As imagens como gesto militante no filme América Armada (Alice Lanari e Pedro Asbeg, 2018)

Márcio Zanetti Negrini1, Giancarlo Backes Couto2,

Giulianna Nogueira Ronna3 e Cristiane Freitas Gutfreind4

Resumo

Este artigo propõe-se a analisar as imagens como gesto militante no documentário brasileiro América Armada (Alice Lanari e Pedro Asbeg, 2018). O longa-metragem apresenta a atuação de três ativistas sociais, que vivem em diferentes países latino-americanos: Teresita Gaviria, na Colômbia; Raull Santiago, no Brasil; e Heriberto Paredes, no México. Esses personagens exercem suas militâncias por meio da produção de imagens, denunciando os impactos da violência armada em parte da população de seus países. A abordagem proposta para a análise do documentário é desenvolvida a partir de três eixos metodológicos: 1) a imagem-reparação, compreendida no contexto da personagem colombiana; 2) a imagem-escudo, entendida no âmbito do personagem brasileiro; 3) a imagem-vestígio, interpretada de acordo com a realidade do personagem mexicano. Assim, compreende-se as aproximações entre as experiências violentas e as formas de resistência praticadas por cidadãos latino-americanos, revelando a maneira pela qual as imagens de América Armada atuam como gesto militante na medida em que se constituem junto às imagens produzidas pelos ativistas que protagonizam o documentário. Isso acontece por meio dos enquadramentos, movimentos de câmera e pela montagem, expressando sentidos de denúncia social e resistência política.

Palavras-chave

Gesto Militante; Ativismo Social; Violência Armamentista; América Armada; Documentário Brasileiro.

1 Doutor pelo PPGCOM/PUCRS onde realiza pós-doutorado com bolsa do CNPq. Integrante do Kinepoliticom – Grupo de Pesquisa Cinema e Audiovisual: Comunicação Estética e Política (CNPq). E-mail: marcioznegrini@gmail.com.

2 Doutorando no PPGCOM/PUCRS com bolsa do edital Apoio a Projetos de Pesquisa Científica, Tecnológica e de Inovação - Doutorado (CNPq). Integrante do Kinepoliticom. E-mail: giancarlobcouto@gmail.com.

3 Doutoranda no PPGCOM/PUCRS com bolsa do CNPq. Integrante do Kinepoliticom. E-mail: ronnagiulianna@gmail.com.

4 Doutora em Sociologia pela Universidade de Paris V (René Descartes, Sorbonne). Professora Titular da PUCRS, vinculada ao PPGCOM e ao Curso de Graduação em Cinema. Bolsista de Produtividade em Pesquisa do CNPq. Líder do Kinepoliticom. E-mail: cristianefreitas@pucrs.br.

Images as a militant gesture in the film América Armada (Alice Lanari e Pedro Asbeg, 2018)

Márcio Zanetti Negrini1, Giancarlo Backes Couto2,

Giulianna Nogueira Ronna3 and Cristiane Freitas Gutfreind4

Abstract

This article aims to analyze images as a militant gesture in the Brazilian documentary América Armada (Alice Lanari and Pedro Asbeg, 2018). The feature film presents the performance of three social activists, who live in different Latin American countries: Teresita Gaviria, in Colombia; Raull Santiago, in Brazil; and Heriberto Paredes, in Mexico. These characters exercise their militancy through the production of images, denouncing the impacts of armed violence on part of the population of their countries. The approach proposed for the analysis of the documentary is developed from three methodological axes: 1) the reparation-image, understood in the context of the Colombian character; 2) the shield-image, understood within the scope of the Brazilian character; 3) the vestige-image, interpreted according to the reality of the Mexican character. Thus, the approximations between violent experiences and the forms of resistance practiced by Latin American citizens are understood, revealing the way in which the images of América Armada act as a militant gesture as they are constituted in the images produced by the activists who are featured in the documentary. This happens through framing, camera movements and editing, expressing nuances of social denunciation and political resistance.

Keywords

Militant Gesture; Social Activism; Armed Violence; Armed America; Brazilian Documentary.

1 Doutor pelo PPGCOM/PUCRS onde realiza pós-doutorado com bolsa do CNPq. Integrante do Kinepoliticom – Grupo de Pesquisa Cinema e Audiovisual: Comunicação Estética e Política (CNPq). E-mail: marcioznegrini@gmail.com.

2 Doutorando no PPGCOM/PUCRS com bolsa do edital Apoio a Projetos de Pesquisa Científica, Tecnológica e de Inovação - Doutorado (CNPq). Integrante do Kinepoliticom. E-mail: giancarlobcouto@gmail.com.

3 Doutoranda no PPGCOM/PUCRS com bolsa do CNPq. Integrante do Kinepoliticom. E-mail: ronnagiulianna@gmail.com.

4 Doutora em Sociologia pela Universidade de Paris V (René Descartes, Sorbonne). Professora Titular da PUCRS, vinculada ao PPGCOM e ao Curso de Graduação em Cinema. Bolsista de Produtividade em Pesquisa do CNPq. Líder do Kinepoliticom. E-mail: cristianefreitas@pucrs.br.

Introdução

        A escritura imagética da história por meio das imagens em movimento do cinema revela a experiência social, articulando memórias e saberes sobre fatos singulares e acontecimentos emblemáticos. Nos filmes, a relação entre formas expressivas e temáticas atua politicamente ao agenciar a sensibilidade e a consciência dos espectadores, promovendo indagações sobre a naturalização dos métodos de dominação praticados contra sujeitos e grupos sociais.

        Nessa perspectiva, este artigo faz parte de uma pesquisa sobre documentários brasileiros produzidos ao longo da última década. Trata-se de uma investigação centrada na compreensão das características estéticas, narrativas e temáticas de filmes que dialogam com as diferentes estratégias de produção de imagens praticadas por ativistas sociais. São representativos do conjunto de longas-metragens títulos como Ressurgentes, um filme de ação direta (Dácia Ibiapina, 2014), Rio em Chamas (Daniel Caetano e outros, 2014), Levante! (Susanna Lira e Barney Lankester-Owen, 2014), O que resta de Junho (Carlos Leal, Diego Felipe e Vladimir Santafé, 2016), Espero Tua (Re)volta (Eliza Capai, 2019) e A nossa bandeira jamais será vermelha (Pablo López Guelli, 2019). Para abordagem do tema neste texto, centralizamos nossa discussão em América Armada (Alice Lanari e Pedro Asbeg, 2019). A narrativa do filme desenvolve-se a partir de situações observacionais e interações diretas realizadas pelos documentaristas com três militantes de direitos humanos, personagens que vivenciam e denunciam o impacto do armamentismo promovido pelas negligências e excessos dos Estados colombiano, mexicano e brasileiro.

        América Armada relaciona-se com a tradição do cinema militante que, desde o início do século XX, produz filmes para o combate político, social e de reparação histórica. Numa perspectiva contemporânea, marcada pela ênfase na produção de documentários, América Armada corresponde-se com filmes militantes que investigam em profundidade causas específicas, como as reivindicações de grupos sociais minoritários, as conflagrações em áreas urbanas e rurais e as consequências da guerra (PINEL, 2009).

        Nesse sentido, cabe destacar a potencialidade dos documentários em sobressair os seus contextos de enunciação. Os filmes apresentam o posicionamento de quem filma frente ao mundo revelado, para chamar atenção aos aspectos políticos e sociais dos acontecimentos, considerando as singularidades dos sujeitos envolvidos. Os documentários produzem posições críticas diante de fatos que possuem diferentes graus de realidade e modos de existência (NINEY, 2015). Assim, atuam na organização da memória social ao testemunhar acontecimentos do passado e do presente, inferindo na realidade e possibilitando os agenciamentos de ação social e política.

        Em América Armada, observamos a experiência da ativista colombiana Teresita Gaviria, que, após perder o filho no contexto dos conflitos armados que afligem o país há mais de 50 anos, atua frente à Asociación Caminos de Esperanza Madres de la Candelaria. O filme também apresenta o jornalista e ativista Heriberto Paredes, que, mesmo ameaçado de morte, torna pública a luta dos grupos de autodefesa formados por indígenas resistentes ao narcotráfico e ao narcoestado mexicanos. Há, também, o brasileiro Raull Santiago, que milita junto ao Coletivo Papo Reto, denunciando os excessos da Polícia Militar do Rio de Janeiro contra os habitantes do Complexo do Alemão. Por meio das realidades apresentadas pelos personagens, o filme aponta para alguns aspectos da “necropolítica” (MBEMBE, 2018) [1] que assola parte expressiva da população latino-americana.

        O documentário dá ênfase às imagens que demonstram a criação imagética dos ativistas na qualidade de gestos militantes, que atuam na elaboração do próprio filme, a fim de expressar denúncia e resistência ao contexto necropolítico. O gesto, aqui compreendido, não se refere exclusivamente à gestualidade física do movimento que produz as imagens. De acordo com Agamben (2008), compreendemos que o gesto se sobrepõe à linguagem e, ao interrompê-la, revela o meio pelo qual outras formas de expressão se efetivam. Para o autor, ainda que inscrito no âmbito da ação, o gesto subtraído de um fim em si mesmo não atua para produzir ou agir, pois assume sua vocação medial, pela qual a qualidade do que é comunicado se efetiva. Isto é, o “[…] gesto é exibição de uma medialidade, o tornar visível um meio como tal” (AGAMBEN, 2008, p. 13). Dessa maneira, América Armada realiza o gesto apropriativo que torna aparente o meio pelo qual as potencialidades expressivas de pensamentos, ideias e subjetividades passam a ser apreendidas, estabelecendo vínculos com aquilo que não participa da visualidade, mas a ela pertence. Buscamos, assim, compreender como o filme reconfigura os tempos e espaços heterogêneos de cada realidade que encontra, apresentando imagens que agenciam imaginários de ação política e intervenção social, que são filmados e montados, se tornando a ligadura que entrelaça os três territórios e as histórias apresentadas.

        Para isso, desenvolvemos análises segundo três categorias metodológicas. A primeira refere-se à imagem-reparação, que diz respeito ao gesto ativista de Teresita Gaviria e seus companheiros, a fim de evocar as vítimas de desaparecimentos na Colômbia. As ausências de entes queridos são denunciadas com a utilização de retratos fotográficos, que revelam rostos e atribuem identidades. A imagem-reparação mostra o trabalho manual e a atividade de memória dos ativistas que elaboram cartazes com os retratos para mobilizações em atos de rua. Por meio dos rostos filmados observamos um dos traços que marcam o gesto militante do filme, na medida que os enquadramentos inscrevem a subjetividade nas imagens (AUMONT, 1998; KRACAUER, 2001) para destacar o dever social de memória, assim, reivindicando respostas sobre as condições dos desaparecimentos e a reparação dos corpos ausentes.

        A segunda categoria metodológica compete à imagem-escudo, apresentando as ações do midiativista Raull Santiago ao utilizar seu smartphone para emissões ao vivo de intervenções policiais, ocorridas no Complexo do Alemão, no Rio de Janeiro. A imagem-escudo denuncia a violência promovida pelo Estado enquanto protege o militante e as pessoas ao seu redor, possibilitando a interferência do ativista na realidade como um cidadão contestador (BRAIGHI; CÂMARA, 2018; ZARZUELO, 2012). Dessa maneira, a imagem-escudo dá a ver o gesto militante de Raull, pois o corpo se posiciona ativamente em práticas de denúncia social e resistência política. Além disso, a imagem-escudo atua como gesto militante do próprio documentário, aproximando os espectadores do espaço em que ocorrem as ações de Raull, e das condições de produção das imagens de conflito observadas em América Armada.

        A terceira categoria metodológica concerne à imagem-vestígio como aquela que alcança o gesto capaz de inscrever imageticamente os acontecimentos. A imagem-vestígio opera no campo histórico e social, entrecruzando as experiências coletiva e individual em suas distintas temporalidades (RICOEUR, 2010). Assim, expressa a construção imagética capaz de apreender os traços daquilo que, uma vez vivido, incorpora o risco da sua própria desaparição (GAGNEBIN, 2006). A imagem-vestígio possibilita observarmos a forma como Heriberto Paredes percorre os territórios assolados pela violência contra a população indígena mexicana, direcionando suas lentes fotográficas em busca de rastros que funcionam como denúncia, documento e arquivo, promovendo a cisão nos modos de olhar, contar e elaborar os acontecimentos. A imagem-vestígio também expressa o gesto militante do filme, revelando a produção das imagens por Heriberto como “restos vitais” de uma memória em construção (DIDI-HUBERMAN, 2013).

Imagem-reparação

        Ao longo de mais de 50 anos, a Colômbia vivencia um estado de beligerância permanente promovido pela guerrilha, paramilitares, forças de segurança pública e organizações vinculadas ao narcotráfico, vitimando um quinto da população do país. Trata-se de crimes como assassinatos coletivos, sequestros, violências sexuais e os deslocamentos impostos a camponeses e indígenas, exemplificando as ligações entre dominação física e territorial apontadas por Mbembe (2018) na relação entre Estado e terror na contemporaneidade. No caso da Colômbia, além de todas essas formas de violência, se destaca uma maneira de dominação sobre os corpos muito específica e que deixa diversas lacunas na memória social: os desaparecimentos forçados.

        Essa forma de opressão armamentista ocorre devido à atuação de agentes estatais, diferenciando-se dos massacres reconhecidos pelos guerrilheiros das Forças Armadas Revolucionárias da Colômbia (FARC) e grupos paramilitares (GUGLIELMUCCI; SUÁREZ, 2016). Diante dessa realidade, a Asociación Caminos de Esperanza Madres de la Candelaria dedica esforços para publicizar a problemática das desaparições forçadas, além da violência praticada pelos diferentes grupos armados. Personagem de América Armada, Teresita Gaviria lidera essa associação motivada pelo auxílio a outras mães, familiares e amigos que, como ela, procuram respostas sobre o paradeiro de seus entes queridos.

        Na sequência de abertura do documentário (entre 1min26s e 3min38s), Teresita percorre o passeio público. A personagem é vista no movimento urbano da cidade de Medellín, espaço que também é habitado pelas imagens produzidas como gesto militante da associação que representa. Ao chegar à sede da organização, Teresita presta assistência à outra mulher, que reclama os desaparecimentos de seu marido e filho (entre 3min38s e 5min47s). Nesse momento de emoção e cumplicidade entre as personagens, compreendemos que o ativismo de Teresita advém da perda do seu próprio filho.

        Em outra sequência, também realizada nas dependências da associação, observamos Teresita sozinha (entre 15min43s e 17min50s). A ativista manuseia cartazes realizados a partir das fotografias de desaparecidos, a câmera enquadra o primeiro plano de seu rosto que observa retratos como o de Yarsir Vanegas. Esse efeito de montagem sugere o diálogo entre a ativista e as imagens, intensificado pela sua voz off que indaga: “Por quê? Por que estamos aqui? E que alguém nos diga o porquê”. Em seguida, a câmera enquadra a fotografia do menino Jairo Sanches enquanto a personagem responde: “porque queremos visibilidade para a nossa dor”.

        As imagens que compõem os cartazes são retratos de identificação com informações que revelam os nomes dos ausentes, os locais e as datas de seus desaparecimentos. Ao observar os rostos dos desaparecidos, Teresita pergunta-se: “Por que isso aconteceu com a gente?” Os enquadramentos que os documentaristas realizam dos retratos sugerem que os olhares das vítimas fitam o aparato cinematográfico, assim parecem questionar quais seriam as explicações sobre as condições dos desaparecimentos de cada sujeito e, talvez, as respostas sobre os seus paradeiros com vida.

Imagem 1 - Imagens indagam os paradeiros e as causas dos desaparecimentos.

https://bit.ly/3sknSp7 

Fonte: Fotogramas do filme América Armada (2018).

        

        Observamos Teresita e outras mulheres na sede da associação, elaborando cartazes a partir das imagens de seus familiares (entre 31min58s e 34min37s). Suas mãos manuseiam a cola, a tesoura e os retratos. Tais gestos são acompanhados por vozes, que descrevem traços das circunstâncias dos desaparecimentos. Lembrar o ocorrido, em seus vestígios, naquilo que se sabe ou se presume saber, são gestos de memória que no filme aparecem pelo agenciamento das imagens fotográficas e da própria imagem cinematográfica. As ações das personagens frente à câmera são gestos políticos que partem da perspectiva íntima dos sujeitos frente ao acontecimento social.

        A imagem-reparação é um gesto de rememoração (GAGNEBIN, 2014), que cria formas de resistência política através da lembrança sobre os mortos e desaparecidos. O ato de lembrar transfigura a reclusão do luto individual e do medo através da partilha comum, convocando a reparação da perda individual como reparação social. A imagem-reparação é o gesto militante que sobressai o enfrentamento coletivo de uma situação avassaladora, sob a qual a sociedade colombiana está submetida ao longo de décadas. Assim, a imagem-reparação é propriamente o gesto militante que confronta a tirania do silenciamento forçado.

Imagem 2 - A imagem-reparação é um gesto coletivo contra o silenciamento.

https://bit.ly/3YFrqye 

Fonte: Fotogramas do filme América Armada (2018).

Em frente à Igreja de Nossa Senhora da Candelária, localizada na região central de Medellín, visualizamos um grupo formado por integrantes da associação empunhando faixas, fotografias e flores (entre 58min34s e 1h03min). Em uníssono, os manifestantes declaram: “aos vivos devemos respeito, aos mortos devemos a verdade”. O gesto coletivo visa à comoção pública, chama à consciência de que os desaparecimentos acossam toda a sociedade, podendo ocorrer com aqueles que percorrem a via, como também com seus amigos e familiares. Os olhares de homens e mulheres para a câmera do documentário convocam a consciência dos espectadores, produzindo um efeito de aproximação que corporifica o sofrimento individual e coletivo.

        Conforme Aumont (1998), o rosto filmado faz ver em primeiro plano. Podemos compreender esse enquadramento cinematográfico como metáfora, que se refere à amplificação das imagens, chamando atenção para os fenômenos sociais observados por meio da tela de cinema (KRACAUER, 2001). Em América Armada, ver em primeiro plano convoca a partilha das dores individuais e sociais decorrentes da violência armamentista. O filme sugere indagarmos sobre as condições de um estado de guerra permanente, que também promove a coerção através do silenciamento, supostamente conduzindo a sociedade ao esquecimento. A imagem-reparação faz ver o desejo social de uma nova escritura da história, na qual mortos e vivos serão apaziguados pelo dever do respeito e da verdade, acima de tudo, para que a história aconteça em sua dimensão libertadora.

        Mulheres e crianças posam para a câmera em primeiro plano, aproximando de seus rostos retratos de entes queridos (entre 1h10min e 1h11min). Detrás dos personagens, transeuntes percorrem o passeio público, automóveis se deslocam pela via num dia que parece transcorrer normalmente. Talvez, naquele mesmo momento, em algum lugar da Colômbia, novos sequestros e assassinatos estivessem ocorrendo sem explicações. Quem sabe, naquele exato instante, desaparecidos com vida aguardassem o dia do reencontro com seus familiares e amigos. Os retratos filmados enquadrados ao lado dos rostos dos manifestantes restituem a presença daqueles ausentes. A presença das vítimas com seus entes queridos - por meio das imagens em movimento - revela o gesto militante do filme, que acontece devido ao encontro dos documentaristas com as imagens criadas pelos membros da associação.

Imagem 3 - O gesto militante revela o protagonismo das imagens.

https://bit.ly/3YIxc23 

Fonte: Fotogramas do filme América Armada (2018).

        Podemos compreender Teresita como uma das protagonistas do documentário. Porém, com o desenvolvimento da narrativa, também notamos o protagonismo das imagens dos retratos na medida que o filme convoca imaginarmos as diferentes histórias que poderiam ser contadas, considerando as experiências vivenciadas por cada rosto com suas dores, alegrias, amigos, familiares e amores. A imagem-reparação, como gesto militante de América Armada, agencia a inventividade social capaz de escrever novas histórias, senão completamente apaziguadoras, ao menos mais justas quanto à memória sobre os desaparecidos.

        A imagem-reparação mostra as dores que não silenciam, expressando o sofrimento provocado pelos sequestros e assassinatos de familiares e amigos de milhares de colombianos. A experiência traumática é transfigurada na imagem que confronta o silenciamento social, seja por medo ou omissão. Além disso, denuncia a condescendência das autoridades da ordem social ao apontar para as suas negligências, tanto no que diz respeito à produção de respostas sobre os crimes, quanto no que se refere às ações para cessar os desaparecimentos. A imagem-reparação é a imagem que vive devido a sua potencialidade política, isto é, em decorrência do dever de memória que convoca, da responsabilidade de reparação que faz a denúncia dos casos que precisam ser esclarecidos e das novas histórias que devem ser contadas.

Imagem-escudo

        América Armada relaciona-se com uma nova configuração de filmes brasileiros lançados ao longo da última década, que articulam suas estratégias narrativas em diálogo com as novas tecnologias midiáticas, considerando as correspondências entre os filmes e a produção de imagens por movimentos sociais e midiativistas. Esses documentários parecem traduzir uma nova fase do cinema militante, visto que, ao se utilizarem dessas novas tecnologias, lançam olhares para eventos políticos da atualidade.

        Nesse contexto, as manifestações ocorridas em junho de 2013 [2] no Brasil são um ponto de partida importante. A partir desses protestos de rua, fortemente reprimidos pela polícia, videoativistas passaram a compartilhar suas versões dos fatos, produzindo contranarrativas à perspectiva dos acontecimentos difundida pela mídia hegemônica. Com emissões ao vivo para internet, as imagens produzidas pelos videoativistas se tornaram o que denominamos imagem-escudo; ou seja, imagens que funcionam de modo a proteger os manifestantes diante da violência promovida pelo Estado (BENTES, 2013). Seguindo a ideia de Copwatch [3], as emissões compartilhadas em redes sociais possibilitam a criação de redes de segurança aos indivíduos.

        A imagem-escudo não funciona como arma somente para ações ocorridas nas ruas, pois também dispara contranarrativas oferecidas pelos manifestantes em oposição à cobertura jornalística da mídia hegemônica que costuma criminalizar movimentos sociais. Também é comum que acontecimentos semelhantes ao vivenciado por Raull no filme não ganhem a devida atenção da grande mídia. Diante disso, a imagem-escudo possibilita a transmissão de histórias que, se não fossem desse modo, não seriam contadas e conhecidas.

        Ao mesmo tempo que é escudo a imagem também é espada, pois através dela o ativista pode interferir diretamente na realidade como cidadão contestador. Logo, a imagem-escudo opera por meio do gesto, visto que, ao se colocar diante de agentes repressores, o militante se posiciona ativamente e não se limita a uma atuação unicamente defensiva. A imagem, dessa maneira, também é uma espécie de “salvo-conduto para que um manifestante ou o próprio cinegrafista não seja atacado ou detido” (BENTES, 2013, p. 311).

        A imagem-escudo aparece de forma emblemática em América Armada ainda no começo do filme, quando Raull confronta um policial à paisana que, com sua arma, ameaça moradores durante uma suposta operação policial. Essa sequência introduz Raull no documentário, apresentando sua luta e os gestos que o movem no cotidiano de combate à violência. O ativista digita no seu smartphone, que sempre está conectado a um carregador móvel para evitar a falta de bateria durante a emissão ao vivo. Raull orienta seus companheiros: “Tainá, tá no papo?” – se referindo à transmissão dos acontecimentos pelo site do Coletivo Papo Reto [4]; “Bento, colado em mim, mano”, indica a aproximação dos companheiros para fortalecer a rede de proteção criada pela imagem-escudo. Raull denuncia a invasão de casas de moradores do Complexo do Alemão pela Polícia Militar. Nesse tipo de violação os agentes se instalam indevidamente nas residências, transformando os locais em trincheiras de guerra para o pretenso combate aos narcotraficantes. Nessas condições, os moradores vivem amedrontados pelo risco dos tiroteios e indignados devido à violação de privacidade.

        Antes do confronto com o policial à paisana, Raull se coloca com a imagem-escudo diante de uma casa na qual é convidado a entrar pela moradora (entre 11min52s e 12min47s). Porém, o acesso à residência é impedido por um policial parado à porta: “só cumpro ordens”, balbucia mecanicamente o agente. A dona da casa, visivelmente angustiada, questiona o policial sobre aquela situação que vem se repetindo há dias: a mulher afirma que aqueles que deveriam proteger os moradores são responsáveis por cumprir injustiças e não ordens. A câmera do documentário enquadra o acontecimento de modo a destacar a diferença de altura do policial, posicionado na parte superior da entrada da casa, e a moradora, que, apesar de estar em um ponto mais baixo, confronta o homem com gestos e argumentos. Este, por sua vez, mesmo em posse de uma arma e vestindo o uniforme que representa sua autoridade, se recolhe e desvia o olhar, como quem parece constrangido e sem poder de reação.

Imagem 4 - Moradora questiona policial que a impede de entrar em sua própria casa.

https://bit.ly/3E4je0W 

Fonte: Fotogramas do filme América Armada (2018).

        Para trafegar em um território marcado pela beligerância, Raull precisa de uma arma, que é o seu smartphone e as imagens produzidas a partir dele. Assim, o personagem expressa o gesto que, na perspectiva de Agamben (2008, p. 11), está ligado ao político e ao ético: “[...] para homens dos quais toda naturalidade foi subtraída, todo gesto torna-se um destino”. Além disso, segundo o autor, “[...] o gesto é a exibição de uma medialidade, o tornar visível um meio como tal [...]” (AGAMBEN, 2015, p. 13). Notamos que essa definição é muito próxima à semântica de “midiativismo”, ou seja, a intersecção entre médium (mediação, o registro midiático) e o ativismo (a ação direta) (BRAIGHI; CÂMARA, 2018). Desse modo, o cerne do midiativismo representado pela imagem-escudo de Raull é o gesto, meio ético e político de agir.

Imagem 5 - Confronto entre Raull e policial à paisana.

https://bit.ly/45AVvBm 

Fonte: Fotogramas do filme América Armada (2018).

        Na mesma rua em que observamos a ação de Raull com a moradora que contesta o agente de segurança pública, o ativista se depara com um homem que também utiliza o celular para, supostamente, gravar o momento (entre 13min08s e 15min35s). Ao saber que se trata de um policial à paisana, Raull o confronta e nesse instante acontece uma espécie de duelo através do uso de imagens. Entretanto, além das imagens, as palavras de Raull são importantes, pois contextualizam os espectadores da transmissão ao vivo sobre o fato de o policial com vestes civis ameaçar os moradores com a arma em punho. Enquanto enfrenta seu oponente, Raull questiona: “A gente quer a identificação desse policial. A gente quer saber quem é o chefe desse policial. A gente quer saber quem empregou esse policial. A gente quer saber quem colocou um policial na favela de bermuda e chinelo, andando de pistola na mão, invadindo a casa das pessoas”. Com tantas perguntas, o policial responde aos gritos a fim de submeter Raull.

        Nesse duelo, a arma de Raull, um smartphone, possibilita que o videoativista vença o confronto. Por fim, o policial à paisana é retirado de cena por seus companheiros fardados, que tentam acalmá-lo. O filme sugere imaginarmos que sem a imagem-escudo o desfecho do embate poderia ser trágico. Como na sequência anterior, a câmera do documentário se aproxima aos poucos da situação, emergindo no enfrentamento. Em determinado instante, a câmera do filme enquadra a tela do smartphone de um companheiro de Raull, que também transmite o confronto ao vivo. Esse gesto dos documentaristas sobressai a tensão própria às condições de produção das imagens pelos videoativistas, assim, a câmera do documentário se coloca ao lado dos membros do Coletivo Papo Reto como imagem-escudo, contribuindo para proteger os militantes ao se posicionar ativamente diante do embate. Dessa maneira, a imagem-escudo opera pelo gesto em comum, que agencia uma coletividade de resistência na qual o filme se posiciona de maneira atuante.

        As imagens produzidas por Raull cooperam com o gesto militante do documentário, na medida em que as emissões ao vivo possibilitam a equipe do filme adentrar nas áreas de conflito. A imagem-escudo é uma das condições que tornam possível a configuração narrativa do longa-metragem. Além disso, a imagem-escudo se amplifica através de novos gestos, que alcançam mais indivíduos de maneira a projetar suas narrativas em diferentes plataformas. Ou seja, há a postura dos ativistas diante dos agentes de segurança pública; o gesto de compartilhar e (re)partilhar as imagens nas redes on-line; o fortalecimento das narrativas contra-hegemônicas através das imagens produzidas por moradores do local (para “fortalecer o movimento”, como diz Raull); e, finalmente, o gesto militante dos documentaristas, que entrecruza histórias e amplifica vozes.

Imagem-vestígio

        América Armada apresenta Heriberto Paredes, militante, fotógrafo e jornalista independente, envolvido com grupos de autodefesa indígenas que lutam contra a violência exercida pelo narcotráfico e pelo narcoestado mexicano. Desde 2009, Heriberto atua para revelar os processos organizacionais centrados na busca de desaparecidos e na autoproteção desenvolvida por grupos civis na comunidade de Michoacán. Para tanto, colabora com diversos veículos de comunicação nacionais e internacionais. O jornalista também elabora conteúdos para podcasts e redes sociais, focados nas investigações, relatórios e informações que abordam temas como o acesso à justiça e reparação. Apesar de sofrer constantes ameaças de morte, Heriberto não deixa de documentar a resistência comunitária em territórios abalados por frequentes assassinatos, assaltos, estupros e tomada de terras. Ao revelar uma vida assombrada pelo medo e insegurança, o jornalista expõe a sua própria resistência, percorrendo povoados para registrar os vestígios da violência.

        A sequência que introduz a realidade vivida por algumas comunidades no México parte do interior de um veículo que leva o jornalista até Aranza, um povoado em recente conflito (entre 05min49s e 09min55s). No trajeto, acompanhamos o encontro do personagem com alguns integrantes dos grupos de resistência, os quais, registrados pela câmera de Heriberto, liberam a passagem de carros. O percurso do jornalista prossegue em uma viatura da polícia de Michoacán até o local de destino. A imagem é interrompida por uma tela preta, com uma pequena legenda com informações sobre a violência do narcotráfico e a conivência do Estado, resultando na criação das autodefensas, grupos autônomos de civis que se armaram para assumir a segurança dos seus territórios. A sequência prossegue com o jornalista, carregando sua câmera e o tripé no ombro, como se marchasse com sua artilharia, caminhando por entre um bloqueio na estrada, realizado em protesto à morte de um integrante da comunidade.

Imagem 6 - Encontro de Heriberto Paredes com grupos de resistência.

https://bit.ly/3KMbSmq 

Fonte: Fotogramas do filme América Armada (2018).

A partir dos testemunhos que recebe, Heriberto documenta os rastros do que é narrado, marcas do ocorrido, como a perfuração de um tiro no exterior de uma casa ou um fragmento da história escrito numa faixa de protesto. Como um traço (DERRIDA, 2010), as imagens documentam uma determinada realidade, ao mesmo tempo que remetem à falta daquilo que, uma vez vivido, já não pode mais ser totalmente apreendido. Assim, entre presença e ausência, o gesto que registra e filma os vestígios alcança, na imagem, também aquilo que nela vai se perdendo e desaparecendo.

        Da mesma forma, a construção fílmica que revela alguns traços do México apresenta imagens que sugerem vazios e ausências, como a praia deserta que introduz o relato de Heriberto no interior de um quarto; as estradas desocupadas que se repetem; e as sepulturas filmadas. Podemos tomá-las como um tipo de visibilidade que se expressa a partir dos rastros, daquilo que resta na imagem enquanto traço, como uma imagem-vestígio que cerca os acontecimentos não em sua totalidade, mas a partir das ruínas que se colocam entre presenças e ausências, passado e presente, memória e esquecimento.

        O trabalho de busca, coleta e registro dos depoimentos feito pelo jornalista e documentado pelo filme, também expõe um aspecto da imagem pelo qual é possível refletir sobre a fragilidade do próprio arquivo. Como na sequência em que, sentado à beira da cama, Heriberto revê as imagens captadas (entre 17min53s e 20min34s). Ao “mostrar o que se mostra”, em diferente formato e contexto, como aponta Didi-Huberman (2021, p. 62), a imagem revela as lacunas que a tornam um fragmento daquilo que ela busca representar. Portanto, sem jamais alcançar sua totalidade, a imagem-vestígio articula-se a partir de um duplo aspecto, capaz de expor, dialeticamente, a complexidade e a transitoriedade da imagem.

Imagem 7 - Heriberto revê as imagens.

https://bit.ly/3PdiIUV 

Fonte: Fotogramas do filme América Armada (2018).

        Em correspondência ao conceito benjaminiano de vestígio, abordado por Gagnebin (2006), pelo qual a leitura do passado acontece a partir dos fragmentos que dele restam, quando a apreensão do ocorrido se faz possível a partir dos seus traços e rastros, as imagens-vestígio da construção fílmica fraturam e modificam a percepção do ocorrido, considerando o passado que se atualiza no presente pelos restos por ele deixado. A exemplo, quando a câmera do documentário enquadra as armas dos integrantes da polícia comunitária e o gesto do jornalista que, por sua vez, aponta a própria câmera, estas imagens, amparadas pelo que é narrado, alcançam um agir histórico capaz de promover outra legibilidade ao que é visto (entre 41min04s e 43min10s).

Imagem 8 - Armas da polícia comunitária e a câmera do jornalista.

https://bit.ly/44hG2Vq 

Fonte: Fotogramas do filme América Armada (2018).

        O gesto militante do filme, ao inscrever o acontecimento a partir dos vestígios, permite que o passado seja elaborado naquilo que dele sobrevive no presente como restos vitais. Isto é, imagens de temporalidades fragmentadas que entrelaçam histórias vividas na Colômbia, Brasil e México, em territórios que se caracterizam pelos constantes estados de sítio e exceção (MBEMBE, 2018). Se as imagens nos mostram as armas em excesso dos grupos de autodefesa mexicanos como consequência da autoproteção, a montagem nos lembra as marcas da violência deixadas pelo Estado nos relatos do Brasil. Da mesma maneira, as imagens do cemitério no México são precedidas pelas fotografias dos mortos e desaparecidos da Colômbia. Assim, o documentário percorre os vestígios encontrados por Heriberto para que os acontecimentos possam ser relacionados, ressignificados e narrados a partir de um tempo histórico comum, uma vez que a montagem em sua “tomada de posição” recompõe a imagem do tempo capaz de reconstruir a narrativa histórica (DIDI-HUBERMAN, 2021).

        As imagens das sepulturas, que finalizam o filme, somadas a voz off de Heriberto a respeito da violência como um “grande negócio”, que se espalha por toda a América Latina, configuram a imagem-vestígio capaz de convocar um gesto militante contra o esquecimento (entre 1h12min e 1h13min). Dessa maneira, a imagem-vestígio surge como um gesto de resistência à necropolítica que realiza o controle físico e geográfico (MBEMBE, 2018), pois busca coletar e denunciar os rastros da violência ocorrida nesses espaços. Segundo Gagnebin (2006), o conceito de rastro e vestígio estrutura-se ao convocar reflexões acerca da memória e do apagamento, inscrevendo a lembrança de uma presença que está prestes a desaparecer ou que já não existe mais. Os rastros restituem a fragilidade do vivido, da memória e da história, tensionando passado e presente. Em América Armada, a imagem-vestígio é capaz de apreender as subjetividades, os traços e os restos dos acontecimentos enquanto um gesto militante.

Imagem 9 - As sepulturas.

https://bit.ly/3OPbRQ6 

Fonte: Fotogramas do filme América Armada (2018).

Considerações Finais

        A vocação do cinema para a libertação das imagens históricas considera o gesto que ativa cada imagem para além de si mesma, criando uma constelação imagética (AGAMBEN, 2008). Isto é, a espessura de novos sentidos que se realizam através da montagem (DIDI-HUBERMAN, 2018). Desse modo, os filmes revelam traços do processo histórico ao convocar a dimensão ética dos espectadores, chamando atenção para experiências socialmente compartilhadas.

        Em América Armada, três personagens habitam diferentes territórios, cada qual com suas realidades cotidianas e histórias de vida impactadas pelo armamentismo e pela necropolítica (MBEMBE, 2018). A montagem fílmica justapõe, recorrentemente, as situações por eles vivenciadas criando uma narrativa na qual imagem-reparação, imagem-escudo e imagem-vestígio incidem umas sobre as outras, expressando o gesto militante observado no documentário.

        A imagem-reparação, em certa medida, também é a imagem-escudo que salvaguarda as ações lideradas por Teresita no espaço público em Medellín. Além disso, pode ser compreendida como imagem-vestígio ao colocar em primeiro plano fragmentos imagéticos que atuam como rememoração, revelando as identidades das vítimas como singularidades, subjetividades, que conjuntamente compõem memórias da experiência social de violência na realidade colombiana.

        A imagem-escudo, analisada em particular na atuação de Raull, igualmente convoca sentidos da imagem-reparação a fim de fazer cessar a violência contra a comunidade do Morro do Alemão. Dessa maneira, reivindica a responsabilização de agentes do Estado enquanto atua na produção memorialística dos acontecimentos – especialmente no que se refere a criar condições para filmagem do documentário na região em conflito. A imagem-escudo pode ser compreendida em correspondência com a imagem-vestígio, pois coloca o ativista frente aos fatos para revelar o testemunho do ocorrido, assim, criando o registro daquilo que se pode depreender diante da finitude dos acontecimentos.

        Por sua vez, a imagem-vestígio sobressai principalmente a atividade de Heriberto e relaciona-se com a imagem-reparação. Isso ocorre ao denunciar e documentar a conivência do Estado mexicano frente à violência praticada por narcotraficantes contra a comunidade indígena de Michoacán, agenciando memórias sociais e sentidos de reparação histórica. Podemos dizer, também, que a imagem-vestígio se relaciona com a imagem-escudo ao amplificar a visibilidade dos acontecimentos. Como jornalista independente, Heriberto compartilha suas imagens na internet e faz delas sua estratégia para intervir numa área conflagrada, possibilitando que seus registros sejam (re)partilhados, talvez, salvos do esquecimento ao agenciar o conhecimento histórico.

        Ao considerarmos as associações entre imagem-reparação, imagem-escudo e imagem-vestígio notamos como o gesto militante do documentário demonstra que é possível imaginarmos outra “América Armada”, não para violência bélica, mas para criação de imagens como forma de resistência social e ação política.

Notas

[1] Mbembe (2018) parte da noção de biopolítica formulada por Michel Foucault, produzindo sua análise sobre os territórios necropolíticos contemporâneos. Mbembe compreende a necropolítica a partir do exercício do poder soberano de matar, considerando quais grupos são passíveis de morrer para garantia da manutenção da ordem vigente. Logo, o conceito de necropolítica está diretamente vinculado ao controle de populações e territórios através dos estados de sítio e exceção, conforme pode ser observado em América Armada.

[2] Inicialmente, as manifestações foram organizadas pelo Movimento Passe Livre (MPL), que militava contra o aumento do preço das passagens do transporte público. Após a repressão violenta da polícia, denunciada através de imagens produzidas por videoativistas para as redes sociais, os movimentos se espalharam pelo país, abarcando múltiplas pautas que revelaram o caráter difuso das manifestações.

[3] Prática de vigiar a polícia surgida em Berkeley, nos anos 1990, que passou a ser amplamente utilizada no Brasil a partir de junho de 2013, recorrendo às novas tecnologias para emissões ao vivo a fim de proteger os manifestantes de ações temerárias da polícia (BENTES, 2013).

[4] O Coletivo Papo Reto é uma organização não governamental focada em comunicação, educação e direitos humanos, atuante no Complexo do Alemão. Além das emissões ao vivo, que buscam proteger os cidadãos e denunciar os abusos do Estado, a organização promove doações e oferece palestras e oficinas aos moradores.

Referências

AGAMBEN, G. Profanações. São Paulo: Boitempo, 2012.

AGAMBEN, G. Notas sobre o gesto. Artefilosofia, n. 4, p. 9-14, 2008. Disponível em: <https://bit.ly/3OAPtek>. Acesso em: 07 out. 2022.

AMÉRICA ARMADA. Direção: Alice Lanari; Pedro Asbeg. Produção: Carolina Dias; Tereza Alvarez: Palmares Produções; Gaivota Estúdio, 2018. (78 min), son., color., digital.

A NOSSA BANDEIRA JAMAIS SERÁ VERMELHA. Direção e produção: Pablo Guelli: Salamanca, 2019. (72 min), son., color., digital.

AUMONT, J. El rostro en el cine. Barcelona: Ediciones Paidós Ibérica, 1998.

BENTES, I. A câmera de combate e o animal paranoide. In: Catálogo do 17º Festival do Filme Documentário e Etnográfico (forumdoc.bh). Belo Horizonte, 2013. p. 302-319. Disponível em: <https://bit.ly/44GHLoq>. Acesso em: 04 ago. 2022.

BRAIGHI; A.; CÂMARA, M. O que é midiativismo? Uma proposta conceitual. In: BRAIGHI, A.; LESSA, C.; CÂMARA, M. (Orgs.). Interfaces do midiativismo: do conceito à prática. Belo Horizonte: CEFET-MG, 2018, p. 25-42.

DERRIDA, J. Memórias de cego: o autorretrato e outras ruínas. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 2010.

DIDI-HUBERMAN, G. A imagem sobrevivente: história da arte e tempo dos fantasmas segundo Aby Warburg. Rio de Janeiro: Contraponto, 2013.

DIDI-HUBERMAN, G. Remontagens do tempo sofrido: o olho da história II. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2018.

DIDI-HUBERMAN, G. Quando as imagens tomam posição: o olho da história I. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2021.

ESPERO TUA (RE)VOLTA. Direção: Eliza Capai. Produção: Mariana Genescá: Globo Filmes; TVa2, 2019 (90 min), son., color., digital.

GAGNEBIN, J. Lembrar, escrever, esquecer. São Paulo: Editora 34, 2006.

GAGNEBIN, J. Limiar, aura, rememoração. São Paulo: Editora 34, 2014.

GUGLIELMUCCI, A.; SUÁREZ, A. La desaparición forzada en la escena pública colombiana: movilización social y estrategias de visibilización. Revista Interdisciplinaria de Estudios sobre Memoria, v. 3, n. 6. p. 28-55, 2016. Disponível em: <https://bit.ly/3q7OCbq>. Acesso em: 09 set. 2022.  

LEVANTE! Direção: Susanna Lira; Barney Lankester-Owen. Produção: Pedro Rosa: Modo Operante, Embaúba, 2014 (51 min), son., color., digital.

MBEMBE, A. Necropolítica: biopoder, soberania, estado de exceção, política da morte. São Paulo: n-1 Edições, 2018.

NINEY, F. El documental y sus falsas apariencias. Cidade do México: Universidade Nacional Autônoma do México, 2015.

O QUE RESTA DE JUNHO. Direção: Carlos Leal; Diego Felipe; Vladmir Santafé. Kairós Produções; Linha de Fuga, 2016 (84 min), son., color., digital.

PINEL, V. Los géneros cinematográficos: géneros, escuelas, movimientos y corrientes del cine. Barcelona: Robinbook, 2008.

RESSURGENTES, UM FILME DE AÇÃO DIRETA. Direção e produção: Dácia Ibiapina: Trotoar Produção, 2014. (74 min), son., color., digital.

RICOEUR, P. Tempo e narrativa: a configuração do tempo na narrativa de ficção. São Paulo: Martins Fontes, 2010.

RIO EM CHAMAS. Direção: Daniel Caetano; outros. Produção: Daniel Caetano e Cavi Borges: Duas Mariola, Cavídeo, Hy Brazil Filmes, Subúrbio em Transe, Linhas de Fuga, Aimara Filmes, Cinema de Guerrilha da Baixada, Gaivota Studio, Gamarosa Filmes e Inventarte Produções, 2014 (109 min), son., color., digital.

ZARZUELO, M. Cine militante y videoactivismo: los discursos audiovisuales de los movimientos sociales. I Congreso internacional de la Red Iberoamericana de Narrativas Audiovisuales. Sevilla: Universidad de Sevilla, Secretariado de Recursos Audiovisuales y Nuevas Tecnologías, p. 1122-1133, 2012. Disponível em: <https://bit.ly/44OTd1w>. Acesso em: 10 de set. de 2022.

Financiamento

A pesquisa conta com bolsas de pós-doutorado, doutorado e produtividade do CNPq.