Mídias digitais no desenvolvimento de competências escolares:

dinâmicas dos estudantes do interior do Pará durante a pandemia de Covid-19

Elaine Javorski1 e Macilene Borges2

Resumo

Este artigo tem como objetivo compreender como os alunos da Escola Estadual Macário Dantas, em São Geraldo do Araguaia, no sudeste do Pará, fazem uso da internet e das mídias digitais, e como essa utilização favorece o desenvolvimento de competências escolares. A escola situa-se na região da Amazônia Oriental que, como toda a região Norte, vivencia a falta de políticas públicas tecnodemocráticas. A partir de uma perspectiva baseada nos estudos sobre media literacy, foi realizada uma análise multiperspectiva com alunos, moradores da zona urbana e da zona rural, dos terceiros anos do ensino médio, no ano de 2021, durante a pandemia da Covid-19. Foram aplicados questionários para se compreender e comparar os indicadores estatísticos da inclusão e acessibilidade à internet e realizado um grupo focal para observar o protagonismo dos jovens nas mídias digitais e se esse protagonismo favorece o desenvolvimento de competências. As conclusões apontam que existe uma disparidade entre o acesso e o consumo da internet entre os jovens da cidade e do campo, o que fragiliza o protagonismo na cibercultura e consequentemente a participação dessa parcela da juventude nos processos de cidadania democrática.

Palavras-chave

Comunicação; Media Literacy; Internet; Covid-19; Amazônia.

1 Doutora em Ciências da Comunicação e dos Media pela Universidade de Coimbra. Docente da Faculdade de Comunicação da Universidade Federal do Sul e Sudeste do Pará e do Programa de Pós-Graduação em Comunicação da Universidade Federal do Maranhão. E-mail: elaine.javorski@unifesspa.edu.br.

2 Mestre em Dinâmicas Territoriais e Sociedades da Amazônia pela Universidade Federal do Sul e Sudeste do Pará. Técnica em Educação da Secretaria Estadual de Educação do Pará. E-mail: macilenecardoso@gmail.com

.Digital media in the development of school skills:

dynamics of students from the interior of Pará during the Covid-19 pandemic

Elaine Javorski1 and Macilene Borges2

Abstract

This article aims to understand how students at Macário Dantas State School, in São Geraldo do Araguaia, in southeastern Pará, make use of the internet and digital media, and how this use favors the development of school skills. The school is located in the eastern Amazon region, which, like the entire northern region, experiences a lack of techno-democratic public policies. From a perspective based on studies on media literacy, a multiperspective analysis was carried out with students living in urban and rural areas, in the year 2021, during the Covid-19 pandemic. Questionnaires were applied to understand and compare the statistical indicators of inclusion and accessibility to the internet and a focus group was carried out to observe the protagonism of young people in digital media and whether this protagonism favors the development of skills. The conclusions indicate that there is a disparity between access and consumption of the internet between young people from the city and the countryside, which weakens the protagonism in cyberculture and, consequently, the participation of this portion of youth in democratic citizenship processes.

Keywords

Communication; Media Literacy; Internet; Covid-19; Amazônia.

1 Doutora em Ciências da Comunicação e dos Media pela Universidade de Coimbra. Docente da Faculdade de Comunicação da Universidade Federal do Sul e Sudeste do Pará e do Programa de Pós-Graduação em Comunicação da Universidade Federal do Maranhão. E-mail: elaine.javorski@unifesspa.edu.br.

2 Mestre em Dinâmicas Territoriais e Sociedades da Amazônia pela Universidade Federal do Sul e Sudeste do Pará. Técnica em Educação da Secretaria Estadual de Educação do Pará. E-mail: macilenecardoso@gmail.com.

Introdução

        A pandemia de Covid-19 colocou em evidência a defasagem tecnológica das escolas por todo o Brasil, especialmente as públicas, tanto no uso de equipamentos e internet quanto na capacitação de professores. Também mostrou as dificuldades que milhares de pessoas passam para ter acesso aos aparatos tecnológicos e acesso à rede na vida cotidiana. A falta de políticas públicas tecnodemocráticas no Brasil afeta principalmente a região Norte. O acesso a computadores conectados à internet ainda é um gargalo para o avanço da inclusão digital dos habitantes dessa parte do país, situação que pode ser confirmada a partir dos indicadores do CETIC-Brasil, com o percentual de domicílios urbanos e rurais com acesso ao computador e à internet no ano de 2020 durante a pandemia de Covid-19 nas áreas urbanas e rurais da região Norte. Dos domicílios urbanos de amostragem da pesquisa, quase 50% têm acesso a ambos, computador e internet, apenas 1% tem acesso apenas ao computador sem internet, 37% tem acesso apenas à internet e 13% não têm acesso à internet e nem ao computador. Somente 15% dos domicílios rurais de amostragem da pesquisa têm acesso a ambos, computador e internet, percentual equivalente a menos que um terço do percentual urbano com acesso às duas tecnologias. Assim como os indicadores urbanos, apenas 1% dos domicílios rurais da amostragem da pesquisa têm acesso apenas ao computador. Já o número de domicílios rurais que têm acesso apenas à internet é de 49%, e sem acesso à internet e nem ao computador é de 34%, quase o triplo do número de domínios urbanos na mesma condição.

        O baixo investimento público em expansão de tecnologias de rede na região Norte fere a garantia de direitos que estão previstos no Marco Civil da Internet, Lei nº. 12.965/2014, como prevê o Artigo 4º que reza sobre a participação coletiva nos assuntos públicos por meio da internet, o acesso à informação, ao conhecimento e à participação cultural.

        Não ter acesso à rede implica em exclusão sociocultural, socioeconômica e socioeducativa. Sobre a potencialidade da internet em ofertar atividades socioeducativas, a expansão da internet na educação possibilitou novas modalidade educativas, o surgimento de diversas plataformas, alcançando os indivíduos que vivem longe dos grandes centros onde estão fixadas as escolas e universidades, favorecendo oportunidade para os indivíduos que não foram escolarizados ou tiveram que abandonar a escola a voltarem a estudar. Porém, todas essas facilidades que a internet favorece ainda não são desfrutadas por todos, visto que, para isso, faz-se necessária a garantia de políticas de expansão de tecnologias de rede que alcance todos os habitantes das diversas regiões.

        Neste cenário é que esta pesquisa se desenvolve, tendo como lócus a Escola Estadual de Ensino Médio Macário Dantas, em São Geraldo do Araguaia, no sudeste do Pará. Para compreender como os alunos desta escola fazem uso da internet e das mídias digitais, e como essa utilização favorece o desenvolvimento de competências escolares na perspectiva do media literacy, foi realizada uma pesquisa multiperspectiva com alunos dos terceiros anos matutino e vespertino, em maio e junho de 2021, moradores da zona urbana e da zona rural, durante a pandemia de Covid-19. Nossa hipótese é que a escola, e seu papel de democratizar conhecimentos, dispõe de elementos que podem auxiliar as juventudes a desenvolver competências e, assim, criar e consumir conteúdos para a internet que sejam significativos para o protagonismo no ciberespaço e para as vivências em comunidade. As discussões abordam aspectos teóricos-conceituais sobre media literacy, ciberdemocracia e cibercultura.

Inclusão digital das juventudes e media literacy

        De acordo com Lévy (2019), o aumento da participação popular no ciberespaço e da inteligência coletiva culminará em uma nova forma de governança onde os indivíduos, graças à queda do monopólio da comunicação e informação promovida pela internet, possibilitarão o surgimento de novas e diversificadas formas de organizações coletivas com finalidades sociodemocráticas que povoaram o ciberespaço, falarão por si mesmos e exigirão dos governantes e das grandes corporações mais transparência nas suas ações. Lévy (2019) chama esse novo modelo de governança de e-democracia ou ciberdemocracia e afirma que para sua instauração se faz necessário que os governantes realizem ações tecnodemocráticas para que as estruturas de rede de internet aumentem por todo o mundo.

        De acordo com Rodrigues (2018), governantes de diversos países estão investindo em ações tecnodemocráticas que promovem rapidez na propagação de notícias, informações, transparência na administração pública, seja na saúde, na educação, na segurança, na cultura, facilitando o processo de canais de comunicação direta entre cidadãos e o poder público. Porém, no Brasil essas iniciativas estão sendo realizadas pelo setor privado, e em consequência disso, os cidadãos deixam de participar de processos como: fiscalizar serviços públicos, opinar na solução de problemas sociais e socializar informações úteis para a governança.

        Para a efetivação da e-democracia, além da garantia do direito ao acesso às tecnologias de rede e às Tecnologias Digitais da Informação e Comunicação (TDICs) é necessário levar em consideração os perigos que a internet abriga. Essas zonas de risco podem minar a qualidade da participação popular no ciberespaço. Além da garantia de direito ao acesso à rede, é preciso pensar em políticas educativas que favoreçam o desenvolvimento de competências para navegar na rede com autonomia, criatividade, responsabilidade, empatia e tolerância ao diferente, competências essenciais para as vivências na rede e participação na e-democracia. Neste movimento, a escola é fundamental.

        Castells (2015) caracteriza a escola como espaço de relação vertical com o conhecimento, mantendo-se como um local de transmissão e promoção de conhecimentos e dos valores dominantes da sociedade. A inserção das juventudes na cibercultura, e consequentemente o desenvolvimento de competências na perspectiva do media literacy, pode auxiliar a comunidade escolar a partir de várias perspectivas. Para fazer com que a informação disponível na internet possa ser transformada em conhecimento útil para os jovens e os grupos sociais dos quais fazem parte, faz-se necessário que a escola realize práticas pedagógicas que promovam a práxis do diálogo na cibercultura.

        Para que crianças e jovens façam leitura das mídias na perspectiva do media literacy não basta ter conhecimento do funcionamento técnico das mídias, pois de acordo com Potter (2008), para o desenvolvimento da competência em media literacy é necessário que o indivíduo adquira ao longo da vida um leque de experiências com mídias que favoreçam diversas expectativas sobre como o mundo funciona, e dentre essas expectativas, as relacionadas aos caminhos do marketing nos meios de comunicação. Martino e Menezes (2012), sobre a competência na perspectiva do media literacy, entendem o conceito culturalista de Bauer (2011) do uso das mídias como uma ação e reflexão a códigos sociais.

[...] Isso leva em conta fatores sociais, econômicos e culturais no qual indivíduo, coletividade, instituições e meios de comunicação estão envolvidos e interligados de maneira orgânica, não instrumental – não se “usa” a mídia como não se “usa” a escola ou a família (MARTINO; MENEZES, 2012, p. 12).

        De acordo com Bauer (2011, p. 12), é por meio do media literacy que o indivíduo pode desenvolver habilidades de perceber as mídias como “instrumento de influência, manipulação e, também, como uma infraestrutura institucional feita para fornecer às massas informação, notícias, conhecimentos e entretenimentos [...]” e a partir dessa compreensão, assumir o posicionamento de ação e observação a códigos, chegando ao nível da autoconsciência de que as mídias não são aparatos técnicos para se manter conectados ao público e para a organização da sociedade, mas sim, fenômeno da comunicação social que transforma a cultura ao conectar a ação à observação.

        Os outros domínios, essenciais para o desenvolvimento de competências na perspectiva do media literacy (domínio ético, estético, emocional), para serem desenvolvidos precisam que a escola realize metodologias inovadoras, com recursos tecnológicos e o envolvimento de equipes multidisciplinares objetivando a promoção da autonomia das juventudes no processo de construção do conhecimento na cibercultura. Para isso não basta, conforme Ruy (2020), a disponibilização de links e direcionamentos ao acesso de mídias disponíveis nas redes sociais ou nas plataformas digitais ao invés de material bibliográfico em papel, faz-se necessário despertar o espírito crítico, investigativo, a capacidade de entrecruzar fontes de informação e fomentar a prática do diálogo cotidiano das juventudes com o mundo, o mundo mediado pelas tecnologias.

        Na sociedade em rede, o poder está nas mãos dos que detêm controle e posse dos meios de comunicação, os governos e os grandes conglomerados privados. Por isso, antes de tudo, a luta pela democratização de acesso aos meios de comunicação é uma batalha que tem a ver com o direito à cidadania. A exclusão digital afeta principalmente os mais jovens que necessitam acessar e participar das atividades culturais, sociais e educativas abrigadas no ciberespaço para desenvolverem aspectos sociais, afetivos, emocionais e cognitivos importantes para o desenvolvimento da autonomia e práticas democráticas. Castells (2019) observa que sempre existiram interesses políticos, ideológicos e econômicos de excluir, principalmente as juventudes, do acesso à rede de internet, e que por isso as batalhas pelo direito ao acesso livre na rede devem ser constantes. “A comunicação livre é a prática mais subversiva de todas, pois desafia o poder dos relacionamentos incorporados às instituições e organizações da sociedade” (CASTELLS, 2019, p. 31).

Procedimentos metodológicos

        Para compreender como os alunos da Escola de Ensino Médio Macário Dantas fazem uso da internet e das mídias digitais, e como essa utilização favorece o desenvolvimento de competências escolares na perspectiva do media literacy, foi realizada uma pesquisa multiperspectiva durante os meses de maio e junho de 2021. Fizeram parte da pesquisa os alunos que estudam no período vespertino, moradores das vilas, assentamentos, povoados ribeirinhos e pequenas propriedades no campo, e os alunos que estudam no matutino, na maioria filhos de comerciantes locais e de servidores da esfera pública que vivem na zona urbana de São Geraldo do Araguaia. O conjunto de alunos foram denominados neste trabalho como Grupo de Alunos Urbanos (GAU) e Grupo de Alunos do Campo (GAC). Primeiramente, foi realizada a aplicação de um questionário, seguido de uma dinâmica de grupo focal.

        O questionário com perguntas estruturadas e semi-estruturadas (Flick 2014) buscou compreender e comparar os indicadores estatísticos da inclusão e acessibilidade à rede de internet entre os grupos. As perguntas versaram sobre:  a) serviço de acesso à internet; b) ferramentas de acesso à internet; c) tempo que passam acessando a internet; e d) atividades que realizam na internet. Elaborado no Google Forms, foi disponibilizado nos meses de maio e junho para 63 alunos do GAU, dos quais 48 responderam, e 63 do GAC, integralmente respondidos.

        Já o grupo focal (MORGAN, 1997) foi realizado em duas etapas: com o GAU no dia 1 de junho, às 16h, com 1h40 de duração, e com o GAC no dia 5 de junho, às 16h, com 1h20 de duração, de forma a compreender o protagonismo dos jovens nas mídias digitais e se esse protagonismo favorece o desenvolvimento de competências na perspectiva do media literacy. Foram elaboradas perguntas organizadas em três eixos: a) nível de percepção que as juventudes têm sobre perigos na rede e os apelos do marketing; b) como acessam conteúdos informativos e participam da construção do conhecimento na rede; e c) a percepção do uso das TDICs no ensino presencial e no ensino remoto.

As diferenças no acesso e uso da internet no campo e na cidade

        Identificar a qualidade do acesso à rede de internet possibilita analisar o nível do protagonismo na rede, pois quanto mais o indivíduo tem acesso às mídias mais perspectivas ele pode elaborar sobre a dinâmica do mundo e possibilidades de alargar seus domínios: ético, estético, emocional, moral e cognitivo, domínios essenciais para o desenvolvimento de competência na perspectiva do media literacy (POTTER, 2008). Para conhecer o estado de inclusão digital dos alunos participantes da pesquisa, a primeira pergunta formulada no questionário foi sobre quais tecnologias de rede os alunos utilizam para acessar a internet a partir de seus domicílios. 70% dos alunos do GAU acessam a internet pelo serviço de rede via wifi, serviços de banda larga ofertada por provedores de acesso à rede, e os outros 30% ainda não têm acesso por conta do alto preço cobrado pelo serviço, por isso acessam por dados móveis, serviço de acesso à rede ofertado por operadoras telefônicas.

        No GAC, 50% dos alunos acessam a internet por dados móveis e os outros 50%, por wifi. Estes estudantes foram menos alcançados por políticas públicas de expansão da conexão de rede de banda larga e, por isso, para participarem das aulas remotas muitos deles tiveram que fazer uso de pacotes de dados móveis ainda que, segundo os alunos entrevistados, o acesso à rede por dados móveis na zona rural do município seja precário por conta da baixa intensidade do sinal telefônico. Entretanto, no momento pandêmico da Covid-19, essa se constituiu como a única opção para participarem da modalidade de ensino remoto adotado pela Escola Macário Dantas.

        Na segunda pergunta do questionário, buscamos saber qual ferramenta digital (computador de mesa, notebook, celular) os alunos usaram para acessar a rede de internet para estudar no período do ensino remoto, pois segundo Jenkins, Green e Ford (2014), para que os indivíduos frequentadores do ciberespaço construam conteúdos e produtos midiáticos na cultura da participação é necessário que tenham acesso a tecnologias com poder para executar hardwares e softwares. Sem acesso a essas ferramentas as juventudes terão mais dificuldades de realizarem na rede atividades de autoria e construírem conteúdos significativos. Dos alunos do GAC, 100% usaram somente aparelhos de celular para estudar no período da pandemia de Covid-19. Dos estudantes do GAU, 90% usaram somente os aparelhos de celular nas aulas remotas, e 10% usaram celulares e computadores conectados à internet. Isso mostra que há acessibilidade para as tecnologias digitais, porém o aparelho de celular é a tecnologia mais acessada pelas juventudes para estudar no período pandêmico da Covid-19.

        A terceira pergunta dos questionários teve por objetivo saber quantas horas diárias os jovens passam navegando na internet. A média de tempo que os alunos do GAC passam on-line é de duas horas diárias, o resto do tempo estão off-line. Já os alunos do GAU declaram passar cerca de cinco horas diárias totalmente on-line. Os alunos do campo disseram que, no período da quarentena, evitaram usar os dados móveis para atividades de entretenimento e de relacionamentos nas redes sociais para poder economizar dados e realizar as atividades escolares do ensino remoto. O comportamento dos alunos advém da necessidade de aplicar o acesso à rede, que por ser por dados móveis é mais onerado e limitado, para construção do conhecimento através da escola, porém, esse estado de participação na cibercultura desfavorece a competência em media literacy, pois as atividades socioculturais, sociopolíticas e de entretenimento que o ciberespaço abriga são importantes para aspectos afetivos, emocionais, criativo e estéticos.

        A última pergunta do questionário teve como objetivo saber quais atividades os alunos realizam quando estão on-line. No período pandêmico, 50% do tempo em que os alunos do GAU estiveram on-line foi usado para estudar, 22,9% para acessar as redes sociais, 16,7% para usar o Whatsapp e 10, 4% para jogar ou buscar por notícias foras das redes sociais. Isso significa que os alunos que vivem na cidade usaram a rede de internet com maior intensidade no processo de escolarização, mas ainda assim puderam participar de atividades que favorecem a criatividade, como os jogos, a curiosidade e criticidade, como as plataformas de informação, as emoções e a afetividade por meio das plataformas de relacionamentos.

        No GAC, durante o período pandêmico, o tempo de uso da internet foi distribuído da seguinte forma: 53,8% para estudar, 23,1% para usar o Whatsapp e 23,1% para as redes sociais. Não houve registro de atividades de jogos e de busca por conteúdos informativos. Isso significa que as atividades em rede dos alunos que vivem no campo estiveram voltadas para a escolarização e atividades de relacionamentos.

        A nova dinâmica de estudos no período pandêmico, por meio da internet, teve a capacidade de transformar o modelo tradicional de ensino que sempre teve por característica a presencialidade, a centralização do conhecimento na pessoa do professor e aprendizagens individuais, para um novo modelo digital que possibilita a diversificação, a continuidade, a hibridação e a ubiquidade. Os jovens passaram a usar as mídias digitais de outra maneira. Para saber como utilizaram a internet para formação e autoformação no período pandêmico da Covid-19, foram realizados grupos focais sobre os quais versaremos a seguir.

Protagonismo na internet: acesso à conteúdos informativos e

educativos

        A partir de uma visão sobre as dinâmicas de acesso à internet, iniciamos a compreensão sobre como essas juventudes do GAC e GAU protagonizam as mídias digitais, e se esse protagonismo favorece o desenvolvimento de competências na perspectiva do media literacy. Os grupos focais realizados de forma remota durante a pandemia buscaram abranger essas questões.

        Perguntados sobre como eles percebem os perigos aos quais os usuários da web estão expostos, rapidamente lembraram do fenômeno do cancelamento nas mídias sociais.

“Quem não tem acesso à internet fica distante de várias vantagens que o mundo virtual oferece, mas como toda coisa boa, também tem seu lado ruim, navegar na internet, nas redes sociais, tem o lado ruim que é a cultura do cancelamento” (Clara/GAU).

        Sobre as motivações e consequências da cultura do cancelamento para a vida social dos usuários da rede, Silva (2021) diz que podem ser pesados. A cultura do cancelamento consiste em expor um fato em busca da reação negativa de grupos. É normalmente caracterizada como uma reação social de intolerância a comportamentos ou atitudes homofóbicas, racistas e a comportamentos antidemocráticos. Porém, pode ser aplicada a pessoas que se posicionam contrárias ao pensamento da maioria, em situação de conflito de opinião, de pensamento ou por situações banais, casos em que a cultura do cancelamento pode caracterizar ação de intolerância ao diferente.

        A cultura do cancelamento favorece práticas que fomentam o ódio e a intolerância na rede, e essa intolerância muitas vezes é fomentada por interesses egoístas de alguém ou um grupo que queira prejudicar intencionalmente uma pessoa ou uma empresa, insuflando os internautas para colocarem o cancelado em estado de ostracismo, de exclusão do convívio social (ROCHA; JOSÉ, 2021). Há também o caso de atitudes e palavras mal interpretadas, ou situações passadas que estão arquivadas na web e foram ressuscitadas por alguém.

“A partir do momento que falamos alguma cosia negativa ou algo que alguém discorde, já é um perigo [...] nós somos julgados quando postamos alguma coisa por várias pessoas” (Raisa/GAU).

“Qualquer pessoa que diga alguma besteira na rede corre o risco de ser exilada, tem o lado ruim e tem o lado bom. O lado bom é que todos devem pensar duas vezes antes de ficar postando besteira na rede” (João/GAU)

        Sobre a extensão da cultura do cancelamento para a vida dos usuários comuns das redes sociais, Rocha e José (2021) dizem que nos grupos de Whatsapp das escolas e faculdades, os alunos que não conseguem interagir nos debates, sejam relacionados aos conteúdos escolares ou aos conteúdos da cibercultura, são cancelados, e que a forma de cancelamento se dá quando os mais articulados migram para outro grupo, deixando os “menos articulados” no vácuo. Essa atitude descrita pelos autores refletem no comportamento dos grupos que acompanhamos na Escola Macário Dantas no início do período do ensino remoto, em que os alunos “mais articulados” com as mídias migraram para outro grupo, denominado de K-12; no decorrer do tempo de observação do grupo presenciamos remoção de participantes que não interagiam ou que discordavam do posicionamento da maioria em determinadas situações.                        Outros perigos citados pelos alunos são as identidades e perfis falsos nas redes sociais como uma prática que pode destruir a vida de uma pessoa, o que exige atenção e cuidado ao adicionar pessoas estranhas às redes sociais.

“As redes sociais dão acesso a várias pessoas e cada uma pode usar uma máscara e tentar fazer o mal de alguma forma, como por exemplo se passar por vendedor, oferecer emprego, enganar as pessoas e até aliciar menores oferecendo alguma coisa. Sobre isso existem vários casos de crianças que não são acompanhadas pelos pais na internet e acabam sendo enganadas por ofertas que as fizeram marcar encontros com aliciadores e outros tipos” (VITOR/GAU).

        A percepção do aluno entrevistado sobre o uso de perfis falso na rede alerta para a necessidade do fortalecimento da política de privacidade e proteção aos dados dos usuários das redes sociais por meio de regulamentação mais criteriosa do uso de algoritmos, de penalização dos seus desenvolvedores, em caso de vazamento de dados, especialmente dos dados sensíveis como: origem racial ou étnica, convicção religiosa, opinião política, filiação a sindicato ou a organização de caráter religioso, filosófico ou político, dado referente à saúde ou à vida sexual que favoreçam práticas de cancelamento e criação de fake news.

        No grupo do GAC, os estudantes também citaram os perfis falsos como perigo para os usuários da rede, e as fake news. Entretanto, alguns deles se posicionaram dizendo que até hoje não encontraram perigo nenhum na internet. Esse discurso nos leva a refletir sobre risco à integridade moral, emocional e física dos internautas que não têm competência em media literacy. Sobre isso, Rocha e José (2021) dizem que a proliferação de fake news na rede promove desinformação que traz consequências para a saúde pública, exemplo disso foram as consequências das fake news relacionadas à vacinação contra a Covid-19 que levaram milhares de pessoas a apoiar o negacionismo da eficácia e necessidade das vacinas e outros tantos casos publicados na mídia de referência brasileira.

        Sobre internet e consumo, tanto jovens do GAU como do GAC demostraram ter conhecimento do uso dos algoritmos para finalidades do comércio nas redes sociais. Eles também reconhecem que a superexposição deixa os usuários da rede mais suscetíveis aos apelos do marketing e alienação ao consumo.

“Todos estão sempre consumindo alguma coisa da internet, [...] um serviço, uma localização, tudo é consumo e o que leva as pessoas ao consumo são os mecanismos de busca, que acabam apresentando produtos e mais produtos [...] aí, o que acontece, os vários anúncios desses produtos [...] vão te estimular tanto, até que você acaba comprando o produto” (Vitor/GAC).

        

        A percepção do entrevistado sobre a internet e o consumo evidencia como o uso da Inteligência Artificial, os algoritmos, padronizadores de comportamento, e os conhecimentos da psicologia humana, os gatilhos mentais, estão manipulando o comportamento dos usuários da rede para o consumo. Entretanto, os alunos do GAC disseram que não se sentem estimulados a consumir quando estão on-line. A falta de percepção crítica dos alunos do GAC sobre a influência do marketing para o consumo em rede pode evidenciar a necessidade de participação em atividades educativas fomentadoras de habilidades de leitura de mídia na perspectiva da semiótica social, isto é, de saber identificar os processos e efeitos da produção e reprodução, recepção e circulação de significados da comunicação veiculada por todas as formas de mídias, e por todos os agentes da comunicação midiática (MARTINO; MENEZES, 2012).

        Estas percepções também fazem parte do segundo eixo da discussão, sobre como eles acessam os conteúdos informativos e participam da construção do conhecimento na rede. Os entrevistados do GAU disseram que têm acesso às notícias local e global por meio das redes sociais, especialmente Instagram e Twitter, e que nessas duas plataformas de relacionamentos podem realizar atividades educativas, de entretenimento e informativas.

        Ao perguntarmos se as redes sociais Instagram e Twitter são fontes suficientes e confiáveis para buscarem informação, os alunos de forma veemente dizem que sim:

“As redes sociais são fontes de inspiração, a população depende delas, elas servem para várias coisas. Eu consigo fazer tudo por meio das redes sociais sem precisar sair de minha casa. [...] agora mesmo publiquei um post no meu Twitter mostrando para meus seguidores o saldo do governo Bolsonaro sem correr o risco de ser linchado” (Vitor/GAU).

        A declaração do participante demonstra como as redes sociais têm seduzido e envolvido as juventudes em um ciclo de dependência, promovendo participação sociopolítica que não se configura com os princípios da participação democrática, e uma falsa seção de segurança e privacidade.

        Bordenave (1994) diz que é natural dos homens realizarem coisas sozinhos e em grupo, mas que é interagindo em coletivos que o indivíduo consegue realizar sua autoafirmação como sujeito que sabe, que faz, que é.

A participação tem duas bases complementares: uma fase “efetiva” – participamos porque sentimos prazer em fazer coisas com outros – e uma base “instrumental” – participamos porque fazer cosias com outros é mais eficaz e eficiente que fazê-las sozinhos (BORDENAVE, 1994, p. 18).

        Nesse pressuposto a essência da participação política democrática social está no engajamento social organizado, em que grupos humanos lutam por interesses coletivos. As lutas individuais ainda que por interesses que vão ao encontro da necessidade de outros indivíduos, não se configuram como lutas democráticas participativas efetivas.

        Sobre a importância das redes sociais Twitter e Instagram para a construção do conhecimento na cibercultura, os alunos do GAU citaram acontecimentos políticos, esportivos e econômicos divulgados nas duas redes sociais no mesmo dia da entrevista, porém não demostraram interesse pelos fatos e acontecimentos locais ocorridos naqueles dias, como por exemplo: as notícias sobre a aglomeração de banhistas na Cachoeira das Três Quedas, ponto turístico do município, exibidas em várias mídias locais e nacionais. Todas as referências usadas para demostrar como estavam bem informados eram de notícias do contexto nacional e internacional, como por exemplo, as notícias sobre o gabinete secreto da Saúde e a CPI da Covid-19; o impasse da Copa América do Brasil etc., fato que demostra certo desinteresse dos alunos usuários dessas plataformas de redes sociais pelo contexto local.

        O aluno Vitor (GAU) disse que as redes sociais, especialmente o Twitter, são excelentes fontes de notícias. Questionado sobre quais notícias despertam seu interesse, o aluno disse que são as que estão no topo da página, “se elas estão no topo, significa que foram as mais acessadas, as que despertaram maior interesse nos usuários do Twitter, então são elas que paro para ler”. Os demais estudantes concordaram com Vitor e também disseram ler somente as notícias que estão no topo da página.

        Como espaço monetizado pela participação e permanência dos usuários, as informações que alcançam o topo do feed de notícias das redes sociais podem alcançar essa posição por serem conteúdo do discurso de grupos políticos e ideológicos que não favorecem os interesses populares, e essa forma de se informar por meio das redes sociais pode criar bolhas de preferências e experiências. Sobre isso, Salgado (2018) diz que:

[...] o uso da inteligência artificial dos algoritmos, refinado por diversas reiterações quanto ao fornecimento de dados por um indivíduo (visitas a páginas, compartilhamentos, comentários, “Curtir” etc.) ao longo do tempo, cria uma bolha de preferências e experiências pessoais que produzem, a rigor, uma zona de conforto que filtra e, em teoria, protege o usuário daquilo no mundo exterior que difere dos seus gostos. Assim, o indivíduo tenderia a se isolar em comunidades, páginas e com amigos que basicamente pensam como ele e compartilham seus valores — particularmente, os político-ideológicos (SALGADO, 2018, p. 3).

        Sobre processos informativos e as redes sociais, os alunos do GAC citaram como meio de informação nacional e global os telejornais da TV aberta e como fonte de informação local os grupos de Whatsapp e o Facebook, que eles usam para compartilhar fotos, imagens e acessar a página da prefeitura, onde ficam sabendo das políticas locais. O Youtube é a plataforma das mídias sociais que acessam para baixar vídeos indicados pelos professores das diversas disciplinas.

        Perguntados sobre como as notícias locais são divulgadas nos grupos de Whatsapp e também no Facebook, os alunos lembram da pluralidade de opiniões que surgem a partir de um fato.

“Ah [...] alguém fala alguma coisa que o prefeito fez e aí, cada um dá uma opinião [...] tem os contra e os a favor [...] tem vez que os contra ganham e outras vezes os a favor fecham a boca deles” (Paulo/GAC).

        A fala do entrevistado evidencia o uso das mídias como fonte de desinformação a partir de fatos não checados, baseados em opiniões pessoais. Esse comportamento social frente às mídias muitas vezes faz parte de estratégia de grupos políticos e ideológicos que disseminam fake news com o objetivo de promover dúvidas, confusão e caos social, distraindo os cidadãos com lutas partidárias e ideológicas, impedindo-os de participarem do contexto sociopolítico por meio da práxis do diálogo.

        No terceiro eixo de perguntas do grupo focal, buscamos identificar também o impacto das mídias digitais no processo de ensino e de aprendizagem no período pandêmico da Covid-19, e se as experiências de estudo com as mídias digitais favoreceram o movimento de autoformação pelas juventudes do Ensino Médio. Sobre o uso das TDICs no processo da aprendizagem, é possível perceber que mesmo sem o direcionamento da escola, os alunos estudam de maneira híbrida, evidenciando a real necessidade da reconfiguração dos espaços escolares no contexto da cibercultura para que a educação se adeque ao perfil dos estudantes da nossa época, pessoas que vivem em estado de cibridismo e que necessitam desenvolver não somente o domínio cognitivo, domínio que as plataformas de educação, sem a interlocução da escola, podem desenvolver.

“Quando os professores passavam algum assunto em sala que eu tinha dúvida, alguns buracos a serem preenchidos na minha cabeça, então eu voltava para o Youtube [...] para mim [...] a aula presencial é apenas um estímulo para a gente ir buscar o conhecimento na internet” (Vitor/GAU).

“Eu tinha dificuldade de me concentrar nas aulas, mas quando chegava em casa eu buscava aprender os conteúdos nas aulas do “Descomplica” e do Youtube, pois sabia que os professores iriam cobrar os conteúdos nas avaliações” (João/GAU).

        O movimento que o entrevistado descreve do uso das mídias digitais no processo de aprendizagem do conteúdo escolar revela que as juventudes que estão incluídas digitalmente e com competência em media literacy conseguem encontrar na rede fundamentos para os conhecimentos propostos pela escola que, para elas, se tornou lugar de motivação e validação dos conhecimentos e não mais como centro radiador.

        No período de ensino remoto, as ferramentas digitais usadas pelos alunos GAU no foram a plataforma Google Sala de Aula, os grupos de Whatsapp, o Youtube, o Descomplica, o Instagram e o Google Meet. Já os alunos do GAC declararam usar os grupos de Whatsapp da escola e que posteriormente começaram a usar o Google Sala de Aula.

        Para os alunos do GAC, a mudança do ensino presencial para o ensino remoto foi mais dolorida do que para os alunos do GAU.

“Ê muito difícil estudar pela internet, o bom é estar na escola com os professores e os colegas [...] aí a gente aprende” (Joana/GAC).

“É muito ruim, eu não consigo acompanhar, às vezes quando a internet chega já passou do prazo de entregar as atividades e os professores pensam que a gente não fez porque não quis” (Pedro/GAC).

        O precário estado de inclusão digital somado à dinâmica da prática pedagógica desenvolvida pelos professores com as ferramentas digitais fortaleceu nos alunos do GAC o descrédito no potencial das TDICs como ferramentas de construção do conhecimento, fato que evidencia a importância das ferramentas do ensino EAD no ensino remoto, em virtude da exclusão digital, ou inclusão digital precária, como é o caso dos alunos do GAC, por favorecerem as atividades síncronas e também as atividades assíncronas.

Considerações Finais

Neste estudo, partimos do pressuposto de que a escola deve ser o lugar de construção de um processo de intercomunicação que motive a todos para “evoluir, para completar-se, para apoiar-se, para superar-se, para libertar-se” (MORAN, 2014, p. 4). Para isso, é preciso envolver-se com a cibercultura e explorar o potencial das TIDCs para realizar práticas educativas que explorem a ubiquidade e a flexibilidade proporcionadas pela internet, para fomentar a criatividade, a autonomia, a ética, a estética, domínios essenciais para o desenvolvimento de competências na perspectiva do media literacy.

        A partir da relação com os estudantes do campos e da cidade, por meio de questionário e grupos focais, observamos que os alunos que vivem na cidade têm melhores condições de inclusão digital. Além disso, demostraram no decorrer da pesquisa competências na perspectiva do media literacy mais aprimoradas que os alunos que vivem no campo, que não podem acessar o ciberespaço com a mesma intensidade e frequência com que fazem os alunos que vivem na cidade, e demostraram perspectivas mais reduzidas sobre práticas sociais e de comunicação em rede.

        Os olhares das juventudes quanto ao papel da escola na construção do conhecimento no período ensino remoto se entrecruzam e se distanciam. Para as juventudes do campo, o acesso ao conhecimento depende da escola territorializada enquanto que para os alunos da cidade, a escola territorializada tem a função de validar os conhecimentos que estão na rede. Na zona rural, a escola ainda é o principal espaço de construção do conhecimento. As falas, as expressões corporais evidenciaram extrema descrença no ensino remoto e nas mídias como ferramentas de construção socialização do conhecimento e das experiências da vida. A falta inclusão digital dos alunos do campo desfavorece a participação dessa parcela da juventude nos processos de cidadania democrática, visto que na sociedade em rede a comunicação opera associando a linguagem com as experiências que o indivíduo tem arquivadas em sua mente, emoldurando o mundo em uma dinâmica que condiciona modos de pensar, resultados dos interesses pelo poder (CASTELLS, 2020).

        Essas constatações evidenciaram a existência de uma lacuna muito grande nos aspectos das competências em media literacy das juventudes da zona urbana e da zona rural. Isso é um fato que requer atenção por parte das autoridades para a construção de políticas públicas de inclusão digital dos estudantes do campo, pois o estado de exclusão ou inclusão digital precária dessas juventudes fragiliza o protagonismo na cibercultura e consequentemente em elaborações no contexto local.

Referências

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