Reflexões sobre a importância do pânico sexual para a ascensão do bolsonarismo ao poder

Allan Santos1

Resumo

Com a finalidade de problematizar narrativas acríticas que creditam a ascensão do bolsonarismo ao poder como um efeito de discursos espontâneos e estrategicamente desarticulados, refletimos sobre a importância da mobilização afetiva pela manutenção das hierarquias de gênero e sexualidade para o fortalecimento desse movimento político. Nesse contexto, o trabalho examina alguns dos processos comunicacionais por meio dos quais políticas sexuais endossadas pelos governos petistas (2003-2016) foram estigmatizadas como ameaças ideológicas orquestradas por anormalidades perversas e degeneradas. O objetivo é investigar a publicação, feita por Jair Bolsonaro, de conteúdos digitais que normatizam a heterossexualidade como uma dimensão natural e constitutiva da existência humana para a midiatização do pânico sexual na cultura brasileira contemporânea. Por meio da análise histórico-processual de 12 postagens compartilhadas na página do então deputado federal no Facebook, foi observado que as formas de subjetivação que alimentam o fenômeno aqui investigado são estabelecidas por meio de três eixos discursivos: 1) os interesses perversos petistas na desconstrução da heteronormatividade; 2) os perigos da inclusão da ideologia de gênero nas escolas públicas do ensino básico; 3) a iminente ameaça pedófila encarnada pelo monstro moral contemporâneo.

Palavras-chave

Bolsonarismo; Pânico Sexual; Monstros Morais Contemporâneos; Heteronormatividade; Midiatização.

1 Doutorando em Comunicação pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (ECO/UFRJ), com estágio doutoral na Université Paris 8 (LEGS - Laboratoire d’Études de Genre et de Sexualité). Pesquisador integrante do Núcleo de Estudos e Comunicação, História e Saúde (NECHS - Fiocruz/UFRJ). E-mail: allansantos29ny@gmail.com.

Considerations on the importance of sexual panic for the rise of Bolsonarism to power

Allan Santos1

Abstract

In order to problematize uncritical narratives that credit the rise of Bolsonarism to power as an effect of spontaneous and strategically disjointed discourses, we reflect on the importance of affective mobilization for the maintenance of gender and sexuality hierarchies for the strengthening of this political movement. In this context, the paper examines some of the communicational processes through which sexual policies endorsed by PT governments (2003-2016) were stigmatized as ideological threats orchestrated by perverse and degenerate abnormalities. The objective is to investigate the publication, by Jair Bolsonaro, of digital content that normalizes heterosexuality as a natural and constitutive dimension of human existence for the mediatization of sexual panic in contemporary Brazilian culture. Through the historical-procedural analysis of 12 posts shared on the page of the then federal deputy on Facebook, it was observed that the forms of subjectivation that feed the phenomenon investigated here are established through three discursive axes: 1) the perverse PT interests in the deconstruction of heteronormativity; 2) the dangers of including gender ideology in public elementary schools; 3) the imminent pedophile threat embodied by the contemporary moral monster.

Keywords

Bolsonarism; Sexual Panic; Contemporary Moral Monsters; Heteronormativity; Mediatization.

1 Doutorando em Comunicação pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (ECO/UFRJ), com estágio doutoral na Université Paris 8 (LEGS - Laboratoire d’Études de Genre et de Sexualité). Pesquisador integrante do Núcleo de Estudos e Comunicação, História e Saúde (NECHS - Fiocruz/UFRJ). E-mail: allansantos29ny@gmail.com.

Introdução

Sr. Presidente, meus companheiros, quero tratar de um assunto que, no meu entender, em 20 anos de Congresso Nacional, é o maior escândalo de que já tomei conhecimento. Não tem nada a ver com corrupção. Afinal de contas, esse é um tema corriqueiro neste Governo [1]. (BRASIL, 2010a, On-line).

Com essa fala amedrontadora, Jair Bolsonaro subiu pela primeira vez à Tribuna da Câmara, em 30 de novembro de 2010, para advertir sobre a “necessidade de providências da Presidência da Casa a respeito do lançamento do kit intitulado Combate à Homofobia” [2] (BRASIL, 2010a, On-line). Conforme consta nos arquivos dos Discursos e Notas Taquigráficas disponibilizados pelo site da Câmara dos Deputados, os adjetivos aterrorizantes e sentimentos de aversão performatizados pelo então deputado federal marcaram a genealogia do pânico sexual que o projeto de poder bolsonarista fabricaria na cultura brasileira contemporânea ao longo dos próximos anos em defesa da inocência infantil e da instituição familiar contra a perversidade de monstruosidades homossexuais e pedófilas.

Conforme analisado por Foucault ([1976] 2014), a sexualidade tornou-se alvo de constantes investimentos políticos nos séculos da modernidade europeia, estando em um domínio de formação discursiva sobre o sexo que tem historicamente atravessado diferentes posições dos sujeitos na sociedade. Nesse contexto, a heteronormatividade diz respeito às relações de poder-saber, instituições convencionais, práticas culturais e estruturas sociais que têm sido articuladas para a construção da heterossexualidade enquanto uma dimensão natural e constitutiva da existência humana (BUTLER, [1990] 2003; LOURO, 2004). Deslocando o debate para a cultura brasileira contemporânea, o artigo questiona a importância da mobilização afetiva em prol da manutenção das hierarquias normatizadas a partir da matriz heterossexual compulsória — e a sua lógica de opressões de gênero e sexualidade — para a ascensão do bolsonarismo ao poder.

Em nome de “uma proteção geral da sociedade” (FOUCAULT, [1976] 2014, p. 122), o discurso democrático de tolerância às diferenças e diversidades humanas vem sendo gradativamente substituído pela constante sensação de ameaça à manutenção dos valores associados à defesa da infância e da família enquanto tecnologias biopolíticas de controle de populações específicas (FOUCAULT, [1978-1979], 2008). De fato, observamos que é justamente pela produção discursiva do pânico nos processos comunicacionais que se incrementa a necessidade do ataque às subjetividades estereotipadas como pervertidas e aos corpos rotulados como abjetos. Conforme argumentado em outro trabalho (SANTOS; SACRAMENTO; SANCHES, 2020), a vigilância e a intolerância às conquistas políticas em torno dos direitos sexuais como direitos humanos (CARRARA, 2015) têm sido elementos constitutivos no processo de construção do “pânico sexual” (VANCE, 1984; RUBIN, [1984] 2017; IRVINE, 2009) que visa à produção do consenso em torno da necessidade do reestabelecimento da ordem moral conservadora na História recente de um Brasil marcado pelo fortalecimento do projeto de poder bolsonarista.

Seguindo os passos investigativos trilhados por Rocha (2021), dificilmente entenderemos o bolsonarismo como fenômeno político de massas, com uma poderosa capacidade de mobilização, se não passarmos da caricatura à caracterização. Assim sendo, o bolsonarismo é compreendido neste trabalho como a atualização de um movimento político que articula os sistemas de crenças, valores morais, modos de agir e linguagens que têm vinculado os grupos de direita nos espaços públicos desde o processo de redemocratização do Brasil e, mais recentemente, nos ambientes de sociabilidade digital. Entretanto, embora o bolsonarismo não somente teria antecedido como pode vir a suceder o personagem que lhe corporifica, foi principalmente a partir da visibilidade midiática alcançada pelo então deputado federal Jair Bolsonaro (1991-2018) que o movimento político de extrema-direita passou a ser gradualmente compreendido como uma expressão das moralidades conservadoras gestadas como demandas políticas por uma parcela significativa da população brasileira. Nesse sentido, é de fundamental importância a observação das rupturas que a visibilidade midiática alcançada por meio de narrativas que amedrontam a população sobre os riscos impostos pela distribuição de um suposto “kit gay” nas escolas públicas do ensino básico assinalaram no processo de ascensão do bolsonarismo ao poder.

Com este trabalho, objetivamos problematizar narrativas muitas vezes acríticas que creditam a ascensão do bolsonarismo ao poder como um efeito do acaso, circunscrevendo a figura de Jair Bolsonaro ao somatório de performances espontâneas espetacularizadas por um bufão sem propósitos políticos ou estratégias discursivas minimamente articulados. Desde pelo menos 2010, o discurso bolsonarista tem consistentemente estigmatizado as políticas sexuais petistas — mais notadamente o “Brasil Sem Homofobia” e o “Escola Sem Homofobia” — como ameaças ideológicas orquestradas por anormalidades perversas e degeneradas para “ganhar visibilidade em comunidades de nicho” e, mais especificamente a partir de 2014, para “deixar nichos conservadores e investir na construção de bases de visibilidade para lançar sua candidatura à presidência” (ALVES, 2019, p. 84-85).

Somente no ano de 2011, conforme aponta pesquisa realizada por Nascimento et al. (2018), das 91 matérias publicadas pela Folha de São Paulo e O Estado de São Paulo com algum tipo de pauta política sobre o então deputado federal, 78 eram relacionadas à retórica “antidireitos humanos”. Para além de preencher os critérios de noticiabilidade que lhe garantiam ampla cobertura nos jornais impressos e programas de jornalismo da televisão, Bolsonaro se tornou presença frequente em programas de auditório nos quais as suas opiniões sobre temas sociais sensíveis eram abordadas pelas chaves da polêmica e do humor: das 33 participações contabilizadas entre 2010 e 2018, 11 foram no Superpop, cinco no CQC, duas no Programa do Ratinho e uma no Pânico na Band (PIAIA; NUNES, 2018, s. p.). Seguindo uma estratégia consagrada por Donald Trump nos EUA, o então deputado federal explorou o entretenimento como uma nova frente de exposição midiática e um vetor fundamental para a sua projeção nacional.

No entanto, foi com o lançamento da página oficial de Jair Bolsonaro no Facebook, em 14 de junho de 2013, que o processo de midiatização do pânico sexual bolsonarista passou a ser potencializado pelas mídias digitais. É, portanto, no contexto das Jornadas de Junho de 2013 e do crescente descrédito com as formas tradicionais de mediação institucional que a página oficial de Bolsonaro no Facebook se constitui como um dos canais por meio dos quais a comunicação do então deputado federal se dá de forma mais direta com os seus seguidores.

Para se inscrever na ordem social e cultural, a mediação precisa de bases materiais e simbólicas que se consubstanciam, por exemplo, em instituições ou formas reguladoras dos relacionamentos em sociedade. No campo teórico da sociologia da cultura, a mediação foi apropriada como categoria analítica privilegiada por pesquisadores latino-americanos, como Jesús-Martín Barbero e Orozco Gómes, para os quais uma imagem é algo que se interpõe entre o indivíduo e o mundo para construir o conhecimento. No entanto, a ontologia substancialista dessa correlação progressivamente tende a desaparecer, e o indivíduo (ou o mundo) é descrito, ele próprio, como imagem gerida por um código tecnológico (SODRÉ, 2014, p. 108). Ao oferecer condições para que o bolsonarismo transpusesse algumas das mediações tradicionalmente estabelecidas entre os atores políticos e os seus públicos, o Facebook emerge como a plataforma digital mais importante na consolidação da imagem de Bolsonaro como uma possível alternativa de poder para os sujeitos que não se viam representados pelas elites políticas até então estabelecidas (ALMEIDA, 2019; GOLDSTEIN, 2019).

Dessa forma, o fenômeno aqui investigado não se limita a um processo de instrumentalização das mídias por Jair Bolsonaro para a veiculação de discursos que normatizam a heterossexualidade como uma dimensão compulsória do humano, mas está inserido em um contexto histórico marcado pela “midiatização das práticas sociais” (MARTINO, 2019) no qual visões de mundo são articuladas pelo novo ecossistema existencial caracterizado por Sodré (2002, 2014) como um “bios virtual”. Uma vez que a ampla circulação de mensagens no Facebook respeita decisões comerciais e posicionamentos institucionais inscritos em “artefatos algorítmicos” (ALVES, 2019, p. 25), o projeto de poder de extrema-direita se apropria dessas lógicas de funcionalidade para o desenvolvimento de conteúdos digitais que lhe possibilitam engajar comunicacionalmente milhões de usuários nos processos de consumo, comentários, remixagem e compartilhamento das postagens que midiatizam o pânico sexual bolsonarista. É, portanto, principalmente por meio da midiatização que este pânico sexual é vivenciado enquanto experiência política conservadora na cultura brasileira contemporânea.

Teoricamente, as reflexões aqui desenvolvidas partem da noção de pânico moral originalmente proposta por Cohen (1972), não para acolhê-la em sua totalidade, mas para, a partir desse gesto epistemológico inicial, apresentar algumas das diversas atualizações e críticas que contribuíram para o amadurecimento do conceito ao longo dos seus 50 anos de existência [3]. Dessa forma, o artigo articula o conceito de “pânico moral” (COHEN, ([1972] 2002), às críticas propostas por Vance (1984), Rubin ([1984] 2017), Watney ([1987] 1996), e Irvine (2009) por meio do conceito de “pânico sexual”, atualizando as lutas ideológicas historicamente travadas pelos significados dos signos e das representações públicas articuladas pela sexualidade humana em uma questão política contemporânea.

Em termos metodológicos, foram coletadas e armazenadas, por meio de print screen, postagens compartilhadas pelo então deputado federal Jair Messias Bolsonaro em sua página oficial do Facebook a partir dos seguintes critérios: 1) que contivessem uma das seguintes palavras-chave: criança, crianças, criancinha, criancinhas, infância, infantil, família, famílias, pedofilia e homossexualidade; 2) que tivessem sido compartilhadas previamente ao início oficial da campanha de Bolsonaro para a Presidência da República de 2018, ou seja, entre 14 de junho de 2013 (criação do perfil na plataforma digital) e 22 de julho de 2018 (oficialização de sua candidatura à presidência). De um total de 52 postagens identificadas, foram selecionadas 12 postagens compartilhadas pelo político por serem aquelas que articulam, a partir da combinação de textos e imagens, os programas educacionais petistas à sexualização perversa da infância. Por meio da análise histórico-processual do material empírico selecionado, investigamos os processos de construção do pânico sexual bolsonarista e de fabricação de monstros morais contemporâneos como formas de produção — e recrudescimento — de subjetividades cada vez menos comprometidas com as formas mais elementares da democracia e justiça social.

Da moralização à sexualização do pânico

Para Cohen ([1972] 2002), o pânico moral ocorre quando uma condição, episódio, pessoa ou grupo de pessoas emerge para ser definido como uma ameaça volátil e exagerada aos valores e interesses sociais, sendo caracterizado pelo papel central da mídia na amplificação do desvio dos grupos sociais demonizados (folk devils). Há, portanto, um enfoque teórico à volatilidade dos episódios de pânico moral que é contestado neste artigo, enfatizando os padrões normativos de representação historicamente sedimentados que o bolsonarismo repetidamente aciona em seus discursos. Nesse movimento crítico à suposição circunstancial presente em algumas das formulações dos precursores da teoria do pânico moral, nos aliamos a Watney ([1987] 1996) para quem a teoria do pânico moral cunhada por  Cohen revela-se incapaz de desenvolver uma formulação completa relativa às operações ideológicas que se dão em todos os sistemas representacionais. Nas próprias palavras do autor:

O pânico moral parece aparecer e desaparecer, como se a representação não fosse o local da permanente luta ideológica sobre o significado dos signos. Um “pânico moral” específico marca o local da linha de frente atual em tais lutas. De fato, não testemunhamos o desenrolar de “pânicos morais” descontínuos e discretos, mas a mobilidade do confronto ideológico em todo o campo das representações públicas, e em particular daqueles que lidam e avaliam os significados do corpo humano, onde são rivais e incompatíveis forças e valores envolvidos em uma luta incessante para definir verdades “humanas” supostamente universais [4] (WATNEY, [1987] 1996, p. 42) (tradução nossa).

Embora a sua capacidade de descrever os embates travados no campo das moralidades como disputas políticas seja amplamente reconhecida, a teoria do pânico moral possui limites analíticos: o conceito não dá conta de explicar os processos de subjetivação e as relações de poder que alimentam o fenômeno nomeado. Apesar da importância da proposição formulada por Cohen (1972), o contexto social, político, econômico e cultural no qual os “processos de rotulagem” acontecem — como o de “empreendimento moral” desenvolvido por Becker (1963) e o de “estigmatização” popularizado por Goffman ([1963] 1981) — não é necessariamente relevante para a sua análise.

Derivado do conceito de “pânico moral” (COHEN, ([1972] 2002), o termo “pânico sexual” foi cunhado pela antropóloga Carole Vance, em 1984, para explicar inflamadas e recorrentes batalhas sobre sexualidade, capturando o clima hostil do final do século XX decorrente das lutas pelos direitos gays, a favor da educação sexual e contra a censura (IRVINE, 2009, p. 234). Nesse contexto, Rubin ([1984] 2017, p. 109) estabelece que o pânico moral é o mais importante tipo de conflito sexual, sendo compreendido como “o momento político do sexo” no qual valores difusos são canalizados em ações políticas. A noção de pânico sexual, portanto, se concentra no processo de transformação da sexualidade em uma questão política, sendo necessário observar quando as disputas públicas sobre a moralidade sexual se tornam mais importantes do que a guerra, a miséria, o desemprego e o meio ambiente. Conforme declararia Bolsonaro em um discurso proferido na Tribuna da Câmara sobre a distribuição do “kit gay” nas escolas públicas pelo governo federal: “Isso é sério. Entendo até que é questão de soberania nacional” [5] (BRASIL, 2010b, On-line).

Portanto, este trabalho analisa o processo de estigmatização das políticas públicas endossadas pelos governos petistas (2003-2016) contra a homofobia e em prol das diversas formas de existência humana como o de midiatização de um pânico sexual. Conforme sugere Irvine (2009), o fenômeno que se iniciou em 2010 com o “kit gay” — se desdobrando no fechamento antecipado da exposição Queermuseu, na criminalização da performance La Bête no MAM de São Paulo, na fake news da “mamadeira de piroca” e em outros acontecimentos que têm afetado os modos de nos relacionarmos enquanto sociedade — não se trata meramente de uma volatilidade coletiva tendenciosa e momentânea, mas sobretudo de profundas dimensões emocionais articuladas à sexualidade humana que legitimam e reforçam estruturas de dominação heteronormativas supostamente ameaçadas pelas lutas políticas por direitos sexuais e pelas novas gramáticas morais que emergem desses embates. É nesse contexto histórico que a mobilização afetiva pela manutenção das hierarquias de gênero e sexualidade passa a absorver ansiedades sociais historicamente construídas e concentrar esforços para a normalização das subjetividades dissidentes ao projeto de poder bolsonarista.

Desconstrução da heteronormatividade, ideologia de gênero e pedofilia

Seguindo o pensamento de Irvine (2009), para se ter um alcance analítico é necessário compreendermos a midiatização do pânico sexual bolsonarista na cultura brasileira contemporânea não como erupções irracionais e espontâneas de aversão a grupos sociais demonizados, mas como acontecimentos políticos mobilizados por roteiros altamente emocionais e performatizados em contextos históricos específicos para reforçar a moralidade conservadora. Portanto, a análise histórico-processual dos 12 conteúdos postados pelo então deputado federal Jair Bolsonaro em sua página no Facebook indica o delineamento de um fenômeno que dialoga com o modus operandi de líderes da extrema-direita, nos moldes de Trump, Salvini, Orban e Erdogan: a mobilização afetiva contra o desenvolvimento de políticas públicas voltadas à conquista de direitos sexuais por meio da constituição de circuitos comunicacionais de indiferença aos valores democráticos. Nesse contexto, as formas de subjetivação que dão musculatura à midiatização do pânico sexual bolsonarista são estabelecidas por meio de três eixos discursivos: 1) os interesses perversos petistas na desconstrução da heteronormatividade; 2) os perigos da inclusão da ideologia de gênero nas escolas públicas do ensino básico; 3) a iminente ameaça pedófila encarnada pelo monstro moral contemporâneo.

Como gesto inaugural do processo de conversão de expressões afetivas reacionárias no pânico sexual que concederia ampla visibilidade midiática ao bolsonarismo, os programas educacionais endossados pelos governos petistas (2003-2016) foram estigmatizados por Jair Bolsonaro como instrumentos perversos endossados por monstros morais para a desconstrução da heteronormatividade. Ao reforçar a heterossexualidade como uma dimensão natural e constitutiva da existência humana, o ex-capitão do Exército articula padrões normativos de representação historicamente sedimentados pelos produtos culturais e midiáticos para a construção do pânico. Resgatando a crítica de Watney ([1987] 1996) à noção de pânico moral originalmente formulada por Cohen ([1972] 2002), observamos que, embora os signos que impulsionam os sentimentos de aversão e horror estejam temporalmente localizados na cultura contemporânea, as operações ideológicas que informam os seus significados têm perpassado o processo de formação histórica brasileira. Dessa forma, os riscos do material pedagógico popularmente conhecido como “kit gay” não são midiatizados pelo pânico sexual bolsonarista como ameaças voláteis aos valores morais e interesses sociais, como teria definido Cohen ([1972] 2002), mas como as atualizações de disputas políticas históricas pela definição de verdades supostamente universais.

Conforme exposto na imagem 1, o “kit gay” materializaria o interesse do PT em “doutrinar nossos filhos e netos” pelo “fim da heteronormatividade” (BOLSONARO, 2015e, On-line) dentre outras finalidades. Como fica enfatizado em caixa alta no conteúdo digital, postado em 09 de setembro de 2015, “OU ACABAMOS COM O PT OU O PT ACABA COM A FAMILIA” (BOLSONARO, 2015e, On-line). Em outras palavras, ou os sujeitos conservadores apoiam o bolsonarismo em sua cruzada moral contra as políticas perversas petistas ou o conjunto das relações de poder, sistemas de crença, práticas culturais e instituições convencionais que têm historicamente informado as suas existências corre o risco de ser extinto pelos monstros morais materializados no Partido dos Trabalhadores.

Imagem 1 - Vinde a mim as criancinhas.

https://bit.ly/3WGjdrg 

Fonte: Página de Bolsonaro no Facebook (2015e)

O título da postagem que acompanha a imagem de Jesus Cristo cercado por criancinhas — “A FAMÍLIA NO PENSAMENTO MARXISTA” (BOLSONARO, 2015e, On-line) — atualiza na linguagem das disputas políticas contemporâneas as permanentes lutas ideológicas pela preservação da instituição familiar enquanto um dos pilares da tradição judaico-cristã. Dessa forma, ao posicionar a inocência infantil e a sacralidade familiar como as vítimas centrais do plano arquitetado pela esquerda petista para se perpetuar no poder — via a desconstrução da heteronormatividade —, o pânico sexual midiatizado pelo bolsonarismo mobiliza expressões afetivas reacionárias que reforçam nos cidadãos comuns a crença de que quaisquer corpos e subjetividades que ameacem desestabilizar a coesão sexo-gênero-desejo vivificam monstros morais que precisam ser normalizados e/ou aniquilados.

Em junho de 2014, por exemplo, o Plano Nacional de Educação (PNE 2014-2024) foi decretado e sancionado pela ex-presidente Dilma Rousseff depois de tramitar por quatro anos no Congresso Nacional. Como expõe a imagem 2, a postagem de 22 de abril de 2014 comemora a rejeição do “Plano Nacional LGBT”, tendo em vista que foi suprimido “do texto final do PNE todos os trechos em que ‘gênero’, ‘orientação sexual’ e ‘sexualidade’ eram explicitamente mencionados” (CARRARA, 2015, p. 323). Dessa forma, graças ao empenho da família tradicional brasileira e “com a força da bancada evangélica”, o bolsonarismo teria conseguido que “itens a serem ensinados nas escolas primárias do Brasil, como a desconstrução da heteronormatividade e outros” (BOLSONARO, 2014, On-line) fossem rejeitados da proposta elaborada por “grupos homossexuais que visam abocanhar o erário público e as crianças nas escolas de nosso país” (BOLSONARO, 2014, On-line).

Imagem 2 - Grande vitória da família brasileira.

https://bit.ly/3jj0ZO3 

Fonte: Página de Bolsonaro no Facebook (2014)

O que se observa na sequência é a sucessiva instrumentalização de acontecimentos sócio-político-culturais como combustíveis que, ao deslocarem os sentidos articulados pelo significante “kit gay”, inflamam o processo de midiatização do pânico sexual da infância e da família ameaçadas por monstros morais. Um momento crucial que informa essa análise, exposto pela imagem 3, é a denúncia de que o MEC teria estipulado a inclusão da ideologia de gênero no Plano Municipal de Educação, revelando publicamente a insistência perversa do governo do PT “em orientar as crianças de 6, 7 ou 8 anos também para o homossexualismo (sic) DENTRO DAS ESCOLAS” (BOLSONARO, 2015b, On-line). Para além das acusações de “desconstrução da heteronormatividade” por meio da qual “[c]riancinhas a partir de 5 anos de idade aprenderão que elas NÃO NASCEM HOMENS OU MULHERES” [6] (BOLSONARO, 2015b, On-line), o discurso bolsonarista estereotipa os materiais pedagógicos endossados pelo MEC como estímulos ao “homossexualismo (sic) e tudo o que podemos imaginar de ruim dentro das escolas” [7] (BRASIL, 2010c, On-line). Em um discurso ainda mais radical, o parlamentar alarma as mães e pais brasileiros de que “após doutrinação escolar, via ‘identidade de gênero’, o seu filho de 12, 13 ou 14 anos, caso queira, poderá se submeter a (sic) cirurgia de mudança de sexo” [8] (BOLSONARO, 2015c, On-line).

Imagem 3 - A ideologia de gênero como um estímulo ao homossexualismo (sic) infantil.

https://bit.ly/3WImt5p 

Fonte: Página de Bolsonaro no Facebook (2015b)

Conforme identifica Maracci (2018), embora o “Kit de Combate a Homofobia” — cuja distribuição nas escolas públicas foi suspensa pela ex-presidente Dilma Rousseff, em 26 de maio de 2011 [9] — seja o ponto de referência fundacional do “kit gay”, Jair Bolsonaro compartilha conteúdos digitais em sua página no Facebook que comunicam a constante ameaça do retorno dos perigos acionados pelo termo pejorativo, extrapolando o escopo de atuação dos programas “Brasil Sem Homofobia” e “Escola Sem Homofobia”. Nesse contexto, ao midiatizar o pânico sexual na linguagem do “campo discursivo de ação conservador transnacional” (MISKOLCI; CAMPANA, 2017, p. 730) articulado pela ideologia de gênero, o parlamentar associa as políticas sexuais petistas a um suposto plano marxista de dominação global. Ainda assim, os sentidos articulados pelo discurso bolsonarista são ampliados temporalmente ao “adiciona[r] camadas de historicidade[s]” (MARACCI, 2019, p. 95) que traçam genealogicamente a fabricação de monstros morais na cultura brasileira contemporânea à IV Conferência Mundial sobre a Mulher (Beijing, 1995) na qual o conceito de gênero passou a ser usado nos eventos organizados pela Organização das Nações Unidas (ONU).

Na esteira dessas iniciativas transnacionais, os governos de Lula da Silva (2003-2006/2007-2010) reconheceram a necessidade do desenvolvimento de programas sociais voltados às questões de direitos humanos que envolvessem a abordagem da diversidade sexual e de gênero. De forma paradoxal, a comunicação das lutas por direitos sexuais na linguagem dos direitos humanos sedimenta o solo moral a partir do qual a expressão política bolsonarista conquista relevante espaço na agenda midiática, permitindo ao ex-capitão do Exército falar para além dos círculos militares que tradicionalmente lhe elegiam. Ainda assim, os deslocamentos de sentidos promovidos pelo reconhecimento legal dos corpos e subjetividades LGBTQIA+ como sujeitos de direitos humanos contribuíram para a produção de efeitos significativos na formulação do “monstro moral contemporâneo” (LOWENKRON, 2012). Conforme sintetizado pela antropóloga Laura Lowenkron na definição do pedófilo como o monstro moral contemporâneo:

Como se pode notar, paralelamente à construção da sexualidade e da “diversidade sexual” como um valor e, assim, um “direito”, emergiram “inimigos” da “boa sexualidade”, de modo que essa nova ordem sexual também produziu os seus próprios resíduos: os “irresponsáveis”, que não tomam o cuidado devido (consigo e com os outros) e, no limite mais extremo e monstruoso, os “pedófilos” ou “abusadores” de crianças, que desrespeitam os principais critérios — “responsabilidade”, “consentimento” e “igualdade” — que definem o sexo livre, seguro, digno e legítimo, de acordo com a doutrina dos direitos humanos (LOWENKRON, 2012, p. 40) (grifo do autor).

Em um tempo histórico no qual o casamento homoafetivo é assegurado legalmente e que a homofobia é criminalizada com uma forma de racismo pelo Supremo Tribunal Federal (STF), a figura do homossexual enquanto um “monstro moral” (FOUCAULT [1974-1975, 2018) patológico e perverso não é mais suficiente para inflamar o pânico sexual. Dessa forma, o movimento epistemológico proposto por Lowenkron (2012) para a atualização da teoria foucaultiana, compreende o pedófilo como o monstro mortal contemporâneo a partir da análise dos processos de sensibilizações, classificações e acusações — como aqueles observados na CPI da Pedofilia capitaneada pelo então senador Magno Malta — que participam da definição de uma coletividade de comportamentos e sujeitos passíveis de serem identificados pela categoria pedofilia e, com isso, associados a uma ideia de monstruosidade comum e irrecuperável.

Conforme evidencia a imagem 4, embora o processo de estigmatização das homossexualidades ainda garanta algum nível de popularidade midiático-política aos “empreendedores morais” na cultura contemporânea, a súplica bolsonarista para que vereadores e pais/mães “NÃO DEIXEM O PT ESTIMULAR A PEDOFILIA NAS ESCOLAS” (BOLSONARO, 2015a, On-line) não pode ser observada como acidental, tendo em vista que a parte mais baixa da pirâmide de estratificação sexual permanece habitada por indivíduos cujo “erotismo transgride as fronteiras geracionais” (RUBIN, [1984] 2017, p. 83). Segundo o então deputado federal, seria por meio da inclusão da ideologia de gênero no Plano Municipal de Educação que o “PT estimulará, nas escolas, criancinhas a se interessarem por sexo (heterossexual/homossexual), bem como, as tornarão presas fáceis para a pedofilia” (BOLSONARO, 2015a, On-line).

Imagem 4 - Pais/mães, não deixem o PT estimular a pedofilia nas escolas.

https://bit.ly/3FY9ndo 

Fonte: Página de Bolsonaro no Facebook (2015a)

Uma vez que o “sistema de hierarquia do sexo” proposto por Rubin ([1984 2017) sofreu mudanças históricas significantes e passamos a ser subjugados por um “novo regime da sexualidade” (CARRARA, 2015), o discurso bolsonarista precisou acionar aquelas manifestações da sexualidade ainda capazes de causar pavor e abjeção em grande parte da população — se quisesse midiatizar um pânico sexual tão potente ao ponto de afetar as mais diversas práticas de sociabilidade contemporâneas. Para tal, não seria suficiente apontar o “homossexualismo” (sic) como um fantasma que nos ronda; foi necessário midiatizar formas de ser monstruosas que, para obterem o prazer e o gozo, precisam causar danos a indivíduos legal-moral-psicologicamente incapazes de consentir o sexo: as crianças. Dessa forma, Jair Bolsonaro passou a esgarçar ainda mais o alcance semântico do termo “kit gay” para incluir a pedofilia, tornando a educação como uma prática pedófila, os professores como monstruosidades perversas e mesmo brincadeiras infantis como condutas passíveis de tal classificação. “Todos Contra a Pedofilia” (LOWENKRON, 2012, p. 341) se torna, então, um mantra a ser politicamente explorado pelo projeto de poder bolsonarista.

Nesse movimento semântico, em 14 de julho de 2015, o deputado federal inscreve as políticas públicas petistas no campo da criminalidade ao denunciar que o “PT SINALIZA LEGALIZAR PEDOFILIA” (BOLSONARO, 2015d, On-line). Conforme exposto na imagem 5, o parlamentar atemoriza a população brasileira de que o site “‘HUMANIZAREDES’ define pedofilia como um TRANSTORNO DE PERSONALIDADE, ou seja, uma criança de 2, 6 ou 10 anos de idade pode ser penetrada por um adulto sem que o mesmo seja considerado criminoso” (BOLSONARO, 2015d, On-line). O Pacto Nacional de Enfrentamento às Violações de Direitos Humanos na Internet, batizado de #Humaniza Redes [10], foi uma iniciativa lançada pelo governo Rousseff para ocupar os espaços digitais a fim de garantir mais segurança na rede, fazendo o enfrentamento às violações de Direitos Humanos que acontecem on-line. Entretanto, o projeto — que conta com o apoio do Google, Facebook e Twitter — foi criminalizado pelo discurso bolsonarista como uma campanha petista para a relativização da pedofilia que visa classificar criminosos abusadores de crianças e adolescentes como meros portadores de um transtorno de personalidade:

[...] se encontrar um canalha introduzindo o pênis em um menino de 3 anos de idade, ele não pode ser preso por pedofilia. Ele tem que ser submetido a um laudo psiquiátrico porque ele pode estar sofrendo de transtornos. Ele tem que ir para o hospital e não para a cadeia. [11] (BOLSONARO, 2015f, On-line).

Imagem 5 - O PT sinaliza legalizar a pedofilia.

https://bit.ly/3vdO2bf 

Fonte: Página de Bolsonaro no Facebook (2015d)

Para além de articular discursivamente a esquerda petista à figura do monstro moral contemporâneo, o pânico sexual bolsonarista acusa o PT de tentar naturalizar o sexo consensual entre adultos e crianças, tornando a pedofilia aceitável do ponto de vista legal. Este trabalho não visa relativizar a gravidade do problema da violência sexual infantil e tampouco advogar pela descriminalização da pedofilia, mas analisar criticamente como o compartilhamento de narrativas fantasiosas sobre uma iminente ameaça pedófila nas escolas brasileiras tem contribuído para a transfiguração de professores e educadores — e da esquerda petista de um modo geral — em representações monstruosas sexualmente atraídas por crianças. Desse modo, esses indivíduos são sujeitados à presunção de doença mental, falta de idoneidade, tendência à criminalidade, restrição de mobilidade social e física, perda de apoio institucional, sanções econômicas e processos penais. Um estigma patológico irrecuperável e que, portanto, deve ser expulso e aniquilado de forma odiosa e violenta pelos “empreendedores morais” que defendem a manutenção do sistema de crenças que informam as existências dos sujeitos que, de acordo como a retórica bolsonarista, são os verdadeiros “sujeitos de bem brasileiros”.

Considerações Finais

Obviamente que o olhar proposto por este trabalho não dá conta de explicar toda a complexidade do processo de ascensão do bolsonarismo ao poder, mas oferece um ponto de vista profícuo ao debate que é tão fundamental quanto urgente. Conforme enfatiza Rocha (2021, p. 51), o bolsonarismo dificilmente será entendido como fenômeno político de massas se não passarmos da caricatura à caracterização. Nesse sentido, afirmamos que por meio da midiatização do pânico sexual, Bolsonaro se projetou nacionalmente como o “mito” capaz de restabelecer e manter a estabilidade das práticas de sociabilidade normatizadas pela heterossexualidade compulsória. Dessa forma, comunicou ser a solução política para os perigos impostos pela desconstrução da heteronormatividade, da ideologia de gênero e da pedofilia à inocência infantil e à continuidade da existência da família enquanto instituição sagrada. Além disso, emergiu como a figura capaz de garantir os privilégios das elites e da emergente classe média brasileiras que informam as suas existências a partir de representações heteronormativas reforçadas pelos produtos culturais e midiáticos.

É inegável que fake news, como a da “mamadeira de piroca”, circularam amplamente nas mídias e contribuíram para a produção de subjetividades que desejam a desigualdade social. Entretanto, da mesma forma que a midiatização de conteúdos desinformativos não necessariamente produziu novos circuitos afetivos, os 12 conteúdos multimodais compartilhados na página do então deputado federal Jair Bolsonaro no Facebook recrudesceram sentimentos conservadores e autoritários que perpassam o processo de formação histórica brasileira para a legitimação de discursos que articulam as práticas homossexuais à pedofilia, definindo os sujeitos que defendem o desejo LGBTQIA+ como defensores dos monstros morais contemporâneos. Em outras palavras, a potência da midiatização do pânico sexual bolsonarista na cultura contemporânea se dá pela sua capacidade de mobilização de expressões afetivas reacionárias que têm contribuído historicamente para uma face autoritária e conservadora da sociedade brasileira que muitos insistem em negar: o desejo de controlar, reprimir e aniquilar os corpos desviantes dos padrões moral, sexual, racial e economicamente aceitos.

Conforme nos informa Watney ([1987] 1996), a associação generalizada da homossexualidade com o tema do abuso sexual infantil não é acidental, mas decorre da forma como essa foi teorizada, desde o final do século XIX, quando a palavra substituiu amplamente outros termos e produziu a ideia de um único tipo de ser humano, coerente e uniforme — “o homossexual”. Ainda assim, o estudioso argumenta que os processos de pânico dependem de endossos diários aos padrões ideologicamente normativos de representação da homossexualidade a processos patológicos — como no pânico sexual aqui analisado, no qual representações discursivas e imagéticas articulam a homossexualidade e a pedofilia a uma ampla gama de processos psicopatológicos e criminosos com consequências materiais e simbólicas à ordem conservadora. Dessa forma, em contraste com a suposição teórica de que modelos estabelecidos de pânico são mais episódicos do que histórico-processuais, este artigo sugere que o pânico sexual que o bolsonarismo midiatiza por meio da estigmatização de temáticas aparentemente isoladas a um contexto histórico específico devem ser compreendidos como manifestações localizadas de padrões profundamente arraigados de representações que os processos comunicacionais reproduzem no tempo e no espaço.

O que observamos, portanto, é que a expressão política bolsonarista conquista relevante espaço na agenda midiática por meio das disputas por sentidos estabelecidas na cultura brasileira contemporânea entre os defensores de uma governamentalidade que compreende o reconhecimento legal das diversidades sexuais como um direito humano inalienável pelo poder do Estado e os sujeitos cujas existências são informadas a partir de visões de mundo que restringem a noção de cidadania plena às representações heteronormativas historicamente veiculadas pelos produtos culturais e midiáticos. Fundamentalmente, os sucessivos ataques bolsonaristas às políticas sexuais articuladas pela gramática dos direitos humanos canalizam insatisfações moralistas de que a esquerda petista, ao priorizar as minorias em detrimento da maioria, estaria dividindo a nação e desconstruindo os valores judaico-cristãos que a solidifica (MAITINO, 2018). Como vimos na campanha presidencial de 2018, a mobilização desses sentimentos foi um dos elementos centrais no processo de demonização das subjetividades e dos corpos cujas sexualidades e identidades de gênero se interpunham como obstáculos para a materialização do projeto de um “Brasil acima de tudo, Deus acima de todos” que o “mito” Jair Messias Bolsonaro prometeu edificar para os seus apoiadores.

Notas

[1] Disponível em: <https://bit.ly/2ukSW9S>. Acesso em: 24 ago. 2020.

[2] Disponível em: <https://bit.ly/2ukSW9S>. Acesso em: 24 ago. 2020.

[3] Em outro trabalho, analisamos em profundidade a noção de pânico moral nos Estudos Culturais. Disponível em: <https://revistaseletronicas.fiamfaam.br/index.php/recicofi/article/view/910/0>. Acesso em: 23 set. 2022.

[4] Moral panics seem to appear and disappear, as if representation were not the site of permanent ideological struggle over the meaning of signs. A particular "moral panic" merely marks the site of the current front-line in such struggles. we do not in fact witness the unfolding of discontinuous and discrete "moral panics', but rather the mobility of ideological confrontation across the entire field of public representations, and in particular those handling and evaluating the meanings of the human body, where rival and incompatible forces and values are involved in a ceaseless struggle to define supposedly universal "human" truths.

[5] Disponível em: <https://bit.ly/3mIN2Yj>. Acesso em: 13 jun. 2022.

[6] Disponível em: <https://bit.ly/3mUCDsC>. Acesso em: 15 jun. 2022.

[7] Disponível em: <https://bit.ly/3HsrVD7>. Acesso em: 28 abr. 2022.

[8] Disponível em: <https://bit.ly/3xQUIOC>. Acesso em: 15 jun. 2022.

[9] Disponível em: <https://bit.ly/2VeSGnh>. Acesso em: 29 nov. 2020.

[10] Disponível em: <https://bit.ly/2VCAxmX>. Acesso em: 8 ago. 2021.

[11] Disponível em: <https://bit.ly/3AiWdmQ>. Acesso em: 8 ago. 2021.

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