o fazer publicitário, compondo assim intersecções entre as duas áreas, é de se esperar, em seu curso por uma linguagem própria e tendo-se em vista sua função primeira – a saber, persuadir – que outras intersecções aconteçam, pois um princípio que rege o meio publicitário é a divulgação do novo, ainda que este esteja apenas revestido por novos tecidos, ou revestido por coexistência de novas costuras em meio a antigas. Nesse sentido, é pertinente a observação de Rogério Covaleski sobre linguagem publicitária contemporânea, que se assume cada vez mais híbrida, necessidade diante do surgimento de novas mídias:

a mensagem publicitária, da maneira como é compreendida hoje – paradoxalmente – ganha sobrevida quanto mais deixa de se parecer consigo mesma; quanto menos faça uso dos elementos tradicionais que constituem o discurso publicitário tradicional. Apresenta-se, de forma crescente, inserida e camuflada no entretenimento, travestida de diversão, mas não destituída de sua função persuasiva, mesmo que dissimulada. Está cada vez mais hibridizada (Covaleski, 2012, p. 54).

Para Covaleski (2012, p. 54), surgem então novos formatos e configurações para a mensagem publicitária, que “subentendem adaptações de linguagem e evoluções em processos; da criação ao planejamento, da produção à veiculação, da recepção à interação”, e a linguagem publicitária contemporânea se constitui adequando-se às reflexões da academia e às transições da prática no mercado. Assim, a publicidade hibridizada mantém suas características persuasivas, mas apresenta-as sob as qualidades do entretenimento, em um contexto no qual o público contemporâneo interage, sendo também coautor da mensagem.

Feitas essas considerações gerais, e, portanto, conhecendo-se os modos de composição que dominaram inicialmente o fazer publicitário – com recorrências à literatura – e conhecida a direção que segue a linguagem publicitária contemporânea – isto é, a da hibridização – interessa aos propósitos deste texto o caminho contrário: a presença de marcas publicitárias em um texto literário.

Com esse intuito em vista, a pesquisa se desenvolve a partir de uma abordagem qualitativa, essencialmente bibliográfica. Nesse sentido, guia-se segundo a compreensão e as etapas esquematizadas por Stumpf (2011) para uma pesquisa bibliográfica: “identificação do tema e assuntos”, “seleção das fontes”, “localização e obtenção do material e leitura” e “transcrição dos dados”. Em um primeiro momento, discutem-se aspectos do romance analisado e destaca-se o modo como as já mencionadas manifestações de marcas publicitárias extradiegéticas se articulam ao texto literário. Em seguida, busca-se compreender tais manifestações à luz de perspectivas teóricas em relação ao consumo, na tentativa de elucidar a obra em estudo.

O consumo em Mãos de Cavalo

No romance em questão, apresentam-se as fases da vida de Hermano. Desde criança, o “guri” explora as ruas de Porto Alegre, percorrendo-as de bicicleta, sem rígido controle de seus pais. Adolescente, encontra amigos com frequência e liberdade para partidas de futebol, pequenas festas noturnas e jogos de videogame em suas casas. Após um encontro com amigos, Hermano assiste, escondido, à violenta morte de um deles, sem que tentasse impedir, ou melhor, conseguisse tentar impedi-la. A partir desse momento, torna-se recluso e decide dedicar-se com afinco aos estudos, para se tornar o melhor médico. Já adulto, médico cirurgião plástico bem-sucedido, Hermano se vê dividido entre o convívio familiar, com uma filha de dois anos, e a fuga da vida matrimonial, o que obtém pela prática de esportes radicais. A julgada covardia pelo adolescente Hermano frente ao brutal assassinato do amigo assombra o Hermano adulto, que revisita suas memórias e procura se acertar com o seu “eu” do passado.

A compreensão da dimensão temporal que diz respeito à infância e à juventude na vida dos indivíduos atende a uma rede de fatores concebidos e tratados de maneira diferente em distintos momentos e lugares. Tal observação é, antes, feita em relação à infância por Lajolo (2001). A autora observa, em Infância de papel e tinta, que uma breve consulta ao dicionário já ilustra as diferentes concepções de infância: enquanto que para o Vocabolario dela lingua italiana a infância corresponde ao período da vida que vai do nascimento aos doze anos, o Webster a define como os primeiros anos de vida, e o Aurélio estabelece ser o período do nascimento à adolescência no qual o crescimento ocorre em todos os domínios, podendo ser dividido ainda em primeira (de zero a três anos), segunda (de três a sete anos) e terceira infância (de sete anos à puberdade).

Sabe-se – e esta autora aponta – que diferentes áreas do conhecimento se ocupam da infância, como a biologia, a psicologia, a psicanálise e a pedagogia. Ao longo do tempo, essas áreas construíram uma imagem da infância que atendia às expectativas sociais. Entre essas áreas, as artes e, de modo específico, a literatura, que também é responsável pela imagem da infância que circula em uma sociedade em uma determinada época. Assim, enquanto formadora de imagens, “a literatura mergulha no imaginário coletivo e simultaneamente o fecunda, construindo e desconstruindo perfis de crianças que parecem combinar bem com as imagens de infância formuladas e postas em circulação a partir de outras esferas” (Lajolo, 2001, p. 232).

É também nesse sentido que Gregorin Filho (2011) tece observações em relação à adolescência. A compreensão dessa fase, para o autor, não advém apenas de uma busca no dicionário, dada a complexidade desse universo, pois não há uma categoria fixa que defina a sua faixa etária, “ela começa no período transitório da puberdade, mas se apresenta como uma representação social, um ideal das sociedades, e abarca uma intrincada rede de valores” (Gregorin Filho, 2011, p. 8).

Como categoria social, a juventude é fabricada pelos indivíduos, designando comportamentos e atitudes compartilhadas entre os mais jovens. Para Gregorin Filho (2011), a representação juvenil já teve diferenças mais acentuadas de uma sociedade para outra. Tal mudança ocorre devido a uma conjunção de fatores os quais são, em sua maioria, impulsionados pela tecnologia: a proliferação dos meios de comunicação, o domínio do mercado de consumo e a disseminação das redes sociais em diferentes plataformas. O que as novas tecnologias e tudo a elas associado acarreta é uma uniformização da juventude: “vestem-se quase de maneira igual, utilizam-se dos mesmos recursos de comunicação, convivem em grupos (ou tribos) equivalentes e se confrontam com a sociedade de modo parecido, olhando para o mundo e interagindo com as pessoas quase do mesmo jeito” (Gregorin Filho, 2011, p. 9).

Recuperando a visão de Vincent-Buffault, Gregorin Filho (2011) relata ter sido a partir do século XVIII que teve início uma reflexão sobre a juventude como período transitório entre a infância e a vida adulta. A imagem atual que se faz do adolescente é, então, o resultado de toda uma trajetória:

não é apenas com seus conflitos pessoais, subjetivos, que o indivíduo precisa lidar na etapa da adolescência, mas com a distorção de valores para que ele seja alguém que possua um posicionamento ético na e com a sociedade. Qual das várias imagens ou representações de jovem criadas pela sociedade ele vai adotar: o gótico, o dark, o punk, o nerd, o emo, entre tantas outras possibilidades de comportamentos e rótulos muitas vezes para promover expectativas de consumo (Gregorin Filho, 2011, p. 12).

No romance de Galera, as imagens da infância e da juventude que são postas em circulação – como ilustram, no início deste texto, as citações do “Ciclista Urbano” que percorre as ruas de Porto Alegre com sua bicicleta e a do jovem Hermano na partida de futebol com amigos – acontecem associadas a marcas publicitárias que são, certamente, familiares ao leitor que acompanha o processo formativo desse protagonista.

Embora essas menções a marcas publicitárias aconteçam, é curioso constatar na obra, no entanto, uma recusa por parte do narrador em mencionar marcas publicitárias no momento em que elas podem, de fato, configurar uma publicidade, ainda que de forma diegética, ou seja, ficcional, pertencente unicamente ao universo romanesco. Um momento em que isso pode ser observado é quando Hermano, já adulto, integra uma turma de alunos praticantes de montanhismo na academia esportiva Condor. Renan, dono da academia, convida Hermano para juntos escalarem o Cerro Bonete, na Bolívia. Ao expor o convite a Adri, esposa de Hermano, esta se mostra contrária à ideia e procura dissuadi-lo, mesmo com o patrocínio que Renan conseguira e que aliviaria os custos da viagem:

primeiro tentou convencer o marido de que era um desperdício absurdo de dinheiro, e a quantia que foi obrigado a investir nisso tudo realmente fez o projeto todo cair na categoria das excentricidades. Renan conseguiu patrocínio parcial com uma marca de mochilas e acessórios esportivos. Pelo contrato, o logotipo ou o nome da empresa devia aparecer explicitamente na divulgação, no registro fotográfico e em diversas situações minuciosamente descritas. Isso aliviou bastante o investimento, mas de qualquer forma ela logo percebeu que o argumento financeiro não o faria mudar de ideia, pois havia pelo menos dois anos o dinheiro era algo com que não precisavam se preocupar (Galera, 2010, p. 49) (grifo nosso).

Como se pode observar no trecho destacado, o narrador não menciona o nome do patrocinador que Renan conseguiu para a viagem, designa-o por “uma marca de mochilas e acessórios esportivos” (Galera, 2010, p. 49), muito embora nomeie, curiosamente, a academia do amigo Hermano – academia esportiva Condor. Outro momento que configuraria uma publicidade no domínio do romance é relativo à adolescência de Hermano.

Enquanto dirige rumo à casa de Renan, pensativo se participa ou não da escalada ao Cerro Bonete, na Bolívia, Hermano passa pelo bairro que morou durante sua adolescência e se recorda do momento em que decidiu se tornar um médico e o caminho trilhado para tanto:

quatro meses antes de se formar na escola, começou a frequentar um cursinho pré-vestibular à tarde […]. E assim passou em primeiro lugar no vestibular de Medicina da Federal do Rio Grande do Sul. Se recusou a tirar uma foto pra campanha publicitária do cursinho pré-vestibular (Galera, 2010, p. 127) (grifo nosso).

Nesse momento, também não é citado o nome do cursinho pré-vestibular que Hermano frequentou, referindo-se a este como “um cursinho pré-vestibular” (Galera, 2010, p. 127). Como se nota pelos trechos citados, tanto na infância, na adolescência, quanto na idade adulta, as marcas publicitárias são mencionadas, algumas vezes nomeadas e em outras não. É interessante, portanto, a importância concedida pelo narrador aos momentos em que nomeia e aos que deixa de nomear marcas publicitárias na narrativa.

Assim, esses episódios são convidativos para se pensar a presença das marcas publicitárias que são nomeadas no romance, pois não se tratam, em sua maioria, de marcas fictícias. Citadas em um passeio de bicicleta e em um jogo de futebol, essas marcas integram o cotidiano de Hermano, tanto enquanto “guri” como quando adolescente, revelando um consumo de artigos específicos. Uma vez que, conforme aponta Lajolo (2001), a literatura é formadora de imagens, mergulha no imaginário coletivo simultaneamente fecundando-o e, como segundo Gregorin Filho (2011), há uma diversidade de imagens disponíveis para escolha do jovem, o romance de Galera parece conceder importância, em alguma medida, ao consumo de seu personagem principal.

Em Vida para consumo: a transformação das pessoas em mercadorias, Bauman observa que há um aliciamento, estímulo ou obrigação para que as pessoas se promovam como mercadorias. Casos extraídos das seções de um jornal, como o intercâmbio de informações pessoais promovido pelas redes sociais e a seleção, por meio de sistemas informáticos, dos clientes mais valiosos e prioritários para as companhias, evidenciam, para o sociólogo polonês, que as pessoas são, ao mesmo tempo, promotores de mercadorias e as próprias mercadorias que promovem: “o teste em que precisam passar para obter os prêmios sociais que ambicionam exige que remodelem a si mesmo como mercadorias, ou seja, como produtos que são capazes de obter, atrair demanda e fregueses” (Bauman, 2008, p. 13).

Esse aspecto, para Bauman (2008), caracteriza o ambiente líquido-moderno, constitui uma sociedade de consumidores que se difere da imediatamente anterior. Aquela sociedade de produtores que, em sua concepção, foi orientada basicamente para a segurança e o conforto, e não para o desfrute imediato de prazeres. Na sociedade de produtores, “a posse de um grande volume de bens implicava ou insinuava uma existência segura, imune aos futuros caprichos do destino; eles podiam proteger […] as vidas de seus proprietários contra os caprichos da sorte, de outra forma incontroláveis” (Bauman, 2008, p. 42). Uma prevenção nesses moldes não faz muito sentido em uma sociedade como a de consumidores, na qual a própria concepção de tempo é distinta. Na qual “cada momento, diria Benjamin, tem suas potencialidades revolucionárias” (Bauman, 2008, p. 47-48).

A sociedade de consumidores se dirige a seus membros na condição de consumidores, “representa o tipo de sociedade que promove, encoraja ou reforça a escolha de um estilo de vida e uma estratégia existencial consumistas”, sintetiza Bauman (2008, p. 71). Nesta, consumo significa “investir na afiliação social de si próprio” (Bauman, 2008, p. 75), Trata-se de um investimento em tudo que serve como valor social e autoestima para seus membros. “O objetivo crucial, talvez decisivo, do consumo na sociedade de consumidores […] não é a satisfação de necessidades, desejos e vontades”, afirma Bauman (2008, p. 75), “mas a comodificação, ou recomodificação do consumidor: elevar a condição dos consumidores à de mercadorias vendáveis” (Bauman, 2008, p. 75). É em associação a essas considerações, na ampla discussão de Bauman em relação à essa sociedade de consumidores, que o consumo interessa aos propósitos deste estudo.

Nesse sentido, em Cultura, consumo e identidade: limpeza e poluição na sociedade brasileira contemporânea, Lívia Barbosa apresenta uma interessante relação entre cultura, consumo e identidade. Para a pesquisadora, é possível obter informações sobre as pessoas e, em extensão, do mundo ao seu redor pela cultura material, pois:

todo e qualquer ato de consumo é essencialmente cultural. Ninguém come, veste, dorme, bebe e compra de forma genérica e abstrata. Toda atividade, das mais triviais e cotidianas às mais excepcionais e específicas, ocorre sempre em um determinado esquema simbólico que lhe dá sentido e significado. Do mesmo modo, todos os objetos, bens ou serviços são partes integrantes de sistemas de práticas e representações que os tornam significativos e, portanto, “reais” para determinados grupos e indivíduos (Barbosa, 2006, p. 108).

Tais dimensões, dos atos e das coisas, não se encontram nestes como características intrínsecas, mas lhes são atribuídas por grupos sociais e podem ser ressignificadas com o fluxo da vida social e temporal. É por esse motivo que Barbosa (2006) compreende a cultura e o consumo como indissociáveis.

Uma relação entre os termos “cultura” e “consumo” foi apresentada por Featherstone (1995) através da expressão “cultura de consumo”, cunhada a partir da teorização de Baudrillard sobre a mercadoria-signo [1]. Ainda que, de uma perspectiva teórica distinta da apresentada por Bauman (2008) [2], suas ideias se mostram pertinentes para a presente discussão. Para Featherstone (1995), a expressão “cultura de consumo” designa a centralidade que o mundo das mercadorias e seus princípios de estruturação possuem na compreensão da sociedade contemporânea, com a simbolização e o uso de bens materiais como comunicadores além de utilitários, e com a operação dos princípios de mercado nos estilos de vida, bens culturais e mercadorias.

Assim, a estilização da vida contemporânea conota individualidade, pois as práticas, compras, exibição e experiência dos bens de consumo não podem ser compreendidos apenas à luz de seus valores de troca: “o corpo, as roupas, o discurso, os entretenimentos de lazer, as preferências de comida e bebida, a casa, o carro, a opção de férias etc. de uma pessoa são vistos como indicadores da individualidade do gosto e o senso de estilo do proprietário/consumidor” (Featherstone, 1995, p. 119) e:

os novos heróis da cultura de consumo, em vez de adotarem um estilo de vida de maneira irrefletida, perante a tradição ou o hábito, transformam o estilo num projeto de vida e manifestam sua individualidade e senso de estilo na especificidade do conjunto de bens, roupas, práticas, experiências, aparências e disposições corporais destinados a compor um estilo de vida. No âmbito da cultura de consumo, o indivíduo moderno tem consciência de que se comunica apenas por meio de suas roupas, mas também através de sua casa, mobiliários, decoração, carro e outras atividades, que serão interpretadas e classificadas em termos da presença ou falta de gosto (Featherstone, 1995, p. 123).

Considerando que 1) a aquisição de produtos e serviços pelos indivíduos para uso próprio é um traço característico do consumo nas sociedades modernas e capitalistas; 2) que a cultura material nos dá acesso ao indivíduo, a seus hábitos e gostos, à sua posição social e ao modo como se diferencia ou é diferenciado dos e pelos demais; e, 3) que o investimento em bens serve como valor social, eleva a condição dos consumidores à de mercadorias vendáveis, importa refletir sobre a presença de marcas publicitárias no romance de Galera, uma vez que são recorrentes e, como já afirmado, extradiegéticas. Além disso, considera-se pertinente olhar para Mãos de Cavalo a partir dos pressupostos teóricos elencados, uma vez que a questão identitária é cara à obra, e, por sua vez, vincula-se ao consumo.

Quando o narrador de Mãos de Cavalo cita pela primeira vez no romance a presença de uma marca, o que ocorre durante a infância do personagem principal – a Caloi aro 20 – esta é caracterizada como antiquada, com “freio de pé”, o que nos revela se tratar de uma bicicleta já velha, com a disponibilidade de uma versão mais nova no mercado, como se percebe no seguinte trecho: “o freio de pedal, ou freio de pé, exige muito treino para ser dominado” (Galera, 2010, p. 13).

Durante a adolescência, quando visita o amigo Morsa, o narrador cita a troca da bicicleta de Hermano, o que poderia ser esperado não apenas por ter sido já bastante utilizada na infância, mas também porque ele crescera:

a velha Caloi Cross com freio de pé tinha sido aposentada havia cerca de um ano. A moda agora eram as mountain bikes, e quase todos no bairro já tinham realizado seu upgrade para os novos modelos aro 26 com dez, doze ou quinze marchas. A bicicleta de Hermano era uma Arrojo vermelha de dez marchas, alvo de deboche dos proprietários de Monarks, Calois ou marcas importadas. Mas ele já tinha se acostumado e, à parte os engasgos constantes no sistema manual de marchas, que resistiam a qualquer esforço de regulagem, gostava da bicicleta (Galera, 2010, p. 80-81) (grifo nosso).

Ao proceder à seguinte afirmação: “a moda agora eram as mountain bikes, e quase todos no bairro já tinham realizado seu upgrade” (Galera, 2010, p. 80) (grifo nosso), ilustra-se no romance de Galera, à luz da reflexão de Barbosa (2006), o ganho simbólico que as mountain bikes adquiriram para esse grupo de amigos. Desse modo, tanto na infância quanto na adolescência, as bicicletas de Hermano parecem ser demarcadoras da situação financeira de sua família em comparação à das famílias no bairro, uma vez que são “antiquadas” ou fora de moda, como observa o narrador.

Por outro lado, a amizade de Morsa, um dos amigos de adolescência de Hermano, era atraente aos demais garotos da Esplanada pelas coisas que ele possuía: “de vez em quando o Morsa convidava um amigo ou um pequeno grupo deles para ir até a sua casa conferir o último jogo que tinha copiado em disquetes flexíveis 51/4, ou para demonstrar o funcionamento de algum novo joystick” (Galera, 2010, p. 82). O próprio Morsa parece ter consciência de que assim conseguia se comunicar com o grupo de amigos, pois os convidava para irem à sua casa na medida em que adquiria algo novo, como o próprio narrador aponta ser o motivo das visitas:

ninguém mais no bairro tinha computador. E se não fosse pelo computador, ninguém jamais iria à casa do Morsa. Toda turma de amigos em fase de crescimento parece extrair uma espécie de energia coesiva da segregação cruel de um ou mais de seus componentes. Na Esplanada, o elemento segregador era o Morsa. Com exceção dos jogos de futebol e das visitas à sua casa para conhecer jogos de computador, o Morsa era alvo de exclusão e chacota constante (Galera, 2010, p. 82).

Outro momento no romance em que se menciona uma marca publicitária é quando se faz referência à aquisição, por Hermano, de um carro próprio.  O fato parece exercer na narrativa uma função semelhante à troca de bicicletas, que acompanha o desenvolvimento físico de Hermano, da infância à adolescência, e que também designa a sua posição financeira frente aos demais “guris” do bairro. Antes de se por a caminho para a escalada, Hermano ainda espera por algum sinal da esposa Adri, que prometera não se despedir dele. E mesmo com todo barulho: “Adri cumpria a ameaça e devia estar fingindo que dormia até agora, aguardando o breve rangido elétrico da ignição iniciar os ciclos de combustão da gasolina dentro dos pistões do Mitsubishi Pajero TR4” (Galera, 2010, p. 22) (grifo nosso).

O Mitsubishi Pajero TR4 que dirige nesse momento de sua vida, casado e médico cirurgião plástico, contrapõe-se ao automóvel que utilizava no começo do namoro com Adri, enquanto era estudante de medicina:

entra à direita na avenida Carlos Gomes, recentemente ampliada e coberta de concreto quase branco que o faz lembrar, absurdamente, da faixa de areia que iluminou com os faróis do Fiat Tempra do seu pai há uns seis anos, quando saiu de uma festa com a Adri no meio da madrugada e em vez de largar ela em casa dirigiu mais de trinta quilômetros até a Praia do Lami porque ela disse que queria que ficassem sozinhos, longe de tudo e de todos (Galera, 2010, p. 51) (grifo nosso).

Depreende-se que as menções ao Mitsubishi Pajero TR4 de Hermano e ao Fiat Tempra de seu pai dizem respeito a uma mobilidade social, à conquista obtida quando, ainda adolescente, prometera a si mesmo tornar-se o melhor médico. Enquanto aguarda em seu Mitsubishi Pajero TR4 por algum sinal da esposa antes que partisse, Hermano parece tê-lo conseguido.

Há, ainda, uma consideração que é elucidativa para a compreensão das marcas publicitárias nesse romance, consoante aos pressupostos teóricos mencionados, e nos remete uma vez mais às considerações de Candido. Segundo suas reflexões, ainda sobre a personagem no romance:

a personagem é um ser fictício, – expressão que soa como paradoxo. De fato, pode uma ficção ser? Como pode existir o que não existe? No entanto, a criação literária repousa sobre este paradoxo, e o problema da verossimilhança no romance depende desta possibilidade de um ser fictício, isto é, algo que, sendo uma criação da fantasia, comunica a impressão da mais lídima verdade existencial. Podemos dizer, portanto, que o romance se baseia, antes de mais nada, num certo tipo de relação entre o ser vivo e o ser fictício, manifestada através da personagem, que é a concretização deste (Candido, 2007, p. 55).

Assim, para o crítico literário, a personagem é um ser fictício que comunica a “mais lídima verdade existencial”. Com essa observação em mente, importa retornar ao texto literário de modo a notar o quão real Hermano parece ao narrador quando este descreve seu quarto, atribuindo-lhe contornos bem definidos pela descrição dos objetos que o compõe, dando-nos acesso à personagem pela caracterização do que consome, ou do que deixa de consumir por não remeter mais à sua identidade adolescente, a exemplo dos brinquedos de criança:

prateleiras ao longo da parede onde estava encostada a cama continham uma modesta coleção de livros infantis, infantojuvenis e clássicos, um helicóptero e meia dúzia de bonecos Comandos em ação […], quatro bonecos He-Man […] e outros bonecos de infância abandonados não muito tempo antes. Em outra parede, Mel Gibson com traje de couro preto e segurando uma escopeta de cano serrado estampava o pôster de Mad Max 2: A caçada continua, obtido através do Pedreiro, cujos pais eram donos de uma videolocadora. O aparelho CCE estava quebrado havia quase um ano e não fazia muita falta, pois Hermano não tinha o hábito de escutar música. Revistas de histórias em quadrinhos, videogame e putaria estavam empilhadas em um canto (Galera, 2010, p. 40) (grifo nosso). [3]

Para Candido (2007, p. 58), ao abordar as personagens de modo fragmentário, por meio de diálogos, um ato ou sequência de atos, o romance “nada mais faz do que retomar, no plano da técnica da caracterização, a maneira fragmentária, insatisfatória, incompleta, com que elaboramos o conhecimento dos nossos semelhantes”. A diferença, segundo o autor, reside no fato de no romance essa visão fragmentária ser uma criação e não uma imanência: “no romance, podemos variar relativamente a nossa interpretação da personagem; mas o escritor lhe deu, desde logo, uma linha de coerência fixada para sempre, delimitando a curva da sua existência e a natureza do seu modo-de-ser” (Candido, 2007, p. 58-59). A ficção, portanto, fornece um conhecimento mais completo ou mais acessível que o da vida, mas o romancista administra quanto desse conhecimento será fornecido. O sentimento de verdade no romance (Candido, 2007) advém não apenas de sua semelhança com a realidade, mas também no quão real a personagem é para o romancista:

digamos que uma personagem nos parece real quando “o romancista sabe tudo a seu respeito”, ou dá esta impressão, mesmo que não o diga. É como se a personagem fosse inteiramente explicável; e isto lhe dá uma originalidade maior que a da vida, onde todo conhecimento do outro é, como vimos, fragmentário e relativo (Candido, 2007, p. 66).

À luz das reflexões empreendidas ao longo deste estudo, é possível afirmar, levando-se em conta as manifestações de marcas publicitárias extradiegéticas no texto literário analisado, que o consumo narrado ao longo do romance, além de demarcar a posição social, ou uma mobilidade social das personagens, também é crucial para sinalizar ao leitor a impressão de uma verdade existencial, necessária para sustentar um ser fictício, para apresentá-lo como verossímil.

Considerações Finais

Ao longo do trajeto formativo narrado em Mãos de Cavalo, nota-se a menção a algumas marcas extradiegéticas, ou seja, não fictícias. No presente estudo, buscou-se tecer reflexões em relação a tais manifestações no bojo do texto literário, à luz de pressupostos teóricos sobre o consumo. Nesse sentido, considerando a centralidade das mercadorias e de seus princípios de estruturação na vida contemporânea, com a instituição de uma sociedade de consumidores (Bauman, 2008), recorreu-se à indissociável relação, sugerida por alguns estudiosos, entre a cultura e o consumo (Featherstone, 1995; Barbosa, 2006). Assim, a cultura material nos dá acesso ao indivíduo, a seus hábitos e gostos, à sua posição social, ao modo como se posiciona no mundo.

Assumindo-se logo nas primeiras linhas do romance como extradiegético e onisciente, o narrador de Mãos de Cavalo não se refere à bicicleta que Hermano tinha quando criança como “uma bicicleta”, ou ao fato dele ir à casa de seu amigo pelos “brinquedos” que este possuía de uma forma geral, mas nomeia-os através de suas marcas, dando-lhes exatidão. A recorrência às marcas no romance, portanto, fornece ao leitor as caracterizações mais íntimas das personagens. Acompanha o trajeto formativo do protagonista, dando acesso ao seu desenvolvimento físico e emocional bem como à sua posição social, ou seja, utiliza a cultura material como uma via de acesso aos indivíduos, imprimindo na obra um sentimento de verdade (Candido, 2007).

Com vistas a discutir o consumo no consumo – isto é, a inserção da cultura material na ficção – considera-se pertinente tecer reflexões adicionais, com uma possível ampliação do corpus de análise. Dada a centralidade das mercadorias na vida contemporânea, por um lado, é preciso incluí-las, em alguma medida, na criação ficcional, para que a personagem comunique “a mais lídima verdade existencial” (Candido, 2007). Por outro lado, se a literatura coloca imagens em circulação que dialogam com outras imagens (Lajolo, 2001), e se tais imagens servem como possibilidades de consumo identitário (Gregorin Filho, 2011), a ficção, de maneira geral, também alimenta a centralidade da cultura material na sociedade de consumidores, realizando um movimento cíclico: recorre-se à cultura material para imprimir à obra um sentimento de verdade, e a obra coloca a cultura material em circulação.

Notas

[1] Baudrillard defende a tese de que a supressão do valor original dos bens de consumo diante do valor de troca conduziu à transformação da mercadoria em signo. Para este autor, a lógica da mercadoria-signo resulta num mundo simulacional, isto é, um mundo sem a distinção entre o real e o imaginário, uma “alucinação estética da realidade”.

[2] Foge ao escopo do presente texto comparações entre as concepções teóricas dos autores mencionados. Para os propósitos elencados neste estudo, considera-se suficiente que ambos designem o consumo como central na sociedade contemporânea.

[3] A referência ao filme Mad Max 2: A caçada continua consta no original em itálico, portanto, um grifo do autor.

[4] O apelido de Hermano também denota seu desenvolvimento físico: “ninguém na Esplanada escapava de apelidos. O próprio Hermano era mais conhecido como Mãos de Cavalo, por causa do comprimento exagerado de seus braços e das mãos enormes e possantes como as de um estivador nórdico, contrastantes com seus meros quinze anos de idade” (Galera, 2010, p. 24).

Referências

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BAUMAN, Z. Vida para consumo: a transformação das pessoas em mercadorias. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2008.

CANDIDO, A. A personagem do romance. In: CANDIDO, A. et al. A personagem de ficção. São Paulo: Perspectiva, 2007, p. 51-80.

CARRASCOZA, J. A. A evolução do texto publicitário: a associação de palavras como elemento de sedução na publicidade. São Paulo: Futura, 2006.

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COVALESKI, R. O processo de hibridização da narrativa publicitária. Revista Comunicación, v. 1, n. 10, p. 52-62, 2012. Disponível em: https://bit.ly/3xSPowG. Acesso em: 19 mai. 2023.

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GREGORIN FILHO, J. N. Literatura Juvenil: Adolescência, cultura e formação de leitores. São Paulo: Melhoramentos, 2011.

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