Dietas e competências mediáticas de universitários portugueses

Isa Maio1 e Paula Lopes2

Resumo

Na sociedade dos ecrãs, das redes e em rede, uma nova ordem comunicacional – caracterizada pela efemeridade dos discursos narrativos, pela globalização imagética ininterrupta, pela desordem informacional que molda um novo ecossistema mediático, pela fragmentação da atenção em múltiplos e constantes estímulos – impõe que se assuma a atualidade do conceito de literacia mediática (alfabetização mediática, educomunicação) e a sua pertinência para uma crítica e racional leitura do Mundo, rumo a competências globais (OCDE, 2018), competências de cultura democrática (CONSELHO DA EUROPA, 2016), rumo a uma cidadania global (UNESCO, 2015). Esta investigação procurou perceber de que forma é que os jovens universitários portugueses (n=314) constroem as suas dietas mediáticas, em particular as informativas, como as desconstroem, as interpretam e como refletem acerca das mesmas. A nível metodológico, optámos por uma triangulação que teve por base um inquérito por questionário (para aferição de práticas mediáticas), uma prova de literacia mediática (para avaliação de competências de literacia) e, por fim, um grupo de foco (de forma a aprofundar os resultados obtidos). Os resultados revelaram jovens alheados, desfocados do que os rodeia, pouco críticos e engajados.

Palavras-chave

Literacia mediática; Práticas; Competências; Informação; Universitários portugueses.

1 Mestre em Comunicação Aplicada, Universidade Autónoma de Lisboa. E-mail: isamaio17@gmail.com.

2 Doutorada em Sociologia, Universidade Autónoma de Lisboa/LabCom/NIP-C@M. E-mail: plopes@autonoma.pt.

Diets and media skills of Portuguese university students

Isa Maio1 and Paula Lopes2

Abstract

In the society of screens, networks and networking, a new communicational order - characterized by the ephemerality of narrative discourses, by the uninterrupted imagetic globalization, by the informational disorder that shapes a new media ecosystem, by the fragmentation of attention in multiple and constant stimuli - imposes to assume the current relevance of the concept of media literacy (media education, educommunication) and its relevance for a critical and rational reading of the World, towards global skills (OECD, 2018), democratic culture skills (COUNCIL OF EUROPE, 2016), towards a global citizenship (UNESCO, 2015). This research sought to understand how young Portuguese university students (n= 314) construct their media diets, particularly the informative ones, how they deconstruct and interpret them, and how they reflect on them. At a methodological level, we have opted for a triangulation based on a questionnaire survey (to assess media practices), a media literacy test (to assess literacy skills) and, finally, a focus group (to deepen the results obtained). The results revealed young people who were detached, not aware of their surroundings, uncritical and not engaged.

Keywords

Media literacy; Practices; Skills; Information; Portuguese University Students.

1 Mestre em Comunicação Aplicada, Universidade Autónoma de Lisboa. E-mail: isamaio17@gmail.com.

2 Doutorada em Sociologia, Universidade Autónoma de Lisboa/LabCom/NIP-C@M. E-mail: plopes@autonoma.pt.

Introdução

        Vivemos na Idade dos Media, em “sociedades impregnadas de uma ampla variedade de plataformas tecnológicas (os media), discursos (como o jornalístico), conteúdos (nomeadamente, informação jornalística)” (LOPES, 2017, p. 11). A informação (em sentido lato) é produzida, circula e é partilhada a uma velocidade estonteante, impulsionada por um novo ecossistema mediático marcadamente digital, em rede e em transformação, pouco regulado e bastante anárquico. A informação chega a toda a hora, em todos os géneros e formatos, por todas as vias, em qualquer local. A mobilidade constitui-se paradigma de mudança de práticas de acesso e de hábitos de consumo de informação, em particular nas gerações mais jovens. A massificação do acesso à Internet e a generalização de utilização de smartphones são pedras basilares para falarmos de jovens e de novas formas de acesso, um acesso instantâneo e potencialmente ilimitado. A atenção é disputada a cada segundo, monitorizada nas redações e nas tecnológicas. A ansiedade e o “medo de ficar de fora” (FOMO, fear of missing out) são resgatados por constantes push notifications que sugerem títulos, imagens, marcas comerciais, mas também emoções, modos de vida, formas de estar no mundo, visões estereotipadas, preconceitos, desumanidades. Como sobreviver neste turbilhão? Que decisões tomar? Como distinguir o que é verdadeiramente importante para a nossa vida? O que é credível ou não?

        Estas inquietações derivaram neste trabalho académico, originalmente denominado Universitários e consumo de informação: Dietas e competências mediáticas na vida de todos os dias da autoria da investigadora Isa Maio, com orientação de Paula Lopes, professora associada no Departamento de Ciências da Comunicação da Universidade Autónoma de Lisboa. A principal questão de investigação remetia, à partida, para um trabalho denso de análise: Que práticas e que competências de literacia mediática e digital possuem os jovens universitários portugueses para descodificarem a informação que consomem no seu dia a dia? A autora assumia, assim, a educação para os media e a literacia mediática como as chaves para a reflexividade, o pensamento crítico e, em última instância, o envolvimento social e cívico, quer local, quer global, quer intercultural.

Breve enquadramento teórico

        É uma evidência empírica que os estudos que relacionam jovens – tecnologia – informação – literacia têm tido um papel central na Academia nos últimos anos. Em Portugal, por exemplo, e referindo alguns dos mais recentes, citemos Níveis de literacia mediática. Estudo exploratório com jovens do 12º ano (PEREIRA; PINTO; MOURA, 2015); Direitos digitais. Uma password para o futuro (LOPES et al., 2015); Práticas e consumos de jovens portugueses em ambientes digitais (AMARAL et al., 2017); Jovens e práticas de acesso e de consumo de notícias nos media sociais (SILVEIRA; AMARAL, 2018); o projeto EUKIDS Online Portugal (PONTE; BATISTA, 2019); Crianças, jovens e media na Era Digital: Consumidores e Produtores? (PEREIRA, 2021) ou Notícias e smartphones: práticas e consumos mediáticos e digitais dos jovens universitários (LIGEIRO, 2021). Em rigor, sublinhe-se que estes documentos constituíram matéria basilar nesta investigação, por várias razões: por que realçavam que “as questões que implicavam uma análise crítica, que ultrapassava os documentos fornecidos e que exigiam um certo conhecimento do campo mediático por parte dos alunos, foram menos bem-sucedidas” (PEREIRA; PINTO; MOURA, 2015, p. 93) e os “resultados alcançados revelam níveis muito baixos de literacia para os media” (PEREIRA; PINTO; MOURA, 2015, p. 95); por que apontavam para diferentes práticas de entretenimento – e não de informação – como “os consumos mais significativos” (AMARAL et al., 2017, p. 107) e para uma “perspectiva de sociabilidade em rede orientada à interação com os pares, verificando-se que as competências técnicas podem limitar o consumo tecnológico destes jovens” (AMARAL et al., 2017, p. 107); revelavam que “as competências de cariz tecnológico e relacional, nas redes sociais, são as mais referidas” e que “as competências informacionais e criativas são as menos assinadas” (PONTE; BATISTA, 2019, p. 7); ou frisavam que “os atuais jovens universitários possuem interesse em manter-se informados, apesar de reconhecerem a existência de uma falta de interesse generalizada entre os seus pares quando informados via órgãos de comunicação social” e “o consumo de informação noticiosa não substitui a literacia crítica necessária para que sejam capazes de avaliar os conteúdos veiculados” (LIGEIRO, 2021, p. 86).

        A nível do envolvimento entre a Academia e a comunidade, nomeadamente quanto à promoção de competências de literacia mediática e digital de professores, famílias, crianças e jovens, destacam-se três grandes projetos nacionais, plataformas pedagógicas com recursos gratuitos para aplicação em contextos formais, não-formais ou informais de ensino-aprendizagem: o MILD (Manual de Instruções para a Literacia Digital, 2017) [1], o PICCLE (Plano de Intervenção Cidadãos Competentes em Leitura e Escrita, 2020) [2] e o COMEDIG (Competências de Literacia Digital e Mediática em Portugal, 2022) [3].

        Todos eles assumem a educação para os media como “a estratégia mais inteligente para lidar a longo prazo com esta paisagem [mediática] com que nos deparamos” (LOPES, 2019, p. 152), num cenário hipermediatizado de “abundância comunicativa” (KEANE, 2013, p. 1) e de cada vez mais intensa “desordem informacional” (WARDLE; DERAKSHAN, 2017), uma das características da contemporaneidade. Todos eles também assumem que a educação para os media e a literacia mediática procuram fomentar a compreensão crítica (AGUADED et al., 2021), “mas a compreensão crítica deve levar à ação” (BUCKINGHAM, 2022, p. 115). Na linha argumentativa de Cunha (2022),

a literacia para uma cidadania global visa conhecer e agir num mundo, a partir das condutas de cidadãos conscientes da sua circunstância e criticamente informados, que utilizem de forma correta, ética e segura a tecnologia e, em simultâneo, se pautem por aspirações que contemplem toda a humanidade (CUNHA, 2022, p. 194).

        A terminar este ponto, concretize-se o que entende a UNESCO por “cidadania global”:

Refere-se mais a um sentimento de pertencer a uma comunidade mais ampla e à humanidade comum, bem como de promover um olhar global, que vincula o local ao global e o nacional ao internacional. Também é um modo de entender, agir e se relacionar com os outros e com o meio ambiente no espaço e no tempo, com base em valores universais, por meio do respeito à diversidade e ao pluralismo. Neste contexto, a vida de cada indivíduo tem implicações em decisões quotidianas que conectam o global ao local e vice-versa” (UNESCO, 2015, [s.p]).

        

        Nesta ótica, que partilhamos, “a aquisição de competências de literacia visa a participação, qualificada e consciente, dos cidadãos como atores no espaço público” (CUNHA, 2022, p. 195). Tem um papel importante na promoção da participação ativa dos cidadãos na sociedade, tanto na vida económica, como cultural e democrática (LOPES, 2011).

Metodologia

        A nível metodológico, a presente investigação teve por base uma triangulação, com recurso a metodologias quantitativas-extensivas (inquérito por questionário e prova de literacia mediática) e qualitativas-intensivas (grupo de foco, com entrevista semiestruturada). Procurou-se, com este procedimento, dar resposta a três objetivos:

        1) Identificar que meios (e com que frequência) é que estes jovens universitários utilizam para se informarem;

        2) Verificar de que forma se relacionam com esses meios para descodificarem mensagens;

        3) Perceber a importância da literacia mediática/digital/da informação na sua formação.

        O inquérito por questionário e a prova de literacia foram os primeiros instrumentos metodológicos a serem aplicados, tendo sido disponibilizados on-line através da plataforma Google Forms. A sua disseminação ocorreu através de correio eletrônico e redes sociais, entre maio e abril de 2021.

        Para a sua construção, recorremos a alguns indicadores já testados e validados (robustos) de estudos nacionais e internacionais, desde teses de doutoramento a grandes investigações transnacionais. Algumas questões foram adaptadas à realidade portuguesa e ao esprit du temps, outras foram concebidas originalmente pela investigadora Isa Maio.

        Pela aplicação destes instrumentos metodológicos, recolhemos informações sociográficas dos inquiridos, dados acerca das suas práticas mediáticas e digitais, e evidências relativas às suas competências mediáticas e digitais. A análise estatística foi efetuada através do IBM SPSS Statistics.

Amostra

        A amostra por conveniência foi sendo depurada a partir das respostas dos indivíduos às questões relacionadas com as suas características sociodemográficas. Foram excluídos os respondentes com mais de 28 anos, sem nacionalidade portuguesa ou a estudar em universidades fora de Portugal. Para efeitos de análise de resultados, a nossa amostra conta com 314 jovens universitários portugueses, com as seguintes características: maioritariamente, os inquiridos têm entre 18 e 20 anos, na maioria encontram-se a frequentar o 1º ciclo do Ensino Superior (licenciatura) no Porto e em Lisboa, em universidades públicas, sobretudo nas áreas científicas “Ciências Sociais, Comércio e Direito” e “Ciências, Matemática e Informática”. Refira-se que a diferença entre sexos não é significativa.

Resultados: práticas mediáticas e digitais

        A grande maioria dos inquiridos refere que utiliza a internet “várias vezes por dias” (84,1%). No entanto, quando questionados acerca de práticas mediáticas no dia a dia, o visionamento de televisão aparece com algum destaque (84,7%), logo após a leitura de jornais on-line (86%). Interessante o facto de os respondentes assumirem que leem revistas impressas (85,4%) e jornais em papel “uma a três vezes por semana” (84,4%). A prática menos vezes assinalada é a leitura de livros impressos, ainda assim com 70% de inquiridos a assumir que o fazem “uma a três vezes por ano”. A prática de leitura de e-books é praticamente nula: 72% afirmam que nunca leem livros on-line.

        Quanto à formação de opinião, estes jovens consideram a internet e os sites de informação (93,6%), mas também os professores (92,4%) como as suas principais fontes. Mais de 50% dos inquiridos consomem informação “todos os dias ou quase todos os dias” e quase 48% assumem que o fazem “várias vezes por dia”. As temáticas mais interessantes para estes universitários passam pela “Política”, “Desporto” e “Cultura”.

        À pergunta “na última vez que leu/viu/ouviu informação duvidosa, o que fez?”, constatamos que a esmagadora maioria (70%) responde “costumo ler por alto, não reflito muito sobre o assunto”. Destaque-se ainda que apenas 2,9% dos respondentes registam ter “procurado saber mais para tirar dúvidas”.

        O que leva estes alunos a ler uma notícia? Para quase 90% da amostra, “o título”. Mesmo quando uma notícia lhes chama a atenção, 79,3% assumem que “leem o texto na diagonal”. Refira-se que 11% “leem o texto todo, do início ao fim”. Estes resultados podem ter várias interpretações, que serão mobilizadas no grupo de foco, desde a falta de atenção, a falta de interesse ou a extensão das peças jornalísticas.

        Relativamente às atividades que os inquiridos mais dizem fazer na internet, diariamente ou quase todos os dias, remetem para entretenimento e lazer, como “estar nas redes sociais” (85%) e “procurar música on-line” (81,8%). Em rigor, quase 83% também respondem a “procura de notícias on-line”, que consideramos poder manifestar-se como um efeito de desejabilidade social, dado o estudo em causa.

        As práticas menos identificadas pelos inquiridos dizem respeito a práticas de cidadania. A maioria dos jovens diz passar entre duas a cinco horas on-line por dia, utilizando para tal um smartphone ou um computador portátil.

        Como se processa o consumo de notícias? “Na internet, através de redes sociais ou blogues, pelos conteúdos publicados em páginas que sigo” (96,5%) ou “através de aplicações dos meios de comunicação para tablet ou smartphone” (93,3%).

Resultados: teste de competências mediáticas e digitais

O teste de avaliação de competências mediáticas e digitais continha cinco exercícios e não exigia obrigatoriedade de resposta. Esta nossa decisão prende-se com o facto de um teste deste teor apelar às capacidades de interpretação, de reflexão, de pensamento crítico. Será que há motivação e interesse? Será que os jovens universitários portugueses que integram a nossa amostra detêm essas capacidades?

1) Logo na primeira questão, a amostra sofreu uma redução para 221 respondentes. O objetivo deste primeiro exercício era perceber o nível de fiabilidade que os respondentes associavam a cinco logotipos: dois de jornais diários de referência, dois de jornais diários populares, um de um site de conteúdos patrocinados, dois de redes sociais e um de um jornal diário que deixou de ser publicado em Portugal em 2010. Os inquiridos reconhecem o jornal PÚBLICO (diário de referência) como o meio de comunicação social mais fiável. Refira-se, no entanto, que em quinto lugar aparece o jornal já inexistente no ecossistema mediático português e as justificações dadas para essa seleção vão desde “a julgar pelo nome, deve ser um jornal credível/fidedigno” a “não costumo acompanhar, mas deve ser parecido com o DN” [Diário de Notícias, jornal diário de referência]. Primeira evidência: não houve qualquer trabalho de pesquisa ou validação, muito embora em qualquer um dos exercícios propostos se indicasse a possibilidade de pesquisa. Seria de uma facilidade extrema encontrar a data de encerramento da publicação num qualquer browser na internet.

        2) O segundo exercício continha uma fotografia que “viralizou” no Facebook em agosto de 2020. Na legenda, podia ler-se: “Vemos aqui um grupo de cobardes e preguiçosos a dormirem em vez de estarem a trabalhar. É a esta classe profissional que o Costa [António Costa, primeiro-ministro do Governo de Portugal] se refere. Que trabalham até à exaustão, que aguentam turnos e horários de doidos. Que salvam vidas. Que fazem milagres com orçamentos cada vez mais pequenos porque os amigos socialistas têm que empregar a família toda e dar de mamar a muita gente”. A fotografia não havia sido tirada em Portugal e, apesar de ser verdadeira, estava nitidamente fora de contexto, constituindo um caso de desordem informacional. Nesta questão, apenas cinco inquiridos afirmaram estarmos perante uma informação falsa. Desses, somente três indicaram o link que consultaram para corroborar a sua resposta. Muitos dos respondentes optaram por argumentários como “isso dá muito trabalho, se foi publicado é porque é verdade”, “não perderia tempo a pesquisar a veracidade de um post do Facebook”, “claro que é verdadeiro, nem preciso pesquisar”, “uma vez que vivemos tempos horríveis, confirmo que é verdade” ou “verdade, estas imagens circulam imenso na internet”.

        3) No terceiro exercício do teste, perante um deepfake com o Presidente da República, Marcelo Rebelo de Sousa, a questão colocada apontava para: “Como avaliaria a veracidade do vídeo?” Mesmo sendo uma peça com teor humorístico, apenas dois inquiridos avançaram com explicações consistentes e que consideramos robustas: “É claramente uma montagem com momentos separados e colados ‘fora do contexto’, para que parecesse ser outra coisa, neste caso o sentido do discurso não foi esse. A situação aconteceu, o Senhor Presidente da República esteve de facto na telescola e discursou, mas as imagens foram manipuladas para dar um cariz cómico ao vídeo” e “no meu pensamento, este vídeo foi realizado no âmbito do entretenimento, logo a partir daqui a análise de veracidade altera-se, no entanto pesquisaria no site da RTP, onde a telescola é transmitida e verificava qual o real conteúdo que se transmitiu no mesmo dia, para assim compreender melhor a edição e manipulação de imagem e som que foi realizada para a elaboração deste vídeo”. Sublinhe-se que, neste caso, seria – mais uma vez – facílimo perceber a manipulação da imagem, detectando cortes de edição e outros elementos fora do contexto. Quanto ao fator “humor, registe-se a resposta “é falso, mas podia ser verdade… o nosso Presidente é um homem de afetos”. Já em relação ao desinteresse, à ausência de capacidade crítica ou de reflexividade demonstradas, recordem-se respostas como “não é do meu interesse testar a veracidade de tal conteúdo” ou “neste caso, não verificaria a sua veracidade”.

        4) Com o quarto exercício pretendia-se saber como comprovariam os respondentes a veracidade de determinada notícia. Foi cuidadosamente selecionada uma fake news que circulava nas redes sociais: copiando o grafismo do desportivo espanhol MARCA, uma imagem do jogador português Cristiano Ronaldo com o título “Cristiano Ronaldo transformará sus hoteles en Portugal en hospitales para ayudar en la lucha contra el coronavírus”. Neste exercício, quatro inquiridos (em 119) responderam de forma aceitável. A resposta mais completa foi a seguinte: “à primeira leitura talvez acreditasse, mas depois iria procurar saber mais, e até procurar nas redes sociais do Cristiano Ronaldo algum comunicado que ele pudesse ter feito. Era sem dúvida um gesto bonito. Contudo, segundo as minhas pesquisas esta foi mais uma notícia falsa”. O seu autor indica o link do site Polígrafo (jornal português especializado em fact-checking, fundado em 2018 por Fernando Esteves, jornalista). Importa ainda sublinhar que alguns inquiridos partem imediatamente do pressuposto que é verdade, dado o protagonista (Cristiano Ronaldo) ou a marca do órgão de comunicação social (MARCA), como, por exemplo, “lembro-me disto, mas tenho pena de só ter sabido por jornais internacionais, o jornalismo nacional anda mesmo a dormir… uma tristeza!”, “se o jornal ‘MARCA’ publicou, óbvio que é verdade, os jornais dificilmente noticiam mentiras” ou “se saiu no jornal não há nada para comprovar”. Voltamos a percepcionar um baixíssimo nível de validação da informação e de análise crítica da informação.

        5) O último exercício da prova remetia para uma imagem do primeiro-ministro de Portugal, António Costa, acompanhada pela seguinte pergunta: “Número de funcionários públicos tem vindo a aumentar desde 2015?”. Dois inquiridos revelaram algum sentido crítico: “não é possível dizê-lo com base só nestas informações, tendo em conta que não há informação suficiente sequer para atender ao que se refere verdadeiramente o artigo. Assim sendo procuraria a notícia original e, após a ler, chegaria a uma conclusão sobre a veracidade da mesma” e “não iria ter uma opinião, sem saber quem difundiu a imagem”.

        Tentemos, agora, saber porque acontece este fenómeno. Entremos no grupo de foco.

Resultados: focus group

        O grupo de foco ocorreu remotamente, por Zoom, e contou com a participação de sete elementos, quatro do sexo feminino e três do sexo masculino, com idades entre os 18 e os 23 anos. A reunião on-line teve a duração de cerca de uma hora. As áreas temáticas exploradas foram: hábitos e consumos; televisão, redes sociais e jornais; redes sociais e partilha de informação; desinformação; educação para os media; literacia mediática.

        Validou-se a importância da televisão e das redes sociais na vida destes jovens universitários portugueses, e da fiabilidade que reconhecem ao jornal diário PÚBLICO. Validou-se que estes inquiridos reconhecem que recebem informação em excesso e que assumem não conseguir filtrar esses conteúdos. Validou-se até que chegam a “diabolizar” os media, acusando-os de agentes de desinformação com intenção de provocar o caos na sociedade. Quanto ao trabalho dos jornalistas e às pressões sentidas nas suas rotinas diárias, denota-se alguma desconfiança, como podemos constatar neste depoimento:

AM - “No jornalismo, quer a tua opinião seja aquela ou não, vais ter de dizer aquilo… e isso nota-se um bocado, na minha opinião, de jornais para jornais, de canais de televisão para canais de televisão que é um bocado assim que as coisas funcionam, pelo menos é a sensação que me dá.”

        

        Foquemo-nos, agora, nas respostas mais conclusivas quando se fala em leitura…

AM - “Eu sou muito preguiçoso para ler... leio muito na diagonal. Se me interessar e na hora não tiver tempo, guardo para mais tarde ver melhor, se não me interessar é mesmo muito por alto.”

DR - “Nós estamos cada vez mais numa sociedade que anda à velocidade da luz. Percebo que, às vezes, talvez pela rapidez com que as coisas têm que ser preparadas, principalmente para o digital, a linguagem com que é escrito, o tamanho do texto acaba por demover as pessoas de lerem até ao fim, mesmo o vocabulário e tudo (...) confesso que no meio do trabalho, pessoas que já têm casa, algumas até já têm filhos, claro que é muito mais fácil ires ouvir no telejornal... afinal, estás a fazer o jantar e podes estar a fazer duas coisas em simultâneo. Portanto, eu própria assumo essa falha.”

BV - “Se realmente tiver um bocadinho de interesse, acabo por ler aquilo um bocado na diagonal.”

LR - “Varia muito consoante o nosso tempo para ler e o interesse sobre o tema.”

MF - “Identifico-me com essa prática de ler muito por alto porque o dia a dia é super corrido!”

        Ou em escrita… Haverá alguma incapacidade em argumentar, fundamentar, refletir criticamente? Ou simplesmente preguiça ou falta de tempo?

DR - “Pediste-lhes para pensar e isso dá trabalho... [risos do grupo] Desculpem-me, mas é verdade, isso dá trabalho e as pessoas não estão para aí viradas. Depois, pediste-lhes para escrever, e com ‘escrever’ já estragaste tudo, porque enquanto é para escolher uma escolha múltipla e só assinalar um ícone! E porque implica pensar...”

JB - “Acho que as pessoas não gostam muito de responder a questionários porque estão a dispensar tempo da vida delas. Não querem ter muito trabalho. Quando se veem obrigados a justificar, isso implica pensar e, tal como já foi aqui dito, a nossa malta não está muito habituada a pensar... é quase ‘a lei do menor esforço’... eu acho.”

MB - “É do tipo ‘despachar’ porque não têm muito tempo... Acho que também é muito isso, quando implica pensar, escolhe-se o caminho mais fácil.”

MF - “Quando implica pensar... é lixado!”

LR- “Eu acho mesmo que é o sentido crítico [...] Há muitas pessoas que têm opiniões, mas não as sabem fundamentar nem explicar, não sabem manifestar a sua opinião, não sabem argumentar nem contra-argumentar.”

        

        A finalizar este ponto, centremo-nos no que entendem estes jovens universitários portugueses por “literacia mediática”:

AM - “Ui, que palavrão! Literacia para mim é a capacidade de uma pessoa escrever, interpretar/entender textos.”

JB - “A aptidão de saber escrever, ler e compreender aquilo que é lido...”

MB - “A capacidade de criar, aceder e até de compreender a informação que nos é transmitida pelos jornais, televisão e internet.”

LR - “Para mim, a palavra literacia assemelha-se à palavra alfabetismo, ou seja, é a competência que adquirimos de ler e escrever. Contudo, a literacia é um conceito mais completo e, por isso mesmo, a meu ver, é que está cada vez mais a ser falado e abordado, principalmente, no Ensino Superior. Acredito que literacia corresponde ao facto de as pessoas utilizarem a sua capacidade de ler e escrever, mas utilizam-na para aprender e obter mais conhecimentos, sendo crítico/a, conseguindo assim refletir acerca daquilo que vai aprendendo. Com base nisso, consegue-se participar ativamente na sociedade.”

DR- “Para mim, a literacia é a capacidade que um indivíduo tem de ler e escrever, e, através da interpretação, usar essas capacidades para adquirir conhecimento para se inserir na sociedade e participar ativamente na mesma. Ou seja, é através da literacia que se desenvolve o pensamento crítico.”

BV - “Para mim, literacia também é a capacidade de saber ler e escrever, resultando na nossa capacidade de refletir sobre determinado tema/assunto.”

MF - “Sim, literacia é de facto um palavrão que muita gente não faz ideia do que é, aliás, eu só sei porque tive uma palestra on-line obrigatória que era sobre a importância da mesma... Do que absorvi dessa palestra é que, de facto, a literacia é uma ferramenta importantíssima para conseguirmos refletir/pensar criticamente sobre as coisas.”

        Em suma, os participantes conseguem, de alguma forma, entender o âmago do conceito de literacia mediática, embora quando lhes é pedido que acionem as competências de literacia mediática e digital em contexto revelem dificuldade em fazê-lo.

        Mais uma evidência: todos os participantes no focus group concordaram na necessidade de ser vital consciencializar os mais jovens rumo à cidadania global. Na sua opinião, o que deveria ser feito para os tornar mais reflexivos, mais críticos, mais cidadãos?

DR- “Na escola, eu tinha uma disciplina que se chamava ‘Formação Cívica’, que eram 90 minutos destinados a fazer trabalhos de outras disciplinas ou o diretor de turma a dar-nos na cabeça por algum motivo. Se isso fosse reformulado e fosse efetivamente uma formação cívica em que aprendemos com o que é que vais ter de lidar no futuro... Até porque a maior parte de nós nunca olhou para um IRS, nunca olhou para o site das Finanças... Se começássemos logo daí a criar espírito crítico, debates na sala de aula sobre os mais variados temas, aprender que há regras de Estado, há impostos, há isto, há aquilo, acho que tínhamos crianças que cresciam muito mais consciencializadas e mais preparadas para argumentar. Tu só podes dizer que não concordas, se tiveres conhecimento de causa.”

BV - “Tudo o que esteja relacionado com coisas que não tenham assim tanto interesse para eles (jovens) já entra por um lado e sai pelo outro, e nem vale sequer perder tempo com isso. Mas apoio a ideia da DR: começar a incutir os debates no ensino básico/secundário para que, na universidade, seja só um complemento de formação em si. Julgo que ajudaria imenso no nosso processo reflexivo/crítico.”

AM - “Na geração que vem depois da nossa, isso (espírito crítico) não existe muito, pelo menos do que eu tenho visto. É um bocado como o respeito: enquanto que na nossa geração, nós tínhamos mais respeito pela malta mais velha, isso perdeu-se para a geração a seguir. O poder de argumentação, acho que é um bocado por aí também... como da geração dos nossos pais, por exemplo, também perdeu para a nossa, penso eu!”

DR - “Esta história de começar na escola, depois, acaba por ser uma ‘bola de neve’, porque hoje os pais também têm muito menos tempo porque trabalham horas a fio e têm menos tempo e paciência. Acho que, para além de uma reformulação na escola, teria de haver também uma reformulação laboral, em que efetivamente os pais pudessem ter mais tempo e tempo de qualidade com as crianças.”

JB - “Acho que se deve alertar nas escolas sobretudo para não ser como eu: chegar à licenciatura e depararem-se com uma realidade assustadora... O que acho que podia melhorar e muito a vida desta malta universitária era o facto de poder haver uma disciplina opcional ligada ao desenvolvimento da literacia. Acho que seria uma mais-valia em todos os sentidos. Isto para quem fala só de malta universitária, porque estou totalmente de acordo com as sugestões que os colegas deram até aqui: quando mais cedo se começar a pensar e a refletir, mais fácil se torna.”

MB - “Não diria fazer ‘uma’ disciplina, mas sim criar debates nas universidades, onde as pessoas possam discutir os temas, poder argumentar e saber fundamentar as próprias ideias. Além disto, acho que se trata de uma questão de reeducação a todos os níveis, desde professores, pais e alunos. No fundo, do meu ponto de vista, é um processo gradual.... Deve-se começar a incluir esta espécie de debates desde pequeninos para que seja possível trabalhar a fundamentação e o sentido crítico desde cedo. Pelo menos é a minha opinião!”

MF - “Deve ser implementado um método, por exemplo, este dos debates, desde cedo para que seja um processo gradual. Só assim teremos jovens universitários mais instruídos sobre os temas, no fundo cidadãos prontos para argumentar, discutir sem recorrer à conformação do ‘porque sim’...”

LR- “Nós, quando falamos em educação, falamos de educação só na escola, mas a educação vem de casa e há educação em todo o lado. Efetivamente, isso é uma coisa que vem de base, pelo menos falo por mim. [...]. Se isto vier logo de casa, da creche, ou dos próprios avós que têm todo o tempo do mundo, tempo que, por exemplo, os pais não têm, os miúdos vão começar a não se contentar com o ‘porque não’ ou ‘porque sim’ e ir atrás dos motivos que lhes deram naquela resposta. Concordo efetivamente que a escola tem que sofrer essa reformulação. Já não é disciplina de ‘Formação Cívica’, mas sim de ‘Cidadania’, mas que, na prática, é para resolver problemas de trabalhos de casa e problemas da turma e, na teoria, essa disciplina o que potência é tratar de assuntos da vida adulta e desenvolver o espírito crítico dos adolescentes...”

Considerações Finais

        Esta investigação revelou empiricamente, de forma robusta, a necessidade da educação para os media e para a cidadania global desde a infância. Porquê? Porque aqui encontramos jovens que, estando num nível de educação superior, se mostram desinteressados do mundo que os rodeia, acríticos em relação aos assuntos que marcam o dia a dia, a atualidade, pouco reflexivos quanto à informação que recebem nesta sociedade em rede e dos ecrãs. Vidas marcadas por entretenimento e lazer, por efemeridades, por mosaicos desconectados, por velocidades furiosas e estímulos ininterruptos. Jovens que assumem não possuir as ferramentas necessárias a uma cidadania plena, jovens que assumem – em rigor – não saber “como” ser bons cidadãos.  Sendo esta a geração do futuro, este é um grito de alerta que ficará a ecoar dentro de cada um de nós.

Notas

[1] Disponível em: <https://mild.rbe.mec.pt/>. Acesso em: 19 mar. 2023.

[2] Disponível em: <https://piccle.pnl2027.gov.pt/>. Acesso em: 19 mar. 2023.

[3] Disponível em: <https://www.uc.pt/fpce/comedig/Homepage/>. Acesso em: 19 mar. 2023.

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