Nota do Tradutor

“O Computador Disse Não” ou

O Apagamento do Humano

Adriano Carvalho Araújo e Sousa

Alan Cholodenko tem se dedicado ao longo de sua trajetória a restituir o lugar de Emile Reynaud e da animação na teoria do cinema (por exemplo, em Galáxia, 2017), aliás, pioneirismo que André Gaudreault (Galáxia, 2018) atesta.

Em sua atividade, Cholodenko traz à baila diferentes autores sempre pensados a partir da animação. Aqui, debate um apagamento do humano pelo computador. Pergunta-se o que faz o saber e as novas tecnologias disseminadas nas sociedades capitalistas, eu diria, visando o lugar da técnica. Vem à mente comentário célebre de Paul Virilio: “inventa-se o avião, mas também inventa-se o meio de derrubar o avião”. Colocado de outro modo: inventa-se o rastreio de dados (a rede social), mas também o vazamento (ou quaisquer formas de revelar o rastreio).

Cholodenko expõe a arbitrariedade da relação com o dispositivo computacional e sua invasão pelo modelo da empresa, em que somos desapossados da memória e do tempo. Nessa amnésia ou “nova” maneira de tornar-se humano, seguimos conectados o tempo inteiro como outrora estávamos ligados na eletricidade, mas, no cotidiano de redes sociais, definidos pelas forças dominadoras, quantificados em números.

Em Comentários Sobre a Sociedade do Espetáculo, Guy Debord, antes de Baudrillard, alertava sobre o esvaziamento causado pela desinformação, que apagava a ideia de verdade. A informação disseminada pelo grande capital nos levaria a um modo falsificado de perceber e dar a conhecer o mundo, através de mídia, publicidade, política etc. Há um parentesco desse debate com o tema das Fake News. Cabe fazer ressalvas, não havia smartphones, nem as megacorporações do algoritmo, mas a estrutura ilógica que recentemente levou ao poder representantes do ódio – (e ex-prefeitos no Rio de Janeiro e São Paulo, que se apresentavam como não políticos...) –, estava ali, como pretendia Debord. Cholodenko dá contribuição para pensar discursos irracionais e anticientíficos, observa as incertezas da própria ciência e lembra de não ignorarmos um uso do conhecimento para dominar os corpos (Foucault).

Não se trata de “adesão à causa” de Baudrillard. Coloca-se um problema da técnica, ler o autor entendendo que (e Derrida, Virilio, Deleuze, Foucault etc., também) não viu as transformações que estão em curso principalmente na última década. Segundo Cholodenko, o confronto é a partir da animação, a grande rejeitada da história do cinema (ironicamente disseminada em nosso cotidiano), para quem sabe, como Pernalonga em Duck Amuck, conseguirmos expor o funcionamento do dispositivo e “derrubar o avião” com humor, arte e ironias.

Quanto à tradução, procurei sempre que possível verter o estilo ensaístico do autor. Os trocadilhos e neologismos jogam com etimologias e prefixos, um verdadeiro desafio. Espero que escolhas como manter em inglês seu conceito-chave, a intraduzível accountability, restituam a força do original.

Adriano C.A. e Sousa é autor de Poética de Júlio Bressane: Cinema(s) da Transcriação (FAPESP/Educ, 2015) e pesquisador dos Arquivos Jerusa Pires Ferreira.


“O Computador Disse Não” ou O Apagamento do Humano1

Alan Cholodenko2

Resumo

A partir do esquete “O Computador Disse Não” da comédia inglesa Pequena Bretanha (2000-2007), do ensaio descontrucionista “Accounterability”, de Peggy Kamuf, do regime disciplinar de Michel Foucault e da invocação de Jean Baudrillard para “esquecer Foucault”, este ensaio elabora o dispositivo do arconte e arquivo “contemporâneo”: o computador, o governador e condutor de tudo, inclusive de todos os indivíduos, discursos, instituições e tecnologias, elaborando o apagamento do computador — seu deletar — não apenas da memória humana (em todos os seus modos, cultural, pessoal, coletivo etc.) em seu arquivo, exceto o próprio humano. Enquanto postula todas as tecnologias como animadoras, portanto reanimadoras, no caso do computador, o último como animador, afirma-o ser ainda mais. Pois o computador é aquela rara tecnologia, não apenas um reanimador global, mas da época, o reanimador hiperanimado da realidade como hiper-realidade, inclusive de memória como hipermemória e tempo como hipertempo, em que o contemporâneo (significando com tempo) é ele mesmo esvaziado. E elucida que Cholodenko chama o “regime da accountability”, no qual o humano é humano na medida em que imita o computador, um mundo cibernético no qual computação, números, regras governam, e a quantidade é a nova qualidade — um mundo de ciborgs, que Cholodenko nomeia realidade “hiperzumbi”, de “morte cerebral” — um mundo no qual, ironicamente, aumenta a quantidade e a indeterminação reina. Enquanto Jaan Tallinn, Stephen Hawking, Elon Musk e outros expressam medo por um futuro de Singularidade de Inteligência Geral Artificial (AGIS), o ensaio delineia um mundo em que essa Singularidade já é uma “realidade”.

Palavras-chave

Foucault; Baudrillard; Computador; Animador; Hiper-realidade.

1 Este ensaio é uma versão abreviada de um work in progress. Agradeço a Keith Broadfoot por auxiliar-me com a versão final. Publicado originalmente em Brad Buckley; Jon Conomos, Erasure: The Spectre of Cultural Memory, London: Libri Publishing, 2015.

Tradução: Adriano Carvalho Araujo e Sousa. Doutor em Comunicação e Semiótica pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo. E-mail:

logodedalo@hotmail.com.

2 Alan Cholodenko foi Senior Lecturer em Estudos Cinematográficos e de Animação e atualmente é Honorary Associate da Universidade de Sydney, tendo organizado e publicado, entre outros, The Illusion of Life: Essays on Animation, primeiro livro de ensaios acadêmicos que teorizou animação do mundo (Power Publications; Australian Film Commission, 1991). E-mail: alan.cholodenko@sydney.edu.au.

‘Computer Says No’, or: The Erasure of the Human

Alan Cholodenko2

Abstract

Taking off from deconstructionist Peggy Kamuf’s important essay “Accounterability”, Michel Foucault’s disciplinary regime and Jean Baudrillard’s invocation to “forget Foucault”, this essay elaborates the discourse and institution, indeed the dispositif, of the “contemporary” archon and archive, the computer, the governor and steerer of all, including its erasure — its deleting — of not only human memory (of all modes, including cultural, personal, collective, etc.) but the human itself. It posits the computer as animator, as all technologies are, in its case the latest and rare global reanimator, the reanimator of reality as hyperreality, including of memory as hypermemory. And it elucidates the nature of a world in which the human is human to the degree that it imitates the computer, a cybernetic world in which numbers rule, in which quantity is the new quality, a world of cyborg, hyperzombie, “braindead” reality.

Keywords

Foucault; Baudrillard; Computer; Animator; Hyperreality.

2 Alan Cholodenko foi Senior Lecturer em Estudos Cinematográficos e de Animação e atualmente é Honorary Associate da Universidade de Sydney, tendo organizado e publicado, entre outros, The Illusion of Life: Essays on Animation, primeiro livro de ensaios acadêmicos que teorizou animação do mundo (Power Publications; Australian Film Commission, 1991). E-mail: alan.cholodenko@sydney.edu.au.

O real... apaga a si próprio em favor do mais real do que o real: o hiper-real

Jean Baudrillard (1983a)

Eu quero saber: quem é o responsável?

Patolino[1]

De um esquete ao outro, na série cômica de TV Little Britain (Pequena Bretanha), a recepcionista Carol Beer funestamente entrega a má notícia ao seu desafortunado cliente com quatro palavras dolorosas: “O Computador disse não”[2]. Colocado de outro modo, isso significa para mim “O computador manda, ok?” O computador soberano, arconte. O computador governante, associado ao grego cyber, como em cibernético, habilitado a governar ou dirigir.

E não é apenas na Pequena Bretanha.

O computador se tornou global, “dentro” e “fora” da tela, sua (inter)net, rede (mundial de computadores) e reino como “meio de todas as mídias”[3], trabalha em rede, abrangendo e operando tudo — de certa maneira, o sistema operacional de todos os (como) sistemas, a network de todas as (enquanto) networks, a rede de todas as (como) redes, portanto, um reinado que reanima tudo. Do mesmo modo que todas as tecnologias são elas próprias animadoras, especialmente, as “tecnologias definidoras”[4] de época.

Embora minha abordagem neste ensaio seja evasiva, com efeito, apagadora dos tópicos da antologia em que originalmente fora publicado, permitam-me repetir a seguir esses pontos.  

A reanimação feita por computadores inclui memória, dado que o computador é ao mesmo tempo arconte e arquivo, rearquiva tudo, isso significa que, exceto se for arquivado no computador, não será arquivado e, portanto, lembrado de modo algum. Em suma, o computador é o arconte contemporâneo, governa e dirige tudo, inclusive governa e dirige a memória contemporânea, mesmo se, como arquivo, ele é a memória contemporânea.

Ou melhor, o computador é hiperarconte, governa e dirige a hiper-realidade de Baudrillard, que, para mim, é o contemporâneo, o “novo” contemporâneo, o hipercontemporâneo, um “contemporâneo” hiper-real que é paradoxalmente, como hiper, a forma pura e vazia do contemporâneo, sua ausência — seu apagamento — da mesma forma que é de realidade. E como hiperarconte, o computador governa e dirige a memória, torna-se hipermemória, memória pura e vazia, a ausência — o apagamento — de memória. Não apenas e tampouco a “memória crepuscular” de Andreas Huyssen (1995), mas “memória sombria” — memória da ordem do hiper-real, da realidade virtual, do digital, mesmo se, como hiperarquivo, o computador é hipermemória.

E o computador governa e dirige o tempo transformando-o em “tempo sombrio”, o que Baudrillard (1997a, p. 25-26) chama “tempo real”, que é apenas real e tempo (incluindo o tempo histórico), ou melhor hipertempo, o tempo puro e vazio, a ausência de tempo, o virtual. E dado que não apenas a história, mas a memória requer tempo, o fim do tempo é o fim da memória, assim como da história.

Baudrillard afirma em Holocausto (1981, p. 77): “hoje, em todo lugar são as memórias artificiais que apagam as memórias dos homens, que apagam os homens de sua própria memória”. O espectro da memória, da memória como espectro, incluindo a memória contemporânea, apaga a si própria em favor do hiperespectro da hipermemória hipercontemporânea, o apagamento da memória humana em memória de computador, memória ciber/ciborgue, em que a memória do — ou seja, pertencente ao — humano transforma-se em memória do — ou seja, a lembrança do — humano.

Em outras palavras, estamos lidando não apenas com uma cultura do apagamento, mas com o apagamento da época da cultura, apagada em hipercultura; chamo isso de apocalipse da cultura, seu holocausto, inclusive da memória cultural, comensurada com o apocalipse e o holocausto da realidade em hiper-realidade, ou seja, hiper-realidade como hiperapocalipse, hiper-holocausto, como sendo o apocalipse do humano, o holocausto, apagado no hiper-humano, o computador tornando-se não apenas o arquivo, mas, enquanto arquivo, a cripta (das memórias) do humano.

Ao fazer a passagem do morto-vivo animando, definindo hipomnemotecnologias para hipermorto-vivo hiperanimando, hiperdefinindo hipermnemotecnologias[5] — que, como hiperanimadoras, denomino não apenas animnemotecnologias, mas hiperanimnemotecnologias — o computador, hiperarconte hiperanimático, e a tecnologia de mídias de massa, as quais conduz e governa, desempenha o papel metamorfoseador, processo condutor ao extremo, viral e epidêmico — ora, o que não é dirigido e governado pelo computador hoje, inclusive o humano?! — processo de um simulacro de êxtase que exponencializa e maximiza um processo hipertrófico, no sentido de Baudrillard[6], conduzindo o sujeito, a cultura, a memória, o humano, o próprio mundo, a um estado delirante, aquele da hiper-realidade, da realidade virtual[7]. Um estado de radical, irredutível incerteza, indeterminação crescente a tornar indistintos o humano e a realidade, o computador e seus operadores de mídia de massas[8] metamorfoseando o humano e a realidade, ao mesmo tempo em que apaga cada vez mais o outro do humano e a realidade, portanto, também, apaga o humano e a própria realidade.

Então, este ensaio postula e elabora sobre o discurso e a instituição, na verdade, o dispositif (dispositivo) do arconte e arquivo hipercontemporâneo, o computador, inclusive considera seu apagamento do humano, deveria dizer seu deletar?! Tal como afirma Baudrillard (1997a, p.24): “todas as formas de alta tecnologia ilustram o fato de que atrás de seus duplos e suas próteses, seus clones biológicos e suas imagens virtuais, a espécie humana está secretamente fomentando sua desaparição”.

O “hoje” é a era do computador, na qual o computador modela o humano, como fez anteriormente a máquina a vapor, o relógio e ainda antes deles, a panela de barro ou o eixo giratório[9].

O que é o computador?

O termo vem do latim computare.

Esse termo é um daqueles dos quais Peggy Kamuf também se respalda em seu pioneiro artigo Accounterability (KAMUF, 2007), que promove uma oposição desconstrutiva ao que nomeia “discurso da accountability” e um “movimento de accountability” nos domínios da educação nos Estados Unidos e mundo afora[10]. De passagem, mas com especial significado para nosso ensaio, Kamuf (2007, p. 251) observa que o termo computare nos dá “esta família de palavras” de “contar, relatar e recontar” (count, account, and recount) que torna a palavra accountability “o lugar de um cruzamento sobredeterminado entre cálculo e narração”.

Visto que meu ensaio se respalda em seu artigo, ao localizar o tema da accountability (devo enfatizar, com sua própria narrativa de caráter especulativo), permitam-me observar duas vias em que meu texto se relaciona com o dela. Em primeiro lugar, dado que Kamuf não desenvolve esse nexo etimológico, entre computare e computador, nem entre o computador e contar, ou entre relatar, recontar e accountability, meu artigo torna-se um suplemento ao dela. Em segundo, já que proponho um nexo genealógico entre o discurso, a prática e o dispositivo da accountability — ao que devo referir doravante como accountability — e a disciplina em Michel Foucault, cujo regime e circunstâncias, enquanto progenitor genealógico da accountability, não foram abordados por ela, isso constitui também um suplemento ao seu texto.

Porém, faço uma ressalva: uma vez que utilizo o pensamento de Jean Baudrillard para sustentar minha teorização da accountability e que considero seu pensamento da hiper-realidade desde o princípio deste ensaio, é necessário afirmar quanto ao trabalho de Kamuf (e de Jacques Derrida e de Bernard Stiegler também): a hiper-realidade de Baudrillard com sua “positividade pura” é apagadora/apagamento do colocar a desconstrução sob apagamento (sous rature), transformando a hiper-realidade em apagadora/apagamento da desconstrução em hiperdesconstrução[11].

Agora, de volta à questão do que é um computador.

O computador é a máquina de computar, a máquina de calcular.

Na medida em que modela o humano, torna o humano uma máquina de computar, de calcular, na verdade, transforma o humano em “humano” no sentido de imitar o computador, que deve computar e calcular tudo, que deve contar e ser um contador de tudo. E mais. Responsabilizável (accountable) por tudo, deve certificar, garantir e assegurar tudo. O modelo do computador que modela o computador-humano (ou organismo cibernético, ou simplesmente, ciborgue) não apenas privilegia, mas totaliza quantificação e computação. Quantificação e computação constituem o princípio e o propósito do computador e do ciborgue — para contar, contabilizar e ser capaz de prestar contas de... tudo. O modelo do computador, em uma palavra, reduz (ou expande, visto que é o mesmo processo de hipertelia, hipertrofia) tudo a números, totaliza o número como hipernúmero[12]. Resume tudo não apenas ao cálculo, mas ao hipercálculo, cálculo cujo único objetivo é o cálculo.

E isso se relaciona por inteiro com o tema de nosso artigo: accountability. Onde houve uma vez prestar contas (accounting) e contabilizar (accountancy), agora há accountability. E isso dominou cada vez mais o modus operandi, tornou-se sua raison d’être, de administrar e de conduzir, através de todas as instituições da cultura. Para mim, crucialmente, essa metamorfose da prestação de contas e do contabilizar em accountability ocorreu sob o impacto do computador. Mais ainda, todas as principais características do novo modelo de administração, totalizador e totalizado, a accountability e a accountability da administração, a macro e a micro-gestão — permitam chamar isto de novo gerenciamento — estão integralmente ligados a e administrados, geridos pelo computador, inclusive: declarações de missão definindo uma série de objetivos, planos estratégicos, indicadores de performance, processos de controle de qualidade, benchmarks, estimativas, relatórios, retrospectos, resultados, diagramas estatísticos, sondagens, mesas, rankings e assim por diante. A accountability não apenas reduz tudo a números, possibilitados pelo computador, mas considera tudo redutível a números, entende tudo, em outras palavras, através do computador, o computador como modelo de e para tudo. O governador de tudo.

Mas devo perguntar: além da tecnologia do computador, esse modelo novo, extremo, de prestar contas e contabilizar teve um antecedente cultural?

Enquanto Kamuf conecta accountability com responsabilidade, para mim há outra conexão profunda, uma conexão de natureza genealógica, ou seja, com o regime disciplinar e o dispositivo das micro-instituições de poder e conhecimento em Foucault (1979), como articula em Vigiar e Punir: O Nascimento da Prisão, um regime e dispositivo cujo advento era o século XVIII e cujo fim ostensivo ocorreu no século XX.

Tratava-se de um regime e um dispositivo que operou uma “prática ortopédica” (FOUCAULT, 1979, p. 294) no corpo como se fosse máquina. Era uma prática constante de vigiar, examinar, registrar, relatar, treinar, corrigir, desenvolvendo uma variedade de tecnologias de vigilância, documentação, estimativas e controle, cujo objetivo era o sujeito normal, dócil e de produtividade otimizada, baseado na conjunção dos processos que ditam o monastério, a prisão, a escola[13], o hospital, o local de trabalho e os militares. Envolvia disciplinar, subjugar e extorquir as forças do corpo produtoras de poder e conhecimento, o poder e o conhecimento do humano constituíram um sujeito, o poder e o conhecimento otimizados para ambos os processos do sujeito e da economia e os sistemas sociais aos quais esse regime estava integrado. Além disso, a disciplina não era apenas conduzida por “profissionais”, mas introjetada pelo sujeito como uma incessante autodisciplina[14].

Para mim, o regime de encarceramento, sua “analítica do poder” e seu dispositivo simplesmente não acabaram. Em vez disso, metamorfosearam-se, “continuaram a viver” para além de seu fim, um exemplo do que Baudrillard chama hysteresis, que ocorre quando algo, tendo perdido seu propósito e significado, “continua a viver”, mesmo funcionando melhor ainda para aquela perda, “continua a viver” como uma função cuja única “razão” é funcionar[15]. A saber, como a segunda ordem de simulacros de Baudrillard — de “realidade” e todas as suas pertinências, inclusive significado, verdade, presença, essência, razão, o princípio de realidade, representação, produção, reprodução, o individual, a identidade, a autoidentidade, o social e daí por diante — morreu e reanimou-se, “continuou a viver” para além de seu fim, metamorfoseando-se em seu duplo, sua forma pura e vazia — sua terceira ordem, hiper-realidade — também, para mim, o regime disciplinar teorizado por Foucault metamorfoseou-se nessa ordem[16], em seu hiper-real, forma pura e vazia, hiperdisciplina. Em que disciplina — e tudo o que a compôs — está em todo lugar exceto em si mesma e tudo está dentro dela, menos ela, todos os discursos, práticas, processos e etc., extasiada, levada até os limites e uma vez satisfeita e aniquilada, agora, apenas processos extremos, vazios, “continuam a viver”[17]. Onde e o que eles “continuam a viver” para mim é a accountability. Em outras palavras, o regime disciplinar metamorfosea-se no regime hiperdisciplinar, no hipercarcerário, o qual é a accountability. Se o Panóptico de Bentham era para Foucault a figura do regime disciplinar, o computador para mim é a figura do regime de accountability, a “tecnologia definidora” desta época, a era da accountability.

Ao mesmo tempo, para mim, ambas, ao prestar contas e contabilizar, metamorfoseam a passagem àquela terceira ordem, o hiper-real, forma pura e vazia, hiperprestação de contas e hipercontabilizar, onde elas estão em todo o lugar exceto nelas próprias e tudo está nelas exceto elas. E onde e o que elas “continuam a viver” é igualmente accountability, isso é o que hipercontar e hipercontabilizar são. Em outras palavras, accountability é o hiper-real, forma pura e vazia, ao mesmo tempo de disciplina, de prestar conta e contabilizar; o que os termos de Baudrillard transpolítica, transeconomia e transsexualidade me permitem designar transprestação de contas e transcontabilizar.

Governados pelo computador como seu modelo animador, operador e mnemotecnológico, prótese mídia e de arquivo — “o computador” inclusive o computador “humano”, o humano como computador, ciborgue, “mais humano que o humano” (para citar o logotipo da Tyrell Corporation, que descreve seus replicantes em Blade Runner) — accountability — seu discurso, regime, dispositivo, dispositif — governa através e em toda (em cada instituição da) cultura, em que cada instituição é hiperinstituição com uma rede de computadores estilo Skynet a governar e conduzir tais instituições, onde cada hiperinstituição é hiperarquivo dentro do arquivo maior. A accountability hipersatura a cultura desde sua menor partícula, do menor elemento — o micro — ao maior — o macro — e permeia tudo entre eles.

Aqui, poder e conhecimento tornam-se hiperpoder e hiperconhecimento, suas formas puras e vazias. Aqui, economia, uma “ciência” de números, vem à dianteira como sócio privilegiado da accountability, ganhando preeminência sobre todas as outras “ciências humanas” e, discutivelmente, sobre as ciências exatas, totalizando o campo, mesmo se o racionalismo (em, é claro, racionalismo instrumental e racionalismo econômico), a razão, a lógica e etc. tornam-se hipereconomia, hiper-racionalismo, (inclusive hiperinstrumental hiper-racionalismo e hiper-racionalismo hipereconômico, nunca racionalização), hiper-razão, hiperlógica etc. Aqui, vigilância torna-se hipervigilância, funcionando como parte da hiperdisciplina e da accountability como o que é ao invés disso, conhecido como micro-empresariado, uma forma de hipergestão, hipercomando e hipercontrole, ou seja, hipergoverno e hipercondução: o hiperciber[18].

E aqui, o hiper-racionalismo e a hiperlógica da accountability conecta-se com a IA (Inteligência Artificial), a inteligência do computador e o ciborgue “humano”, que é evidentemente hiperinteligência, a forma pura e vazia de inteligência, tudo menos inteligência, antes informação e dados, sua armazenagem e processamento. O processamento do computador nem é pensamento; em vez disso, é hiperpensamento, pensamento virtual, “visto que elas [máquinas inteligentes] colocam o pensamento em espera indefinidamente”[19], afirma Baudrillard (1993a, p. 51), especulando sobre a passagem da responsabilidade humana pelo pensamento para o computador com o intuito de aliviá-la desse fardo. Essa passagem, para mim, faz a responsabilidade metamorfosear-se em accountability, isto é, a “responsabilidade”, ou melhor ainda a hiper-responsabilidade do computador e do ciborgue.

Aqui, o sujeito de Foucault, o humano normalizado em corpo, metamorfoseia-se em “humano” hipernormalizado no computador, o ciborgue, seu “corpo/mente” em processador de informação e de conhecimento como informação e dados, perfeito para uma accountability, uma accountability calculativa, um processo de garantia de qualidade ou, em vez disso, “processo de garantia de quantidade” (onde quantidade é a nova qualidade), faltando apenas duas coisas para mim: a qualidade “em si” e “garantia” em si. E por “qualidade”, incluo tudo que foi abandonado daquilo que accountability é o simulacro, a forma pura e vazia.

Neste regime de accountability, o “sujeito” como ciborgue não deixa jamais de calcular, computar a performance de outros, nem a sua própria, ainda que outros ciborgues calculem tão bem quanto as suas, formando o regime da accountability. Além disso, o ideal é que esse regime seja aparelhado para alcançar o máximo de produtividade, máxima performance de ciborgues, porque assim pode ser determinado por meio do computador, o dispositivo tecnológico permitindo o regime, visto que eles são mensuráveis, quantificáveis, calculáveis, computáveis. Aqui, o esporte profissional coloca-se para mim como o modelo privilegiado da accountability — o verdadeiro modelo do modelo — com sua bateria de profissionais — doutores, treinadores, fisioterapeutas, psicólogos e cientistas, analistas de mídia esportiva etc. — e sistemas de treinamento, monitoramento, medições, correções e melhoria da performance, tudo com apenas um objetivo em mente: otimizar performance a todo instante com objetivo preciso da hipertelia: forçar as coisas para além dos seus limites, estabelecendo novos recordes de todos os tipos em cada esporte, cada esporte ampliando um esporte extremo, estabelecendo o modelo para o “princípio de performance” regulando accountability, regulando hiper-realidade, um princípio de performance que é o jogo em si, um jogo de números, para o seu próprio bem.

Quando o regime disciplinar passa à histerese do hiperdisciplinar, da accountability, o sujeito humano passa à histerese do hipersujeito, sua forma pura, plena e vazia, o hipersujeito como “objeto” pós-humano, o que significa ter apenas a função ou conjunto de funções e, portanto, ser comensurável enquanto tal; ou, se ainda não, bem no caminho para isso. Como o pensamento artificial do computador, o humano agora torna-se puramente “operacional”, “processo operacional”, para usar o termo de Baudrillard (1993a, p. 58), semelhante a nada menos do que o Borg, a metaestática coletividade de colmeias ciborgue em Star Trek: Voyager. De fato, o slogan do Borg serve para mim como o processo operacional global do computador, “com um só objetivo”, de apagamento do individual, embora como o “self”, ao mesmo tempo, no hiper-self e nas massas, que significa dizer o apagamento do humano no hiper-humano: “Nós somos Borg. Você será assimilado. Resistência é fútil”. Um slogan cabalístico, para mim, assim como o do zumbi ou, melhor, do hiperzumbi, o zumbi de George A. Romero, o qual eu considero parente do ciborgue, figuras da hiper-realidade da massa clonal, viral, epidêmica do computador e da accountability e o que elas animam (incluindo a epidemia viral de hiperzumbi, hiperfilme, hiperanimações e séries de TV). A hiper-realidade é ciborgue, hiperzumbi, realidade “de morto cerebral”.

Agora, o “humano” forma um circuito integrado com seu computador, o que eu chamo de “novo casal”, como faz com sua comunicação derivada e dirigida por computador, tecnologias de mídia — iphone, ipod, ipad etc. — e sites de mídia social como Facebook, Twitter etc. — tornando-se sua extensão, um circuito integrado e extensão, para mim, marcando ao mesmo tempo um circuito desintegrado com outros humanos — o que eu chamo de “rede associal” — e uma desintegração do humano, o humano tornou-se o clone da simulação do computador clone simulador, marcado para mim na passagem à caixa alta “I” (Eu) do self para a caixa baixa “i” do iPod, iPhone, iPad etc.

Desse modo, enquanto um aspecto principal do regime da accountability é não apenas sua introjeção de accountability no “humano”, mas sua crescente suplantação pela self-administration, self-management, self-service, ao mesmo tempo, ironicamente, o self assim como o sujeito foucaultiano encontram-se em verdadeiro processo de desaparição no hiperself. E, ainda mais uma ironia, ao fazê-lo por meios de que é apresentado como o preservador, protetor e facilitador do self e do sujeito, em vez disso, presta-lhe um desserviço, transformando-os naquele hiperself: o computador e a accountability.

Aqui, devo fazer uma pausa para ressaltar: a simultânea totalização e evacuação do self sob a rubrica da accountability e do self-service fazem uma zombaria do discurso e movimento de auto-ajuda que penetraram igualmente tantos cantos da cultura da accountability, um discurso e movimento que tornam alguém hiper-responsável, ou seja, responsável (accountable) por tudo que alguém pratica e é feito para esse mesmo alguém, da mesma forma que faz e é feito até mesmo para todos, sem nenhuma realização que, como forma pura e vazia da responsabilidade, ao mesmo tempo a accountability torna alguém (one) responsável por ninguém (no-one) incluindo a “si” mesmo (one-self) e por mais nada. Alguém pode ser tentado a chamar esta liberdade total de servidão total e vice-versa, mas isso é de uma vez só, mais, menos e outra coisa. Ao mesmo tempo, é hiperliberdade e hiperservidão, a forma pura e vazia de ambas.

E é o outro, no sentido de outro para o Outro, visto que aqui o Outro termina no mesmo e no ser tal como Baudrillard coloca “arrebatado pelas comutações do mesmo” (BAUDRILLARD, 1993a, p. 58), forjado pelo computador. É o que ele chama de “inferno do Mesmo” (BAUDRILLARD, 1993a, p. 122), no qual “A alienação do homem pelo homem é algo do passado: agora, o homem foi lançado na homeostasia através das máquinas” (BAUDRILLARD, 1993a, p. 59). Nesse sentido, é notável o modo como a “interface” do módulo “humano-computador” é estilizado pela “interpassividade” de Baudrillard (1997b, p. 97), uma situação em que, enquanto “A máquina faz aquilo que o humano quer que ela faça... por meio do mesmo símbolo, o humano coloca em execução apenas o que a máquina foi programada para fazer” (BAUDRILLARD, 1993a, p.56). Isso significa que o computador (re)programa o humano como computador, computador-humano, ciborgue e vice-versa.

O resultado é que o sonho do humano em libertar-se do trabalho pelo computador realiza seu paradoxo oposto: a liberação do humano dessa liberação através do computador, a liberação humana em self-service e solipsismo com o computador e ao mesmo tempo com ele próprio como hiperself, o tipo de solipsismo que alguém prontamente observará enquanto outro lança os olhos sobre pessoas caminhando ou dirigindo e ao mesmo tempo falando ou enviando mensagens de texto em seus iPhones ou ouvindo aos seus iPods interminavelmente presos em quase enganos, às vezes, não, inclusive outros fazendo o mesmo. Eu colocaria da seguinte forma: cada pessoa habita um universo como casulo, uma cápsula (pod) para si próprio — fazendo o nome “iPod” ressoar como o maior “importe” (import)! — lembrando daquele filme profético da década de 1950, Invasion of the Body Snatchers (Vampiros de Almas), cujas cápsulas alienígenas geravam uma simulação humana, um duplo, um clone. Nos dias de hoje, esse casulo, a cápsula, o clone, se torna não apenas o “corpo”, mas a “mente”, o verdadeiro self da pessoa, mas o “self” como hipernarciso, visto que o self foi completamente esvaziado, tornou-se mais eco do que o eco — exterminado, portanto, criando o ciborgue/hiperzumbi hiper-híbrido, cada um forçando o outro a sê-lo mais do que é. Na medida em que ambos são formas do clone, seriam figuras da histeria das espécies de acordo com Baudrillard, a busca das espécies pelo apagamento do humano em hiper-humano, o humano como seu próprio espectro, caixão, cripta[20].

Tal libertação da libertação institui um papel totalmente novo para o “self”, transformando o “self” em secretário, balconista (shop assistant), administrador, gestor de todo aspecto mais recente da “vida” de alguém. Alguém se torna o responsável (accountant) por tudo, incluindo a si próprio. Quem deve fazer e sabe o que outrora outros faziam e sabiam por alguém. Então, agora alguém deve fazer e saber tudo para e de si próprio. Mas então, fazer e saber não são mais o que foram algum dia. Fazer é programar, em interface com o computador, computar, aprender e ensinar a computar. O conhecimento torna-se o que é e pode ser programado, computado, com e através do computador. Conhecimento não é mais conhecimento, muito menos saber. Conhecimento é informação e dados, que o “humano” faz download para o “humano”, o humano torna-se processador de informação e dados e ele próprio, informação e dados. E o que não pode ser contado, registrado (accounted for), feito download, não conta mais. O resultado: um mundo de cada vez mais muitíssima e, portanto, pouquíssima, informação e dados, muito pouco conhecimento, muito menos saber. A “revolução” informacional como devolução, involução.

Os dias do “humano” não estão apenas contados, indiscutivelmente já estão no passado! Deixados para atrás na implosão não apenas do social, mas segundo Baudrillard, do self no circuito integrado humano-computador, o “humano” como terminal subordinado ao terminal de computador, um terminal entre terminais, uma tela entre telas[21]. Aqui, invertendo Marshall McLuhan, o homem tornou-se para Baudrillard (1993a, p. 30) a extensão de, o satélite de, a excrescência sobre, suas tecnologias midiáticas, inclusive, é claro, essencial para o nosso sujeito, o computador. Baudrillard o nomeia “Homem Telemático”, “Homem Telecomputador”, “Homem Virtual”, “Homem da Inteligência Artificial”[22], prótese cibernética subordinada de sua prótese. Chamo a ele/isso de Homo computans.

Seu slogan: se não computou, VOCÊ não computou!

Agora, humanos têm “skill sets”, que são os programas programando o “humano” e as funções que eles habilitam o “humano” a desempenhar. Destas foram feitos downloads para nossos bancos de dados, software em nosso “hardware”, tornando o “humano” não apenas tecnologia de computador, mas programa de (programado por) computador, ou seja, software de sistema e de aplicação, um conjunto de apps. Programados para multitarefa, a “vida” está “vivendo” o programa, esgotando todas as possibilidades dos apps, sendo “appzinho” (appy).

E administrar, gerenciar, outrora apenas uma função, agora, como parte de um dispositivo totalizante de accountability, totalizam a si próprias, tornando-se, como accountability, o novo tema, o novo “conteúdo”, de tudo, incluindo o “self”. Isso é o que se aprende. Isso é o que se faz, cada vez mais substituindo o “velho” trabalho que se pensava e talvez ainda se pense, que é o trabalho de alguém. Eis o que se propaga: gerenciamento, accountability.

Então, em vez de saber e conhecimento, temos dados e informação como os elementos primordiais da administração e da accountability, incluindo “self” administration e “self” accountability. Nada está livre disso, nem mesmo o governo ou a mídia, cujos “representantes” exigem saber todas as noites na TV e no rádio: “Quem é responsável (accountable)? Tudo se metamorfoseia nisso, a administração e a accountability de e por computadores, de “humanos” em computadores, ciborgues. Em outras palavras, sob o regime de accountability, administração, gerenciamento, governo e etc. passam às suas formas puras e vazias — hiperadministração, hipergerenciamento, hipergoverno.

E aqui reside a maior ironia de todas no que diz respeito à accountability: ao contrário da afirmação de que é “agregadora de valor” — uma ideia que Kamuf (2007, p. 256) desenvolve e desmistifica em “Accounterability” — e capaz de produzir evidência direta dessa agregação de valor, accountability seria de nenhum significado, verdade, realidade ou valor. Seria a transdesvalorização de todo valor. Estaria onde “o que conta”, o relatório e a prestação de contas não dão conta de nada. Apenas um efeito especial do hiper-real de um mundo tornado efeito especial hiper-real. Um mundo em que a injunção universal de produtividade máxima, hiperprodutivismo, e máxima performance, hiperperformance, implode no vácuo do nonsense, ao mesmo tempo demais e muito pouco.

Aqui, detenho-me e destaco o discurso dos três termos principais da accountability, que se ouve ad nauseam em nossa mídia: accountability, transparência (geralmente considerada como sinônimo de accountability) e assegurar-se (ensuring), termos que implodem em sua própria elocução. Nenhum político (e a política se metamorfoseou em gerenciamento), burocrata, administrador, CEO ou chefe de uma ONG que “valha” o seu suor pode verbalizar uma frase sem proferir ao menos uma dessas palavras; visto que essas palavras estabelecem sua “credibilidade”, suas “credenciais”, sua “boa-fé”. Na verdade, para mim, a accountability é a mera enunciação dessas palavras, discurso e retórica vazia, subentendida pela sistemática evasão feita por gestores, prestadores de contas, desde a aplicação de padrões de accountability, transparência e assegurada por eles mesmos.

O desenlace desses três termos “mestres”, embora ao mesmo tempo hiper-reais, é o seguinte: ao contrário de seu discurso, accountability implode no vácuo daquilo que está para além de responsabilizável — o mais (não) responsabilizável do que o (não) responsabilizável, o mais (não) computável do que (não) computável; a transparência implode no vácuo do que repousa além dela — o mais opaco do que o opaco; e certificar/segurar/assegurar implode no vácuo do que repousa para além deles — o mais não certificado/não garantido/não assegurado do que o não certificado/não garantido/não assegurado, o qual é cada vez mais precisamente o próprio mundo hiper-real, para Baudrillard (1993a, p. 43), um mundo de incerteza radical, crescente e insolúvel, um mundo no qual “A revolução de nossa época é a revolução da incerteza”.

E aqui, outro aspecto do artigo de Kamuf abre a porta, através de sua referência a computare, de maneira suplementar, ou seja, não apenas o pensamento da relação do computador com accountability, mas o pensamento da relação de ambos com ciência e matemática. A metamorfose de fazer e prestar contas, disciplina e responsabilidade em accountability metamorfoseia o campo ético, pessoal, subjetivo e disciplinar do humano como sujeito “dando apoio” à responsabilidade, respectivamente na evidência exata dos números e medidas que, clássica e supostamente objetivas, a ciência deveria prover e as quais o computador calcularia e seria responsabilizável (accountable).

Mais ainda, para mim, mesmo se a accountability move-se em uma direção mais pervasiva, seu discurso de numeracia e da evidência direta que deveria fornecer uma mensuração objetiva, deve também encarar a mudança de um mundo tornando-se cada vez mais incerto, inclusive sob o desafio das ciências quânticas em relação à ciência clássica, sua influência cada vez maior e a pervasividade do mundo quântico tal como Baudrillard propõe[23].

Afirma o cientista Paul Davies:

Há apenas um conjunto de leis para o universo todo. Físicos acreditam que as leis quânticas são as mais fundamentais e que em princípio, aplicam-se a tudo, inclusive objetos do dia a dia, tais como mesas e cadeiras...[24]

Segundo Davies, as leis clássicas da física são aproximações das leis quânticas, não o contrário. Por sua vez, Baudrillard (1993a, p. 43) contraintuitivamente afirma que até mesmo ciência e tecnologia — inclusive necessariamente o computador — objetivam não a certeza, mas a incerteza, “presenteando-nos com um mundo definitivamente irreal, para além de qualquer critério de verdade e realidade”, portanto, no mínimo, marcam o impacto da ciência quântica no nosso entendimento, mas também na nossa capacidade de entender o mundo, o universo[25]. De acordo com ele, o mundo contemporâneo está marcado pela passagem “do universo convencional” a “um universo quântico”, portanto, de um mundo supostamente determinista (euclidiano, newtoniano) para um não determinista, em que ideias de desenvolvimento linear se aplicam para outro em que “Tudo é lançado em uma turbulência que torna o controle impossível...” (BAUDRILLARD, 2001, p. 18-9). O universo quântico — “probabilístico, relativista, aleatório” (BAUDRILLARD: 2001, p. 20), definitivamente incerto — em suma, governa; cada vez mais, o real e a ordem da determinação racional são as “exceções”, enquanto o universo quântico cada vez mais leva vantagem nesta área de funcionamento “realista”, “social”, “relacional” — uma “preservação”, um “abrigo”, de qualquer maneira, imerso no quântico. Baudrillard (2002, p. 20) afirma:

Neste espaço social des-polarizado (seria isto um espaço social ou histórico?), a análise tradicional não realiza mais nenhuma aquisição e soluções trabalhadas neste nível vão por água abaixo em uma incerteza geral do mesmo modo que o cálculo clássico [grifo meu] foi com a física quântica.

Se a “análise tradicional”, ou seja, a análise de segunda ordem, e “cálculos clássicos”, com efeito, todas essas bases da ciência clássica vão por água abaixo com essa incerteza geral, tal ruína é também aquela que “baseia” o discurso e o regime da accountability, tanto quanto suas tradicionais análises de segunda ordem[26]. Ao puxar o tapete da accountability, da transparência e do certificar/segurar/assegurar, tal hiperincerteza faz a accountability, seu discurso e movimento nostálgico, olhando para trás, regredir numa tentativa de preservar e abrigar o que está cada vez mais desaparecendo ou mesmo já tenha sido totalmente apagado.

Aqui, o número, levado até o limite como hipernúmero, “continua a viver” em sua forma virtual pura e vazia, na qual o número está em todo o lugar, exceto no número e tudo está no número exceto o número, onde o número é ao mesmo tempo demais e muito pouco, muito preciso e impreciso — o próprio número radical e definitivamente incerto. E o que acontece ao número acontece a tudo que depende de número: mensuração, quantificação e ciências exatas. Elas também passam à sua hiperforma, como faz o que depende delas: accountability.

Além disso, enquanto para Baudrillard nada no mundo hiper-real contemporâneo está livre do outro extremo, processos delirantes do hipertélico, metastático, obeso, obsceno e etc. — todos os processos que eu “enumerei” — então, número, mensuração, quantificação e ciências exatas seriam ao mesmo tempo fornecedores e presas para todos esses processos.

À luz disto, preciso acrescentar à lista de termos de Kamuf sobre computare aquela palavra-chave, desconto, em um duplo modo: oferecer barato e ignorar algo. Por isso, as ofertas da accountability barateiam nosso mundo, inclusive em relação a ele apenas em termos de números, quantificação, ciências exatas, assumindo sua conclusividade, enquanto ignoram ou estão cegas ao que as subordina ao contemporâneo, ao mundo quântico.

Nesse sentido, elas são parte e parcela de um mundo cada vez mais virtual, um mundo cada vez mais, para usar o termo chave do discurso da accountability, “transparente”, mas onde a transparência é mais opaca do que o opaco e o opaco é mais transparente do que o transparente. De fato, a “transparência”, como um termo, ironiza a si própria, porque significa não apenas visível, mas invisível, na medida em que pode significar algo que pode ser visto através e, portanto, não pode ser visto de modo algum. Um mundo cada vez mais insano, também, onde o negativo, o menos, é mais positivo que o positivo, o mais mais do que o mais, e o positivo, o mais, mais negativo do que o negativo, mais menos do que o menos.

Um mundo no qual a transparência e a accountability deveriam certificar/segurar/assegurar, mas a questão é o que e como certificar/segurar/assegurar. O que e como garantem? Para o que e como assumem responsabilidade? E como podem fazer isso no hiper-real, onde, ironicamente, a única transparência é que não há transparência, a única accountability é que não há accountability, a única certificação/seguro/asseguração é de que não há certificação/seguro/asseguração? Onde a única garantia é de que não há garantia, a única certeza é de que não há certeza.

A ironia ressoa também no que Kamuf (2007, p. 252) propõe como um “dictum irônico” do movimento de accountability — “Tenha fé nos números” — números que a pesquisadora presume ser e apresenta como fazendo nenhuma afirmação sobre fé ou crença, exceto, como observa Kamuf, para “a crença de que números, contar ou quantificar, triunfam além da crença”, mas, para ela, tal discurso é apesar disso “baseado-na-fé”, no sentido de baseado na crença.

Bastante à parte da questão permanente sobre quanto alguma forma de fé ou crença não é requerida em cada ato (seja fé na fé, crença na crença, etc.), para mim accountability, dupla e ironicamente, deposita sua fé/crença no que não pode colocar fé/crença em e, ainda mais, pode apenas ter fé/crença em uma fé/crença transformada em hiperfé/hipercrença, cada vez mais, incluindo em um mundo material em que o material torna-se cada vez mais imaterial do que o imaterial e o imaterial, mais material que o material.

Contudo, neste momento, os desvios irônicos que observei obrigam-me a trazer a noção de ironia objetiva de Baudrillard, inclusive a de tecnologia como um processo do mundo hiper-real. Significa que, do mesmo modo que ciência e tecnologia para ele, e apesar de seu discurso sobre accountability, seu regime e dispositivo, ironicamente objetiva seu oposto — unaccountability, cada sistema sistematicamente objetiva e desistematiza a si próprio, liquidando a si próprio através do excesso.

E essa ironia solicita que eu proponha o que pode ser a hipótese mais irônica de todas: hoje, os dias dos números não apenas já estão contados (numbered), mas os dias dos números jamais deixaram de estar contados (numbered)?! Especialmente se o universo quântico não for apenas uma questão de nossa hiper-realidade contemporânea, mas nunca tenha deixado de operar, e a hiper-realidade for, ironicamente, o avatar da Sedução original[27]. Assim sendo, tão insano quanto pode soar, a certeza de um número, de números “enquanto tais”, não apenas não pode ser dada como certa hoje, mas jamais poderiam nem foram capazes de ser dadas como certas![28] Se a computação não/jamais pode ser dada por certo, o que dizem então do computador, esse que “certifica”/”segura”/“assegura” a accountability da accountability e seu regime? “O fim dos cálculos finais” (BAUDRILLARD, 1989, p. 41)[29] está sempre no, de fato, antes, de (seu) começar. Em poucas palavras, não há prestação de contas (accounting) para responsabilizar (accounting), muito menos hiper-responsabilizar (hiperaccounting).

“Em suma”(!), como a obsessão em rememorar, para mim a obsessão por gerenciar — o que eu chamo febre gerencial, o regime da accountability — é para mim ab-reação hiper-real à crescente incerteza, unaccountability, não gerenciabilidade, do mundo da hiper-realidade. E como a obsessão em rememorar, ao contrário de seu discurso, leva a hiper-realidade adiante, maximizando-a, inclusive em operação de accountability de, para e através do computador, essa hiperindefinida hipertecnologia que hipergerencia, hipergoverna, tudo, incluindo memória. Em outras palavras, como a TV antes dele, o computador se apresenta como a solução ao problema que ele próprio cria e exacerba, enquanto cria o que ele hiper-regulamenta, hiperconduz: o regime da accountability.

Eu colocaria desta forma: enquanto, para Baudrillard (1987, p. 77-8), a TV é “a verdadeira solução final para a historicidade de cada acontecimento” — a memória de cada acontecimento também — e na medida em que para mim a realidade virtual é “a solução final do real” (BAUDRILLARD, 2003, p. 39), para mim, o computador como hiperarconte e hiperarquivo, junto à accountability, é uma solução final tão singular, inclusive para a realidade, o humano e sua memória — seu Exterminador. Da memória do Holocausto ao holocausto da memória, inclusive do Holocausto, em hipermemória. Em que o desejo de apagar o humano e sua memória une-se ao drive para apagar a era humana[30], a solução final para a Solução Final no hiper-humano[31].

À luz disto tudo, elaborei uma lista de questões: do que os números dão conta? O que eles acrescentam? E como os números dão conta de si próprios?

Eu insisti em saber a resposta para essas patacoadas (daffy) questões do computador[32].

Mas a resposta da caixa preta era apenas a automática, desdenhosa: “O Computador disse não”.

Uma réplica discutível, mas irresoluta, ressoando com as palavras daquele demônio malvado, Pernalonga: “Ain’t I a stinker?!” (Não sou um desprezível)[33].

Notas

[1] A pergunta angustiada de Patolino após ter sido torturado e mantido refém por um Pernalonga terrorista em Duck Amuck (1953), de Chuck Jones.

[2] Little Britain foi transmitida originalmente na TV britânica entre 2003 e 2006. Alguns dos esquetes “O Computador Diz Não” estão disponíveis no YouTube.

[3] Assim Kittler (2010, p. 225) descreve os sistemas de computadores.

[4] Aqui, baseio-me na noção de uma tecnologia definidora elaborada por J. David Bolter (1984), que destaca também o computador como uma tecnologia definidora da nossa era.

[5] Visto que, para Bernard Stiegler (2013) e para mim, todas são por definição tecnologias da memória, mnemotecnologias — de fato hipomnemotecnologias, para distingui-las, como modos de escritura, registro, hipomnesis, da anamnesis, “memória viva” de Platão — para mim tais hipomnemotecnologias se metamorfoseiam em hipermnemotecnologias, na hiper-realidade. A relação entre o trabalho de Stiegler e o meu requer um comprometimento para além dos limites deste ensaio.

[6] Ver Baudrillard (1986).

[7] Faço distinção entre o “antigo” virtual como potencialidade e aquele da realidade virtual como hipervirtual, como hiperpotencialidade, onde o virtual, incluindo a memória virtual, é mais atual do que (o) atual, fornecendo o atual, incluindo memória atual, de tal modo que existe um mais virtual que (o) virtual. Aqui, uma ressalva: onde quer que eu coloque o “mais x do que x” de Baudrillard neste ensaio, como procedo nesta nota, entenda-se ao mesmo tempo mais x do que x e menos x do que x, por exemplo, o hiper-real é ao mesmo tempo mais real do que o real e menos real do que o real. Limitações de espaço demandaram o uso da forma contrata.

[8] Mesmo se o computador como “meio de todas as mídias” governa, então a mídia que ele dirige governa, notavelmente, inclusive as notícias e seus comentários, tendo metamorfoseado do quarto poder do jornalismo em primeiro. Ou melhor, hipernotícias, a mídia tendo se metamorfoseado em hipermídia, inmídia, cada vez mais midiatizada, im-midiatizada, “realidade” e nós. Com efeito, tento metamorfoseado em mídia, na qual nós nadamos e que nada em nós. Como em Tron, o computador, o hiperanímico mídia no qual nós “vivemos” e que “vive” em nós, tornando impossível nos distinguir dele.

[9] A tecnologia definidora segundo Bolter em Turing’s Man. Uma ressalva: para mim, uma tecnologia definidora baseada em Derrida não é nunca uma tecnologia indefinidora, ao mesmo tempo indefinidora quando define e definidora quando indefine. Contudo, na era da hiper-realidade, tal tecnologia torna-se hipertecnologia hiperdefinidora, onde a definição é mais indefinidora do que a indefinição e vice-versa, metamorfoseando de um indeterminismo tecnológico para um hiperindeterminismo hipertecnológico. Na complicação inextricável para mim entre o humano e suas máquinas, suas tecnologias, ver A. Cholodenko (2007), inclusive minha abordagem sobre Blade Runner.

[10] Mantivemos accountability grafada no original inglês por entender que a palavra é de impossível tradução. Daqui em diante, o leitor notará outras palavras em inglês entre parêntesis, porque entendemos que foi necessário para indicar seja um trocadilho, seja outro sentido peculiar àquele idioma (N. da T.).

[11] Cabe invocar a noção de programa “no sentido cibernético” em Derrida (1974, p. 84) no capítulo “Da Gramatologia Como Ciência Positiva”, que lança não apenas os termos, mas os limites de sua abordagem em publicações subsequentes, das tele-tecnologias da comunicação eletrônica como modos do grama, como escritura, inscrição, da ordem do traço, o espectro como hipomnésico, como tecnologias prostéticas de arquivamento.

[12] Sobre o reinado, a hiper-regra, de números e cálculos, ver Baudrillard (2005, p. 69); e P. Virilio (2000, p. 123-124).

[13] Isso, para mim, inclui a universidade.

[14] Foucault escreve sobre este regime disciplinar em termos de “metodicamente subordinadas engrenagens de uma máquina” (1979, p. 169). Ver também em Foucault (1979, p. 227), “observação analítica” e “leniência calculada”.

[15] Sobre histerese, ver Baudrillard (1988, p. 115). Visto que a histerese é o fim de todas as finalidades (inclusive tempo) no infindável do hiperfim, onde quer que eu escreva “ao mesmo tempo” em termos de hiper-realidade, realidade virtual, hipertempo, dever ser assim entendido. Da mesma forma, onde escrevo “novo”, entenda-se hipernovo.  Ver Baudrillard (2006) e meu “(The) Death (of) the Animator, or: The Felicity of Felix, Part 3: Death and the Death of Death” (CHOLODENKO, 2011).

[16] Para a minha consideração anterior da relação entre Foucault e Baudrillard, ver meu “The Borders of Our Lives: Frederick Wiseman, Jean Baudrillard and the Question of the Documentary” (CHOLODENKO, 2004).

[17] Para uma descrição da terceira (e da quarta) ordem da hiper-realidade, ver meu “The ‘ABCs’ of B, or: To Be and Not to Be B” 3 (CHOLODENKO, 2010). Sobre a operação desses processos, ver também “OBJECTS IN MIRROR ARE CLOSER THAN THEY APPEAR”: The Virtual Reality of Jurassic Park and Jean Baudrillard (CHOLODENKO, 1997); e “(The) Death (of) the Animator, ...”, Part 3 (CHOLODENKO, 2011).

[18] Em outras palavras, minha noção do regime de accountability tem muito em comum com a noção de Gilles Deleuze de sociedade de controle, a qual para ele também veio a suplantar o regime disciplinar de Foucault, mas com a ressalva de que para mim esse controle, como hipercontrole, é ao mesmo tempo total e nenhum. Ver seu “Post-scriptum sobre a Sociedade de Controle”. Uma comparação detalhada encontra-se para além do alcance deste ensaio.

[19] Ver também P. Virilio e S. Lotringer (2002, p. 152).

[20] Ver J. Baudrillard, The Final Solution: Cloning Beyond the Human and Inhuman, (2000). Sobre o hiperzumbi como forma/figura do clone segundo Baudrillard, ver meu “The ‘ABCs’ of B, or: To Be and Not to Be B” (CHOLODENKO, 2010); e “(The) Death (of) the Animator, ...”, Part 3 (CHOLODENKO, 2011).

[21] Ver J. Baudrillard (1993b, p. 146); e J. Baudrillard, Xerox and Infinity (1993a, p. 54, p. 57). Xerox and Infinity é um capítulo de The Transparency of Evil (1993a).

[22] Termos que Baudrillard usa em Xerox and Infinity (1993a), “Telematic Man” no texto original francês e os outros seguem a tradução inglesa. Ver meu “The Spectre in the Screen” (CHOLODENKO, 2008), no qual eu me dirijo àquela figura que é um modelo para mim do Telematic Man segundo Baudrillard: Denis Nedry de Jurassic Park. Assim, coloco: “nós ‘vivemos’ em Jurassic Park, no mundo do The Returned de The Walking Dead, no mundo do Exterminador do Futuro, o mundo da hipervida e hipermorte, no qual a vida está mais morta do que o morto e a morte mais viva do que o vivo, um mundo de hype, de excessos, de fenômenos extremos e eventos, um mundo de transdesvaloração de todos os valores. Como Baudrillard (1983b, p. 2) o observou, “o próprio deserto do real”. Neste contexto, minha modelagem hiperanímica do computador, inclusive do programa de computador, como Exterminador não apenas subordina, mas ironiza o temor de cientistas como Jaan Tallinn, Stephen Hawking, Elon Musk e outros de uma futura e potencial “ameaça à existência” humana colocada pela Inteligência Artificial.

[23] Por uma questão de economia, os próximos parágrafos sobre o quântico são de meu “The Nutty Universe of Animation, The ‘Discipline’ of All ‘Disciplines’, And That’s Not All, Folks!” (CHOLODENKO, 2007b).

[24] P. Davies (1998, p. 103-104); ver A. Cholodenko (2007b) em “The Nutty Universe of Animation...” para mais comentários sobre cientistas no estranho, sem sentido, contra-intuitivo mundo amalucado do quântico.

[25] Inclusive o impacto do Princípio de Complementaridade de Niels Bohr, o Princípio da Incerteza de Heisenberg, os teoremas da incompletude de Gödel e o gato de Schrödinger. Teoria do caos, também. Ver meu “The Nutty Universe of Animation...” (CHOLODENKO, 2007b).

[26] Enquanto a hiper-realidade torna irrelevante, inaplicável, toda análise de segunda ordem dela e sua hiperpertinência. Não admira que haja hostilidade com, e até mesmo o apagamento do trabalho de Baudrillard na tentativa ab-reativa de preservar o que desapareceu ou está cada vez mais desaparecendo — a “realidade” e seu “princípio”.

[27] Para levantar as duas hipóteses irreconciliáveis de Baudrillard — indecidível entre si — do Crime Perfeito da virtualização, da hiper-realidade, e da Ilusão Radical da Sedução, “princípio” soberano de Baudrillard, com a insolúvel possibilidade de que o primeiro seja o avatar do segundo, permitindo assim preservar/restaurar a Ilusão, Sedução. Ver J. Baudrillard em The Millennium, or The Suspense of the Year 2000 (2000, p. 53, p. 55).

[28] Sobre o número como desconstrutivo, ver J. Derrida, (1984, p. 15-16).

[29] Ver também meu “The Illusion of the Beginning” (CHOLODENKO, 2000).

[30] Sobre esta conjunção crucial, ver meu “(The) Death (of) the Animator Part 3” (CHOLODENKO, 2011).

[31] Relacionando accountability, gestão e com a administração da Solução Final.

[32] Trocadilho com o nome de Patolino em inglês “Daffy duck” (N. da T.).

[33] Estas palavras do supliciador de Patolino na conclusão de Duck Amuck também poderia ser as de HAL em 2001 ou de AUTO em Wall-E!

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