A historicidade como memória reforçada no ato comunicacional

                                                                          

Alan Campos Araújo[1]

 

Resumo: O presente artigo investiga a historicidade como dimensão imanente do indivíduo. A partir de nossa vinculação com o campo da Comunicação, que se mostra favorável ao reconhecimento de perspectivas históricas no cerne da produção de conhecimento científico — artigos, monografias, etc. —, o trabalho pergunta: como estruturar, metodologicamente, a historicidade na produção científica? No lastro do questionamento, procuramos nos filiar com a hermenêutica de Hans-Georg Gadamer, para, então, esboçar resposta através do desenvolvimento de uma ontologia histórica como método anterior aos teóricos utilizados pelos pesquisadores em suas respectivas produções acadêmicas. Primeiro, identificamos como a área da Comunicação reconhece a importância da historicidade dos seus pesquisadores — através da popularização do termo “lugar de fala” e da aparição de vozes canonicamente marginalizadas do círculo acadêmico. Depois introduzimos alguns conceitos da hermenêutica existencial — que se origina no início do séc. XX a partir do filósofo Martin Heidegger — que servirão como base para o trabalho. Em seguida, introduzimos o pensamento de Gadamer como um meio termo entre a hermenêutica e a história, e, por último, concluímos com nosso esboço de caminhos metodológicos para uma estruturação da ontologia histórica no cerne da produção científica em contato com os temas e interesses da Comunicação.

Palavras-chave: Comunicação; Historicidade; Hermenêutica; Gadamer; Ontologia.

Historicity as a reinforced memory in the communicational act

Alan Campos Araújo[2]

 

Abstract: This article investigates historicity as an immanent dimension of the individual. From our link with the field of Communication, which is favorable to the recognition of historical perspectives at the heart of the production of scientific knowledge articles, monographs, etc. , the work asks: how to methodologically structure historicity in scientific production? In the ballast of the questioning, we sought to join with Hans-Georg Gadamer's hermeneutics, to then outline an answer through the development of a historical ontology as a method prior to the theoretical ones used by researchers in their respective academic productions. First, we identify how the field of Communication recognizes the importance of the historicity of its researchers through the popularization of the term "place of speech" and the appearance of canonically marginalized voices from the academic circle . Then we introduce some concepts of existential hermeneutics which originates at the beginning of the 20th century from the philosopher Martin Heidegger which will serve as the basis for the work. Then, we introduce Gadamer's thought as a middle ground between hermeneutics and history, and, finally, we conclude with our outline of methodological paths for a structuring of historical ontology at the heart of scientific production in contact with the themes and interests of Communication.

Keywords: Communication; Historicity, Hermeneutics; Gadamer; Ontology.

 

 

 

Introdução

 

 

A Comunicação no Brasil[1] é um dos campos das humanidades mais receptivos ao diálogo com a historicidade enquanto matriz essencial (e em alguns casos, definitiva) para a produção do conhecimento. Seja na emergência do pesquisador que clama uma narrativa histórica como inapagável para seu pensamento, evocando posições teóricas (nem sempre canônicas) no campo acadêmico, seja na constante referencialidade do termo “lugar de fala”[2], que se abre para debates acerca das prováveis delimitações de certas epistemologias. Logo, não é difícil compreender que a área da Comunicação é produzida por sujeitos de vivências históricas plurais.

Indo além, a Comunicação está inerentemente tangenciada por debates e usos de conceitos e ideias o político, os discursos acerca das ideologias, as questões sobre gênero, o estudo das subjetividades compartilhadas num contexto sócio-cultural, etc que delimitam (ou requerem) perspectivas históricas como ponto de partida. Portanto, o campo comunicacional permite que seus teóricos tencionem seus terrenos metodológicos através de um maior contato com determinado arcabouço de referências culturais que moldam seus doutores, estudantes e profissionais de maneira tão intrínseca como experiência de mundo que se torna determinante para justificar uma pesquisa por sua relevância política, histórica e estética. Como consequência, a área permite que seu cânone teórico seja constantemente revisto por seus ingressos em prol de uma maior pluralidade de vozes produtoras do conhecimento.

Isso não é um aspecto negativo do campo, pois mostra como a academia soube responder o próprio contexto histórico do contemporâneo que reconhece os processos socioculturais que visam marginalizar epistemologias não-canônicas. Em sala de aula, em debates, em congressos da área e em bancas de defesa, ocorre uma tendência para analisar, criticar e debater a fala de sujeitos através das ressonâncias culturais que ela evoca em um plano macro ela propõe uma crítica a determinado segmento hegemônico? Ela reitera o discurso que oprime minorias? Ela manifesta um rompimento epistemológico com um cânone deveras eurocêntrico?

Portanto, não há dúvidas de que a historicidade está presente na atuação da Comunicação na academia. A proposta do presente artigo é que a posição histórica não deve ser dada como algo pronto e essencialista sob o prisma de uma historicidade que somente pode ser manifestada a partir dos desejos do pesquisador. Ao mesmo tempo em que o comunicólogo deve refletir metodologicamente acerca da dimensão histórica que está, assumida ou não, nas suas proposições de trabalho, tal posição não deve ser imune a críticas internas, no intuito de gerar acontecimentos para o pensamento abrir-se às novas experiências. A historicidade não deve ser apresentada sem diálogos metodológicos e firmes, mas que estes estejam animados por dinâmicas de constante revisão, atualização e tensões.

Nosso artigo se inscreve nesse debate tão caro ao campo da Comunicação a partir da proposta de que a historicidade já interpela o pesquisador na construção de saberes científicos, fazendo com que os resultados das pesquisas estejam delimitados (mas não sufocados) pelos respectivos horizontes culturais nos quais o comunicólogo indaga. Não se trata da possibilidade de uma relação histórica possível de ser estabelecida a partir do interesse do comunicólogo com este ou aquele objeto, pois ele se encontra, sempre, afinado numa historicidade. Importante afirmar desde já que tal termo não é sobre os eventos singulares da vida do comunicólogo, mas sim sobre o arcabouço histórico que molda a maneira como ele consegue olhar para determinada temática dessa ou daquela forma. Nesse sentido, por historicidade, queremos apontar a existência de referenciais (sociais, estéticos, comunitários, religiosos, comportamentais enfim, de maneira ampla, culturais) que se relacionam com os sujeitos de modo ontológico[3], originando certas maneiras de pensar.

O objetivo desse trabalho consiste em dialogar com a historicidade como uma estrutura fundamental para a produção científica tendo em vista que ela somente é produzida por indivíduos , desenvolvendo, a partir dela, um caminho metodológico cabível da miríade de vozes que estão inseridas na área da Comunicação. Para tal realização, se torna importante um diálogo com a fenomenologia hermenêutica do séc. XX através do trabalho de Hans-Georg Gadamer, filósofo que retorna às estruturas fundamentais da linguagem como norte para a pergunta que move o presente trabalho: Como iluminar metodologicamente a historicidade que compõe, inerentemente, as pesquisas no campo da Comunicação? Evidentemente, uma indagação cuja resposta não irá ser concluída no presente artigo, mas esperamos que a utilização da hermenêutica científica derivativa da ontologia gadameriana ajude nosso problema através de caminhos epistemológicos anteriores aos métodos escolhidos pelos comunicólogos no intuito de fazer com que o próprio reconhecimento histórico possa aprimorar a investigação acadêmica, bem como as conclusões sobre os fenômenos estudados no campo da Comunicação.

Para concluirmos essa introdução, torna-se necessário afirmar que o artigo é apenas um esboço no intuito de propor discussões com base em percepções e experiências gerais que ocorrem em diversos contextos de produção acadêmica na área nacional de Comunicação. Nosso objetivo consiste em iniciar um diálogo através de uma proposta teórica com a hermenêutica existencial. Antes de partirmos para Gadamer, é necessário falar do pensamento de Martin Heidegger como alicerce para nosso principal autor.

 

 

As estruturas da compreensão

 

 

Pode-se dizer que as principais obras de Gadamer originam-se de diálogos intensos com o arcabouço heideggeriano, especialmente com a ideia de “Compreensão”. Tal conceito foi desvelado por Heidegger (2018) como sendo formado por uma abertura anterior ao próprio ato interpretativo. O “compreender” (HEIDEGGER, 2018, p. 137), para o autor, está colocado dentro de uma abertura de sentidos prováveis que já se apresentaram como possíveis, redirecionando a disciplina hermenêutica, frequentemente associada com a interpretação do sentido nos textos escritos, para um tipo de “filosofia universal da interpretação” (Grondin, 2012 p. 12):

 

A interpretação surge então, cada vez mais, como uma característica essencial da nossa presença no mundo [...]. A hermenêutica se vê, então, posta a serviço de uma filosofia da existência chamada a um autodespertar. Passamos aqui de uma “hermenêutica de textos” para uma “hermenêutica da existência” (GRONDIN, 2012 p. 14).

 

 Uma ideia recorrente na hermenêutica inaugurada por Heidegger e prosseguida por outros (GADAMER, 2018) é que o sentido não se dá de maneira autônoma do sujeito. Nós já somos participativos em nossos enunciados, tendo em vista que os sentidos são previamente recebidos a partir de conjunturas socioculturais de acesso ao objeto.

Não há uma pureza transmitida pelo signo (ou símbolo) como autoridade máxima de um sentido que está fora do sujeito, ou seja, a linguagem não se comporta fora do mundo. Logo, Heidegger (2012) prossegue no sentido da hermenêutica como interpretação, mas uma vez em que esteja em evidência o caráter relacional desta a partir de um modo específico do acesso que possuímos às coisas. Portanto, há uma dimensão anterior ao próprio acontecimento do compreender do objeto que abre a possibilidade da recepção e produção de sentido pelo indivíduo. Heidegger (2015) cita o exemplo do quadro torto para expor que a compreensão só se dá a partir de uma totalidade:

 

Este quadro encontra-se mal posicionado nesta sala, que é um auditório e que pertence ao prédio da universidade. O estar mal posicionado é justamente uma propriedade deste quadro mesmo [...]. A partir da abertura do auditório, experimentamos em geral o mau posicionamento do quadro [...]. Através do enunciado “o quadro está mal posicionado” não conquistamos pela primeira vez a abertura do auditório, mas esta abertura é inversamente a condição de possibilidade para que o quadro em geral possa ser isto sobre o que produzimos um juízo. Portanto, em meio a esta judicação aparentemente isolada sobre esta determinada coisa, já falamos a partir de uma abertura, que, como podemos dizer provisoriamente, não é apenas algo plural, mas sim algo na totalidade. Neste sentido, deparamo-nos aqui com dois fatos: o fato de que nós, sempre, junto a todo e qualquer enunciado singular por mais que este seja extremamente trivial ou complicado , falarmos a partir de um ente manifestado na totalidade, e o fato mesmo deste “na totalidade” a totalidade do auditório que já compreendemos de antemão. Estes dois fatos não são uma vez mais o resultado de uma mostração através do enunciado. Ao contrário, os enunciados só podem ser inseridos no que já está manifesto na totalidade (HEIDEGGER, 2015, p. 442 e 443).

 

Ou seja, nossa compreensão das coisas, nesse caso o caráter de “mal posicionado” do quadro, só se dá porque há um contexto de referências no exemplo da citação: o auditório, a universidade, o fato de sabermos que determinado objeto é um quadro e não, por exemplo, uma caneta, etc. que possibilitam que interpretemos as coisas como elas surgem para nós. Estamos sempre nos guiando para o objeto a partir do que o alicerça enquanto tal, não poderíamos compreender a caneta, tal como ela é e para qual utilidade ela serve, sem que tivéssemos em mente contextos possíveis “próximos” a ela o papel, o ato da escrita, o estojo, etc. Heidegger (2018) chama esse conjunto de referências que auxiliam na produção do sentido no nosso desvelamento dos objetos, de mundo. Já o caráter público do mundo, isto é, aquilo que se manifesta na formação de um sentido “geral”, que auxilia o objeto a adquirir um sentido no acesso do sujeito, o autor chama de “Impessoal”.

Não é difícil de entrever como o impessoal atua nas esferas do cotidiano, pois ele se encontra por toda parte. Podemos ver, por exemplo, como diversas totalidades possuem um caráter de público, de indiferença às particularidades existenciais dos indivíduos, se manifestando a partir de um contexto cultural que reduz os devaneios da imaginação do sujeito, num sentido de ditar como ele deve se portar diante deste ou daquele objeto. O sentido da caneta para escrever, do ônibus para atravessar a cidade, do livro para ler, se encontra como modo de ser público, passível de poucas discordâncias sobre seus caracteres. Logo, o impessoal tem em seu modo de ser essa imposição de uma totalidade reguladora que visa sua estabilidade em determinado contexto. O impessoal se encontra presente no ato comunicacional, pois produzir um enunciado num debate universitário da fala, escrever um trabalho acadêmico, partir de uma investigação sobre determinado tema, já pressupõem agenciamentos com sentidos que se dão por meio de horizontes de abertura do indivíduo com o contexto social. O sentido que comunicamos reside, em partes, a partir do um viés existencial, mas isso não quer dizer que o sujeito cria o sentido como um artesão em seu ofício separado das esferas sociais. Para Heidegger (2018), o sujeito menos confecciona do que “recebe” o sentido, pois, ao valermos do exemplo do quadro, a propriedade “mal posicionada”, o auditório e a universidade, orientam uma visão permeada pelo contexto cultural do impessoal que nos “diz” sobre determinado objeto como sendo um quadro, ou que tal espaço específico é uma universidade. A linguagem é, na maioria das vezes impessoal, pois é ela que utilizamos quando queremos trazer à tona determinada compreensão sobre algo junto aos outros.  Gadamer (2018), afirma que esse horizonte de sentido no cerne do sujeito e objeto é um ser histórico.

 

 

A compreensão como ser histórico

 

 

Considerado o sucessor de Heidegger, Gadamer é responsável por colocar a hermenêutica no mapa das discussões filosóficas ocidentais do pós-Segunda Guerra. No entanto, ao contrário do seu mentor, o autor não estava interessado na perspectiva de uma hermenêutica estritamente ontológica acerca das possibilidades próprias do ser, mas em como a história e a cultura são matérias vivas em direta relação com a nossa existência. Para isso, Gadamer desenvolve uma hermenêutica histórica em direção a expor que o nosso entendimento das coisas está sempre interpelado pelo passado atualizado no presente como uma forma viva dentro da compreensão hermenêutica.

 

A hermenêutica deve partir do fato de que compreender é estar em relação a um só tempo, com a coisa mesma que se manifesta através da tradição e com uma tradição de onde “a coisa” possa me falar. Por outro lado, aquela que efetua uma compreensão hermenêutica deve se dar conta de que a nossa relação com “as coisas” não é uma relação que “ocorra naturalmente”, sem criar problemas. Precisamente sobre a tensão que existe entre a “familiaridade” e o caráter “estranho” da mensagem que nos é transmitida pela tradição é que fundamos a tarefa da hermenêutica [...] No que se refere ao caráter a um só tempo “familiar” e “estranho” das mensagens históricas, a hermenêutica reivindica uma “posição mediadora”. O intérprete encontra-se suspenso entre o seu pertencimento a uma tradição e a sua distância com relação aos objetos que constituem o tema de suas pesquisas (GADAMER, 2003, p. 67).

 

 A distância que o autor se refere — tendo em vista que não há acesso ao objeto tal como ele é, isto é, um acesso a coisa-em-si — é algo inerente ao objeto e que não é superada, mas que é colocada para trabalhar a partir de um passado (distância) que se relaciona com o desvelamento do sentido de maneira que este sempre se encontra em uma abertura histórica. Portanto, o passado histórico — que o autor chama de “Tradição” — não é excluído, nem colocado de lado, mas é justamente o que fala. Esse passado, no entanto, não se manifesta de maneira idealizada ou exata, mas enquanto experiência com a linguagem que já se encontra interpelada por um rico arcabouço cultural que se apresenta no presente, no ato do discurso e da compreensão.

 

O que satisfaz nossa consciência histórica é sempre uma pluralidade de vozes nas quais ressoa o passado. O passado só aparece na diversidade dessas vozes. É isso que constitui a essência da tradição da qual participamos e queremos participar. A própria investigação histórica moderna não é só investigação, mas também mediação da tradição. Não a vemos somente sob a lei do progresso e dos resultados assegurados; nela também realizamos nossas experiências históricas, na medida em que permite que ouçamos cada vez uma nova voz em que ressoa o passado. (GADAMER, 2018, p. 377).

 

 A história funciona como mediação entre o passado histórico e o horizonte aberto pelo sujeito na compreensão. A tradição funciona a partir dos preconceitos do leitor, isto é, a partir das estruturas da pré-compreensão no acesso ao texto[4]. Mas não devemos colocar um sentido negativo nesse conceito de preconceito, pois ele condiciona a possibilidade do surgimento dos sentidos com as coisas. Se entendermos o conceito a partir de um hífen após o pré, “pré-conceito”, o visualizamos como a abertura originária para a interpretação ocorrer. Para Gadamer (2018), os preconceitos desvelam o objeto a ser analisado a partir de uma perspectiva existencial que nunca deixa de ser histórica, isto é, sempre se encontra atrelada a uma atualização do passado pelo presente.

Resta-nos, de acordo com Gadamer, formular uma distinção entre preconceitos por precipitação ou preconceitos autênticos. Os primeiros são formados sem uma referência discursiva concreta enquanto que os segundos se dão a partir de uma tradição histórica carregada de referências que dimensionam o sujeito na própria experiência de um passado que retorna ao tempo presente no momento da reflexão, da pesquisa e do ato de compreensão. Como exemplo para o segundo caso, podemos imaginar o próprio horizonte de sentido que a palavra “preconceito” possui, pois não é difícil imaginar que o leitor ao ver o termo “preconceito” no artigo tenha produzido um juízo negativo do termo através de seu horizonte inserido numa tradição de luta por uma sociedade brasileira mais igualitária. Hipoteticamente, se ele se questionar o porquê de isso ocorrer e se perguntar “o que é preconceito?”, podemos compreender, como possível resposta, algo como: “não sei exatamente, mas é algo negativo e que deve ser combatido”. Logo, o conhecimento da palavra “preconceito” por seu viés negativo e de repulsa já demonstra que o termo se manifesta em um espaço de conhecimento delimitado.

Contudo, os preconceitos autênticos não determinam o sujeito num ato de submissão e de abdicação do aspecto racional, e sim, de reconhecimento e acolhimento, onde a pessoa reconhece que, primeiramente, uma voz, ao mesmo tempo, distante e próxima, fala a partir de si. A razão é capaz de identificar tal voz e com ela dialogar através das indagações que o sujeito passa a ter com o passado histórico. Antes de tudo, o entendimento de um “eu” diante de um modo de se chegar, através da mediação histórica, às coisas é uma compreensão da nossa situação hermenêutica, de onde a própria reflexão nasce. Há um quê do impessoal heideggeriano nas reflexões sobre as tradições, pois elas estão “públicas” como arcabouços culturais possíveis de formar a interpretação dessa ou daquela maneira, como um revestimento de diversos “outros” em forma de discursos, livros, ideologias, pensadores, obras de arte, etc. Por exemplo, perguntar sobre temas universais — a justiça, a morte, etc. — já consiste numa abertura existencial e ontológica que coloca o indivíduo num lastro sobre o assunto a partir de determinado contexto cultural e histórico — seja ele hegemônico ou não — sob a forma da tradição. Gadamer coloca que este não é o fim para o pesquisador, pois não basta indagar o fundo histórico, mas colocá-lo para funcionar —  contra nós mesmos — a partir de novos impulsos (Gadamer, 2017).

O filósofo alemão visa uma reformulação da ideia de objeto nas ciências humanas: não mais enquanto dado em si ou objetivo, mas enquanto uma “unidade do ‘meu’ e do ‘outro’” (2003, p. 71)[5], o que o autor chama de “Fusão de horizontes”. Ou seja, ocorre que o indivíduo projeta o horizonte do seu ser enquanto que recebe um horizonte do objeto, onde a compreensão se dá nesse encontro. Não se trata de uma projeção controlada pelo pesquisador, mas algo que ocorre sem que ele queira, já em relação ao objeto, não podemos ser ingênuos em acreditar que o horizonte recebido se dá a partir da “coisa-em-si”. O objeto não pode falar por ele mesmo como um “tu”, portanto, o que conseguimos alcançar é o “como” do objeto, como ele se apresenta a partir de determinada tradição histórica que se põe a trabalhar para que o sentido brote da nossa experiência hermenêutica.

 

O sentido da experiência hermenêutica reside, antes, no fato de que, frente a todas as formas de experiência de mundo, a linguagem abre uma dimensão completamente nova, uma dimensão de profundidade a partir da qual a tradição alcança os que vivem no presente [...]. O modo de ser da tradição não é algo imediatamente sensível. Ele é linguagem, e o ouvir que compreende essa tradição, na medida em que interpreta os textos, insere sua verdade num comportamento próprio para com o mundo, comportamento próprio de linguagem (GADAMER, 2018, p. 597).

 

Gadamer confere ao sujeito o poder de mediar-se diante do aspecto não-objetivo desse passado histórico que compõe sua interpretação, fazendo com que o aspecto racional (portanto, pré-científico) surja como possibilidade de um melhor entendimento existencial acerca de determinado objeto ou problema. O autor defende que “A compreensão só alcança sua verdadeira possibilidade quando as opiniões prévias com as quais inicia não forem arbitrárias” (2018, p. 356).  Portanto, a não objetividade não é um desvio do objeto, mas a própria condição da experiência dele.

 O estudo gadameriano já caminha no limiar entre a ontologia e a epistemologia, pois o interesse do autor está em rebater a verdade objetiva das ciências humanas e propor a verdade tal como ela se manifesta, sem idealismos. Ou seja, ela se apresenta enquanto experiência, como algo que surge num presente que é “revestido” pelo passado cultural. Por isso, o objeto nunca cessará de suscitar diferentes visões, a partir de diferentes sujeitos e diferentes tradições. O acesso verdadeiro ao objeto é um reconhecimento histórico (Gadamer, 2017) de nós mesmos. Nesse sentido Gadamer é crítico ao paradigma iluminista que coloca o método como certeza e não verdade.

 

Se a verdade (veritas) só se dá pela possibilidade de verificação — seja como for —,então o parâmetro que mede o conhecimento não é mais sua verdade, mas sua certeza. [...]. O problema de nossa civilização e das necessidades que sua tecnificação cria em nós não está na falta de uma instância intermediária entre o conhecimento e sua aplicação prática. O modo de conhecimento da própria ciência é tal que impossibilita essa instância. Ela própria é técnica (GADAMER, 2017, p. 61 e 62).

 

Contra todo idealismo de produção científica, podemos afirmar que todo o perguntar pela verdade, a partir da vinculação com a hermenêutica fenomenológica de Gadamer, se dá a partir de um reconhecimento que não almeja um entendimento completo, mas que o pesquisador sempre está preso a sua situação hermenêutica particular. Contudo, como já falamos, isso não significa que ele sempre estará preso a um campo de visão essencialista no âmbito de um dado rígido e fixo, mas que ele sempre parte de uma localização específica no indagar da pesquisa e que ele assume seu ponto de partida como sendo impuro. O ato da indagação já se encontra a partir de uma experiência de verdade que permite que a mesma nasça tal como ela se apresenta. Todo o discurso acerca de um tema já se encontra ligado a um contexto hermenêutico que já delimita situações de perguntas e respostas para a pesquisa. No fim, o horizonte é a própria finitude do ser, não somente por todo pesquisador ser finito em sua mortalidade, mas porque ele jamais atingirá um estado de aprendizagem onde ele mesmo não se encontra. A verdade é a experiência autêntica que se impõe para nós como o acesso genuíno às coisas.

 Em suma, Gadamer ataca diretamente o modo de fazer ciência objetiva oriundo do iluminismo. Nesse aspecto, seus comentários ressoam fortemente no pensamento contemporâneo que denuncia a objetividade como uma questão problemática para novas formas epistemológicas. Djamila Ribeiro (2019), por exemplo, refuta veementemente a neutralidade científica como sendo colocada a partir de interesses hegemônicos, brancos e europeus. Expondo que o conhecimento autointitulado como objetivo mascara uma hierarquia social que visa o apagamento de contradiscursos, especialmente de segmentos marginalizados do campo acadêmico, além de propagar uma maneira correta e idealista de se fazer ciência.

 

 

Comunicar é reiterar um ser histórico

 

Podemos afirmar, junto a Gadamer, uma primeira conclusão: Não há Comunicação sem o agir da tradição. Isso implica que a produção acadêmica — artigos e monografias, bem como na produção intelectual de aulas, cursos e debates, ou seja, em todo o âmbito do fazer discursivo de enunciados — não é possível sem alguma historicidade em jogo. Isso é uma consequência das próprias ideias de Gadamer com nossa pergunta, mas o que isso implica, especificamente, no campo da Comunicação?

 Implica que não há relação e estudo das mídias sem que elas devolvam uma conclusão possível de ser partilhada como ciência sem tons históricos. Ou seja, o próprio conteúdo sígnico e simbólico que produzimos sobre determinado produto audiovisual, fenômeno, acontecimento histórico, ou quando falamos sobre questões políticas de respectivo artista, já possui, em seus resultados, um arcabouço de referências históricas, fazendo com que as subsequentes decorrências científicas não sejam puras, mas enviesadas culturalmente.

Tal conclusão já é partilhada por diversos campos de pensamento na área de Comunicação. Os Estudos Culturais, por exemplo, têm sido consideravelmente usados nas pesquisas de Comunicação no Brasil e se propõem a entender as categorias de classe, gênero, raça e nação por um viés não essencialista. Outro exemplo seria o uso recorrente do conceito “lugar de fala” de Djamila Ribeiro (2019). A autora em momento algum defende uma política restritiva de quem pode falar sobre determinado assunto ou não. O que Djamila Ribeiro (2019) afirma, e nós, naturalmente, concordamos, é que qualquer discurso não parte de um lugar único, mas de uma posição social, onde pensar sobre esta se configura numa atitude ética. Nossa contribuição não visa uma negação dessa constatação, mas uma reconfiguração teórico-metodológica a partir das relações do ser histórico possível.

 Concordarmos que não há mais como negar, na área da Comunicação no Brasil, a questão da consciência histórica, pois os diferentes extratos culturais e históricos possuem, principalmente no contexto atual, tanta importância que não existe mais como assumir uma inocência na escolha do tema de pesquisa, muito menos nos seus objetos. Quanta dificuldade uma pessoa teria em justificar, na área de Comunicação, a escolha de seu Corpus e temática de pesquisa apenas por sua importância no recém-saído da adolescência campo comunicacional. Justificamos objetos, temas e epistemologias, a partir de: a) seus impactos culturais no tempo presente; b) por meio de suas relevâncias históricas para refletir contextos homogêneos ou minoritários; c) através de suas articulações com os meios midiáticos para a produção de discursos sensíveis e sociais que impactam diretamente o viver atual; d) Mediante a relevância de respectiva mídia em propor questões sobre o corpo, o passado/presente/futuro, o espírito dos tempos. As subdivisões da Comunicação: estudo de mídias; recepção de consumidores/fãs; teorias do imaginário; questões sobre a baixa e a alta cultura; estéticas midiáticas; análise de discursos midiáticos, etc. fecundam problemas e questões, a partir do campo, e em relação com as questões contextuais do contemporâneo. Não existe uma produção da Comunicação para si, sem um diálogo com terrenos históricos.

De maneira alguma visamos trabalhar contra essa corrente, até porque, nós nos reconhecemos como produto dessas discussões. O objetivo da nossa proposta consiste em ir além da historicidade atrelada ao sujeito. Por exemplo, concordamos com Djamila Ribeiro (2019) quando a autora diz que uma travesti negra fala a partir de um terreno social distinto do de um homem branco cis e, portanto, seus pontos de partida na produção acadêmica, bem como seus resultados, serão divergentes. No entanto, enquanto essa perspectiva preza pelo polo do sujeito a partir de uma forma de pensar mais ligada ao seu local social, a nossa proposta tende a considerar com mais afinco o polo da experiência que se dá no contato com as coisas. Até porque a linguagem é passível de refletir pensamentos dominantes no meio social, bem como possibilidades de rupturas com a hegemonia, independentemente da posição política e histórica assumida pelo comunicólogo. Pensar pelo viés da tradição e do impessoal é ter, como ponto de partida, o fato de que a linguagem desvelada pelo acesso hermenêutico, e sua subsequente produção de sentido, abarca dimensões históricas que estão além do conteúdo histórico assumido pelo sujeito.

 

Considerações finais    

Portanto, nosso caminho não quis uma captura das tradições para expô-las ao nosso controle. Nosso objetivo foi manifestar o solo cultural na qual nossas indagações brotam. Sempre há um quê fugidio na tradição, pois ela trabalha a partir da experiência manifestada e não a partir de definições prévias e concretas. Não há controle sobre o que se dá na experiência, apenas especulações filosóficas sobre a historicidade como parte integral do compreender.

A linguagem revela conexões históricas não imediatamente óbvias ao sujeito e se nós só conseguimos manifestar nossas pesquisas a partir dela, então, a principal dimensão para o pensamento deve se dar a partir da semântica desvelada pela produção da comunicação — frases, textos escritos, enunciados. A afirmação de uma tradição de pensamento dessa ou daquela maneira a partir do local social não é necessariamente incorreta, pois ela presume que as reflexões se dão a partir de um terreno histórico influente na ontologia dos sujeitos. O que escapa, e que nos parece tão caro para reflexões acerca do compreender como acesso histórico, é a dimensão da linguagem que permeia e, algumas vezes, submete a experiência dos sujeitos de modo que não podemos deixar de refletir que as dimensões do sociocultural estão tão presentes nas esferas comunicativas que o acesso ao impessoal heideggeriano não pode ser negado. O pensamento gadameriano, funciona, justamente, como uma contrapartida para reflexões possíveis de descortinarem esse impessoal de maneira que ele se torne produtivo.

Mas afirmar que somos determinados por esta ou aquela tradição é reduzir a pluridimensionalidade do ser histórico como uma roupa a ser vestida, além de redirecionar o problema para sujeitos e indivíduos e não para a experiência que se dá na linguagem em contato com as vivências no mundo. O indivíduo que crê no seu poder máximo sobre a historicidade opera a favor da cientificação da linguagem no sentido de torná-la mais unidimensional, repetitiva e desprovida de tensões.

Assumir a linguagem como maneira possível de ser compreendido a partir das tradições é se reconhecer como transpassado pela experiência histórica que simplesmente se dá no modo de acesso do indivíduo à coisa em si. Entender a historicidade como mediação é deslocar sua manifestação do pólo do “eu” para o terreno do acontecimento semântico, isto é, para nosso cotidiano e nossas práticas a partir de enunciados, conceptualização de questões e trabalhos acadêmicos, e nossas posições em debates com os outros. No uso da linguagem e na produção da comunicação, há muitos outros “eus” do passado — que estão em jogo quer o sujeito queira ou não, como também há o hegemônico dominante. Nosso objetivo, com o auxílio de Gadamer, não consistiu em solucionar o problema da consciência histórica, mas de fazê-la funcionar de modo que o comunicólogo tome consciência de seu diálogo e pertencimento à determinada tradição no momento em que ele produz monografias e reflete sobre determinados temas.

Com isso, é importante salientar que não estamos alimentando uma balança entre certo e errado na produção de conhecimento sob o viés do pensamento gadameriano, ou uma disputa entre tradições “mais corretas” do que outras para compreender o tema e objeto. A linguagem não é um ente dado à serviço de uma historicidade mais pertinente do que outras. O objetivo da investigação do fundo cultural que dimensiona o próprio perguntar consiste em fazer pensar: elucidar as manifestações históricas a partir de seus saltos qualitativos ao pensamento que assume o compreender desde um horizonte apontado por ele. Se debruçar sobre os horizontes, entender seus limites, tencioná-los a partir de suas origens e circulações homogêneas no presente, construir argumentos calcados em críticas a eles, enfim, fazê-los produzir impulsos a partir de relações.

Há muito se admite nas linhas de pesquisa da Comunicação, com ênfase em estética, cultura e historicidade, de que diferentes pesquisadores produzem resultados significantemente diferentes ao tratarem de um mesmo tema, pensamos, portanto, que a ontologia histórica funciona como método investigativo para o solo que fertiliza os resultados científicos. O perguntar acerca do perguntar é o passo mais importante para o início da indagação sobre o ser histórico. Devemos prestar atenção ao que o comunicador pode produzir ao explicitar seu diálogo com as tradições no seu compreender, pois aqui irá se abrir a imaginação produtiva entre reconhecer um pertencimento e travar diálogos (emancipatórios? Arbitrários? Conciliatórios?) com ele no intuito de formular novas epistemologias e horizontes críticos.

 

Notas

                      

[1] No entanto, o debate sobre a historicidade está muito além do terreno acadêmico nos dias atuais. Basta olhar para as redes sociais ou para as falas de diversos artistas em exposições, posts online e apresentações de trabalhos, ou até mesmo para diversos profissionais no mercado de trabalho, para notarmos que os debates sobre o passado histórico enquanto lugar de experiência, de privilégio e de narrativas, possuem um espaço de grande importância em diversos segmentos do contemporâneo. A modernidade fez brotar a consciência de um mundo cada vez mais global e fora de uma vinculação com os contextos históricos canônicos da Europa. Artistas procuram outros referenciais culturais, indivíduos procuram ancestralidades apagadas por religiões dominantes no meio social, fazendo com que novas vozes reivindiquem expressivamente um lugar no pensamento acadêmico, político e histórico.

[2] Nosso uso do termo é baseado em como ele é conceitualizado por Djamila Ribeiro (2019) enquanto refutação da universalidade do discurso ao abrir espaço para interseções de classe, raça e gênero como vitais para a promoção de uma pluralidade de vozes.

[3] Heidegger (2012, p. 7) expõe a ontologia como a doutrina do ser. Insiro o termo no âmbito próprio da ontologia moderna e sua ramificação com uma “ontologia da cultura” (2012, p. 8). Em suma, por ontologia, estamos trabalhando com os fundamentos da experiência, como ela se dá de maneira histórica e sensível.

[4] É preciso afirmar que o sentido de “texto” aqui não se restringe à escrita, mas opera em relação ao discurso construído sob a forma de alguma linguagem. Gunter Figal (2007, p. 76- 77) afirma que o pensamento da fenomenologia hermenêutica apresenta o texto como “no sentido de uma multiplicidade linguisticamente articulada, reunida ou composta em uma unidade”. Ou seja, um texto pode ser um produto audiovisual, uma escultura, um quadro, pois esses são modos de articulação da linguagem a partir de gramáticas. Ricoeur (2016) expõe o texto como sendo o discurso delimitado pela escrita, ou seja, todo discurso confeccionado enquanto linguagem trabalha a partir do lugar onde o ato da fala poderia ter ocorrido, portanto, é cabivél de ser chamado de texto. Logo, quando falamos de um leitor do texto, podemos nos referir a um espectador, que “lê” um filme, uma pintura, uma peça, etc.

[5] Esse outro já está presente na escolha de nossos objetos, nas nossas perguntas e na própria indagação do tema de pesquisa, pois ele representa a maneira como olhamos para nosso objeto.

 

Referências

 

 

GADAMER, Hans-Georg. O Problema da Consciência Histórica. Rio de Janeiro:  Editora FGV, 2003.

GADAMER, Hans-Georg. Verdade e Método I: traços fundamentais de uma hermenêutica filosófica. Petrópolis: Editora Vozes, 2018.

GADAMER, Hans-Georg. Verdade e Método II: complementos e índice. Petrópolis: Editora Vozes, 2017.

GRONDIN, Jean. Hermenêutica. São Paulo: Parábola Editorial, 2012.

HEIDEGGER, Martin. Ontologia: hermenêutica da faticidade. Petrópolis: Editora Vozes, 2012.

HEIDEGGER, Martin. Os Conceitos Fundamentais da Metafísica: mundo-finitude-solidão. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2015

HEIDEGGER, Martin. Ser e Tempo. Petrópolis: Editora Vozes, 2018.

FIGAL, Gunter. Oposicionalidade: o elemento hermenêutico e a filosofia. Petrópolis: Editora Vozes, 2007.

RIBEIRO, Djamila. Lugar de fala. São Paulo: Pólen, 2019.

RICOEUR, Paul. Hermeneutics and the Human Sciences: essays on language, action and interpretation. United Kingdom: Cambridge University Press, 2016.

 



[1]Doutorando do PPGCOM da UFPE, email: alancampos1965@gmail.com.

[2]Doutorando do PPGCOM da UFPE, email: alancampos1965@gmail.com.