Mulheres e Covid-19:
a contribuição de narrativas jornalísticas
feministas
Suzanne Borela1 e Ana Carolina
D. Escosteguy2
1 Doutoranda no Programa de
Pós-graduação em Comunicação da Universidade Federal de Santa Maria
(POSCOM/UFSM). E-mail: suziborela@gmail.com.
2 Professora Visitante do
Programa de Pós-Graduação em Comunicação da Universidade Federal do Rio Grande
do Sul (PPGCOM/UFRGS). E-mail: ana.escosteguy@ufrgs.br.
Resumo
Este trabalho busca compreender quais são e como são configurados os eixos temáticos e as estratégias comunicativas presentes na cobertura jornalística da pandemia de Covid-19 no Brasil, centrada em mulheres, bem como os campos problemáticos que emergem desta narrativa. Toma-se como ponto de partida, especialmente, a perspectiva interseccional, articulada aos estudos da narrativa jornalística. O corpus de análise está composto por 49 reportagens, centradas em experiências de mulheres e publicadas pela organização de mídia Gênero e Número — em parceria com outras organizações, na realização da cobertura Especial Covid-19, no período de março de 2020 a março de 2021. Ao reconstituir a intriga, identificam-se cinco eixos temáticos — Desigualdades/Vulnerabilidades, Trabalho, Saúde, Maternidade e Violência contra a Mulher, que configuram a narrativa com foco em gênero e suas interseccionalidades. Todos os eixos apresentam destaque maior à categorias de raça e territorialidades, os quais revelam como o jornalismo pode colaborar com as discussões sobre tais temas. Observar uma combinação de marcadores sociais que transformam histórias individuais em coletivas, considerando a realidade de cada situação, converte-se em um ponto de transformação do jornalismo contemporâneo, uma contribuição em busca de uma mudança social e política que favoreça as mulheres, especialmente em situações de vulnerabilidade. Essa é uma das características que qualifica tais narrativas jornalísticas como feministas.
Palavras-chave
Jornalismo; Feminismo; Interseccionalidade; Narrativa; Covid-19.
Women
and Covid-19:
the contribution of feminist
journalistic narratives
Suzanne Borela1 e Ana Carolina
D. Escosteguy2
1 Doutoranda no Programa de
Pós-graduação em Comunicação da Universidade Federal de Santa Maria
(POSCOM/UFSM). E-mail: suziborela@gmail.com.
2 Professora Visitante do
Programa de Pós-Graduação em Comunicação da Universidade Federal do Rio Grande
do Sul (PPGCOM/UFRGS). E-mail: ana.escosteguy@ufrgs.br.
Abstract
This
article seeks to understand which and how the thematic axes and communicative
strategies present in the journalistic coverage of the Covid-19 pandemic in
Brazil, centered on women, are configured, as well as the problematic fields
that emerge from this narrative. The starting point is, especially, the
intersectional perspective, articulated with the studies of journalistic
narrative. The corpus of analysis is composed of 49 articles, centered on
women’s experiences, and published by the organization Gênero
e Número (Gender and Number) — in partnership
with other organizations, in the Especial Covid-19 coverage, from
March/2020 to March/2021. By reconstituting the intrigue, five thematic axes
are identified — Inequalities/Vulnerabilities, Work, Health, Maternity and
Violence against Women, which configure the narrative focused on gender and its
intersectionalities. All thematic axes present
greater emphasis on the categories of race and territorialities, which reveal
how journalism can collaborate with discussions on such topics. Observing a
combination of social markers that transform individual stories into collective
ones, considering the reality of each situation, becomes a turning point for
contemporary journalism, a contribution in the search for social and political
change that favors women, especially in situations of vulnerability. This is
one of the characteristics that qualify such journalistic narratives as
feminist.
Keywords
Journalism; Feminism; Intersectionality; Narrative;
Covid-19.
Introdução
Este trabalho procura
compreender a configuração narrativa da cobertura jornalística da pandemia do
novo coronavírus no Brasil, centrada nas experiências de mulheres, sob o viés
de uma perspectiva interseccional, articulada aos estudos de jornalismo. Portanto,
considera-se que as teorias feministas e de gêneros, em especial aquelas que
destacam categorias étnico-raciais, de classe, geracionais e outras, são cada
vez mais relevantes para o estudo cultural do jornalismo, ou seja, o campo que
dá centralidade à sua dimensão simbólica. Esta é constituída em urdidura com
processos socioculturais e político-econômicos do contexto em que é praticado.
Os estudos
interseccionais, que consideram a articulação cruzada entre questões de gênero
e distintas categorias como raça, etnia, classe social e geração, vem ganhando
maior visibilidade na pesquisa em comunicação e gênero, no Brasil, há bem pouco
tempo (ESCOSTEGUY, 2020). Entretanto, o conceito de interseccionalidade foi
sistematizado por Kimberlé Crenshaw, na década de 1990, a partir do
“reconhecimento dos direitos das mulheres enquanto direitos humanos, no âmbito
internacional, do mesmo modo como a discriminação racial é condenada como uma
violação de direitos humanos” (COSTA, 2018, p. 34). Ao colocar o termo em evidência,
a autora possibilitou a compreensão de que é a combinação das categorias
estruturantes, como gênero e raça, que coloca as mulheres em situação de
vulnerabilidade. Metodologicamente, a interseccionalidade pode ser utilizada
como ferramenta de análise “para estudar e entender como a categoria de gênero
se cruza com outras identidades e como diferentes interseções contribuem para
experiências únicas de opressão e privilégios, como estar nas margens ou no
centro”[1] (BACH, 2014, p. 51) (tradução nossa).
O termo intersecção ainda
é usado como metáfora, justamente para indicar como os vários eixos de poder
são constituintes do espaço social, político e econômico, provocando diferentes
estratégias de desempoderamento. Não se trata de enumerar, listar ou hierarquizar
todas as desigualdades possíveis, mas sim de “estudar aquelas manifestações e
identidades que são decisivas em cada contexto e como elas são incorporadas
pelos sujeitos para dar-lhes um significado que é temporário”[2] (BACH, 2014,
p. 49) (tradução nossa). Contrapondo-se à ideia de universalidade do sujeito, e
também de identidades fixas e essencializadas, as epistemologias feministas
colocam em evidência as “experiências das mulheres”. A categoria da experiência
passa a ser vista como produtora de conhecimento científico a partir da
valorização das vivências e práticas adquiridas no cotidiano. Portanto, acionar lentes interseccionais é
essencial nesse processo. É a partir das epistemologias feministas que podemos
pensar na produção de um conhecimento situado, que “aponta para a importância
de construir uma ciência relacionada à realidade social, a partir de vivências
e experiências dos sujeitos” (SELISTER-GOMES; QUATRIN-CASARIN; DUARTE, 2019, p.
58).
O papel desempenhado pelo
jornalismo contribui para o entendimento dos sujeitos sobre a realidade, bem
como atua na formação de subjetividades e identidades. Se a realidade é construída socialmente,
então os meios de comunicação, e o jornalismo em si, são peças importantes no
processo de construção. A perspectiva de gênero e interseccionalidades, bem
como reflexões levantadas pelos movimentos feministas, influenciaram o
surgimento de alguns portais noticiosos e iniciativas de mídia que produzem
jornalismo a partir de propostas diferenciadas e inovadoras. Entre elas, está a
Gênero e Número[3], objeto de análise neste trabalho.
Tomando como ponto de
partida tais premissas, este artigo, em primeiro lugar, apresenta uma breve
discussão teórica sobre questões feministas que atravessam a produção de
informação na cobertura jornalística da pandemia pela organização de mídia Gênero
e Número (adiante a denominamos G&N). Em seguida, é delineada a
proposta metodológica que combina pressupostos do campo do jornalismo e dos
estudos feministas, com o intuito de analisar narrativas jornalísticas em
perspectiva de gênero, focando nas experiências das mulheres durante um
determinado período da pandemia[4]. Por fim, são identificados os principais
eixos temáticos e estratégias comunicativas da narrativa em questão, e os campos
problemáticos sobre os efeitos da pandemia vivenciados por diferentes mulheres.
A pandemia na cobertura
feminista e colaborativa: Especial Covid-19
O cenário atual nos
impulsiona a refletir e problematizar alguns debates feministas no jornalismo,
especialmente no Brasil. Conforme Gill e Toms[5] (2019, p. 99) (tradução
nossa), a visibilidade crescente das pautas feministas pode ser vista com
otimismo, e a “mídia noticiosa tem sido fundamental para isso, não apenas
relatando campanhas feministas, [...] mas também centrando o feminismo como um
tópico de discussão”.
Um fator importante nesse
contexto é o surgimento de portais informativos alternativos, que possibilitam
à construção noticiosa vincular-se a posicionamentos feministas, especialmente
em coberturas de acontecimentos que transformam a agenda midiática. Assumir uma perspectiva de gênero e feminista
na construção de notícias sobre um acontecimento extremo, como é o caso da
Covid-19 no Brasil, considerando marcadores de classe e raça, por exemplo, constitui-se
em uma proposta alternativa com potencial para desvelar as diferentes causas e
impactos desse fenômeno em uma sociedade desigual que vivencia distintas e
injustas experiências, como é o caso da população feminina brasileira.
Pensar de modo interseccional
significa olhar para as diferentes posições ocupadas pelos indivíduos, e
especialmente pelas mulheres, ou seja, as implicações que marcadores sociais
trazem para a produção de conhecimento. Mais que aproximar o estudo do
jornalismo aos estudos feministas e de gênero, é preciso compreendê-los como
campos conectados, interligados por diferentes fatores, situações e noções. Em
acontecimentos extremos, pensar o engendramento das categorias
recém-mencionadas é essencial para avaliar e refletir sobre os problemas e as
consequências desse fenômeno para diferentes sujeitos.
Durante a pandemia, muitos
portais e organizações de mídia, especialmente independentes[6], buscaram
brindar uma nova perspectiva à cobertura jornalística deste que é considerado
um acontecimento extremo e que tem ocupado as capas de jornais de todo país
desde o seu início, em março de 2020. Nessa mesma ocasião, a união de um grupo
de veículos de jornalismo independente lançou um projeto de produção de
informação colaborativa e coletiva sobre a pandemia, a cobertura Especial
Covid-19. G&N, Revista
Az Mina[7], data_labe[8] e Énois[9] atuaram nessa iniciativa
para realizar uma cobertura jornalística com foco em gênero, raça e
territorialidades.
Segundo as informações
sobre o projeto, o objetivo é colocar no centro das discussões “questões que
sejam de amplo interesse público — uma vez que essas mulheres são a maior parte
da população brasileira — e que, por ora, ainda estão fora da cobertura da grande
imprensa, onde a prioridade é o debate sobre saúde pública” (ESPECIAL COVID-19,
2020). As produções foram publicadas nos
sites de AzMina, data_labe, Énois e G&N.
Percebemos, no entanto, que em G&N o especial ganha mais espaço, com
uma seção separada para os conteúdos e reportagens que estão sendo produzidos
no âmbito dessa iniciativa. Giulliana Bianconi[10], cofundadora e diretora da
organização, destacou que a cobertura Especial Covid-19 foi uma
iniciativa do próprio veículo (2020, informação verbal). Por essa razão,
considera-se que G&N está à frente da cobertura e daí a escolha por
recuperar os materiais jornalísticos em análise na sua página.
Optamos, também, por
seguir a linha cronológica do acontecimento pandemia do novo coronavírus, a
partir da cobertura Especial Covid-19, tendo como base para compor o corpus
as reportagens publicadas no site de G&N. Assim, considera-se para a
análise as reportagens, fruto do trabalho colaborativo, publicadas de março de
2020 a dezembro de 2021. Visto que o acontecimento em tela ainda está em
andamento, nossas lentes focam um recorte, ou seja, olhamos para um determinado
período com um foco específico.
Análise feminista da
narrativa jornalística
Inspiradas nos movimentos
e passos metodológicos propostos por Luiz Gonzaga Motta para uma Análise
Pragmática da Narrativa Jornalística e, sobretudo, ancoradas em contribuições
de epistemologias feministas, exploramos a construção de um protocolo de
análise que nos ajude a desvendar as estratégias que configuraram narrativas em
perspectiva de gênero e feministas na cobertura jornalística da pandemia no
Brasil.
Em sua proposta, Motta
destaca que a narratologia é tanto um campo quanto um método para análise de
práticas culturais, pois “estuda os sistemas narrativos no seio das
sociedades”, e também “procura entender como os sujeitos sociais constroem os
seus significados através da apreensão, compreensão e expressão narrativa da
realidade” (MOTTA, 2013, p. 2). Junto às
ideias do autor, partimos de uma perspectiva feminista, ou seja, conforme
Sarmento (2019, p. 108), um olhar que ilumina as “diferentes faces das
vivências das mulheres (classe, raça, etnia, região, sexualidade, dentre
outras)” , e que “pode colaborar para a compreensão mais aguda sobre a forma
como tais experiências são narradas e interpretadas pelas metodologias
vigentes” (SARMENTO, 2019, p. 108).
Nosso objeto empírico, a
cobertura Especial Covid-19, tem uma meta clara desde seu início: uma
narrativa em perspectiva de gênero, com foco em interseccionalidades como raça,
classe e territorialidade. É a partir da realidade manifesta em narrativas que,
reforça Motta (2013), passamos a compreender o mundo e a construir nossas
identidades e histórias.
A análise deve, portanto, compreender as
estratégias e intenções textuais do narrador, por um lado, e o reconhecimento
(ou não) das marcas do texto e as interpretações criativas do receptor, por
outro lado (MOTTA, 2013, p. 3).
Para realizar essa tarefa,
Motta propõe seis movimentos de análise[11], que devem ser aplicados nas
narrativas em questão, não precisando obedecer a uma ordem lógica, ficando a
critério de quem analisa por onde começar. Também compreendemos que a proposta
não precisa ser aplicada em sua totalidade, ou seja, é possível realizar uma
adaptação e interpretação, utilizando apenas um movimento, ou um conjunto
deles, adaptando-a ao objetivo de cada trabalho.
Portanto, optamos por
tomar como base os passos presentes em movimentos de análise propostos pelo
autor, realizando adaptações no que diz respeito ao viés de gênero, ao
feminismo e ao nosso objeto de estudo. Para tal, atualizamos a nomeação dos
movimentos utilizados. Assim,
recuperamos alguns passos indicados por Motta (2013), considerados fundamentais
para uma análise da narrativa jornalística, recombinando-os com contribuições
feministas, que direcionam nosso olhar para questões de gênero e suas
interseccionalidades, nas dimensões sociais, culturais e econômicas evocadas
pela narrativa analisada. Deste modo, elaboramos e aplicamos nesta exploração
específica o movimento de análise denominado “Recomposição da intriga:
dimensões temáticas do acontecimento”, que busca apresentar como as informações
sobre as temáticas postas em tela pela cobertura vêm sendo incorporadas às
narrativas jornalísticas em questão. Outro movimento é o das “Estratégias
Comunicativas”, que revela como as reportagens direcionam o foco de suas
abordagens para a centralidade das experiências das mulheres e suas vivências
da pandemia, atuando a partir de uma perspectiva interseccional. A aplicação
destes movimentos nas reportagens selecionadas possibilita visualizar as
principais temáticas apresentadas, as estratégias e ainda verificar quais
campos problemáticos são revelados e complexificados pela cobertura na
narrativa da pandemia da Covid-19 no Brasil.
A
identificação inicial da narrativa como um acontecimento específico, localizado
em um determinado espaço e tempo, já está
dada. Afinal, como a acompanhamos em uma única plataforma de mídia, havia uma
sequência que possui um marco cronológico — o início da pandemia do novo
Coronavírus. Contudo, não deixamos de reconstituir a intriga, de ordenar os
fatos, visto que a narrativa da pandemia se constitui de forma plural. Ou seja,
não estamos falando apenas de um enredo singular, mas de histórias em
movimento, que ao serem narradas vão construindo novas intrigas. Assim, no
exercício proposto aqui, nosso objetivo se concentra em descobrir quais são as
conexões temáticas da narrativa em questão e as potencialidades apresentadas a
partir das escolhas temáticas e dos tipos de abordagem, para a configuração de
uma narrativa jornalística e feminista interseccional.
Conforme Motta (2013, p.
4), “na análise da narrativa jornalística é preciso, pois, conectar as partes,
identificar a serialidade temática e o encadeamento narrativo cronológico para
compreender o tema como síntese”. Assim, separamos as narrativas a partir de
eixos temáticos, com o objetivo de identificar quais pautas são mais
recorrentes, e em que medida elas vão ao encontro da agenda de questões
propostas pelos movimentos e estudos feministas e de gênero. Em outras
palavras, identificam-se quais temas, subtemas, estratégias e campos
problemáticos que expressam pautas feministas e interseccionais que são
recuperados e/ou lançados pela narrativa.
A análise, organizada a
partir dos movimentos citados, é crucial, permitindo compreender como o
jornalismo pode utilizar pautas feministas como uma potente ferramenta para
contrapor-se a imagens das mulheres na mídia, reiteradamente, vinculadas a
representações estereotipadas e a um “universo feminino” enclausurado no espaço
privado e associado a pautas mais “amenas” e superficiais. Sendo assim,
reafirma-se o papel do jornalismo na construção social da realidade.
Dos eixos temáticos ao
papel pedagógico das narrativas jornalísticas feministas
Na análise das 49
reportagens, encontradas no período proposto, escolhido por se tratar do
primeiro ano da pandemia, emergiram cinco eixos temáticos centrais. Estes foram
nomeados como: Desigualdades/Vulnerabilidades, Trabalho, Saúde, Maternidade e
Violência contra a mulher. Para alcançar a organização das reportagens por
grupos temáticos, iniciamos com a leitura de títulos e linhas de apoio, as
quais nos dão pistas do objetivo do texto e de quais questões são abordadas;
logo após, realizamos uma leitura completa, atenta aos detalhes de cada
reportagem. Listamos a seguir quais
critérios utilizamos para realizar a separação dos textos e sua disposição em
cada um dos cinco eixos temáticos encontrados.
Figura
1
- Critérios de separação das reportagens por eixos temáticos.
Fonte: Elaborado pelas autoras (2021).
Em primeiro lugar buscamos
encontrar conexões entre as reportagens publicadas pela cobertura especial. No
site da G&N elas são organizadas cronologicamente, ou seja, da
primeira reportagem realizada, datada do início do projeto, em março de 2020,
até a última que configura o período de análise. Desse modo, identificamos
ligações temáticas entre elas, de forma que fomos separando-as, até concluir a
composição e a nomeação de cada eixo temático, citados anteriormente. De um
total de 49 reportagens, o eixo temático de maior expressão é
Desigualdades/Vulnerabilidades, que conta com 16. A temática Trabalho é composta por 14
reportagens, seguido dos eixos Saúde, com 11; Maternidade, com cinco e
Violência contra a mulher com três.
A seguir, realizamos uma
breve explanação das conexões e estratégias mais presentes em cada eixo
temático, bem como dos problemas revelados, os quais compõem a intriga e ajudam
a configurar uma narrativa jornalística com foco nas experiências e
interseccionalidades das mulheres brasileiras frente à pandemia da Covid-19.
a) Eixo temático
Desigualdades/Vulnerabilidades
As reportagens sobre Desigualdade/Vulnerabilidade
exploram os impactos da pandemia na vida de mulheres desempregadas, periféricas
e de populações vulneráveis, como povos indígenas e LGBT+, por exemplo. Os
subtemas vão estampando também problemas antigos e cada vez mais crescentes,
como o desamparo de famílias periféricas, o desemprego e a fome.
As estratégias
comunicativas buscam despertar o reconhecimento e identificação a partir das
histórias narradas, promovendo a conscientização sobre a existência de outras
realidades. Dessa forma, as leitoras/es podem se reconhecer ou não nas
histórias e experiências narradas, fator que contribui para despertar um senso
crítico, de reflexão sobre o mundo ao nosso redor, sobre a realidade para além
da existência de nichos. As reportagens também demarcam lugares de fala ao
especificar em que bairro, comunidade e cidade moram as/os personagens a quem
se referem, característica que consideramos como estratégia comunicativa, de
posicionalidade, já que um dos diferenciais da cobertura é a perspectiva de
gênero, raça e territorialidades.
A falta de informação e
orientação em uma situação extrema como a pandemia, os impactos do
enfrentamento ao novo Coronavírus, que impossibilita não só o trabalho, como o
acesso a saúde e à alimentação adequada oferecida às crianças são campos
problemáticos descortinados pela cobertura especial. Como exemplo, o eixo
temático problematiza a situação de mulheres que precisaram largar seus
empregos para ficarem em casa por conta da impossibilidade de acesso das
crianças a creches e escolas. São elas, geralmente, que precisam assumir as
tarefas do lar e dos cuidados, fator esse que traz diversas e diferentes
consequências, não apenas econômicas, mas sociais e psicológicas, dependendo de
suas posições de classe, raça, territorialidades, geração e outros marcadores.
Portanto, a narrativa assume também um lugar de autoridade, cumprindo seu papel
jornalístico de informar a população sobre o que é importante e relevante,
como, por exemplo, ao apresentar dicas de como as famílias devem agir caso suas
filhas e seus filhos não estejam recebendo a merenda escolar, conforme imagem
abaixo.
Figura
2
- Informativo produzido pela cobertura.
Fonte: Especial
Covid-19 (2020).
Ao pautar campos
problemáticos importantes, a narrativa também realiza uma conexão com problemas
que vão surgindo com o avanço da pandemia no país, como as consequências da
impossibilidade de dar continuidade ao trabalho — e com isso as dificuldades de
acesso à saúde e alimentação; os índices de desemprego e trabalhadoras/es
informais; o papel social das mulheres na pandemia, que precisam deixar seus
empregos para cuidar das famílias (e com isso acabam em situação de
vulnerabilidade); a preocupação sobre a alimentação adequada de jovens e
adolescentes; e a falta de informação e atenção dos governos com as comunidades
periféricas. Além disso, a narrativa estampa as desigualdades sociais do
Brasil, presentes muito antes da pandemia. A estratégia comunicativa utilizada
alinha esse modo de fazer jornalístico a um ponto de vista feminista,
vislumbrando, assim, seu vínculo com uma prática transformadora da realidade
social.
b) Eixo temático Trabalho
Um dos dados mais
importantes desta pandemia, quando pensamos pelas lentes de gênero, é refletir
sobre as profissionais da área da saúde que estão na linha de frente do combate
ao novo Coronavírus, assunto recorrente na cobertura Especial Covid-19.
Além deste subtema, também encontramos no eixo discussões sobre a informalidade
do trabalho doméstico e PEC das domésticas; lideranças políticas femininas;
condições precárias de trabalho para mulheres; a vulnerabilidade de
trabalhadoras informais; o isolamento e o home office — que do ponto de
vista das mulheres que possuem trabalhos informais pode ser compreendido como
privilégio; e falta de apoio de políticas públicas.
O eixo Trabalho, com o
segundo maior número de reportagens, apresenta informações e conteúdos que
tratam da exposição e dos riscos da informalidade; debatem a importância da
atuação de mulheres frente às pesquisas; revelam os riscos e os abusos sofridos
por profissionais cuidadoras; indicam a desigualdade social e racial na
distribuição de bolsas de pesquisa e também entre as docentes de ensino
superior; e dão destaque às enfermeiras como profissionais na linha de frente
do combate ao vírus.
Os relatos de experiências
e vivências das personagens e fontes no enfrentamento da Covid-19 impactam na
vida de milhares de mulheres que trabalham em diferentes setores, mas
especialmente na área da saúde. As histórias relatadas por uma personagem
enfermeira é algo que podemos considerar como uma estratégia comunicativa, de
identificação, pois a fala da profissional tem o potencial de despertar
sentimentos e emoções, conforme demonstra o trecho a seguir.
O que dá medo é a nossa saturação mental e
física. Nós já trabalhamos em um ambiente bem estressante e, com uma doença tão
perigosa, a insegurança também aumenta. A gente não sabe o que vem por aí’,
desabafa a enfermeira, que trabalha na Unidade de Terapia Intensiva (UTI) do
Hospital São Paulo[12] (ESPECIAL COVID -19, 2020).
Acreditamos também que a
escolha do verbo “desabafar” não se dá por acaso, mas constitui um recurso
linguístico utilizado pelas narradoras. Desabafar é colocar para fora algo que
sufoca, é tornar livre uma voz, um apelo, uma necessidade. Esse é um desabafo
coletivo de uma classe de profissionais mulheres que sofrem os efeitos de um
sistema nacional de saúde mal gerenciado e afetado ainda mais pela crise
sanitária que se instalou no país. Consideramos que destacar personagens como
enfermeiras, técnicas e auxiliares de enfermagem, por exemplo, é transformar um
ponto de vista sobre a profissão e a área da saúde, que geralmente é
apresentada na mídia por médicos, especialistas ou governantes.
Ao notabilizar
profissionais mulheres, a narrativa da cobertura especial ressaltou que a
pandemia fez com que suas jornadas de trabalho dobrassem, já que além do
trabalho remunerado, muitas ainda assumiram sozinhas as tarefas do lar e os
cuidados com as crianças. Além disso, propôs pensar a informalidade e a
precariedade aí implicada, acionando diferentes questionamentos e pontos de
vista. Consequentemente, isso fez com que ficasse evidente que os problemas das
trabalhadoras brasileiras são muitos e diversos. “Medo do contágio eu não
tenho. Tenho mais medo de não pagar as contas, de meus filhos ficarem no
escuro, não terem refeição. Isso é minha preocupação”[13] (ESPECIAL
COVID-19, 2020) (grifo nosso).
Os relatos pessoais das
experiências de diferentes mulheres na cobertura especial ressaltaram o
cruzamento entre categoriais sociais, um caminho que a narrativa busca
percorrer independente do eixo temático, ressignificando campos problemáticos
já existentes. Portanto, a narrativa nos instiga a pensar como as vivências e
as vulnerabilidades são atravessadas por condições de gênero, classe, raça e
outros marcadores.
Não dá para falar sobre as trabalhadoras
domésticas e a naturalização da violação de direitos dessas mulheres sem
entender que a maioria é formada por mulheres negras e de baixa escolaridade.
Nesse processo, tem um resquício inegável da escravidão e da ausência de
direitos de quem trabalhava nas casas dos seus senhores”[14] (ESPECIAL
COVID-19, 2020) (grifo nosso).
Destacamos também o uso de
dados como contribuição para a construção de informação, algo que não é novo no
jornalismo, mas a forma como são usados, ou melhor, quais dados são usados e
quais são excluídos, é que fazem a diferença na narração das histórias sobre a
pandemia, e essa é uma estratégia que perpassa todos os eixos temáticos
encontrados e analisados neste trabalho.
c) Eixo temático Saúde
Os principais subtemas que
ajudam a configurar a narrativa sobre saúde na cobertura Especial Covid-19
são aborto e direitos reprodutivos. Também discussões sobre saúde mental, a
luta por direitos das pessoas trans durante a pandemia e dúvidas sobre a
covid-19 em relação à gravidez e puerpério. Destacamos, de início, a reportagem
em formato de entrevista, que atua como estratégia de posicionalidade, ao
marcar o lugar da cobertura como mediadora de assuntos relacionados à saúde.
Com a chegada da pandemia do novo Coronavírus, muitas dúvidas assombraram a população
e, por sua vez, aos/às leitores/as, em relação aos cuidados necessários para
evitar o contágio, os grupos de risco e as formas de acesso a serviços,
especialmente, aos de saúde. De acordo com Reginato (2019, p. 232), o
“jornalismo deve fazer a mediação entre os fatos e o leitor porque é seu papel
adaptar o discurso especializado em uma linguagem acessível ao público e
escolher a melhor forma de fundamentar a informação”. Acreditamos que a opção
pela entrevista pode ser atribuída a uma estratégia de aproximação com o
leitorado, bem como de simplificação de informações mais complexas.
Como exemplo, a cobertura
assume o papel de mediadora ao esclarecer as principais dúvidas das gestantes
frente à pandemia. Porém, segue o caminho de particularizar a situação e coloca
as experiências cotidianas das mulheres como foco e ponto de partida, trazendo
um viés metodológico feminista ao acionar e descrever experiências. Estas
escolhas demonstram um posicionamento da cobertura, tanto pela opção dos temas
postos em tela, quanto da seleção de fontes especializadas e autorizadas. Ou
seja, a experiência das mulheres assume um protagonismo narrativo, contribuindo
para a produção de informação e de um conhecimento situado que escuta e
valoriza suas vozes, reiterando uma prática feminista.
Também são acionadas
estratégias de identificação, observadas a partir da disposição dos recursos de
linguagem, mas principalmente na dimensão da interpretação textual da
narrativa, movimento que auxilia a construção de um quadro de significados e
informações compreensíveis sobre os temas em questão. Deste modo, “o
conhecimento baseado na própria experiência pode proporcionar saberes que
tendem a beneficiar as pessoas que vivenciam uma realidade parecida com a
analisada” (LOWY, 2000 apud SELISTER-GOMES; QUATRIN-CASARIN; DUARTE,
2019, p. 58). Assim, estratégias narrativas que geram identificação a partir da
experiência narrada são acionadas, despertando sentimentos e emoções, e dando
pistas das dificuldades e problemas enfrentados pelas mulheres durante a
pandemia no Brasil.
As informações
apresentadas pelas fontes especializadas, acionadas nas reportagens em formato
de entrevista, são transmitidas pela narrativa textual de forma simples e
clara, sem usar termos técnicos e explicações complexas, oferecendo às leitoras
uma síntese sobre cada pergunta apresentada. Observamos que as respostas e
explicações proporcionadas pelas reportagens deste eixo temático cumprem a
função de facilitar o trânsito de conhecimentos de distintos campos e de permitir
às leitoras o acesso a fontes e dados que talvez não estivessem disponíveis de
modo rápido e fácil. Informar sobre os direitos das mulheres na área da saúde,
por exemplo, abre um horizonte possível para lutar e enfrentar as estruturas e
relações de poder nas quais elas estão inseridas. Mediar e possibilitar esse
movimento através da informação é o ponto chave dessa cobertura.
d) Eixo temático Maternidade
Embora o eixo Maternidade
seja um de menos destaque na composição narrativa configurada pela cobertura Especial
Covid-19, devido ao baixo número de reportagens presentes, seus subtemas
são de grande importância para refletir sobre a realidade e os problemas das
mulheres do país na pandemia. O eixo apresenta discussões sobre o ativismo de
mulheres durante a pandemia; as dificuldades acadêmicas para negras e mães que
trabalham remotamente; o suporte emocional e financeiro que as redes de apoio
oferecem as mulheres afetadas pelo isolamento social; os cuidados com
recém-nascidos durante a pandemia; as realidades de mães chefes de família e
mães solos negras; o desafio da educação para mães e filhos em isolamento; e a
reestruturação do papel das mães e das educadoras.
As reportagens conseguem
alcançar um cruzamento de categorias sociais, especialmente ao colocar em foco
as dificuldades mais acentuadas para mulheres e mães negras durante a pandemia,
como descrito no trecho a seguir: “Proporcionalmente, a cada 100 mães solo com
filhos com menos de 14 anos, 4,6 mulheres negras não contam com um banheiro
exclusivo — entre as mulheres brancas, a proporção cai para 1,4”[15]
(ESPECIAL COVID-19, 2020) (grifo nosso). São as diferentes intersecções entre
as categorias, especialmente gênero, raça e classe, que fazem com que as
mulheres vivam experiências diversas, e ao mesmo tempo únicas, de opressão e
privilégios (BACH, 2014).
O eixo vai se configurando
expondo problemas sociais e vulnerabilidades que não são exclusivos da crise
sanitária instaurada no país com a disseminação do vírus, mas que foram
acentuados e ressignificados com os problemas originados na pandemia. “As favelas
têm problemas pré-covid, a pandemia só veio para deixar latente uma fratura
exposta desses territórios”[16] (ESPECIAL COVID-19, 2020) (grifo nosso).
Destacamos que a principal
estratégia comunicativa visualizada no eixo temático Maternidade é o caráter pedagógico
que as reportagens assumem, especialmente ao apresentar informações e conteúdos
em formato de tópicos ou “guias”, com o objetivo de orientar e ajudar às mães
que estão encontrando dificuldades neste período, portanto, aspirando a
transformações em uma determinada realidade, característica do agir feminista.
Os principais campos
problemáticos revelados pela narrativa e expostos como acentuados pela pandemia
para mães solo, são a sobrecarga de trabalho e emocional para mães durante o
isolamento e pandemia; as dificuldades acadêmicas acentuadas; e a situação de
vulnerabilidade pela pobreza e fome.
e) Eixo temático Violência contra a mulher
Por fim, a apresentação do
eixo temático que aborda temas relacionados à Violência contra mulher, em que é
possível identificar uma discussão voltada as situações de violência doméstica;
e violência doméstica contra mulheres negras. Os relatos pessoais das fontes e
personagens mobilizam diferentes sentidos e sentimentos na narrativa sobre
violência. O contar histórias ocupa um
lugar essencial na exposição das experiências das mulheres, pois são os relatos
que vão constituindo o imaginário social. Quando compartilhadas, as histórias
das experiências articulam sentidos, significados, representações que criam
realidades e vínculos entre a dimensão da recepção (de quem a cobertura busca
alcançar e de quem efetivamente alcança), e daquelas que têm suas vidas
narradas, afinal, são as experiências cotidianas e a bagagem cultural que cada
indivíduo possui que vai direcionar seu modo de interpretação das informações
que recebe.
As estratégias
comunicativas atuam por: aproximação; experiência atribuída e compartilhada
pelas narrativas que articulam categoriais sociais, como raça, classe e
territorialidade; mobilização de subjetividades. O papel assumido pela
cobertura especial — sua posicionalidade — demonstra o compromisso com um
jornalismo que não apenas informa os serviços essenciais, mas se compromete na
busca por apresentar ferramentas que podem ser usadas por suas leitoras para
mudar suas realidades.
A Gênero e Número mapeou iniciativas de
ajuda a mulheres que sofrem violência doméstica durante o isolamento social
causado pela pandemia de covid-19. São serviços gratuitos — públicos ou
oferecidos por organizações civis — de acolhimento, atenção psicológica,
atendimento jurídico, canal para denúncias, entre outros. A ferramenta será
atualizada constantemente com outras iniciativas[17] (ESPECIAL COVID-19, 2020)
(grifo nosso).
Embora menor que os demais
eixos, as temáticas referentes à violência contra mulher expõem campos
problemáticos que merecem extrema atenção em nossa realidade social, e que
existem muito antes da pandemia, ainda que agora alcancem uma complexificação
maior, como: políticas sociais enfraquecidas no país nos últimos anos; o Brasil
como um dos países mais violentos para mulheres; como a pandemia de Covid-19
está tornando ainda mais complexa a questão da violência doméstica; o aumento
de casos de violência e a subnotificação dos mesmos devido ao isolamento social.
De modo geral,
consideramos que a cobertura especial destaca temáticas importantes e presentes
no movimento feminista brasileiro desde seu início. Observamos também que
quando se trata de falar sobre a vida e a experiência das mulheres, conteúdos
relacionados ao trabalho, saúde, maternidade, desigualdades e violência,
geralmente, ganham mais espaço em veículos de comunicação independente. Além da
utilização de dados coletados de modo científico e do acionamento de fontes
especializadas, a cobertura coloca em foco as experiências das mulheres e suas
situações particulares, permitindo-lhe contrapor-se ao tom usual de
generalizações. Sendo assim, especifica como cada tema e campo problemático
afetam diferentemente a vida de mulheres, conforme seus marcadores sociais.
Esse posicionamento configura uma contribuição para repensar tais pautas no
jornalismo contemporâneo de caráter feminista.
Considerações Finais
A análise das reportagens
em questão nos permitiu observar práticas transformadoras a partir de um
conhecimento situado (SELISTER-GOMES; QUATRIN-CASARIN; DUARTE, 2019),
vinculadas a princípios jornalísticos consagrados e frequentes no campo do
jornalismo, que conferem à cobertura Especial Covid-19 um modo
diferenciado e inovador de produzir conhecimento e informação qualificada e
plural. Não são apenas as temáticas em si que nos fazem chegar a tais
conclusões, visto que são pautas recorrentes em diversos veículos de
comunicação brasileiros, ainda que umas ganhem mais espaço que outras. Mas, o
modo como a configuração narrativa sobre o novo Coronavírus vai se delineando a
partir de eixos que são fundamentalmente amparados em experiências de mulheres,
fontes e personagens, que imprimem uma perspectiva diferenciada aos materiais
jornalísticos.
Consideramos que a
narrativa produzida pela cobertura coletiva e colaborativa Especial Covid-19,
realiza o que chamamos neste trabalho de conexão de problemáticas. Ou seja, ao
apresentar campos problemáticos instaurados pela pandemia, a narrativa joga luz
a outros campos complexos preexistentes no país. Deste modo, podemos perceber
como as causas e as consequências desses campos se conectam, em alguns casos, e
proporcionam reflexões mais complexas sobre o acontecimento, que acabam
inseridas na agenda midiática e na sociedade em geral.
As escolhas das fontes e
das personagens também nos dizem muito sobre a narrativa em questão, já que são
majoritariamente mulheres. Mas, dizer apenas que as vozes das mulheres são
maioria na Especial Covid-19 não é uma característica de potencial
transformação. Porém, quando observamos a representatividade que cada fonte e
personagem carrega consigo, é possível dizer que a produção jornalística assume
uma postura política e em perspectiva de gênero. Ao trazer à tona relatos,
opiniões, questionamentos e experiências que falam a partir de um ponto de
vista de diferentes realidades enfrentadas por mulheres e demais populações
vulneráveis, colocando em foco os marcadores sociais que atravessam as
vivências (classe, raça, territorialidade, geração, etnia, etc.) a cobertura
atua em busca de combater a desinformação e proporcionar acesso a outras
histórias, outras experiências, além de agir como mediadora na resolução de
problemas.
Ao produzir informação a
partir das experiências compartilhadas por essas mulheres, a cobertura especial
contribui para o debate social sobre questões fundamentais no que diz respeito
ao acontecimento em tela, como o acesso e o direito aos serviços de saúde, um
aspecto presente na pauta dos movimentos feministas do início até os dias
atuais. Incluir lentes de gênero na cobertura de uma pandemia é demonstrar as
necessidades e as vivências de mulheres a partir de suas particularidades, sem
desconsiderar o caráter coletivo compartilhado.
Consideramos que este
exercício de análise identificou movimentos e características transformadores
na cobertura especial e que as estratégias comunicativas, percebidas como
estratégias de posicionalidade e identificação, podem ser consideradas
potencialidades de transformação na produção jornalística, apresentadas por
essa iniciativa, através de uma cobertura coletiva e colaborativa. A escolha de
fontes e personagens plurais, que demonstra a diversidade de vivências e
situações das mulheres na realidade contemporânea, — como a inclusão das
histórias de mulheres negras, indígenas e de periferia — constituiu narrativas
que exploram a experiência como um valor aplicável à construção de informação e
conhecimento. Essas são características de destaque na narrativa da pandemia do
novo Coronavírus no Brasil, o que qualifica a cobertura Especial Covid-19
como jornalismo em perspectiva de gênero e interseccionalidades.
Notas
[1] Para estudiar y comprender cómo la categoría de género se cruza con otras identidades y cómo los distintos cruces contribuyen a experiencias únicas de opresión y
privilegio como lo es estar en
los márgenes o en el centro.
[2] Estudiar aquellas manifestaciones e
identidades que son determinantes en
cada contexto y cómo son
encarnadas por los sujetos
para darles un significado
que es temporal.
[3] Fundada em 2016, a Gênero e Número é
a primeira organização de mídia da América Latina que produz jornalismo de
dados com foco em gênero e raça.
[4] Para este trabalho, levou-se em
consideração as reportagens publicadas pela cobertura Especial Covid-19
no período de março, início do projeto, a março de 2021, mês que marca o
primeiro ano da pandemia mundial.
[5] News media have
been pivotal to this, not only reporting on feminist campaigns [...] but also
centering feminism as a topic of discussion.
[6] O conceito de jornalismo independente vem
figurando como objeto de estudo de diversas pesquisas no campo da comunicação.
Não há, contudo, uma definição consensual sobre a prática, mas sim reflexões
que indicam quais as diferenças e modos de configuração desta forma de
jornalismo, conforme demonstra Vanessa Oliveira (2021) ao realizar uma revisão
sobre o tema. Segundo a autora, “Silva (2017), ao olhar especificamente para o
fenômeno do jornalismo independente no Brasil, delimita uma forma para essa prática,
em relação aos seus conteúdos. Destaca um conjunto de bandeiras, valores e
compromissos éticos específicos, como direitos humanos, direito à cidade,
pluralidade, igualdade de gênero, questão racial, democratização da mídia,
empoderamento feminino e até uma crítica à globalização. [...] Já Patrício e
Batista (2017) entendem a independência dos nativos digitais justamente pelo
viés da independência econômica, a partir da sua autosutentabilidade,
e também por não possuírem vínculo com os grandes grupos midiáticos” (OLIVEIRA,
2021, p.98-100).
[7] Revista Feminista Independente, fundada em
2015 a partir de financiamento coletivo. Projeto da ONG AzMina,
uma instituição sem fins lucrativos, que busca através da cultura e da
informação alimentar o debate e empoderar mulheres.
[8] Um laboratório de dados e narrativas criado
em 2015, nas dependências do “Observatório de Favelas”, na favela da Maré – Rio
de Janeiro. Em parceria com a “Escola de Dados”, o laboratório se estabelece
atualmente como organização autônoma e autogerida.
[9] Fundada em 2009 pelas jornalistas Amanda Rahra e Nina Weingrill, a Énois é conhecida como a Escola Livre de Conteúdo
Jovem, que com jornalismo estimula os jovens a pensarem sobre suas comunidades
e realidades.
[10] BIANCONI, G. Entrevista. [13 ago.
2020]. Entrevistadora: BORELA, S. Santa Maria, 2020.
[11] Embora inspiradas na Análise Pragmática da
Narrativa Jornalística de Motta (2013), não recuperamos neste trabalho os seis
movimentos indicados pelo autor. Nossa proposta metodológica apresenta apenas
dois movimentos, com base na discussão sobre os eixos temáticos da intriga
narrativa, e as estratégias comunicativas.
[12] ESPECIAL COVID-19 [FERREIRA, Letícia;
FERREIRA, Lola]. Enfermeiras na linha de frente contra o Coronavírus. Gênero
e Número, 19 mar. 2020. Disponível em:
<https://www.generonumero.media/enfermeiras-na-linha-de-frente-contra-o-coronavirus/>.
Acesso em: 02 jul. 2021.
[13] ESPECIAL COVID-19 [BERTHO, H.; MARTINS, F.
B.]. Trabalhadoras informais temem não ter como alimentar os filhos em crise do
coronavírus. Gênero e Número, 24 mar. 2020. Disponível em:
<https://www.generonumero.media/trabalhadoras-informais-temem-nao-ter-como-alimentar-os-filhos-em-crise-do-coronavirus/>.
Acesso em: 03 jul. 2021.
[14] ESPECIAL COVID-19 [Bruno, M. M.; Silva, V.
R. da; Martins, F. B.]. PEC das Domésticas completa 7
anos golpeada por empregadores, economia e coronavírus. Gênero e Número,
02 abr. 2020. Disponível em:
<https://www.generonumero.media/pec-das-domesticas-7-anos-golpeada-empregadores-economia-coronavirus/>.
Acesso em: 06 jul. 2021.
[15] ESPECIAL COVID-19 [Silva, V. R. da]. Um
retrato das mães solo na pandemia. Gênero e Número, 18 jun. 2020.
Disponível em:
<https://www.generonumero.media/retrato-das-maes-solo-na-pandemia/>.
Acesso em: 08 jul. 2021.
[16] ESPECIAL COVID-19 [Silva, V. R. da]. Redes
geram apoio para mães durante a pandemia. Gênero e Número, 10 mai. 2020.
Disponível em:
<https://www.generonumero.media/redes-geram-apoio-para-maes-durante-pandemia/>.
Acesso em: 08 jul. 2021.
[17] ESPECIAL COVID-19. Iniciativas gratuitas
ajudam vítimas de violência doméstica na quarentena. Gênero e Número, 30
abr. 2020. Disponível em:
<https://www.generonumero.media/ajuda-vitimas-de-violencia-domestica-na-quarentena-provocada-pela-pandemia-de-coronavirus/>.
Acesso em: 10. jul. 2021.
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