Inputs, outputs e feedbacks:

a centralidade da memória cibernética em Vilém Flusser

Erick Felinto1 e Rafael Malhado2

Resumo

Não obstante a enorme diversidade de tópicos e problemas abordados na obra de Vilém Flusser, a questão da memória funciona como uma espécie de portal por meio do qual se pode acessar esses diferentes problemas. O objetivo deste artigo é examinar a centralidade do conceito cibernético de memória em Flusser, com destaque particular para suas implicações na arte e na comunicação. Ao entender a cultura como mecanismo de produção, processamento e consumo de informações, o filósofo de Praga articula seu pensamento a partir do confronto entre registro e inovação. Se a arte, por exemplo, é contínua produção do novo, ela funciona também, necessariamente, como suporte para a inscrição e transmissão de informação a gerações futuras. Com isso, o processo central de toda cultura (como da própria vida) é o combate à entropia. A memória representa, assim, não apenas uma necessidade de ordem cibernética, senão também uma tarefa espiritual, enraizada na experiência judaica de mundo e traduzida no termo hebraico zakhor (“lembrar”) - a importância de não esquecer o passado e transmiti-lo à humanidade do porvir. Em Flusser, esse mandamento se torna um princípio fundamental do diálogo e da intersubjetividade: “nós sobreviveremos na memória dos outros”.

Palavras-chave

Comunicação; Memória; Arte; Cultura digital; História.

1 Doutor pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro. E-mail: erickfelinto@gmail.com.

2 Doutorando pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro. E-mail: rafael.malhado@gmail.com.

Inputs, outputs and feedbacks:

the centrality of cybernetic memory in Vilém Flusser

Erick Felinto1 and Rafael Malhado2

Abstract

Not with standing the vast collection of diverse topics and problems in Vilém Flusser’s work, the issue of memory functions as a central gateway by means of which one can access all these different problems. The goal of this article is to examine the centrality of the cybernetic notion of memory in Flusser, with a particular emphasis on its implications in art and communication. By understanding culture as a mechanism for the production, processing and consumption of information, the Prague philosopher structures his thinking from the confrontation between repetition and innovation. If art is, for instance, the ongoing production of novelty, it also works as a support for the inscription and transmission of information to future generations. Thereby, the core process of every culture (and of life itself) is fending off entropy. Consequently, memory represents not only a cybernetic requirement, but also a spiritual task, rooted in the Jewish worldview and expressed in the Hebrew word zakhor (“remember”) – the importance of not forgetting the past in order to convey it to future humankind. In Flusser, this commandment becomes a fundamental principle of dialogue and intersubjectivity: “we shall survive in the memory of others”.

Keywords

Communication; Memory; Art; Digital culture; History.

1 Doutor pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro. E-mail: erickfelinto@gmail.com.

2 Doutorando pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro. E-mail: rafael.malhado@gmail.com.

Introdução

        Vilém Flusser escapou continuamente às etiquetas classificatórias que normalmente são atribuídas a pensadores acadêmicos. Não possuía títulos, suas filiações institucionais eram frouxas e temporárias, seus modos de escrever e pensar não se coadunavam com os ditames tradicionais do fazer científico. Nesse sentido, sua Bodenlosigkeit, ou seja, sua “ausência de fundamento”, provavelmente não dizia respeito unicamente à condição de permanente expatriado, senão que também era símbolo indicativo para um indivíduo insubmisso a qualquer noção possível de um “bom pensar”. Se Flusser não tinha morada fixa em nenhum país ou cultura, também não tencionava se estabelecer em nenhum território do conhecimento, vagando despreocupadamente da ecologia à comunicação, da fenomenologia à cibernética. Entretanto, sua obra apresenta uma surpreendente coerência interna. É verdade que suas reflexões são frequentemente entrecruzadas e dispersas, como quando o pensador fala de religião usando a arte; ou quando discursa sobre alteridade por meio da ficção; ou, ainda, quando articula a linguagem para tratar da comunicação.

Mesmo assim, não é difícil encontrar diversas proposições e núcleos de ideias que se mantêm relativamente estáveis ao longo de sua trajetória intelectual. É assim, por exemplo, que os temas da memória e do arquivo servem como pilar cuja fundação foi estabelecida para edificar questões como as mencionadas acima e outras mais. A memória é um eixo de articulação central, que se torna ainda mais produtivo quando analisado a partir de uma perspectiva cibernética (um de seus paradigmas intelectuais preferidos), na qual o enredamento das teses se dá por meio de uma retroalimentação, com entradas (inputs), saídas (outputs) e feedbacks de códigos e significados. O objetivo central deste artigo, portanto, é pôr em relevo algumas das articulações essenciais que a problemática da memória entretém com as outras grandes questões do universo flusseriano (por exemplo, a divisão da história em três grandes eras, o impacto das tecnologias na sociedade, as relações entre memória e arte etc.). Trata-se, assim, de entender como essa problemática funciona produtivamente como via de entrada ao pensamento de Flusser.

Os modos de funcionamento da memória pelas “barbas do profeta” [1] Vilém Flusser

Não obstante seu agnosticismo, Vilém Flusser foi fiel à importante tradição religiosa judaica (quase que um mandamento) da memória. Lembrar-se, especialmente após o Holocausto, é uma missão que o judaísmo assumiu desde os princípios de sua história. Zakhor (“deves lembrar-te”), termo que aparece exaustivamente na Bíblia hebraica, configura a situação de um povo que não pode esquecer sua história sob pena de repeti-la. Como afirma Yerushalmi (1982, p. 5), o verbo é comumente complementado pela injunção sobre “não esquecer”, e “ambos imperativos ressoaram com duradouro efeito entre os judeus desde os tempos bíblicos”. Em Flusser, porém, o que é de ordem teológica se converte em princípio tecno-cultural, e a memória se torna uma dimensão essencial do circuito cibernético: Übertragung, Speicherung e Vorarbeitung (transmissão, memorização, processamento) [2].

De saída, é possível dizer que há sempre três preocupações básicas de Flusser quanto ao papel da memória na contemporaneidade. Partindo de um de seus breves textos nas correspondências ao então amigo, engenheiro e crítico Milton Vargas, os rastros parecem claros. No escrito inédito No além das máquinas (FLUSSER, s/d.-a) [3], Flusser discute os valores do trabalho diante da aparição das máquinas a partir de perspectivas deontológicas, ontológicas e técnicas. O artigo exprime um desconforto essencial, que reside basicamente num processo de maquinização do homem. Se num estágio histórico anterior ao maquinismo os homens mais serviam às máquinas do que se serviam delas, no estágio atual já não existe sequer sentido em buscar autonomia. Menos que liberar o sujeito humano da lide braçal para as atividades criativas, as novas máquinas inteligentes (afirma Flusser profeticamente) poderão realizar qualquer trabalho, “inclusive o mais ‘criativo’, melhor que qualquer homem” (FLUSSER, s/d.-a, p. 5) [4]. Mais que isso, radicaliza o pensador, os homens não poderão se liberar dos aparelhos, pois passarão a existir neles (FLUSSER, s/d.-a, p. 6).

É interessante notar nesses argumentos, por um lado, certas antecipações de Kittler (1986) - veja-se a polêmica afirmativa do autor alemão: “os meios determinam nossa situação” (KITTLER, 1986, p. 3) (tradução nossa) [5] – e, por outro, alguns ecos de Simondon (1989). Afinal, Flusser descreve uma das atitudes possíveis diante de nossa condição maquínica, a dos “tecnocratas”, como uma atitude “mística” (KITTLER, 1986, p. 6), ao passo que Simondon (1989) caracteriza a atitude dos “homens que conhecem os objetos técnicos” como tentativa de atribuir um estatuto de objetos sagrados aos aparatos (SIMONDON, 1989, p. 10) (tradução nossa) [6].

        Nesse sentido, ambos os pensadores têm uma visão da técnica que adverte contra os perigos de sua sacralização. Para além disso, o modelo cibernético é componente central da reflexão dos dois. Não obstante suas críticas à cibernética, Simondon (1989) enxerga nela a possibilidade de um novo enciclopedismo. Ela traz um tipo de informação sobre as técnicas e organizações que podem permitir ao homem se deslindar de uma condição de passividade diante do maquinismo. Como em Flusser, o problema final é a afirmação da liberdade: “a cibernética, nesse sentido, libera o homem do prestígio incondicional da ideia de finalidade” (SIMONDON, 1989, p. 104) (tradução nossa) [7]. Para o pensador praguense, por sua vez, a cibernética constitui eixo fundamental de estruturação de mundo, numa visão que perpassa da biologia à arte e à cultura, mesmo que, em muitos aspectos, entrando em choque com sua adesão à fenomenologia [8].

A reação que Simondon (1989) e Flusser identificam ao desequilíbrio da cultura desejosa de expulsar de seu seio o maquinismo (que, todavia, é intrínseco a esta), ou seja, a divinização da técnica, é ameaça à autonomia e ao estatuto do humano. Porém, ao passo que Kittler (1986) celebra o desaparecimento do “assim chamado ser humano” (der sogennate Mensch) e Simondon (1989) reclama a necessidade de devolver os objetos técnicos a seu legítimo lugar no seio da cultura (KITTLER, 1986, p. 18; SIMONDON, 1989, p. 10), Flusser ainda se agarra a um complexo e contraditório humanismo que por vezes celebra as máquinas e seus feitos e, por outras, manifesta a nostalgia de um (impossível) humano puro.

Mas onde estariam as três preocupações com a memória mencionadas anteriormente? A primeira diz respeito ao armazenamento das informações em si mesmo. O entendimento deontológico, para Flusser, pressupõe um “dever-ser” no mundo, a partir de questionamentos que buscam finalidade: “para quê?” (FLUSSER, s/d.-a, p. 3) ou “para quê faço?” (FLUSSER, s/d.-a, p. 2). E uma das reflexões centrais do pensador tcheco-brasileiro sobre a memória se refere, precisamente, ao “para quê” do acúmulo de informações da humanidade através de objetos. “Nós, os homens, temos dificuldade em conceber ‘história’ na ausência de tais objetos, de tal ‘cultura objetiva’” (FLUSSER, 2011a, p. 84). Necessitamos produzir memória (que se inscreve em aparatos tecnológicos, desde os tabletes de barro ao computador) para resistir à entropia que continuamente corrói a vida e a informação. A memória é uma tarefa vital do humano, e manifestada em praticamente tudo que fazemos, da arte aos jogos – um tema que Flusser, como judeu, levava muito a sério.

A questão ontológica, o “por quê”, nasce do desejo teórico da compreensão do mundo. Para modificar o mundo, é necessário conhecê-lo. Esse é o motor que impulsiona o pensamento e surge com “o trabalho epistemológico, científico, experimental” (FLUSSER, s/d.-a, p. 1). Entretanto, a memória é parte essencial de tal processo, já que sem o armazenamento das experiências passadas, com seus erros e acertos, seria impossível avançar na apreensão e compreensão da realidade. Conhecer é gerar e armazenar informação. Esta, por sua vez, “é a imagem refletida da ‘entropia’, ela é a inversão da tendência de todos os objetos (do mundo objetivo, em geral) incorrerem em situações cada vez mais prováveis e, por último, em uma situação disforme e o mais provável possível” (FLUSSER, 2010, p. 28).

        Por fim, o problema da técnica e o receio do pensador quanto a seu domínio sobre a vida constituem a terceira preocupação. A forma mentis da sociedade pós-industrial, ou pós-histórica, das máquinas, que faz mudar o sentido das coisas para uma “cosmovisão mecanicista” (FLUSSER, s/d.-a, p. 4) caracteriza um sistema, um “modo de funcionamento”, o mecanismo aparelhístico. Aqui o tema da memória pode ser articulado a partir do ordenamento das informações: sua recepção, distribuição, armazenamento, e os resultados político-sócio-culturais dessa organização.

No acúmulo de memórias inscritas nos objetos para imaginar e conceber o mundo, Flusser alerta para nossa possível dependência. “Não temos modelo para tal historicidade dialógica, que não passa pela mediação de objetos. Não temos modelo de uma história sem cultura objetiva.” (FLUSSER, 2011a, p. 84-85). Se uma criatura como Vampyroteuthis Infernalis, o personagem central da famosa fábula flusseriana [9], consegue armazenar informação no próprio organismo, nós, humanos, dependemos dos objetos externos e temos de lidar com sua “perfídia” [10]. Em mais um dos curiosos movimentos dialéticos que Flusser gosta de engendrar, essa relação com os aparatos corre sempre o risco de desviar-se de sua finalidade original: eventualmente, “o propósito da história humana deixa de ser o de informar os outros com dados adquiridos, mas o de informar objetos.” (FLUSSER, 2011a, p. 87).

Antecipando em alguns aspectos o tema contemporâneo da ecologia midiática, Flusser também se preocupa com o ecossistema das informações geradas pela sociedade, descrevendo um ciclo vicioso entre natureza, cultura e lixo. Para o filósofo, uma forma de reequilibrar essa equação seria fazer com que as informações criadas pudessem permanecer em um local fora do “alcance” das mãos humanas para não se transformarem em bens de consumo. Jogando com a clássica distinção heideggeriana entre as coisas que estão simplesmente presentes (vorhanden) e as que estão à mão (zuhanden), Flusser especula sobre informações “inesquecíveis” e a produção de uma cultura imaterial (undinglich) por meio da memória do computador (FLUSSER, 2007, p. 61). Essas “não-coisas”, como a memória computadorizada, estariam, segundo Flusser, presentes, mas não “a mão”. Em Vampyroteuthis Infernalis (2011a), no capítulo intitulado “A cultura do Vampyroteuthis: seu modo de pensar”, o autor tcheco-brasileiro retoma o gesto humano de controlar com as mãos os objetos que aparecem na sua frente – uma observação que também pode ser entendida como preocupação com o esquecimento: perceber ao seu redor apenas pelos objetos que mediam sujeito e mundo ilustra uma perspectiva que converge com as práticas sociais cotidianas rodeadas de objetos midiáticos. “Destarte surge um vai-vem entre objeto e modelo, entre aparência e conceito, em cujo fim surgirá uma situação na qual nenhum objeto que não tenha conceito pelo menos ligeiramente apropriado pela memória humana será percebido” (FLUSSER, 20011a, p. 82).

Flusser confronta seguidamente as formas da experiência humana com aquelas que são supostamente vivenciadas pela criatura marinha. É um exercício de perspectivismo imaginativo que permite pensar imagens alternativas do humano, diferentes ontologias e modos de ser no mundo, mas que tem como peça central para ambos os mecanismos da memória. Ocorre que o homem (ao menos em sua forma presente) necessita de aparatos externos para fixar suas informações, ao passo que Vampyroteuthis o faz em seu próprio corpo.

Porque “reflexão” significa não apenas controle do processamento de dados, mas igualmente controle de armazenamento de dados. Significa sistematização de memória, catalogação das informações disponíveis. É crítica das informações armazenadas. [...]. Toda reflexão é produtora de história. Mas nós homens, temos certa dificuldade em conceber “história” como processo que armazena e tria informações adquiridas apenas em memória humanas. É que nós, os homens, armazenamos grande parte das informações por nós adquiridas em objetos [...]. E como o Vampyroteuthis não produz tais objetos informados [...] temos dificuldade em admitir sua historicidade (FLUSSER, 2011a, p. 84) (grifos do autor).

Se para nós a história é registro, narrativa e fixação de signos em base material externa, para a lula-vampiro ela está inscrita no próprio código genético. Nem por isso, contudo, deixa de ser “história”. Entretanto, se algum dia o homem lograr aproximar-se do modelo vampirotêutico, poderia abdicar de tais suportes ineficazes. Na verdade, não se trata de possibilidade tão fantasiosa quanto pode parecer à primeira vista. Aqui também, como em muitos outros momentos de sua obra, a imaginação científica de Flusser antecipa profeticamente um futuro que provavelmente não será somente maquínico, senão biotecnológico. Já no ano de 2012, cientistas de Harvard conseguiram codificar um livro de 52 mil palavras em fragmentos de DNA. O uso de filamentos do material genético pode ser muito bem a solução para o problema cada vez maior da obsolescência e limitações técnicas das atuais tecnologias de armazenagem [11]. Aqui nos defrontamos com uma dificuldade conceitual: seria a memória orgânica de Vampyroteuthis também uma “não-coisa”, assim como a memória computadorizada?

Como muitos outros pensadores de seu tempo, Flusser não escapou de ser seduzido pelo “tropo” da desmaterialização que caracterizou grande parte dos discursos sobre a cibercultura nos anos de 1980 a 1990. Porém, ao contrário do que se acreditava, a digitalização do mundo envolveu fortes processos de sensorialização e retomada da matéria e do corpo. Marks (2002) foi provavelmente uma das primeiras autoras a destacar essa dimensão material dos meios eletrônicos. Para ela, a rede mundial de computadores está longe de ser uma entidade unicamente virtual, já que “indexa vários níveis de vida material e interconectada” (MARKS, 2002, p. xxii) (tradução nossa) [12]. Não por acaso, encontramos no trabalho de Marks (2002) um contraponto às especulações de Flusser. Se para este último a memória (especialmente a memória artificial) representava uma força anti-entrópica, o desejo humano de vencer a morte, em Marks (2002) a matéria na qual depositamos informações é eminentemente sinônimo de mortalidade. “Simbolização”, escreve ela, fazendo eco involuntário a Flusser, “ou a abstração da comunicação em informação, é uma tentativa de manter a mortalidade sob controle. Quando insisto na materialidade da imagem, chamo atenção a seus aspectos que escapam nosso reconhecimento simbólico” (MARKS, 2002, p. xi) (tradução nossa) [13]. É essa fragilidade, precisamente, que torna cada objeto singular, precioso, único. Mas pode existir tal unicidade em um mundo no qual obras podem ser copiadas infindavelmente, de modo que mesmo a noção de original é posta em xeque? O que Marks parece almejar é a preservação do componente material de nossas experiências midiáticas, de modo que não sucumbamos à tentação de uma existência pós-humana radicalmente abstrata. Para Flusser, porém, os processos de abstração são constitutivos do modo humano de estar no mundo.

O “gesto da abstração” também possui outros nomes, como “escalada da abstração” ou “escada da abstração”. Em Flusser, o gesto de abstrair diz respeito às circunstâncias do mundo nas quais o sujeito desenvolve outro olhar, outra percepção de realidade na sua relação com os objetos. Ou seja, para o autor, o indivíduo vai abstraindo uma dimensão da maneira de ver o mundo quando utiliza os objetos como uma espécie de mapas de orientação da vida. “Ao encontrar-me no mundo, encontro-me cercado por objetos que me barram o caminho” (FLUSSER, s/d.-b, p. 1). Em outras palavras, o que Flusser quer dizer é que nosso modo de lidar com a realidade é constantemente mediado. Engendramos imagens para lidar com o mundo, mas com isso também nos afastamos, dialeticamente, do mesmo. Como o pensador explica.

Imagens são mediações entre homem e mundo. O homem “existe”, isto é, o mundo não lhe é acessível imediatamente. Imagens têm o propósito de lhe representar o mundo. Mas, ao fazê-lo, entrepõem-se entre mundo e homem. Seu propósito é serem mapas do mundo, mas passam a ser biombos. O homem, ao invés de servir das imagens em função do mundo, passa a viver em função de imagens (FLUSSER, 2011b, p. 17).

Esse é o caminho de como funciona a escala da abstração. Flusser entende que o fascínio pelos objetos faz com que o ser humano possa traçar seu propósito ao redor deles; no esboço desse movimento, esquece do resto do mundo e tece a história com uma visão fugaz, subjetiva, uma cosmovisão tão impressionante e fantástica como os objetos o são (FLUSSER, 2014, p. 124). Esse argumento encontra-se principalmente na obra mais conhecida do autor, Filosofia da Caixa Preta (2011b). Assim, mesmo utilizando-nos das imagens para traduzir o mundo, tornando “códigos que traduzem eventos em situações, processos em cenas” (FLUSSER. 2011b, p. 17); ou empregando textos para “transcodificar o tempo circular em linear, traduzir cenas em processos” (FLUSSER, 2011b, p. 18); ou mesmo aplicando as tecnoimagens para interpretar o mundo, estamos sempre nos afastando dele. Flusser alerta que todos esses artifícios revelaram, e ainda revelam, sintomas de um sujeito que assimila em seu entorno alguns elementos em detrimento de outros.

O pensador tcheco lança tal concepção de breve “modelo ‘fenomenológico’ da história da cultura” (FLUSSER, 2008, p. 19) apenas como suporte para discutir a situação criada pelas tecnoimagens, presentes no mundo contemporâneo. Trata-se, segundo o filósofo, de um afastamento gradativo dos agentes humanos para com o mundo, na medida em que todo nosso esforço torna-se querer conceber o mundo pelos objetos – primeiro pelas imagens, depois por textos e, por último, pelas imagens técnicas. As tentativas da espécie humana de orientar-se tiveram como resultados, para Flusser, o culto a estes objetos e a alienação de sua história. Essa observação, por exemplo, é encontrada na sua obra que se dedica, logo nas primeiras páginas, à escada da abstração, O Universo das Imagens Técnicas (2008). Talvez o problema central identificado por Flusser resida numa relação equivocada com os objetos, na qual emerge uma ligação de dependência e adoração, não de cooperação e transformação mútua.

A arte futurista italiana, por exemplo, flertava com o progresso e desenvolvimento industrial, que na entrada do século XX estava sendo consolidado. Os artistas futuristas eram apreciadores da ciência e isso ficou expresso nas suas diversas manifestações artísticas. “Além de sua clara associação com a tecnologia e o maquinário, temas tão caros ao movimento, a ciência apresentava-se, também, como um fértil campo para atuações culturais.” (D’UGO JUNIOR; BORTULUCCE, 2019, p. 76). O futurismo pode, assim, ser definido como manifestação artística dessa devoção do sujeito às coisas, que provocava um desequilíbrio na relação sujeito-objeto e na consideração do papel dos aparatos.

Assim, no Futurismo italiano, o que se configura é um movimento típico da modernidade fascinada pelo poder das tecnologias. Ora, para Flusser, a função central da arte é participar da grande conversação da cultura, integrar o circuito cibernético por meio do qual o homem cria e transmite informação. Fazer arte é plasmar, em uma superfície material, informação, é imprimir “sua vivência [do homem] sobre o objeto de sua vocação” (FLUSSER, 2011a, p. 113). Percebe-se, pois, como, para o pensador, tudo aquilo que é assim informado constitui obra de arte. De equações matemáticas a sinfonias, essas expressões artísticas carregam informações, dados que introduzem o novo na cultura, e assim perpetuam o circuito cibernético. Desse modo, trata-se de lutar contra a perfídia do objeto para informá-lo com a marca humana, não de adorar o objeto em si, como fizeram os futuristas (FLUSSER, 2011a, p. 111). Flusser alertou inúmeras vezes sobre o perigo do esquecimento do resto do mundo na relação com os objetos, do movimento de tecer a história com uma visão fugaz e problemática dos objetos (FLUSSER, 2014, p. 124). E é este o ponto central: a emergência de uma consciência da história esvaziada, ou, como diria Benjamin (2012), a concepção de um tempo homogêneo e vazio: “A ideia de um progresso da humanidade na história é inseparável da ideia de seu andamento no interior de um tempo vazio e homogêneo. A crítica da ideia desse andamento deve estar na base da crítica da ideia do progresso em geral” (BENJAMIN, 2012, p. 249).

Se Benjamin (2012) já havia antecipado que os meios de comunicação, no final do século XIX e na entrada do século XX, transformavam nossas subjetividades, nossa forma de agir no mundo e nosso entendimento diante dos fatos históricos, Flusser trata dos desdobramentos dessa sociedade tecnológica que o filósofo alemão vivenciara a partir do pensamento sobre as imagens técnicas como uma espécie de continuação do processo. Para o pensador praguense, tais dificuldades em conceber a história como temporalidade intensiva [14] acarretam como consequência inúmeras crises na contemporaneidade: nas artes, na história, na forma como comunicamos.

Esse longo excurso nas ideias de Flusser sobre história, abstração e progresso tecnológico é necessário para que se possa entender a importância central do tema da memória no autor. Cabe perguntar: como os eventos narrados por Flusser demonstram os conflitos com as imagens na contemporaneidade, transformando a experiência humana com a história? O pensador tcheco se ocupa fundamentalmente das configurações dos regimes das imagens técnicas, na maneira como são geradas, recebidas e distribuídas. Nesse sentido, cria diagnósticos de como tais imagens alteram o jogo da comunicação e os processos mnemônicos. É possível verificar essas mudanças trazidas pelas imagens na contemporaneidade quando: 1) produzem novas realidades, mesmo emergindo, ocultando ou até pareando as já existentes, assinalando um estado de imprecisão na veracidade dos fatos históricos; 2) encontram-se engendradas nos sistemas responsáveis pela sua geração e disseminação e capazes de rearranjá-las a ponto de instituírem novos vínculos entre a rede de atores sociais, humanos e inumanos; 3) estabelecem pontos de ruptura nas dinâmicas comunicacionais, recombinando os significados das informações e suas formas de organização.

A memória e suas “imagens da imagem do mundo” na crise pós-histórica

O espírito da crise identificada por Flusser, sobretudo nas artes, parece haver emergido nos primeiros anos da década de 1960, segundo Santaella (2005). Um dos pontos do surgimento da arte pós-modernista, afirma a autora, se dá precisamente a partir do instante em que as vanguardas artísticas modernas encaram o fracasso de sua transformação em arte de elite: “uma arte que paradoxalmente era preservada e cultuada nos mesmos museus que os futuristas haviam jurado destruir.” (SANTAELLA, 2005, p. 47). Ou seja, as artes de vanguarda modernistas fracassaram ao abandonar a promessa de seu potencial transformador.

O que emergiu na cena artística no período das décadas de 1960, e que se consolidou de 1970 em diante, foi um enorme crescimento das novas tecnologias e, principalmente, a discussão sobre a natureza das máquinas, suas promessas e o futuro da sociedade, nomeada de diversas formas. “Ideias acerca de uma sociedade pós-mecânica, pós-industrial e pós-moderna” (SANTAELLA, 2005, p. 46), eram alguns desses termos em um contexto no qual surgiram o minimalismo, a arte pop, a arte povera (palavra italiana que significa "pobre"), até a consolidação da arte tecnológica, a partir de 1980, em que já não existia mais obstáculos para interromper a conexão entre as artes e os meios de comunicação.

Que pelo menos para Flusser se trata efetivamente de uma crise traumática, resta pouca dúvida quando se constata a quantidade de vezes que a palavra “crise” aparece numa simples busca na plataforma Flusser Brasil, portal que congrega inúmeros manuscritos do filósofo. Inaugurada em 2014 por dois pesquisadores da obra do pensador, Gustavo Bernardo e Rainer Guldin, a plataforma elenca nove títulos de textos flusserianos com o termo. Os textos envolvem diferentes temas: educação, ciência, política, guerra etc. Eles evidenciam a situação paradoxal dos sistemas comunicacionais que, se por um lado produzem uma massiva disseminação de informações, por outro reconfiguram seus códigos e símbolos com excessiva facilidade, tornando cada vez mais incerta a veracidade dos dados e a confiabilidade dos fatos, dada a quantidade de notícias e o quanto elas podem ser modificadas.

Nesse contexto problemático, ainda é preciso acrescentar que os sistemas algorítmicos selecionam imagens, dados, comentários e notícias, moldando aquilo que recebemos nas plataformas de redes sociais por meio das nossas ações e reações sobre o que sentimos, gostamos, comentamos. Assim, processos e narrativas históricas vão sendo radicalmente recodificados à luz das tecnoimagens, e o jogo mnemônico vai sendo alterado para uma nova estética. Uma estética da memória e do esquecimento na pós-história flusseriana. Nesta altura, é importante apontar brevemente as mudanças na estrutura da comunicação no contexto pós-histórico. A condição tecnoimagética é simbolizada por Flusser como um novo paradigma não só para conceber a história humana senão também modificar subjetividades e processos comunicacionais. As imagens técnicas constituem e são constituídas por canais, gerando símbolos inusitados e difundidos por novas estruturas nas mensagens, vindas de sistemas de variadas linguagens, resultando em modelos diversificados de armazenamento e distribuição de informações.

É neste ponto, inclusive, que entendemos que Flusser não estabelece somente as imagens como objeto para exprimir suas ideias: a língua, a fábrica, a roda, a arte e, claro, as imagens técnicas e os meios comunicacionais são apenas alguns dos exemplos de sua procura pelos enigmas da comunicação da humanidade. Nos seus incontáveis escritos, extensamente catalogados nos arquivos alemão e brasileiro, além de trabalhos compostos por coletâneas de seus textos, como O mundo codificado (2007), é possível encontrar trechos cujas ideias centrais passam ao largo do tema das imagens, ao passo que estas aparecem nas reflexões como entidades muito além de simples fenômenos produzidos pelos meios de comunicação.

De certo, o que se encontra engendrado no pensamento flusseriano é o percurso para a instauração da tal crise contemporânea prognosticada pelo pensador, consolidada a partir das imagens das imagens do mundo (para usar de um termo flusseriano) no decorrer da história cultural. Muito frequentemente, Flusser destaca o papel da temporalidade para descrever como observa certos aspectos da sociedade. Já que a pós-história foi definida alguns parágrafos acima, é importante referir-se também aos momentos que a sucederam: a pré-história e a história flusserianas.

A definição de tais períodos emerge com riqueza de detalhes em Filosofia da Caixa Preta (2011b), mas estes são mencionados e descritos também em diversos outros textos breves. Logo no início da obra, encontramos uma seção de vocábulos chamado “Glossário para uma futura filosofia da fotografia”, no qual a pré-história é exposta como “domínio de ideias, ausência de conceitos; ou domínio de imagens, ausência de textos” (FLUSSER, 2011b, p. 13); história, por sua vez, implica uma “tradução linearmente progressiva de ideias em conceitos, ou de imagens em textos” (FLUSSER, 2011b, p. 12). Aqui se percebe como as imagens constituem elementos predominantes na sociedade pré-histórica, ao passo que a escrita é o elemento constitutivo do período histórico.

São notórios (como exposto já por vários pesquisadores) os “saltos” históricos que Flusser faz ao descrever as cenas da sua pré-história, história e pós-história. Contudo, é perceptível também a estratégia do pensador no intuito de apresentar, de maneira mais simples, que cada época traz uma sociedade mediada por elementos específicos (imagens tradicionais, escrita e imagens técnicas) como modelos organizacionais dos respectivos períodos. Muitas vezes, o teórico se utiliza desse modelo, mas seu foco está em outro dado: nas estruturas dos saberes e do trabalho, da nossa forma de pensar e de nossos processos cognitivos, de objetos como o automóvel, da construção das cidades, dos discursos políticos, das influências dos meios de comunicação em nossas vidas. Ainda que de modo implícito, o pensamento flusseriano é definitivamente materialista, ou seja, sempre preocupado em mostrar como instrumentos, objetos e ferramentas impactam nas mentalidades e hábitos sociais. Talvez seja inclusive esse ponto, ao lado da retomada da cibernética (que, depois, a teoria da mídia alemã iria definitivamente ressuscitar) [15] e da proposição de um pós-humanismo avant la lettre, que se localizam as “profecias” mais significativas do filósofo [16]. Esse materialismo de Flusser, que na sua fenomenologia dos gestos, por exemplo, expressa-se numa reflexão sobre a máquina de escrever, encontra ressonâncias significativas com a obsessão de Kittler pelo objeto na obra Grammophon, Film, Typewriter, de 1986 [17]. A máquina de escrever é um “apoio mnemônico” (Gedächtnisstütze) e uma ferramenta que representa a “materialização de toda uma dimensão da existência ocidental no século XX” (FLUSSER, 1993, p. 34). Ela tornou possível, por exemplo, uma forma de arte como a poesia concreta, e em seus ritmos e na materialidade de suas teclas ela colabora para a construção do pensamento. Há, claro, aqueles que consideram a escrita um empobrecimento, uma “arte povera” (FLUSSER, 1993, p. 40), da dimensão virtual da linguagem. Não Flusser, que sempre brincou com as relações entre Tasten (“teclas”, substantivo) e tasten (“sentir”, verbo), defendendo uma forma de conhecimento que “nasce inteiramente do contato com os objetos” (BOZZI, 2005, p. 9).

Em cada um de seus trabalhos, Flusser adota um modelo particular para definir os artifícios da humanidade na tentativa de tangibilizar como se estabelece a comunicação humana. Todavia, as articulações centrais de seu raciocínio – materialidade, liberdade, memória, abertura ao devir - permanecem como constantes.  Seu olhar sobre nosso momento histórico, que é, em verdade, o pós-histórico, ora esboça perspectivas otimistas, ora pessimistas. O mundo de imagens técnicas, ou melhor, o cenário da tecnoimaginação, do “imaginar tecnicamente” (FLUSSER, 2007, p. 136), é atravessado por paradoxos. Esses diagnósticos e prognósticos flusserianos são apostas que o autor faz naquilo que poderíamos definir como um pensamento do risco, e que o caracterizam como teórico de extrema atualidade.

As ciências e outras articulações do pensamento linear, tais como a poesia, a literatura, a música, estão cada vez mais se apropriando de recursos do imagético pensamento-em-superfície, e assim o fazem por causa do avanço tecnológico da mídia de superfície (surface media). E essa mídia, incluindo pinturas e anúncios publicitários, estão recorrendo cada vez mais aos recursos do pensamento linear [...]. Em suma, queremos dizer que o pensamento imagético está se tornando capaz de pensar conceitos” (FLUSSER, 2007, p. 118).

        Os dados digitais recodificam (novamente recorrendo a uma expressão flusseriana) a maneira como a humanidade se orienta no mundo, seus modos de existir em sociedade e de conceber a história. Nessa estruturação epistêmica, a tríade flusseriana (e cibernética) de armazenamento, processamento e transmissão possui papel central. A partir dessas articulações teóricas, importa perguntar quais os atores responsáveis pelo arquivamento das informações e que consequências eles trazem para a sociedade na pós-história flusseriana. Mais que isso, é preciso saber qual o papel das mídias da contemporaneidade no processamento dos dados históricos.

Considerações Finais

A partir do percurso realizado aqui, podemos elencar algumas conclusões preliminares: a primeira é que esses breves inputs, dada a vastidão da obra de Flusser, exprimem somente algumas de suas ideias sobre possíveis escapes de determinados abismos. Abismos tais como o de um mundo cujos sistemas informacionais encaminham o humano à entropia da informação e ao caos. Abismos de uma sociedade que frequentemente descuida de sua memória e não produz valores humanos, que não percebe a emergência de seres “vampyrotêuthicos” capazes de fazerem ressurgir Auschwitz ou qualquer outra visão programática verdadeiramente como “visão do absurdo” (FLUSSER, 2019, p. 28). Acima de tudo, ele adverte sobre o abismo de se fracassar com o outro, de não sobreviver dialogicamente a partir da memória desse outro.

Ao lembrarmos de inputs e outputs, categorias também tipicamente cibernéticas, somos levados a sempre retomar o tema da memória (do armazenamento, do arquivo). Sistemas cibernéticos, sejam eles máquinas, sejam seres vivos, operam em constante intercâmbio e feedback com o meio ambiente. Se tais sistemas não lograrem armazenar dados, aprender com as experiências passadas, nenhum estado de equilíbrio minimamente estável pode ser alcançado. A memória, que encontra na arte um locus vital, constitui, em Flusser, o polo central dos processos cibernéticos da sociedade. Numa era pós-histórica, ao menos no modo como ela se configura segundo o pensador, corremos sempre risco de incorrer numa incapacidade radical de registro. Sem a memória, qualquer ideia de história perde o sentido. A função do arquivo flusseriano está próxima da poética definição de Ernst (2002), como de uma permanente oscilação entre “um cemitério dos fatos e um jardim das ficções” (ERNST, 2002, p. 62) (tradução nossa) [18].

        A memória é, assim, instrumento para que possamos “sobreviver na memória dos outros” (segundo uma divisa repetida por Flusser em várias ocasiões), uma ferramenta para lutar contra a entropia e um importante componente do fazer artístico (criar uma obra, recordemos, é plasmar informação em um suporte material). Se perdemos a força da memória, tornamo-nos incapazes também de imaginar futuros, de projetar mundos. Esta pode manifestar-se como coisa (enquanto inscrita em determinada materialidade, como num livro) ou “não-coisa” (enquanto dado imaterial, ao ser arquivada em forma digital). Seu papel é tão central no pensamento de Flusser que se imbrica com os diferentes aspectos de sua reflexão sobre a natureza, a cultura, as tecnologias e as etapas da história.

A memória é, por fim, aquilo que permite a funcionalidade dos códigos e dos intercâmbios comunicacionais. Deste modo, se o excesso de memória pode ser fatal, como pensava Nietzsche [19], para Flusser, em sua devida medida, ela é sustentáculo da cultura e força estruturante dos códigos e da comunicação. E essa é uma lição que o pensador de Praga não nos deixará esquecer.

Notas

[1] A expressão “pelas barbas do profeta” (aus dem Bart des Propheten) vem do prefácio que Friedrich Kittler escreveu para Kommunikologie weiter denken, no qual afirma: “das barbas do profeta [Flusser] saíam palavras como relâmpagos” (KITTLER,  2009 apud FLUSSER, 2009, p. 10).

[2] Sobre essa tríade e sua importância na nova teoria da mídia alemã, à qual Flusser já foi também associado (Cf. Lovink, 84), ver Bergermann (2004).

[3] Utilizamos vários artigos tiposcritos do Arquivo Flusser que não apresentam identificação da data de confecção. Indicamos esses textos com a abreviatura s/d. As datas de acesso, porém, estão na seção “Referências”. Conforme os textos foram sendo acessados, a nomenclatura “a”, “b” – sendo “a” um acesso mais recente que “b” – e assim por diante, foi aplicada.

[4] Pensemos, por exemplo, nos atuais softwares de inteligência artificial para a geração de imagens, como Hypotenuse, Dream ou Midjourney, ou produtores de textos, como GPT-3.5, Magic Write e Jasper.

[5] Medien bestimmen unsere Lage.

[6] [...] les hommes qui connaissent l’objet technique.

[7] [...] la Cibernétique, em ce sens, libère l’homme du prestigie inconditionnel de l’idée de finalité.

[8] A esse respeito, ver Matusek (2009), bem como a argumentação apresentada por Felinto e Santaella (2012) sobre as contradições presentes na aliança flusseriana a Heidegger e à cibernética.

[9] Vampyrotheutis Infernalis é tanto o título da obra como o nome científico de seu personagem central, a “lula-vampiro do inferno”, que na ficção filosófica de Flusser mescla elementos factuais com especulações imaginativas sobre a criatura marinha.

[10] Na versão em alemão, Flusser usa o termo Tücke, que também pode ser traduzido como “ardil”, “malícia”, “astúcia”.

[11] Ver, por exemplo, a matéria “DNA could store all of the world’s data in one room”, publicada na Revista Science em 2 de março de 2017. Cf. <https://bit.ly/45e9Cfu>. O tropo de Flusser como pensador profético é uma figura recorrente na literatura sobre o autor. Está presente não apenas na frase de Kittler anteriormente mencionada, mas em várias outras recensões sobre o pensador, como no prefácio de Stefan Bollman a Kommunikologie, no qual se afirma: “nos domínios de fala alemã, Flusser foi frequentemente qualificado como profeta de uma era na qual as tecnologias digitais proporcionariam à humanidade um futuro brilhante” (BOLLMAN, 1999 apud FLUSSER, 1999, p. 7). Também nesse sentido do “profetismo”, Flusser faz jus à sua herança cultural judaica.

[12] Symbolization, or the abstraction of communication into information, is an attempt to hold mortality at bay. When I insist on the materiality of an image, I draw attention to its aspects that escape our symbolic recognition.

[13] [...] indexes several levels of material, interconnected life.

[14] Por temporalidade intensiva, entendemos a noção de uma história não linear, na qual cada momento possui densidade e qualidades específicas, evitando, assim, a sensação de um tempo homogêneo que é marca característica da experiência do progresso, segundo Benjamin (2012).

[15] Ver o já citado trabalho de Bergermann (2004) sobre a teoria da mídia alemã.

[16] Vale lembrar que, também de forma quase profética, Flusser é um dos primeiros autores que, já no início da década de 1990, usa a expressão pós-humanismo: “uma nova antropologia pós-humanista, ‘pós-moderna’, encontra-se em desenvolvimento” (FLUSSER, 1998, p. 18). A primeira edição da obra é de 1994, mas Flusser provavelmente já estava compondo o trabalho desde fins dos anos 1980.

[17] Kittler (1986) lembra, por exemplo, que Nietzsche precedeu McLuhan ao afirmar que “nossos instrumentos de escrita trabalham em conjunto com nosso pensamento”, e foi, também, um pioneiro no uso da máquina de escrever, que teria, inclusive, produzido determinados efeitos em suas formas de filosofar (KITTLER, 1986, p. 293).

[18] [...] einem Friedhof der Fakten und einen Garten der Fiktionen.

[19] Ver a seção Vom Nutzen und Nachteil der Historie für das Leben, em Unzeitgemässe Betrachtungen (NIETZSCHE, 1967).

Referências

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