Apresentação

 

Ana Regina Rêgo[1]

Marialva Barbosa[2]

Igor Sacramento[3]

Quando propomos o dossiê “História, Memória, Comunicação – entre crises e críticas” tínhamos a percepção da importância de discutir a dimensão histórica como possibilidade de abrir pontes e portas do presente em direção ao passado (e ao futuro) e, assim, permitir compreensões de momentos tão dramáticos como os que vivemos na atualidade.

Logo no início da chamada do dossiê, a história, numa expressão metáfora de Michel De Certeau, como “a narrativa do morto” (2001), aludia ao caminho da pesquisa do filósofo/historiador francês que investigava o obscuro do passado, não para julgar os personagens que surgiam na cena narrativa, nem para apontar uma verdade indelével. Perscrutar o passado pode significar tão somente aprender com os mortos, com os quais entabulamos diálogos duradouros (e que devem ser absolutamente eivados de humildade) superando, muitas vezes, suas crenças e o eclipse de seus desejos de futuro, compreendendo os múltiplos espaços de movimentação que podem significar a reinvenção da própria liberdade.

Diante das crises, a eclosão de espaços interpretativos outros se configura como possibilidade de eliminar distâncias temporais, tornando imaginável e interpretável a experiência. E isso a partir de uma articulação fundante: perceber as conjunções, as interferências, os trânsitos, as distinções entre memória e história, em modos de aquisição da experiência, tal como propõe Koselleck (2014), despertando a consciência histórica a partir da aproximação entre presente e passado. Esse movimento essencial da vida permite, ainda, a projeção de futuros possíveis. E neste tempo que denominamos contemporâneo, este olhar seta em direção às possibilidades interpretativas do passado talvez seja forma de sobrevivência.

Articuladas à tríade primeira do dossiê, convidamos, então, os pesquisadores a considerar as intervenções dos processos de crise e de críticas. Mais uma vez o direcionamento interpretativo para o futuro se sobressai na proposta: “As crises e as críticas ao irromperem as estruturas temporais podem abrir perspectivas díspares para o horizonte, de modo que, o que antes estava se desenhando, se apague e novas perspectivas surjam. Crises políticas podem levar os povos à liberdade ou à escravidão”.

E, finalmente, propúnhamos a pensar a história da Comunicação pelo viés da historicidade (HEIDEGGER, 2015), objetivando ultrapassar uma história determinista, aumentando as chances de desvelar as faces dos fenômenos da comunicação que, em suas diversas perspectivas, podem estar silenciadas de modo intencional ou não.

O resultado da proposta foi amplamente vitorioso. Não apenas pela grande quantidade de artigos que recebemos - 25 no total -, mas também pela amplidão interpretativa e temática, observadas pelo diálogo central da proposição (história, memória e comunicação). Os artigos oferecem, assim, um painel multifacetado de temas na área de comunicação que elegem a história na sua relação com a memória, considerando, com mais ou menos intensidade, a simbiose entre crise e crítica.

Reunimos no dossiê oito artigos que, tal como os movimentos de historicidades, alcançam a vida do passado ao futuro em conjunções que, como um novelo a ser desemaranhado, vão desvelando em articulações teóricas e conceituais a complexidade das questões que surgiram dos artigos propostos ao dossiê.

A organização dos artigos selecionados se faz de uma abordagem mais claramente metodológica, em que procura mostrar o vínculo profundo da comunicação com a historicidade, até o extremo, em que o futuro não realizável se apresenta como possibilidade de renarrar o mundo do “poderia-ter-sido”. No intermezzo destes dois movimentos, que implicam ordens temporais evidentes, desfilam eventos e materialidades comunicacionais na busca da compreensão dos movimentos históricos no tempo: filmes, músicas, livros, fragmentos audiovisuais, territórios de memórias.

O dossiê abre com o texto “A historicidade como memória reforçada no ato comunicacional”, um ensaio teórico-filosófico de Alan Campos Araújo, inédito ao campo da comunicação e que contribui para se repensar as bases da historiografia do campo da comunicação a partir da historicidade, tendo como lastro o pensamento de Hans-Georg Gadamer e Martin Heidegger.

Na sequência, “Reunião conceitual no filme A separação: desafios e astúcias das dialéticas da tragédia”, Gustavo Chataignier e Luiz Baez se propõem, partindo da filosofia hegeliana, sobretudo no que diz respeito às reflexões sobre a modernidade “enquanto tempo de separações”, assim como nos escritos sobre arte e tragédia, a analisar o filme A separação (2011). O filme do diretor persa Asghar Farhadi é compreendido como o retorno do trágico e é a partir desta percepção que os autores analisam diversos processos, nos quais a dialética do audiovisual (“entre o audível e o visível”) é central. Incluindo uma análise detalhada sobre o olhar ocidental em direção ao cinema iraniano, os autores seguem analisando a obra, discutindo o trágico e entrelaçando-o, enquanto categoria conceitual, à memória e à história.

“Performance e nostalgia na música brega” de Thiago Soares e Pedro Alves inaugura o segundo momento do dossiê em que conceitos mais pontuais - como é o caso de nostalgia no artigo - tornam-se o ponto nodal para reflexões que articulam dimensões memoráveis e históricas. No caso do artigo, que toma como objeto empírico a música brega de Pernambuco, o objetivo dos autores é analisar como a nostalgia é, nos seus próprios termos, “performatizada na música brega” daquele território, centrando-se nas categorias de nostalgia restauradora e reparadora, propostas por Boym (2010), ao mesmo tempo em que apontam tensão nos domínios do memorável que emergem nas músicas populares periféricas brasileiras.

O artigo seguinte, “A memória biográfica do feminino: uma revisão do mercado editorial brasileiro (1990-2020)”, de Felipe Adam e Antonio Hohfeldt, privilegia a questão memorável no seu diálogo com a proposta do dossiê. Apresentando uma radiografia dos biografados que são colocados à venda no mercado editorial brasileiro, centram sua análise nos catálogos das editoras Companhia das Letras e Grupo Editoral Record, num período de dez anos, fazendo do livro o objeto empírico dominante. Que tipo de histórias de vida são consumidas no país? A partir da pergunta, refletem sobre a invisibilidade do feminino no mercado editorial, procurando localizar brechas para possíveis resistências a serem construídas, e questionando o tipo de cultura literária produzida, imposta e consumida.

“Memória amordaçada: o massacre de Caldeirão de Santa Cruz do Deserto”, de Kelsma Maria Silva Gomes nos convida a um mergulho profundo num passado instituído como quase totalmente esquecido e que a autora vai desvelando a medida em que conta, a partir de depoimentos sobreviventes, novamente aquela história. A história do massacre de Caldeirão de Santa Cruz do Deserto, ocorrido na região do Cariri cearense, em 1937 e sobre a qual se produziu uma “memória amordaçada”. Sustentando-se na categoria de memórias subterrâneas de Michael Pollak (1989), procura compreender como a história do massacre foi silenciada, mas nunca esquecida. Para isso, extrai emoções recônditas dos depoimentos das mulheres que conheceram o massacre por herança geracional, no que Jan Assmann (2006) denomina memória comunicacional, e que o leva a perdurar no tempo nas sonoridades das granadas que ecoavam, nos barulhos do mato durante a fuga, entre outros sentidos memoráveis que eclodem durante as entrevistas. A memória amordaçada torna-se, assim, memória sobrevivente nos gestos de fala dos herdeiros do passado, que, embora não tenham presenciado o acontecimento originário, dele soube pela memória dos outros, no espaço que perdura em até três gerações.

“Lembrar dos mortos: uma análise do espaço cemiterial à luz do conceito de memória coletiva em Maurice Halbwachs”, inicia o que poderíamos demarcar como terceira e última parte do dossiê, em que a questão da morte - este espectro que transforma a vida de cada um nos tempos trágicos de pandemia - vai se impondo e não poderia ser diferente, numa proposta teórica cujo objetivo é refletir sobre a dimensão histórica que permite a abertura de pontes e portas do presente em direção ao passado e ao futuro, como remarcamos logo no início desta apresentação.

A morte que nos assombra, que nos espreita, que interfere nos movimentos da vida, marcados que estamos pela sua presença como espectro memorável em direção ao futuro, vai emergindo como tema dominante dos textos que fecham o dossiê, antes que uma última reflexão abra portas da história como possibilidade de futuro desejável e possível.

“Lembrar dos mortos” analisa a representação da morte entre indivíduos e o espaço dos cemitérios na Baixada Maranhense, tendo como diálogo teórico dominante a obra Memória Coletiva de Maurice Halbwachs (1990). Através de um importante trabalho de campo, os autores procuram perceber as existências nestes espaços de um complexo de “símbolos, imagens e representações”, em experiências que são partilhadas historicamente através de múltiplas expressões que permitem lembrar dos mortos.

O penúltimo texto, “Memória e imaginário da Covid-19: o hospital no cotidiano midiatizado”, de Renata Rezende e Denise Ayres, traz o momento pandêmico (e, portanto, a vida vivida em toda a sua exponencialidade) para o centro analítico do dossiê. O presente como tempo expressão do emaranhado temporal da história se apresenta, então, aos olhos das interpretações possíveis, atravessadas por um momento que obscurece compreensões humanas. As autoras, por meio de fragmentos audiovisuais, a partir de reportagens do Jornal Nacional (TV Globo), em janeiro de 2021, refletem sobre o hospital como uma construção simbólica, levando em conta a narrativa midiatizada do cotidiano brasileiro, sintoma de um país em crise. Procuram mostrar, então, como estas narrativas organizam e desorganizam estruturas de sentido, “construindo um imaginário coletivo” de uma época.

O último texto do dossiê “Clio e a memória do futuro: ucronias, utopias e heterotopias nos assentamentos do MST” discute, a partir do diagnóstico de Lotman (1998), que é necessário pensar a história não a partir da regularidade dos acontecimentos e na certeza de um futuro previsível. Portanto, não como um “novelo desfiado como um fio infinito, mas como uma avalanche de matéria viva que se autodesenvolve”. Conceituando memória do futuro e verificando sua construção a partir das ações do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra, MST, o artigo apresenta uma densa análise sobre a história como permissividade aberta ao futuro, como uma espécie de perturbação da ordem temporal, como possibilidade advinda da imaginação, na qual o que está sob foco não é o que aconteceu, mas sobretudo o que poderia ter acontecido. Até que ponto uma sucessão de acontecimentos conhecidos poderia ter modificado o futuro histórico em uma direção diferente?

 

A pergunta abre a compreensão do futuro como dívida e dádiva para a história, na sua articulação entre tempos. Movimento fundamental quando o tempo da morte se une e se avoluma no tempo da memória, no futuro possível de uma história como desvio do passado, mas que pode ser imaginada para ser outra. Conseguiremos?

 

Referências

 

ASSMANN, Jan. Form as a mnemonic device: cultural texts and cultural memory. In: HORSLEY, Richard; DRAPER, Jonathan; FOLEY, John Miles (dir.). Performing the gospel. Orality, memory and mark. Essais dedicated to Werner Kelber. Fortress: Minneapolis, 2006.

 

DE CERTEAU, Michel. A cultura no plural. Campinas: Papirus, 2001.

 

HALBWACHS, Maurice. A Memória Coletiva. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1990.

 

HEIDEGGER, Martin. Ser e Tempo. Petrópolis: Vozes, 2015.

 

KOSELLECK, Reinhart. Estratos do Tempo: estudos sobre história. Rio de Janeiro: Contraponto, 2014.

 

LOTMAN, Iuri. La Semiosfera. Madrid: Ediciones Cátedra, S.A, 1998. v. 2.

 

POLLAK, Michael. Memória, Esquecimento, Silêncio. Estudos Históricos. Rio de Janeiro, v. 2, n. 3, p. 3-15, 1989.



[1] Jornalista pela UFPI. Mestre e Pós-Doutora pela ECO-UFRJ. Doutora pela UMESP com Estágio de Doutorado na UAB-Barcelona. Professora Associada UFPI. E-mail: anareginarego@gmail.com.

[2] Doutora em História (Universidade Federal Fluminense); Professora Titular da Universidade Federal do Rio de Janeiro. E-mail: marialva153@gmail.com.

[3] Doutor em Comunicação e Cultura pela UFRJ, pesquisador em Saúde Pública pela Fiocruz e professor do Programa de Pós-Graduação de Informação e Comunicação em Saúde da Fiocruz e do Programa de Pós-Graduação em Comunicação da UFRJ. E-mail: igorsacramento@gmail.com.