Baile encerrado, pancadão silenciado:

a ação policial no baile de Paraisópolis (São Paulo)

Igor Lacerda1 e Ricardo Ferreira Freitas2

Resumo

Este artigo tem como objetivo examinar as narrativas dos jornais O Globo e Folha de São Paulo sobre a invasão da polícia militar à festa funk em Paraisópolis, localizada na zona sul da capital paulista, para identificar significados sobre a festa e a comunidade. A ação policial ocorreu durante a madrugada do dia primeiro de dezembro de 2019 encerrando o evento que reuniu cerca de cinco mil participantes, resultando em nove mortos pisoteados e doze feridos. Foram analisadas duas narrativas: “Baile reúne 5.000 nas ruas e movimenta comércio local”, publicado pela Folha de São Paulo, e “Após mortes em baile funk em São Paulo, 'lei do silêncio' reina em Paraisópolis”, publicado por O Globo, ambas em dois de dezembro de 2019. Como metodologia, será utilizada a análise narrativa, seguindo as orientações de Ricoeur (1994). Neste trabalho, vemos as narrativas capazes de representar os acontecimentos em cada tempo e espaço histórico, possibilitando a produção de sentidos sobre os grupos e seus universos. Como resultado, as narrativas de O Globo foram cíclicas, tentando manter os leitores com as mesmas percepções sobre baile funk e violência. Por outro lado, a narrativa da Folha de São Paulo foi espiralada porque, por meio da pluralidade de vozes, produziu novos sentidos sobre esse universo.

Palavras-chave

Lazer; Evento de Rua; Baile Funk; Paraisópolis; Violência.

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1 Doutorando em Comunicação pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro (PPGCom UERJ - Bolsista CAPES). Mestre em Comunicação pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro. Graduado em Comunicação pela Universidade Veiga de Almeida. Pesquisador no Laboratório de Comunicação, Cidade e Consumo (LACONUERJ). E-mail: igorlacerdasa@gmail.com.

2 Professor Titular da Faculdade de Comunicação Social da Universidade do Estado do Rio de Janeiro. Doutor em Sociologia pela Université René Descartes - Paris V. Mestre em Comunicação e Cultura pela Universidade Federal do Rio de Janeiro. Graduado em Comunicação Social pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro. Pesquisador PQ2 do CNPQ e Cientista do Nosso Estado da Faperj. E-mail: rf0360@gmail.com.

Funk party closed, pancadão silenced:

the police action during the funk party at Paraisópolis (São Paulo)

Igor Lacerda1 and Ricardo Ferreira Freitas2

Abstract

This article aims to examine the narratives of the newspapers O Globo and Folha de São Paulo about the military police invasion to the funk party in Paraisópolis, located in the South Zone of São Paulo, to identify meanings about the party and the community. The police action took place during the early hours of December 1st of 2019 ending the event that brought together about five thousand participants, resulting in nine people trampled to death and twelve injured. Two narratives were analyzed: “Baile reúne 5.000 nas ruas e movimenta comércio local”, published by Folha de São Paulo and “Após mortes em baile funk em São Paulo, 'lei do silêncio' reina em Paraisópolis”, published by O Globo, both on December 2nd of 2019. Narrative analysis will be used as methodology, following guidelines by Ricoeur (1994). In this work, we see that narratives are capable of representing the events in each historical time and space, enabling the production of meanings about groups and their universes. As a result, the narratives of O Globo were cyclical, did not try to change the perceptions on baile funk and violence. On the other hand, the narrative of Folha de São Paulo was spiraled because, through the plurality of voices, it produced new meanings about this universe.

 

Keywords

Leisure; Street Event; Funk party; Paraisópolis; Violence.

1  Doutorando em Comunicação pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro (PPGCom UERJ - Bolsista CAPES). Mestre em Comunicação pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro. Graduado em Comunicação pela Universidade Veiga de Almeida. Pesquisador no Laboratório de Comunicação, Cidade e Consumo (LACONUERJ). E-mail: igorlacerdasa@gmail.com.

2 Professor Titular da Faculdade de Comunicação Social da Universidade do Estado do Rio de Janeiro. Doutor em Sociologia pela Université René Descartes - Paris V. Mestre em Comunicação e Cultura pela Universidade Federal do Rio de Janeiro. Graduado em Comunicação Social pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro. Pesquisador PQ2 do CNPQ e Cientista do Nosso Estado da Faperj. E-mail: rf0360@gmail.com.

Introdução

O Baile da 17 (também conhecido como fluxos, pancadão e baile de favela) surgiu em 2012 nas ruas de Paraisópolis. O número 17 é uma referência ao bar de bebidas que existia no local. A festa nasceu como um pagode na frente do velho boteco, tocando funk apenas nos intervalos, quando os frequentadores ligavam os alto-falantes de seus carros. Com o tempo, o baile cresceu, estendeu-se às madrugadas e passou a tocar somente funk. Geralmente, ocorre nas noites de sexta-feira e sábado, podendo começar na quinta-feira e se desdobrar até o domingo. Assim que surgiu, a festa chegou a reunir cerca de 30 mil pessoas nas ruas apertadas da comunidade, mas, no período próximo à invasão, juntava entre 3.000 e 5.000 (G1, 2021).

Em 2019, Paraisópolis foi considerada uma das maiores comunidades de São Paulo, tendo aproximadamente 42,8 mil moradores em mais de 13 mil domicílios (BONADIO, 2021). Na capital paulistana, enquanto 94,7% das casas de áreas regulares tinham serviço adequado de esgotamento sanitário, só 68,4% dos imóveis em favelas o possuíam, revelando a falta de infraestrutura desses locais. Sendo que, segundo a Organização Mundial de Saúde, o saneamento é essencial à garantia de saúde, pois evita doenças e infecções e mantem o bem-estar físico, mental e social (WORLD HEALTH ORGANIZATION, 2018).

A falta de acesso à saúde afeta diretamente a qualidade de vida dos moradores de Paraisópolis, que vivem em média até os 63 anos, segundo o Mapa da Desigualdade (REDE NOSSA SÃO PAULO, 2019). Os residentes do bairro nobre Morumbi, que é vizinho da comunidade, vivem uma década a mais, 73 anos, revela o documento. O Mapa da Desigualdade foi formulado pela Rede Nossa São Paulo, uma organização da sociedade civil que visa à formulação de políticas públicas menos excludentes. Os indicadores foram criados a partir de dados fornecidos pela Secretaria Municipal de Saúde de São Paulo, referentes aos números de óbitos em cada ano. O cálculo parte da soma de todas as idades dos mortos de cada bairro, divididas pelo total de óbitos registrados pelo Sistema de Informações sobre Mortalidade (SIM) do Ministério da Saúde (BRASIL, 2021).

Em 2021, aproximadamente 21% da população de Paraisópolis trabalhava no comércio local, que possuía cerca de 10 mil estabelecimentos – dados que não mudaram desde 2019 (BERNARDO; SANTOS, 2021). A favela não possuía equipamentos públicos de cultura, enquanto Morumbi tinha a média de 5,83 equipamentos (incluindo um museu) para 100 mil habitantes (SOUZA, 2019). A falta de acesso a instalações culturais não é uma exclusividade dos moradores da comunidade paulistana. Conforme o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), em 2019, 39,9% dos brasileiros moram em municípios sem cinemas, teatros e museus; e 44% dos pretos e pardos não têm acesso a esses bens de lazer e cultura (esse número em relação a brancos cai para 34,8%). No que se refere à idade, ainda segundo o IBGE, crianças e adolescentes vivem no pior cenário: 43,8% das pessoas de até 14 anos vivem em municípios sem salas de cinema e 35,9% delas vivem em locais sem museus (CABRAL, 2019).

As poucas alternativas culturais, esportivas e profissionalizantes que existiam na favela foram iniciativas de organizações não governamentais e empresas privadas, não do poder público. Por exemplo, a Orquestra de Paraisópolis e o Ballet de Paraisópolis, projetos que atendem a crianças, adolescentes e jovens, não recebiam os devidos investimentos por parte do Estado, somente do setor privado. A Orquestra ensaiava em uma sala de aula improvisada na Escola Técnica Abdias do Nascimento, e o Ballet em um prédio alugado com obras constantes.

Diante desse cenário, este trabalho tem o intuito de analisar narrativas dos jornais O Globo e Folha de São Paulo a fim de identificar a produção de sentidos sobre a invasão policial no Baile da 17, problematizando temas como: falta de opções de lazer na comunidade, impacto do evento no comércio local e reclamações de moradores de bairros vizinhos. A ação policial em questão ocorreu em primeiro de dezembro de 2019 no decorrer do evento que reunia aproximadamente cinco mil pessoas, finalizando com nove mortos e doze feridos. Para atingir nosso objetivo, serão analisadas duas reportagens publicadas em dois de dezembro de 2019, um dia depois do crime: “Baile reúne 5.000 nas ruas e movimenta o comércio local”, da Folha de São Paulo (BRÊDA, 2019), e “Após mortes em baile funk de São Paulo, 'lei do silêncio' impera em Paraisópolis”, de O Globo (SCHMITT, 2019). Escolhemos apenas reportagens sobre o caso, não trabalhamos com notícias publicadas posteriormente, pois elas repetiam discussões já estabelecidas no material que compõe o corpus deste trabalho.

Como metodologia, foi usada a análise de narrativas, segundo Ricoeur (1994), possibilitando, assim, uma leitura aprofundada e a identificação de produções de sentidos. Esse autor esclarece que as narrativas podem ser cíclicas, buscando fixar os leitores nas mesmas visões sobre o mundo, ou espiraladas, quando trazem novas perspectivas, muitas vezes conflitantes, a respeito do universo social. É fundamental destacar que os narradores e os leitores têm concepções pré-construídas a respeito dos temas abordados nas reportagens. Dessa forma, os leitores podem concordar com as narrativas, reverberando os mesmos sentidos, ou discordar delas, produzindo novas significações. Os narradores podem continuar elaborando as mesmas representações ou, por um retorno dos leitores, mudar o que vem sendo representado nas páginas dos jornais.

A história de repressão ao funk em São Paulo

Inicialmente, o funk foi um ritmo que derivou do soul music – gênero musical inspirado no rhythm and blues dos Estados Unidos. Posteriormente, foi agregando algumas características do Miami bass, gênero semelhante ao electro, como as batidas intensas e as letras em inglês. Cymrot (2011) esclarece que, no Rio de Janeiro, no final da década de 80, o DJ Marlboro começou o processo de nacionalização do funk, produzindo artistas que cantavam em português e sobre a realidade das periferias cariocas. Ainda nesse período, Marlboro lançou o “Funk Brasil”, seu primeiro disco com a introdução da bateria eletrônica, consolidando o som que se conhece atualmente.  

Por influência das representações midiáticas, os bailes da zona norte do Rio foram proibidos e artistas foram perseguidos por letras que faziam apologia ao crime [1]. Em 1992, por exemplo, o empresário Rômulo Costa, responsável pela equipe de som Furacão 2000, programou uma manifestação na área central do Rio de Janeiro contrária à suspensão dos bailes. Os periódicos, ao invés de abordarem as pautas dos manifestantes, produziram sentidos que reafirmaram a periculosidade das festas e dos funkeiros, esclarece Cymrot (2011). Além disso, o autor lembra que, em 1995, os MCs (mestre de cerimônia, pessoa responsável pelo batidão) Rocinha Junior e Leonardo tiveram que depor à Divisão de Proteção à Criança e ao Adolescente (DPCA) por causa da letra do “Rap das Armas”. No mesmo período, os MCs Cidinho e Doca também tiveram que depor por pedir “paz, justiça e liberdade”, mesmo lema do Comando Vermelho (CV), em uma releitura do “Rap da Diferença”. Em 1994, os MCs William e Duda, que participaram de um álbum de Lulu Santos cantando “nós somos Borel, nós somos CV”, fazendo alusão ao “Rap do Borel”, foram perseguidos por homens do exército e da polícia por causa da incitação à violência e ao tráfico – o que não ocorreu com Lulu Santos. Inclusive, Bragança e Maciel (2020) recordam que, no decorrer de 2019, Rennan da Penha, criador do Baile da Gaiola, foi condenado pela Justiça do Rio de Janeiro a seis anos e oito meses de prisão pelo crime hipotético de associação com o tráfico de drogas.

Em São Paulo, o hip-hop foi um estilo musical bastante ouvido por alguns grupos nos anos 90, dificultando sua adesão ao funk carioca. Na realidade, o desenvolvimento do genêro na capital paulistana teve algumas semelhanças com o funk do Rio, explica Pedro (2017). Assim como os bailes funks em terras fluminenses, as festas black dos anos 70 e 80 em São Paulo se tornaram famosas graças ao trabalho árduo de equipes de dança break e rappers, que enfrentaram diversos preconceitos até se estabelecer como uma produção da periferia no cenário cultural e musical. De acordo com Scandiucci (2006), os amantes de rap, sigla que deriva de rhythm and poetry (ritmo e poesia), enfrentaram diversos preconceitos raciais e sociais, pois eram pessoas pobres, negras e periféricas que se reuniam no centro da cidade para rimar sobre violência, pobreza e racismo, temas caros às suas comunidades. A título de exemplo, Yoshinaga (2015) clarifica que o dançarino de break Nelson Triunfo era constantemente perseguido e preso por policiais devido à vadiagem, uma vez que ele dançava pela cidade e não tinha carteira assinada ou moradia fixa.

Em 1990, o funk carioca chegou ao estado de São Paulo através da região da Baixada Santista, quando começaram a aparecer casas de show, equipes de som e MCs locais. Os MCs Jorginho e Daniel produziram a música “Fubanga Macumbeira”, em 1992, provavelmente o primeiro funk paulistano, lembram Belo (2016) e Pedro (2017). No período, as letras se dividiam em dois subgêneros: o putaria, letras com conteúdo sexualmente explícito, e o proibidão, letras que falam sobre drogas, armas e facções criminosas. Nove anos depois, em 2004, o Clube Atléticos do Portuário de Santos recebeu 12 mil pessoas para um show de funk, consolidando definitivamente o estilo na região. Ainda conforme os autores, no início de 2000, o funk santista já fazia sucesso na capital, em especial na Cidade Tiradentes, onde ocorriam festas na rua, inicialmente com o som de carros, depois com palcos e sistemas sonoros.

        Aconteciam, portanto, intervenções policiais contra os bailes, assim como a tentativa do poder público em regularizar os encontros, conforme Hikiji (2015) e Pedro (2017).  A subprefeitura da região da Cidade Trindade, sob a administração de Renato Barreiro, buscou promover artistas que não cantassem sobre violência e sexo. Em conjunto com artistas locais, em 2009, Barreiro produziu o 1º Festival de Funk Canta Tiradentes, uma grande festa de rua que contou com a participação ativa dos moradores. O MC Dedê foi o ganhador do concurso cultural com um funk de sua autoria, “Jogar Bola e Estudar”. De acordo com Pedro (2017), após o festival, começaram a surgir novas produções musicais e cantores dispostos a rimar outros temas, que não fossem sexo e violência, assuntos que impossibilitavam a comercialização do trabalho. Então, esquecendo os subgêneros com conteúdos violentos e sexuais para que os funks fossem tocados em festas e rádios, começou a se estruturar um novo gênero: o funk ostentação, com canções sobre marcas de óculos, correntes de ouro, motos, carros, bebidas e objetos luxuosos. A temática ligada à ostentação levou os funkeiros a veículos midiáticos, que antes ignoravam suas existências, e a serem chamados para novas casas de show, atraindo pessoas que não gostavam dos outros subgêneros, esclarece Pedro (2017). Rocha, Pereira e Rezende (2015) elucidam que o funk ostentação é uma proposta estética, social e cultural transgressora, pois se apropria de produtos historicamente restritos a uma elite econômica e social, normalmente branca, e atribui outros sentidos ao universo da favela e jovens negros. Nessa ambivalência estética, o estilo de vida da periferia se destaca em meio às referências de luxo: o beco da quebrada chega à beira mar, os carros luxuosos se integram à paisagem da favela, o cordão de ouro reluz no pescoço do menino negro.

        Por outro lado, também foram criadas leis com o intuito de limitar os bailes de rua. Em 2017, o governador de São Paulo, Geraldo Alckmin (PSDB), regulamentou a Lei n. 16.049/2015 que proibia os ruídos de aparelhos de som instalados em veículos estacionados tanto nas vias públicas quanto em calçadas particulares. Uma tentativa evidente de prejudicar os bailes em espaços públicos, a Polícia Militar ficaria responsável por fiscalizar, realizar o auto de infração e a multa. Em 2014, o então prefeito Fernando Haddad (PT) vetou o Projeto de Lei n. 02/2013 que proibia a utilização de vias públicas para a realização de eventos não autorizados pela prefeitura, contrariando o desejo de vereadores mais conservadores. O veto de Haddad ocorreu porque ele entendia o funk como uma expressão da cultura urbana e jovem. Assim que assumiu a prefeitura em 2016, João Doria (PSDB), em um evento na Federação de Bens, Serviços e Turismo do Estado de SP, disse que “a cidade é um lixo vivo. O pancadão (baile funk) é um cancro que destrói a sociedade. O pancadão é administrado pelo PCC (Primeiro Comando da Capital)". Tanto a perspectiva de Haddad quanto a de Doria tramitam dentro da câmara de vereadores e da prefeitura da cidade de São Paulo revelando o confronto constante entre aqueles que desejam criminalizar ou legalizar os bailes de rua.

        Maffesoli (1997), ao tratar da transfiguração do político na pós-modernidade, aponta a importância de entendermos que a estética não é estática, já que implica a experiência de emoções, sentimentos, paixões comuns que se desenrolam no cotidiano urbano, levando a quebras de paradigmas formais e conservadores. A experiência comum desafiadora e mutante é própria das grandes cidades, como São Paulo bem demonstra em suas ruas, avenidas, esquinas e transportes coletivos. A cidade é “um cadinho gerador de grupos miméticos” (MAFFESOLI, 1997, p. 245), configurando-se como uma grande colagem de vontades anônimas e tribais que provoca a excitação dos sentidos.

Baile de Paraisópolis: a opção de lazer que movimenta o comércio local

Em meados do século XX, o lazer era percebido como um período que compunha o “tempo livre”, aquele que não era dedicado ao trabalho, esclarece Gomes (2004). Na época, o lazer era entendido como um feito decorrente das lutas pelos direitos trabalhistas, evidenciando que as férias e os fins de semana são reservados para o descanso, passatempo e diversão. Como consequência, as pessoas começaram a entender que as horas de lazer deveriam ser preenchidas por atividades recreativas consideradas “saudáveis” por profissionais de saúde e outros segmentos hegemônicos da época. Embora o tempo de não trabalho tenha possibilitado o acesso das classes menos favorecidas a conteúdos culturais e espaços de diversão, há também um caráter coercitivo visto que as únicas atividades oferecidas a esse segmento da população eram as consideradas “lícitas”. As atividades “ilícitas” eram praticadas pelos burgueses em suas casas grandes, confortáveis e cheias de empregados, sem a violação de direitos experimentada pelos pobres, quando praticavam as mesmas atividades.

Para Dumazedier (2000), o lazer ocorre quando os sujeitos realizam atividades por livre e espontânea vontade, seja objetivando repouso, divertimento, recreação ou entretenimento. O tempo destinado à obtenção de informação ou formação desinteressada também corresponde à ideia de lazer, já que possibilitam a participação social e o aumento da capacidade criativa após a realização de obrigações profissionais. Ao definir essa perspectiva, Dumazedier (2000) evidencia que o lazer é libertário, desinteressado, hedonístico e pessoal. É libertário uma vez que está desprovido de obrigações profissionais, familiares, sociais e é resultado da escolha pessoal. Como não está submetido a nenhuma finalidade laboral, ideológica ou utilitária, o lazer se apresenta como desinteressado. É hedonístico porque busca constantemente um estado de satisfação e bem-estar. O lazer se apresenta como pessoal, pois recebe influências das vontades ou necessidades de cada sujeito, sendo uma fuga das obrigações impostas pela sociedade.

Gomes (2004) lembra que trabalho e lazer, embora possuam características distintas, fazem parte da mesma dinâmica social e dialogam constantemente entre si, sendo necessário avaliar o dinamismo desses dois fenômenos, considerando as possíveis conexões e inconexões que eles estabelecem. A autora esclarece que na contemporaneidade nem sempre existem fronteiras fixas e absolutas entre o trabalho e o lazer, muito menos entre obrigações profissionais, familiares e sociais. Nos dias atuais, esses dois conceitos são compostos por dimensões neutras e desconectadas, como também afirma Maffesoli (2004):

É esta multiplicidade, no interior de si, que opera nas teatralidades cotidianas. É ela que permite entender as duplicidades vividas contra todos os poderes, os ardis de todos os dias contra as imposições pedagógicas, os subterfúgios em relação às certezas ideológicas, a abstenção nas grandes celebrações democráticas, a recusa de todo moralismo constrangedor. Em suma, as trapaças que o povo opõe aos que pretendem determinar o que o mundo deve (MAFFESOLI, 2004, p. 115).

As matérias aqui estudadas demonstram o poder das diversas sociabilidades nas metrópoles, a despeito das regulações legais ou políticas. Sobre lazer urbano, a reportagem “Baile reúne 5.000 nas ruas e movimenta o comércio local”, publicada pela Folha de São Paulo (BRÊDA, 2019), revela os caráteres libertário e desinteressado do baile de Paraisópolis: o pancadão não tem um organizador, muito menos apresentações fixas de DJs e MCs. Começa sempre à noite e dura até de manhã, quando continua funcionando graças às iniciativas descentralizadas dos moradores que ligam funks em caixas de som. Sábado é o dia oficial do evento, que também pode ocorrer durante a semana, especialmente quinta-feira e sexta-feira. Ele também tem os caráteres hedonístico e pessoal, isso fica evidente quando a matéria ressalta que o baile é um dos maiores de São Paulo e atrai entre 3 a 5 mil pessoas de bairros vizinhos e de outros estados, interessadas em experimentar o som e o festejo que tomam conta da Rua Ernest Renan e o seu entorno. Antes das ações policiais, a narrativa evidencia que as pessoas se sentiam felizes e realizadas por estarem ali, ouvindo música, dançando e conhecendo pessoas novas.

O periódico escutou dois frequentadores do baile. Eles contaram que algumas pessoas tinham medo de ir a Paraisópolis por causa da violência policial que ocorria todo final de semana. Os moradores, pela falta de opção de lazer na comunidade, continuavam indo à festa: “as pessoas vão mesmo assim porque o baile é a única diversão da favela. ‘a gente não tem condições de pagar uma balada’, diz” (BRÊDA, On-line, 2019). Um outro funkeiro falou especificamente sobre a atuação dos policiais: “Eles já chegaram tacando bomba. Desceram da viatura e foram pro beco da 17. Deixaram as armas na viatura, pegaram o cassetete e foram batendo no pessoal” (BRÊDA, On-line, 2019).

O baile também trouxe benefícios financeiros à comunidade, o que foi afetado pela constante presença de policiais em Paraisópolis. Os moradores do local abriram pequenos bares e restaurantes nas redondezas, mas as vendas diminuíram pelas constantes rondas da polícia: “sem o baile não entra tanto dinheiro na favela, já que grande parte do público que consome bebida, comida, estacionamento e outros serviços vem de fora do bairro, da cidade e até do estado” (BRÊDA, On-line, 2019). Nem todos os habitantes da comunidade gostam do evento, mas discordam totalmente das atitudes dos agentes de segurança e reconhecem que a prefeitura deveria criar galpões e promover os shows:

Sou totalmente contra os bailes. Só o poder público pode acabar com eles, mas precisa de alternativas. A molecada não tem onde se divertir. Não é só jogar a polícia contra os meninos [...] A polícia vem durante o dia e à noite. Jogam rojões. Os jovens saem correndo e atropelam uns aos outros [...] A prefeitura poderia criar galpões, promover shows lá. Quem sabe a secretaria da Cultura poderia ver isso. Talvez as escolas abrirem aos fins de semana [...] Ele reclama do barulho e bagunça gerados pelas festas [...] isso não vai acabar até morrer o triplo de pessoas. Daí sim tomarão providencias (BRÊDA, On-line, 2019).

Na narrativa “Morumbi sai de refúgio dos ricos e vira ‘mico’ com violência e desvalorização”, publicada pela Folha em oito de novembro de 2015, foi esclarecido que o bairro Morumbi, que era “refúgio de paulistanos ricos”, tinha experimentado a desvalorização causada por assaltos, residentes empobrecidos e proximidade com o local do baile funk, segundo ouvidos pela reportagem:

‘O senhor mora no Morumbi?’ ‘Infelizmente’, responde José Azevedo, 67, corretor de imóveis aposentado. "O sonho se tornou um pesadelo." [...] Ele conta ter sido assaltado duas vezes em dois anos; sua mulher foi roubada uma vez e, a filha, outra. ‘Tinha comprado apartamento quando era interessante, pelo bem-estar que o bairro proporcionava na época. Aí ficou populoso e entre favelas’, afirma. [...] Mesmo assim, diz Reinaldo Fincatti, engenheiro e diretor da Embraesp, há casas que ficam anos à venda, sem comprador (GRAGNANI, On-line, 2015).

Sendo assim, a narrativa produzida pela Folha de São Paulo se apresenta como espiralada (RICOEUR, 1994), pois valoriza vozes plurais a respeito do baile funk e da comunidade. Embora elas concordem ou não com a festa, todas discordam da atuação violenta da polícia paulistana. A reportagem não deu tanta visibilidade às falas de agentes de segurança, normalmente hipervalorizadas em narrativas sobre violência policial, e focou nas denúncias de pessoas que vivam a realidade do local. Ou seja, pela pluralidade de opiniões, outros sentidos sobre a festa, os frequentadores e a comunidade foram sendo construídos: o que era um lugar de crimes e violências, agora é fonte de renda, socialização e diversão.

Para Maffesoli (2014), na efervescência da festividade, o que predomina é a chance de ser visitado pelo outro e de traçar uma vivência baseada no aqui e agora. Na excitação musical existe uma mística que é capaz de gerar o sentimento de pertença e levar os membros do grupo a se considerarem como irmãos, idealizando um destino em comum. Um público de várias partes de São Paulo, unido pelo desejo de estar entre seus iguais, vai à Paraisópolis e encontra uma comunidade desprovida de aparelhos culturais e de lazer, mas que vê no baile funk uma oportunidade de praticar a alteridade. Com frequência, a polícia, que deveria garantir a experiência festiva e o bem-estar de todos, procura formas de dispersar a multidão, causando correrias, ferimentos e mortes. O Estado, portanto, ignora a relevância da festa na estruturação social.

"Casa tremeu com bombas": os relatos da violência

Com o desenvolvimento econômico e industrial, a população que vivia na cidade se modificou em relação à que vivia no campo e, como consequência, o lazer foi deixando de ser uma manifestação popular e comunitária (comum no meio rural) para se tornar uma mercadoria a ser consumida, conforme apontado por Bacha et al. (2008). Como algumas classes não tinham (e ainda não têm) condições financeiras de pagar por lazer, a rua foi um espaço de tradição para festas populares. As práticas esportivas, por exemplo, eram realizadas nas ruas ou em campos improvisados, as quadras privadas eram ocupadas somente por grupos que podiam pagar. Ou seja, era na rua, no espaço público, que a população de baixa renda realizava suas atividades lúdicas.

Segundo Bacha et al. (2008), em 1964, com a ditadura militar, o lazer se transformou porque as expressões populares e culturais nos espaços públicos foram constantemente controladas. O lazer no campo também se modificou, não só pela repressão policial, mas pelo desenvolvimento das cidades: a amizade entre vizinhos, as brincadeiras de rua e o divertimento típico do campo foi sendo substituído por áreas pagas, por lugares fechados e pelo aumento de carros, o que dificultava a utilização das vias para as atividades físicas. Inclusive, segundo os autores, com pouco dinheiro, as pessoas se divertiam dentro de casa, entre os seus familiares, seja assistindo a programas de televisão (para os que tinham condições de comprar um aparelho que era caro) ou ouvindo os programas de rádio, o que era mais acessível para muitos brasileiros.

Em 1970, os pancadões eram a opção de lazer de muitos jovens periféricos, embora fossem bastante mal representados pela mídia. De acordo com Herschmann (2005), os bailes são reprimidos pela polícia desde quando começaram no Rio de Janeiro, tendo grande influência do jornalismo, que os representava como um produto oriundo de “agentes da desordem e do caos”. Constantemente, o jovem negro de favela era representado como um personagem “maligno” e “revoltado” que precisava ser controlado por agentes de segurança. Porém, segundo o autor, os jornais não eram homogêneos, nem a sociedade, os políticos e os próprios jovens. O mesmo jornalismo que demonizava essas atividades populares, fomentando preconceitos em relação aos funkeiros, também abria espaço para a divulgação de alguns sons na televisão, na rádio e no jornal.

No caso específico do baile de Paraisópolis, os frequentadores foram controlados porque os agentes de segurança supuseram que estavam envolvidos com práticas ilícitas. Além disso, o pancadão também atrapalha o sono (e a valorização dos imóveis) dos moradores do Morumbi. Isso não implica que os habitantes da favela não se incomodassem com o som, mas sim que a polícia estava a serviço dos interesses de classes econômicas mais privilegiadas. Conforme a matéria “Após mortes em baile funk de São Paulo, 'lei do silêncio' impera em Paraisópolis” (SCHMITT, On-line, 2019), publicada pelo jornal O Globo, a Polícia Militar intensificou suas ações na comunidade em seguida do assassinato de Ronaldo Ruas, sargento que fazia parte de uma equipe de patrulhamento da favela. Ele morreu em uma troca de tiros, iniciada com a abordagem de três suspeitos. Depois disso, como disseram os moradores ouvidos pelo jornal, a polícia passou a agir de forma violenta. Especificamente sobre a ação no baile de primeiro de dezembro de 2019, as autoridades responsáveis pela Ronda Ostensiva com Apoio de Motocicletas (Rocam) esclareceram que:

Seis policiais da Ronda Ostensiva com Apoio de Motocicletas (Rocam) participavam de uma operação de contenção nos arredores do baile funk, batizada de Pancadão, quando dois suspeitos passaram numa moto e foram abordados. Os suspeitos não pararam, atiraram contra os policiais e fugiram em direção ao baile funk. Durante a perseguição, policiais e suspeitos entraram na festa com cerca de 5 mil pessoas. Ao perceber a presença dos agentes, o público do baile reagiu e atirou pedras. Foi quando a Força Tática chegou para dar reforço e lançou bombas de gás lacrimogênio e balas de borracha para dispersão. Com a correria, as pessoas foram pisoteadas (SCHMITT, On-line, 2019).

No dia do crime, o Baile do 17 recebeu um público de outras regiões de São Paulo. Chegaram ônibus de excursões vindas de Pirituba, Guarulhos e de bairros da zona norte da capital, como Limão, Jaraguá e Campo Limpo, entre outros. Além de pessoas da favela que aproveitavam a festa desde 2012, quando foi criada. Presidente da Associação de Moradores da comunidade de Paraisópolis e figura atuante na garantia de bem-estar dos residentes e visitantes, Gilson Rodrigues afirma que as mortes causadas pela polícia não foram acidentais. As autoridades policiais diziam que houve uma perseguição a dois bandidos em uma moto, mas pessoas como Rodrigues enfatizam que a abordagem foi planejada para causar cenas de pânico.

Não foi um acidente. Eles (a polícia) estão contando essa história de que houve uma perseguição a uma moto. Mas fazer uma abordagem num espaço de mais de 5 mil pessoas da forma como foi, ainda que a comunidade tenha revidado, mostra no mínimo despreparo. A dispersão do público do jeito que foi feita gerou mais violência e causou mortes — afirma Gilson Rodrigues, que é presidente da Associação de Moradores (SCHMITT, On-line, 2019).

Os vídeos gravados durante a ação policial ratificaram a versão dos moradores. As imagens mostravam que os agentes encurralaram grupos de pessoas nos becos da favela, onde ocorreu o pisoteamento. No entanto, na delegacia onde as mortes foram registradas, no 89º Distrito Policial do bairro do Morumbi, o delegado Emiliano da Silva Neto disse que não era possível ter certeza sobre a autenticidade dos vídeos. Ainda, de acordo com Neto, pelas gravações não tinha como constatar as irregularidades na ação dos policiais, justificando a opção por chamar a linha inicial de investigação de “morte suspeita”, uma forma de pôr em dúvida a integridade das vítimas.

A narrativa de O Globo se apresenta como cíclica (RICOEUR, 1994), embora contenha denúncias das vítimas e a opinião de agentes favoráveis à ação. No início do texto, as sensações das pessoas que estavam no tumulto até foram narradas, mas, no final, foi dado grande visibilidade à opinião supostamente técnica de agentes de segurança que tentavam validar a violência policial. Sem o devido tensionamento, a última fala pertencia a um delegado que não constatou irregularidades nas denúncias de moradores, uma construção narrativa que tende a legitimar a violência, representando, assim como a polícia, os mortos e feridos como suspeitos de crimes.

Considerações Finais

O baile funk é uma das poucas opções de lazer na comunidade de Paraisópolis. Na festa, durante a música, as pessoas podem beber, conhecer gente nova e dançar até o chão para esquecer as obrigações do cotidiano em grandes cidades. De fato, esse tipo de evento é capaz de atrapalhar o sono de moradores, um problema que só seria solucionado se o poder público se empenhasse em construir galpões para abrigar esses shows. Esse incômodo deveria ser amenizado pela prefeitura, especialmente pela Secretaria de Cultura, e não por agentes de segurança.

Dentro dos governos municipal e estadual de São Paulo existem dois grupos: aqueles que apoiam o funk e reconhecem sua potência cultural, e aqueles que continuam enxergando esse estilo musical como inferior e seus admiradores como criminosos em potencial. De um lado, políticos progressistas, como o antigo prefeito Fernando Haddad (PT), entendem o funk como uma expressão da cultura e dos jovens da periferia. E, do outro lado, políticos conservadores, como o antigo governador Geraldo Alckmin (PSDB), formulam leis para impedir a realização de bailes nos espaços públicos.

Nas reportagens analisadas, assim como nos ambientes onde as leis da cidade são pensadas, são produzidos sentidos que aprovam e desaprovam o baile, assim como a violência policial. Desde o surgimento dos primeiros bailes cariocas em 1980, em alguns momentos os funkeiros são representados pelos jornais como marginais e, em outros, como artistas que atraem multidões, lotando festivais e casas de show. O caso de Rennan da Penha é um grande exemplo, pois o DJ era tido como um empresário que estava à frente do Baile da Gaiola, um dos maiores do Rio de Janeiro. Depois de definido (sem provas) pela Justiça do Rio como um associado ao tráfico de drogas, tendo de cumprir mais de seis anos de encarceramento, os periódicos começaram a duvidar da fama e honestidade que ajudaram a construir.

No caso deste trabalho, por mais que a narrativa de O Globo tenha trazido a opinião de moradores favoráveis ao baile e o relato de pessoas reprimidas violentamente pela polícia, deu grande visibilidade ao parecer supostamente técnico de agentes de segurança que viam os funkeiros como uma ameaça. Na reportagem, as falas de delegados não eram tensionadas pelas denúncias dos frequentadores, tendendo, assim, a um processo de legitimação da violência cometida. Inclusive, em um momento, a narrativa punha em dúvida a idoneidade das vítimas, como se elas fossem potencialmente perigosas por estarem na festa da favela.

A Folha de São Paulo, ao contrário, deu mais destaque às denúncias de moradores e frequentadores de Paraisópolis. As pessoas ouvidas eram favoráveis e contrárias ao baile, seja por não gostarem do funk ou pelo barulho que atrapalhava o sono, e todas abominaram a violência policial. Apesar de discordar da forma como o batidão era produzido, os entrevistados reconheciam sua importância cultural e econômica para a comunidade. Além disso, a narrativa não usou parecer dos policiais para justificar a violência, sendo, portanto, mais solidária às vítimas.

Notas

[1] De forma crítica, Facina (2010, p. 4) fala sobre funk, racismo e construção ideológica que tornar crime a produção cultural de jovens favelados, pobres e negros. “Nessa construção ideológica, funkeiro, favelado, pobre e preto praticamente se tornaram sinônimos de bandido, indivíduo perigoso, capaz de despertar medo e gerar insegurança”.

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