Isabel Ferin Cunha:

estudos comparativos, crise democrática e os desafios da pesquisa em Comunicação no espaço lusófono

Lucas Arantes Zanetti1

Resumo

Isabel Ferin Cunha é professora aposentada da Universidade de Coimbra e pesquisadora da Universidade Nova de Lisboa. Com mais de 70 artigos publicados em periódicos científicos, é pioneira nos chamados estudos comparados no espaço lusófono. Mestre e doutora pela Escola de Comunicação e Artes da Universidade de São Paulo (ECA/USP), conta nessa entrevista a importância do Brasil em sua trajetória acadêmica e como a experiência brasileira abriu campo para o pioneirismo dos estudos comparados entre Portugal, Brasil, Angola e Moçambique. Cunha aborda pontos-chave da pesquisa em Comunicação no pós-pandemia e em tempos de crise democrática, destacando um processo de fragmentação que caracteriza o que chama de estágio de “desglobalização” atual. A pesquisadora defende que os problemas graves que atravessam as democracias ocidentais têm a ver com o domínio das grandes empresas de tecnologia e a incapacidade das democracias em regularem o ambiente virtual, o que tem levado ao fim do espaço público como é entendido por Habermas. Cunha também aborda questões relacionadas ao espaço do jornalístico na nova realidade midiatizada e sobre o futuro das Ciências da Comunicação no Brasil e na Europa em tempos de Big Data, Big Techs e transformações nas Tecnologias da Informação e Comunicação.

Palavras-chave

Comunicação; Jornalismo; Espaço Lusófono; Esfera Pública; Democracia.

1 Doutorando em Comunicação pela Universidade Estadual Paulista (Unesp) com Estágio de Pesquisa no Instituto Universitário de Lisboa (IUL). Bolsista da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (Fapesp), processo 2021/00378-0, e membro do Grupo de Pesquisa Comunicação Midiática e Movimentos Sociais (ComMov). E-mail: lucas.zanetti@unesp.br.

Isabel Ferin Cunha:

comparative studies, democratic crisis and the challenges to research Communication in the Lusophone space

Lucas Arantes Zanetti1

Abstract

Isabel Ferin Cunha is a retired professor at the University of Coimbra and a researcher at the Universidade Nova de Lisboa. With more than 70 articles published in scientific journals, it is a pioneer in comparative studies in the Portuguese-speaking space. Master and PhD from Escola de Comunicação e Artes, Universidade de São Paulo (ECA/USP), she tells in this interview the importance of Brazil in her academic trajectory and how this opened the way for the pioneering of comparative studies between Portugal, Brazil, Angola and Mozambique. Cunha addresses key points of communication research in the post-pandemic and in times of democratic crisis, highlighting a process of fragmentation that characterizes what he calls the current “deglobalization”. The researcher argues that the serious problems that cross Western democracies have to do with the dominance of large technology companies and the inability of democracies to regulate the virtual environment, which has led to the end of public space as understood by Habermas. Cunha also addresses issues related to the journalistic space in the new mediatized reality and about the future of Communication Sciences in Brazil and Europe in times of Big Data, Big Techs and transformations in Information and Communication Technologies.

Keywords

Communication; Journalism; Portuguese-speaking Space; Public Sphere; Democracy.

1 Doutorando em Comunicação pela Universidade Estadual Paulista (Unesp) com Estágio de Pesquisa no Instituto Universitário de Lisboa (IUL). Bolsista da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (Fapesp), processo 2021/00378-0, e membro do Grupo de Pesquisa Comunicação Midiática e Movimentos Sociais (ComMov). E-mail: lucas.zanetti@unesp.br.

Introdução

A professora Isabel Ferin Cunha, referência nos estudos lusófonos da Comunicação, iniciou sua consistente trajetória acadêmica no Brasil. Doutora e mestre em Comunicação pela Escola de Comunicação e Artes da Universidade de São Paulo (ECA-USP), Cunha é professora aposentada da Universidade de Coimbra e pesquisadora do Centro de Investigação em Comunicação da Universidade Nova de Lisboa. Ela se destaca pelos projetos de pesquisa de análise comparativa entre Portugal, Brasil, Angola, Moçambique e Cabo Verde (CUNHA, 2003; CUNHA, 2005). Ao longo de sua carreira, com 70 artigos publicados em periódicos científicos, investigou objetos variados como o consumo de telenovelas brasileiras no exterior (CUNHA, 2011), a questão das migrações e minorias étnicas em Portugal, a construção das identidades e imaginários pela mídia, a crise democrática na Europa, a cobertura da corrupção política sob perspectiva comparada e, mais recentemente, a questão do populismo midiatizado (CUNHA, 2019).

Nesta entrevista, a professora fala sobre a importância do Brasil e da ECA em sua carreira, sobre os limites da metodologia de análise comparada no atual estágio de midiatização, dos desafios da pesquisa em Comunicação em tempos de crise das instituições e da democracia no ocidente e, por fim, reflete sobre o jornalismo frente à dissolução do espaço público habermasiano. Isabel Ferin Cunha defende que o futuro das pesquisas em Comunicação deve levar em conta o crescimento da importância dos Big Data, da nova realidade digital e simbólica que atravessa a configuração cada vez mais fragmentada e “desglobalizada” das sociedades contemporâneas.

Cabe destacar a generosidade da professora, que se prontificou a participar desta entrevista para a Lumina e falar sobre temas relevantes para o Brasil, Portugal e para os estudos em Comunicação como um todo. Conhecida por ser uma entusiasta da integração cultural, intelectual e das trocas entre os países, Isabel Ferin Cunha demonstra preocupação com o que chama de “obscurantismo” que permeia as democracias ocidentais e fala sobre a “crise das utopias” no que concerne à noção da internet como espaço de emancipação e conhecimento.

Lucas Arantes Zanetti: A senhora tem uma relação profunda com o Brasil, tendo feito o mestrado e o doutorado na ECA/USP e sendo professora por um período também na USP. Como esse contato com o Brasil e o espaço lusófono influenciou a sua trajetória de pesquisa?

Isabel Ferin Cunha: Eu cheguei à USP na Escola de Comunicação e Artes em 1981, muito lá atrás. Foi extremamente importante porque eu tinha feito uma licenciatura em História, em Portugal, de cinco anos. E o curso foi todo feito no período da ditadura (salazarista) e com alguns professores que eram contestatários ao regime, nomeadamente um professor que foi importante, o professor Jorge Borges de Macedo. Eles nos deram para ler obras de autores atuais da época, como Sartre e Foucault. Nós, em Portugal, não podíamos ler nada e não tínhamos acesso, a não ser escondido, às obras de muitos intelectuais. Quando eu cheguei ao Brasil, em 1981, apesar de ainda ser o regime da ditadura militar, comecei a ter contato com autores que, para mim, eram completamente desconhecidos. A linha francesa da Análise do Discurso, muitos dos pensadores franceses ligados à semiótica e também os filósofos que, mesmo estando tão perto de Portugal, tínhamos acesso muito difícil. Além disso, a ECA contribuiu em termos de visão de mundo, porque tinha colegas com origens diferentes, filhos e netos de imigrantes, de outras regiões do Brasil e o contato na pós-graduação foi muito rico. Algo que eu tinha grande interesse e meus colegas até riam de mim era uma disciplina que se chamava “Estudos do Brasil”. Aprendi imenso porque tive que ler muitos autores, como Celso Furtado, Sérgio Buarque, aprender História do Brasil, Literatura e ter contato com estudiosos que eram pra mim desconhecidos. E foi essa maravilha de encontrar um país enorme, diverso, com produção intelectual comparável e muito superior à portuguesa em muitos domínios e onde eu me inseri em termos acadêmicos para fazer o mestrado e o doutorado. Eu devo isso ao Brasil e à ECA e foi o que suscitou todo meu interesse na realidade brasileira. Como eu tinha vivido no período do processo de independência em Angola e São Tomé, isto causou uma série de percepções que, na altura, não tinha condições de fazer reflexões sobre elas, por exemplo sobre o momento da independência. Eu tinha passado por elas, mas sem reflexão. O doutoramento foi a oportunidade de pensar sobre essas questões, e contactar outros colegas que tinham experiências semelhantes e deu origem ao meu interesse sobre as questões da lusofonia e o trânsito entre Brasil, África e Portugal.

Lucas Arantes Zanetti: Como funciona a metodologia de análise comparativa e como foi o trabalho com a telenovela Gabriela e, posteriormente, com a questão da corrupção política?

Isabel Ferin Cunha: A questão mais comparada começou na minha tese de doutoramento, ao tentar perceber como os portugueses viam, no período colonial, os outros. Ainda não era a perspectiva comparada, mas era tentar compreender como o colonialismo via a África, por exemplo, ou uma certa situação em países, hoje independentes, onde colonizou. Essa foi uma das primeiras questões e depois foi perceber como se cruzam realidades e como é necessário, nessas realidades que se cruzam, e na pesquisa comparada, ter em atenção marcos indiscutíveis. Ou seja, eu tenho que identificar aqueles que são válidos como os históricos, sociais, políticos e econômicos para as realidades que se pretende comparar. No contexto lusófono, são os grandes marcos históricos ou políticos que vão desde o primeiro contato entre Portugal e o Brasil e os países africanos. E depois, tentar perceber como esses pontos são vistos de um lado e do outro. Essa é a grande questão da pesquisa comparada, é ter marcos que são aceitos por todos. Nas pesquisas que fiz posteriormente, por exemplo, sobre as telenovelas, o que estava na comparação? Como um produto de ficção como a telenovela (Gabriela) foi vista no Brasil, em Angola, Moçambique e Portugal? Esta é a questão da pesquisa comparada, compartilhar marcos acessíveis por todos os países que se querem comparar. A telenovela brasileira teve a vantagem de ser um produto acessível a todos. Os investigadores compartilharam essa experiência, portanto, era fácil conseguir fazer a comparação.

O mais complicado foi trabalhar com objetos como a corrupção porque é um marco que não é entendido da mesma forma em Portugal, Brasil, Moçambique ou em Cabo Verde. É algo que tem sentido diferente em cada um desses países pela história, cultura e momento político. Por isso, a questão é sempre complexa, porque, para podermos partir de um denominador comum, temos que partir da compreensão do mesmo objeto a analisar. Isso, mesmo falando a mesma língua, nem sempre é fácil ou nítido. A corrupção foi algo mais complicado, assim como os problemas das eleições. Estudos comparados na comunicação política são, em geral, mais complexos. O que outro país entende como comunicação política não é o mesmo que o Brasil ou Portugal entende. O sistema midiático é tão profundamente diferente em cada país que comparar as eleições é quase impossível hoje em dia. Nós temos que ser honestos para dizer: podemos comparar eleições em Moçambique e Angola, mas vai ser mais difícil comparar esses dois países com Portugal ou com o Brasil pelos sistemas políticos, midiáticos e a situação social que são diferentes. É por isso que temos que ter muita humildade na possibilidade de comparação que queremos fazer.

Lucas Arantes Zanetti: Em um mundo cada vez mais complexo e instável, com realidades particulares e distintas configurações sociais, econômicas e políticas, qual é o espaço que resta à metodologia de pesquisa comparativa?

Isabel Ferin Cunha: Para ser honesta, a proximidade que existiu entre Portugal e Brasil está a desaparecer nesse momento. Portanto, é muito difícil ter uma pesquisa comparada entre os países. Com relação a Angola e Moçambique, já não é mais possível. A tentativa que nós fizemos entre 2014 e 2017 no Projeto “Cobertura Jornalística da Corrupção Política: uma perspectiva comparada - Portugal, Brasil e Moçambique” (CUNHA, 2017), revelou as dificuldades da pesquisa comparada, sobretudo com relação a Moçambique. Posteriormente, outro estudo feito por mim e Ana Cabrera “As presidenciais brasileiras de 2018 na imprensa e na televisão portuguesas” (CUNHA, CABRERA, 2020), mostrou a dificuldade em compreender o processo eleitoral que levou ao poder o presidente do Brasil (Jair Bolsonaro). Por isso, eu acredito que a comparação tal como se fazia a partir de um objeto que possa ser lido da mesma forma, principalmente na comunicação política, é difícil. O que se pode tentar é fazer comparações em termos de objeto, não de processos. O que isso quer dizer? Por exemplo, como o Brasil ou Portugal utilizam o Twitter e o WhatsApp nas eleições, o papel da televisão nas eleições no Brasil e em Portugal, isso acho que é viável. Considero que analisar os processos em si é mais complicado e que os resultados não serão tão fidedignos.

Lucas Arantes Zanetti: Os acontecimentos comunicacionais também estão cada vez mais complexos, instáveis e imprevisíveis. Como é possível estabelecer parâmetros metodológicos confiáveis e capazes de compreender os fenômenos contemporâneos de forma a gerar efetiva contribuição em termos de produção de conhecimento?

Isabel Ferin Cunha: Temos que ter um quadro dinâmico de contextos. Antes da pandemia nós falávamos em globalização, digitalização, em Big Techs, e em um contexto onde já havia indicadores de “desglobalização” e de “desocidentalização”, mas que não estavam totalmente visíveis. O que temos agora é um contexto completamente diferente. Uma questão que estou a preparar para uma revista latino-americana é sobre o processo de “desglobalização” e de fragmentação em que as tecnologias de informação e comunicação (TICs) têm um papel fundamental. Temos que estar atentos à fragmentação das ferramentas tecnológicas. Não vai ser por muito mais tempo que teremos as mesmas empresas de tecnologia e informação em todo o mundo. Vamos ter Big Techs fracionadas em função dos blocos políticos, econômicos ou geoestratégicos e que terão as mesmas funcionalidades, mas regras diferentes. Umas serão altamente politizadas por Estados, outras politizadas por utilizadores e outras serão meramente comerciais. Já temos o caso da China, da Rússia, de todo bloco asiático que está a desligar as redes ocidentais. Depois temos o bloco ocidental, que não vai ficar dessa forma por muito mais tempo. Vai ter uma subdivisão. Isso faz com as tecnologias sejam utilizadas em função da geoestratégia onde se insere o utilizador. E é algo que condicionará os processos eleitorais, o comércio e a utilização doméstica. Já está a acontecer, mas ainda está sob camadas pouco nítidas.

Com relação às equipes de pesquisa, elas precisarão ser cada vez mais multidisciplinares, envolvendo questões de Data Science, programadores, estatísticos da nossa área e demais pessoas. Não vamos ter, com a formação que possuímos, condições para trabalhar esse conjunto de dados que trarão algum significado enquanto pesquisa. O que eu vejo e sinto é muita proposta de artigos em revistas que são ínfimos relativos à realidade que se tem que analisar. As nossas pesquisas tendem a ser parcelas substituídas em outras áreas de investigação. Temos que nos juntar às áreas que dominam a tecnologia, que conseguem apreender dados e tratá-los nas redes sociais, como os data scientist, profissionais que conseguem compilar as informações. E nós, da comunicação, devemos saber o que queremos desses resultados, não simplesmente deixar disponível para os países que os querem comercializar. Os centros de investigação deverão se adaptar à massa de dados que é utilizada para vender coisas, fazer publicidade e estatísticas de eleições. Nós deveríamos ter acesso a esses dados para tratar e analisar as condições de comunicação. Portanto, o que eu vejo é a necessidade de fazermos grupos de pesquisa interdisciplinares, estarmos ao nível de Instituição não mais departamental, mas de um centro amplo de pesquisa, de forma que se possa comprar e ter acesso a dados e depois trabalhá-los.

Lucas Arantes Zanetti: A professora tem falado sobre o papel da midiatização no processo de “desdemocratização” da Europa. Como você analisa esse processo hoje? Quais as semelhanças e diferenças entre o que acontece no Brasil?

Isabel Ferin Cunha: O processo de “desdemocratização” da Europa afirmou-se durante o período da crise de 2008 com as medidas econômicas tomadas que prescindiram da política (CUNHA, 2015). Todo esse movimento que Bruxelas encabeçou com um servilismo financeiro e econômico aos Estados Unidos (EUA) deu origem a movimentos de extrema-direita e populistas que tendem a crescer, mesmo com as tentativas de colmatar a crise da democracia, nomeadamente, socorrendo os chamados “deserdados” da globalização. O que isso tem gerado na Europa? Enfraquecimento das instituições — principalmente das instituições políticas, parlamentos — com grande abstenções nas eleições, qualidade diminuta nos representantes da democracia e uma maior inter-relação entre os interesses econômicos e a política. Por outro lado, e isso é um problema ainda maior, há uma subjugação da Justiça e dos procedimentos da justiça aos interesses econômicos e financeiros, ditados, muitas vezes, por governos liberais (no mal sentido), ou seja, governos que têm grande vinculação aos interesses comerciais instalados nos países.

Isso tem produzido uma “curva de camelo”, porque a direita subiu muito nos anos de 2014, 2015 e 2016 e teve um grande impacto nos países europeus e decresceu durante a pandemia, quando os Estados e a União Europeia resolveram acudir os países, primeiro com programa de vacina e, depois, com a possibilidade de grande parte das nações europeias se endividarem e poderem sustentar sua população em trabalho remoto ou layoff. Ora, o que está a acontecer agora, após o início da guerra da Ucrânia, é que, apesar da maior parte dos europeus ser antiguerra e, majoritariamente anti-Putin, há um crescimento novamente da direita, nomeadamente na Itália. Na Suécia, a direita teve uma votação expressiva, coisa que não acontecia e o susto que tivemos com a extrema direita na França, com a expressão de Marine Le Pen e a Frente Nacional. Essa subida nos faz pensar que a democracia na Europa está num processo de muita pressão e que há questões que têm que ser resolvidas de imediato e não parece que estão a suscitar a devida atenção dos representantes em Bruxelas e dos governantes de cada país que ainda tem uma democracia ativa. Essas questões passam pela maior distribuição de renda, apoio à reindustrialização da Europa — que já está a recomeçar, sobretudo na França, e mesmo em Portugal, e a necessidade de reformar as instituições. Isso significa reorganizar os parlamentos, construir uma nova dignidade partidária, abrir a porta aos partidos independentes e uma maior proximidade com Bruxelas, já que o fim da União Europeia significará o fim da democracia em grande parte dos países europeus.

A comparação com a situação do Brasil é difícil, mas o que se vê é que algumas receitas são fundamentais. Dar maior dignidade às instituições e filtrar a qualidade dos deputados. Há necessidade de que os representantes eleitos tenham mais qualidade. São precisos uma maior formação, a necessidade de representatividade ao nível da população e dos seus interesses, de prestar contas das eleições e se objetivos traçados na eleição do deputado foram alcançados. Outra questão é a reorganização e a transparência da Justiça para tirá-la dos interesses econômicos e partidários. Por fim, a transparência total e absoluta dos eleitos para cargos executivos, dos interesses e da trajetória política e pessoal dos candidatos. Outra questão é a tentativa de programas em que se definam quais as medidas concretas e exequíveis de curto e médio prazo para diminuir as desigualdades sociais e promover a empregabilidade da maior parte da população. Isto tem que estar atrelado não ao dito “desenvolvimento”, como se pensava anteriormente, mas ao bem-estar individual e das famílias. Ou seja, não podemos mais falar em desenvolvimento como existia há décadas atrás, que significava exploração e concentração de renda. É exatamente o contrário. Nosso tipo de vida tem que ser alterado se quisermos viver nesse planeta chamado Terra. Isso passa por consumir menos, produzir menos em determinadas áreas e mais em outras, distribuir mais, recuperar o que existe para manter o mundo funcionando e produzir. Implica na revisão da vida em comunidade e isso significa que vamos ter que prescindir de algumas questões e até confortos nas próximas décadas.

Lucas Arantes Zanetti: A midiatização enquanto fenômeno central do mundo globalizado ganha força na mesma medida em que se observam diversas crises institucionais e democráticas em diversos países do mundo. A que podemos atribuir essa relação, já que uma parcela significativa dos estudos em Comunicação apontava para uma direção oposta?

Isabel Ferin Cunha: Pois é. Há pouco tempo, o Pierre Levy (2020) fez um trabalho sobre as utopias e o fim das utopias. Eu acho que vamos passar por tempos muito obscuros. Para algumas pessoas e intelectuais não há regeneração. Ou seja, mais cedo ou mais tarde, e aqui especulo, vamos entrar na barbárie e qualquer filme do Mad Max está próximo. Mas, não pensando assim, o que nós vemos é uma tentativa de atribuir uma grande consequência desse fim das utopias à capacidade das redes sociais transmitirem o mais profundo e obscuro do ser humano, enquanto animal. A natureza humana animal, sem lei nem rótulos, como é o caso das redes, despontou de uma maneira que não esperávamos que acontecesse. Foi uma surpresa desagradável perceber que aquelas utopias em relação à internet, à informação disponível para o conhecimento e a vontade humana por conhecer perdeu para a natureza mais animal do ser humano, de forma a canibalizar essa utopia que as redes trouxeram inicialmente. Como resolver isso? Os chineses resolveram com uma sociedade autoritária e não democrática. Eles têm um policiamento feroz das redes sociais e tudo aquilo que for contra o que o Comitê Central define, é punido. A China resolveu esse problema dessa forma. Singapura está a importar o sistema chinês e está a utilizar de forma diferente até agora. Países autocráticos e autoritários como a Rússia desativam as redes que não podem policiar e criam outras que policiam. E nós que queremos democracia, e somos cidadãos, qual é a nossa proposta? Não existe uma proposta formulada pelo cidadão que quer democracia. Se não tivermos isso claro, teremos que prescindir de alguns elementos que essa democracia nos dá. Não temos claro ainda qual é a “punição” que uma democracia plena vai receber através da internet sem regulação. O Brasil já tem noção dessa “punição” hoje em dia através dos assédios nas redes a grupos minoritários e de outras formas de pensar. Os EUA também têm essa noção. A cultura do cancelamento que existe é o excesso das redes na vida das pessoas e isso não é democracia. É uma antidemocracia. Portanto, onde é que nos posicionamos, nós, cidadãos que queremos a democracia? Isso é um desafio que se coloca às próximas gerações e aos mais jovens. Querem o quê? Que nível de democracia querem e que nível de democracia nas redes querem? Não tenho a solução. Há todo um processo da Comissão Europeia que busca travar os discursos de ódio. Isso envolve policiamento das redes e um conjunto de grandes vigilantes que vigiam os discursos de ódio em todas as línguas europeias, há também a vigilância antiterrorista e contra ataques cibernéticos. Essa vigilância é financiada pela União Europeia, que em  contrapartida possui todo um projeto de literacias. É um projeto mundial da Unesco e da ONU sobre ensinar as pessoas a usarem as redes sociais, a saber compreender quando está a transmitir má informação, fake news, desinformação, etc. Há várias propostas, mas nenhuma é suficientemente abrangente para conseguirmos preservar a democracia nas eleições ou na vida cotidiana.

Lucas Arantes Zanetti: É também no momento mais intenso do processo de midiatização que observamos a intensificação da polarização, divisão social e intolerância. Como devemos compreender esse momento histórico e quais são os caminhos para pensar a midiatização enquanto esfera pública democrática?

Isabel Ferin Cunha: Existem vários níveis. Primeiro no nível contextual, ou seja, o contexto da nossa sociedade leva à polarização, à fragmentação e que é refletida nas redes sociais e as redes sociais também refletem de volta, em um processo circular. É um processo que só é possível cortar de forma drástica e penso que as democracias não têm condições de fazê-lo. E não têm justamente pelo fato de serem democracias e terem que observar determinados princípios relativamente à liberdade de expressão e informação que não se compadece com um corte abrupto deste processo. Por outro lado, o que nós temos que fazer, e penso que levará tempo, é tentar minimizar esses processos na democracia a partir da educação. As literacias midiáticas são muito importantes e deveriam ser fundamentais nas escolas, porque elas são as bases das futuras democracias. Sem a literacia midiática, a democracia está em perigo. É preciso ações mais musculadas que passam pelo Estado ao policiamento das redes com criação de gatekeepers e procedimentos específicos que barrem os discursos de ódio e as fake news. Isso só pode ser feito de forma séria. A Europa não tinha acordado muito pra isso. A Covid-19, a desinformação e, posteriormente, a Guerra na Ucrânia criou uma possibilidade de compreender esse fenômeno melhor do que era compreendido inicialmente. Esse processo de polarização e fragmentação passou a estar no centro dos países democráticos. Penso que não há remédio imediato. Isso é um processo que vai se agudizar nos próximos anos, está relacionado à distribuição de renda, à igualdade entre os países. O fato de haver muito ressentimento em determinados grupos sociais aumenta o discurso de ódio. E isso vai exigir algum tempo. Ainda vamos assistir ao crescimento da polarização.

Lucas Arantes Zanetti: No Brasil observamos uma desarticulação do jornalismo enquanto “monopólio” da verdade.  Como é possível pensar o jornalismo e sua relação com a esfera pública em tempos onde a verdade está no campo cada vez mais subjetivo e da crença?

Isabel Ferin Cunha: Penso que o jornalismo está a tornar-se outra coisa. Há uma grande clivagem sobre o que é chamado de jornalismo. Há o jornalismo comercial com menor custo e maior ganho. Há um grande jornalismo que se destaca em poucos veículos de comunicação e que tem uma base, uma estrutura muito cara e que só pode ser feito por alguns. A maior parte dos jornalistas está condenada a trabalhar em um jornalismo comercial e ser o mais correto que a instituição permite. Por outro lado, há os grandes jornalistas que têm condições, seja por sorte, mérito ou razões não explicáveis que conseguem trabalhar em grandes veículos, que apostam em investigações e em questões de interesse público nacional e internacional. Esses são cada vez menos frequentes. Isso é uma divisão nítida do jornalismo em todos os países. É uma divisão que se acentua a partir dos anos 1990 e que hoje é indiscutível.

Minha visão é que o espaço público, tal como Habermas (2003) definiu, não existe mais. O cidadão não quer negociar no espaço público. O grande exemplo são as polarizações, pois elas não permitem negociação. A não negociação, a cultura de cancelamento e esse modus operandi determinam o fim do espaço público. Ao menos nesse momento, as democracias estão se confrontando por um lado com o fim do espaço público e, por outro lado, a invasão desse espaço pelo espaço privado, onde tudo é público e privado. Isso faz com que os manuais de jornalismo, tal como foram ensinados, não se apliquem mais. Não existe lugar mais para este tipo de jornalismo. O fato de presidentes, como o atual do Brasil (Jair Bolsonaro), ou o anterior dos EUA (Donald Trump), se insurgirem contra a liberdade de expressão de jornalistas e determinados grupos midiáticos que não os são favoráveis representa a polarização institucionalizada do espaço público, em que a liberdade de expressão só pode ser aquilo que eles determinarem. E o jornalismo clássico, como espaço para afirmação da opinião, argumentação e do contraditório, não é possível mais nesse cenário. Resta-nos apenas um jornalismo de combate, de causas em que esses manuais clássicos do jornalismo deverão ter que ser utilizados para defender determinadas causas como a democracia e a cidadania.

Com relação à imprensa, o grande problema do Brasil é a falta de transparência dos meios de comunicação no sentido de dizer abertamente quais são seus objetivos. Nos EUA nós sabemos os interesses. Na CNN, nós sabemos. Cada um tem seus proprietários e os interesses estão minimamente visíveis ou são declarados. No Brasil não há essa declaração. Isso torna toda informação suspeita. O que veiculam é entendido como suspeito. Não se sabe a origem e o porquê daquele viés. O Brasil é um caso preocupante nesse sentido porque são 14 famílias proprietárias dos meios de comunicação. E o fato de seus interesses estarem associados a áreas de produção, desde o agronegócio ou indústrias, torna toda informação muito condicionada a esses interesses privados. O jornalista deverá, dentro do meio de comunicação onde atua e dentro das condições que tem, manter os princípios que fazem parte da ética profissional.

Lucas Arantes Zanetti: Frente ao cenário de fragmentação e complexificação das práticas sociais midiatizadas, como ficam as pesquisas em comunicação?

Isabel Ferin Cunha: A formação na área das Ciências da Comunicação deveria mudar ou ter um viés que trabalhe com Data Science e estatística para saber o que são Big Data, algoritmos, como driblar e fazer outro tipo de busca que não a tradicional. A formação deve ser alterada rapidamente para os jornalistas e para os profissionais da comunicação como um todo. Tem que ter familiaridade porque se não, na investigação, não conseguem trabalhar de forma efetiva. Outra questão é que os centros de investigação devem ser pluridisciplinares. Não podemos mais trabalhar sozinhos. Temos que ter outras formações que trabalhem em conjunto. Os nossos objetos são muito transdisciplinares e os processos também são. Precisamos saber como funcionam as redes, como as pessoas se apropriam de determinadas informações e como, em termos psicológicos, processam essa informação. A questão das emoções e o do seu processo cognitivo é importante, principalmente com relação às redes sociais, os discursos de ódio, dos cancelamentos, dos extremismos, das polarizações em termos de emoções. Tudo o que essas interferências emocionais têm na democracia. Como se ganha e se perde eleições através das redes sociais e da captação emocional do conhecimento nas redes sociais? Como surgem os ódios e como funcionam para arregimentar seguidores? Esses são só exemplos. E penso que todas são questões relacionadas com a democracia, a cidadania e os movimentos sociais, mas que abrangem novos softwares, novas competências dos investigadores e dados para serem trabalhados. Essas movimentações só se percebem a partir dos estudos dos milhares de dados disponíveis nas redes.

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