Linguagem memética e memória afetiva:

análise das estratégias editoriais na divulgação do retorno das telenovelas antigas na plataforma de streaming Globoplay

Valdemir Soares dos Santos Neto1 e Mário Abel Bressan Júnior2

Resumo

Desde o lançamento em 2015, o Globoplay, plataforma de streaming do Grupo Globo, tem ampliado sua participação no segmento do audiovisual brasileiro. Dentre as numerosas estratégias adotadas pela plataforma, o resgate das telenovelas antigas da TV Globo é entendido como parte do esforço da escalada da organização. O presente estudo tem como objetivo analisar as estratégias de comunicação adotadas no Instagram do Globoplay com vistas a publicizar o retorno dos títulos antigos na plataforma. Como pressuposto, acredita-se que, como uma tentativa de reter a atenção do público jovem para o consumo das telenovelas antigas, os memes são utilizados dentro das estratégias editoriais da plataforma como forma de mobilizar o engajamento em torno desses produtos. Neste sentido, foram coletadas 2.577 postagens no perfil oficial da plataforma no Instagram e, a partir das técnicas de tratamento de dados da Análise de Conteúdo (BARDIN, 1977), foram subcategorizadas 205 publicações ligadas ao projeto de retorno dos títulos antigos. Como esforço da discussão, o estudo evidencia a força dos memes dentro dessa articulação com a memória afetiva do telespectador, e sinaliza o uso da linguagem memética para “revitalizar” essas obras e torná-las mais engajáveis diante desta cultura participativa.

Palavras-chave

Cultura da convergência; Memes; Memória; Globoplay; Telenovelas.

1 Doutorando pelo Programa de Pós-Graduação em Ciências da Linguagem da Universidade do Sul de Santa Catarina. E-mail: valdemirnetto@gmail.com.

2 Doutor em Comunicação Social pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUCRS). E-mail: marioabelbj@gmail.com.

Memetic language and affective memory:

analysis of editorial strategies in promoting the return of old telenovelas on the Globoplay streaming platform

Valdemir Soares dos Santos Neto1 and Mário Abel Bressan Júnior2

Abstract

Since its launch in 2015, Globoplay, Grupo Globo’s streaming service, has expanded its participation in the Brazilian audiovisual segment. Among the many strategies adopted by the platform, the use of old telenovelas from TV Globo is understood as part of its strategy. This study aims to analyze the communication strategies adopted on Instagram by Globoplay with the goal of publicizing or returning two old titles to the platform. We assume that, as an attempt to retain the attention of the young public for the consumption of old telenovelas, memes are used within the editorial strategies of the platform as a way of engagement. In this sense, we collected 2,577 posts on the official profile of the platform on Instagram and, based on the data processing techniques of the Content Analysis (BARDIN, 1977), 205 publications linked to the project of the old telenovelas were subcategorized. The study evidences the strength of memes and indicates the use of memetic language to “revitalize” these audiovisual contents and make them more engaging in the context of this participatory culture.

Keywords

Culture of convergence; Memes; Memory; Globoplay; Telenovelas.

1 Doutorando pelo Programa de Pós-Graduação em Ciências da Linguagem da Universidade do Sul de Santa Catarina. E-mail: valdemirnetto@gmail.com.

2 Doutor em Comunicação Social pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUCRS). E-mail: marioabelbj@gmail.com.

Introdução

Nos últimos anos, o interesse do público jovem em novelas antigas tem chamado atenção das indústrias televisivas, em especial do Grupo Globo. Com base nos anseios da plataforma em consolidar-se no segmento de streaming audiovisual brasileiro, Ramos e Borges (2021) observam que o Globoplay tem buscado meios de se conectar com o público mais jovem, visto que estes se tornaram consumidores em potencial do vasto repertório audiovisual existente na plataforma.

Face aos altos índices de audiência das telenovelas antigas durante o período pandêmico (JACKS et al., 2020), em abril de 2020, o Globoplay iniciou o projeto de recuperação e retorno das telenovelas antigas do Grupo Globo na plataforma. Para Bressan Júnior (2019), o consumo desses produtos audiovisuais trata-se de uma experiência na qual o telespectador se defronta diante de distintas realidades e contextos sociais distantes do que se observa nos dias de hoje. Entre 2020 e 2021, os títulos antigos figuraram entre as produções mais assistidas da plataforma, sobrepondo a audiência de obras inéditas disponíveis no catálogo (SANTOS NETO; LESSA; BRESSAN JÚNIOR, 2023).

Para publicizar a chegada dos títulos na plataforma, a organização mobilizou diversos conteúdos promocionais em suas redes sociais para chamar a atenção do público. Em especial, do público jovem que não teve acesso à obra original no período de exibição, e que de acordo com Erick Brêtas (2020), diretor de mídias do Globoplay, é visto como público em potencial dessas obras.

No entanto, a chegada dos títulos antigos na plataforma configura-se apenas como parte final de um conjunto de estratégias responsáveis as quais possibilitam o acionamento da memória afetiva do telespectador. São estratégias que podem desencadear no usuário um sentimento de nostalgia por algo ainda não vivenciado e que, a priori, direcionam esses usuários ao consumo pela via da memória afetiva.  Nesse sentido, existem ainda outros elementos submersos nesse esforço do projeto do Globoplay, como é o caso das estratégias de publicização nas redes sociais da plataforma.

        Com vistas a obter um cenário mais denso em relação às estratégias de comunicação mobilizadas pela plataforma na oferta de telenovelas antigas, o presente estudo tem como objetivo analisar as estratégias de comunicação adotadas no Instagram do Globoplay com vistas a publicizar o retorno dos títulos antigos na plataforma de streaming. O foco da análise incide na mobilização da linguagem dos memes na publicização desses títulos.

Para atingir o objetivo delimitado, o estudo apresenta um levantamento de todas as publicações realizadas no perfil da plataforma no Instagram, compreendidas dentro do período de um ano (01/03/2020 a 01/03/2021) e, com auxílio da Análise de Conteúdo (BARDIN, 1977), categoriza os conteúdos publicizados com foco na divulgação dos títulos antigos, bem como analisa essas publicações do ponto de vista da linguagem memética mobilizada na construção dessas peças comunicacionais.

Memória e afetividade em contexto de pandemia: o caso Globoplay

Com o avanço da pandemia de Covid-19 no país, a reexibição de telenovelas antigas tornou-se uma alternativa viável ao Grupo Globo, tendo em vista o interrompimento das gravações das tramas inéditas em veiculação impostas pelas medidas restritivas de isolamento (LEMOS; ROCHA, 2022). Quando olhamos para o ano de 2020, vemos como numerosas reprises foram responsáveis por alavancar a audiência da emissora, de modo a superar, inclusive, índices de audiência de obras inéditas exibidas em anos anteriores (JACKS et al., 2020). Tal fator aparenta ter relação com outros aspectos como o aumento de pessoas confinadas durante o período de quarentena e, certamente, o fascínio do telespectador brasileiro pelos folhetins novelescos (LEMOS; ROCHA, 2022).

A título de exemplificação, a reprise de Fina Estampa (2011) rendeu feitos interessantes à emissora em termos numéricos, veiculada na principal faixa de horário dedicada à telenovela carro-chefe da emissora. A reexibição do último capítulo da novela, após 26 semanas no ar, atingiu 37,6 pontos de audiência (rating points), além de ter uma participação (share) em torno de 55% dos televisores ligados naquele momento (NOTÍCIAS DA TV, 2020). Tal feito superou o final da novela O Sétimo Guardião, exibida em 2019. Na época, a produção teve o seu desfecho com 34,2 pontos de audiência, com média geral de 28,8 pontos. Já durante o período de reexibição de Fina Estampa, a média geral obtida foi 33,6 pontos.

Isto posto, os números concernentes à audiência estimulados pelo isolamento social trouxeram, evidentemente, novas perspectivas ao Grupo Globo em relação à recirculação desses produtos. Nesse sentido, face aos altos índices de audiências obtidos pelas reprises em exibição na grade de programação da TV Globo, os meses subsequentes de 2020, até o presente momento, consistiram na disponibilização de diversos títulos antigos da organização na plataforma Globoplay. Trata-se do projeto de retorno dos títulos antigos do Grupo Globo.

O projeto de recuperação e disponibilização das telenovelas se iniciou em abril de 2020 com a disponibilização na íntegra da novela A Favorita, exibida em 2008. Inicialmente a plataforma anunciou o processo de resgate de 50 títulos até o final de 2020, sendo duas disponibilizadas quinzenalmente. Visando contemplar aspectos como a preservação da qualidade técnica das produções e a remasterização de determinadas produções, desde novembro de 2021, o projeto de retorno dos títulos antigos dividiu-se em duas vertentes, sendo o projeto originalidade e o projeto resgate (SANTOS NETO; BRESSAN JÚNIOR, 2022).

A partir de Holdsworth (2011), podemos entender esse movimento da organização como uma forma de oportunizar ao telespectador um retorno seguro ao passado que pode ser desencadeado por um sentimento de “nostalgia”, e que pode se dar a partir de uma experiência vivida ou não vivenciada. A reexibição ou o retorno de um produto televisivo não se limita, estritamente, a um grupo seleto de telespectadores. O sentimento de nostalgia não advém, exclusivamente, do prévio contato do telespectador com o produto em si.

A própria questão do sentimento nostálgico pode ter relação com o sentido que o telespectador atribui a um produto, visto que a memória também sofre interferência do tempo presente (POLLAK, 1992; LE BRETON, 2009). Como observou Le Breton (2009, p. 119) ao tratar dos afetos, entende-se que “as reminiscências podem brotar de uma livre associação, da percepção de um odor, de uma paisagem ou mesmo de um nome, os quais revivificam uma história passada”. Isto significa que o sentimento afetivo pode partir da relação que o telespectador faz entre o produto e outros fatos e acontecimentos – lembranças de um período, pessoas, lugares, entre outros atravessamentos, como explicitado por Pollak (1992).

Ao examinar a relação da nostalgia com o contexto globalizado na sociedade contemporânea, Appadurai (1996) parece concordar com a ideia de uma memória “sem memória”. O autor defende a existência de uma nostalgia efetivamente possível sem o acionamento de uma memória vivenciada. A nostalgia sem memória se torna possível graças às experiências midiatizadas que nos são facultadas decorrentes desta cultura imagética, na qual são oportunizadas, por um esforço mercadológico, possibilidades em rememorar o tempo passado, a partir de produtos midiáticos que se utilizam de construções estéticas e visuais ligadas à cultura da memória (APPADURAI, 1996).

O argumento de Appadurai (1996) converge com os escritos de Le Breton (2009) ao concordar que somos movidos pelos afetos. Como observado pelo autor, enquanto seres pensantes, as nossas emoções são desencadeadas, muitas vezes, por pensamentos e/ou lembranças inexistentes ou por associações que fazemos aos objetos, lugares, e outras possibilidades. A sensação de euforia ou contentamento em relação a um determinado passado pode emergir, por exemplo, a partir da crença do indivíduo na qual acredita-se que o passado seria melhor que o presente.

Neste sentido, Holdsworth (2011) defende que o retorno seguro ao passado pode, além disso, ser desencadeado pela sensação do “não vivido” - especialmente àqueles que não acompanharam a reexibição de um produto televisivo. Neste caso, o sentimento de “nostalgia” se materializa pela impossibilidade em reviver tal período, o que levaria o telespectador a acreditar que um determinado momento do passado seria visto como glorioso, majestoso (GOULART RIBEIRO, 2018). Isto é, a nostalgia [1] como uma contraposição ao presente ou ao futuro.

O projeto de retorno das telenovelas antigas, endossado pelo forte apelo memorialístico, parece estar atrelado a esse mercado da nostalgia no qual busca-se mobilizar o telespectador ao consumo televisivo; na curiosidade implícita por uma busca de um passado desconhecido. Para dar conta dessa comunicação, em especial quando tratamos de um público jovem, as redes sociais parecem atuar como uma poderosa ferramenta na interpelação desse público. O desejo de retornar ao passado, as experiências e os sentimentos evocados por essa revisitação, demonstram o interesse do Globoplay na evocação das memórias afetivas, no poder de agenciamento nostálgico no telespectador.

Sob nossa perspectiva empírica, acreditamos que, dentro das estratégias editoriais adotadas pela empresa, os memes são utilizados como parte de um conjunto de estratégias essenciais nessa interpelação do público jovem. Para explicitar a força dos memes, discutiremos no próximo tópico as questões teóricas e conceituais a respeito dessa linguagem, a fim de compreendermos as análises editoriais utilizadas pela plataforma na confecção de suas peças publicitárias.

Memes no contexto das redes sociais

No contexto da cultura digital, os memes são entendidos como objetos compartilháveis em espaços e zonas de conversação capazes de serem recompartilhados e difundidos por outros usuários em rede (JENKINS, 2009). Podem se constituir de imagens, textos, vídeos, sons e outros que possam se propagar pela internet. Geralmente, estão ligados à premissa do entretenimento e do humor, daquilo que pode ser satirizado.

Para compreendermos a questão dos memes dentro destas estratégias mobilizadas pela plataforma, retomamos a etimologia do conceito de “meme”, de modo que seja possível compreender sua aplicabilidade dentro das estratégias comunicacionais. O termo “meme” foi introduzido em 1976 pelo biólogo evolucionista Richard Dawkins. Etimologicamente, a palavra “meme”, derivada do grego, μιμέμαι (“mimema”), ou mimese, expressa a ideia de imitação.

O conceito de meme está relacionado ao sentido de propagação, disseminação de algo – o conhecimento, ideias, são propagáveis e que são processos tanto biológicos quanto culturais. Dentro deste conceito de meme abordado por Dawkins (1976), Rushkoff (1994) também se utiliza do conceito de propagação para tratar os “memes” como “vírus da mídia”. É importante destacar que as discussões epistêmicas em relação aos memes apresentam, em diversos momentos, convergências e divergências. Em especial as terminologias utilizadas para tratar desses fenômenos midiáticos.

Para Jenkins, Green e Ford (2014), o termo mais adequado à utilização dos memes é o alto potencial de “propagabilidade”, o que constituiu um meme como uma “mídia propagável”. A propagabilidade diz respeito à capacidade de um conteúdo ser compartilhado, engajado. Sob essa perspectiva, Jenkins, Green e Ford (2014) acreditam que a expressão “viralizar” não deve ser entendida como um sinônimo para conteúdos propagáveis. Ao assumir que um conteúdo propagável seja “viralizável” nas plataformas sociais, presume existir aí um certo controle sobre a disseminação desses conteúdos. Por este motivo, como oposição à ideia de viralização, os autores propõem o termo “propagabilidade” como um conceito que norteia essa ideia de conteúdos que possam ser propagados por usuários, de acordo com os seus interesses.

Para compreendermos os memes, enquanto um objeto de estudo comunicacional, para este estudo mobilizamos as contribuições de Marino (2018), para alçarmos uma compreensão teórica sobre essa linguagem memética. Para o pensador italiano, um típico meme da internet apresenta duas características principais: o gancho sintático e o gancho semântico. Sob a perspectiva semiológica, o meme trata-se de um texto derivado e, portanto, advém de uma estrutura sintática, uma fórmula ou modelo pré-estabelecido. Segundo Marino (2018), a estrutura é o que permite com que ocorra o que o autor entende como “operações de manipulação (bricolagem)” a partir do conceito proposto por Lévi-Strauss (1962), o que garante sua reprodutibilidade.

A reprodutibilidade de um meme ocorre em diferentes níveis de reinterpretação, como sugere (SPAZIANTE, 2007): interpretativa (sampling); manipulativa (remixing); ou reinterpretativa (remaking). O sampling consiste em uma hipertextualidade, a partir da extração de um segmento de um texto já existente. O remixing envolve a modificação propriamente de um texto pré-existente. Já o remaking trata-se de uma recriação de um texto pré-existente, sendo que esse não apresenta relação com a forma original. No caso dos dois primeiros níveis, temos um processo de transformação, enquanto no último nível nota-se um processo de imitação (SPAZIANTE, 2007).

Neste sentido, ao tratar-se de um texto derivado, os memes constituem-se a partir de um “erro” presente no texto original, com base na leitura de Shifman (2013). O erro do texto original se constitui como um gancho semântico “que atrai a atenção do usuário, tornando o texto suscetível à seleção e disseminação memética, assim como as características físicas proeminentes e peculiares de uma figura pública estão sujeitas à paródia ou imitação” (MARINO, 2018, p. 32). Por esse motivo, o autor destaca que o meme, para que seja propagável, precisa conter um elemento marcante. É justamente este fragmento marcante que propicia o engajamento e mobiliza a discussão em rede. Comumente, os memes são associados ao humor, à sátira, em que ocorrem também uma apropriação de elementos como personagens, situações, e outros ícones ou símbolos de fácil identificação – o gancho semântico.

Marino (2018, p. 33) destaca que “a longevidade de um meme se deve à sua fecundidade, em detrimento de sua fidelidade (sua lealdade ao texto original)”. A lealdade ao texto original é o que facilitaria, a priori, a rápida identificação do usuário. Sob esse entendimento, para que a propagação de um meme aconteça, é preciso haver uma correlação entre os elementos constitutivos do meme (affordance) e o conhecimento específico do usuário em reconhecer e decodificar essas mensagens (competência). Ora, um conteúdo viral propaga, “mas não envolve nenhuma exigência textual particular, nem a manipulação de um texto preexistente”, aponta Marino (2018, p. 22). No entanto, nem todo conteúdo que adota uma linguagem memética torna-se viral, assim como nem todo viral advém propriamente dotado de uma linguagem memética.

A partir dessa compreensão, perceberemos que os memes são entendidos dentro do campo da comunicação como objetos que, em razão da sua estrutura hipertextual, demandam, a priori, pouco esforço para atingir um grau de compreensão. Entretanto, também não podemos negar um possível letramento para habilitar os usuários na compreensão das práticas meméticas.

Com base nessas colocações, entenderemos que a linguagem memética pode ser utilizada como forma de interpelar o público e, sobretudo, mobilizar o engajamento por tratarem-se de elementos com alto grau de propagabilidade, como defendem Jenkins, Ford e Green (2014). A estrutura de um meme, segundo Marino (2018), deve dar condições para que os usuários contextualizem e repliquem esses conteúdos, permitindo que se apropriem, modifiquem e recriem esses textos.

Dada essas definições teóricas, buscaremos, no próximo tópico, compreender como os memes foram utilizados dentro das estratégias comunicacionais da plataforma na publicização dos títulos antigos.

Procedimentos metodológicos

Tendo em vista a complexidade em delimitar todas as estratégias comunicacionais utilizadas pelo Globoplay, buscamos identificar e analisar as estratégias editoriais mobilizadas no perfil da plataforma no Instagram na publicização dos títulos antigos. Diariamente, o perfil informa o telespectador sobre os lançamentos da semana, além de promover outros produtos que compõem o catálogo da plataforma.

         Para tanto, realizamos o levantamento de todas as publicações que ocorreram no perfil da plataforma no Instagram (@Globoplay), compreendidas dentro do período de um ano (01/03/2020 a 01/03/2021). Jacks et al. (2020) destacam que, com o início da pandemia, as produções televisivas obtiveram índices expressivos de audiência, diante das medidas restritivas e de isolamento social, o que tencionou substancialmente o consumo audiovisual no último ano. Portanto, acreditamos que a escolha deste período nos possibilita uma clara concepção no que se refere ao uso das estratégias de publicização operacionalizadas pela plataforma, sob a premissa das possibilidades de retenção do telespectador a partir do acionamento da memória afetiva.

Em relação às questões teórico-metodológicas, optamos pelo enquadramento da Análise de Conteúdo (AC) (BARDIN, 1977) para dar conta da organização e análise do volume de dados coletados. Após a coleta dos dados, o próximo passo consistiu no processo de leitura flutuante e organização do material coletado a fim de verificar a recorrência dos títulos antigos contidos nestas publicações, conforme orienta o protocolo metodológico da AC. Deste modo, foram considerados como critérios de inclusão, para fins de análise, postagens com referências e alusões a tais produtos televisivos foco deste trabalho.

As postagens do Instagram foram coletadas por meio de um script utilizando a linguagem de programação Python. No total, foram coletadas e analisadas cerca de 2.577 postagens extraídas do perfil oficial do Globoplay no Instagram. Com o auxílio do Excel®, os dados foram tabulados e, posteriormente, organizados de acordo com a data de publicação. Como o foco deste trabalho consiste na identificação das postagens que visavam a publicização dos produtos mnemônicos nas redes sociais da plataforma, a etapa da análise consistiu em elencar quais produtos foram mobilizados nas respectivas postagens. Para tanto, o primeiro passo diz respeito ao processo de definição das Unidades de Contexto e das Unidades de Registro delimitadas, conforme orienta os preceitos metodológicos da Análise de Conteúdo (BARDIN, 1977).

As unidades de contexto “determinam que parte do material recolhido necessita ser analisada para caracterizar uma dada Unidade de Registro” (BARDIN, 1977, p. 107). Estas unidades são excertos, partes ou trechos significativos que conduzem à identificação das Unidades de Registro. Para Bardin (1977), o recorte das mensagens ou do segmento extraído garante ao pesquisador uma organização robusta, permitindo-o regressar ao contexto de qualquer Unidade de Registro ao longo do processo de codificação dos dados da pesquisa. A unidade de contexto serve, portanto, para compreender a unidade de registro.

Para dar conta da exaustão dos documentos extraídos das redes sociais da plataforma, as unidades de contexto foram delineadas de acordo com o objeto/item (produto audiovisual) identificado em cada publicação. Após o processo de delimitação das unidades de contextos, o próximo passo consistiu em identificar as unidades de registros condizentes com cada excerto delimitado. De acordo com Bardin (1977, p. 104), as unidades de registros são concebidas como “uma unidade de significação a codificar e corresponde ao segmento de conteúdo a considerar como unidade base, visando a categorização”. Podem se dar de distintos tipos: palavra, tema, personagem, item e outros critérios.

Como resultado dessa engrenagem metodológica, chegamos às seguintes categorias, bem como suas respectivas definições dispostas no Quadro 1:

Quadro 1 - Definições das categorias temáticas das publicações coletadas do Instagram.

https://bit.ly/44jXJUB 

Fonte: Elaborado pelos autores (2022).

As categorias são, por tabela, o reagrupamento das unidades de registros; trata-se de um percurso recursivo, ou seja, que retorna às unidades de registros. De acordo com Bardin (1977), as categorias podem ser entendidas como “rubricas ou classes, as quais reúnem um grupo de elementos (unidades de registro, no caso da análise de conteúdo) sob um título genérico, agrupamento esse efetuado em razão das características comuns desses elementos” (BARDIN, 1977, p. 117).

Após este processo de categorização temática, a próxima etapa consistiu na demarcação da frequência das publicações inseridas dentro de cada categoria. Como se observa na Tabela 1, nesta primeira, todas as publicações foram analisadas e categorizadas, sem critérios de inclusão pré-definidos.

Tabela 1 - Frequência de publicações por categorias temáticas (geral).

https://bit.ly/3YQvHyY 

Fonte: Elaborado pelos autores (2022).

Dentre as 535 publicações categorizadas como “Produções TV Globo”, o próximo passo consistiu em subcategorizar as publicações a partir do seguinte critério: a unidade de contexto em questão se refere a uma telenovela antiga do Grupo Globo?

Deste refinamento, o estudo identificou 205 publicações referentes aos títulos antigos do Grupo Globo que chegam à plataforma. Com este número amostral definido, o movimento seguinte consistiu na identificação das linguagens mobilizadas na construção dos conteúdos utilizados na publicização desses títulos. A Tabela 2 nos apresenta, de maneira ordenada, os conteúdos editoriais mobilizados pela plataforma bem como a respectiva frequência na publicização dos títulos antigos.

Tabela 2 - Frequência das linguagens semânticas nas publicações do Instagram.


https://bit.ly/3qCOJw1 

Fonte: Elaborado pelos autores (2022).

Como observa-se, a linguagem dos memes ocupa cerca de 40% das estratégias de comunicação na divulgação dos títulos antigos na plataforma. Além disso, o estudo verificou que, dentro das publicações mais engajadas [2] no perfil do Instagram, os memes figuram no topo, conforme apresenta a tabela 3. Cabe destacar que a categoria “Outros” (Tabela 1 e 2) consiste no agrupamento de postagens de diversos estilos e linguagens, mas que apresentaram pouco volume e, portanto, foram classificadas em única categoria.

Tabela 3 - Ranking de engajamento das publicações no Instagram.

https://bit.ly/45eD5qk 

Fonte: Elaborado pelos autores (2022).

        Para dar conta da análise dos dados coletados, buscaremos no próximo tópico discutir os resultados encontrados ao longo do percurso analítico.

Análise e discussão dos resultados

As redes sociais se tornaram um espaço profícuo para o telespectador desta cultura hipermidiática (JENKINS, 2009). Além de possibilitar a interação entre os telespectadores, o uso das redes sociais também tem estreitado a relação entre as instâncias midiáticas e os seus consumidores. O telespectador se apropria dessas plataformas sociais para elogiar e reivindicar suas produções favoritas, bem como externalizar suas frustrações e sugestões (JENKINS, 2009).

De tal maneira, na busca pelo engajamento, o uso dos memes nas redes sociais tornou-se um recurso frequente no cotidiano dos usuários das plataformas digitais. Inicialmente, percebemos que a utilização da linguagem dos memes se faz presente, majoritariamente, nas publicações realizadas pela plataforma no Instagram com vistas a publicização dos títulos antigos. Geralmente, ocorre também uma reapropriação de outros memes que são reatualizados de acordo com o interesse de quem o produz. Neste caso, o interesse da plataforma consiste em criar uma relação de proximidade dos usuários desta cultura digital.

Neste sentido, ao tratarmos aqui da linguagem memética na construção dessas peças publicitárias, julgamos válido contextualizar de que maneira a mobilização dessas estruturas de linguagem se manifestam na publicização dos títulos antigos do Globoplay. Para tanto, apresentamos no Quadro 2, dois exemplos a serem analisados, posteriormente, à luz dos pressupostos apresentados.

Quadro 2 - Quadro comparativo de memes recriados vs. memes originais.

https://bit.ly/3ODIyQk 

Fonte: Elaborado pelos autores (2022).

Com base nos exemplos acima, observamos semelhanças entre o meme original e o meme recriado. Neste caso, nota-se que a estratégia editorial mobilizada consiste na reapropriação de um meme conhecido pelo público, ressignificando de acordo com os seus interesses, contudo, preservando as características que o constituem como meme. Como observado anteriormente por Ramos e Borges (2021 p. 23), tal “associação desenvolve uma relação entre as personagens e a linguagem do meme, que é constantemente utilizada pelos usuários do ambiente digital de diferentes faixas etárias, estimulando a sua propagação”.

        Nestes dois casos, temos um remaking de dois memes previamente existentes. Tratam-se de textos performáticos, “sendo resultado do que podemos chamar de práticas meméticas, como reencenar a ação exibida numa fotografia ou vídeo que serve como texto original” (MARINO, 2018, p. 27).

Para Jenkins (2009), o engajamento por meio dos memes trata-se muito mais de estabelecer vínculos sociais com público. E, por este viés, os memes são utilizados como parte dessas estratégias. Através do recurso hipertextual, os memes publicizados pela plataforma utilizam-se de expressões cotidianas e constroem um contexto propício que permite ao usuário compreender o sentido semântico manifestado nestas peças. O uso da palavra “contatinho” utilizada no meme da novela Roda de Fogo (1986) visa gerar uma aproximação do público jovem, ainda que permita com que os demais usuários compreendam a intertextualidade presente no meme. Nota-se como a linguagem memética é utilizada para “revitalizar” um produto lançado em 1986 e torná-lo mais engajável, propagável.

A partir dessas configurações, os memes são entendidos, dentro das estratégias de comunicação da plataforma, como formas de desdobrar as tramas e os personagens das obras supracitadas, apropriando-se da linguagem com vistas a gerar identificação com os seus telespectadores. Trata-se de uma estratégia em que se busca, desta forma, criar um efeito de buzz – movimento que gera conversação, especulação e discussão nas redes sociais (JENKINS; GREEN; FORD, 2014). E a linguagem memética é utilizada devido ao seu alto valor de propagabilidade.

No segundo meme (Quadro 2), vemos a personagem Dara de Explode Coração (1995), interpretada por Tereza Seiblitz, sentada em frente a um computador. A linguagem semântica sugere que a personagem se utiliza da ferramenta para atualizar suas redes sociais. É interessante observar que a produção em questão teve sua transmissão original na TV Globo em 1995, enquanto as redes sociais se tornariam popularmente difundidas em um período posterior a esse, em meados dos anos 2000. Contudo, a justaposição textual com a imagem permite que o usuário compreenda o sentido pelo qual o meme foi recriado, conferindo novos modos de ler o passado com base no tempo presente. Trata-se de um remake, como explicitado anteriormente.

No caso da Tabela 3, com exceção do meme da novela Mulheres de Areia, os outros dois memes não apresentam uma relação hipertextual a outros textos previamente existentes. Nestes casos notamos que o Globoplay não está, necessariamente, criando memes. Verifica-se, por suposto, que a plataforma mobiliza seus esforços para parecer um meme, dialogando com essas linguagens para acionar o repertório de seus usuários.

Dentro desses exemplos, observamos que as estratégias editoriais mobilizadas pela plataforma dialogam com os argumentos delineados por Jenkins (2009) ao compreendermos que a escolha da linguagem memética se dá pelo grau de proximidade com as comunidades de fãs, os noveleiros, vistos pela organização como público-alvo das estratégias mobilizadas como o público-alvo destas estratégias.

Outro aspecto a ser destacado na publicização dos títulos antigos refere-se à autorreferencialidade aos memes oriundos dos produtos audiovisuais do Grupo Globo, em especial as telenovelas que se originaram das produções do Grupo Globo. No Quadro 3 apresentamos dois exemplos.

Quadro 3 - Quadro comparativo de memes recriados vs. memes originais.

https://bit.ly/458NkMI 

Fonte: Elaborado pelos autores (2022).

Para divulgar a novela Mulheres Apaixonadas (2003), vemos uma reapropriação do meme da própria novela para anunciar a chegada do produto à plataforma. No segundo meme, vemos um frame da novela Vale Tudo (1988), com a personagem Heleninha em uma alusão ao meme da “Nazaré confusa”, personagem de Senhora do Destino (2004). Neste caso, nota-se que o meme da Nazaré confusa, que poderia ser considerado nostálgico do ponto de vista da linguagem dos memes, é utilizado para promover a chegada de Vale Tudo, um objeto ainda mais antigo do que Senhora do Destino.

A reapropriação desses memes demonstra, sobretudo, como o Grupo Globo também fornece elementos essenciais de modo que a cultura participativa de fãs se aproprie dos conteúdos ofertados pela organização. E, neste caso, vemos que a própria organização se utiliza dos memes originados a partir dessa reapropriação dos usuários. Brêtas (2020) reconhece que parte deste esforço visa interpelar o público mais jovem, visto por Jenkins (2009) como essencial na consolidação desta cultura da convergência.

A estratégia editorial com o uso dos memes na publicização destes clássicos, a partir do discurso de Brêtas (2020, On-line), consiste em “fazer esses conteúdos chegarem também a uma geração que não tenha referência da nostalgia”. São utilizados de modo a despertar a atenção, gerar certa curiosidade, estimular o interesse desse público em potencial. Com base nesses objetos apresentados, tomamos consciência de como a publicização dos títulos antigos envolve o manejo de estilos textuais e de tempos de diferentes mídias (linguagem da telenovela, linguagem das redes) para tornar esse texto propagável e mobilizar o engajamento da audiência.

Nesta concepção, entende-se que o projeto de retorno dos títulos antigos não se direciona, exclusivamente, aos telespectadores previamente cativados por estes produtos. Existe uma premissa ainda maior dentro das estratégias de divulgação desses produtos. Nestas circunstâncias, nota-se um esforço do Globoplay em captar a atenção do público jovem a partir do retorno dos títulos antigos. Como destacado por Holdsworth (2011), o retorno seguro ao passado pode não ter relação propriamente com a existência de uma memória vivida, como defende Pollak (1992) – o que reforça as proposições de Appadurai (1996) e Huyssen (2000). Os sentimentos afetivos podem emergir, também, de experiências não vivenciadas, como explica Le Breton (2009).

A premissa da memória afetiva consiste em compreender que um determinado produto pode desencadear lembranças afetivas. O que não implica, necessariamente, que as lembranças estejam relacionadas ao produto em si ou condicionadas a uma lembrança pré-existente. Acontece que o usuário pode fazer livres associações ao relacionar o produto a um determinado lugar, fato, pessoas (LE BRETON, 2009). Ao se deparar com o anúncio publicitário, outras lembranças podem ser acionadas. Ou, para além disso, o telespectador pode imaginar como seria ter vivenciado determinado período, a partir de uma curiosidade implícita sobre esse passado.

Conforme Pollak (1992) sugere, as lembranças podem ser desencadeadas por memórias herdadas, transmitidas de geração em geração. Ou, a partir da leitura de Appadurai (1996), podemos falar também da nostalgia possibilitada pelas experiências midiatizadas e pela cultura da memória (HUYSSEN, 2000), que atua nessa confabulação de memórias imaginadas. Quando tratamos aqui da questão das estratégias editoriais adotadas pelo Globoplay na publicização de seus produtos, fica evidente que os memes são utilizados, de maneira estratégica, visando interpelar o usuário pelo viés da memória afetiva – ou da ordem da memória teleafetiva (BRESSAN JÚNIOR, 2019).

O sucesso das telenovelas antigas parece despertar o interesse do público jovem, e o Grupo Globo observa esse movimento de reconfiguração nos hábitos de consumo dessa audiência. Para impulsionar o consumo das telenovelas antigas na plataforma, em julho de 2022 os Estúdios Globo criaram a websérie intitulada Novelei. Com um time de influenciadores, a produção recria diversas cenas clássicas de produções da TV Globo, utilizando da sátira e da comédia. Semanalmente os episódios eram divulgados no YouTube. A narrativa centra na história ficcional de um blackout de todas as telenovelas do acervo da emissora causado por um bug de computador e, neste caso, caberia aos influenciadores recriar todas essas produções como forma de salvá-las do esquecimento.

Com base nos dados coletados e discutidos, parece-nos factível considerar os memes enquanto uma estratégia interessante adotada pela organização na publicização dos títulos antigos. A linguagem memética predomina tanto na frequência dos estilos linguísticos adotados na confecção das peças utilizadas na divulgação do projeto (Tabela 2), como também nas publicações mais bem engajadas no perfil da plataforma no Instagram (Tabela 3).

Considerações Finais

Dado ao objetivo deste trabalho, que consistiu em analisar as estratégias de comunicação adotadas no Instagram do Globoplay com vistas a publicizar o retorno dos títulos antigos na plataforma de streaming, fica evidente nestes movimentos feitos pelo Globoplay como a plataforma articula suas estratégias de comunicação ao trazer recortes e fragmentos que circulam nos espaços de conversação nas redes sociais, visto tratar-se de temas que dialogam com o cotidiano do telespectador. Nota-se como o passado e presente se intercambiam, reatualizam significados e propiciam ao telespectador uma leitura do tempo passado sob a ótica do nosso tempo.

Dentre o vasto acervo que compõe as produções do Grupo Globo, as telenovelas antigas inserem-se também dentro deste esforço mercadológico e editorial, ao reforçar a magnitude dos produtos Globo na consolidação da plataforma em território nacional. Destacamos o uso da linguagem memética para “revitalizar” essas obras e torná-las mais engajáveis diante desta cultura participativa em que os fãs, noveleiros, permeiam e se apropriam da cultura dos memes.

Em relação às limitações deste trabalho, ressaltamos a escassez de dados, o que limitou a possibilidade de correlacionar o uso do memes com a adesão do público jovem nas assinaturas, tendo em vista que a plataforma adota uma política restrita quanto à divulgação de dados relacionados à sua audiência. Entretanto, com base nos dados apresentados, concluímos que o uso dos memes parece mobilizar a cultura participativa, manifestando-se como uma linguagem capaz de despertar o interesse do público ao revitalizar as narrativas antigas com o mundo digital contemporâneo e torná-las, assim, engajáveis.

Notas

[1] Faz-se necessário observar que a expressão “nostalgia”, geralmente, é entendida como um sentimento de melancolia, desconforto. “Algia” (saudade) e “Nostos” (a volta para casa). Neste sentido, o termo expressa uma sensação de saudade a algo que ficou no passado. Etimologicamente, o termo nostalgia fora forjado no âmbito da medicina como uma patologia, uma doença (a priori) incurável.

[2] A métrica leva em consideração a soma de comentários e curtidas dividida pela quantidade de seguidores do perfil.

Referências

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