Assistentes virtuais de marca como reforço dos estereótipos e preconceitos

Gisela Castro1 e Marcos Hiller2

Resumo

O objetivo do artigo é refletir sobre a adoção de assistentes virtuais como um novo tipo de expressividade marcária dentro da cena cibercultural contemporânea. Ao observar as práticas mais usuais de mercado, chama a atenção a recorrência de um processo de naturalização do estereótipo da imagem de um personagem feminino, notadamente da mulher negra, em uma tendência que, ao nosso ver, reforça o preconceito racial e de gênero. A inquietação diz respeito a como esse tipo de comunicação, caracterizado por uma linguagem revestida de uma lógica astuta, tecnológica e essencialmente atual, pode resvalar um processo de naturalização do estereótipo do papel de uma mulher submissa e servil, reforçando a desigualdade racial e de gênero. A partir de pensadoras e pensadores do campo da comunicação, elegemos exemplos relevantes do cenário publicitário e examinamos casos empíricos de representações visuais utilizadas por marcas, para discutir acerca das lógicas que sustentam esse novo formato midiático. Evidencia-se que as imagens selecionadas para as assistentes virtuais podem se transformar em uma espécie de anteparo mental que normaliza e reforça aspectos nefastos de nossa sociedade.

Palavras-chave

Comunicação e consumo; Assistentes virtuais de marca; Estereótipos; Preconceitos.

1 Doutora em Comunicação e Cultura pela UFRJ, pós-doutorado em Sociologia no Goldsmiths College, University of London. Docente do Programa de Pós-graduação stricto sensu em Comunicação e Práticas de Consumo ESPM, coordena o GRUSCCO - Grupo ESPM/CNPq de Pesquisa em Subjetividade, Comunicação e Consumo, e o Comitê ESPM de Direitos Humanos. E-mail: gcastro@espm.br.

2 Doutorando e Mestre em Comunicação e Práticas do Consumo pela ESPM-SP e pesquisador integrante do GRUSCCO – Grupo ESPM/CNPq de Pesquisa em Subjetividade, Comunicação e Consumo. Atua como professor convidado dos cursos de lato sensu da ESPM, FIA-USP, FGV e SENAC SC.  E-mail: marcos.hiller@espm.br.

Virtual brand assistants reinforcing stereotypes and prejudice

Gisela Castro1 and Marcos Hiller2

Abstract

The objective of the article is to reflect on the adoption of virtual assistants as a new type of brand expressiveness within the contemporary cybercultural scene. When observing the most common practices in the market, the recurrence of a process of naturalization of the stereotype of the image of a female character, notably of a black woman, in a trend that, in our view, reinforces prejudice stands out. When observing more usual market practices, we see several possibilities being used in different aesthetic, identity and linguistic directions. The concern concerns how this type of communication, characterized by a language coated with an astute, technological and essentially current logic, can slip a process of naturalization of the stereotype of the role of a submissive and servile woman, reinforcing racial and gender inequality. From researchers in the field of communication, we selected relevant examples of advertising scenario and examine empirical cases of visual representations used by brands, to discuss the logics that support this new format of media movement. It is evident that the images selected for the virtual assistants can become a kind of mental shield that normalizes and reinforces nefarious aspects of our society.

Keywords

Communication and consumption; Virtual assistants for brand; Stereotypes; Prejudice.

1 Doutora em Comunicação e Cultura pela UFRJ, pós-doutorado em Sociologia no Goldsmiths College, University of London. Docente do Programa de Pós-graduação stricto sensu em Comunicação e Práticas de Consumo ESPM, coordena o GRUSCCO - Grupo ESPM/CNPq de Pesquisa em Subjetividade, Comunicação e Consumo, e o Comitê ESPM de Direitos Humanos. E-mail: gcastro@espm.br.

2 Doutorando e Mestre em Comunicação e Práticas do Consumo pela ESPM-SP e pesquisador integrante do GRUSCCO – Grupo ESPM/CNPq de Pesquisa em Subjetividade, Comunicação e Consumo. Atua como professor convidado dos cursos de lato sensu da ESPM, FIA-USP, FGV e SENAC SC. E-mail: marcos.hiller@espm.br.

Introdução

        Como novos caminhos comunicacionais de estratégias de marcas na contemporaneidade, o uso de mascotes digitais no papel de assistentes virtuais organizacionais se torna uma prática cada vez mais disseminada por empresas. Por meio de distintas formas discursivas, mas como uma recorrência de elementos desconfortantes pelos motivos que delimitaremos a seguir, esse tipo de linguagem tem se expandido de maneira frequente nos mais diversos segmentos de negócio. Seja para traduzir e transmitir institucionalidades empresariais de marca, seja para corporificar ferramentas de inteligência artificial de atendimento ao cliente, ou ainda para simplesmente comunicar a promoção de produtos, as assistentes virtuais têm contribuído para revestir os discursos empresariais com uma camada lúdica e de aparência humanizada. Dessa forma, espera-se favorecer ainda mais a aproximação das marcas junto a seus públicos.

        Pesquisadores do campo têm problematizado o uso de mascotes de marcas. Perez (2011) e Trindade (2017) mapearam o percurso histórico desse formato comunicacional desde os anos 1960. Já um olhar mais cuidadoso sobre o uso de mascotes nos ambientes on-line, por se tratar de um recorte ainda mais recente, é um objeto que incita mais investigação do campo da Comunicação. Azevedo (2020) joga luz sobre esse tema na cena digital, da qual trataremos de forma mais detalhada neste artigo. A recorrência do uso de vozes femininas em ferramentas de inteligência artificial de empresas (SANTOS, 2020) também merecerá o interesse em nossa discussão.

        Neste trabalho, selecionamos um recorte empírico mais recente visando um olhar cuidadoso sobre o uso de mascotes em ambientes on-line. A adoção de assistentes virtuais femininas por empresas é vista nesta discussão como uma expressividade de marcas em ambientes digitais contemporâneos. No texto que se segue, elegemos seis exemplos relevantes do cenário publicitário atual. Esta seleção foi feita por conveniência em sites de busca, sem a pretensão de recolher amostra significativamente estatística para eventuais conclusões de caráter universal. Nosso intuito é tecer reflexões acerca das estratégias adotadas dentro do campo da comunicação, com especial atenção a certos aspectos de linguagem que estariam ali sendo mobilizados. Uma observação das práticas mais usuais de mercado, revela diversas possibilidades sendo trabalhadas em diferentes direções estéticas, identitárias e linguísticas. Nossa inquietação em relação ao recorte que apresentamos a seguir diz respeito como esse tipo de comunicação, caracterizado por uma linguagem, revestida de uma lógica astuta, tecnológica e essencialmente moderna, pode revelar um processo de naturalização do estereótipo do papel de uma mulher submissa e servil, reforçando a desigualdade racial e de gênero.

        Com base nessa inquietação central, propomos uma discussão que objetiva examinar as lógicas e tessituras da linguagem que sustentam o formato midiático das assistentes virtuais femininas. Como decorrência, nos importa compreender de que forma essa abordagem comunicacional de marcas pode ser evidenciada como uma prática que naturaliza certos preconceitos de corpos, gênero e raça. Para tanto, faz-se necessário identificar os elementos do corpo feminino que são constante e frequentemente enaltecidos nas imagens selecionadas para representar essas assistentes virtuais, assim como problematizar de que maneira tais escolhas podem reforçar estereótipos e preconceitos, ainda que eventualmente de modo não intencional.

        Iremos discutir essa temática a partir de autores do campo da Comunicação de marcas como Lencastre (2007), Hellin (2007), Perez (2010), Azevedo (2020) e Trindade (2017). Convocaremos também autores de estudos de linguagem como Barthes (1982), Baitello (2018) e pensadores que estudam a questão do estereótipo da linguagem como Baccega, (1998), Wacjamn (1998), Bagno (2007) e Bosi (1977). Serviremo-nos também de estudiosos do campo que têm se preocupado em buscar um panorama inclusivo para esse debate de preconceito de gênero da cena digital como Santos (2020) e West, Kraut e Chew (2020). O artigo está estruturado em uma seção preliminar sobre os alicerces contextuais que sustentam nosso objeto de pesquisa, um outro segmento sobre o emprego cada vez mais frequente das mascotes de marcas, uma seção final sobre o reforço do estereótipo, além de nossas considerações que encerram esse artigo.

Mascotes de marcas como formato comunicacional

        Ao contrário de como se emprega no senso comum, “a” mascote de uma marca comercial é um substantivo de gênero feminino. É também um elemento de representação de marca, empresa, produto ou canal de atendimento, por exemplo. Assim sendo, adquire, conforme destaca Perez (2011), uma atribuição de comunicação do universo simbólico da marca junto ao seu público.

        Pode-se compreender as mascotes digitais das marcas como parte importante de uma narrativa mítica da própria publicidade. Barthes (1982) concebe o sistema publicitário como uma das mais proeminentes representações do mito na contemporaneidade. Para o autor, o mito é “um sistema de comunicação, é uma mensagem [...] um modo de significação, uma forma [...] que não se define pelo objeto de sua mensagem, mas pela maneira que a profere” (BARTHES, 1982, p. 131). Ela visa cativar consumidores em uma experiência estética em que a recorrência e a repetição das imagens envolvem as marcas de uma narrativa fundamentalmente mágica, pois ressignifica os discursos das marcas, cria fetiches e transforma as mercadorias e os territórios das marcas em um conjunto de novos significados que vão constituindo um repertório aceito socialmente. Ainda segundo Barthes (1982), é por meio dessa camada da linguagem e de uma espécie de esvaziamento do mundo real que os mitos contemporâneos exercem sua função: a transmissão de sensações, imaginário e sentidos compartilhados em um uso essencialmente social.

        Para a produção do presente artigo, foi efetuada uma sondagem exploratória em sites institucionais selecionados [1]. Não se evidenciou qualquer justificativa pela recorrência do uso de mascotes femininas. Tampouco sobre a preferência por personagens com tonalidade da pele negra no papel de assistentes virtuais de determinadas marcas. Nossa atenção dedica-se ao que nos é oferecido por esse recorte do sistema publicitário atual.

        Muito usadas nos anos 60 e 70, as mascotes tendem a desaparecer com o racionalismo extremo dos anos 80, sendo retomadas com força a partir da década seguinte e até o dia de hoje, mostrando como tais personagens vinculam-se à complexa teia da vida cultural. Na visão de Perez (2010), as mascotes apresentam-se como espelho das múltiplas construções identitárias humanas, que se transferem às formas subjetivas de expressão das marcas. Esses chamados multivíduos abordados por Perez (2010), ganham sua manifestação no universo das marcas, constituindo um universo simbólico que se configura como lugar de compreensão da vida imaginária de mascotes, pois auxiliam na compreensão de parte das construções dos mitos de marcas e do consumo contemporâneo.

        Ao destacar o uso estratégico das mascotes, Lencastre (2007) considera que esses “encantadores personagens da vida midiática publicitária possibilitam a criação de vínculos emocionais das marcas junto à vida cotidiana dos consumidores de todas as partes do globo” (LENCASTRE, 2007, p. 129). Ou então, conforme enfatiza Hellin (2007), tais figuras não comunicam apenas um produto ou uma marca, mas acrescentam humanidade à relação da marca com o consumidor ou consumidora.

Imagem 1 - Mascotes virtuais de marcas representadas como femininas.

https://bit.ly/3OIrnx8 

Fonte: Sites institucionais das respectivas marcas (2023).

Na imagem acima (Imagem 1), vemos uma seleção de seis assistentes virtuais que foram mapeadas em ambientes on-line durante nossa exploração inicial em sites de busca. Nesta seleção pode-se notar claramente a incômoda preponderância de mulheres e, sobretudo, negras. Empregamos neste artigo a expressão “mascote digital” na intenção de chamar a atenção para a popularização dessas personagens nos ambientes interacionais comerciais on-line nos dias de hoje. É cada vez mais usual e frequente que nesses ambientes percebamos o uso de sistemas de inteligência artificial, atrelados às imagens das assistentes virtuais, uma espécie de robôs virtuais interativos criados para mimetizar de uma forma lúdica a tomada de decisões, a resolução de problemas e os demais tipos de interação de marca com consumidores. Sob nossa perspectiva, entendemos que a “mascote digital” seria a mais adequada designação para nos referenciarmos a essas personagens centrais da discussão aqui apresentada.

        Assim como fizemos nas linhas iniciais deste artigo, entendemos que seria importante recorrermos às considerações feitas por Baitello (2018), acerca da centralidade da cultura de visualidades. Afinal, vivemos “acostumados ao acesso de imagens e ao acesso exuberante que caracterizou progressivamente o desenrolar do século XX” (BAITELLO, 2018, p. 75). Recorrendo ao gênero cinematográfico para pensar a interação com sistemas de inteligência artificial, pode-se trazer à tona o filme Ela (Her, EUA, 2013) cujo enredo narra a relação amorosa entre um indivíduo e sua assistente pessoal virtual. A personagem Samantha podia ser vista como exacerbação das assistentes virtuais que viriam a se proliferar amplamente algum tempo depois. Inspirado por esses imaginários fílmicos e por certos produtos tecnologicamente avançados, o aumento expressivo da presença de mascotes digitais parece uma tendência importante na comunicação empresarial atual.

        Nesse sentido, é pertinente pensar na potência sígnica dessa estratégia visual dos anunciantes que nos fazem interagir com imagens virtuais de corpos humanizados de personagens publicitárias majoritariamente femininas, como as que selecionamos para a análise que apresentaremos a seguir. São elas: Nat (Natura), Taís (Construtora Tenda), Clara (Equatorial Energia), Lu (Magazine Luiza) e Ornette (Tudo Orna).

No contexto do crescimento da digitalização de nossas relações sociais, assim como da intensificação do comércio on-line, parecem estar sendo construídos novos modos de atuação que valorizem uma aproximação sensível, afetiva e amigável entre marcas e consumidores. Sendo assim, o investimento nas mascotes digitais pode ser justificado pela carga de ludicidade e humanização que as acompanha. E é justamente nesse sentido que a expressão “mascote digital” ganha sentido, devido a ela carregar uma poderosa hibridação em sua constituição (AZEVEDO, 2020). Vemos na mascote digital uma personificação divertida e criativa, dotada de traços identitários construídos pelas camadas de sentido que vão se acomodando progressivamente em nossas mentes a cada contato avulso que estabelecemos com a personagem nos diversos canais utilizados pela comunicação da marca. Multiplicados pelo seu desempenho em uma narrativa, somos levados, segundo Azevedo (2020), a nutrir simpatia pela mascote, visto o esforço comunicativo criado para torná-la uma elaboração amistosa, normalmente potencializada por um tratamento estético refinado de design digital e, enfim, pelo revestimento semântico que lhe é conferido, atribuindo a ela a figura do “herói”, criando uma jornada que tem como objetivo estabelecer uma prazerosa experiência entre a marca que representa e o seu usuário consumidor.

        A popularização de tecnologias de inteligência artificial evoluiu e potencializou o envolvimento desses representantes ou assistentes virtuais como componentes de humanização da comunicação entre marcas e clientes. Fica evidente que tal recurso traz ganhos de eficiência ao reduzir custos de operação das empresas ao dispensar operadores humanos. Recorrendo a Belting (2005), Baitello (2018, p. 36) defende que “imagens e corpos ganham assim um estatuto igualitário na criação de ambientes, uma vez que constituirão três instâncias relativamente autônomas [...] ambientes culturais de vinculação a partir da visualidade”. Importante notar como esse formato comunicacional faz com que usuários interajam com imagens virtuais de sistemas informacionais que se apresentem na forma humana, como se interagissem com a própria marca.

Reforço de estereótipos e preconceitos

        Como vimos acima, a imagem mais recorrente selecionada para identificar uma mascote digital de marca é, na sua enorme maioria, a de mulheres geralmente negras. Sem querer entrar em um juízo de valor acerca das decisões de profissionais de marketing em sua insistência no uso destas representações para as assistentes virtuais, inquieta-nos a escolha deliberada de imagens de mulheres da raça negra para este fim, ainda que possamos ver com bons olhos e considerar a eventual intenção das marcas como um tímido reforço de inclusão e um gesto que pode almejar ganho de representatividade a este grupo social minorizado.

        Almeida (2018) denuncia a construção da inferiorização que mantém os negros como subalternos seria fruto da incapacidade ou falta de se posicionar criticamente contra o fatídico legado do passado escravagista. Ao contrário, podemos perceber que se acentua nesses casos um despropositado ideal de supremacia branca, que contribui para naturalizar as disparidades entre brancos e negros, determinando àqueles privilégios e, a estes, as “sobras” e o preconceito do racismo. Almeida (2018) argumenta, ainda, que o racismo é também racionalmente reproduzido. Em épocas passadas, estudos de cunho científico ratificaram teses sobre discrepâncias raciais, tendo contribuído para a consolidação do preconceito e inferiorização de pessoas negras.

        Da mesma forma, podemos argumentar que a recorrência de mascotes femininas expressaria o lugar subalterno comumente reservado às mulheres em um mundo do trabalho amplamente denominado patriarcado e atravessado pelo sexismo. Nesse contexto, chama a atenção o fato de que a assistente virtual Nat, da Natura, constantemente receba ataques de cunho racista em ambientes on-line como o Twitter [2]. De modo bastante semelhante, a personagem Lu, do Magalu, tem sido alvo de assédio sexual e outros tipos de tratamento rude de forma recorrente nas plataformas de rede social. Em 2021, a marca Bradesco lançou uma campanha publicitária [3] com ações que incentivam o combate ao preconceito de gênero e assédio à Bia, a voz da assistente virtual da marca.

        Tanto na mídia, como nas conversas do cotidiano e, sobretudo, no próprio sistema publicitário, o racismo, o machismo e a discriminação são aspectos vis de nossa sociedade e que se evidenciam ora de forma velada, ora de forma mais explícita nas produções publicitárias vigentes. Sob a perspectiva da proliferação de assistentes virtuais negras e de gênero feminino, verificamos que os estereótipos funcionam como uma espécie de atalho mental reducionista. Pesquisadores [4] do campo da comunicação se preocupam constantemente em problematizar e mesmo denunciar o uso condenável de estereótipos no cotidiano. Pode-se entender o estereótipo como um recorte tendencialmente refratado de uma dada realidade. Assim sendo, nas palavras de Baccega (1998, p. 10), o estereótipo “reflete com desvios, como um lápis que, colocado em um copo de água, entorta”. Entretanto, conforme assinala a estudiosa, “o estereótipo comporta uma carga adicional do fator subjetivo, que se manifesta sob a forma de elementos emocionais, valorativos e volitivos, que vão influenciar o comportamento humano” (BACCEGA, 1998, p. 10). Na fala da saudosa decana do PPGCOM ESPM-SP, depreendemos que o estereótipo se manifesta sob uma lógica mais passional, trazendo em si, como já dissemos, juízos de valor pré-concebidos que atuam sobre a nossa percepção do mundo.

        Nesse sentido, compreende-se que a existência de uma crença estereotipada requer um processo, o de estereotipização. Como ensina Pereira (2019), tal processo depende da presença conjunta de duas operações psicológicas, a entitatividade, uma operação mental que impele a percepção de uma coleção de indivíduos como membros de uma totalidade, assim como a formulação de teorias implícitas. Ainda segundo o autor, na construção do estereótipo, as complexas, multifacetárias e contraditórias relações entre as pessoas e os grupos seriam reduzidas a um retrato superficial e monotônico, distante da realidade. De fato, ao tomarmos com base nas teorias da Comunicação, essa perspectiva superficial e monotônica parece mesmo representar uma visão parcial e limitada das audiências atuais, que se configuram como grupos de consumidores segmentados, seletivos e entrincheirados em nichos muito específicos e fortemente polarizados.

        Para avançar na problematização da constrangedora predominância de um viés sexista e racista nas representações imagéticas das assistentes virtuais de certas marcas, recorremos novamente a Almeida (2018), que discorre sobre a diferença entre preconceito, racismo e discriminação, frequentemente compreendidos como sinônimos no senso comum. O preconceito deve ser entendido com a construção e definição de conceito sobre determinada pessoa ou grupo, sendo esta construção estabelecida por fatores históricos e sociais. O racismo, por sua vez, deve ser entendido como “uma forma sistemática de discriminação que tem a raça como fundamento, e que se manifesta por meio de práticas conscientes ou inconscientes que culminam em desvantagens ou privilégios, a depender do grupo racial ao qual pertençam” (ALMEIDA, 2018, p. 25). Quanto à discriminação, esta ocorre quando se confere a alguém ou algum grupo tratamento diferenciado, tratando como inferior.

        Ao examinarmos a predominância de assistentes virtuais mulheres da raça negra atreladas a marcas notadamente bem conhecidas, podemos especular que a preferência pelo gênero feminino pretenda, de certo modo, evocar a segurança da figura materna ao buscar trazer para as marcas em questão a égide de confiança tradicionalmente associada a esta emblemática figura. Ainda que se deva argumentar sobre o racismo impregnado na cultura brasileira, bem como sobre o papel submisso historicamente associado às mulheres, em especial às mulheres negras, chamamos a atenção para a forte carga afetiva associada à figura emocionalmente acalentadoras, de ‘mãe preta’ ou ‘mãe de leite’.

        Consideremos a seguir o viés machista que reduz a mulher a mero objeto de deleite masculino. Consideremos, ainda, a problemática associação entre machismo e racismo na construção interseccional do imaginário da mulher negra sensualizada e servil. Com base nesses estereótipos, chama a atenção o caso da Ornette, a assistente virtual da marca Tudo Orna. Se a empresa tem como sócias-fundadoras três irmãs brancas que se apresentam como empreendedoras digitais naturais de Curitiba, por que razão teriam escolhido uma negra como sua dita “quarta irmã”? O que poderia estar por trás da escolha do nome composto pelo sufixo “ette” associado ao nome da marca? O que dizer sobre a silhueta sensual da mascote digital da marca, com seios proeminentes à mostra no decote ousado que a des(compõe)?

        O preconceito é uma das formas mais sutis e perversas de exclusão social. A discriminação, muitas vezes, não é percebida como tal pelas suas vítimas, não raro são levadas a considerar a opressão como uma atitude socialmente legítima, inocente brincadeira ou até mesmo como um galanteio. A carga negativa de preconceitos que o estereótipo carrega denúncia e enseja atitudes de repúdio ao outro, visto como inferior. Tal atitude é transmitida por gerações, mesmo sem que se tenha consciência dessa herança nociva. Ao discorrer sobre a recorrência no uso de estereótipos nos meios de comunicação, Baccega (1998) nos conclama a refletir sobre essa problemática das relações Norte-Sul no contexto da globalização, a questão das etnias dizimadas ou socialmente marginalizadas, a intolerância ou a negligente indiferença frente às excruciantes desigualdades sociais e, ainda, sobre a padronização de linguagens e de comportamentos que obliteram sutilezas regionais, geracionais e socioculturais, dentre outros temas relevantes.

        Ao voltarmos nosso olhar crítico para as plataformas digitais e, de modo mais específico, para a comunicação de marcas, indagamos em que medida a utilização tão disseminada de estereótipos contribui para a consolidação do preconceito e da discriminação. Pensando nos complexos arranjos de inclusão e exclusão que caracterizam os embates entre privilegiados e desprivilegiados nas plataformas de rede social, questionamos sobre os modos como a publicidade brasileira contribui para reforçar ou contestar certos estereótipos. Compreender esses aspectos do estereótipo corporificado nos faz recorrer à investigação de Santos (2020). A pesquisadora gaúcha, em sua tese de doutorado, fez questão de reforçar que, ainda que possíveis políticas das empresas tentem desviar perguntas de usuários que dizem respeito às construções de gênero, as principais assistentes pessoais digitais analisadas pela autora aparecem no mercado inicialmente com vozes exclusivamente femininas, sendo que Alexa e Cortana permanecem assim até o momento presente. Siri e Google Assistente ganharam versões masculinas para suas vozes posteriormente aos seus lançamentos, mas permanecem com a voz feminina como padrão nos dispositivos.

        Outro aspecto que merece destaque é o dado de que apenas cerca de 15% das posições de liderança em empresas de tecnologia do Vale do Silício são ocupadas por mulheres (WEST; KRAUT; CHEW, 2019). Não se trata, portanto, essencial reforçar que a questão de uma maior representatividade da mulher na indústria não é uma questão para pensarmos o desenvolvimento de objetos digitais de Inteligência Artificial a partir do viés de ampliação da representatividade da mulher na indústria. Santos (2020) enfatiza que a questão não é exatamente pensar formas de tornar o desenvolvimento das tecnologias de Inteligência Artificial mais representativa ou responsável. O que de fato importa, segundo a autora, é refletir sobre o que essas conformações específicas que possuímos hoje dizem sobre a sociedade. E, complementa, que as relações de gênero se personificam tanto na esfera da produção quanto da reprodução (SANTOS, 2020). Portanto, esse fenômeno de estereotipação dos empregos não é apenas um reflexo do papel tradicional da mulher no interior da família; é também criado e reproduzido pelas relações patriarcais do trabalho remunerado.

        Por fim, recorremos a Bosi (1977), quando preconizou que, as condições o permitem, as impressões iniciais são corrigidas e tornam-se mais inteligíveis à luz de novas experiências. Desse modo, a estudiosa indica que, a interação com a realidade possibilita a todos condições de ultrapassar a barreira do estereótipo. Quando se debate a infeliz predominância dos estereótipos femininos em posições servis nos ambientes on-line das marcas, é preciso ter clara a distinção entre conformidade e conformismo, pois o estereótipo tem uma multiplicidade de facetas e representações. Na verdade, os indivíduos se orientam por meio de valores e normas sociais. Os estereótipos facilitam a conformação de determinados grupos que se consideram superiores ou privilegiados, favorecendo a aceitação social entre seus membros e relegando os demais ao escárnio da subalternidade.

Considerações Finais

        O presente artigo tem uma clara intenção de trazer à tona o tema da desigualmente social, racial e de gênero, assim como incentivar a divisão igualitária, necessária e urgente do trabalho e do respeito entre homens e mulheres. Nos exemplos aqui citados, vimos uma predominância de imagens de mulheres negras, revestidas de uma camada linguística de autonomia para representar empresas nos ambientes digitais. Evidenciamos o uso de personagens apresentadas como ágeis, eficientes, sempre de prontidão, seguras de si, com ares de modernidade no aspecto cool dos elementos tecnológicos de ponta. Como vimos, diversos elementos elencados estereotipam a mulher e consolidam de modo especialmente nefasto o preconceito contra a mulher da raça negra.

Vale ressaltar que nossas observações dizem respeito à análise crítica dos elementos estéticos que constroem a interface pelas quais as assistentes virtuais das marcas aqui examinadas são apresentadas ao público. Evidentemente, as conclusões que chegamos não levaram em consideração o exato racional que teria direcionado os esforços criativos dos profissionais de comunicação que efetivamente desenharam essas personagens. Tampouco nos debruçamos sobre detalhes dos briefing efetuados pelas empresas anunciantes e que teriam orientado a escolha deliberada de personagens mulheres negras como assistentes virtuais.

        Reconhecemos que podemos ser questionados sobre o lugar de fala de um dos autores desse artigo: um homem, de pele branca e com certos privilégios no âmbito socioeconômico. Nesse sentido, preferimos assumir uma postura de denúncia e de resistência ao questionar por que quase sempre mulheres e raramente homens ao assumir esse papel de assistentes virtuais? Por que a imagem de corpos femininos ligeira ou abertamente sensualizados? Por que uma enorme predominância de mulheres negras? São questões que nos remetem a inquietações e que revelam preconceitos por parte de significativa parcela de indivíduos com facetas misóginas e racistas. Sem querer generalizar e no intuito de apontar problemáticas matizes que compõem o intrincado tecido social brasileiro em que estamos inseridos, não é difícil constatar o sexismo, dado o predomínio dos homens nos altos cargos das indústrias publicitárias, de tecnologia e nos negócios.

        Ao esquadrinharmos criticamente o cenário das assistentes virtuais, detectamos alguns tímidos avanços na direção oposta à que foi discutida até aqui. Apesar da assistente virtual da marca Apple, nos Estados Unidos, usar como padrão uma voz feminina, a empresa oferece aos usuários de iPhone e iPad, a opção de escolher a voz masculina. O próprio nome, Siri, parece ter sido escolhido para funcionar como atribuição de gênero neutro. De fato, em iPhones em que o idioma é árabe, francês, holandês ou inglês britânico, o padrão deste assistente virtual é uma voz masculina.

        Outra gigante da tecnologia, a IBM, teria testado 25 dubladores masculinos e femininos para o Watson, sua mundialmente conhecida ferramenta de inteligência artificial, antes de escolher o gênero masculino para esta ferramenta intencionalmente apresentada como não-humana. Em outro exemplo que foge ao padrão que procuramos problematizar neste estudo, a Domino’s Pizza escolheu lançar o Dom, um assistente virtual com voz e persona masculinas para o aplicativo da marca.

        A inquietante e controversa questão do preconceito na comunicação de marca merece, sem dúvida, ser trazida ao debate [5]. Para consolidar reputações e contribuir com a consolidação da responsabilidade social corporativa, uma demanda candente do capitalismo atual, é necessário desenvolver estratégias de comunicação pautadas pelo compromisso ético do respeito à diversidade e repúdio a qualquer forma de opressão ou afronta à dignidade humana. Espera-se que possa haver consenso sobre o quanto é controverso a comunicação de marcas se mostrar ainda refém de preconceitos anacrônicos, descabidos e desmoralizantes.

        Dentre os caminhos possíveis para a efetiva problematização e eventual reconfiguração do panorama aqui apontado, destacamos o indispensável investimento na educação de qualidade e na formação profissional de cunho mais claramente humanista e crítico. Para que novas gerações sejam mais conscientes ao condenarem e jamais normalizarem algumas das questionáveis escolhas de linguagem do sistema publicitário atual, é preciso opor resistência ao ensino massificado e tecnicista que se impõe em um contexto em que interesses comerciais não raro sobrepujam o propriamente educacional. Na esperança de contribuir para o debate, desejamos que a discussão apresentada possa vir a suscitar novos desdobramentos com base em outros recortes empíricos e aportes teórico-metodológicos diversos.  

        Nos tristes trópicos em que habitamos, pegando emprestado a provocante expressão de Lévi-Strauss e apropriada pelo compositor Caetano Veloso, convive-se com a trágica e crescente desqualificação da ciência e o progressivo desmantelamento do sistema nacional de pós-graduação. Apostemos na produção coletiva de conhecimento por meio da pesquisa acadêmica como uma necessária atitude de resistência que marca o compromisso com um outro Brasil possível. Entendemos que apenas desse modo poderemos pavimentar esperanças e, efetivamente, construir esta alternativa alvissareira.

Notas

[1] Foi efetuada uma busca nos sites institucionais das mais relevantes empresas que se utilizam assistentes virtuais como mascotes digitais e chegou-se às seguintes marcas: Lu (Magazine Luiza), Nat (Natura), Taís (Construtora Tenda), Clara (Equatorial Energia), Elô (Cielo) e Ornette (Tudo Orna).

[2] O ápice do racismo virtual: Nat da Natura está sob ataques. Disponível em: <https://bit.ly/3rrs9GD>. Acesso em: 6 jun. 2022.

[3] As mulheres virtuais estão empoderadas nas empresas. Mas e as reais?. Disponível em: <https://bit.ly/43og2rk>. Acesso em: 4 ago. 2022.

[4] Citamos como exemplo o estudo sobre as representações de trabalhadoras domésticas em telenovelas da TV Globo, antes e após a promulgação da PEC das Domésticas. Disponível em: <https://bit.ly/3Ywezye>. Acesso em: 6 jun. 2022.

[5] Vide, por exemplo, em matéria do Wall Street Journal. Disponível em: <https://bit.ly/44DSmAJ>. Acesso em: 3 ago. 2022.

Referências

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AZEVEDO, S. T. de. Questões sobre mascotes digitais: publicidade, inteligência artificial e enunciação. In: Intercom – Sociedade Brasileira de Estudos Interdisciplinares da Comunicação. Anais do 43º Congresso Brasileiro de Ciências da Comunicação, 2020, Salvador. Disponível em: <https://bit.ly/46R68kH>. Acesso em: 5 jul. 2023.

BACCEGA, M. A. O estereótipo e as diversidades. Comunicação & Educação, n. 13, p. 7-14, 1998. Disponível em: <https://bit.ly/3JUx60U>. Acesso em: 5 jul. 2023.

BAGNO, M. Preconceito linguístico: o que é, como se faz. São Paulo: Loyola, 2007.

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