Fake News e Covid-19:

análise de projetos governamentais brasileiros de checagem de fatos

André Lemos1 e Guilherme Reis2

 

1 Professor Titular da FACOM/UFBA. Pesquisador 1 A do CNPq, coordenador do LAb404. E-mail: almlemos@gmail.com.

2 Mestrando no POSCOM/FACOM/UFBA, pesquisador do Lab404. E-mail: guilhermereis.tribuna@gmail.com.

 

Resumo

 

O objetivo deste artigo é mostrar que em três projetos governamentais de checagem de informações falsas, a estrutura da verificação é similar à das Fake News (FN) que pretendem combater. Os projetos nem sempre apresentam provas concretas com referências claras e objetivas sobre a falseabilidade das informações. Investigamos duas iniciativas do governo federal (Saúde sem Fake News e Ministério da Saúde Responde) e uma do governo baiano (Bahia contra o Fake), cujo intuito é checar informações sobre a pandemia de Covid-19 e informar ao público sobre a veracidade ou não destas. Foram analisadas todas as checagens dos três projetos entre fevereiro e setembro de 2020. Apontamos ainda que, devido à forma de divulgação dessas checagens, torna-se imprescindível que as ações de verificação de informações falsas sejam disseminadas em rede para que surtam efeito e para que também ocorram iniciativas contra os seus financiadores, visto que não acontece em nenhum desses projetos. Eles se restringem apenas a publicar as checagens nos sites e no bot do WhatsApp, o que limita bastante o alcance e a eficiência da ação contra as FN.

 

Palavras-chave

 

Fake News; Covid-19; Saúde sem Fake News; Ministério da Saúde Responde; Bahia contra o Fake.

 

Fake News and Covid-19:

analysis of Brazilian government fact-checking projects

André Lemos1 e Guilherme Reis2

 

1 Professor Titular da FACOM/UFBA. Pesquisador 1 A do CNPq, coordenador do LAb404. E-mail: almlemos@gmail.com.

2 Mestrando no POSCOM/FACOM/UFBA, pesquisador do Lab404. E-mail: guilhermereis.tribuna@gmail.com.

 

Abstract

 

The aim of this paper is to show that in three government projects for checking misinformation, the structure of checkings is similar to that of the Fake News (FN) they intend to combat. The projects do not always show concrete evidence with clear and objective references about the information. We investigated two federal government initiatives (Saúde sem Fake News and Ministério da Saúde Responde) and one from Bahia government (Bahia contra o Fake), whose purpose is to check misinformation about the new coronavirus pandemic and to inform the public about the veracity or not of these “news”. All checks of the three projects between February and September 2020 were analyzed. We also point out that, due to the form of disclosure of these checking outputs, it is essential that the actions fight misinformation must be to disseminate them on the network, and that initiatives against their funders also occur, which does not happen in any of these projects. They just publish the checks on the WhatsApp websites and bot, which greatly limits the reach and efficiency of action against the FN.

 

Keywords

 

Fake News; Covid-19; Saúde sem Fake News; Ministério da Saúde Responde; Bahia contra o Fake.

 

 

Introdução

 

O termo Fake News (FN) angariou popularidade internacional em 2016 durante as eleições presidenciais norte-americanas e tornou-se parte definitiva do campo lexical brasileiro em 2018, quando tivemos a eleição de Jair Bolsonaro para a presidência da República. Naquele ano, a classe política do país entendeu o poder dessas informações falsas, propositalmente forjadas e disseminadas pelos mais diversos canais digitais, como WhatsApp, Twitter, Facebook, Youtube e Instagram (DOURADO, 2020). Configurou-se como um fenômeno muito diferente dos boatos e das mentiras políticas costumeiramente propagados em campanhas eleitorais ao longo da história. Embora o termo possa ser entendido de diversas maneiras (TANDOC et al., 2017), para este trabalho propomos entender FN como

[...] mensagens falsas que parecem verdadeiras, produzidas intencionalmente para influenciar pessoas e grupos em função de interesses específicos (LEMOS; OLIVEIRA, 2020), caracterizadas por sua intencionalidade e grau de facticidade. Podem ser classificadas pela intencionalidade imediata de enganar e o quanto parecem verdadeiras (TANDOC et al., 2017). Um conteúdo falso que simula ser um texto noticioso parece mais factível, justamente por evocar o modo como o jornalismo produz referências (LEMOS; OLIVEIRA, 2021, p. 74).

 

Assim sendo, para este artigo utilizaremos o termo FN, embora o mais correto fosse falar em termos de “cadeia de desinformação”, por dois motivos: primeiro pelo oxímoro — se é notícia, pela definição do jornalismo, ela não pode ser falsa — segundo por ser uma cadeia de desinformação constituída por mensagens falsas, simulacro de notícia, veiculada em redes sociais e com intenção política. No entanto, os projetos governamentais citados neste estudo se referem a essas cadeias como FN e, por isso, utilizaremos esse termo.

Já a partir de março de 2020, com a chegada da pandemia do novo coronavírus ao Brasil, o problema ganhou novas dimensões e passamos a ter uma ideia mais clara sobre o real impacto político das FN. Em matéria da Folha de São Paulo[1], segundo levantamento da Agência Lupa, com base em dados do CoronaVerificado e LatamChequea-Coronavírus, o Brasil lidera em desinformação sobre número de casos e de mortes por Covid-19 no mundo. Os Estados Unidos ocupam o segundo lugar nesse ranking. Além disso, alguns dos principais conteúdos desmentidos abordavam supostas fraudes sobre o número de casos da doença. O principal tema das FN sobre a pandemia no Brasil, até junho de 2020, foi o da fraude nos dados sobre casos e mortes por Covid-19 das secretarias estaduais de saúde.

Outro dado espantoso, levantado pelo Avaaz[2] em maio de 2020, aponta que 110 milhões de pessoas (73% da população brasileira) acreditaram em pelo menos uma dessas informações falsas sobre a pandemia. Nos Estados Unidos e na Itália, onde a pesquisa também foi feita, os percentuais foram 65% e 59%, respectivamente. As redes sociais são o locus preferido de disseminação dessas mensagens, sendo que 60% dos internautas brasileiros receberam esse conteúdo pelo WhatsApp e 50% pelo Facebook. Ainda em relação ao Brasil, 80% entrevistados demonstraram interesse em receber informações checadas e 57% disseram que não tiveram contato com nenhum tipo de correção, nem visualizaram notificação de conteúdo falso no Facebook na época.

Apesar da vulnerabilidade à onda das FN, de acordo com matéria da Forbes[3], o Brasil é o país que mais está preocupado com esse problema. Um relatório da Reuters Digital News Report[4], divulgado em junho de 2020, aponta que 84% dos brasileiros estão preocupados com a disseminação de informações falsas, mais do que os portugueses (76%), os quenianos (76%) e os sul-africanos (72%).

A pandemia, em sua dimensão política, é fortemente marcada por uma guerra de narrativas protagonizada pelo governo federal, de um lado, e pela maioria dos governos estaduais, do outro[5]. GOMES (2019 apud DOURADO, 2020, p. 100) aponta para a existência de uma “crise epistêmica” que tem levado a sociedade a desconfiar das instituições, do jornalismo e das demais fontes tradicionais de informação e produção da verdade.

A descrença nos fatos narrados por fontes primárias, desde governos à imprensa, e a construção de versões deturpadas de acontecimentos públicos, baseadas em teorias da conspiração ou na esquizofrenia populista, podem ser mais bem compreendidas à luz da ideia de crise epistêmica (GOMES, 2019). Crise epistêmica, aqui, busca explicar o comportamento de indivíduos e do coletivo social que abdica e nega o conhecimento construído acerca de um fato, de modo a apresentá-lo e justificá-lo na justa medida das crenças subjetivas compartilhadas por si ou por seu grupo social, mesmo sendo ele falso (DOURADO, 2020).

 

Nessa era de crise epistêmica, as FN atuam na construção de um sentido para a realidade baseada muito mais em crenças e ideologias, ou em ideias favoráveis aos interesses de determinados grupos, do que em fatos científicos e/ou jornalisticamente apurados. Como afirma Galhardi et al. (2020), o objetivo é “exaltar uma instituição ou uma pessoa, diante de um assunto específico, para obter vantagens econômicas e políticas” (GALHARDI et al., 2020, p. 4203). Lemos e Oliveira (2021) mostraram que as FN funcionam como simulacro de notícias jornalísticas. Eles argumentam que o fazer jornalístico se aproxima do científico na medida em que se ancora em cadeias de referência (LATOUR, 2018) sólidas no processo de produção da notícia ou do fato científico. No jornalismo há apuração dos fatos, realização de entrevistas e uso de documentos e outras fontes de informação, similar à prática científica. Como afirmam os autores,

As FN simulam a notícia jornalística fazendo crer que se baseiam em referências sólidas, como um fato científico, sendo que, na realidade, funcionam na base de um outro modo de referência, o religioso (REL), com a adesão à crença e à fé em quem posta a informação e nos conteúdos que as reforcem (LEMOS; OLIVEIRA, 2021, p. 74).

 

Os projetos governamentais de checagem devem se valer de critérios claros e objetivos para apontar informações falsas. Caso contrário, podem ser acusados de serem baseados em parâmetros político-ideológicos favoráveis na escolha de suas fontes e referências, valendo-se de suas posições oficiais. As checagens devem apresentar as fontes de forma inequívoca e especificar a origem do conteúdo. Não basta, para esses projetos, dizer que uma informação é falsa apenas por ocupar uma posição oficial. Apontar para a falseabilidade da informação sem apresentar dados consistentes sobre ela, servindo-se apenas da sua posição de agente público que, como tal, garantiria a veracidade da informação, é agir da mesma forma que os grupos que disseminam notícias falsas, que se baseiam em cadeias de referências frágeis (LEMOS; OLIVEIRA, 2021).

Partindo dessa premissa, investigamos três projetos governamentais para entender as formas de checagem de informação falsa em relação à pandemia do novo coronavírus: Saúde sem Fake News e Ministério da Saúde Responde, do Governo Federal, e Bahia contra o Fake, do governo baiano. Os serviços governamentais de checagem de fatos constituem um fenômeno recente e pouco estudado, bem como o próprio tema das Fake News (BERTOLLI FILHO; MONARI, 2019). Praticamente todos os serviços semelhantes existentes hoje no Brasil, criados por gestões públicas, surgiram para tentar combater a onda de FN sobre a pandemia de Covid-19.

 

Os projetos Saúde sem Fake News, Ministério da Saúde Responde e Bahia contra o Fake

a) Saúde sem Fake News

O Saúde sem Fake News[6] do Ministério da Saúde foi lançado um ano e meio antes das notícias informativas sobre o surgimento da nova doença — mais precisamente em agosto de 2018. O projeto funciona na assessoria de comunicação do Ministério da Saúde, mas não há informações sobre a quantidade de profissionais envolvidos, qual a especialização de cada um, como é a rotina produtiva, ou que dispositivos utilizam. Os dados que temos foram colhidos no próprio site e em seus documentos.

Ao acessar o site, abaixo do cabeçalho e da logo do Ministério da Saúde, lemos as seguintes frases: “Acha que está com sintomas da Covid-19?”, “O que fazer?” e “O que você precisa saber!”. Há um texto introdutório, de dois parágrafos, que explica do que se trata o projeto e como as pessoas podem recorrer a ele para checar informações:

Para combater as Fake News sobre saúde, o Ministério da Saúde, de forma inovadora, está disponibilizando um número de WhatsApp para envio de mensagens da população. Vale destacar que o canal não será um SAC ou tira dúvidas dos usuários, mas um espaço exclusivo para receber informações virais, que serão apuradas pelas áreas técnicas e respondidas oficialmente se são verdade ou mentira. Qualquer cidadão poderá enviar gratuitamente mensagens com imagens ou textos que tenha recebido nas redes sociais para confirmar se a informação procede, antes de continuar compartilhando. O número é (61) 99333-8597 (BRASIL, 2018).

 

Ao clicarmos no link dos termos de uso, um arquivo em PDF informa que o atendimento funciona “de 2ª a 6ª feira (exceto feriados), das 10h30 às 12h e das 14h às 18h (horário de Brasília-DF)” (BRASIL, 2018). Para utilizar o serviço, o cidadão deve enviar uma mensagem por WhatsApp contendo nome completo, município e estado de residência e a informação que deseja averiguar. Há um grupo de jornalistas na assessoria de comunicação do Ministério da Saúde encarregado do projeto. É essa assessoria que envia as mensagens que chegam para os setores da pasta responsáveis pelos temas de que tratam as Fake News enviadas pelos usuários. Todas as ocorrências respondidas poderão ser encontradas no site, que detalha o regulamento, acrescentando que não há um prazo fixo para que as demandas sejam atendidas.

A equipe multimídia do Ministério da Ministério da Saúde Responderá a ocorrência ao(à) cidadão(ã) com um selo de ‘isto é notícia falsa’ ou de ‘isto é notícia verdadeira’. Após a finalização da ocorrência, a dúvida e a resposta serão publicadas no Portal Saúde e nos perfis oficiais do Ministério da Saúde nas redes sociais. Os dados pessoais do(a) cidadão(ã) não serão divulgados (BRASIL, 2018).

 

O tópico 2, intitulado “Assuntos”, esclarece que “o canal SAÚDE SEM FAKE NEWS visa, exclusivamente, esclarecer informações que a população enviar, com o intuito de confirmar se estas se tratam de verdades ou não” (BRASIL, 2018). Diz ainda que não responderá mensagens que “tenham conotação política, partidária e/ou religiosa” (BRASIL, 2018). O tópico 3 informa que usuários serão bloqueados caso enviem, mais de uma vez, mensagens que se desviem do propósito do canal ou incluam o número em grupos e/ou listas de transmissão. Desde que o governo federal reformulou seus portais, em 2020, o site segue sem atualização.

Nota-se claramente que o projeto fica refém de uma posição ativa do usuário que busca saber se uma informação é verdadeira. Se não houver busca, não há circulação da notícia. Portanto, esse comportamento (de buscar a informação, de checar e de desconfiar) não é daquele que adere facilmente às Fake News. Uma ação eficaz deveria ser a de ir às redes sociais, explicitar e denunciar as NF. Esperar um usuário ativo em busca de informação não ajuda muito ao combate do processo de viralização da desinformação.

Abaixo do link do regulamento há outro intitulado “Alimentação e Fake News”, que contém um texto alertando sobre a recorrência de informações falsas relacionando alimentos a uma suposta prevenção à Covid-19. Como veremos, prevenção é um dos temas mais recorrentes nas checagens de FN sobre a pandemia. As verificações são publicadas em uma lista no site, com conteúdos curtos, geralmente com três parágrafos, acompanhando uma arte gráfica com uma reprodução da Fake News, um “carimbo” de verdadeiro ou falso e um breve texto explicando o conteúdo.

 

b) Ministério da Saúde Responde

O projeto Ministério da Saúde Responde, também do Ministério da Saúde, foi lançado em março de 2020. Trata-se de um bot no WhatsApp que contém dez checagens de Fake News relacionadas, em sua maioria, a formas de contaminação e a possíveis métodos de prevenção da Covid-19. Desenvolvido pelo Robbu/Positus, um dos provedores homologados para acessar a API do WhatsApp Business, o bot visa dar orientações sobre a doença, como tratamento, formas de contaminação, métodos preventivos e checagem de FN.

O serviço pode ser acessado no WhatsApp Web pelo celular pelo número +55 (61) 9938-0031. A conversa deve ser iniciada com um “Oi”. Feito isso, ele apresenta um menu de 11 tópicos: 1 - Verificar sintomas; 2 - O Coronavírus; 3 – Transmissão; 4 – Sintomas; 5 – Prevenção; 6 – Diagnóstico; 7 - Isolamento domiciliar; 8 – Tratamento; 9 - Ação no Brasil; 10 - Fake ou Verdade!?; 11 - Profissional de saúde. Caso escolha “Fake ou Verdade!?”, o usuário recebe uma nova lista, desta vez composta por dez informações. Para saber se uma delas é falsa ou verdadeira, é preciso digitar e enviar o número correspondente à informação de interesse.

O serviço não mostra a Fake News propriamente dita ao usuário, apenas a informação falsa e a explicação sobre por que ela não procede, porém, mais uma vez, sem explicitar as referências. Da mesma forma do anterior, o projeto é refém de uma busca ativa do usuário, sendo pouco efetivo, consequentemente, pois esse tipo de usuário já seria, em tese, mais refratário a consumir as FN.

 

c) Bahia contra o Fake

O projeto Bahia contra o Fake foi lançado em 12 de maio de 2020 pelo Governo de Estado da Bahia. Os canais disponibilizados são os perfis oficiais do governo no Facebook[7] e no Instagram[8] para os quais o usuário pode enviar uma mensagem por meio da seção de comentários, ou inbox, e pelo número de WhatsApp +55 (71) 99646-4095. Há um site[9] onde as checagens são publicadas. Ao acessarmos, nos deparamos com a seguinte mensagem na tela inicial:

Fake News é crime — Não caia na tentação de simplesmente espalhar tudo que chega às suas mãos. Confira, desconfie, questione, converse com pessoas próximas, procure em mais de uma fonte e busque a informação original, não se deixe manipular. Quem espalha Fake News é também responsável por suas consequências (BAHIA, 2020).

 

Há ainda um formulário que o usuário pode preencher com nome, e-mail e a denúncia, ou seja, a Fake News que ele quer checar. Segue-se a isso uma listagem com as FN desmentidas pelo serviço. Por fim, há uma relação de vídeos com autoridades e especialistas sobre o tema e uma lista com artigos publicados em diversos portais e sites noticiosos para os quais o usuário é redirecionado ao clicar. Da mesma forma que os projetos do Ministério da Saúde, o Bahia contra o Fake é também refém da demanda consciente do usuário, já que não publiciza de forma mais ativa a denúncia e os esclarecimentos sobre desinformações que estão circulando.

O Bahia contra o Fake funciona na Secretaria de Comunicação do Estado da Bahia e foi idealizado pelo secretário, André Curvello, em diálogo com os outros secretários de Comunicação do Nordeste. Segundo o chefe da Secom, Diego Mascarenhas, em entrevista a um dos autores do texto[10], cerca de três jornalistas ficam encarregados do projeto, embora eles também desempenhem outras atividades na estrutura da Secom. Todo o material enviado pelos usuários para averiguação é checado, desde que abordem questões relacionadas ao governo do Estado. Durante esse processo, as assessorias dos outros órgãos do governo podem ser acionadas para fornecer as informações necessárias.

A equipe do Bahia contra o Fake também recorre a veículos jornalísticos e agências de checagens tradicionais. Os canais são verificados pelos jornalistas responsáveis três vezes por dia. Os mais utilizados pelos usuários são o WhatsApp e o Twitter. De modo geral, uma parte das checagens é composta por uma reprodução da Fake News, em preto e branco, com um carimbo de FAKE em vermelho e um texto que explica por que a informação é falsa. Porém, uma parcela considerável dos textos traz apenas uma imagem ilustrativa genérica.

 

Análise das estruturas de checagens dos projetos governamentais de verificação de fatos

A metodologia que utilizamos para analisar os três projetos públicos de checagem parte da elaboração de uma matriz de análise da estrutura das checagens. Os dados foram organizados em três matrizes analíticas, uma para cada projeto a partir das seguintes categorias de análise:

1. Tema: O tema da Fake News e, por conseguinte, da checagem;

2. Fonte: A origem da informação utilizada pelo serviço de checagem para argumentar e provar a falsidade da Fake News em questão. Consideramos como fonte a citação a documentos, artigos, reportagens, referência a órgãos oficiais;

3. Tipos de fontes: oficiais (governo ou órgãos e entidades com autoridade em determinada área), empresarial (empresas privadas com legitimidade para se posicionar sobre algum tema específico), agências de checagem, pesquisa científica (referência a artigos ou periódicos científicos) e jornalísticas;

4.  Autoria: A autoria das fontes;

5. Origem da Fake News: WhatsApp, Facebook, Twitter, Youtube ou qualquer outro site ou canal da internet.

Para analisar o projeto Saúde sem Fake News, selecionamos todas as checagens iniciando após a chegada oficial da doença ao Brasil, no dia 26 de fevereiro de 2020, até 3 de setembro de 2020, data em que começamos as análises. Ao todo, são 49 checagens. No projeto Bahia contra o Fake, selecionamos todas as 26 checagens publicadas no site entre os dias 12 de maio e 15 de setembro de 2020. Em relação ao Ministério da Saúde Responde, selecionamos todas as checagens do bot. Ao todo, são apenas 10 textos curtos. Apresentamos abaixo os resultados por projeto.

 

a) Saúde sem Fake News

Verificamos nesse projeto que a maioria das Fake News checadas tem origem no WhatsApp (30, ou seja, 61,22%). Enquanto 17 verificações (34,7%) não identificam a sua origem. O gráfico 1 apresenta esta distribuição das origens conforme sua disseminação.

 

Gráfico 1 - Origem das Fake News.

https://bit.ly/32cHoXc

Fonte: Elaborados pelos autores com informações de “Saúde sem Fake News” (2020) - antigo.saude.gov.br/fakenews

 

A maioria das checagens desse projeto apresenta as fontes que utilizaram para verificar as informações, ou seja, 28 (57,14%), sendo que destas, a maioria é de fontes oficiais (12 – 42,8%) e científicas (4 – 14,2%). É importante salientar que quase metade das checagens não apresenta qualquer fonte de informação (21 – 42,86%) e apenas 5 fontes (17,86%) possuem autoria. Há uma maior recorrência dos seguintes temas de FN: “prevenção ao coronavírus” (16 – 32,7%), seguido por “casos de coronavírus” no Brasil (5 – 10,2%), e “origem” do vírus (5 – 10,2%). O gráfico 2 abaixo mostra os temas mais recorrentes.

 

Gráfico 2 - Temas das Fake News.

https://bit.ly/3IYhSWN

Fonte: Elaborados pelos autores com informações de “Saúde sem Fake News” (2020) - antigo.saude.gov.br/fakenews.

 

A estrutura de todas as checagens é formada por uma reprodução da Fake News sobre uma arte com a logo do Ministério da Saúde. Em seguida aparece o texto que explica a falsidade do conteúdo. A estrutura de rastreabilidade da cadeia de referência que daria confiabilidade à informação checada não é profunda, principalmente no que tange às fontes e à autoria. Parece que por ser um projeto do Ministério da Saúde, isso por si só dispensaria a apresentação de dados mais sólidos. Mais da metade das checagens (28 – 57,14%) que traz fontes de informação, estas são do próprio Ministério da Saúde. Há ainda um padrão estrutural nos textos, que começa e termina com a predominância da função apelativa da linguagem. São comuns frases como “Não compartilhe essa mensagem” e “Para saber mais sobre a doença, acesse saúde.gov.br/coronavírus”. Isso sugere que o Saúde sem Fake News tenta orientar, ainda que de forma parcial — recorrendo a fontes oficiais ligadas ao próprio governo —, a opinião do público para a mensagem que o Ministério da Saúde emite, mesmo sem oferecer dados consistentes sobre a checagem.

 

b) Bahia contra o Fake

Nesse projeto, como no anterior, a origem das Fake News é apontada em apenas 9 checagens (33,3%). Das 27 checagens, 6 (22,2%) vêm do WhatsApp (Gráfico 3). Todos os temas têm relação, direta ou indireta, com a gestão estadual. Os mais recorrentes são “atos ou medidas do governo” (13 – 48,1%) e “corrupção” (4 – 14,8%). Os demais não seguem um padrão temático. Por conta dessa característica, os textos assumem o tom de “nota oficial”: três das checagens, por exemplo, começam com a frase “O Governo do Estado esclarece…”. Das 27 checagens selecionadas, 20 (74%) trazem fontes, ainda que sejam citadas de forma genérica.

 

Gráfico 3 - Origem das Fake News.

https://bit.ly/3IYhSWN

Fonte: Elaborados pelos autores com informações de “Bahia contra o Fake” (2021) - bahiacontraofake.com.br.

 

Observamos que há uma discrepância entre o que o projeto “promete” ao leitor (checar Fake News de forma isenta e sem filtros políticos-ideológicos) e o que ele de fato entrega (verificações de Fake News relacionadas apenas à gestão estadual). O objetivo do Bahia contra o Fake é a defesa da imagem, do discurso e das políticas do governo do Estado da Bahia. Segundo o chefe da Secretaria de Comunicação, Diego Mascarenhas, o principal critério de seleção das Fake News a serem checadas é justamente o fato de envolverem a gestão estadual — embora essa informação não esteja clara para o leitor no site. No Bahia contra o Fake, muitas Fake News são deixadas de fora por não se enquadrar nos critérios preestabelecidos.

Podemos dizer que todas as checagens são notas oficiais com o objetivo de desmentir informações falsas e defender o posicionamento do governo, ou de órgãos que compõem a estrutura da gestão. Das 16 checagens de fontes oficiais, 15 (94%) recorrem ao próprio governo. Da mesma forma que o projeto anterior, não há rastros robustos da veracidade da informação apresentada. O lugar da checagem já garantiria a confiabilidade dos dados e dispensaria referências mais robustas das informações que desmentem as Fake News.

Nesse projeto quase não há reprodução da Fake News, nem menção direta a ela, deixando o leitor refém da narrativa e da interpretação dada pelo Bahia contra o Fake e pelo governo do estado.

 

c) Ministério da Saúde Responde

O bot desenvolvido pelo WhatsApp em parceria com o Ministério da Saúde comporta-se de forma diferente do Saúde sem Fake News e do Bahia contra o Fake no que se refere às fontes das checagens. Os textos, que são curtos e obedecem a um padrão estrutural (cerca de três parágrafos, frases pequenas e tom informativo) e temático (geralmente abordam formas de transmissão, prevenção e origem do vírus) são competentes em informar o leitor sobre a pandemia, mas são vagos e superficiais no que se refere às Fake News que estão sendo checadas (imagem 1).

 

Imagem 1 - Bot do Ministério da Saúde Responde.

https://bit.ly/3Fbph2D

Fonte: Ministério da Saúde Responde no WhatsApp (2020) – (61) 9938-0031.

 

Em nenhum momento sabemos qual de fato é a peça informativa em questão. Os textos possuem linguagem objetiva e direta, com poucos adjetivos e não demonstram tomar partido de governos ou instituições. O tema mais recorrente diz respeito a supostos métodos de “prevenção” ao coronavírus (4 – 40%), possíveis formas de “transmissão” (3 – 30%) e a suposta “origem” do vírus (2 – 20%). Dos 10 textos, 70% não têm fonte ou autoria. Nesse projeto comprova-se a hipótese de maneira mais concreta no quesito carência de fontes, valendo-se na maioria das vezes de informações vagas, sem a devida comprovação (nos textos das checagens), para sustentar que determinado conteúdo se trata de uma Fake News.

 

Considerações Finais

Desde seu início, em 24 de agosto de 2018, o Saúde sem Fake News publicou 231 checagens até 17 de julho 2020, data da última atualização do site. Entretanto, em 29 de fevereiro de 2020[11], o Ministério da Saúde divulgou que o serviço recebeu, entre 22 de janeiro e 27 de fevereiro daquele ano, 6,5 mil mensagens com solicitações de checagens por parte dos usuários — 90% delas relacionadas à pandemia. Já o Bahia contra o Fake checou 83 FN entre 12 de maio de 2020 e 23 de junho de 2021. Porém, a Secretaria de Comunicação do Estado da Bahia, em resposta ao nosso questionário, afirmou que não tem dados consolidados de quantas mensagens recebeu durante o período de atividade do projeto. Por sua vez, o Ministério da Saúde Responde contém apenas 10 FN, sobre as quais o usuário do bot pode ler e entender por que aquela informação é falsa. Ao todo, os três projetos apresentaram, juntos, 324 checagens.

As checagens analisadas no período mencionado acima, exclusivamente sobre a pandemia, totalizam 86 textos. Destes, 51 (59,3%) apresentam fontes (gráfico 4), 41 (47,7%) mencionam a origem da FN, sendo que 36 (41,86%) vieram do WhatsApp. Os temas mais recorrentes são “prevenção” (20 – 23,26%) e “atos ou medidas do governo” (13, 15,12%).

Após análise dos projetos, podemos dizer que a hipótese foi confirmada, ou seja, a checagem não apresenta de forma consistente as fontes, a autoria ou os dados mais precisos sobre aquilo que pretende contrapor às Fake News. Não vemos imagens e reproduções nem sempre são apresentadas. Os textos são pouco elaborados e/ou aprofundados. As checagens também não possuem assinatura do jornalista responsável pelo texto, como acontece em agências de checagem tradicionais e em textos jornalísticos.

Em linhas gerais, os gráficos apresentados neste estudo sintetizam as informações obtidas pelas análises de cada um dos três projetos. Podemos perceber, por exemplo, que o tema “prevenção” é o mais recorrente nos projetos federais (Saúde sem Fake News e Ministério da Saúde Responde) e que o WhatsApp foi a plataforma de onde veio a maioria das FN checadas pelo Saúde sem Fake News e pelo Bahia contra o Fake. A materialidade dessa rede (pautada pela não mediação algorítmica e pela dimensão mais comunitária e identitária) comprova o que apontam outros estudos sobre o tema (SANTOS et al., 2019).

 

 

Gráfico 4 — Síntese dos dados dos projetos.

https://bit.ly/3IUQGrU

Fonte: Elaborados pelos autores com informações de Bahia contra o Fake (2020) - bahiacontraofake.com.br; Ministério da Saúde Responde (2020); Saúde sem Fake News (2020) - antigo.saude.gov.br/fakenews.

 

Em relação ao Ministério da Saúde Responde, chama a atenção o fato de o bot não mencionar a origem de nenhum dos conteúdos checados. Porém, embora os outros dois serviços apontem a origem, isso acontece em cerca de 30% das checagens analisadas. Além disso, observamos uma discrepância entre a quantidade de fontes e a escassez de autoria das mesmas.

Como vimos, os dois projetos federais estão mais focados em checar informações sobre aspectos gerais da pandemia, como formas de transmissão do vírus e métodos de prevenção, além de mitos sobre a origem do patógeno (embora também tragam checagens em forma de “notas oficiais” e recorram muito a fontes oficiais). Por sua vez, o projeto de checagem baiano traz apenas checagens de Fake News que busquem, de alguma maneira, atingir o governo do estado.

O que mais se aproxima de uma apresentação das referências é o Bahia contra o Fake, com 80,7% das mensagens como fontes, mas estas são provenientes do gerente do projeto, o Estado da Bahia. As referências oficiais são ligadas ao governo da Bahia (checagens e fontes sem assinatura). Fica claro que o lugar do projeto governamental é aqui um álibi para não precisar apresentar muitos dados. Já o Ministério da Saúde Responde é o mais carente de fontes. Os textos são curtos, simples e nunca especificam a Fake News que está sendo checada.

Os projetos não se constituem como prestadores de serviços de checagem de FN nos moldes das grandes agências nacionais e internacionais. No entanto, sejam de um ou outro formato, sob pena de gerar desconfiança, os canais governamentais analisados deveriam expor de forma mais clara as referências das informações apresentadas para contradizer uma desinformação. Caso contrário, o viés político dos projetos públicos de verificação pode, em algum momento, surtir efeito contrário, fortalecendo as Fake News. Isso porque a polarização política e discursiva, marcada pela tensão político-ideológica, cria um clima favorável à desinformação (BALL, 2017, p. 187-188). A credibilidade do conteúdo passa pela autoria e pela “qualidade” das fontes. “A confiança ‘dependerá em boa medida se a fonte é entendida como objetiva, honesta e não movida por interesses suspeitos’” (RODRIGUES, 2007, p. 76).

Outra questão importante em termos de eficiência é que apresentar respostas às Fake News apenas a quem busca, como fazem todos os projetos, não resolve o problema justamente pela característica do modo de propagação da desinformação. As cadeias de desinformação são eficientes justamente por funcionarem tendo por base a identidade e o vínculo ideológico e não pela busca consciente pela veracidade da informação. Deixar as informações nos sites, ou oferecê-las a partir da demanda dos usuários não é uma forma eficaz de luta contra essa situação.

Ações de checagem também são insuficientes para combater as Fake News se não houver disseminação em rede do desmentido e ação contra os financiadores. Sem isso, esses projetos têm pouca efetividade. E não há ocorrência de intervenções mais combativas em nenhum dos três projetos analisados nesse artigo. Eles estão limitados a publicar as checagens nos sites e pelo bot do WhatsApp, o que limita bastante o alcance e a eficiência da ação.

Portanto, o método de contrapor às Fake News utilizado pelos três projetos de checagem governamentais é frágil, por razões que vão desde a escolha das fontes (oficiais, ligadas ao próprio governo), de carência de referências concretas, de autoria, de linguagem e de abordagem, abrindo mão de noções caras ao jornalismo, como a objetividade (HENRIQUES, 2016).

Sabemos que esses projetos governamentais não têm o mesmo modo de operação de uma agência de notícias, ou mesmo de uma agência de checagem jornalística, mas deveriam fazer algo próximo do método jornalístico, como recorrer a fontes variadas, apresentar dados e informações consistentes, uso de imagens — nesse caso, apresentar reproduções das fake news (BENETTI; LISBOA, 2015), ou dados científicos para informar os cidadãos sobre Fake News evitando gerar ainda mais desconfiança.

 

Notas

 

[1] AGÊNCIA LUPA (Maurício Moraes). Brasil lidera desinformação sobre número de casos e mortes por Covid-19 no mundo. Folha de São Paulo, São Paulo, 10 jun. 2020. Disponível em: <https://bit.ly/3o3etwg>.  Acesso em: 25 fev. 2021.

[2] MAYARA, J. Coronavírus: Fake News atinge 110 milhões de brasileiros. Estado de Minas, Belo Horizonte, 21 mai. 2020. Disponível em: <https://bit.ly/3mPXcHC>.  Acesso em: 24 fev. 2021.

[3] FORBES. 12 países com maior exposição a Fake News. Forbes, São Paulo, 25 jul. 2018. Disponível em: <https://bit.ly/3bMIH0S>. Acesso em: 24 fev. 2021.

[4] PODER 360. Brasil é o país onde há mais preocupação com Fake News. Poder360, [S.l.], 16 jun. 2020. Disponível em: <https://bit.ly/3CWr5vu>.  Acesso em: 25 fev. 2020.

[5] TENNÓRIO, A. Com agravamento da pandemia, Bolsonaro e governadores voltam a entrar em rota de colisão. Folha de Pernambuco, Recife, 20 mar. 2021. Disponível em: <https://bit.ly/3CRgXUv>. Acesso em: 24 abr. 2021.

[6] SAÚDE SEM FAKE NEWS. Disponível em: <https://bit.ly/3wmlNHa>. <http://saude.gov.br/fakenews>. Acesso em: 15 mar. 2020.

 [7] Disponível em: <https://bit.ly/3CORJ9p>. Acesso em:14 abr. 2020.

[8] Disponível em: <https://bit.ly/3ENB9Ya>. Acesso em: 7 ago. 2020.

[9] Disponível em: <https://bit.ly/3C0CUiZ>. Acesso em: 7 ago. 2020.

[10] Foram enviados questionários aos responsáveis de todos os projetos, mas obtivemos apenas resposta do projeto Bahia contra o Fake.

[11] CANCIAN, N. Fake news atingem 85% das mensagens sobre coronavírus checadas pelo Ministério da Saúde. Folha de São Paulo, São Paulo, 29 fev. 2020. Disponível em: <https://bit.ly/3EUgQIF>.  Acesso em: 29 jun. 2021.

 

Referências

 

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Sobre o artigo

 

Esse artigo faz parte da pesquisa do CNPq PQ-1A - 307448/2018-5. ORCID: <http://orcid.org/0000-0001-9291-6494>.