Possibilidades e limites das contribuições de Siegfried Kracauer ao estudo da mídia:

uma leitura de Theory of Film (1960)

Luís Mauro Sá Martino1

Resumo

Publicado originalmente em 1960, Theory of Film, de Siegfried Kracauer, é um trabalho reconhecido dentre as teorias do cinema, tendo atraído, desde seu lançamento, tanto elogios quanto críticas dentro desse campo específico. Mas até que ponto seria possível situá-lo no âmbito das Teorias da Comunicação? Quais seriam, se há alguma, suas contribuições para a compreensão dos processos midiáticos? Este artigo propõe uma leitura de Theory of Film focada nas possibilidades de desenvolver suas proposições sobre o filme como contribuições para uma teoria da mídia. Não se trata de entender o livro como uma tentativa de criar uma “teoria dos meios”, mas fazer algumas aproximações iniciais da obra com algumas das concepções lidas sob essa rubrica nos estudos de Comunicação. Para tanto, são destacados três aspectos da obra: (1) suas concepções de “teoria” e “meio” como categorias interpretativas a partir das quais se pode situar a noção de “mídia”; (2) a aproximação dessa concepção, nas Teorias da Comunicação, com alguns aspectos da Teoria do Meio e (3) a preocupação do autor em estabelecer uma relação entre o meio e a realidade por ele capturada e “redimida”. Esses pontos são discutidos sobre o pano de fundo de algumas das discussões contemporâneas sobre Teoria da Comunicação.

Palavras-chave

Kracauer; Teoria do Meio; Teoria da Comunicação; Filme; Cinema.

1 Doutor em Ciências Sociais pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP). Professor do Programa de Pós-Graduação em Comunicação da Faculdade Cásper Líbero. E-mail: lmsamartino@gmail.com.

Possibilites and limits of Siegfried Kracauer's contribution to media studies:

a reading of Theory of Film (1960)

Luís Mauro Sá Martino1

Abstract

Originally published in 1960, Siegfried Kracauer’s Theory of Film is a recognized work among film theories, having, since its release, attracted both praise and criticism within this specific field. But to what extent would it be possible to place it within the scope of Communication Theories? What, if any, would be their contributions to the understanding of media processes? This article proposes a reading of Theory of Film focused on the possibilities of developing its propositions about film as contributions to a theory of the media. It is not about understanding the book as an attempt to create a “theory of media”, but making some initial approximations of the work with some of the conceptions read under this rubric in Communication studies. To this end, three aspects of the work are highlighted: (1) its conceptions of “theory” and “medium” as interpretive categories from which the notion of “media” can be situated; (2) the approximation of this conception, in Communication Theories, with some aspects of the Theory of the Medium and (3) the author’s concern to establish a relationship between the medium and the reality captured and “redeemed” by it. These points are discussed against the background of some of the contemporary discussions on Communication Theory.

Keywords

Kracauer; Medium Theory; Communication Theory; Film; Movie Theater.

1 Doutor em Ciências Sociais pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP). Professor do Programa de Pós-Graduação em Comunicação da Faculdade Cásper Líbero. E-mail: lmsamartino@gmail.com.

Introdução

A obra de Siegfried Kracauer parece ainda não ter tido senão uma apropriação incipiente na área de Comunicação. Embora tenha desenvolvido importantes trabalhos sobre cultura de massa, nos anos 1920, e sobre teoria da mídia, já em 1960, suas contribuições, ao que tudo indica, estão restritas a menções pontuais, com alguns poucos estudos específicos a seu respeito em artigos esparsos nos periódicos da área, como Gutfreind (2006; 2009) ou Caleiro (2010). Em áreas próximas, é possível encontrar algum material oriundo de pesquisas em Sociologia, como Simis (2005), Waizbort (2009), Santos (2013; 2014) ou Andrade (2019) e em Cinema, notadamente Costa (2006), Penafria (2007), Bron (2015) ou Corpas (2015; 2021).

Essa variedade de leituras oferece, de saída, uma pista para compreender a situação incerta dos estudos de Kracauer: a dificuldade para situá-lo dentro de uma área específica. A exemplo de Benjamin, com quem é por vezes comparado na literatura especializada (SANTOS, 2006), Kracauer transitou tanto por uma crítica cultural escrita na velocidade do jornalismo quanto por reflexões mais amplas, voltadas para um público acadêmico.

Pesquisadoras e pesquisadores de sua trajetória, como Perivolaropoulou (1996; 2004), Hansen (1997), Schmidt-Lux e Thériault (2017), indicam a presença tanto de rupturas quanto de continuidades entre os diversos focos de sua produção, desde o exame detalhado das mudanças da Berlim dos anos 1920 até as reflexões sobre História, já no final de sua vida, por volta de 1960. Mais do que uma obra sistemática ou organizada, Kracauer parece navegar por diversos assuntos e temas, oferecendo contribuições particulares a cada um.

Sua proximidade mais apontada é com a Escola de Frankfurt; no entanto, trata-se mais de relações de amizade do que propriamente institucionais — nunca pertenceu formalmente ao Instituto de Pesquisa Social. Ele é mencionado de maneira episódica por Slater (1978) e Jay (2021), que ressaltam sua proximidade com Adorno e Benjamin, com quem seus escritos costumam ser eventualmente comparados; apenas Wiggerhaus (2005) detalha um pouco essa relação como a de um interlocutor próximo, sobretudo, novamente, com Adorno — que lhe dedicou um texto de homenagem crítica.

O Kracauer lembrado nesses estudos é o dos anos 1920 e 1930, dotado de um olhar atento e “curioso”, para usar a expressão de Adorno (2009), em relação às rápidas mudanças na modernidade acelerada advinda ao final da Primeira Guerra; um crítico da “cultura de massa”, mas que não deixa também de se encantar em parte com ela — ponto de contato com Benjamin do mesmo período, lembra Bron (2015) — e com seu lugar na sociedade; é o Kracauer de Os Empregados e dos ensaios reunidos posteriormente em O Ornamento da Massa. Do mesmo modo, não há referências a ele em nenhum dos 36 livros de Teoria da Comunicação publicados entre 1964 e 2016 no Brasil, e alguns dos principais títulos estrangeiros, como McQuail (2005) ou Severin e Tankard (2001) também não mencionam seus estudos.

No caso brasileiro, pode-se destacar também a dificuldade de acesso aos seus trabalhos. Apenas duas de suas obras foram publicadas no país: De Caligari a Hitler (1947), pela Jorge Zahar Editor, em 1988, e O Ornamento da Massa (1927), pela Cosac & Naify, em 2006. Ambas estão esgotadas e os raros exemplares disponíveis no circuito especializado são comercializados a preços altos — cerca de um terço do salário mínimo, em valores de 2022.

Ao mesmo tempo, a obra de Kracauer parece oferecer aportes de interesse para a pesquisa em Comunicação, tanto em sua perspectiva de crítica cultural presente em O Ornamento da Massa quanto nos vislumbres de um tipo inédito de relação premonitória entre cinema e sociedade em De Caligari a Hitler.

Neste texto, no entanto, o foco recai sobre seu último trabalho publicado em vida, Theory of Film: The Redemption of Physical Reality (“Teoria do Filme: a redenção da realidade física”, ainda sem tradução em português) no sentido de aproximá-lo de algumas discussões presentes na Teoria da Comunicação.

Evidentemente o ponto não é discutir a inclusão ou não de Kracauer no que poderia ser considerado um “cânone” das Teorias da Comunicação, mas delinear algumas possibilidades de aproximação em termos de suas contribuições ao tema — em particular, no que pode ser entendido como uma teoria do meio proposta em Theory of Film.

Tendo em mente esses limites, este texto delineia algumas das aproximações possíveis da obra de Siegfried Kracauer e das Teorias da Comunicação — o foco, em particular, é Theory of Film. A partir do exame das propostas do livro, confrontadas com a bibliografia crítica disponível, este artigo propõe uma leitura de Kracauer a partir das teorias da mídia. Por razões de espaço, neste texto, toma-se a teoria da mídia como parte de um conjunto mais amplo das Teorias da Comunicação — para um exame detalhado da articulação entre mídia e comunicação, remete-se à Oliveira (2011), Pimenta (2011) e Martino (2016).

Como nota, vale assinalar que esta é “uma” proposta de leitura, sem pretensões de ser “a” leitura: esforços semelhantes foram apresentados por Perivolaropoulou (1996), Costa (2006), Bron (2015) e Corpas (2021); distancia-se, ao mesmo tempo, por buscar destacar alguns delineamentos possíveis da noção de “mídia” em Kracauer, enquanto as leituras citadas, com as quais se dialoga e aprende, buscam situá-lo, sobretudo, em termos de crítica cultural.

No que se segue, o argumento se desenvolve em três partes: (1) localiza-se a contribuição do livro em termos de teoria e objeto da comunicação para, em seguida (2) aproximá-lo de algumas proposições da Teoria do Meio e (3) destacar a especificidade dessa contribuição em Theory of film.

A perspectiva da teoria e do objeto em Theory of Film

Em uma resenha publicada na revista The Speech Teacher em 1961, logo após o lançamento de Theory of Film, de Siegfried Kracauer, o crítico Bruce Markgraf (1961) celebrava o livro como uma importante contribuição à área:

Theory of Film é o mais intelectual e significativo estudo sobre filme que chamou a atenção deste crítico. Diferenciando o filme das artes tradicionais, o Dr. Kracauer desenvolve uma teoria estética do filme baseada na suposição de que ele é uma extensão da fotografia, e encontra sua particularidade no ato de registrar e revelar a realidade física [1] (MARKGRAF, 1961, p. 238) (tradução nossa).

Cinco anos depois, o livro ainda atraia comentários elogiosos, como na resenha de David M. Knauf (1966):

O pressuposto a priori fundamental da ‘estética material’ de Kracauer é a literalidade inescapável do filme. Seu assunto especial é a realidade física, e o filme é mais cinemático quando transmite uma ilusão de realidade física mais parecida com o original [2] (KNAUF, 1966, p. 340) (tradução nossa).

No entanto, como lembra Perivolaropoulou (1996), as críticas vieram na mesma velocidade:

Theory of Film (...) surge em um momento em que a semiologia e a psicanálise começam a ocupar o campo dos estudos cinematográficos e, nesse contexto, a estética do cinema de Kracauer será taxada de um realismo ingênuo e ultrapassado [3] (PERIVOLAROPOULOU, 1996, p. 179) (tradução nossa).

Esse aspecto dissonante em relação à produção que se esboçava na época pode ser observado já no título do livro — ponto de partida, igualmente, para pensar suas possibilidades de aproximação com aspectos de uma teoria da mídia. Nota-se, de saída, uma mudança em relação aos nomes de obras anteriores de Kracauer e, talvez, seja proveitoso destacar esse aspecto.

De Caligari a Hitler: uma história psicológica do cinema alemão, sugeria uma intersecção entre cinema e política em uma “história psicológica”, aspecto desenvolvido nas aproximações elaboradas no trabalho: o cinema parece ser pensado em sua capacidade de produzir narrativas suportadas por um aparato técnico que não chega a tomar o primeiro plano na argumentação, exceto em momentos pontuais.

Por seu turno, O Ornamento da Massa permite ler uma ambiguidade crítica entre a perspectiva de um suposto embelezamento, ou forma de destaque quase artístico, atribuído a uma categoria sociológica, a massa, caracterizada histórica e teoricamente como objeto de crítica, quanto não de desconsideração, na produção daquele momento — à exceção, talvez, de Walter Benjamin.

Escrevendo durante a República de Weimar, Kracauer se debruça sobre aspectos da produção cultural voltada para uma nova classe que se consolidava naquele momento, fração de uma pequena burguesia caracterizada pelo trabalho assalariado de escritório, objeto do olhar de Kracauer em seu livro anterior, Os Empregados, indicação do conteúdo a ser trabalhado: não se tratava de “proletários” ou “operários”, mas de uma conceituação menos usual desse grupo.

Theory of Film se destaca por sua indicialidade mais próxima do tratado acadêmico: se nos livros anteriores era possível identificar uma perspectiva de crítica cultural elaborada a partir de um olhar atento sobre as dinâmicas da sociedade, passa-se para outra linha de argumentação, na qual o aspecto propositivo, no sentido de “criar uma teoria”, parece se sobrepor ao estritamente crítico.

“Teoria”, naquele momento, supunha mesmo nas Ciências Humanas um conjunto de hipóteses que poderiam ser testadas e aplicadas na prática, com possibilidade de ampla ancoragem empírica: estamos longe ainda da mudança identificada por Butler (2007), a partir dos anos 1970, no qual “teoria” se refere ao desenvolvimento de proposições de longo alcance, sem necessariamente algum tipo de “comprovação” empírica testável.

Por outro lado, Kracauer intitula seu livro como “teoria” em um momento no qual, no âmbito das Ciências Sociais nos Estados Unidos, trava-se um intenso debate a respeito do próprio significado dessa palavra na prática de pesquisa, como recorda Becker (2022). A rigor, trata-se de uma discussão a respeito da possibilidade de se fazer “ciência”, na pesquisa social, nos moldes das ciências naturais, o que incluiria controles numéricos, estatísticas e resultados capazes de levar à previsão sobre eventos próximos. Se, nos anos 1940, essa discussão já havia levado à ruptura entre Adorno e Lazarsfeld (ADORNO, 1995; CARONE, 2021), alguns de seus desdobramentos estavam na ordem do dia no momento em que Kracauer denomina seu livro como “teoria” em 1960.

Seria possível notar, nesse sentido, o posicionamento de Kracauer em relação a esse debate: o conjunto de proposições que anima Theory of Film não se pauta na possibilidade de uma análise objetiva, menos ainda no sentido de criar uma teoria geral aplicável: trata-se da “teoria” como modo de ver um objeto de estudos a partir de uma perspectiva qualitativa — no caso, a especificidade do meio — para entender aspectos menos nítidos.

Kracauer opta antes pela provocação e ousadia teórica do que pela delimitação empírica pontual. A abrangência de suas escolhas de exemplos, a variedade de filmes selecionados e o aspecto propriamente “teórico” da obra, ilustrada pelos destaques, parece situar a obra no âmbito de uma crítica não só do objeto, mas também da atitude epistemológica voltada para compreendê-lo: a “teoria” de Kracauer não se propõe a fazer uma “ciência” do filme, mas a construir uma perspectiva, ou uma mirada, para sua compreensão a partir da materialidade primária que o compõe.

É sintomático que Kracauer não proponha uma “teoria do cinema”, mas “do filme”. Esse deslocamento, embora possa parecer sutil, pode ser significativo quando se considera uma passagem no sentido de compreender a materialidade da mídia examinada. Enquanto a perspectiva de “cinema” pode ser entendida como referência a um conjunto consideravelmente amplo de elementos, desde suas características industriais até os detalhes da recepção e do público, “filme” refere-se ao mesmo tempo a uma mensagem delimitada no tempo (pela duração), no espaço (pelo lugar de sua exibição) e por sua materialidade (a película, o “filme” propriamente dito).

Kracauer parece, aqui, efetuar um movimento no sentido de não pensar o filme como sinônimo de “cinema”, mas também não como uma “linguagem”, em um sentido no qual os livros de Christian Metz serão o exemplo na década de 1970. Ao intitular seu livro Theory of Film, Kracauer trilha um caminho que pensa  as possibilidades especificamente “cinemáticas”. E, ao mesmo tempo, conceitua, do meio, sem perder de vista a especificidade técnica e material que, em sua concepção, se tornam responsáveis por caracterizá-lo.

O elemento “filme”, em Theory of Film, parece se situar na exploração dos sentidos, ligados ao meio, responsáveis por agregar ao seu redor os demais componentes: só pode haver uma narrativa cinematográfica, uma “história”, no sentido comum da palavra, se existir um meio com características específicas, qualidades que direcionem este ou aquele modo de fazer. É nesse sentido que a elaboração de uma teoria do filme parece se endereçar não tanto ao cinema, mas à materialidade da mídia articulada com todos os outros momentos do processo.

Assim, não é o cinema enquanto mensagem, narrativa ou prática social que parece interessar a Kracauer; ele não faz uma “sociologia do cinema” ou “da cultura”, tal como aparece em O Ornamento da Massa, e tampouco parece se dirigir ao exame das ressonâncias históricas e psicológicas como em Caligari. Kracauer faz um estudo de características de produção, narrativa e recepção, mas tomando como ponto de partida e de chegada a materialidade do meio e as características daí derivadas. As propriedades do filme e suas potencialidades como meio parecem ser o objeto do livro, sobretudo em termos de sua capacidade para articular uma relação com algo a ser referido como “realidade”.

Isso leva à questão do subtítulo.

“A redenção da realidade física” estabelece, à primeira vista, certo contraste com a sobriedade do título.  Há uma referência à ação perpetrada pelo filme: ele “redime” a “realidade física”. Esses termos mostram a direção a ser seguida pela teoria: o filme estabelece uma relação oblíqua com a realidade; não se presta à “representação”, no sentido comum da palavra. A relação se estabelece em termos de permitir, a partir das características “cinemáticas” do filme, o conhecimento de aspectos da realidade física que jamais seriam vistas de outra maneira. Como recorda Gutfreind (2006, p. 3), Kracauer busca “defender um ‘cinema-olho’, entendido como uma apreensão da experiência ou do real liberado das convenções estabelecidas”.

Daí o fato de Kracauer delimitar a “realidade” em termos de “realidade física”: o filme captura aspectos de uma realidade preexistente, que ele não representa ou reproduz, mas que também não constrói, no sentido de elaboração de algo novo. A “redenção” indica algo assim: a realidade física, em sua materialidade complexa e inacessível ao olho humano sem um aparato técnico, efetivamente se esconde o tempo todo no panorama que deixa de lado os detalhes revelados pelas possibilidades materiais do filme.

Não é por acaso que Kracauer inicia sua argumentação, no livro, a partir de um detalhado exame da fotografia e sua relação com a realidade. Na contramão do senso comum que entende a imagem fotográfica como “representação” de uma realidade dada, Kracauer destaca a constituição de uma visualidade que vai reelaborar aspectos existentes na realidade física, em um movimento de revelação e ocultamento do preexistente em uma perspectiva articulada com as possibilidades do meio. Na apresentação de 1997 de Theory of Film, Hansen (1997) sintetiza um de seus argumentos:

Kracauer concebe o filme como um meio de representação cujo potencial realista se baseia em sua tecnologia fotográfica. No processo fotoquímico, os dados visuais são inscritos em uma faixa de celuloide em um determinado momento no tempo, o instante da exposição. O que quer que seja feito com ela por meio de procedimentos sintáticos como edição de mixagem de som, essas imagens são fixadas de uma vez por todas, e seus significados só serão atualizados em percepções e leituras tardias [4] (HANSEN, 1997, p. vii) (tradução nossa).

A visualidade do filme se destaca como uma realidade midiática pautada por um modo de ver específico, a imagem em movimento. Gutfreind (2009, p. 135) ressalta que “a relação cinema e realidade para Kracauer é da ordem do testemunho, no sentido de que o cinema registra os aspectos já vistos para revelar aquilo que não é compreensível de imediato. Essa ‘revelação’, portanto, evidencia as aparências”.

Kracauer destaca esse aspecto quase como um elogio ao realismo: é por sua capacidade de capturar um momento dinâmico da realidade física que o filme a redime, isto é, a apresenta como uma forma específica de visualidade à qual outros elementos podem se agregar. “Os filmes cinemáticos capitalizam o poder sugestivo desses fenômenos para transmitir o que não é visível e material” [5], indica Kracauer (1997, p. 237) (tradução nossa).

Dessa maneira, as palavras do título parecem indicar não apenas o conteúdo, mas, examinadas em contexto, situam Theory of Film dentro de uma perspectiva na qual o meio, mais do que o conteúdo, é colocado em primeiro plano. Cronologicamente, estamos próximos das proposições de Innis (1999 [1953]) e McLuhan (2012 [1964]) sobre os meios, e mais de meio século em relação ao estudo contemporâneo das materialidades da mídia. Vale, no próximo item, explorar essa via de aproximação com as teorias da comunicação.

A aproximação com uma concepção teórica sobre o Meio

Conforme explicação de Kracauer (1997) no início de seu livro, “este estudo parte do princípio de que cada meio tem uma natureza específica que permite certos tipos de comunicação enquanto obstrui outros” [6] (KRACAUER, 1997, p. 3) (tradução nossa). Seria frágil derivar uma teoria da mídia a partir dessa afirmação, ou mesmo aproximá-la das elaborações conceituais sobre o assunto desenvolvidas na mesma época. Ao mesmo tempo, a reivindicação do autor de fazer dessa questão o fundamento de seus argumentos permite derivar algumas aproximações, tendo em mente seus limites.

É sem dúvida questionável em que medida seria possível indicar Kracauer como algum tipo de “precursor” de uma teoria do meio, sobretudo quando se pensa que sua elaboração conceitual em Theory of Film dirige-se à compreensão de uma mídia específica, não à formulação de concepções gerais a respeito do conjunto dos meios. Ao mesmo tempo, é exatamente em seu exame detalhado do filme como meio que parece ser possível encontrar elementos para uma leitura de suas considerações em relação a uma teoria da mídia.

Se, como indicado, algumas de suas concepções efetivamente antecipam aquelas que se tornariam mais conhecidas a partir de McLuhan (1964), seria por outro lado difícil estabelecer qualquer relação genealógica entre Kracauer e demais autoras e autores vinculados ao estudo dos meios. Por isso, vale ter em mente que a discussão sobre os meios proposta pelo autor alemão não se filia voluntariamente a uma corrente teórica identificada como “Teoria dos Meios”, mas é possível fazer algumas aproximações buscando, de acordo com a proposta deste artigo, procurar ler as concepções de Kracauer a partir dos estudos de Teoria da Comunicação.

É curioso observar que Kracauer não está incluído em alguns dos principais estudos sobre Teoria do Meio: dentro da genealogia proposta por Meyrowitz (1986; 1999), um dos representantes mais prolíficos dessa corrente, o autor alemão não é mencionado. Ao que parece, a leitura de Theory of Film parece estar situada, em termos de uma topografia epistemológica, apenas enquanto uma contribuição — talvez menor — à teoria do cinema.

A obra de Kracauer parece ocupar um espaço incerto: teoria do filme sem ser um estudo sobre cinema, investigação sobre a materialidade de um meio que não se situa como uma teorização geral sobre o assunto. O livro apresenta possibilidades de leitura — e crítica — em qualquer uma dessas perspectivas sem estar, no entanto, plenamente situado em nenhuma delas.

Pode-se perguntar, diante dessas características, até que ponto existe a possibilidade de fazer a leitura de Theory of Film como uma teoria do meio. Para tanto, vale recordar, sem pretensão à exaustividade, algumas das suas principais características.

É possível indicar, seguindo Meyrowitz (1993), que os estudos dos meios começam efetivamente com Innis, sobretudo com seus textos O viés da comunicação (2010) e Empire and Communication (1951). Ao que tudo indica, são os primeiros trabalhos a se debruçar sobre a problemática dos meios enquanto materialidades responsáveis por se constituir como o suporte físico de uma mensagem, cujos contornos eram efetivamente definidos, quando não determinados, por suas características físicas. Levando as perspectivas de Innis (1953) adiante, McLuhan (1964) propõe uma perspectiva efetivamente centrada nos meios de comunicação, procurando articular as transformações sociais e históricas a partir de mudanças na mídia dominante de cada período, sobretudo em A Galáxia de Gutemberg, acentuando o lugar da materialidade dos meios nos processos políticos e sociais.

Nas releituras dessa primeira geração, Meyrowitz (1986; 1999) procura uma compreensão da mídia como materialidade incontornável do processo de comunicação, enquanto DeKerckhove (1995) destaca uma abordagem do social a partir das relações mediadas que emergem como principal aspecto da onipresença da mídia em suas diversas modalidades.

Kracauer (1997), ao que parece, está longe de fazer qualquer proposta semelhante. Sua ideia de retornar à discussão do meio, em Theory of Film, não parece se filiar a essa perspectiva midiacêntrica da história, embora em seu livro póstumo, História: as últimas coisas antes das últimas (1969), o autor alemão não deixe de considerar o lugar da técnica nas transformações sociais. Não se chega, no entanto, próximo da perspectiva de Innis (1953) ou McLuhan (1964) em relação a essas mudanças, ou das considerações de DeKerckhcove (1995) sobre mudanças culturais.

O ponto de aproximação, nesse sentido, não parece ser a perspectiva histórica, mas a preocupação com as características de cada meio, suas possibilidades expressivas, códigos particulares e modo de articulação com a sociedade na qual se desenvolve. Nesse aspecto, Kracauer (1997) está próximo do McLuhan (1964) de Os meios de comunicação: se não existe a perspectiva propriamente midiacêntrica a respeito da história e das mudanças sociais, pode-se notar uma proximidade em termos da preocupação com as características específicas de cada mídia. Mais ainda, o autor alemão pode ser aproximado, sobretudo, de Meyrowitz (1986; 1999) em sua preocupação com a especificidade da mídia dentro dos processos comunicacionais sem reduzir outras dinâmicas sociais a isso, efetivamente.

Isso permite, igualmente, retomar uma aproximação entre as primeiras considerações de Kracauer sobre cinema, durante a República de Weimar, e reunidas parcialmente em O Ornamento da Massa, e o ponto de vista adotado em Theory of Film: como argumentam Costa (2006), Andrade (2019) e Corpas (2015; 2021), embora seja possível encontrar rupturas entre esses dois trabalhos, é importante igualmente salientar pontos importantes de contato no sentido da reivindicação do lugar da técnica, e, sobretudo, do meio, na articulação com processos sociais mais amplos.

Nesse sentido, de certa maneira, Theory of Film refina e desenvolve as considerações de Kracauer sobre cinema e entretenimento já presentes em O Ornamento da Massa, mas desviando o foco para as questões técnicas e midiáticas responsáveis por criar um tipo novo de representação — ou “redenção” — da realidade capaz não só de atrair todo um público, mas também de prover a ele aspectos novos de distração e entretenimento: jogando com as palavras, o “ornamento da massa” não existiria sem a materialidade técnica particular de cada meio, dentre os quais o filme se destaca pela magnitude de sua articulação na sociedade, sobretudo até os anos 1960 (TURNER, 2005).

Ao final da leitura de Theory of Film, a reivindicação feita por Kracauer de se respeitar as características dessa mídia na procura de códigos próprios, que não a atrelem a outra e nem a reduzam a reprodutor de conteúdos de outros meios, parece se aproximar consideravelmente do tom proposto por McLuhan (1964) em algumas de suas afirmações mais conhecidas a respeito das propriedades de cada meio. A preocupação comum não se dá tanto, ao que parece, no âmbito da centralidade dos meios como condutores de processos sociais mais amplos, como pressupõem Innis (1953), McLuhan (1964) e, posteriormente, DeKerckhove (1995), mas na valorização comunicacional da especificidade de cada suporte midiático.

O foco no meio, para Kracauer, não é justificado pela proposta de uma construção histórica, mas pelo direcionamento necessário da especificidade técnica no sentido de abrir possibilidades e limites para a elaboração de conteúdos específicos, que não podem ser reduzidos ou comparados com nenhum outro.

Os filmes se destacam quando gravam e revelam a realidade física. Essa realidade inclui diversos fenômenos que dificilmente seriam percebidos se não fosse a capacidade da câmera cinematográfica de capturá-los. E, uma vez que qualquer meio é voltado exclusivamente para as coisas que ele está apto a mostrar, pode-se entender o cinema como sendo animado por um desejo de retratar a transitoriedade da vida material, a vida em sua forma mais efêmera [7] (KRACAUER, 1997, p. xlix) (tradução nossa).

Esse aspecto parece ser o ponto de Kracauer ao reivindicar um “uso cinemático” do filme, em contraposição aos usos estritamente voltados para a narrativa, colocando o ato de “contar uma história” em primeiro plano: seguindo parcialmente a proposta de Michaud (2014), é possível indicar que, para Kracauer (1997), o filme não é um meio de “contar uma história”, mas um regime específico de materialidade para lidar com a imagem.

Essa “redenção” do mundo da vida (Lebenswelt) inscrita no dispositivo técnico do cinema (a “câmera da realidade”) faz dele um meio de conhecimento e criação estética ao mesmo tempo, ou seja, uma ferramenta para apreender, penetrar e interpretar a realidade material [8] (TRAVERSO, 2012, p. 56) (tradução nossa).

A imagem em movimento do filme, ao captar aspectos de uma realidade igualmente dinâmica, permite não apenas seu registro enquanto tal, mas também sua observação em termos inimagináveis em outro suporte: a redenção da realidade física emerge a partir da compreensão da especificidade do meio para capturar o invisível de uma situação. O meio, para Kracauer (1997), revela o que a mensagem, em termos mais simples, talvez não fosse capaz de mostrar – “o meio é a mensagem” talvez possa ecoar em parte esse ponto de vista, sobretudo para situá-lo em relação aos estudos de comunicação.

A especificidade da proposta teórica: contribuições e limites

É possível endereçar duas perguntas que podem surgir ao longo de uma leitura de Theory of Film relacionadas, de um lado, a uma possibilidade de síntese dos argumentos do autor e, de outro, às chances de sua localização dentro do conjunto das teorias da mídia — e, de modo ampliado, na Teoria da Comunicação.

Em primeiro plano, emerge um aspecto metodológico que se reveste de alguma importância na medida em que indica o direcionamento do olhar para as características materiais do meio:

Sendo o filme um meio bastante complexo, o melhor método de chegar ao seu núcleo é desconsiderar, pelo menos temporariamente, seus ingredientes e variedades menos essenciais. [...] Em suma, meu livro pretende permitir um olhar sobre a natureza intrínseca do filme fotográfico. Se servir parcialmente ao propósito, como ouso esperar, isso deve se aplicar a todos os elementos e derivados do meio [9] (KRACAUER, 1997, p. xlvii) (tradução nossa).

Cabe perguntar até que ponto, efetivamente, Theory of Film propõe uma teoria da mídia. Se for possível considerar, com Martino (2018), a ideia de “teoria”, nas Ciências Humanas, como um conjunto de proposições a respeito da realidade, mais compreensivas do que propriamente explicativas, pode-se caminhar no sentido de uma resposta positiva: Kracauer, de fato, oferece uma proposição para a compreensão das relações entre a imagem fílmica e a realidade constituída pelo aspecto cinemático dessa relação — proporcionado pela materialidade do filme e que altera a percepção humana do mundo físico.

Meu livro se diferencia da maioria dos escritos da área por ser uma estética material, não formal. A preocupação é com o conteúdo. Parte-se do pressuposto de que o filme é essencialmente uma extensão da fotografia e, portanto, compartilha com este meio uma afinidade marcante com o mundo visível ao nosso redor [10] (KRACAUER, 1997, p. xlix) (tradução nossa).

A importância do meio, para Kracauer, não parece residir tanto em seu aspecto estritamente técnico, mas, sobretudo, em sua operação de mediador — se for possível jogar, brevemente, com o sentido da palavra “mídia” — entre uma percepção humana e aspectos da realidade a ela ocultos. A “redenção” da realidade física, assim, se constrói a partir de uma ampliação não só do olho, o que distingue Kracauer de outros teóricos tanto do cinema quanto da mídia, mas das possibilidades de visão e percepção de uma realidade inacessível — e mais, incompreensível — não fosse pelo aparato técnico da materialidade do filme.

Uma segunda pergunta, talvez mais incisiva, diz respeito às possibilidades de articular essa teoria com o cenário contemporâneo. Não se trata, evidentemente, de tentar mostrar a “atualidade” de Kracauer, operação que comporta em si algo de paradoxal em termos institucionais, ainda que não necessariamente epistemológicos: se é necessário argumentar a favor da atualidade de uma teoria ou um conceito, é porque, dentro da lógica do chamado “campo científico”, seu prestígio talvez não seja alto, eventualmente estando relegado como curiosidade em um imaginário “museu das teorias” de um pensamento ultrapassado; não é necessário provar a atualidade dos conceitos dominantes. Talvez seja possível, no entanto, perguntar a respeito das possibilidades de articulação de um conceito publicado nos anos 1960 e o ambiente midiático contemporâneo.

A transformação das materialidades midiáticas desde o final dos anos 1990, no sentido de uma progressiva digitalização de todos os equipamentos, parece ter se tornado o fato, ou um dos fatos, mais relevantes das perspectivas em teoria da mídia; talvez fosse o caso de dizer, apenas a título de provocação, que os estudos centrados na materialidade dos meios estejam se dirigindo talvez para a compreensão da “desmaterialidade” das mídias — que não prescindem, evidentemente, de um suporte físico; como então compreender uma teoria que se pautava na investigação de um processo analógico, baseado na materialidade do celuloide?

Perivolaropoulou comenta que “Kracauer pede exatamente, e com insistência, que as coisas sejam mostradas como são. Ele demanda que o filme mostre a aparência real das coisas, sua ‘verdadeira face’” [11] (PERIVOLAROPOULOU, 2004, p. 40) (tradução nossa), ressaltando o “imperativo kracaueriano de libertar nossa percepção e fazer as coisas novamente sensíveis” [12] (PERIVOLAROPOULOU, 2004, p. 42) (tradução nossa).

Em uma síntese desse argumento, Costa (2006, p. 211) recorda que, no caso do filme, “seus recursos, (como, por exemplo, a montagem), devem ser usados de modo a fazer fluir no écran a materialidade das coisas, na sua indecidibilidade, contingência e complexidade”.

A materialidade do meio filme, trabalhada pelo autor, parece oferecer contribuições a uma teoria da mídia no sentido de pensar as reconstruções da realidade física em sua articulação com os sentidos humanos em termos de uma expansão de possibilidades de percepção e interpretação — uma argumentação com limites, sem dúvida, mas aberta ao diálogo com um cenário midiático em constante transformação.

Um dos aspectos característicos das proposições de Kracauer, que talvez permitam prosseguir em uma aproximação com a Teoria do Meio, é ressaltar a irredutibilidade de um meio a outro. As adaptações de textos literários, por exemplo, não serão de maneira alguma “traduções literais”, como argumenta Kracauer (1997, p. 239). A particularidade de cada meio reside também na qualidade específica da relação estabelecida com a realidade. “Mas, para nos fazer experimentar a realidade física, os filmes devem mostrar o que retratam. Essa exigência é tão pouco evidente que levanta a questão das relações do meio com as artes tradicionais” [13] (KRACAUER, 1997, p. 300) (tradução nossa).

O filme, para Kracauer, se distingue das outras artes por sua capacidade de registrar a realidade em sua forma “bruta”: as técnicas cinemáticas de enquadramento, foco, edição e montagem ressaltam — e não necessariamente transformam — essa realidade física, mas sem destituí-la de suas qualidades “físicas” ou “naturais” como fazem as outras artes. Embora esteja se referindo a O Ornamento da Massa, Waizbort (2009, p. 53) sintetiza um ponto do modo de ver do autor alemão: “Não deve haver dúvida sobre o ponto de fuga do olhar de Kracauer, o alvo de sua reflexão: um acurado diagnóstico de seu tempo presente, condições de existência de sua época, em suas mil e uma refrações e vibrações”.

A qualidade do filme, como meio, está nessa ligação direta, na concepção do autor, com um elemento real impossível de ser capturado por qualquer outro tipo de representação — a opção pela palavra “redenção”, nesse sentido, pode ser compreendida como uma alternativa conceitual elaborada em referência à especificidade do meio: o filme não “representa” a realidade de maneira mimética, mas ele a “mostra”.

Considerações Finais

Os esforços de localização de uma autora ou autor dentro de uma genealogia teórica, às vezes compreendida com o nome genérico de “escola” ou “grupo”, costumam enfrentar diversas barreiras epistemológicas, sobretudo no sentido da construção de aproximações ou ligações que, por vezes, não correspondem efetivamente a uma unidade programática. A proposição de taxonomias conceituais, sobretudo, não deixa de ser muitas vezes um exercício mais didático do que propriamente epistemológico, no qual a localização de uma autora ou autor como sendo da “escola x” ou “teoria y” não aponta mais do que afinidades específicas (MARTINO, 2015).

Ao mesmo tempo, como recorda Bachelard (2006), a epistemologia de uma área não pode ser desligada de sua história, em uma dinâmica de continuidades e rupturas, em uma reconstrução feita sempre a posteriori do significado, ou posicionamento, de uma determinada autora ou autor em um conjunto designado — quase sempre de maneira arbitrária — a partir de pontos em comum, de um lado, e distanciamentos, de outro.

O estabelecimento de correntes e afiliações teóricas é muito mais um exercício epistemológico de construção genealógica a posteriori do que, propriamente, a existência necessária e efetiva de vínculos entre autoras e autores. Parece existir uma artificialidade em toda taxonomia que se pretenda a situar teorias, e, ao trazer a obra de Kracauer para uma leitura articulada com os meios, é preciso ter em mente o caráter aproximativo, não peremptório, dessa perspectiva.

Se é possível ler a teoria do filme de Kracauer como uma teoria da mídia, a resposta parece apontar exatamente para um caráter que, sem perder sua historicidade, não fica restrito a um momento na dinâmica das tecnologias.

A revelação de aspectos inéditos da realidade a partir de uma transformação da materialidade midiática que abre novas percepções aos sentidos humanos parece ser, de fato, a principal argumentação de Kracauer em relação ao filme: a imagem fílmica trai em si uma intransparência de origem em relação ao real que não revela apenas o mundo físico, mas suas próprias capacidades — e limites — de recriá-lo.

O processo de desmaterialização da imagem no ambiente das mídias digitais parece caminhar, ao menos em parte, no sentido paradoxal de, reafirmando as propriedades intrínsecas do meio, apresentam uma realidade aparentemente mais “próxima” e mais “real”. Veja-se, a título de exemplo, as transformações decorrentes das constantes melhoras na definição da imagem digital — a cada nova tecnologia, chegando-se, no limite, à abertura para uma em plena “redenção”, no sentido dado por Kracauer, nas possibilidades de realidade virtual.

Notas

[1] Theory of film is the most intellectual and significant study that has come to this reviewer’s attention. After differentiating film from the traditional arts, Dr Kracauer evolves an aesthetic theory of film based upon the assumption that film is an extension of photography and comes into its own when recording and revealing physical reality.

[2] The fundamental a priori assumption of Kracauer’s ‘material aesthetics’ is the inescapable literalness of the film. Its special subject matter is physical reality, and the film is the most cinematic when it conveys an illusion of physical reality that is most nearly like the original.

[3] Théorie du film, élaborée à partir d'une réflexion sur l'image cinématographique et ses rapports avec la réalité, paraît à un moment où la sémiologie et la psychanalyse commencent à occuper le champ des études cinématographiques et, dans ce contexte, l'esthétique du cinéma de Kracauer sera taxée de réalisme naïf, dépassé.

[4] Kracauer conceives of film as a medium of representation while realistic potential is grounded in the photographic technology. In the photochemical process, visual data are inscribed on a celluloid strip at a particular moment in time, the instant of exposure. Whatever may be done to them through syntactic procedures such as editing or sound mixing, these images are fixed once and for all, and their meanings will be actualized only in belated perceptions and readings.

[5] Cinematic films, that is, capitalize on the suggestive power of these phenomena to convey all that which is not visible and material.

[6] This study rests upon the assumption that each medium has a specific nature which invitates certain kinds of communication while obstructing others.

[7] Films come into their own when they record and reveal physical reality. Now this reality include many phenomena which would hardly be perceived were it not for the motion picture camera’s ability to catch them on the wing. And since any medium is partial to the things it is uniquely equipped to render, the cinema is conceivably animated by a desire to picture transient material life, life at its most ephemeral.

[8] Cette « rédemption » du monde de la vie (Lebenswelt) inscrite dans le dispositif technique du cinéma (la « caméra-réalité ») en fait un moyen de connaissance et de création esthétique à la fois, c'est à-dire un outil par lequel saisir, pénétrer et interpréter la réalité matérielle.

[9] Film being a very complex medium, the best way of getting at its core is to disregard, at least temporarily, its less essential ingredients and varieties. […] In sum, my book is intended to afford insight into the intrinsic nature of photographic film. If it halfway serves its purpose, as I dare hope it does, it must f course apply to all elements and derivatives of the medium.

[10] My book differs from most writingings in the field in that it is a material aesthetics, not a formal one. It is concerned with content. It rests upon the assumption that film is essentially an extension of photography, and therefore shares with it a remarkable affinity with the visible world around us.

[11] Or, Kracauer plaide justement, et avec quelle insistance, pour que les choses soient montrées telles qu’elles sont. Il demande que le film montre l’apparence réelle des choses, leur «vrai visage».

[12] L’impératif kracauerien de libérer notre perception et de rendre les choses à nouveau sensibles.

[13] But in order to make us experience physical reality, films must show what they picture. This requirement is little self-evident that it raises the issue of the medium’s relation to the traditional arts.

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