Sociologias das imagens em perspectivas:

miradas epistêmicas em experiências sul-americanas

Daniel Macêdo1

Resumo

Ao tomar visualidades como expressões de conhecimentos sociais, a boliviana Silvia Rivera-Cusicanqui e o brasileiro José de Souza Martins publicaram, respectivamente, as obras Sociología de la imagen: miradas ch'ixi desde la historia andina (2015) e Sociologia da Fotografia e da Imagem (2016) a fim de demarcarem fundamentações para reembasar as relações entre as sociologias praticadas com imagens. Fruto de reflexões acadêmicas críticas à episteme moderna e a partir de experiências docentes em instituições radicadas na América do Sul, as publicações convocam deslocamentos do uso objetual da fotografia realizado pelas ciências sociais e humanas enquanto um ‘documento do real’ para percebê-la enquanto uma elaboração entremeada por agências dos envolvidos nos atos de inscrição e de leitura. Com este artigo, retoma-se as proposições apresentadas nestas obras para, com elas, discutir os tensionamentos constituintes das inscrições visuais e constituídos na leitura das imagens que atravessam incursões de pesquisa praticadas com fotografias; bem como, a partir das instabilidades configuradoras das imagens, devir outras angulações que reconheçam o jogo simbólico e performático cadente nas dinâmicas sociológicas ao com elas se relacionar e a partir delas radicar saberes.

Palavras-chave

Sociologia; Imagem; Fotografia; Silvia Rivera-Cusicanqui; José de Souza Martins.

1 Doutorando em Comunicação Social na Universidade Federal de Minas Gerais (ufmg). Integrante do Núcleo de Estudos Tramas Comunicacionais: Narrativa e Experiência. Bolsista da CAPES. E-mail: daniel.3macedo@gmail.com.

Juiz de Fora, PPGCOM – UFJF, v. 17, n. 3, p. 38-54, set./dez. 2023 DOI: 10.34019/1981-4070.2023.v17.39138

Sociologies of images in perspective:

epistemic approaches in South American experiences

Daniel Macêdo1

Abstract

By taking visualities as expressions of social knowledge, Bolivian Silvia Rivera-Cusicanqui and Brazilian José de Souza Martins published, respectively, the works Sociología de la imagen: miradas ch'ixi desde la historia andina (2015) and Sociologia da Fotografia e da Imagem  (2016)  in order to demarcate grounds for rethinking the relations between sociologies practiced with images. Resulting from critical academic reflections to the modern episteme and from teaching experiences in institutions based in South America, the publications call for displacements of the objectual use of photography performed by social and human sciences as a "document of the real" to perceive it as an elaboration interwoven by agencies of those involved in the acts of inscription and reading. With this article, we resume the propositions presented in these works in order to discuss the tensions constituting the visual inscriptions and constituted in the reading of images that cross research incursions practiced with photographs; as well as, from the instabilities that configure the images, to develop other angles that recognize the symbolic and performative game in the sociological dynamics when relating to them and from them to root knowledge.

Keywords

Sociologia; Image; Photography; Silvia Rivera-Cusicanqui; José de Souza Martins.

1 Doutorando em Comunicação Social na Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). Integrante do Núcleo de Estudos Tramas Comunicacionais: Narrativa e Experiência. Bolsista da CAPES. E-mail: daniel.3macedo@gmail.com.

Juiz de Fora, PPGCOM – UFJF, v. 17, n. 3, p. 38-54, set./dez. 2023 DOI: 10.34019/1981-4070.2023.v17.39138

Introdução

        O advento da fotografia redimensionou sociabilidades ao assumir um lugar que, orientado em composições realistas e amparadas em artefatos tecnológicos, se instituiu em demarcações homogêneas sobre verdades indubitáveis diante das verossimilhanças elencadas nas imagens. Como testemunho do real, a fotografia não tardou a ser incorporada como aporte para inscrição e para leitura das tensões sociais em diferentes exercícios das ciências humanas; construindo suportes de legitimação das palavras outrora firmadas nas práticas de pesquisa.

        Mead (1975) já notara que a objetividade do visor da câmera, enquanto uma inscrição do real, anunciou um momento em que a descrição em palavras já não bastaria para tomar notas dos sujeitos e das sociedades retratadas. A objetividade tecnológica da câmera, diferente das pinturas, angaria à fotografia o lugar de respaldo como documento acadêmico. Malinowski (1915), por exemplo, adotou fotografias para construir argumentos imagéticos desde a pesquisa nas ilhas Mailu; e ampliou o uso desta tecnologia como via de inscrição nos trabalhos seguintes que articulavam discussões ancoradas em imagens legendadas para dizer-nos dos povos habitantes de territórios colonizados.

        As fotografias, nos trabalhos de Malinowski, não são peças de anexo. Elas integram a publicação como textualizações das sociedades admitindo-as, nas elaborações monográficas, sob a alcunha de documento que fixa o real. Ao dispô-las como documentação incontestável do que o antropólogo investiga para definir um dado povo e suas práticas sociais, as fotografias assumiram, para a antropologia clássica, um modo de inscrição sobre as experiências em campo possíveis tanto de serem articuladas com as anotações em diário de bordo, quanto de serem retomadas em miradas arquivísticas para refletir sobre um dado lugar e um dado povo.

        Há, nesta alocação epistêmica da fotografia, um gesto homogeneizador ao tomar a fotografia como uma representação absoluta das complexidades e das particularidades que se nutrem em comunidades de sentidos. A pretensão em delimitar o “outro etnográfico” é a via pela qual Taylor (2013, p. 120) discute criticamente as visualidades adotadas ao ponderar as dimensões performáticas envolvidas em inscrições visuais que conferem instabilidades diante da impossibilidade de fixar sujeitos, territórios e culturas em “documentos do real” ainda que eles sejam reais, ainda que ali possam existir, ainda que componham performaticamente o ato fotográfico com a câmera e com o fotógrafo; mas constituem ficções nas indumentárias da criação narrativa angulada pelo pesquisador e pelas experiências nutridas em campo.

        Para além de uma crítica aos modos de uso de tecnologias visuais pela antropologia clássica, interessa a Taylor (2013) deslocar as formas de se relacionar com produções imagéticas para devir outras angulações epistêmicas que reconheçam o jogo simbólico e performático cadente nas textualizações visuais. Tem ganhado fôlego, neste rumo, exercícios de reflexão que reposicionam as relações com fotografias em práticas de inscrição e de leitura aportando modos plurais de conjugar o que comumente tem-se chamado por Sociologia da Imagem.

        As contribuições da boliviana Silvia Rivera-Cusicanqui (2015) na obra Sociología de la imagen: miradas ch'ixi desde la historia andina, impressa em 2015, e do brasileiro José de Souza Martins (2016) ao publicar Sociologia da Fotografia e da Imagem, em 2008, se inserem neste rol ao tecerem esforços singulares em fundamentações epistêmicas que apontam relações heterogêneas e instáveis com fotografias. Estas publicações são possíveis em razão das experiências enraizadas na Bolívia e no Brasil. Afinal, as proposições são elaboradas a partir das práticas docentes de Rivera-Cusicanqui na Universidad Mayor de San Andrés, onde leciona o seminário de “Sociologia da Imagem”, desde 1994; e de Martins, na Universidade de São Paulo, a partir da oferta de “Sociologia da vida cotidiana” e “Sociologia visual” desde 1965.

        É justo situar que ambos leram Barthes (1984) e Sontag (2012) como fundamentações para conceber as perspectivas propostas nas obras elencadas. De modo enfático, Rivera-Cusicanqui (2015) admite uma cumplicidade crítica com estes pensadores; assim como faz Martins (2016) ao tecer pontes em meio ao texto para deslocar os argumentos de verossimilhança com o real e para percebê-la como elaboração entremeada por agências. Neste artigo, retomo as proposições versadas nestas obras para, com elas, discutir os tensionamentos constituintes das inscrições visuais e constituídos na leitura das imagens que atravessam exercícios de pesquisa praticados em relações com fotografias.

Ângulos de Silvia Rivera-Cusicanqui

        “Sociologia era a única disciplina que parecia conectar-me com o fazer político e criativo que considero minha autêntica e irrenunciável vocação”, afirma Rivera-Cusicanqui (2015, p. 233) (tradução nossa) [1] ao manejar sociologia da imagem para pôr em movimento os estatutos da disciplina acadêmica. De origem aimará, atua como docente e é uma referência do pensamento descolonial a partir de um conjunto de obras que promovem reflexões partindo da episteme andina em contravenção aos postulados eurocêntricos.

        Em diferença aos binarismos dos modelos modernos, a epistemologia ch’ixi praticada pelos andinos mobiliza as nuances dos atravessamentos que se voltam contra a pureza e a estabilidade das formas. Deste lugar epistêmico, Rivera-Cusicanqui (2015) nos propõe uma “consciência fronteiriça” para emergir a tessitura de entendimentos distintos sobre experiências comuns e que, em encontros, desaterram a pretensão de um conhecimento universal ao reconhecer modos particulares de saber que se atravessam e que se confrontam ao coexistirem sem se anularem. A consciência fronteiriça é uma metáfora visual para pensarmos mundos em oposição a um dado monolítico para, assim, deixar ver as nuances que os posicionam como referentes em constante movimento, permeado por diferentes tensões tateadas de modos singulares a depender dos sujeitos que os praticam. A vocativa por uma epistemologia nas fronteiras parte, assim, da valorização das diferenças constituintes das relações sociais; dos modos de (vi)ver para denotar a impossibilidade de uma fotografia única e panorâmica que consiga estabilizar a sociedade em um dado tempo, em um dado dispositivo narrativo.

        Ao posicionar o micro das experiências como potência em saberes sobre as sociedades, há uma dimensão corporalizada que valoriza os vividos e as encarnações de saberes tradicionais de uma dada comunidade de sentidos que angula modos de significar e de atribuir percepções. Somos convidados a pensar em termos de um corpo-memória que, para Rivera-Cusicanqui (2010), mobiliza o conjunto sensível aflorado das lembranças e dos esquecimentos encarnados por quem convive com as contradições coloniais, urgindo modos de ver que destoam das respostas sistematizadas pela lógica moderna de unificação. É na possibilidade de dizer por outras vias, de acionar referentes inconstantes nas firmas de uma cultura nacional, que respostas imprevistas podem surgir e podem superar caracterizações homogêneas em respeito à constituição heterogênea das sociedades.

        Em interação com abigarradas multidões, Rivera-Cusicanqui (2015, p. 19) (tradução nossa) [2] vê-se diante de elaborações fronteiriças que, enredadas, permitem tatear “o impulso coletivo de realizar um desejo, o ato de conhecer/atualizar o passado e de imaginar outro futuro possível no caminho” por meio do (in)visível na micropolítica das relações diárias inscritas em imagens e imaginários mobilizados nos corpos e nas performances públicas. Ali, em meio ao contexto social de diferenças idiomáticas que versam o Estado Plurinacional de Bolívia, as derivas trouxeram as imagens como elemento de atenção para a pesquisadora ao observar, a partir do audiovisual, que elas acendem sensíveis que não são tocáveis pela palavra escrita. Esta confluência é constantemente evocada nos estudos de Rivera-Cusicanqui (2010; 2015) ao destacar que as vias bloqueadas e esquecidas pela língua oficial são captáveis em imagens que convocam o despertar de narrativas que desviam das normatizações em palavras e dos registros notáveis do Estado e das estruturas de poder.

        As imagens exercem locus de importância na comunicação pois constituem uma linguagem praticável em significações múltiplas “sem formar um trajeto retilíneo ou unidimensional”, destaca Rivera-Cusicanqui (2015, p. 73) (tradução nossa) [3] ao atestar a dinâmica fluída que com elas se estabelecem quando estão em circulação e em interação. É considerando que as imagens se conjugam em pluralidade nos intentos narrativos de quem as lê que, nelas, se revelam e se refazem aspectos variáveis, conscientes e inconscientes para se perceber e para se inserir na sociedade. As imagens, logo, abrem vistas aos sujeitos que não professam as letras e possuem força para ampliar o debate político e as possibilidades de leitura sociológica, segundo Rivera-Cusicanqui (2010; 2015). Afinal, para além de ampliar as possibilidades de inserção no debate público, convida modos outros de erguer sentidos, de se posicionar diante dos temas ao tomar dispostos visuais como elementos indiciários na confecção de uma mirada particular sobre as sociedades.

        Estamos diante, pois, de elementos para pensar em uma “imagem dialética”, que Rivera-Cusicanqui (2018, p. 89) percebe ao conferir que composições visuais fundamentam expressões temporais e sociais possíveis a partir da prática de uma história não-linear e frente a uma constelação de sentidos. Afinal, ao tomarmos imagens como índices e reconhecermos escritores e leitores como agentes que operam sentidos instáveis, diferentes elementos mobilizados pelo corpo-memória se constelam a fim de atribuir contornos simbólicos. Esta relação não é natural ou pré-formatada: diferentes temporalidades, sensíveis imprevisíveis são acionados e articulados ao tecer relações imagéticas que não obedecem a lógica linear do tempo e tampouco reproduzem de modo automático classificações regulamentadas.

        Ao reconhecer as emergências de significações possíveis com as imagens, a partir da instabilidade das relações que com elas se constrói, modula-se olhar crítico aos argumentos que as ponderam como uma cópia análoga da realidade e, no exercício de uma outra sociologia da imagem, Rivera-Cusicanqui (2015, p. 74) (tradução nossa) [4] nos convida a lê-las como “uma interpretação da sociedade de sua época, em suas dimensões abigarradas e conflitivas”. Ao invés de um documento do real, interessa a pesquisadora aimará pensar as imagens como uma perspectiva socialmente intencionada e impregnada das tensões que a configuram em razão das experiências de quem a inscreve num dado contexto histórico, inserido em meio a afirmações e negações de mundos.

        Notar os mundos que emergem a partir de lugares abigarrados é a chave pela qual Rivera-Cusicanqui (2015, p. 302) (tradução nossa) [5] propõe a sociologia da imagem como uma redoma que “entrelaça a teoria com a prática” e, nisto, se opõe aos ritos fundamentais da disciplina que preconizam isenções. O corpo-memória, que mobiliza sentidos com a imagem, é uma ruptura com o distanciamento analítico pressuposto pela ciência moderna ao tomar o conjunto de experiências dos sujeitos envolvidos como elementos de atenção e de moldagem das percepções atribuídas durante as leituras e as mobilizações de conceitos.

        Esta fluidez incontrolável da sociologia da imagem é, para a pesquisadora, uma indisciplina na medida em que deriva por heterogeneidades criativas e que se faz em narrativas confluindo uma prática “teórica, estética e ética que reconhece fronteiras entre a criação artística e a reflexão conceitual e política”, propõe Rivera-Cusicanqui (2015, p. 26-27) (tradução nossa) [6]. Não há intenções da autora em definir estatutos artísticos ou de propor binarismos entre dignos e indignos da alcunha artística; contudo, ela nos chama a extrapolar fruições para conceber miradas que questionem as imagens e os tensionamentos que a constituem, para pensarmos sobre as modulações ali constantes e os interesses que ali estão em jogo.

        Não há, no conjunto da obra, um desenho esquemático para empreender estudos em sociologia da imagem e Rivera-Cusicanqui (2015, p. 14) admite que as investidas são “uma espécie de ‘invernadero’ de experimentação pedagógica” (tradução nossa) [7]. Contudo, a discussão epistêmica já exposta aponta um norte para embasar práticas de pesquisa; tal qual os ensaios da autora ao longo dos escritos reiteram pistas para inspirar abordagens possíveis que valorizam os ensinamentos legados nas vivências que, ao propor uma sociologia praticada na instabilização das imagens, articula a inscrição e a leitura como dimensões metodológicas.

        No que diz respeito à inscrição de imagens como envergadura sociológica, Rivera-Cusicanqui (2015) assume que não se trata de uma novidade na medida em que ampara os intentos de Waman Pomán, no século XVIII, e de Melchor María Mercado, no século XIX, como expressões descritivas e estimuladas sob intenções tateáveis. Cabe tomar as imagens como artefatos socialmente intencionados que nos dizem – dentre outras coisas – das intenções de quem as produz. Ao apurar as peças do trabalho de Mercado que personificam pecados capitais em meio a criações sobre a cidade de Sorata, Rivera-Cusicanqui (2015) questiona os enigmas da vida que o levaram a compor alegorias:

[...] proponho compreendê-las como peças hermenêuticas em e por si mesmas, atravessadas por vozes de autor que não só descrevem ou refletem uma dada realidade, mas que a interpretam, teorizam e refletem sobre ela; brindando-nos uma mirada sociológica sobre a organização, os valores e as forças morais que modulam a sociedade. (RIVERA-CUSICANQUI, 2015, p. 88) (tradução nossa) [8]

Figura 1 - Narrativas visuais de Melchor María Mercado.

https://bit.ly/3NLCKEF 

Fonte: Rivera-Cusicanqui (2015).

Interpelar o criador em conjunto a obra visual é, para além de tomá-la como uma perspectiva, um empenho metodológico para conferi-la como declaração de um dado lugar social e epistêmico pelo qual o ato de dizer em imagens se confere em exercício de poder. Logo, assim como é possível tatear os interesses de Mercado – enquanto um integrante da elite letrada crioula – ao figurar sujeitos outros como alegorias entremeadas em pecados, é possível que estes perfis possam submergir a superfície com nitidez quando partem de si a cunha de produção imagética, constata Rivera-Cusicanqui (2015).

        A leitura das imagens na mirada sociológica, por sua vez, requer um movimento de constante questionamento em torno dos elementos sociais e políticos conferidos no conjunto da peça em análise. Diante da amplitude de leituras possíveis tomadas por quem as efetua, é justo destacar interesse ao sujeito-leitor que impetra sentidos.

Não se busca, aqui, circundar leitores como uma figura uniforme. Afinal, a diversidade possível nas observações os posiciona como articuladores, enredando narrativas frente a um texto inconcluso. Trata-se de reconhecer a leitura da imagem como um terreno de confecção para perspectivas múltiplas e abertas em significações plurais a serem (re)criadas na medida em que se distanciam da totalização de uma visão homogênea.

        Ao comparar o espectador com a figura de quem fia para tramar tecidos, Rivera-Cusicanqui (2015) confere a quem lê o poder de agência frente às variáveis que, tidas como linhas soltas, definem-se sob contornos de quem as mobiliza sob critérios, proposições e intencionalidades deveras subjetivas. Não por menos, os movimentos de leitura nos deixam ver uma heterogeneidade criativa que, em diálogo com a autora, é uma fonte rica em experimentações metodológicas por onde refundamos noções sobre ocorridos e estabelecemos outras bases para os sentimentos de pertença.

        Entendendo a fluidez das variáveis, a leitura das imagens não se fixa em razão dos movimentos de uma consciência sobre si resultantes dos trânsitos realizados e grafados em termos de um corpo-memória. Os deslocamentos com as imagens permitem mutabilidade aos critérios que outrora atribuíam sentidos a uma obra e a interpelação diante delas descortina possibilidades de outros devires por onde Rivera-Cusicanqui (2018) demarca a potência das imagens para reembasar marcos sociais.

        Dizer o lugar de onde se apreende mundos é um ato metodológico para perceber-nos parte das ligações constituídas nos lugares e no tempo, e pelo qual a sociologia da imagem se propõe alerta às “conexões do imediatamente vivido” para Rivera-Cusicanqui (2015, p. 24) (tradução nossa) [9]. Confrontados por visualidades, conjugamos as perspectivas possíveis sob o peso das trajetórias e dos afetos que surgem ao propormos noções no encontro com a obra e com as narrativas que nela se ancoram.

        Admitindo o questionamento sociológico como uma atividade cotidiana e atravessada por experiências, a pesquisadora despe-se das prerrogativas de distanciamento da ciência moderna e, ao ler imagens, permite ler-se como parte dela constituinte e nela constituída. Este é, pois, o elemento-chave pelo qual Rivera-Cusicanqui (2015) entende que a sociologia da imagem nos permite estabelecer cisões entre “ver e mirar”, na medida em que o primeiro convoca uma relação pacificada com as disposições contidas nas imagens; enquanto o segundo consiste na interrogação constante como gesto para posturas reflexivas sobre as práticas de leitura que permitem emergir a consciência de si mesmo e do entorno social em que nos incluímos.

        Ver, demanda empenhos de familiarização diante dos signos da diferença e, para Rivera-Cusicanqui (2015, p. 21), isto condiciona distâncias e “uma mirada exterior aos outros”; enquanto a sociologia da imagem parte da percepção do pesquisador em interação com as ambiências e com os agentes que se envolvem nos percursos de pesquisa. Nisto, lê-las coloca em questionamento as certezas, os habituais e as rotinas a fim de radicar a sociologia da imagem em gestos de desfamiliarização. Ao propor este movimento, a pesquisadora põe em interrogação as práticas de representação e as pulsões ilustrativas pelas quais imagens assumem envergadura de cristalização das sociedades e dos povos no tempo – pela qual critica a antropologia – e nos convoca a indagar as intencionalidades que constituem políticas visuais.

        Neste rumo, Rivera-Cusicanqui (2015) desloca o lugar das imagens em pesquisas acadêmicas destituindo-as de aposto secundário aos escritos e valorando-as como costuras de sentidos capazes de exibir, em complexidade, as vinculações heterogêneas partilhadas em incursões do fotógrafo e do leitor em seus respectivos atos. Ao identificar que tais intentos são tidos como “heréticos” diante da normativa acadêmica inerente aos estudos sociológicos, Rivera-Cusicanqui (2015, p. 14)  (tradução nossa) [10] entende que estes esforços são “a lógica consequência das ausências e pontos cegos do saber universitário” e elenca, assim, modos outros de saber com as imagens como expressões de um devir incontrolável em significações urgentes nas práticas de quem inscreve e de quem lê. Diz, ainda, da insuficiência das pretensões que buscam regulamentar estatutos visuais de determinadas fotografias ao reconhecer que olhares outros podem amparar miradas imprevisíveis em razão das experiências que as angulam.

        Em que pese a atuação como docente em universidade pública, estes posicionamentos são expressões do lugar social e epistêmico por ela praticado em aliança com os sujeitos em contradição com a norma social e em crítica aos elos tecidos pelas instituições acadêmicas que se voltam a explicar o outro sob moldes rígidos. A sociologia da imagem impetrada pela pesquisadora aimará trata-se, pois, de uma concepção teórico-metodológica orientada a disputar o estatuto do saber científico ao posicionar as visualidades como terreno de leitura e de inscrição sociológica em detrimento da “escassa” e controlada narrativa contida nas escrituras e nos documentos oficiais da historiografia. Afinal, as dinâmicas de Rivera-Cusicanqui (2015, p. 90) (tradução nossa) [11] defendem ser na versatilidade tateável nas imagens “onde reside o potencial epistemológico das fontes não-escritas para desvelar a textura dos desejos coletivos, das ações e das relações sociais que são tecidas em una sociedade no-coetânea como a boliviana”.

Olhares de José de Souza Martins

        Discípulo de Florestan Fernandes, Martins (2013) reanima os intentos por fundamentar uma sociologia a partir das contradições nos processos históricos da sociedade brasileira. Para isto, empreendeu larga trajetória de leituras em Marx a partir de seminário contínuo da USP, entre 1975 a 1987, que fundamentou crítica a uma sociologia “da cópia e da importação” na medida em que constructos teóricos eram aplicados como lupas de compreensão em detrimento das particularidades contextuais do território. “Hoje pensamos o Brasil com cabeça estrangeira”, sintetiza Martins (2013, p. 45).

        Esta percepção o incentiva a tomar o cotidiano como campo problemático que, após seis anos de estudos a partir do pensamento de Lefebvre para valorar a potência do empírico e das temporalidades, se firma em caminho para tatear a sociedade como um “processo, movimento, transformação, finitude, mais do que estabilidade, permanência, estrutura” (MARTINS, 2013, p. 59). Nesta via, pondera criticamente as homogeneidades modernas ao propor que a sociedade brasileira conjuga diversos tempos sociais e culturais que não se anulam e seguem em coexistência. Adotando a orientação metodológica de Lefebvre (1980) ao recompor a dialética, Martins (1996; 2013) abre caminhos para tatear as banalidades que se escondem e que se aparentam no habitual para, com elas e a partir das experiências, tecer leituras sociológicas e interrogar a disciplina histórica.

        A variedade de temáticas na obra do autor, que têm nos escritos sobre o campesinato suas contribuições de maior repercussão, dá espaço aos estudos sobre visualidades na medida em que as percebe como expressões das sociabilidades contemporâneas frente a uma sociedade “intensamente dependente da imagem” (MARTINS, 2016, p. 36). O pesquisador destaca a fotografia por considerá-la um modo de narração cotidiana em razão dos regimes estéticos praticados como dinâmica social e da popularização de inscrições com dispositivos móveis.

        Com câmeras nas mãos, os novos contornos de visibilidade construíram processos de vigilância por onde corpos se constroem em meio às implicações sobre ser visto e ser identificado. Nesta dinâmica, é possível redimensionarmos os modos de viver e de “sobreviver socialmente” para Martins (2016, p. 158) que se ancora em perspectivas singulares “de interpretar e de interpretar-se” a partir das relações construídas com o ato fotográfico seja nas leituras potentes em significações ao nos envolvermos com a complexidade das imagens, por um lado; seja ao firmar a performance como uma prática ordinária com a qual escrevemos composições sobre o cotidiano, por outro.

        Ao problematizar o cotidiano como experiência metodológica para ler nuances da sociedade brasileira, Martins (2016) mobiliza as imagens como expressões de conhecimento que nos deixam ver as tensões que as engendram. Isto porque, para além dos itens ali constantes, o autor nos desvela para os não-figurados, para os ocultos, para as formalizações deformadoras que manifestam em imagens as relações de poder.

        A sociologia da imagem, aqui, é concebida tomando as práticas de inscrição e de leituras como modos de saber do convívio social e dos interesses impulsionados pelos diversos sujeitos envolvidos na concepção imagética. Trata-se de uma mirada de enlace em que sociologia e as visualidades são possíveis de modo conjunto e, nisto, Martins (2016) critica os exercícios utilitários ao se acirrar com as concepções positivistas nas ciências sociais que adotam fotografias, por exemplo, como documentos precisos da sociedade.

        O pesquisador defende que a complexidade da vida não pode ser resumida em uma composição imagética; cabendo, assim, olhares críticos para valorá-las como locus das seleções, das curadorias agenciadas nas relações sociais entre distintos sujeitos. Há, nas imagens, empenhos para “guardar o que ‘valia a pena’ e ‘o que queremos que fique’” (MARTINS, 2016, p. 40) em meio a um mundo vibrante em solicitações visuais pelo qual o autor evidencia o interesse da sociologia que propõe: os jogos de poder para lembrar e para esquecer.

        Esta disposição, por sua vez, reivindica imagens – especialmente as fotográficas – como documentos da “incerteza” (MARTINS, 2016, p. 37) que carecem de escrutínios e que não cabem no lugar pacífico de uma verdade indubitável. Assim, a sociologia da imagem para o pensador brasileiro contraria o estatuto da visão diante do “espelho que não mente” na medida em que nos propõe mirá-las como tessituras, como flexões em meio a imprecisões. Em criações, Martins (2015, p. 23) as aloca como configurações constituintes da realidade contemporânea e, assim, deve ser compreendida como “objeto e também sujeito” ao destacá-las como agentes de influência e como partícipes dos rumos das leituras sociais.

        Os escritos aliam, por vezes, Sociologia e Antropologia para refletir sobre relações comuns com as imagens; pois, em que pesem as diferenças dos preceitos teórico-metodológicos das disciplinas, as intenções do autor se voltam para a construção de uma fundamentação epistêmica a ser talhada em diferentes trabalhos, sob métodos e interesses ímpares. Nisto, nos convida a experimentações metodológicas ao nos embasarmos em olhares que valorem as imagens como parte do nosso cotidiano e como operação dos elos e dos jogos de poder em que atos de inscrições e de leituras são possíveis.

        Ao focar as inscrições, esta abordagem compreende-as como construções aparentes na arena instável dos imaginários pelos quais as imagens são fazíveis em procedimentos criativos que as elaboram e nas interações que as sustentam. “Ao fotografar, o fotógrafo imagina” (MARTINS, 2016, p. 64-65) e seleciona elementos a configurar a narrativa que intenciona, cadenciando o ato fotográfico como uma inscrição de perspectivas poéticas sobre o comum. Há, pois, movimentos no limiar entre os tempos da realidade social e das imaginações para, conjugando-os no ato de inscrição imagética, dizer-nos mais sobre um modo de ver e de denotar sentido ao mundo do que sobre a realidade em si.

        Encontramos, assim, tempos desempenhados no exercício das inscrições em imagens. Aliadas aos pensamentos, aos desejos, aos afetos e às intencionalidades de quem as mobiliza, as temporalidades confluem para a realidade figurada posicionando-a como uma escrita do tempo, no tempo a partir dos contextos de leitura e de escrita. Assim, as imagens possuem uma relação “flagrante” para Martins (2016), pois tempos dão-se a ver desvelando as ranhuras das palavras como firmas incontestáveis do conhecimento para validar as próprias insuficiências do visual. É neste aspecto parcial, pois, que deve residir a importância epistêmica das imagens para Martins (2016), admitindo que, em detrimento das totalidades, podemos ler as modelagens dos diversos sujeitos envolvidos – inclusive aquele que por elas são confrontados ao fazerem leituras.

        Assumir o papel dos diversos agentes envolvidos é marca das pesquisas de Martins (2016; 2013) que considera as interações entre pesquisadores, espacialidades e sujeitos outros como condição fundamental para existência de pesquisas sociológicas e antropológicas. O anonimato das ruas que permite a ação entre fotógrafos e fotografados, por exemplo, é uma trama de interação que revela impressões, atravessamentos e marcos nas vinculações ali elaboradas para dispor ficções sociais, destaca Martins (2016). Esta última, por sua vez, é tomada aqui como manifestação possível da conjunção das performances ali articuladas em vias imagéticas.

        No caso da composição de imagens, o outro figurado é um agente de poderes (MARTINS, 2016) que performa na iminência de ser visto e, assim, a realidade factível é uma experiência de ficções subjetivas em trânsito que tem na interação a possibilidade de erguer sentidos. Encontramos, nas constatações de Martins (2016), um duplo gesto metodológico a ser praticado na interação com as imagens: no primeiro, a imagem deixa ler as pessoas figurando-se na sociedade tomando esta última como um terreno instável; no segundo, permite atestar que se modelam para a sociedade aderindo às normas estéticas e com elas rompendo. Nos dois casos, há uma curadoria efetivada na atuação pública, de natureza visual, que convoca o reconhecimento dos sujeitos como agentes interventores da sociedade e das imagens em que interagem.

        Nos estudos de Martins (2016, p. 49), processos interativos convocam a partilha como base para escrita visual ao firmar imagens sob “técnicas para dar vida e realidade à ficção que nos move na sociedade”. O que se diz visualmente, pois, são nuances das ficções e dos desejos elevados pelos diversos sujeitos envolvidos – inclusive quem as lê. Entender imagens como expressões ficcionais é considerá-las como uma produção impregnada de imaginários dos agentes envolvidos; apesar da verossimilhança frente a um cotidiano que, em partes, é também um “cenário teatral e polissêmico” e uma arena aberta para arranjos de ficções sociais, como relembra Martins (2016, p. 169) para embasar uma sociologia da fotografia e da imagem como dinâmica interpretativa.

        É interpelando os elementos contidos e ausentes, desnaturalizando os componentes e os processos de construção que podemos ler imagens como dimensão de saberes sociológicos e antropológicos. Ao convocarmos códigos de leitura, Martins (2016, p. 46) aponta que praticamos “confisco visual da imagem” para valorar as agências que conferem versões plurais de significações em razão da mutabilidade dos sujeitos. Nascem, assim, perspectivas urgentes nas práticas de confisco ao admitir diferentes pontos de observações em sujeitos distintos e em um mesmo praticante, se considerarmos as transformações vividas entre uma leitura e outra.

        Os olhares que descortinam sob códigos singulares uma mesma imagem, podem “descongelar” leituras sociológicas ao acionar dimensões históricas e culturais como acenos de instabilização do visual que nos permite outros modos de ver e de indagar, segundo Martins (2016). Temos, assim, a leitura sociológica das imagens como um manifesto para interpelar as flexões de memórias e de esquecimento que amparam tessituras de sentidos.

        Ao evocar exercícios de memória, Martins (2016) toma as fotografias como apontamentos a serem manejados pelo leitor ao conceber lembranças daquilo que se perdeu no efêmero e que outrora buscou-se conservar no imaginário a partir de inscrições visuais. Nisto, imagens nos permitem ler os dados sociais elevados à dignidade de serem recordados e os relegados ao esquecimento em remontes sob as variáveis de quem as confronta.

        Miramos o cotidiano de modo fugaz e construímos memórias imprecisas sobre o que julgamos trivial e, nisto, Martins (2016, p. 165) entende o ato de lembrar como a mobilização de “manchas e borrões” que desenham formas informes frente às experiências do viver de cada dia. Contudo, o que julgamos digno a ser inventado em imagens perfaz apontamentos de memória como ritualísticas ficcionais instauradas cotidianamente e acionáveis como gatilhos a partir das interações. O que mantém as imagens na parede e no álbum é o valor simbólico daquelas memórias e o desejo de narrá-las a outras pessoas tecendo, na rotina, modulações sobre o que dela se distancia.

        A sociologia da imagem, aqui, convoca um incômodo diante das ausências dos habituais que foram distanciados no processo de concepção visual ao indagar os imaginários e os juízos que atribuíram valia a dadas vivências e a outras não. Os outros, os indignos de serem lembrados e de aparecerem nas imagens, apresentam-se como objeto de interesse na leitura. Afinal, como problematiza Martins (2016, p. 28), a presença e a ausência coexistem: o que se faz visível revela as faltas e podem ser compreendidas como um “realismo da incerteza” se apontarmos a verossimilhança como um indício imaginário.

        Não se trata, assim, de uma coexistência pacífica. As fissuras entre ocultação e revelação são características da lida cotidiana e afloram, para Martins (2016), tanto nos processos de inscrição, quanto nas dinâmicas de leituras das imagens. Ao praticarmos relações com as imagens, deste modo, nos situamos em meio à instabilidade das tensões constituintes buscando compreendê-las, interrogando os imaginários e as ligações que fundaram a visualidade em questão.

        Esta postura, pois, é uma ruptura com as práticas modernas que adotaram imagens – sobretudo fotográficas – como atestados do real. Martins (2016, p. 93) fundamenta o deslocamento epistêmico considerando que “a colonização foi também visual” ao ponderar juízos sobre o belo e sobre o memorável; mas, sobretudo, ao limitar modos de ver e de compreender o mundo. Lançar olhares duvidosos e desterrar visualidades como construtos ficcionais dos jogos de poder para mostrar e para omitir mundos são, aqui, fundamentações teórico-metodológicas em potência pela qual Martins (2016) embasa a sociologia da imagem como um conhecimento emergente das contradições.

        São nas contradições que as relações constituídas em cada imagem possibilitam confrontá-las como chaves de leitura sociológica e antropológica, de acordo com Martins (2016). Os lugares, os sujeitos envolvidos e o contexto das conexões ali vividas requisitam serem convocados valorando os interesses em cena e, nisto, imagens nos dizem muito mais sobre o entremeado complexo que as funda e sobre o desenovelar de vínculos nelas possíveis, do que narram um atestado realista do que fora enquadrado e impresso. Por isso, a conexão constituída por sociólogos e antropólogos “precisam de muito mais do que uma foto para compreender o que uma foto contém”, como ensina Martins (2016, p. 174) ao convocar modos outros de lê-las e de inscrevê-las.

Considerações Finais

        As concepções de sociologia da imagem propostas por Rivera-Cusicanqui e por Martins são expressões das peculiaridades ensaiadas pelos docentes ao evocar visualidades como campo problemático para saberes sociais. Em que pesem as diferenças epistêmicas e de trajetórias, ambos convocam modos de ver as tensões e os jogos de poder nas inscrições e nas leituras das imagens e, nisto, fundamentam percursos a serem constituídos como experiência metodológica tomando relações com imagens em práticas de instabilidades.

        Não há, para os pensadores apresentados, uma orientação esquemática sobre as formas de experienciar sociologias da imagem. Ao passo em que, com o reconhecimento do caráter transitório dos sentidos das imagens, os atos de escrita complexificam-se como proposições de significados; sem encerrá-los ante a fluidez da elaboração singular a cada ato de leitura. Assim, tanto em práticas de escrita, quanto de leitura, há tomadas de posição com as quais realizamos uma “aventura” (MARTINS, 2013) epistêmica que nos é própria e que precede uma “indisciplina” (RIVERA-CUSICANQUI, 2015) metodológica para produzir aberturas capazes de deslocar os modos de saber com imagens e desnaturalizar o cotidiano. É movendo a fotografia de uma figuração monolítica para dar lugar a diferentes modos de mirá-la e de com ela conjurar sentidos que, angulações imprecisas – e por isso potentes – podem emergir como exercício das sociologias da imagem proposta pelos autores.

        Ao afirmarem as visualidades como objetos de conhecimento sociológico, os escritos realizam críticas ao uso instrumental e secundário das imagens sob lupas homogeneizantes em investigações científicas. De modos particulares, ambos reconhecem que o pesquisador realiza agências em meio a um terreno movediço pelo qual as miradas complexificam interpretações dos vínculos sociais e dos imaginários em jogo nas imagens. Relacionar-se com imagens, nestas fundamentações epistêmicas, confere as sociologias das imagens como uma experiência em que “políticas de uma mirada intrusa” (JÁCOME; KABALIN; LEAL, 2021) são configuradas a partir das tensões entre quem olha e quem é olhado.

        O tato sobre as diferentes agências que permitem distintas leituras sociológicas é, também, um convite para pensarmos as “sociologias” da imagem que tomam contornos plurais tanto com a possibilidade de distintos percursos de inscrição e de leitura da sociedade com dispositivos visuais que destoam de um aporte metodológico único e linear; quanto na configuração de saberes incalculáveis. Trata-se de um chamado para, com a relação peculiar a ser desenvolvida com imagens, tecer práticas que modulem perspectivas inexploradas, valorizando a heterogeneidade criativa que embasa o encontro entre agentes – sejam eles fotógrafos, fotografados ou fotografia.

        As sociologias da imagem de Rivera-Cusicanqui e de Martins são convites para sairmos dos enquadramentos e nos incomodarmos com o que não cabe nas telas: com os rearranjos que visibilizam, que omitem, que suscitam apontamentos de lembranças, que engendram esquecimentos e que, articulados, ancoram-se em demonstrações das relações de poder em meio ao plano duvidoso das visualidades. Este firmamento que reforça a dúvida diante do visível como uma marca sociológica e como uma experiência metodológica se faz em aproximações nas quais pesquisadores despem-se de isenções para, assim, perceberem-se sujeitos de interesses em atravessamentos com as imagens. Ao evocar o sujeito que lê como um interpretante para a sociologia da imagem, deixamos vir os emergentes do encontro que as constitui; assim como assumimos os afetos e as perguntas ali desencadeadas como depoentes dos nossos modos de mirar e de sentir.

        Os esforços de Rivera-Cusicanqui, para recompor leituras diante dos fragmentos imagéticos legados ao passado, e de Martins, ao problematizar o presente contemporâneo em fotografias, posicionam diferentes tempos sociais para as sociologias das imagens. Estes, por sua vez, não se anulam e complexificam abordagens ao conceberem possibilidades distintas de dinâmicas temporais em razão de uma sociedade em movimento e dos trânsitos de escrita e de leitura das imagens.

        Problematizar contextos e atenuar as variáveis contidas nos vínculos sociais que permitem a execução das imagens é, nos escritos, um exercício de temporalização por onde as interações manifestáveis são possíveis. As visualidades, miradas como tensões de investigação, exigem posturas críticas que afloram questões em meio às pesquisas e que demandam aberturas epistêmicas capazes de acolher percursos metodológicos como uma experiência emergente e imprecisa. Reconhecer a pluralidade de conhecimentos sociológicos nas imagens demarca, por um lado, miradas críticas às elaborações que se propõem a estabilizar realidades em um dispositivo visual; e, por outro, a tecer relações com as imagens que valorizem agências urgentes nos atos de inscrições e de leitura e os diferentes traçados das significações como modos de saber.

Notas

[1] La sociología era la única disciplina que me parecía iba a conectarme con el hacer político/creativo, que considero mi auténtica e irrenunciable vocación.

[2] [...] o impulso colectivo de realizar un deseo, el acto de conocer/actualizar el pasado y de imaginar otro futuro posible en el camino.

[3] [...] sin formar un trayecto rectilíneo o unidimensional.

[4] [...] una interpretación de la sociedad de su época, en sus dimensiones abigarradas y conflictivas.

[5] [...] entrelaza la teoría con la práctica.

[6] [...] una práctica teórica, estética y ética que no reconozca fronteras entre la creación artística y la reflexión conceptual y política.

[7] [...] una especie de invernadero de experimentación pedagógica.

[8] [...] propongo más bien comprenderlas como piezas hermenéuticas en y por sí mismas, atravesadas por voces de autor que no sólo describen o reflejan una realidad dada, sino que la interpretan, teorizan y reflexionan sobre ella, brindándonos una mirada sociológica sobre la organización, los valores y las fuerzas morales que moldean la sociedad.

[9] [...] conexiones de lo inmediatamente vivido.

[10] [...] nuestro punto de vista eran la lógica consecuencia de las ausencias y puntos ciegos del saber universitário.

[11] [...] donde reside el potencial epistemológico de las fuentes no escritas, para develar la textura de los deseos colectivos, las acciones y las relaciones sociales que se entretejen en una sociedad no-coetánea como la boliviana.

Referências

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