Currículo Girl Power:
Spice Girls e a representação da(s) mulher(es)
Alcidesio Oliveira da Silva Junior1
Resumo
Como símbolo do feminismo popular do final da década de 1990, as Spice Girls, grupo pop feminino de maior sucesso da história, tornaram-se não apenas uma marca extremamente rentável para o aquecido mercado da música pop, mas também referência de comportamento para uma legião de fãs espalhados/as por todo o mundo, necessitados/as de referências femininas de comportamento e estilo. Percebo que um ethos foi se constituindo por meio das canções, videoclipes, performances e discursos de empoderamento feminino que marcou o acontecimento Spice Girls. Inspirado nas teorizações pós-críticas do currículo, nos estudos pós-estruturalistas de gênero e nos estudos da Comunicação, objetivo neste texto compreender como é construída a representação da(s) mulher(es) na produção artística das Spice Girls. Para tanto, lanço o olhar para as letras de músicas dos três álbuns do grupo para efetuar uma análise cultural dos achados. A partir destes, compreendo que três lições são ensinadas pelas cantoras pop: 1) o poder e a valorização da amizade entre as mulheres como ferramentas de apoio mútuo contra os dilemas da vida; 2) a independência emocional frente aos relacionamentos amorosos, o que representa um contra-discurso aos estereótipos de fragilidade e insegurança feminina; e 3) o empoderamento sexual expresso como uma atitude de resistência aos processos de docilização dos corpos das mulheres.
Palavras-chave
Currículo cultural; Spice Girls; Cultura pop; Estudos Culturais; Gênero.
1 Doutorando no Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade Federal da Paraíba. Integrante do Grupo de Pesquisa em Estudos Culturais e Arte/Educação (GPECAE/UFRPE) e do Ensaio – Vida, Pensamento e Escrita em Educação (UFPB). E-mail: ateneu7@gmail.com.
Girl Power Curriculum:
Spice Girls and the representation of women
Alcidesio Oliveira da Silva Junior1
Abstract
As a symbol of popular feminism in the late 1990s, the Spice Girls, the most successful female pop group in history, became not only an extremely profitable brand for the hot pop music market, but also a behavioral reference for a legion of fans all over the world who needed Female references in behavior and style. I realize that an ethos was formed through the songs, video clips, performances and speeches of female empowerment that marked the Spice Girls event. Inspired by post-critical theorizations of the curriculum, post-structuralist gender studies and communication studies, I aim in this text to understand how the representation of women in the artistic production of the Spice Girls is constructed. For that, I use the lyrics of the three albums of the group to carry out a cultural analysis of the findings. From these, I understand that three lessons are taught by pop singers: 1) the power and valuing of friendship between women as tools of mutual support against life’s dilemmas; 2) emotional independence from romantic relationships, which represents a counter-discourse to stereotypes of female fragility and insecurity; and 3) sexual empowerment expressed as an attitude of resistance to the processes of docile women’s bodies.
Keywords
Cultural curriculum; Spice Girls; Pop culture; Cultural Studies; Gender.
1 Doutorando no Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade Federal da Paraíba. Integrante do Grupo de Pesquisa em Estudos Culturais e Arte/Educação (GPECAE/UFRPE) e do Ensaio – Vida, Pensamento e Escrita em Educação (UFPB). E-mail: ateneu7@gmail.com.
Introdução
Baby Spice, Sporty Spice, Scary Spice, Ginger Spice e Posh Spice [1]. Quem viveu a intensa década de 1990 já deve ter ouvido esses nomes ecoando com força pelos quatro cantos do mundo. Como símbolo do feminismo popular, as Spice Girls, grupo pop feminino de maior sucesso da história, tornaram-se não apenas uma marca extremamente rentável para o aquecido mercado da música pop, mas também referência de comportamento para uma legião de fãs espalhados/as por todo o mundo. Percebo que um ethos foi se constituindo por meio das canções, videoclipes, performances e discursos de empoderamento feminino que marcou o acontecimento Spice Girls. Foi desenhando uma assinatura midiática própria que o grupo britânico, sob a reverberada palavra de ordem Girl Power! (“Poder feminino!”) [2], conquistou a simpatia de adolescentes e jovens de todo o globo, carentes de outras representações femininas na cultura pop após a consolidação de cantoras como Madonna.
Ultrapassando as fronteiras geográficas, as Spice Girls alcançaram a marca de mais de 80 milhões de álbuns vendidos em toda a carreira, construindo um fandom [3] que tem permanecido fiel mesmo após 25 anos do lançamento de Wannabe (1996), primeiro single do grupo e que alcançou o primeiro lugar em 37 países. Esse impacto causado pela banda me faz pensar, junto com Giroux (2012), que a indústria cultural também tem investido em determinadas formas de pedagogia, promovendo práticas culturais organizadas na tessitura do social e potentes na produção de identidades.
Ainda que as Spice Girls não estejam mais no topo das paradas musicais do mundo, vejo a importância de ainda olharmos para o fenômeno que foi/é essa banda. Em 2019, após um hiato de 19 anos sem lançarem um álbum com músicas inéditas, as cantoras percorreram o Reino Unido com a Spice World – 2019 Tour, arrecadando cerca de 78 milhões de dólares nas 13 apresentações que realizaram com estádios lotados entre maio e junho de 2019 [4]. Em 2021, data comemorativa dos 25 anos de Wannabe, diversas mídias noticiaram o evento, sinalizando o peso do nome Spice Girls no cotidiano da música pop mundial [5].
Nesse quadro, inspirado nas teorizações pós-críticas do currículo, nos estudos pós-estruturalistas de gênero e nos estudos da Comunicação, objetivo compreender como é construída a representação da(s) mulher(es) na produção artística das Spice Girls. Para tanto, lanço o olhar para as letras de músicas dos três álbuns do grupo para efetuar uma análise cultural dos achados. A escolha se deu de forma a contemplar os anos de maior produção audiovisual das Spice Girls (1996, 1997 e 2000), buscando nas músicas os signos de representação feminina, conforme detalhado no próximo tópico, na tentativa de delineamento de um currículo cultural que abarque certos modos de ser e estar no mundo. O texto será organizado em duas partes, iniciando com uma composição teórica que me fornece pistas para a seção analítica seguinte, onde centro-me nas canções das Spice Girls. Argumento, como hipótese, que o Currículo Girl Power compreende três ensinamentos principais: 1) sororidade; 2) independência afetiva; e 3) atitude/liberdade sexual.
Cultura Pop e Representação
A cultura pop sempre foi um campo alvejado de críticas que ora reiteram a sua efemeridade, ora taxam a sua má qualidade artística, sua superficialidade comercial. Especialmente a partir das contribuições de intelectuais da chamada Escola de Frankfurt, muitos/as pesquisadores/as têm se voltado para a produção da indústria cultural, ainda que tais reflexões desemboquem em modos distintos de análise, seja pela via marxista cultural, influência direta de nomes como Theodor Adorno e Max Horkheimer, seja por meio das contribuições pós-modernas ou pós-estruturalistas da Comunicação, inspiradas por nomes como Michel Foucault e Gilles Deleuze.
Distanciando-me das sentenças definitivas que apregoam a mera manipulação das mentes agenciadas por esses artefatos culturais midiáticos, desconsiderando as formas de contestação e resistência dos sujeitos, bem como os questionamentos quanto à qualidade artística da cultura pop, prefiro uma leitura menos apocalíptica desses fenômenos populares, como bem argumenta Soares (2014, s.p), reconhecendo que “há ‘brechas’ nas ‘fórmulas’ da mercantilização da cultura. Há ‘clareiras’ das indústrias da cultura”. Para Janotti Jr. (2015, p. 45), a cultura pop também pode ser lida através de suas “[...] afirmações de sensibilidades cosmopolitas, modos de habitar o mundo que relativizam o peso das tradições locais e projetam sensibilidades partilhadas globalmente”.
Conectando pessoas das mais distintas identidades culturais e sociais, a música pop celebra uma espécie de agrupamento transcontinental, construindo modos comuns de reconhecimento e de alteridade. Se esse caráter já era percebido antes do advento da internet, na cibercultura ganha ares ainda mais intensos e em constante movimento, operando sobre as formas como experimentamos o mundo, mediando nossas relações e promovendo novos significados (BORTOLAZZO, 2016). E, assim, “vivências em torno de modos do consumo de filmes, músicas, games, esportes são permeadas por ‘tonalidades’ que, antes de serem posições estanques, possibilitam habitar (e desabitar) os mundos que se materializam nas expressões culturais” (JANOTTI JR., 2016, p. 50).
Essa interação frenética promovida pela cultura pop e pela cibercultura são ilustradas também pelo fandom que se agrupa na internet para falar dos/as seus artistas preferidos/as, construindo uma certa “comunidade de sentidos”, ou seja, “o compartilhamento de determinados valores, gostos e afetos que ressaltam o ‘ideal comunitário’ [...] territórios simbólicos que possibilitam a manifestação dos sentidos” (JANOTTI JR., 2003, p. 5). É justamente nessa interação entre sujeitos que partilham interesses em comum que podemos localizar modos de subjetivação, práticas que constituem identidades, posicionamentos políticos, existências ressignificadas pelos discursos midiáticos.
Inspirado nas teorias pós-críticas de currículo, esse mar de composição que une a teoria queer, os estudos culturais, o pós-estruturalismo, dentre outras vertentes teóricas (PARAÍSO, 2004), argumento a cultura pop como um currículo ao promover determinadas práticas de significação, disputando sentidos. Por meio de um currículo cultural, artistas de vários gêneros musicais compartilham seus modos de vida em meio às letras das músicas, performances, vestimentas, danças, entrevistas, compondo uma assinatura midiática potente como prática subjetivadora. Com Silva (2010, p. 21), sinalizo que “no currículo se produz sentido e significado sobre os vários campos e atividades sociais, no currículo se trabalha sobre sentidos e significados recebidos, sobre materiais culturais existentes”.
Importante demarcar que as demandas sociais contemporâneas têm incitado novas formas de aprendizagem que se dão em meio aos artefatos culturais (MAKNAMARA, 2020). Não limitando-se aos documentos institucionais, o currículo amplia-se, rompe as barreiras dos livros e conteúdos escolares, ressignificando-se em meio a artefatos culturais como o cinema, a música, a literatura, a publicidade, dentre outros. A subjetivação se dilui nas redes, fios, cabos, telas, sons, criando formas de vida, incitando novas práticas sociais entre os sujeitos que, por meio delas, afirmam-se coletivamente.
O envolvimento entre os/as fãs e entre eles/as e seus/suas artistas preferidos/as se dão em redes afetivas, motivadas pela necessidade afirmativa das identidades, mesmo que estas tenham se tornado cada vez mais fragmentadas no mundo pós-moderno. Segundo Costa (2002, p. 20), “o currículo da mídia não tem nenhum caráter impositivo. Chega-se a ele por interesse e deleite, e, pelo mesmo motivo, adere-se a ele”, o que sinaliza o afastamento teórico de perspectivas que tratam os produtos culturais como instrumentos alienantes sem resistência dos/as receptores/as. Ainda segundo a autora, “desde a segunda metade do século XX, ele [o currículo da mídia] é responsável por boa parcela de nossos aprendizados sobre o mundo, sobre os outros e sobre nós mesmos” (COSTA, 2002, p. 20).
Já que entendo gênero e sexualidade como constructos históricos que se dão em meio à linguagem, conceber um currículo cultural como prática de representação é também apontar para os modos generificados e sexuais que são reiterados nas mídias, nas danças, nas performances dos/as artistas, como as Spice Girls. É entender que a linguagem não é um instrumento para representação do mundo, mas o caminho mesmo de produção desse mundo e que para que as coisas se tornem inteligíveis precisam ser significadas pela linguagem, emergindo em meio às práticas discursivas, aos conhecimentos legitimados pela cultura. Segundo Silva (2010, p. 32), na perspectiva pós-estruturalista, “conhecer e representar são processos inseparáveis. A representação – compreendida aqui como inscrição, marca, traço, significante e não como processo mental – é a face material, visível, palpável do conhecimento”.
Interessa-me, portanto, nesta análise cultural da representação da(s) mulher(es) na produção artística das Spice Girls, os signos convencionalmente estabelecidos pela cultura e que são responsáveis pela reiterada prática de significação que produz identidades sociais, no caso, de gênero e sexuais. Vale destacar que o significado “é [pode ser] contestado e, às vezes, até severamente disputado, pois em qualquer cultura, em uma mesma época, há sempre diferentes circuitos de significação circulando. Isso me remete a ressaltar” (WORTMANN, 2001, p. 157). O autor ainda argumenta “que a produção dos significados está sempre associada a lutas de poder” (WORTMANN, 2001, p. 157). É um governo das ações – ou como Foucault (1995) aponta, ações sobre ações - que se materializa em movimentos capilares de poder.
A seguir, escolho músicas das Spice Girls cujo material de significação aponta para relações de gênero, em específico, para modos de ser mulher no seu tempo. Como “professoras” da indústria pop ao operarem pedagogias de gênero e de sexualidade por meio de suas canções, performances e palavras de ordem, como trarei a seguir, reconheço que as Spice Girls não apenas divertem, encantam, emocionam o seu público, mas também ensinam determinados valores, espalham certos signos, convocam sujeitos, em especial meninas [6], a se posicionarem de certas maneiras e não de outras.
1ª lição: Friendship never ends!
Um dos pontos mais enfatizados no discurso das Spice Girls sempre foi a amizade entre as garotas. Em letras, entrevistas, videoclipes, performances, o grupo fazia/faz questão de expressar a unidade e o apoio mútuo necessários para enfrentarem os dilemas da vida. Unindo garotas de personalidades, origens étnicas e sociais distintas, as Spice Girls se tornaram um emblema do multiculturalismo na década de 1990, ressoando por meio dos seus corpos os discursos do respeito à diversidade.
Criado primeiramente por Geri Halliwell, a Ginger Spice, figura mais esfuziante da banda, o slogan Girl Power tornou-se a marca das Spice Girls, uma convocação à sororidade e ao empoderamento feminino. Segundo Sinclair (2007, p. 92) (tradução nossa) [7], jornalista britânico, “a ideia, em essência, era que as meninas deveriam se defender como indivíduos, defender umas às outras coletivamente e, tendo identificado o que elas querem da vida, sair e agarrar com as duas mãos”. Em outra oportunidade (SILVA JUNIOR, no prelo), cheguei a argumentar o não aprofundamento das Spice Girls em questões mais complexas da desigualdade de gênero, tornando o grupo apenas um reflexo do feminismo liberal. Essa temática não será abordada aqui, porém é importante mencionar que, mesmo em meio à uma ode acrítica da diversidade, não podemos negligenciar o aspecto formativo conduzido pela banda entre crianças, adolescentes e jovens na década de 1990, desejosos/as por figuras de referência feminina.
Figura 1 – Spice Girls no MTV Europe Music Awards (1997)
Fonte: Femme Actuele (2019).
Em Wannabe (1996), primeiro hit das Spice Girls, as cantoras expressam a preferência pela amizade feminina frente aos relacionamentos amorosos com outros rapazes: “Se você quer ser o meu namorado / Tem que se dar bem com as minhas amigas / Fazer durar para sempre / A amizade nunca acaba” [8]. Em uma pesquisa com 12 meninas que vivenciaram alguma forma de relacionamento abusivo, Falchetto e Olivetto (2017) apontaram a chantagem emocional dos rapazes como um dos aspectos mais dolorosos para as garotas. Estas costumeiramente recorriam às suas amigas para saberem lidar com estes momentos de gaslighting, ou seja, práticas de violência emocional. Segundo as autoras, o gaslighting é recorrente, “levando a um esvaziamento da autonomia da vítima e fazendo com que a vítima deixe de lado suas opiniões e abra mão de suas escolhas” (FALCHETTO; OLIVETTO, 2017, p. 60).
Ao exaltarem a amizade entre as garotas, as Spice Girls reconhecem a potencialidade dos laços afetivos frente às virtualidades da violência, da perda da autonomia e da dependência emocional que abatem muitas meninas. Em Love Thing (1996), o grupo canta que “Minhas amigas estão comigo quando você não estava por perto / Suas promessas e palavras preciosas não estão me deixando para baixo” [9], compondo o quadro curricular dirigido ao empoderamento feminino, visto que “quando informações, aprendizagens, sentimentos e pensamentos são articulados, está-se compondo o texto de um currículo” (MAKNAMARA, 2020, p. 59). Um currículo que enaltece a amizade na sua potência de fortalecimento mútuo, pois “a amizade pode criar espaços afetivos que curam feridas infligidas por normas sociais” (CORNEJO, 2015, p. 137). No nosso caso, as normas que privilegiam a centralidade do homem nas relações amorosas, base da heteronormatividade, “a ordem sexual do presente, fundada no modelo heterossexual, familiar e reprodutivo” (MISKOLCI, 2017, p. 48).
O ano de 1998 foi um ano difícil não somente para as Spice Girls como para seus/suas fãs por todo o mundo. Geri Halliwell, uma das integrantes mais icônicas do grupo, resolve deixá-lo em meio a uma turnê internacional em maio, chocando todo o mundo pop. No final do ano, as Spice Girls lançam a melancólica Goodbye (1998), seu terceiro hit de Natal que alcança o primeiro lugar no Reino Unido, trazendo mais uma vez uma mensagem de apoio e esperança, provavelmente direcionada à Geri: “Adeus, minha amiga / Eu sei que você se foi / Você disse que se foi / Mas eu ainda sinto você aqui / Não é o fim / Você precisa manter-se forte antes que a dor se transforme em medo” [10]. Vejo essa canção como uma das mais representativas do que poderia ser a sororidade entre as Spice Girls, “um sentimento de união feminina. [Um] colocar-se no lugar de outra mulher e saber enxergar a sua dor” (FALCHETTO; OLIVETTO, 2017, p. 33).
As canções aqui citadas são apenas uma amostra da assinatura midiática das Spice Girls, compondo-se junto a toda a performance da banda que ensina seus/suas fãs, especialmente as meninas, a não duelarem entre si, não concorrerem, mas andarem de mãos dadas enfrentando as adversidades. É por meio da amizade que aprendemos “outras possibilidades de vida” (CORNEJO, 2015, p. 138), nos subjetivando em meio às práticas de alteridade e respeito mútuo.
2ª lição: Don’t go wasting my time
Frágeis, inseguras, românticas e emocionalmente dependentes, esses são alguns dos estereótipos atribuídos às mulheres que foram questionados pelas Spice Girls em sua carreira. Ao invés de moças românticas e iludidas, as cantoras sempre se apresentaram como aquelas que estavam no controle da situação, colocando os homens em uma posição recuada, empoderando-se no feminismo, o que destoa de muitas representações das mulheres nas novelas, desenhos animados e filmes, por exemplo. Se a “representação diz respeito à produção de sentido pela linguagem” (HALL, 2016, p. 32), vejo os embates travados pelos discursos das feministas contemporâneas contra uma série de estereótipos que cercam as mulheres. Aqui tomo a leitura de Hall (2016, p. 191) sobre estereótipo quando ele argumenta que “[...] a estereotipagem reduz, essencializa, naturaliza e fixa a diferença”.
Representativa é a música Say you’ll be there (1996) quando as Spice Girls cantam: “Agora você me diz que se apaixonou / Bem, eu nunca pensei que aconteceria / Dessa vez, você tem que ir devagar / Jogando tantas emoções em mim” [11]. Na cena, vemos que não é a garota, mas o rapaz que se apaixona, se envolve, carregando a relação com um misto de emoções. Em Stop, as meninas dizem que o rapaz “tem que ir mais devagar, tem que se divertir” [12], colocando limites no seu envolvimento amoroso. Vejo que se trata do oposto “do ideal de vida de uma mulher: se apaixonar e casar com o príncipe!”, argumenta SILVA JUNIOR (2021, p. 92), pois “o conceito de amor romântico nunca é cobrado do homem, mas si do seu Outro – a mulher”.
Aprendo com Woodward (2014, p. 10) (grifo da autora), que “a construção da identidade é tanto simbólica quanto social”, dando-se de forma relacional por meio do estabelecimento de diferenciações com vontade essencialista, visando uma “metafísica da substância” (BUTLER, 2018). As identidades sociais, de gênero e/ou sexuais, são produzidas em meio a uma série de discursos que delineiam as práticas e modos de vida legítimos para uns/umas e/ou para outros/as. As Spice Girls ao se afirmarem como menos românticas ou emotivas que os homens, em muitas de suas canções, atestam que “diferentes significados são produzidos por diferentes sistemas simbólicos, mas esses significados são contestados e cambiantes” (WOODWARD, 2014, p. 19).
Figura 2 – Spice Girls no videoclipe Say you’ll be there (1996)
Fonte: Wikipedia (2021).
Um outro exemplo é a música Last time lover (1996), onde as Spice Girls cantam que “Palavras de amor não funcionam comigo” [13] e sinalizam para rupturas nas formas essencialistas na produção das identidades de gênero que veem as mulheres como românticas e fáceis de serem seduzidas pelos galanteios masculinos. Aqui utilizo o conceito de gênero de Butler (2014, p. 253) ao afirmar que “gênero é o aparato pelo qual a produção e a normalização do masculino e do feminino se manifestam junto com as formas intersticiais, hormonais, cromossômicas, físicas e performativas que o gênero assume”.
Compreendo que as canções das Spice Girls operam como pedagogias de gênero e de sexualidade (LOURO, 2001), colocando em movimento uma série de investimentos culturais ou tecnologias de autogoverno para que nos constituamos sujeitos de determinado gênero e sexualidade. A subjetivação dá-se por meio das reiteradas performances culturais ao definir o comportamento “natural” dos homens e das mulheres, marginalizando, pois, os corpos que fogem às regras. No caso das Spice Girls, a atitude de independência emocional, segurança afetiva e afirmação sexual, como trarei na próxima lição, podem ser lidas como textos curriculares potentes para oferecerem outros modos de vida para as mulheres, produzindo contra-representações hegemônicas e liberando afirmações de outras existências.
3ª lição: I wanna make you holler!
As “Garotas Apimentadas”, tradução para Spice Girls, são conhecidas pela espontaneidade nas apresentações e entrevistas, deixando muitas vezes os/as entrevistadores/as desconcertados/as. Vale recordar a cena de Geri Halliwell beliscando as nádegas do Príncipe Charles no ano de 1997, tornando-se manchete nas mídias de todo o mundo [14]. Cada integrante da banda, ao seu modo, trazia gradações de sensualidade, tendo como extremos a ruiva sexy Geri (Ginger Spice) e a doçura da loirinha-lolita Emma Bunton (Baby Spice), a mais festejada entre os/as fãs mais jovens. Em suas canções, as Spice Girls ensinam às meninas a se afirmarem sexualmente, libertando-se das amarras sociais e culturais que disciplinam seus corpos.
Figura 3 - Performance de Holler na The Return of The Spice Girls Tour (2007)
Fonte: Pinterest (2021).
Trago 2 become 1 (1996), primeira balada romântica de grande sucesso das meninas, como o primeiro exemplo dessa nova postura feminina. A música, de título sugestivo, narra o encontro de um casal e sua primeira noite de amor. Em uma das linhas da música, Emma Bunton, a loirinha inocente, canta com sua voz doce: “Chega um pouco mais perto, baby / Vamos lá, vamos lá / Porque hoje é a noite em que dois se tornam um” [15]. Em vários momentos da canção, tem-se a iniciativa da garota em conduzir o rapaz no sexo, estando ele com muitas dúvidas e medo, como canta Mel B. (Scary Spice) em um outro momento: “Livre sua mente da dúvida e perigo [...] Podemos conseguir, podemos conseguir” [16].
No refrão de 2 become 1, o verso “Quero fazer amor com você” [17] ressoa repetidas vezes, terminando a estrofe com um “Liberte seu espírito / É o único jeito possível” [18]. Uma outra linha cantada por Emma também sinaliza para o empoderamento das garotas quando ela canta, referindo-se ao uso da camisinha: “Seja um pouco mais esperto, baby / Use-a, use-a / Porque hoje é a noite em que dois se tornam um” [19]. Ao lançarmos um olhar histórico para as relações de gênero, vemos o quanto as mulheres foram posicionadas em lugares de subalternização e regulação do desejo. Aquelas que rompiam com as amarras impostas, eram (e até hoje são) marginalizadas, sendo agraciadas pela sociedade por sua vida casta e resguardada.
Figura 4 - Emma Bunton no videoclipe 2 become 1 (1996)
Fonte: The Scottish Sun (2017).
É Foucault (1998) que mais me auxilia a entender os modos de regulação sobre os corpos por meio do que ele chamou de “dispositivo da sexualidade”, uma série de técnicas e investimentos discursivos que operam sobre “as sensações do corpo, a qualidade dos prazeres, a natureza das impressões, por tênues ou imperceptíveis que sejam” (FOUCAULT, 1998, p. 117). Fazendo uma genealogia dos discursos sobre sexualidade entre os séculos XVII e XIX, Foucault (1998) aponta a fragilidade do argumento que confere a estas épocas uma maquinaria repressora da sexualidade. Pelo contrário, para o filósofo, estas foram épocas em que a incitação a falar sobre sexo era corrente e intensa, espalhando-se em instâncias sociais como a escola, a igreja e as clínicas de psicanálise.
O dispositivo da sexualidade operava com detalhe sobre a mulher, especialmente com o advento do ideário de família burguesa nos séculos XVIII e XIX, marcando os seus corpos, adentrando nas mais infinitesimais áreas da vida pública e privada. A atualidade desse dispositivo se evidencia nos múltiplos discursos que ainda cercam a produção das subjetividades femininas, nos ensinamentos quanto aos seus corpos, nas pedagogias de gênero e de sexualidade que promovem o autocontrole e as diferenciações em relação aos homens no que tange à liberdade sexual e pleno usufruto dos seus desejos.
Sinalizando que sempre pode haver resistência onde as relações de poder operam (FOUCAULT, 1995), identifico em 2 become 1 a afirmação da atividade sexual das mulheres, uma linha de fuga, em plena década de 1990, aos discursos binários da heteronormatividade. Para além disso, ao cantar o uso da camisinha e o sexo seguro, em músicas ouvidas tanto por crianças quanto por jovens, as Spice Girls trazem uma temática importante para o cotidiano dos/as seus/suas fãs, dessacralizando e promovendo fissuras nos tabus sexuais.
Quatro anos depois, mais maduras e já sem Geri, as Spice Girls divulgam Holler, sucesso de Forever, terceiro álbum do grupo lançado no final de 2000. Na canção, as quatro Spice Girls atingem o clímax da sua autonomia sexual em um jogo de fantasias desatadas entre uma mulher e um homem. Ao som do refrão de um R’n’B envolvente (“Eu quero te fazer gritar e ouvir você berrar meu nome”) [20], a narrativa de Holler invoca uma mulher provocadora, que sabe o que quer (“Nos imagine juntos, eu te levando à loucura”) [21] e que assume o controle dos seus desejos (“Comece por baixo e faça seu caminho para cima completamente / Não tenha medo de jogar o meu jogo”) [22]. No clipe de Holler, as Spice Girls aparecem com roupas pretas de couro em uma representação feminina Dominatrix, personagem cujo gozo centra-se em atos de dominação.
Trazer esses discursos como componentes de um currículo cultural das Spice Girls, ou Currículo Girl Power, como aqui venho chamando, evidencia a organização de saberes, de modos de vida, de se apresentar e de se relacionar com o mundo que podem ser aprendidos por meio das músicas e performances dos/as artistas. Por fazer parte dos nossos momentos de prazer, desfrute, reflexões e/ou por representar nossos ideais ou projetos de vida, anseios, desejos íntimos, a cultura pop transforma-se em um território de afetamentos, espaço propício para a aderência de significados e a interpelação de sujeitos que assumem certas identidades sociais.
Ditas essas coisas, a afirmação sexual das Spice Girls por meio de suas músicas, performances, entrevistas, dão as tonalidades para a identificação e interpelação do seu público. Os processos de subjetivação que operam na experiência que os sujeitos fazem de si em relação com o mundo são os efeitos de reiterados investimentos discursivos que se espalham na cultura pop, produzindo existências que fogem, por vezes, às normas sociais hegemônicas.
Considerações Finais
As reflexões aqui propostas buscaram compreender o pedagógico que se apresenta para além das salas de aula e dos documentos institucionais, conferindo à música pop uma potência enquanto currículo cultural. A mídia, cada vez mais presente em nosso cotidiano, tem operado como uma promotora de hábitos e estilos de vida em meio às representações culturais que nela se constroem. A música pop, marcada por seu “contínuo processo de incorporação e excorporação de tessituras e valores culturais” (JANOTTI JR., 2016, p. 109), eleva-se em toda a sua potencialidade subjetivadora ao estender seus códigos para além das fronteiras, estabelecendo marcas transculturais e afetivas na confluência de identidades sociais.
As Spice Girls, maior fenômeno da música pop britânica pós-Beatles, poderiam ser consideradas, à luz das análises do teórico cultural Giroux (2012), como influentes pedagogas do século XX, ao mediarem os códigos culturais e domínios de representação. Segundo Driscoll (1999, p. 175), “as invocações do fandom das Spice Girls funcionam diretamente pela identificação: os fãs das Spice Girls são Spice Girls, o material promocional diz isso repetidamente”, e complementa, “e o fãs das Spice Girls gostariam de ser Spice Girls – isso também é dito” [23].
É nesse caminho que traço o meu argumento sobre o Currículo Girl Power das Spice Girls, pois “como qualquer outro artefato cultural, o currículo nos constrói como sujeitos particulares, específicos”, destaca Silva (2012, p. 189). As letras, performances, entrevistas, palavras de ordem, estilos de roupa que distinguem cada personalidade de suas integrantes, fazem das Spice Girls um currículo que opera produções identitárias, pois está envolvido “[...] num processo de constituição e de posicionamento: de constituição do indivíduo como um sujeito de determinado tipo e deu seu múltiplo posicionamento no interior das diversas divisões sociais” (SILVA, 2012, p. 189-190).
Assim, três lições com base na análise do material artístico das Spice Girls aqui selecionado podem ser pinçadas: 1) o poder e a valorização da amizade entre as mulheres como ferramentas de apoio mútuo contra os dilemas da vida; 2) a independência emocional frente aos relacionamentos amorosos, o que representa um contradiscurso aos estereótipos de fragilidade e insegurança feminina; e 3) o empoderamento sexual expresso como uma atitude de resistência aos processos de docilização dos corpos das mulheres.
Ressalto que tais conclusões surgem a partir da análise cultural das músicas das Spice Girls, guardando limitações visto que tratam de um período específico da produção audiovisual, não acompanhando, pois, a recepção do trabalho da banda por parte do público. Algumas perguntas poderiam guiar outras investigações neste caráter: como os/as fãs das Spice Girls se apropriam (ou não) dos discursos da banda? De que forma constroem sentidos individuais e coletivos com outros/as fãs? O feminismo das Spice Girls foi/tem sido empoderador para suas seguidoras? Quais são seus efeitos? Portanto, para o aprofundamento das potencialidades pedagógicas das Spice Girls no que diz respeito aos processos de subjetivação de gênero e de sexualidade, entendo ser de grande importância os estudos de recepção, dentre outras perspectivas abrigadas nos campos da Comunicação, Sociologia e Educação, que se voltem para o público, investigando as aderências de sentidos, os conflitos, as práticas culturais dos sujeitos a partir do consumo midiático.
É importante destacar ainda que os produtos da cultura pop, como as Spice Girls, são parte de um conjunto de artefatos culturais, como a própria escola, os sermões das igrejas, os filmes, as novelas da televisão, a literatura infantil, a moda, etc., que também se organizam, em alguns momentos conjuntamente, para a produção de identidades e comunidades de sentidos. Pesquisar a mídia como um currículo cultural, objetivo deste artigo, revela toda a sua produtividade e nos aponta caminhos de articulação entre campos de conhecimento distintos para uma compreensão crítica de como homens, mulheres, atravessados/as por marcadores variados (gênero, sexualidade, raça, etnia, religião...), se afirmam na sociedade.
Mais do que artistas, compreendo as Spice Girls como produtoras de textos curriculares que (re)afirmam posicionamentos feministas em uma época, década de 1990, onde a temática ainda engatinhava para além dos debates acadêmicos ou de figuras como Madonna. O sucesso da Spice World Tour 2019 e as recentes matérias por todo o mundo comemorativas dos 25 anos do lançamento de Wannabe atestam para a potência da música pop que rompe as fronteiras geográficas e do tempo, estendendo seus enredamentos subjetivadores na conformação de determinados modos de vida. Em Spice up your life, as Spice Girls cantam: “Cores do mundo: apimentem sua vida! Meninos e meninas: apimentem sua vida! Pessoa do mundo: apimentem sua vida!” [24]. Pelo visto, a convocação para uma vida mais afirmativa torna-se cada vez mais atual.
Notas
[1] Na ordem: Emma Bunton, Melanie C., Melanie B., Geri Halliwell e Victoria Beckham. Os apelidos foram dados pela revista britânica Top of the Pops com base no estilo apresentado por cada garota, o que acabou sendo utilizado pelas Spice Girls durante toda a sua carreira.
[2] As traduções ao longo do texto são do autor.
[3] Fandom ou “tietagem” é “o termo utilizado para descrever os fenômenos que envolvem os fãs e seu comportamento: ir aos concertos, colecionar discos, reunir recortes, encher as paredes do quarto com pôsteres e conversar sobre seus ídolos com outros fãs” (SHUKER, 1999, p. 127).
[4] Disponível em: <http://bit.ly/3JyWiJk>. Acesso em: 30 nov. 2022.
[5] Entre elas: G1, Vogue Brasil, UOL, Billboard e Rolling Stone.
[6] É importante destacar que as Spice Girls foram um produto da música pop primeiramente planejado para alcançar as garotas, com destaque para o público, em geral, pré-adolescente (FRITZSCHE, 2004), como nos mostram as canções e performances do grupo, enaltecendo a rebeldia, a sororidade e o poder feminino (o Girl Power), bem como as bonecas, pirulitos, camisetas e outros produtos com a marca das Spice Girls. Iniciando como grupo em 1994, as cantoras tinham entre 18 e 22 anos, o que justifica a escolha do nome Spice Girls, uma referência a idade das garotas. Neste trabalho, ao fazer uso de termos como “menina”, “garota”, “adolescente” e “jovem”, em especial, falo a respeito do público da banda, no momento do seu auge, como estágios da vida, nada homogêneos, que constantemente são afetados pelas representações das mulheres em diversos espaços pedagógicos como as mídias. Como garotas, e agora mulheres, falando a outras mais jovens, percebo uma potência pedagógica das Spice Girls, uma inspiração para modos de vida, o que vai construindo, junto a outras pedagogias na sociedade, as subjetivações de gênero e de sexualidade.
[7] The idea, in essence, was that girls should stand up for themselves as individuals, stick up for each other collectively and, having identified what they want out of life, go out and grab it with both hands.
[8] If you wanna be my lover / You gotta get with my friends / Make it last forever / Friendship never ends.
[9] My friends are with me when you ain’t been around/Your precious words and promises ain’t bringing me down.
[10] Goodbye, my friend / I know you’re gone / You said you’re gone / But i can still feel you here / It’s not the end/You gotta keep it strong before the pain turns into fear.
[11] Now you tell me that you’ve fallen in love / Well I never ever thought that would be / This time you gotta take it easy / Throwing far too much emotions at me.
[12] Gotta slow it down baby, gotta have some fun.
[13] Words of love they don’t wash with me.
[14] Disponível em: <http://bit.ly/42lWZP7>. Acesso em: 15 jul. 2021.
[15] Come a little bit closer baby / Get in on, get it on / Cause tonight is the night when 2 become 1.
[16] Free your mind of doubt and danger / We can achieve it, we can achieve it.
[17] Wanna make love to ya baby.
[18] Set your spirit free/It’s the only way to be.
[19] Be a little bit wiser baby / Put it on, put it on / Cause tonight is the night when 2 become 1.
[20] I wanna make you holler and hear you scream my name.
[21] Imagine us together, me driving you insane.
[22] Start from the bottom and work your way up slowly / Don’t be afraid to play my game.
[23] Invocation of Spice Girls’ fandom work directly by identification: Spice Girls’ fans are Spice Girls, the promotional material says so repeatedly; and, Spice Girls’ fans wish they were Spice Girls – it says that too.
[24] Colours of the word: spice up your life! Every boy every girl: spice up your life! People of the world: spice up your life!
Referências
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