Pensar com as telas:

resenha crítica de Ver segundo o quadro, ver segundo as telas de Mauro Carbone

Anelise De Carli1

Resumo

Lançado no final de 2019, nas vésperas da pandemia da Covid-19 e da consequente pulverização de discussões sobre a convivialidade digital, a coletânea de ensaios Ver segundo o quadro, ver segundo as telas é o primeiro livro no Brasil do filósofo italiano radicado na França Mauro Carbone. Reunindo quatro textos dos últimos anos de seu trabalho, nele, o autor, de forte acento transdisciplinar, promove conversações entre teóricos do cinema, teóricos da imagem e teóricos da mídia e apresenta reflexões que colocam o fenômeno das telas como central para a filosofia contemporânea da comunicação. Partindo de uma leitura contemporânea de Merleau-Ponty, Carbone adiciona historicidade ao processo da percepção indicando que os modos de ver e de se fazer visível são mediados e condicionados pelos meios de comunicação [media] de cada período histórico. O filósofo aponta que é a tela o dispositivo visual de referência da nossa época e que, com a ajuda do cinema, podemos compreendê-la não como uma janela que tudo mostra, mas algo “[...] cuja opacidade, em vez de esconder, nos permite ver”. O livro, desafiador e ao mesmo tempo acessível, propõe conceitos como os da “arquitela” [archi-écran] e da “filosofia-cinema” [philosophie-écrans] e noções como a da precessão recíproca entre a visão e o visível.

Palavras-chave

Telas; Cinema; Imagem; Fenomenologia; Estética.

1 Doutora em Comunicação pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). Professora substituta da Escola de Belas Artes da Universidade Federal do Rio de Janeiro (EBA/UFRJ) e pesquisadora da Associação de Pesquisas e Práticas em Humanidades (APPH). E-mail: anelisedecarli@gmail.com.

Thinking with screens:

critical review of Ver segundo o quadro, ver segundo as telas by Mauro Carbone

Anelise De Carli1

Abstract

Released in late 2019, on the eve of the Covid-19 pandemic and the consequent pulverization of discussions about digital conviviality, the collection of essays Ver segundo o quadro, ver segundo as telas is the first book in Brazil by Mauro Carbone, a Italian philosopher living in France. Bringing together four texts from the last years of his work, the author, with a strong transdisciplinary accent, promotes conversations among film theorists, image theorists and media theorists, and presents reflections that place the phenomenon of the screens as central to the contemporary philosophy of communication. Based on a contemporary reading of Merleau-Ponty, Carbone adds historicity to the process of perception, indicating that the ways of seeing and making oneself visible are mediated and conditioned by the media of each historical period. The philosopher points out that the screen is the visual reference device of our time and that, with the help of cinema, we can understand it not as a window that shows everything, but something “[...] whose opacity, instead of hiding, allows us to see”. The book, challenging and at the same time accessible, proposes concepts such as those of the “architela” [archi-écran] and the “philosophy-cinema” [philosophie-écrans] and notions such as that of the reciprocal precession between vision and the visible.

Keywords

Screens; Cinema; Image; Phenomenology; Aesthetics.

1 Doutora em Comunicação pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). Professora substituta da Escola de Belas Artes da Universidade Federal do Rio de Janeiro (EBA/UFRJ) e pesquisadora da Associação de Pesquisas e Práticas em Humanidades (APPH). E-mail: anelisedecarli@gmail.com.

Às vésperas do final do último ano antes da pandemia da Covid-19, foi publicado no Brasil um livro essencial para pensar o fenômeno das telas, ferramenta de convívio e meio de comunicação que atravessou de forma visceral o biênio seguinte das nossas vidas. Trata-se de Ver segundo o quadro, ver segundo as telas, do filósofo italiano Mauro Carbone, publicado pela Editora da Universidade de Caxias do Sul.

Carbone é professor da Faculdade de Filosofia da Université Jean Moulin Lyon 3 e tem se dedicado à áreas da estética contemporânea e da cultura visual. Embora já tenha sido publicado e traduzido na França, na Itália, nos Estados Unidos e no Japão, este é o primeiro livro do autor em língua portuguesa. O volume reúne quatro ensaios traduzidos pelos pesquisadores e professores brasileiros Ana Taís Martins [1], Bortolo Valle [2] e Ericson Falabretti [3], com fotografia de capa da artista e filósofa italiana Marta Nijhuis.

O livro, desafiador e ao mesmo tempo acessível, oferece uma boa porta de entrada para o pensamento e o estilo de trabalho de Carbone: um jogo textual entre o convidativo e o profundo, o que parece ser a melhor combinação possível para um trabalho em filosofia contemporânea, ainda mais aquela que se propõe a uma conversa transdisciplinar. Ao longo do livro, o autor faz conversar referências advindas de diferentes áreas do conhecimento, tais como as de teóricos do cinema como André Bazin e Christian Metz, teóricos da imagem como W.J.T. Mitchell e Martin Jay e teóricos da mídia como Lev Manovich e Marshall McLuhan com a filosofia contemporânea de Maurice Merleau-Ponty, Gilles Deleuze e Walter Benjamin.

O volume se destina aos pesquisadores brasileiros provenientes do campo da Comunicação, da Filosofia e das Humanidades, mas também ao público não acadêmico interessado em cinema e arte em geral ou mesmo, mais especificamente, nas tecnologias digitais e na cibercultura. No livro, as ideias vão sendo apresentadas pouco a pouco, através da retomada de cenas e frames coletados de filmes de Jean Vigo, Jean-Luc Godard ou Werner Herzog, por exemplo, que ganham o mesmo peso epistemológico na discussão que os conceitos platônicos ou deleuzianos.

Carbone é um especialista na obra de Maurice Merleau-Ponty, sendo fundador e diretor do periódico Chiasmi International, dedicada a comentar e atualizar o trabalho do fenomenólogo. Não são poucos os ajustes necessários para fazer as reflexões presentes em livros publicados há 70 ou 80 anos se sustentarem na discussão contemporânea, embora muitos dos insights inovadores ainda permaneçam pertinentes e, por isso mesmo, seja preciso entender o motivo dessa relevância. A dedicação de Carbone nesse sentido é confirmada pela série de notas que detalham minuciosamente os trabalhos de Merleau-Ponty, desde a criação de termos, passando pela pesquisa de arquivos não publicados e o trabalho de outros interpretadores até comentários reveladores sobre as proposições mais nebulosas do autor – passeando, assim, livremente pelos mais intrincados textos, como é típico do trabalho de especialistas.

No primeiro capítulo, Pintura e “pré-mundo”, Carbone se dedica às reflexões de Merleau-Ponty sobre Cézanne e o seu entendimento de fenomenologia. Dando o tom desde o ponto de partida do livro, aqui Carbone (2019, p. 28) enfatiza “[...] o caráter inseparável da relação entre o corpo próprio e o mundo percebido” e, desse modo, sublinha o entendimento de que “[...] a dimensão estética se revela [...] como o princípio (arché) e, em seu sentido pleno, como o fim (télos) de nosso ser-no-mundo” (CARBONE, 2019, p. 35-36). Estar atento a esse caráter circular da experiência estética pode levar a um acento pronunciado nas investigações sobre a subjetividade, como ele alerta, mas pode também — e essa é a aposta do autor— servir de heurística para os estudos que pretendem evidenciar o entrelaçamento irremediável entre estética e ontologia e tirar-lhe as consequências. Este primeiro texto nos prepara para a sequência de conceitos apresentados nos capítulos seguintes.

O volume segue com o texto O filósofo e o cineasta, onde Carbone explora as propostas merleau-pontianas sobre o cinema e mostra como essa arte tem mais ligações do que se imagina com a filosofia contemporânea. O caráter sinestésico da percepção é evidenciado pela invenção cinematográfica e, por isso, tendo ela a capacidade de “fazer ver em vez de explicar” (CARBONE, 2019, p. 43), o melhor entendimento que essa constatação poderia nos oferecer, como indica Carbone (2019, p. 52), é de que a “a ideia [do filme] é [...] indiscernível de sua manifestação sensível”. Nesse sentido, não procede uma abordagem do cinema que o encare como um objeto disponível à desconstrução, à desmontagem, no intuito de uma análise formal que dê a ver o seu sentido. Pelo contrário, Carbone propõe pensar, com ajuda do cinema, a precessão recíproca entre a visão e o visível. Assim, abandona-se definitivamente a possibilidade de uma observação objetivante do cinema, que vê a imagem como uma “segunda coisa” (CARBONE, 2019, p. 79) — e a série de corolários decorrentes do paradigma representacional —, colocando-se no lugar da representação a lógica fenomênica do movimento, que implica o corpo do observador na fabricação do sentido de um filme, levando a experiência estética do cinema a uma posição constitutiva do ser, ou seja, inerentemente epistemológica e ontológica.

Encadeada nas discussões anteriores, no capítulo seguinte, a investigação de Carbone sobre a fenomenologia das telas nos leva a um conceito proposto por ele e chamado “filosofia-cinema [philosophie-écrans] [4]. Em O que é uma filosofia-cinema?, o autor persegue e atualiza as concepções tradicionais de pensar o modo de ver o mundo, próprio do paradigma representacional, aliado à formulação de Leon Alberti. Apoiado no pensamento de Benjamin sobre a percepção e na noção foucaultiana-deleuziana de dispositivo, Carbone adiciona historicidade à contribuição de Merleau-Ponty, isto é, de que os modos de ver e de ser visível são condicionados também pelos meios de comunicação [media] de determinada época. Ele aponta, então, que o dispositivo visual de referência da nossa época é a tela e que, com a ajuda do cinema, podemos compreendê-la não como uma janela que tudo mostra, mas algo “[...] cuja opacidade, em vez de esconder, nos permite ver” (CARBONE, 2019, p. 89).

Pensar as telas como esse dispositivo de visão encaminha a ordenação de uma maneira particular de pensar e produzir conceitos, o “fazer filosofia entre as telas”, título de outro artigo seu, presente no livro Vivre par(mi) les écrans, publicado pela Les Presses du réel em 2016, sendo este também o nome do grupo de pesquisa liderado por Carbone no Institut de Recherches Philosophiques de Lyon. É importante ressaltar que a proposta aqui não é fazer uma filosofia das ou sobre as telas, mas sim fazer filosofia, produzir pensamento, com as telas, aos moldes das telas, em um mundo de telas, convocando-as como as copartícipes, que de fato são, da nossa experiência estética contemporânea. Nesse sentido, o trabalho do filósofo está bastante aliado aos esforços de outros pensadores, tais como os aliados ao projeto ético-epistemológico não antropocêntrico ou os interessados em pensar uma ecologia das mídias.

O último ensaio do livro, Demilitar para exceder apresenta a noção de “arquitela” [archi-écran] de Carbone. O filósofo retoma a alegoria platônica da caverna e aponta: a dita “parede oposta”, onde as sombras aparecem para os habitantes da caverna, não é a única tela a se levar em conta. O dispositivo de visão da arquitela considera as duas telas envolvidas na cena: tanto a parede onde as sombras são projetadas quanto os corpos cujo volume evitou a passagem de luz em determinada área. Assim, antes de pensar a tela como lugar de projeção, ou mesmo recorte do mundo (como seria a noção de janela na visão renascentista de Alberti), podemos pensar uma tela como superfície que esconde e, ao mesmo tempo, que mostra. O conceito é inspirado no de “arquicinema” de Jacques Derrida conforme desenvolvido por Bernard Stiegler. Essas funções, opostas e inseparáveis, de superfície “escondedora” e “mostradora” (CARBONE, 2019, p. 109) evidenciam o paradoxo fundamental que subjaz à noção de tela e que poderia servir para pensar o potencial epistemológico das imagens no geral.

A arquitela, segundo Carbone (2019, p. 109), “[...] apresenta mais do que ela própria, [...] apresenta se excedendo”. A isso, o autor conecta a noção das “ideias sensíveis” de Merleau-Ponty, as experiências que são irredutíveis a conceitos e que “[...] apenas podem ser expressas plenamente por outras experiências semelhantes” (CARBONE, 2019, p. 111). A arquitela então ajuda a vislumbrar esse funcionamento paradoxal das telas sendo seu dispositivo e, assim, descrevendo as condições de possibilidade do mostrar e do esconder que, antes de qualquer coisa, como explica Carbone ao lembrar-se das sombras platônicas, é uma característica do próprio corpo humano, uma tela midiática por excelência. Como alerta o autor,

[...] devemos evitar cair novamente na tentação de conceber telas como um simples fenômeno moderno. Olhando mais de perto, descobrimos que a cultura humana tem sido constantemente assombrada pela busca de variações de uma “arquitela”, para ver as imagens. (CARBONE, 2019, p. 114).

Antes de buscarmos diferentes inovações tecnológicas de produção de imagens, cabe, conforme Carbone, compreendermos melhor a própria condição de possibilidade para a criação dessas imagens, o que chama de “experiência primordial da arquitela”, necessária para a experiência de qualquer outra tela. E essa experiência primordial é justamente aquela do nosso corpo, “[...] um espaço (inter)posto no sensível do qual participa” (CARBONE, 2019, p. 111-112).

As ideias expostas no livro foram essenciais para trabalhos posteriores do autor, no sentido de desenvolverem com ainda mais especificidade sua fenomenologia das telas. As discussões presentes do livro se conectam diretamente aos desafios da comunicação e convivialidade mediada pelas telas durante a pandemia da Covid-19. Este contexto, segundo Carbone em uma recente palestra [5], instaura uma nova “época fenomenológica”, em que reaprendemos a ver as telas. Durante o lockdown, eventos como o “apéro-Skype” [6], como aponta o autor, evidenciaram de forma incontornável que as telas não são simplesmente superfícies que mostram imagens, mas sim operadores históricos, culturais e tecnológicos de distribuição de visibilidades e invisibilidades. Por isso mesmo, como propõe Carbone, as telas não são superfícies, mas interfaces e, assim, estabelecem diferentes tipos de relacionamentos e possibilitam variadas experiências — que vão desde o trabalho remoto até eventos de lazer.

Ao evidenciar o protagonismo das telas — como media e como heurística —, na comunicação contemporânea, Carbone contribui para estabelecer uma ponte transdisciplinar, problematizando as consequências na percepção, na compreensão e na fabricação de mundos que as dinâmicas dos meios de comunicação oferecem. Na era da cultura visual midiatizada, pensar sobre as formas de contemplação contemporâneas e sobre as telas — inclusive utilizando-as —, se torna incontornável em um contexto em que precisamos, mais do que nunca, refinar as competências midiáticas para a cidadania. Este livro é uma contribuição essencial para o debate sobre as telas que não pode passar despercebida.

Notas

[1] Pesquisadora e professora do Programa de Pós-Graduação em Comunicação da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (PPGCOM/UFRGS) e professora da Faculdade de Comunicação e Biblioteconomia da mesma universidade (FABICO/UFRGS).

[2] Pesquisador e professor do Programa de Pós-Graduação em Filosofia da Pontifícia Universidade Católica do Paraná (PPGF/PUCPR) e professor do Departamento de Filosofia da mesma universidade, da Faculdade Vicentina de Filosofia e do Centro Universitário Curitiba.

[3] Pesquisador e professor do Programa de Pós-Graduação em Filosofia da Pontifícia Universidade Católica do Paraná (PPGF/PUCPR) e professor da Escola de Educação e Humanidades da mesma universidade.

[4] Tradução de Bortolo Valle.

[5] Palestra Pandemic Effects: “Philosophy-Screens” face to the “Screen New Deal”, proferida no Webinar “Screens and the digital mediascape (in Pandemic times)” da Università di Parma em 22 de janeiro de 2021.

[6] Apéro é um termo em francês advindo da contração da palavra apéritif (em português, “aperitivo”) e designa momentos de convivialidade como o happy hour.

Referências

CARBONE, M. Ver segundo o quadro, ver segundo as telas. Caxias do Sul: Educs, 2019.