Quantos números têm aqui?
A
utilização de dados pelo Fantástico na cobertura da Covid-19 no Brasil
Renata Caleffi1 e Ariane
Pereira2
1 Jornalista, doutora e docente do Departamento de Comunicação
Social da Universidade Estadual do Centro-Oeste e do curso de Publicidade e
Propaganda do Centro Universitário Campo Real. E-mail: recaleffi88@gmail.com.
2 Jornalista, doutora em Comunicação e Cultura e docente do curso de
Jornalismo e do Programa de Pós-Graduação em História da Unicentro
(Universidade Estadual do Centro-Oeste). E-mail:
ariane@unicentro.br.
Resumo
A população brasileira precisou aprender sobre distanciamento social e lockdown, números, taxas e índices com a chegada da pandemia de Covid-19. Lidamos, simultaneamente, com uma doença desconhecida, novas informações e fake news. Apesar do avanço do vírus ser cotidianamente explicado por informações quantitativas oficiais, tanto pelos órgãos de Saúde (Ministério, Secretarias Estaduais e Municipais) quanto pela imprensa, em decorrência do distanciamento social, as pessoas, por ficarem mais tempo em casa, buscavam informações em diversos canais de comunicação, incluindo os tradicionais (e mais confiáveis) e os que possuem confiabilidade duvidosa, como as mensagens (re)encaminhadas por grupos de WhatsApp. O governo federal, por vezes, se valia de dados equivocados e, em outras, omitia informações. Os veículos de comunicação foram encarregados de repassar as informações oficiais a um público tão grande como o brasileiro. Em meio ao caos, como os jornalistas conseguiram informar a população, que enfrentava momentos distintos, com níveis e evoluções diferentes da pandemia? Em um país continental, esta pesquisa buscou compreender a evolução da utilização do jornalismo de dados pelo programa televisivo Fantástico, entendendo a relação entre essa atividade e a construção da informação de fácil acesso à população, bem como o jornalismo como entidade responsável pelo combate à desinformação. Para cumprir com tais objetivos foi realizado um acompanhamento linear dos dados apresentados no período de 17 meses (março de 2020 a agosto de 2021), observando como o Fantástico divulgou os dados da pandemia no Brasil. O método utilizado foi a pesquisa qualitativa, pela perspectiva da análise da materialidade audiovisual.
Palavras-chave
Telejornalismo; Jornalismo de Dados; Fantástico; Covid-19; Cobertura.
How
many numbers are here?
The
released information about the Covid-19 in Brasil by Fantástico
Renata Caleffi1 e Ariane
Pereira2
1 Jornalista, doutora e docente do Departamento de Comunicação
Social da Universidade Estadual do Centro-Oeste e do curso de Publicidade e
Propaganda do Centro Universitário Campo Real. E-mail: recaleffi88@gmail.com.
2 Jornalista, doutora em Comunicação e Cultura e docente do curso de
Jornalismo e do Programa de Pós-Graduação em História da Unicentro
(Universidade Estadual do Centro-Oeste). E-mail:
ariane@unicentro.br.
Abstract
The
Brazilian population had to learn about social distancing and lockdown,
numbers, rates and indices with the arrival of the Covid-19 pandemic. We are
simultaneously dealing with an unknown disease, new information and fake news.
Although the advance of the virus is daily explained by official quantitative
information, both by the Health Agencies (Ministry, State and Municipal Health
Secretariats) and by the press, as a result of social distance, people began to
sought information, including the traditional (and more reliable), but also
those with dubious reliability, messages (re)routed by WhatsApp groups. The
Government sometimes used wrong data and, at other times, failed to present
them. The media vehicles were tasked with passing on official information to a
public as large as the Brazilian one. Amidst the chaos, how did journalists
manage to inform the population, who were facing different moments, with
different levels and evolutions of the pandemic? In a continental country, this
research sought to understand the evolution of the use of data journalism by
the television program Fantástico,
understanding the relationship between this activity and the construction of
information that is easily accessible to the population, as well as journalism
as an entity responsible for combating misinformation. In order to fulfill
these objectives, a linear follow-up of the data presented over a 17-month
period (March 2020 to August 2021) was carried out, observing how Fantástico released information about the pandemic
in Brazil. The method used was qualitative research, from the perspective of
analyzing audiovisual materiality.
Keywords
Television Journalism; Data Journalism; Fantástico; Covid-19; News Coverage.
Introdução
Número de casos, total de
mortes, média móvel, índice de transmissão, quantidade de vacinados,
porcentagem da população com imunização parcial e com a completa. Em pouco mais
de um ano de pandemia de Covid-19, a população brasileira teve que se acostumar
com informações diferentes das pautas mais tradicionais do (tele)jornalismo.
Foi como se, de repente, um turbilhão de números surgisse. E como explicar
tantos índices para uma população gigantesca? Como o jornalismo seria capaz de,
em tão pouco tempo, fazer com que as pessoas compreendessem efetivamente as
questões relacionadas aos índices da pandemia no Brasil?
A tarefa não era fácil
(ainda mais em um cenário em que a desinformação é facilmente compartilhada).
Em um país com 5.570 municípios, com mais de 211 milhões de habitantes,
conseguir reunir tantos dados diariamente se tornava ainda mais complexa, porém
fundamental para o exercício do jornalismo no cenário pandêmico. A apresentação
diária de números exigiu o estabelecimento de uma força-tarefa para a
quantificação e as métricas que incluíssem a população desde o Monte do Caburaí
até o Arroio do Chuí.
Se não bastassem tantos
elementos, preocupações e comparações aos quais quase ninguém estava habituado,
a cobertura da pandemia teve outro agravante: os dados e informações
desencontrados divulgados pelo Ministério da Saúde em determinados momentos —
algo que prejudicava a cobertura noticiosa e a transmissão dos fatos para a
população em geral, auxiliando ainda mais nos elementos de desinformação
generalizada e fomentando a dúvida sobre a pandemia no Brasil.
A atitude de divulgar
dados em horários não compatíveis com o da imprensa, bem como de não publicar
todas as informações do dia, tiveram como resultado prático a formação de um
consórcio de veículos de imprensa, atuante na união de dados de todas as
Secretarias de Estado de Saúde para possível divulgação em programas
jornalísticos. A saída encontrada pela mídia reflete a necessidade do uso
desses elementos para a cobertura de uma pandemia de nível global como a de
Covid-19.
A união do jornalismo e
dos dados não é recente. O telejornalismo sempre utilizou recursos numéricos em
sua cobertura cotidiana. No entanto, a notícia, dessa vez, está intimamente
ligada aos números. Afinal, eram/são eles que permitiam/permitem a explicação
dos fenômenos ligados à pandemia e o entendimento se estávamos/estamos melhores
ou piores no combate à doença. Desse
modo, questiona-se: o telejornalismo conseguiu interpretar dados e fornecer
elementos para que a população em geral compreendesse (ou não) a evolução da
pandemia no Brasil? Ou o telejornalismo apenas utilizou dados sem avaliar os
problemas sociais relatados pelos mesmos?
Para responder as questões
acerca do uso dos dados pelo Fantástico, tem-se como objetivo
compreender como foram utilizados os números da Covid-19 pela apresentação
televisiva e se houve uma evolução na interpretação e compreensão sobre esse
tipo de uso no telejornalismo. Optou-se por analisar a revista eletrônica,
especificamente, porque é um programa que reúne as informações condensadas de
toda a semana, possibilitando uma análise comparativa da evolução dos dados.
Para conseguir cumprir com
os objetivos estabelecidos lançaremos mão, como método, da Análise da
Materialidade Audiovisual, apresentada por Coutinho (2016) e que tem como mote
a observação e a avaliação das características dos produtos audiovisuais, como
a unidade de texto, o som, a imagem, o tempo e a edição. Portanto, busca-se
compreender o jornalismo audiovisual produzido pelo Fantástico e a
produção de sentido feito pelos dados da pandemia inseridos no telejornalismo.
Além disso, o objetivo é observar como se deu a materialidade do audiovisual
apresentado pela revista eletrônica semanal para contar dados mais relevantes
da Pandemia de Covid-19 no país. Para isso, dividiu-se a pesquisa em três
eixos: 1) Tempo; 2) Texto + Som; 3) Imagem + edição.
Todas as categorias são
observadas a partir das teorias do Jornalismo Guiado por Dados, a fim de
responder como a revista eletrônica apresentou tantos dados aos telespectadores
brasileiros e se, ao mesmo tempo, conseguiu expô-los de modo a serem
compreendidos mais facilmente pela população. Para que a análise seja melhor
assimilada, visualizam-se as informações a partir da linha temporal da própria
pandemia, com início em março de 2020 e seguindo até a evolução da vacinação,
já em agosto de 2021.
Jornalismo, telejornalismo e os dados
Sousa (2008) afirma que o
jornalismo é uma representação discursiva da vida humana em uma ampla
diversidade de vivências e ideias. Desse modo, é uma atividade que faz parte do
cotidiano de todos, especialmente nos tempos atuais, em que é difícil pensar em
alguém sobrevivendo sem informação.
Durante a pandemia de
Covid-19, conteúdos precisavam ser produzidos e divulgados em tempo recorde,
apesar da necessidade de cumprimento do distanciamento social. O trabalho do
jornalista (e do jornalismo) foi intensificado pela necessidade de informação e
de combate à desinformação, e isso em meio a muita dúvida e incerteza perante
os novos caminhos a serem seguidos.
De todo modo, a apuração,
checagem de informações, levantamento de dados e mensuração de resultados não
são novidades no universo jornalístico. Trabalhar com informações quantitativas
também não é atividade recente, embora cada vez mais especializada. Exemplos dessa
quantificação podem ser vistos ao mensurar a inflação, fazer análises
comparativas entre processos e apresentar taxas de desemprego ou de natalidade,
que fazem, há muito, parte da construção das notícias em todos os meios de
comunicação.
A evolução das
tecnologias, sem dúvidas, alterou as formas de produção jornalística — seja na
forma ou no próprio conteúdo. Exatamente porque, com mais dados e amplo acesso
às informações (antes restritas[1]), houve uma ampliação da utilização dessa
imensa base de dados, possibilitando um cruzamento estatístico e a construção
de notícias exclusivamente pela perspectiva numérica. Com a pandemia, tais
processos foram acelerados e o uso de dados teve um caminho fundamental para o
processamento das informações mais importantes sobre o tema.
Träsel (2014) trata o Jornalismo Guiado por
Dados como toda a atividade jornalística que utiliza esse tipo de informação
como principal elemento para a construção da notícia. Ou seja, com ou sem
fontes ou personagens, os dados é que conduzem o fato e levam o leitor ao
conteúdo principal, que é a informação. Para Barbosa e Torres (2012), há mais
de 20 funções dos dados dentro do jornalismo, sendo as principais:
1) Integrar os processos de apuração,
composição, documentação e edição dos conteúdos; 2) Orientar e apoiar o
processo de apuração, coleta, e contextualização dos conteúdos; 3) Regular o
sistema de categorização e qualificação das distintas fontes jornalísticas,
indicando a relevância das mesmas; 4) Habilitar o uso de metadados para análise
de informações e extração de conhecimento, por meio de técnicas estatísticas ou
métodos de visualização e exploração como o data mining. Também
assegurando a aplicação da técnica do tagging;
e 5) Garantir a flexibilidade combinatória e o relacionamento entre os
conteúdos (BARBOSA; TORRES, 2012, p. 3).
Os dados, dispostos em
várias plataformas, podem ser condensados por softwares ou, até mesmo,
manualmente — embora seja muito mais difícil mensurar numericamente e colher
estatísticas com base no cruzamento das informações de modo não automatizado.
Por isso mesmo, o jornalismo de dados, de acordo com Mancini e Vasconcellos
(2016), exige uma profissionalização específica dos jornalistas, para que esses
sejam capazes de compreender como decupar tantas informações disponíveis,
especialmente porque o cruzamento de grande quantidade de dados com eficiência
exige tempo e um processamento mais específico. Ao mesmo tempo, há necessidade
do conhecimento técnico de softwares disponíveis no mercado para saber
como e o que perguntar para tais dados.
Santos (2015) lembra que,
apesar de parecer ser ilimitada e disponível a qualquer tempo, a memória
digital para dados não o é. Muitas vezes, ela é superficial e estruturalmente
excludente, dificultando a coleta da informação, que tem concorrência dentro do
próprio sistema. Ou seja, em meio a tantas informações disponíveis, fica
difícil saber o que buscar e como usar os dados. As técnicas utilizadas na
apuração e quantificação dos dados coletados ajudam e ampliam a capacidade do
jornalismo na investigação de acontecimentos sociais, especificamente, conforme
aponta Träsel (2014), fiscalizando as instituições em nome do interesse
público.
Quando se pensa pelo olhar
do jornalismo em base de dados, observa-se esta como um grande conteúdo,
repleto de valores e números. Para serem compreendidos, eles precisam ser
observados a partir de perspectivas, questões, indagações e, com base em tais
reflexões e olhares, tem-se a busca para encontrar seus metadados e
subconteúdos ali dispostos.
Isso significa que apenas
apresentar os dados não é suficiente para que as pessoas (no caso do
telejornalismo, os telespectadores) consigam compreender os fenômenos, muito
menos estabelecer relações de causalidade entre os dados e a sua própria vida.
Ao mesmo tempo, “a automatização dos processos repetitivos de análise de
grandes volumes de dados têm demonstrado um potencial de oportunidades em
termos de pesquisa na área da comunicação” (SANTOS, 2015, p. 19).
Outro fator importante
para essa compreensão de jornalistas que irão trabalhar com os dados é o fato
de que a partir dos números coletados, é necessário gerar possibilidades de
visualização ao espectador/leitor. Isso exige, para além das estratégias de
compreensão de informações, também a incorporação de infografias para a sua
apresentação. Afinal, conforme explicam Barbosa e Torres (2012), há duas
possibilidades para a utilização dos dados no jornalismo: a back-end e a
front-end. Enquanto a primeira foca na estrutura dos dados e nas
ferramentas disponíveis, a segunda está mais preocupada com a parte visível
(interface) dos mesmos.
Quando o assunto é
jornalismo guiado por dados, uma das soluções que vêm sendo utilizadas para que
a informação efetivamente chegue ao público, está na visualização dos dados
extraídos.
O design, até pouco tempo
atrás, estava baseado apenas em informações divulgadas com uso da infografia na
representação da linguagem visual, ou seja, em aspectos singulares e que faziam
poucas complementações de conteúdo à informação. A utilização de infografia é
uma forma de comunicação e informação bem relevante e presente no cotidiano do
jornalismo porque aborda diferentes aspectos dos dados, com a utilização dos
números em conjunto com a linguagem visual — e isso seria o ideal para o design
da notícia.
Este não tem como objetivo
apenas deixar o conteúdo esteticamente mais bonito, mas mediar informações
jornalísticas com planejamento e edição, organizando-as e deixando-as mais
claras, narrando a notícia de uma maneira que os consumidores compreendam o
conteúdo. Assim sendo, Gruszynski (2011) destaca que o design deve considerar
três etapas na construção das notícias: identificar (os dados), (como) informar
e promover a elaboração de informações. Essas características possibilitam a
execução de um jornalismo mais atraente e, ao mesmo tempo, capaz de informar
com sucesso diferentes públicos.
Gráficos, infográficos e a informação no Fantástico
Quanto mais dados
disponíveis aos jornalistas, maior será a credibilidade creditada ao conteúdo,
exatamente porque, muitas vezes, a comprovação numérica abre possibilidades de
interpretações adjacentes. A utilização dos dados funciona como uma forma de
comprovar aquilo que o repórter está explicando, trazendo informação. No
telejornalismo isso não é diferente, especialmente porque elementos mais
difíceis conseguem ser apresentados de maneira mais lúdica a telespectadores
distintos, com dificuldades e graus de compreensão da notícia muito díspares.
Esses dados geralmente são
acompanhados de uma estética mais agradável, diferentemente de como se
encontram nas bases de dados. Quando soltos nos sistemas de coleta, os dados
não têm qualquer valor estético. Tabelas, estruturas, planilhas e bases, na
verdade, carregam um significado limitado, mas, ao mesmo tempo, têm potencial
imenso para conexões relacionadas (Barbosa,
2007, p. 70).
A imagem 1 é referente ao
dia 05/04/2020, quando os dados começaram a fazer parte da programação do Fantástico
na cobertura da pandemia de Covid-19. O texto é lido pelos apresentadores e os
dados apresentados em forma de inserts na parte inferior da tela, sem
qualquer presença de barras especiais ou gráficos/infográficos interativos.
Imagem
1
- Apenas dados.
Fonte:
Captura de tela do Fantástico (05 abr. 2020). Disponível em:
<https://bit.ly/3nU50Y6>.
No Eixo de análise 1,
notou-se uma evolução significativa na linha temporal dedicada à pandemia no
programa. Os primeiros dados, apresentados na Imagem 1, foram apresentados em
menos de um minuto.
O texto e o som,
referentes ao Eixo 2, também têm pouco conteúdo, informando apenas o que já
está descrito na tela: Número de mortos e número de casos tanto no Brasil como
no mundo, sem nenhuma comparação auxiliar ou índices de aumento ou redução da
evolução da pandemia. A reportagem exibida na sequência da cabeça lida pelos
apresentadores trata do número de casos confirmados pelo Ministério da Saúde,
sem a utilização de videografismos para a apresentação dos dados.
No Eixo 3, o Fantástico
não se aprofunda nem os apresenta de
modo a facilitar graficamente a informação dos números. A narrativa dos dados
do início da pandemia não permite explorações adjacentes nem uma compreensão
melhorada/facilitada da narrativa exposta. Presença efetiva apenas na reportagem,
que é construída pela declaração de autoridades e especialistas em saúde.
Aliada aos demais eixos, a
informação apresentada na tela referente aos dados não se torna eficiente na
comunicação dos mesmos aos telespectadores, exatamente porque não permite que
ele avance na compreensão de estatísticas ou dos dados complementares que
poderiam ter feito parte da produção do conteúdo exibido pelo programa. Como o
Jornalismo em Base de Dados está inserido no compartilhamento, o espaço
dedicado a quem assiste para intervir na narrativa é nulo, porque não permite a
inserção nem exploração de novas propostas, modificando o curso das narrativas
jornalísticas convencionais.
As imagens 2 e 3 dizem
respeito à evolução da narrativa dos dados da pandemia, mas não feita pelos
apresentadores, e sim por repórteres. As imagens são dos dias 26/04/2020 e
24/05/2020.
Imagem 2 - Dados e repórteres.
Fonte: Captura de tela do Fantástico
(26 abr. 2020). Disponível em: <https://bit.ly/3q5DhXa>.
Imagem 3 - Dados e repórteres.
Fonte: Captura de tela do Fantástico
(24 mai. 2020). Disponível em: <https://bit.ly/3wfxbV5>.
Com a pauta sendo
apresentada pelos repórteres, o tempo destinado aos números sobe. Ambas as
reportagens têm mais de oito minutos. E o tempo é apenas um dos índices que
aumenta na construção da notícia. Isso permite aos telespectadores uma
compreensão maior sobre o tema, pois é possível fazer conexões temporais da
pandemia (avanço, número de casos, taxa de isolamento), bem como ter mais
informações complementares, visualizadas a partir das estruturas de dados. A
partir dessas imagens, portanto, é possível incorporar à narrativa mais dados e
elas agregam mais eficiência na tarefa de levar o telespectador a compreensão
dos números.
Mais tempo dedicado aos
dados, no entanto, não significou uma possível comparação desses materiais para
todos os brasileiros. Nas duas reportagens, os repórteres estão apenas em São
Paulo e fazem uma análise comparativa dos números da pandemia apenas nesses
locais, apesar de que há índices relevantes em outros estados brasileiros.
Embora a revista eletrônica seja exibida nacionalmente, há uma exclusão
territorial da maioria dos brasileiros.
No combate à
desinformação, o Fantástico, nesse período, incrementa outras
estratégias de divulgação de informação referente à pandemia. Uma é o podcast
Isso é Fantástico, em seu episódio 36, intitulado “Coronavírus: podemos
confiar nos números?”[2]. Durante 32 minutos, o apresentador Murilo Salviano
conversou com a repórter Sônia Bridi, a fim de desvendar os dados levantados
sobre a pandemia. Essa é uma estratégia baseada nos conceitos do jornalismo de
base de dados, que aposta na/instrui a recirculação da informação. Mostra-se
aqui a união entre as mídias, em um processo convergente de circulação e
recirculação dos conteúdos jornalísticos, em diferentes formatos, feitos por
diferentes profissionais, disponibilizados para grupos distintos, como uma
prática fomentada pelos novos hábitos de consumo, impactados diretamente pelos
novos canais.
Canavilhas (2013) aponta
que o cenário multimídia promove a união entre os meios, que não mais
concorrem, mas são complementares na lógica de produção e distribuição de
conteúdos, “conformando processos e produtos, marcado pela horizontalidade nos
fluxos de produção, edição e distribuição dos conteúdos, o que resulta num continuum
multimídia de cariz dinâmico” (CANAVILHAS, 2013, p. 33).
A evolução na apresentação
dos dados pelo Fantástico não é apenas uma escolha editorial, mas marcada
por uma decisão governamental que atinge diretamente a imprensa. A imagem 4 é
do dia 14/06/2020, quando entra em cena o Consórcio dos Veículos de Imprensa.
Imagem 4 - Consórcio de Saúde como fonte de
dados.
Fonte: Captura de tela do Fantástico
(14 jun. 2020). Disponível em: <https://bit.ly/3CIy3DT>.
É nessa data (14 de junho)
que começam os primeiros gráficos exclusivos da pandemia na programação, que
ganha uma espécie de “editoria” que permanece até o momento de finalização
deste artigo (setembro de 2021). Apesar disso, a notícia ainda é apenas lida e
o tempo dedicado aos números é menor que um minuto. Essa mudança se deu em
decorrência de decisões políticas. No início da pandemia de Covid-19 no Brasil,
o Ministério da Saúde fazia balanços diários sobre números de contaminados e
dados sobre transmissibilidade e mortes. As informações eram divulgadas,
diariamente, às 17 horas, com pequenos atrasos eventualmente.
No mês de abril de 2020,
com a saída do ministro Luiz Henrique Mandetta do comando da Saúde, o
Ministério fez a primeira alteração nos horários de divulgação dos números. A
partir de então, na gestão de Nelson Teich, passou-se a repassar os números
oficiais da pandemia no Brasil somente às 19 horas. Sob protestos, muitos
veículos de comunicação ficaram de mãos atadas diante de tal determinação,
visto o deadline dos veículos impressos, por exemplo.
Quando o terceiro Ministro
da Saúde (Eduardo Pazuello) assumiu, a divulgação já estava próxima das 22
horas. Antes disso, o balanço também teve boletins liberados às 20 horas e, em
momentos críticos, não ocorria a difusão completa dos números. Sobre a
incongruência destes e de informações sobre a realidade da pandemia no Brasil,
o Ministério da Saúde passou vários dias informando erroneamente os dados.
Em resposta às críticas, o
presidente Jair Bolsonaro manifestou os motivos pelos quais as informações não
seriam divulgadas: “acabou a matéria do Jornal Nacional”. A exclusão dessas,
exatamente as mais importantes do ponto de vista qualitativo — já que deveriam
basear as decisões de flexibilização das medidas preventivas de combate à
pandemia —, foi acompanhada da não divulgação do histórico da doença e dos
dados consolidados de todo o período, que também foram retirados do site
do Ministério.
Como resposta, a imprensa
precisou se unir. Assim, os veículos G1, O Globo, Extra, O
Estado de S. Paulo, Folha de S. Paulo e UOL formaram uma
parceria para buscar informações sobre a pandemia diretamente com as
Secretarias Estaduais de Saúde dos 26 Estados e do Distrito Federal. O
Consórcio dos Veículos de Imprensa foi implantado com o objetivo de apresentar
dados e informações, antes disponíveis para jornalistas e população, em
horários determinados e pelos veículos que fazem parte do mesmo.
Os diretores das empresas
de comunicação que fazem parte do consórcio, no lançamento do mesmo,
expressaram suas opiniões sobre o cerceamento dos dados pelo governo federal —
sendo eles: Ali Kamel (diretor-geral da TV Globo); Sérgio Dávila
(diretor de Redação da Folha); Alan Gripp (diretor de Redação de O
Globo); Murilo Garavello (diretor de Conteúdo do UOL); João Caminoto
(diretor de Jornalismo do Grupo Estado); e Humberto Tziolas (diretor de
Redação do Extra).
A nuvem de palavras
disposta na imagem 5, traz as citações ditas por esses diretores citados
durante a entrevista de lançamento do Consórcio de Saúde.
Imagem 5 - Nuvem de palavras com afirmações
dos diretores do Consórcio de Saúde.
Fonte: Elaborada pelas autoras, com
informações do G1, O Globo, Extra, Estadão, Folha e UOL (2020).
Destaca-se que, em todos
os trechos divulgados pelo Consórcio, há presença da palavra Jornalismo, dados,
pandemia e sociedade, reiterando o papel da imprensa brasileira em realizar uma
ação que o governo deixou de cumprir.
A nuvem de palavras
auxilia ainda a compreender exatamente o papel da imprensa na exposição dos
dados da pandemia. A importância do jornalismo é reiterada por todos, a fim de
colocá-lo como a base democrática que iria combater a desinformação. E os dados
caminham lado a lado como essa ponte entre a informação e a função do
jornalismo, em uma lógica de necessidade e mutualidade.
A imagem 4 mostra a
alternância na cobertura dos dados exatamente no momento em que o Consórcio
entra em cena. Mas é na sequência, a partir da imagem 6, que tem-se um melhor
aproveitamento dos números disponíveis — exatamente porque esses dados agora
fazem parte do banco de dados da imprensa e podem ser mensurados de modos
diferentes.
Imagem 6 - Dados e infográficos comparativos.
https://bit.ly/33zZlQp
https://bit.ly/3GLordm
Fonte: Captura de tela do Fantástico
(12 jul. 2020). Disponível em: <https://bit.ly/3EJsZQk>.
A possibilidade de ter
dados em um ambiente próprio, sendo que esses podem ser tratados com mais
precisão pelos jornalistas, fornece, ao mesmo tempo, melhor informação aos
espectadores da revista eletrônica, que passam a receber mais elementos e
durante mais tempo. São dedicados, durante os meses seguintes, em média três
minutos para apresentação dos dados, que passam a ser acompanhados de
infográficos.
A Imagem 6 demonstra a
evolução no uso de dados pelo Fantástico a partir do mês de julho de
2020 (quatro meses após o início da pandemia no Brasil e da, consequente,
utilização de dados referentes à ela na cobertura jornalística). Há outras
novidades no tratamento dos números: comparação da média móvel (14 dias entre
os dados); mortes por estado (inserindo, pela primeira vez, todos do Brasil); e
a comparação entre a taxa de mortes, o índice de transmissão e o número de
casos confirmados.
Os estados são inseridos
porque os dados fornecidos são feitos pelas Secretarias Estaduais de Saúde, ou
seja, há mais possibilidades de comparação entre as informações levantadas e a
confirmação dos dados apurados. Tem-se aqui a territorialização da informação.
Com os elementos
disponíveis a todos de modo tão latente quanto a pandemia, o Fantástico
precisa dar legitimidade aos seus dados e combater, na mesma velocidade e
intensidade, a desinformação e as fake news, exatamente em um processo
de embate com o Governo Federal. Essa ruptura com os dados governamentais
proporciona aos veículos de informação um olhar mais direcionado para o que são
esses números, relacionando-os e explicando o cenário da pandemia em todo o
Brasil.
Enquanto no primeiro
momento da pandemia o Fantástico apresentou apenas dados, a partir desse
momento entra em cena a informação baseada neles, ou seja, cria-se uma
representação acerca do valor, da quantidade e da apuração do dado. Mais do que
isso, tem-se a incorporação do que é trabalhar com jornalismo de dados, a
partir de uma organização lógica dos números, interações entre as estatísticas
e uma possível compreensão mais lógica, capaz de criar dinâmicas
representativas e únicas, interagindo com os espectadores de cada estado do
país, estabelecendo causas, consequências e atitudes dos cidadãos diante dos
números.
O início da vacinação no
Brasil é inserido na compreensão do que é a pandemia e complementa as
informações da editoria no Fantástico. A imagem 7 inclui a visualização
da vacinação.
Imagem 7 - Início da vacinação.
Fonte: Captura de tela do Fantástico
(31 jan. 2021). Disponível em: <https://bit.ly/3q0TMnj>.
Ter dados disponíveis e em
múltiplas possibilidades facilitou o trabalho das análises para o Fantástico.
Desde o momento em que o Consórcio passou a divulgar os números da pandemia no
Brasil, a revista eletrônica passou a dar à cobertura maior abrangência. A
utilização desses elementos é um reflexo do que é o jornalismo hoje, mais
dinâmico, com necessidade de ter mais confiabilidade nos processos e também com
incorporação de práticas do jornalismo digital em outras plataformas. A
construção, além de combater a desinformação e as fake news, também
possibilita a mediação entre telejornalismo e telespectadores, em processos
convergentes, interativos e multiplataformas.
No texto da imagem 7, o
espectador é convidado a entrar na plataforma G1 Coronavírus[3], em que são
disponibilizadas informações específicas de cidades, estados e países sobre a
pandemia. A interatividade gráfica da plataforma digital complementa a
narrativa construída pelo Fantástico. Um processo típico da convergência
digital que, para Jenkins (2009, p. 30), é o lugar onde “as velhas e novas
mídias colidem, onde a mídia corporativa e mídia alternativa se cruzam, onde o
poder do produtor de mídia e o poder do consumidor interagem de maneiras
imprevisíveis”.
Os consumidores, que agora
circulam em diferentes canais, estão mais ativos nos processos e não mais agem
somente como agentes passivos, que apenas consomem a informação veiculada no
telejornal. Eles avaliam, produzem, fazem circular por recomendação,
disponibilizam links, etc. E tudo isso auxilia na construção do fazer
jornalístico, que faz parte de uma nova realidade de consumo e experiências tanto
para usuários quanto para profissionais. Quando convida o telespectador a
flanar por esses espaços, o Fantástico possibilita uma interação mais
efetiva com os dados, que é uma característica fundamental para esse formato.
Ao invés de ir a campo
coletar a informação, o jornalista de telas as levanta e as transforma em uma
realidade mais palpável aos consumidores.
A objetividade passa a ser compreendida como a
aplicação de técnicas das ciências sociais e da informática às rotinas
produtivas das redações, no intuito de substituir o jornalismo declaratório,
baseado em fontes humanas, por reportagens cujos fatos são derivados de base de
dados. Essa noção renovada de objetividade também se assenta sobre
procedimentos de transparência e difusão do conhecimento sobre as técnicas de
Jornalismo Guiado por Dados nas redações e para o público em geral, a partir de
um espírito de cooperativismo cujas raízes remetem ao movimento do Software
Livre e Open Source (TRÄSEL, 2014, p. 15).
Dados esses que não
terminaram com o início da vacinação, mas são fomentados e apresentam ainda
mais a necessidade da objetividade do jornalismo e a confirmação dos conteúdos
oficiais. A imagem 8 é de julho de 2021 e reflete a complexidade dos dados da
vacinação no país, bem como a preocupação em proporcionar a relação de que a
vacinação completa é necessária para combater a pandemia.
Imagem 8 - Avanço da 2ª Dose da vacinação.
https://bit.ly/3oZQAr1
Fonte: Captura de tela do Fantástico
(11 jul. 2021). Disponível em: <https://bit.ly/2ZRkL9z>.
Sabe-se que a sociedade
moderna está em constante evolução e que os processos tecnológicos invadiram o
cotidiano também do público do audiovisual. As tendências mercadológicas
precisam estar adaptadas a esse novo cenário e isso inclui a disponibilização de
informações de modo mais criativo e atrativo. Com os dados não é diferente,
especialmente porque eles auxiliaram, ao longo da pandemia, a contribuir com a
informação correta e coerente, desmentindo fake news e transformando
números em decisões políticas que podem ter salvado vidas.
A vacinação, último dado
apresentado pela revista eletrônica, é resultado dessa compreensão ao longo dos
últimos meses. O que começou apenas com dados em caracteres cresceu e se
confirmou como uma editoria específica e necessária. A materialidade do
audiovisual se afirma como uma necessidade dos telespectadores, com poder e
influência de compreender as formas de comunicação mediadas pelas telas.
E, nesse sentido, as
possibilidades dos dados extraídos pelos próprios veículos de comunicação podem
estar só no começo da sua utilização pelo telejornalismo — não mais como eram
no começo, mas com uma interação que conversa com os espectadores e
apresentam-se como possibilidades amplas e convergentes.
Considerações Finais
As funções do jornalismo
ultrapassam as fronteiras que delimitam seu canal. Mas a profissão deve seguir
sempre, conforme Meditsch (1997), um papel inerente de comunicar, intrínseco ao
fazer jornalístico. Cabe ao jornalismo ser o disseminador de conhecimentos
produzidos por outras instituições sociais. Isso porque o processo de
conhecimento exige que o indivíduo tenha equipamentos cognitivos para
interpretações para as quais ele nem sempre está preparado. Cabe ao jornalista
(e ao jornalismo) considerar essa ideia prévia e ser ainda mais presente na
sociedade. Não à toa, a essência desse campo segue, há muito tempo, sendo
chegar ao seu público e informar.
O jornalismo sempre
utilizou os dados como relevantes para a construção das informações. O que hoje
temos como jornalismo moderno, inclusive, adota perspectivas numéricas para
combater a desinformação e as fake news. É a confirmação de que o
jornalista é o transmissor dos fatos apurados e com grau de confiabilidade
alta, diante de um país que sofre com os conteúdos gerados por boots e
impulsionados por grupos políticos.
Se a quantificação
transforma os dados em números aleatórios aos telespectadores, a análise dos
mesmos índices é que consegue transformá-los em conhecimento. Os quantitativos
da Covid-19 no Fantástico, a partir da visualização e do design da
informação, bem como da análise da materialidade audiovisual demonstram como o
conhecimento foi sendo aprimorado pelo jornalismo dia após dia. Especialmente
porque os dados informaram, durante mais de 18 meses, o andamento da pandemia
no mundo inteiro, mas especialmente no Brasil. Enquanto no início se focava em
um país continental, pouco a pouco as territorialidades e individualidades
foram sendo incorporadas, ao ponto de termos hoje os números que auxiliam a
contar as histórias.
Os dados, que passaram a
ser quantificados e extraídos pelos veículos de comunicação, reforçaram a
importância dos mesmos e do jornalismo diante de uma realidade que duvidava das
decisões políticas de administrações municipais e estaduais, frente ao cenário
contraditório na esfera federal. Ou seja, na mesma velocidade em que subiam os
números de infectados e mortos, foi o jornalismo que auxiliou a população a
compreender a verdade sobre a pandemia no país.
Não são gráficos soltos,
com informações apenas dos índices, eles contam histórias complementares sobre
a pandemia no Brasil. São as novas possibilidades da utilização dos dados que
possibilitou um reflexo macro do que estava acontecendo no país, melhorando a
informação e possibilitando mais conteúdos, para além dos números da pandemia.
O avanço da compreensão
dos dados como objeto importante ao telejornalismo mudou e avançou muito na
cobertura do Fantástico. Foi essa evolução que permitiu que muitas
pessoas compreendessem efetivamente os impactos da pandemia em todo o país.
Mediados por novas tecnologias, processos e formas de convívio, presenciamos
uma forma de comunicação diferente, vista pela perspectiva dos dados. E esse
pode ser um dos novos normais na construção narrativa audiovisual.
Notas
[1] Tem-se como exemplo da abertura de dados os
portais da transparência, que facilitaram a checagem da informação pelos
jornalistas e população em geral.
[2] Disponível em:
<https://glo.bo/2YhBDpQ>. Acesso em: 06 set. 2021.
[3] Disponível em: <https://glo.bo/3GNUZEw>.
Acesso em: 06 set. 2021.
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