A virada afetiva na comunicação e na aprendizagem:

mediação radical, lúdico e cognição atuada

Fátima Regis1, José Messias2, Letícia Perani3, Raquel Timponi4 e Alessandra Maia5

Resumo

O artigo apresenta as bases conceituais para uma articulação entre tecnologias e humanos no contexto dos processos comunicacionais e cognitivos contemporâneos. Desde 2007, os autores investigam as competências cognitivas desenvolvidas nas vinculações com mídias digitais e produtos culturais. Os achados dessas investigações (REGIS et al., 2009) revelaram que as competências da comunicação contemporânea não se reduzem ao conceito clássico de cognição como processo analítico e intelectual, uma vez que envolvem, de maneira integrada, corpo, afetos e sociabilidade. A importância do corpo e das intensidades afetivas nas práticas de comunicação digital levantou a questão sobre de que modo corpo, tecnologia e afetos (fatores não conscientes) interferem nos processos mentais conscientes. Para contribuir com essa questão, o presente artigo propõe uma base teórica — denominada “virada afetiva na comunicação” — que se sustenta sobre as contribuições da cognição atuada, da teoria dos afetos e do lúdico. Essa base teórica foi formulada a partir de reflexões teóricas e pesquisas empíricas em escolas que permitiram observar a centralidade do corpo e dos afetos nessas vinculações cotidianas com produtos culturais multimídia e concluir que essa virada afetiva da comunicação contemporânea requer a construção de metodologias ativas de ensino-aprendizagem na educação formal e não formal.

Palavras-chave

Mediação Radical; Ensino-Aprendizagem; Cognição Atuada; Afetos; Lúdico.

1 Doutora em Comunicação e Cultura (ECO/UFRJ). Professora do PPGCOM-UERJ. E-mail: fatima.oliveira@uerj.br.

2 Doutor em Comunicação e Cultura (ECO/UFRJ). Professor do PPGCOM-UFMA-Imperatriz. E-mail: jose.cmsf@ufma.br.

3 Doutora em Comunicação (PPGCOM-UERJ). Professora Adjunta do Instituto de Artes e Design – UFJF. E-mail: leticia.perani@ufjf.br.

4 Doutora em Comunicação e Cultura (ECO/UFRJ). Professora do Mestrado Profissional em Tecnologias, Comunicação e Educação (PPGCE/UFU). E-mail: raquel.timponi@gmail.com.

5 Doutora em Comunicação (PPGCOM/UERJ), pesquisadora da Diretoria de Análise de Políticas Públicas (FGV/DAPP). E-mail: alemontmaia@gmail.com. 

The affective turn in communication and learning:

radical mediation, ludic and enaction

Fátima Regis1, José Messias2, Letícia Perani3, Raquel Timponi4 and Alessandra Maia5

Abstract

The paper presents the conceptual bases for an articulation between technologies and humans in the context of contemporary communicational and cognitive processes. Since 2007, the authors have investigated the cognitive competences developed in attachments with digital media and cultural products. The findings of these investigations (REGIS et al., 2009) revealed that the competences of contemporary communication are not reduced to the classic concept of cognition as a merely analytical and intellectual process, as they involve, in an integrated manner, the body, affects and sociability. The importance of the body and affective intensities in digital communication practices raised the question of how body, technology and affects (non-conscious factors) interfere in conscious mental processes. To contribute to this question, this article proposes a theoretical basis — called the affective turn in communication — which is based on the contributions of enaction, affect theory and ludic theory. This theoretical basis was conceived on theoretical reflections and empirical research in schools that allowed us to observe the centrality of the body and affects in these daily attachments with media cultural products and conclude that this affective turn of contemporary communication requires the construction of active teaching and learning methodologies in formal and non-formal education.

Keywords

Radical Mediation; Teaching and learning; Enaction; Affects; Ludic Theory.

1 Doutora em Comunicação e Cultura (ECO/UFRJ). Professora do PPGCOM-UERJ. E-mail: fatima.oliveira@uerj.br.

2 Doutor em Comunicação e Cultura (ECO/UFRJ). Professor do PPGCOM-UFMA-Imperatriz. E-mail: jose.cmsf@ufma.br.

3 Doutora em Comunicação (PPGCOM-UERJ). Professora Adjunta do Instituto de Artes e Design – UFJF. E-mail: leticia.perani@ufjf.br.

4 Doutora em Comunicação e Cultura (ECO/UFRJ). Professora do Mestrado Profissional em Tecnologias, Comunicação e Educação (PPGCE/UFU). E-mail: raquel.timponi@gmail.com.

5 Doutora em Comunicação (PPGCOM/UERJ), pesquisadora da Diretoria de Análise de Políticas Públicas (FGV/DAPP). E-mail: alemontmaia@gmail.com. 

Introdução

Para a mediação radical, todos os corpos (humanos ou não-humanos) são fundamentalmente meios e a própria vida é uma forma de mediação [1]. (GRUSIN, 2015, p. 132) (tradução nossa)

A proliferação acelerada das tecnologias e das mídias digitais tem revolucionado as formas de aprender, transformando as questões sobre ensino-aprendizagem em um dos principais desafios da sociedade contemporânea. Torna-se mister aprofundar o debate sobre os fundamentos teóricos dos processos cognitivos mediados pelos aparatos tecnológicos para estabelecer práticas e metodologias de ensino-aprendizagem à altura dos desafios contemporâneos.

Desde 2007, os pesquisadores da rede de pesquisa em Comunicação, Lúdico, Afeto e Cognição (CLAC) investigam as competências cognitivas desenvolvidas nas vinculações dos jovens com mídias digitais e produtos culturais (games, televisão, cinema, livros, quadrinhos, aplicativos). Em pesquisas anteriores (REGIS et al., 2009), além de produzir revisões teóricas sistemáticas que embasaram os conceitos de competências e cognição, realizou-se uma investigação empírica que consistiu em uma análise comparativa entre produtos culturais (seriados de TV e videogames) produzidos da década de 1980 até 2010.

Concluiu-se que, para atuar na cultura digital, os jovens precisavam aprender ou aprimorar um grande espectro de competências: linguísticas, textuais e interpretativas; lógicas e matemáticas; afetivas e sociais; criativas; perceptivas, táteis, proprioceptivas e outras habilidades motoras e sensoriais. Classificamos essas competências em cinco categorias interdependentes entre si: textuais, lógicas, sensoriais, sociais e criativas (REGIS, 2008). Além da pesquisa com seriados e games, outras, voltadas para produtos de mídia-educação (TIMPONI, 2015), foram aplicadas na área do ensino-aprendizagem e dos multiletramentos. Esses estudos evidenciaram que as competências envolvidas nas práticas de comunicação digital não se reduzem ao conceito clássico de cognição como processo analítico e intelectual, pois envolvem habilidades afetivas, sociais, corporais (perceptivas, proprioceptivas) e contextuais, incluindo agentes humanos e não humanos.

A importância de habilidades sensoriais e afetivas nas práticas de comunicação digital levantou a questão sobre como fatores não conscientes — por exemplo, corpo, tecnologia e afetos — interferem nos processos mentais conscientes. Ao buscarmos respostas em diferentes abordagens sobre letramentos midiáticos (BUCKINGHAM, 2005; HOBBS, 2011), observamos uma lacuna no que se refere ao papel desses fatores não conscientes nas operações cognitivas conscientes. Essa lacuna é percebida também pelos educadores Ferrés e Piscitelli (2015), que ponderam:

Entre os educadores há maior predisposição a incorporar as alterações produzidas pela revolução tecnológica aos processos de ensino-aprendizagem do que a assumir as contribuições feitas pela revolução neurobiológica. [...] As mudanças estudadas pela neurociência estão relacionadas, sobretudo, com a influência que exercem os processos emotivos e inconscientes sobre a mente consciente. Na prática da educação midiática dificilmente é dada atenção a esses processos. É insuficiente, portanto, uma educação midiática que se concentre exclusivamente em processos conscientes, porque agora sabemos que ‘a consciência só poderá ser compreendida se forem estudados os processos não conscientes que a tornam possível’, nas palavras do neurobiólogo LeDoux (1999: 32). (FERRÉS; PISCITELLI, 2015, p. 7) (grifo nosso)

Encontramos nas ciências cognitivas (em particular, as correntes da cognição atuada e corporificada) um campo profícuo para o aprofundamento dessa questão. Por meio de pesquisas teóricas e experimentais, os cientistas cognitivos articulam os campos do sociocultural, da tecnologia e da neurobiologia, propondo que o processo cognitivo é corporificado e contextualizado. Por essa perspectiva, o processo cognitivo é concreto e relacional e opera a partir da interação dinâmica e complexa entre elementos biológicos, psicológicos e sociotécnicos (VARELA, 1990; OLIVEIRA, 2003). Isso significa que a cognição, além dos aspectos racionais e lógicos, inclui afetos, sociabilidades, sensorialidades e atua junto ao meio e aos objetos técnicos.

No campo da organização dos saberes e subjetividades (epistemologia e ontologia), essa abordagem teórica e metodológica se alinha com os preceitos da transdisciplinaridade (D’AMARAL, 1995) e da complexidade (PRIGOGINE; STENGERS, 1991) e converge com teorias como: Teoria Ator-Rede (LATOUR, 2005); afetos/virada afetiva (MASSUMI, 2002; AHMED, 2004); individuação/ontogênese (SIMONDON, 2020; HUI, 2016); neomaterialismo e estudos feministas contemporâneos (BRAIDOTTI, 2018; HARAWAY, 2009). Essas abordagens têm em comum problematizar as fronteiras entre sujeito e objeto, corpo e mente, indivíduo e meio, orgânico e maquínico, lúdico e seriedade, razão e afeto.

A partir dos achados de pesquisas anteriores, alinhados com os estudos citados acima, este texto tem como objetivo apresentar uma base teórica que colabore para fundamentar os processos comunicativos e cognitivos contemporâneos, e para inspirar metodologias ativas para o ensino-aprendizagem. O embasamento teórico, definido neste artigo como virada afetiva na comunicação e na aprendizagem, se fundamenta nos conceitos: cognição atuada (VARELA, 1990), que amplia o escopo do processo cognitivo, compreendendo-o como corporificado, contextualizado e inventivo (VARELA, 1990; KASTRUP, 2007); mediação radical/afetividade, como um plano relacional que articula e constitui os vínculos sociais e técnicos de modo não consciente e fundante, envolvendo agentes humanos e não humanos (MASSUMI, 2002; GRUSIN, 2010, 2015) e ludicidade, como um conjunto de práticas intrínsecas aos processos de exploração e de mediação das sociabilidades e vinculações cotidianas (REGIS; PERANI; MAIA, 2020).

Essa proposta de base teórica sustentada nos três conceitos descritos acima vem sendo construída pelos autores a partir de pesquisas empíricas e revisões teóricas realizadas desde 2014 e publicadas em artigos anteriores (TIMPONI; REGIS, 2017; REGIS; PERANI; MAIA, 2020). As pesquisas empíricas foram conduzidas por meio de oficinas aplicadas com base em metodologias ativas em instituições de educação básica e superior, junto a alunos e professores da rede pública e privada de ensino fundamental I e II nas cidades do Rio de Janeiro, em 2018, e Barra Mansa (ver TIMPONI, 2015; TIMPONI; REGIS, 2017); em disciplinas do curso de graduação em Comunicação (Uerj); e em oficinas oferecidas aos estudantes de graduação do Instituto de Artes e Design (UFJF), em 2017 e 2018.

Os procedimentos metodológicos das atividades empíricas, resumidamente, foram: contato com os agentes responsáveis pela coordenação pedagógica das instituições para buscar professores e turmas que tinham interesse e disponibilidade para trabalhar o conteúdo curricular de forma lúdica; apresentação de opções de métodos e possibilidades de atividades que dialoguem com o conteúdo programático, permitindo a escolha e/ou sugestão de dinâmicas apropriadas à realidade do grupo e, em conjunto, a definição da temática e das ações de cada encontro.

Para ilustrar como esses procedimentos permitem observar que as competências necessárias para as práticas de comunicação contemporânea não se reduzem ao conceito clássico de cognição como processo intelectual e analítico, podemos citar como exemplo a atividade de Media training realizada durante a oficina com a Escola Municipal Madrid (Rio de Janeiro), desafiando os alunos a atuarem como “treinadores dos atletas” das Olimpíadas de 2016. Foram exercitadas habilidades multimodais, de modo a considerar um conjunto de competências requeridas, como desenvoltura verbal, expressão corporal, trabalho em equipe e naturalidade de exposição diante das câmeras. Esses elementos representam competências do universo afetivo, lúdico e de uma cognição atuada e são uma aplicação do conceito da virada afetiva da comunicação, o que se diferencia do conceito de cognição tradicional — que dá destaque apenas às habilidades superiores da mente. Nessa atividade, os alunos que mais sobressaíram foram aqueles com habilidades socioafetivas que não obtinham bom aproveitamento em avaliações do ensino tradicional (focadas em habilidades lógicas, analíticas e de memória).

Após compreendermos o modo de aplicação da metodologia empírica, a partir das experiências já realizadas, podemos detalhar duas questões teóricas: 1) uma breve discussão para caracterizar a atuação de fatores como corpo, afetos e algoritmos nas dinâmicas cognitivas da comunicação contemporânea e os desafios postos para o ensino-aprendizagem; e 2), apresentamos os conceitos de cognição atuada, mediação radical/afetividade e lúdico, propostos aqui como pilares da base teórica da virada afetiva que visa colaborar para a compreensão dos fundamentos dessas dinâmicas.

Corpos, afetos e algoritmos na mediação entre comunicação e aprendizagem

Herdamos da cultura ocidental, fortemente centrada na razão, a ideia de que o conhecimento verdadeiro busca a essência do objeto: aquilo que permanece independente de contexto imediato ou situação específica. Isso solidificou a noção de que os processos cognitivos são produzidos quase que exclusivamente pelo universo das letras e do pensamento lógico e analítico. Assim, tradicionalmente costumamos denominar como cognitivas apenas as habilidades de raciocínio lógico, memória, linguagens e capacidade analítica.

Essa perspectiva modela os processos de ensino-aprendizagem da educação formal que, desse modo, são majoritariamente centrados no acúmulo e transmissão de conhecimentos, visando ao desenvolvimento do pensamento crítico sobre os conteúdos estudados. Referenciados pela cultura letrada, esses conteúdos baseiam-se em abstrações isoladas, representações sobre a essência dos objetos de conhecimento que buscam generalizar os saberes, tornando-os independentes de situações concretas. A experiência da escola formal contrasta fortemente com a dos jovens em suas práticas da vida cotidiana e, em particular, com sua experiência na cultura midiática.

O sistema de mídias contemporâneo é marcado pela conectividade de redes e plataformas digitais que se apoiam em práticas de comunicação multimodal, convergência e processamento algorítmico. Por suas características intrínsecas, o digital “remediou” (BOLTER; GRUSIN, 2000) as linguagens (literárias, pictóricas, radiofônicas, fotográficas, cinematográficas e televisivas), os recursos e as modalidades perceptivas das mídias e tecnologias de comunicação anteriores. No acoplamento com os aparatos digitais (computadores, tablets, videogames, celulares), os jovens manipulam imagens, textos, sons, texturas e gadgets (mouses, joysticks e outros) que exploram a sensorialidade humana. Essa é a característica de multimodalidade do digital que, ao sensibilizar diferentes trilhas do aparato sensório-motor, estimula o uso de diversos sentidos, ressaltando o papel do corpo, do lúdico e de intensidades afetivas no processo comunicacional e nas competências contemporâneas. Assim, os textos, as texturas e as intensidades do digital conectados por inúmeros dispositivos móveis geram uma ambientação e envolvem agentes humanos e não humanos no processo de comunicação.

Já o fenômeno das plataformas digitais é um dos principais lócus para estudar como os fatores não conscientes atuam sobre os processos cognitivos e comunicacionais conscientes. Poell, Nieborg, Van Dijck (2020) explicam que a plataformização é a disseminação de infraestruturas tecnológicas e modelos de negócios das plataformas nos diferentes setores econômicos e esferas da vida. Envolve também a reorganização de práticas e imaginários culturais em torno das mesmas. As interações mediadas pelas plataformas são organizadas por meio de processos sobre os quais as pessoas não compreendem os princípios éticos, legais e práticos, tais como: coleta sistemática de dados pessoais, processamento algorítmico, monetização e circulação de dados. Como tudo e todos estão conectados, coleta-se não apenas dados demográficos ou de perfil, mas também metadados comportamentais. As plataformas transformam praticamente todas as instâncias de interação humana em dados: conteúdos assistidos, conversas, amizades, namoro, crenças, sentimentos, ranqueamentos, pagamentos, pesquisas e outras. Assim, afetos e comportamentos podem ser intensificados pelo modo de operar dos algoritmos e softwares de inteligência artificial que amplificam, por meio de feedback, crenças arraigadas, preconceitos, comportamentos e afetos, minando processos democráticos de debate público de ideias e cristalizando opiniões radicais.

Estudos recentes (MURROCK et al., 2018; SANGALANG; OPHIR; CAPPELLA, 2019) demonstram que há uma primazia de afeto e afetações sensoriais nos modos como as pessoas interagem com conteúdos de desinformação, fake news e discursos de ódio na mídia. A algoritmização dos processos socioculturais gera bolhas sociais, intensificando humores afetivos, desinformação e ideias preconcebidas. Esses humores afetivos são gerados primeiramente como intensidades corporais, fatores não conscientes. Nesse processo fica evidente o que Grusin (2015, p. 125) denomina de mediação radical, ou seja, além de operar como modos de produção de conhecimento, o acoplamento entre indivíduos e mídias gera moods afetivos, individuais e coletivos entre pessoas e objetos técnicos.

A comunicação contemporânea potencializa modos de comunicação e de aprendizado pluridimensionais, para além da linguagem verbal e da cultura letrada. E requer aprendizados contextualizados e processuais, irredutíveis ao processo de transmissão do saber da pedagogia tradicional. Para entender, por exemplo, o modo como algoritmos podem afetar nossas decisões, é imprescindível que se entenda as agências humanas e não humanas no processo de plataformização da cultura e o modo como os algoritmos amplificam as intensidades afetivas “individuais”, de forma a produzir humores com impactos sociais, políticos e econômicos muito mais abrangentes.

Portanto, as características de multimodalidade, conectividade e algoritmização da cultura digital contemporânea exigem que repensemos os conceitos de cognição e mediação e avaliemos o papel do lúdico e dos afetos nos processos cognitivos e comunicacionais contemporâneos.

A virada afetiva na comunicação: proposta de base teórica para os processos comunicacionais e cognitivos na cultura contemporânea

Cognição atuada: corpo, contexto e invenção

As ciências cognitivas foram criadas na década de 1930 com o propósito de formular uma teoria geral do funcionamento da mente (DUPUY, 1996), reunindo pesquisadores de todas as áreas do conhecimento: as ciências humanas, sociais, exatas e biomédicas. Construídas a partir do diálogo dos diversos campos de saber, as ciências cognitivas nascem como ciências híbridas e só podem ser compreendidas a partir de lentes transdisciplinares, uma abordagem de investigação científica que entende que o real é hipercomplexo, não redutível aos métodos deterministas e reducionistas da ciência clássica (D’AMARAL, 1995), mas sim do diálogo entre elas. A visão transdisciplinar busca assim superar as dicotomias entre sujeito e objeto, mente e corpo, realismo e idealismo, natural e artificial, interior e exterior.  Por essa perspectiva, os processos mentais se caracterizam como um fenômeno complexo, emergindo das interações dinâmicas entre o corpo/cérebro e o meio ambiente (pessoas e objetos técnicos ao redor).

Pesquisadores oriundos de vários campos das ciências cognitivas contestam a tese de que a cognição é abstrata e descorporificada. Eles explicam que a razão se desenvolveu a partir do saber mais antigo e potente de nosso aparato sensório-motor. Como explicam Lakoff e Johnson:

A razão não é descorporificada, como a tradição amplamente defendeu, mas surge da natureza de nossos cérebros, corpos e experiência corporal [...]. A razão é evolutiva, na medida em que a razão abstrata se baseia e faz uso de formas de percepção e inferência motora presente em animais ‘inferiores’. [...] A razão não é totalmente consciente, mas principalmente não consciente. [...] A razão não é desapaixonada, mas emocionalmente engajada [2]. (LAKOFF; JOHNSON, 1999, p. 4) (tradução nossa)

Encontramos no conceito de cognição atuada (ou enação), de Francisco Varela (1990), a perspectiva teórica adequada para entender as afetações entre as mídias e as plataformas digitais e a subjetividade contemporânea. Varela explica o modo como inteligência e razão se constituem a partir de nossos sistemas biológicos e da história evolutiva da espécie, associando-as à nossa história cultural. A cognição atuada implica que o processo cognitivo é intrínseco ao corpo em sua articulação com nossa história biológica, cultural e psicológica.

Como explicam Varela, Thompson e Rosch (2001), a cognição não representa o mundo, antes, ela inventa mundos. A escolha do termo atuação (do inglês enact) visa destacar que a mente e o mundo “atuam” simultaneamente um sobre o outro, se modulando e se inventando. Mente e mundo se codeterminam, se coinventam. A invenção de mundos não é criação do ambiente externo por um sujeito cognoscente, mas o processo pelo qual emergem a mente e o ambiente externo:

Propomos como nome o termo enação para salientar a convicção crescente de que a cognição não é a representação de um mundo preestabelecido elaborada por uma mente predefinida, mas é antes a atuação de um mundo e de uma mente com base numa história da variedade das ações que um ser executa no mundo. (VARELA; THOMPSON; ROSCH, 2001, p. 32)

Na cognição atuada, a comunicação inicia pelo meio. Os polos emissor e receptor não estão previamente constituídos. É a partir do processo de comunicação que os polos que não estavam em contato, são postos em conexão e aí se constituem como interlocutores, são definidos enquanto tal a partir do processo” (OLIVEIRA, 2003, p. 165). Assim, é a partir do processo de mediação que os interlocutores emergem, atuam e se codeterminam.

Mediação na virada afetiva

A ideia de mediação enquanto instância sociotécnica trata da mobilização de afetos no acoplamento entre organismos, objetos técnicos e meio. No contexto específico das práticas de comunicação e mídias digitais que interessam a esta proposta de conceito teórico, a mediação seria análoga ao processo que o filósofo Gilbert Simondon (2020) entende como individuação e/ou ontogênese, o próprio desenvolvimento, ou melhor, a emergência de um determinado acoplamento relacional e contextual. Essa perspectiva difere do que se entende costumeiramente nas teorias da comunicação: a mediação enquanto “encontro” de sujeitos e objetos já constituídos, por exemplo, um espectador e sua relação com certo conteúdo audiovisual. Por isso, Richard Grusin afirma que:

Mediação não deveria ser entendida como algo que se coloca entre sujeitos, objetos, actantes ou entidades já performadas, mas como o processo, ação ou evento que gera ou promove as condições para a emergência de sujeitos e objetos, a individuação de entidades no mundo. Mediação não é o contrário de imediação [immediacy] mas é ela mesma imediata/instantânea. Ela [mediação] é o nome da instantaneidade desse ‘lugar do meio’ na qual estamos todos vivendo e nos movendo [3]. (GRUSIN, 2015, p. 129) (tradução nossa) (grifo nosso)

Na tentativa de diferenciar sua visão do conceito de outras já empregadas nos chamados Media Studies, Richard Grusin mobiliza diferentes vertentes teórico-filosóficas anglófonas que convergem com esta crítica a uma visão disciplinar do pensamento. Daí, sua opção por chamá-la de mediação radical. Conforme o trecho destacado, o autor emprega referências tanto das ciências cognitivas e teorias da complexidade como da filosofia de Gilbert Simondon (2020). De acordo com o Simondon, a ideia de mediação consistiria no próprio “princípio da individuação”, uma comunicação entre “ordens de grandeza” heterogêneas e potencialmente díspares sem necessariamente chegar a um equilíbrio, mas apenas uma “metaestabilidade”.

O filósofo francês prefere pensar o processo pelo qual uma pretensa unidade se forma, seja ela a mídia ou o sujeito-espectador-jogador — ou até a mente, os objetos técnicos e a física que foram seus objetos de estudo (SIMONDON, 2020) —, do que trabalhar com essas entidades já formuladas na qual não poderíamos entender a natureza de sua associação. Ou seja, a mediação ocorre justamente entre essas ordens de grandeza como em seu exemplo da fotossíntese tomada como individuação. Segundo Simondon (2020), esse seria o encontro entre uma ordem de grandeza cósmica, a energia da luz solar absorvida por um organismo vivo (plantas, mas também fungos) que alimenta toda uma coletividade de entidades numa ordem de grandeza inframolecular que habitam e/ou dependem desse organismo vivo. Numa perspectiva moderna, que confere agência tendo como referencial o vivente, a planta ou fungo deveria ser considerado o indivíduo, mas nesse rearranjo ela se torna meio.

Richard Grusin se apropria dessa linha de raciocínio ao reformular seu próprio conceito de immediacy, do seu trabalho prévio com Jay David Bolter, Remediation (2000). Lá, os autores desenvolveram a ideia de imediação transparente (transparent immediacy) como um movimento em que as mídias tentavam disfarçar ou até apagar os traços de sua existência técnica, enquanto meio, como forma de emular/simular um contato “direto” com o real. Explorando os significados do termo immediacy em inglês, o autor dá ao conceito um sentido de corporificação/corporeidade que remete à mediação afetiva de uma realidade emergente e não apenas uma propriedade perceptiva visual (um efeito de transparência) de um objeto. Por isso, Grusin afirma:

Entender a mediação radical como afetiva ou experiencial (vinda da experiência) em vez de estritamente visual significa pensar sobre nossa experiência afetiva de mediação imediata como aquilo que é sentido, corporificado, próximo – não distante de nós e, portanto, não iluminado ou retratado, mas experienciado por nós enquanto criaturas humanas e não humanas vivas e corporificadas [...]. O núcleo da mediação radical é sua imanência, a própria imediação – não a imediação transparente que constitui/forma a metade da dupla lógica da remediação, mas a imediação corporificada do evento de mediação [4]. (GRUSIN, 2015, p. 132) (tradução nossa)

A questão dessa instantaneidade da mediação aparece justamente quando Grusin desloca seu argumento para uma posição não antropocêntrica, fundamental para nossa perspectiva. Interessado na mediação como processo que ocorre para além dos limites da consciência humana, sua redefinição de imediação dialoga diretamente com o que Massumi entende como virtual, justamente o campo de atuação dos afetos. Para o autor canadense, “algo que acontece rápido demais para ter acontecido, na realidade, é virtual” [5] (MASSUMI, 2002, p. 30) (tradução nossa).

Residindo em uma chave bergsoniana propositalmente paradoxal do virtual-atual, segundo Massumi (2002), os afetos são caracterizados como intensidades não prefiguradas, diferentes das emoções e dos sentimentos que apresentam formações sociolinguísticas definidas. Sendo a emoção um estágio posterior por se tratar justamente dessa forma sentida e já articulada, o afeto enquanto intensidade proporciona a este estudo abordar as articulações lúdicas possíveis nas vinculações entre jovens e mídias digitais. Articulações estas que muitas vezes não são estudadas por conta de uma visão centrada em um modelo de ensino-aprendizagem focado na transmissão de conteúdo para uma mente racional descorporificada. Por isso, a dimensão dos afetos e suas interconexões virtuais não se referem a um processo de tomada de decisão de um sujeito racional, escolhendo entre determinados produtos e não outros. Porém, referem-se a como os elementos lúdicos agem sobre ele modulando suas relações com as práticas de comunicação, explorando certas afinidades e até inventando outras.

Isso abrange tanto as funções sensório-motoras associadas e acionadas pelos jogos digitais, por exemplo, que são muito mais rápidas do que a mente consciente consegue “registrar”, como a coordenação mão-olho da dexteridade dos botões ou também — no nível abstrato de uma razão corporificada — o “estalo” da afetação de um conteúdo informacional ou apreciação de uma produção artística/cultural. Mesmo estes, segundo Massumi e outros autores das ciências cognitivas, não são apreendidos por uma razão intelectualizada e descorporificada.

No que concerne aos actantes humanos, a estética se torna o campo de interesse para também investigar a dimensão dos afetos em suas acepções midiáticas. Sem esta perspectiva, não seria possível traduzir a organização complexa da individuação para o consumo de mídia e suas formas inventivas e emergentes de apropriação/desvio, justamente o potencial que buscamos explorar nesta proposta de base teórica para o ensino-aprendizagem. A emergência de conexões heterogêneas, improváveis e até impensáveis (para o nível da consciência humana) no âmbito de produtos culturais como memes e sua propagação viral, a centralidade dos videogames na indústria global do entretenimento, em especial o fenômeno dos e-sports, carregam a marca do que Massumi (2002) denomina de autonomia dos afetos. Isso significa que eles são parte integrante de uma dinâmica cognitivamente atuada que segue uma lógica de codeterminação entre agências não humanas/sociotécnicas.

Por esse motivo, entender nossa relação com as mídias digitais de maneira relacional e contextual traz a necessidade de redefinir conceitos utilizados tradicionalmente no contexto das ciências sociais. Nesta mesma direção, a ideia de vinculação (attachments) presente na obra de Antoine Hennion (2010) seria uma tentativa de reformular noções como a de “gosto” que remetem justamente a um sujeito conhecedor e ao objeto de seu “olhar”. Embora não seja um autor propriamente dos estudos da cognição e nem da teoria dos afetos, o sociólogo francês segue uma perspectiva similar, e coloca em primeiro plano a agência dos afetos que mobilizam o fã de música (a quem ele chama de amador – aquele que ama) a adotar certas práticas em vez de outras e o modo como as faz.

Gosto é uma prática corpórea que é, ao mesmo tempo, coletiva e instrumentada, regulada por métodos que são incessantemente discutidos, e que se está centrada sobre a percepção apropriada de efeitos incertos. Por isso, preferimos falar sobre vinculações [attachments]. Essa bela palavra [vinculação] destrói a oposição que acentua o dualismo da palavra “gosto”, entre uma série de causas que vem de fora e o “hic et nunc” [aqui e agora] da situação e da interação. No que se refere aos fãs de música, há menos uma ênfase em rótulos e mais em estados, menos em autodeclaração e mais nas atividades das pessoas; a respeito dos objetos que motivam o gosto, seu direito de resposta e sua habilidade de coproduzir o que está acontecendo, o que surge do contato permanece aberto [6]. (HENNION, 2010, p. 26)

Denominar este processo de vinculação descrito por Hennion como de mediação radical, tal qual Grusin, coloca justamente o problema dos afetos em primeiro lugar. Sendo assim, cabe ao pesquisador recontar de maneira corporificada esses processos muitas vezes tidos como dados, tal como a aprendizagem, as relações sociais e o consumo de mídias. É preciso olhar para os objetos para conseguir apontar a dimensão dessa corporificação, porque atribuir das agências é relacional (LATOUR, 2005; SIMONDON, 2020). Isso, contudo, não exclui a natureza contextual e corporificada da fruição de mídias e produtos culturais predominantemente analógicos, como a literatura, a experiência do cinema e das artes cênicas, ou da audibilidade do rádio, apenas que a dimensão da corporificação e da emergência pode ser mais facilmente rastreada nas mídias proprioceptivas possibilitadas pela tecnologia digital. Além do elemento do afeto e da mediação radical, é preciso abordar outro viés importante para o processo da aprendizagem: o aspecto lúdico.

Lúdico e aprendizagem

Se há um conceito ligado a uma aprendizagem contextualizada e criativa, ele pode ser resumido na palavra lúdico. Esta expressão foi originada a partir do termo latino ludus, que era, em seu uso original na Roma Antiga, também sinônimo de escola, pois o jogo era usado para a aprendizagem de diversas atividades do cotidiano, como as simulações de guerra (BROUGÈRE, 1998). Para Jean Chateau (1987), a atividade lúdica possui em si um conjunto de regras e padrões que, no momento do jogo, não são contestadas. Quando participamos do jogo, aceitamos implicitamente o universo que é criado por ele, ou seja, seu conjunto de regras e modos de ação, muitas vezes em detrimento do conjunto de hábitos e crenças do indivíduo. Assim, estar e agir no universo do jogo é deixar-se cercar por um mundo de possibilidades, e esta vivência proativa proporcionada pelo lúdico pode implicar na exploração, apropriação e/ou ressignificação de hábitos, habilidades e informações, o que pode ser útil para a apreensão de novas ideias e experiências pelos indivíduos que participam destas atividades, não só como realizadores da ação, mas também como seus espectadores.

Os jogos mobilizam conhecimentos a partir de sua própria natureza constitutiva: ao participarmos de qualquer atividade lúdica, passamos a aceitar implicitamente o seu círculo mágico, ou seja, as regras e modos de ação que são próprios desse jogo, muitas vezes adotados em detrimento do conjunto de hábitos e crenças do jogador. Estar e agir neste tipo de atividade é sempre estar cercado por um mundo de possibilidades de aquisição de conhecimento, e são nestas possibilidades que reside o potencial educativo do lúdico, pois as regras e conteúdos desenvolvidos para um determinado jogo incluem em si informações importantes para a construção de saberes. Desta forma, por que não podemos utilizar conteúdos de fundo educacional dentro da experiência de jogo?

A partir de pesquisas anteriores (BETTOCCHI; KLIMICK; PERANI, 2020), estabelecemos que existem três momentos comunicacionais nas atividades lúdicas que podem ser explorados em uma ação educativa:

• O momento do compreender, pois devemos apreender regras, jogabilidade e contextos de jogo;

• O momento do aplicar, pois devemos usar os nossos novos conhecimentos para agir sobre o mundo ficcional da atividade lúdica;

• O momento do disseminar, pois devemos comunicar nossas descobertas, aprendizados, habilidades e experiências dentro do jogo para outros jogadores.

Esse processo de compreender, aplicar, disseminar é contínuo, pois as experiências de jogo só acontecem em movimento, ou seja, a partir de uma ação, e este processo opera por meio de (re)apropriações e novas criações mentais e/ou físicas, gerando um sentido de experiência significativa. Assim, podemos dizer que o lúdico é, como toda atividade que aciona nossas competências cognitivas, uma experiência essencialmente corporificada, seja pelo uso do nosso próprio corpo para agir, seja pela interação com objetos técnicos que expandem nossas possibilidades de ação. A materialidade do lúdico se dá exatamente pelo fato de ser algo que nunca se encontra em potência, mas sim em ação — ou seja, sem o agir humano, as regras de um jogo são apenas ideias soltas, os acessórios e peças são apenas meros materiais, o espaço/tempo não se torna separado do cotidiano.

A ação lúdica está sempre construindo relações entre os seres participantes (sejam eles físicos ou digitalizados), corporificando relacionamentos que são mediados a partir das experiências constituídas nestas atividades, realizadas a partir dos contextos criados pelas regras que são compartilhadas entre os actantes humanos e não humanos do jogo. Por serem ações contextualizadas, as atividades lúdicas podem se tornar uma mediação entre os seres e o seu universo, servindo como uma instância para possíveis aprendizagens, utilizando-se das três características principais destacadas pelos teóricos do lúdico, conforme apontamos em pesquisas anteriores (SOARES, 2008; REGIS; PERANI, 2010):

1) Prazer: o prazer é componente essencial para o engajamento do jogador nas possibilidades proporcionadas por estas atividades; se o lúdico é uma atividade tão arrebatadora, que pode provocar até mesmo mudanças de comportamentos e ideias (muitas vezes necessárias para iniciar uma experiência de jogo), muito se deve ao prazer que é proporcionado por ele, resultado de reações neuroquímicas ativadas pelo agir lúdico;

2) Inventividade/transformação de ideias: matemáticos estudiosos do lúdico como Leibniz e Pascal (apud DUFLO, 1999) argumentam que o jogo seria um lugar de criações, no qual a mente humana estaria livre para experimentações, para o crescimento de novas práticas e ideias. Se o lúdico precisa de uma ação contextualizada, que é experienciada em uma dimensão espaço-temporal diferente do cotidiano, que envolve a adoção de regras para o seu funcionamento, ele necessariamente deve ser um espaço de engenhosidade, de criatividade;

3) Exploração: talvez esse seja o aspecto lúdico mais interessante para os estudiosos da área, já que a exploração pode aliar todas as características anteriores para demonstrá-lo em toda sua potencialidade. Brougère (1998) nos explica que o lúdico é um ambiente de explorações e descobertas, que permitem buscar informações sobre o meio, contribuindo para inúmeras aprendizagens. Porém, o pedagogo francês faz questão de ressaltar as diferenças entre o comportamento exploratório e o lúdico: “[...] na exploração fazemos a pergunta ‘o que este objeto pode fazer?’ e, no jogo, ‘o que eu posso fazer com este objeto?’” (BROUGÈRE, 1998, p. 190), demonstrando que os jogos podem servir como forma de compreensão e domínio de uma dada conjuntura, habilidades que posteriormente são aproveitadas para a produção de situações distintas, diferentes das iniciais.

Portanto, devido a estas características peculiares do lúdico — a necessidade de uma ação transformadora na nossa interação com estas atividades, que leva à assimilação e ao compartilhamento de hábitos e padrões de comportamento dentro do seu espaço-tempo particular — fazem com que estas ações sejam consideradas como construtoras de saberes diversos de uma forma prazerosa, inventiva e exploratória, podendo até ser utilizadas para finalidades consideradas “mais sérias”, ou “mais relevantes”, como a aprendizagem formal.

Considerações Finais

Ao partimos das pesquisas teóricas e empíricas realizadas pela rede CLAC, constatamos a centralidade do corpo nas vinculações cotidianas com os produtos midiáticos e observamos que as competências necessárias para as práticas de comunicação contemporânea não se reduzem ao conceito clássico de cognição como processo intelectual e analítico, visto que envolvem habilidades relacionadas às experiências afetivas, corporais, sociais e de contexto, nas quais agentes humanos e não humanos são mutuamente ativos. Denominamos essa base como virada afetiva na comunicação e na aprendizagem, sustentada pelos conceitos: cognição atuada, mediação radical/afeto e ludicidade.

Ao analisarmos estudos recentes sobre práticas comunicacionais e cognitivas contemporâneas, os preceitos da virada afetiva parecem estar em todos os lugares. Os estudos de MURROCK et al. (2018) demonstram que há primazia de afeto e de mediação radical (propagação algorítmica dos humores afetivos) nos modos como as pessoas interagem com conteúdos de desinformação e discursos de ódio na mídia. As pesquisas de MORAVEC; MINAS; DENNIS (2018) relatam que as pessoas acreditam no que “querem acreditar”, ainda que cognitivamente não tenha sentido algum, indicando os modos pelos quais as intensidades orgânicas e afetivas atuam sobre a mente consciente. A pesquisadora Suely Fragoso (2022) demonstra a prevalência do uso de práticas lúdicas e de comunicação multimodal nas campanhas de desinformação e teorias conspiratórias no Brasil. Em todos esses estudos observamos a primazia do lúdico, do afeto/mediação radical e da cognição atuada em práticas comunicacionais contemporâneas.

Os achados da discussão sobre a virada afetiva na comunicação e na aprendizagem contribuem para o desenvolvimento de metodologias ativas para o ensino-aprendizagem e enfatizam a sua urgência para assuntos relacionados à plataformização da cultura e da ação cidadã em rede, de forma a compreender a centralidade dos afetos como base de diversos mecanismos comunicacionais.

Notas

[1] “For radical mediation, all bodies (whether human or nonhuman) are fundamentally media and life itself is a form of mediation”. (GRUSIN, 2015, p. 132)

[2] “Reason is not disembodied, as the tradition has largely held, but arises from the nature of our brains, bodies, and body experience […]. Reason is evolutionary, in that abstract reason builds on and makes use of forms of perceptual and motor inference present in “lower” animals. […] Reason is not completely conscious, but mostly unconscious. […] Reason is not dispassionate, but emotionally engaged”. (LAKOFF; JOHNSON, 1999, p. 4)

[3] “Mediation should be understood not as standing between preformed subjects, objects, actants, or entities but as the process, action, or event that generates or provides the conditions for the emergence of subjects and objects, for the individuation of entities within the world. Mediation is not opposed to immediacy but rather is itself immediate. It names the immediacy of middleness in which we are already living and moving”. (GRUSIN, 2015, p. 129)

[4] “to understand radical mediation as affective and experiential rather than strictly visual is to think about our immediate affective experience of mediation as that which is felt, embodied, near—not distant from us, and thus not illuminated or pictured, but experienced by us as living, embodied human and nonhuman creatures.The core of radical mediation is its immanence, immediacy itself—not the transparent immediacy that makes up half of remediation’s double logic but the embodied immediacy of the event of mediation”. (GRUSIN, 2015, p. 132)

[5] “Something that happens too quickly to have happened, actually, is virtual”. (MASSUMI, 2002, p. 30)

[6] “Taste is a bodily practice that is collective and instrumented, regulated by methods that are incessantly argued over, and that centres around the appropriated perception of uncertain effects. Thus, we prefer to talk about «attachments». This beautiful word destroys the opposition that accentuates the dualism of the word «taste», between a series of causes that come from outside and the «hic et nunc» of the situation and the interaction. In terms of music fans, there is less emphasis on labels and more on states, less on self-proclamations and more on people’s activity; regarding the objects that motivate taste, their right to reply and their ability to coproduce what is happening, what arises from the contact, remains open”. (HENNION, 2010, p. 26)

Referências

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Financiamento

O presente trabalho foi realizado com apoio da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior – Brasil (CAPES) – Código de Financiamento 001, e também com apoio do CNPq, FAPERJ e InovUerj pelo fomento com bolsas de pesquisa e financiamento de projetos.