Um esboço do catálogo biográfico da Companhia das Letras e
Record (1990-2020)
Felipe Adam[1]
Antonio Hohlfeldt[2]
Resumo:
Este artigo apresenta observações
preliminares e exploratórias sobre investigação em andamento, realizada junto ao
doutorado em Comunicação Social da PUCRS. O estudo se propõe a apresentar uma
radiografia de livros cujo foco sejam biografias, postas à venda no mercado
editorial brasileiro. O problema de pesquisa, que serve de norte para o
trabalho, é: quem merece ser resgatado do passado? Para isso, será apreciado o
catálogo virtual do Grupo Companhia das Letras e do Grupo Editorial Record, no
período de 1990 a 2020. Nelas, foram encontradas 558 e 495 obras,
respectivamente, na categoria “Biografia & Autobiografia”. O levantamento
também evidenciou o número de homens e mulheres que biografam e/ou são
biografados no país. Por meio do debate a respeito da noção de arquivo
(ASMANN, 2011; FOUCAULT, 2008; FIGUEIREDO, 2017) e memória (HALBWACHS, 1990;
POLLAK, 1989) — no tópico nomeado como A memória como silêncio (ou
apagamento) do passado — e estudos relacionados ao feminismo (DALCASTAGNÈ,
2012; PERROT, 2005), na seção intitulada A resistência frente à
invisibilidade, o texto conclui que é necessário questionar a cultura que
se consome no Brasil, através das obras biográficas. Isso porque é possível
inferir certo preconceito velado, onde a diversidade é camuflada e o espaço,
sutilmente limitado.
Palavras-chave: Livros Biográficos; Arquivo; Memória;
Estudos Do Feminino; Mercado Editorial Brasileiro.
The memory of the feminine:
A sketch of the Companhia das Letras e Record's biographical
catalog (1990-2020)
Felipe Adam[3]
Antonio Hohlfeldt[4]
Abstract: This article presents preliminary and
exploratory observations on ongoing research, carried out with the doctorate in
Social Communication at PUCRS. The study proposes to present an X-ray of books
focused on biographies, offered for sale in the Brazilian publishing market.
The research problem, which serves as a guide for the work, is: who deserves to
be rescued from the past? For this, the virtual catalog of Grupo Companhia das
Letras and Grupo Editorial Record, from 1990 to 2020, will be analyzed. In
them, 558 and 495 works were found, respectively, in the “Biografia & Autobiografia” category. The survey
also highlighted the number of men and women who biograph and/or are biographed
in the country. Through the debate about the notion of arquivo (ASMANN, 2011; FOUCAULT,
2008; FIGUEIREDO, 2017) and memory (HALBWACHS, 1990; POLLAK, 1989) — in the topic named A
memória como silêncio (ou apagamento) do passado — and studies related to
feminism (DALCASTAGNÈ, 2012; PERROT, 2005), in the section entitled A resistência frente à invisibilidade, the
text concludes that it is necessary to
question the culture that is consumed in Brazil, through biographical works. This is because it is possible to inferinfer a
certain veiled prejudice, where diversity is camouflaged and space, subtly
limited.
Keywords: Biographical Books; Archive; Memory; Studies
Of The Feminine; Brazilian Publishing Market.
Introdução
O ano
era 1327 e o cenário, um mosteiro localizado ao norte da Itália. Durante a
investigação de uma sequência de óbitos que aconteceram nessa abadia, o monge
franciscano Guilherme de Baskerville e o noviço Adso Melk entram em uma torre
proibida, onde descobrem segredos intocáveis pelos frades. Presos a uma grande
quantidade de documentos que se transformam em um labirinto — cuja
analogia faz lembrar as dúvidas do homem medieval em meio à descoberta do
conhecimento — os protagonistas dialogam sobre o achado:
— Mas como podemos confiar na antiga sabedoria, de
que vós sempre buscais as pegadas, se ela é transmitida por livros mendazes que
a interpretaram com tanta liberdade?
— Os livros não são feitos para acreditarmos neles,
mas para serem submetidos a investigações. Diante de um livro não devemos nos
perguntar o que diz, mas o que quer dizer, ideia que os velhos comentadores dos
livros sagrados tiveram claríssima. (ECO, 1983, p. 361).
Embora
Il nome della rosa[1] (em
português: O nome da rosa) seja um livro de ficção do escritor italiano
Umberto Eco, publicado em 1980, a obra suscita questões estratégicas a respeito
da Idade Média, como a restrição ao conhecimento, pela Igreja Católica. As
obras, consideradas subversivas pelos clérigos, vinham relacionadas no Índex,
um catálogo “[...] de livros impressos que os fiéis estavam proibidos de ler.
[...] O Índex-modelo editado em 1564, começava com uma série de regras gerais
proibindo três tipos principais de livros: os heréticos, os imorais e os
mágicos” (BRIGGS; BURKE, 2006, p. 56). Segundo a Inquisição[2],
caso algum livro fosse acessado pelos católicos, sem autorização, provocava
inevitável punição para os curiosos: da excomunhão à fogueira. Além dos
aspectos históricos, o longa-metragem também retrata o controle da informação
que perpassa a preservação da memória, na época medieval.
Cristianização
da memória e da mnemotécnica, [...] desenvolvimento da memória dos mortos,
principalmente dos santos, papel da memória no ensino que articula o oral e o
escrito, [...] tais são os traços mais característicos das metamorfoses da
memória. (LE GOFF, 2003, p. 438).
Neste
texto, busca-se apresentar uma radiografia de quem são os personagens
biografados escolhidos para serem lembrados e que, por consequência, geraram
obras postas à venda no mercado editorial brasileiro. Para isso, será
apreciado, a título de estudo exploratório, o catálogo virtual de duas editoras
brasileiras, no período de 1990 a 2020: o Grupo Companhia das Letras[3] e o Grupo Editorial Record[4]. Diante desse perfil preliminar de
três décadas, parte-se do pressuposto de que os critérios para a escolha de um
biografado perpassam, também, questões comerciais. A partir disso, lança-se o
problema do artigo: quem merece ser resgatado do passado? Afinal, o livro,
enquanto produto cultural, ainda possui um valor simbólico de conhecimento, o
que reforça a aceitação da mensagem que se quer vender. Com intuito didático,
as próximas páginas serão organizadas a partir de três tópicos — “A noção do arquivo”, “A memória como silêncio (ou
apagamento) do passado” e “A resistência frente à invisibilidade” — que se propõem a questionar a cultura que se
consome no país, através da literatura de não-ficção, no caso, as obras
biográficas comercializadas no Brasil.
A noção de arquivo
Jacques Le
Goff (2003) afirma que a valorização da memória provém da Antiguidade. Os
gregos já a haviam personificado na deusa Mnemósine, fonte de imortalidade e
antídoto contra o esquecimento. Na Grécia antiga, segundo Le Goff, a memória
foi celebrada numa perspectiva coletiva e associada a ritos divinos, a partir
da instituição de um cargo, o mnémon:
O aparecimento destes funcionários da
memória lembra os fenômenos que já evocamos: a relação com o mito, com a
urbanização. Na mitologia e na lenda, o mnémon é o servidor de um herói
que o acompanha sem cessar, para lembrar-lhe uma ordem divina cujo esquecimento
traria a morte. [...] Com o desenvolvimento da escrita, estas “memórias vivas”
transformam-se em arquivistas. (LE GOFF, 2003, p. 433).
Para se ter
noção da importância do conceito de arquivo, para o estudo sobre a
memória, cabe uma explicação sobre o termo. De acordo com Assmann (2011, p.
367), “[a] palavra ‘arquivo’ vem do grego arché, que, além de ‘início’,
‘origem’ e ‘autoridade’, significa ‘repartição pública’ e ‘escritório
público’”. Ou seja, o conceito de arquivo vai além de um sistema de
registros, que poderia ser particular. Na verdade, ele precisa ser ou tornar-se
público. Na Idade Média, por exemplo, “[...] armazenavam-se nos arquivos dos
príncipes, dos mosteiros, das igrejas e das cidades os documentos que serviam
para atestação de instituições e grupos. [...] Controle do arquivo é controle
da memória” (ASMANN, 2011, p. 368). Durante aquele período, a escassez de
livros marcou a Europa. Mas a partir do século XVI, o processo se inverteu:
“Com a multiplicação dos livros, as bibliotecas tiveram de ser ampliadas, ficou
mais difícil encontrar um livro nas prateleiras, e os catálogos se tornaram
cada vez mais necessários” (BRIGGS; BURKE, 2006, p. 27). O desafio era manter
uma organização e posterior atualização de novas publicações.
Para a alemã
Aleida Asmann, três são as funções do arquivo, enquanto um espaço de
armazenamento, a começar pela acessibilidade, que “[...] define se a
instituição é democrática ou repressiva” (ASMANN, 2011, p. 368). Em seguida, a seleção.
O arquivo não significa somente um lugar de estoque de informações, mas também
um espaço onde se pensa no que fazer com aqueles documentos. Para isso, a conservação
é fundamental, papel este que reverbera nos debates públicos.
Os Estados democráticos seculares,
que combateram as instâncias centralizadoras de censura [...], veem-se diante
de uma nova tarefa e uma nova responsabilidade. A eles é atribuída a obrigação
da conservação, mas não necessariamente a da seleção. (ASMANN, 2011, p. 382).
Somemos ao
debate o francês Michel Foucault, que também contribuiu para esta conceituação.
Para ele, arquivo não seria “[...] a soma de todos os textos que uma
cultura guardou em seu poder, como documentos de seu próprio passado, ou como
testemunho de sua identidade mantida” (FOUCAULT, 2008, p. 146). Mais do que um
acúmulo de documentos ou um amontoado de papeis, arquivo é “[...] a lei do que pode ser dito, o sistema que rege o
aparecimento dos enunciados como acontecimentos singulares” (FOUCAULT, 2008, p.
147). Na busca por sentidos, Foucault prossegue, na tentativa de encontrar
significados ao sistema de enunciados inseridos no funcionamento de um arquivo:
É evidente que não se pode descrever
exaustivamente o arquivo de uma sociedade, de uma cultura ou de uma
civilização; nem mesmo, sem dúvida, o arquivo de toda uma época. [...] O
arquivo não é descritível em sua totalidade; e é incontornável em sua
atualidade. [...] A análise do arquivo comporta, pois, uma região privilegiada:
ao mesmo tempo próxima de nós, mas diferente de nossa atualidade, trata-se da
orla do tempo que cerca nosso presente, que o domina e que o indica em sua
alteridade; é aquilo que, fora de nós, nos delimita. (FOUCAULT, 2008, p. 148).
No Brasil,
Eurídice Figueiredo analisou a literatura como uma ferramenta de arquivo a
respeito da ditadura militar brasileira. Figueiredo (2017) busca, nos textos do
francês Jacques Derrida, a noção de mal de arquivo, ou seja, a noção
dicotômica inerente à função do arquivo, que é de conservar, mas também de
destruir: “[...] a obsessão pelo arquivo é o corolário da perda da memória;
arquiva-se para se resguardar do esquecimento. Como não existe mais memória,
vivemos numa cultura dos vestígios, vestígios esses que são preservados em
arquivos” (FIGUEIREDO, 2017, p. 28).
Não obstante
a ficção tenha se apropriado do período ditatorial para constituir múltiplas
histórias, muitas vezes silenciadas, a literatura de não-ficção também é farta
a respeito da época do regime militar. Justamente porque os personagens, no
segmento de não-ficção, não são indivíduos inventados pelo narrador, essas
obras funcionam como testemunho, onde o trauma é evidenciado e exposto como uma
forma de compensação no processo de interpretação do sofrimento. “Tratar da
literatura sobre a ditadura convoca categorias de pensamento como o testemunho,
o trauma, o exílio, a memória, o arquivo, enfim, a responsabilidade dos autores
frente à História e aos leitores” (FIGUEIREDO, 2017, p. 41). São casos como os
da biografia Marighella: O guerrilheiro que incendiou o mundo (2012),
escrita pelo jornalista Mário Magalhães ou da reportagem Holocausto
brasileiro (2013), que premiou a jornalista Daniela Arbex, exemplos que
ilustram o poder que narrativas de fôlego que suscitam o entendimento dos
leitores a respeito daquela época.
No tópico a
seguir, o texto se pautará na contextualização da memória enquanto uma relação
de vetores tensionados pela lembrança e pelo esquecimento. São essas duas
linhas de força que interferem de maneira intrínseca e dicotômica: a partir de
quais razões protagonistas são evidenciados e outros sequer são mencionados,
sendo apagados como se não existissem. Para tanto, o artigo busca respostas a
partir dos estudos sobre a memória, defendidos por Pollak (1989) e Halbwachs
(1990).
A memória
como silêncio (ou apagamento) do passado
No filme de
longa-metragem The monuments men (2014) — em
português: Caçadores de obras-primas —, um grupo de especialistas é enviado
aos territórios europeus ocupados por nazistas, a fim de salvar objetos de arte
roubados pelos soldados alemães durante a Segunda Guerra. Em uma das conversas
motivacionais com a equipe, o oficial Frank Stokes (personificado por George
Clooney) reflete sobre o trabalho tido como desnecessário em meio ao desastre
causado pelo confronto:
Nunca pretenderam que a missão fosse
um sucesso. Se fossem sinceros, nos diriam isso. Nos diriam que com tanta gente
morrendo, quem liga para a arte? Estão errados, porque é exatamente por ela que
lutamos. Por nossa cultura, nosso estilo de vida. Você pode dizimar uma geração
de pessoas, pode reduzir suas casas a cinzas e de alguma forma, elas ainda
voltam. Mas se destruir suas realizações, sua história, é como se nunca
tivessem existido. (CAÇADORES DE OBRAS-PRIMAS, 2014).
Apesar de as
obras de arte serem objetos que, vale ressaltar, não substituem a perda humana
de uma pessoa para uma família, elas representam valores, simbolizam culturas,
preservam identificações. Os laços afetivos vão além do produto em si:
transbordam sentimentos de pertencimento que reforçam um retorno ao local de
origem. Assim como aqueles objetos, peças de roupas e lugares também são
indicativos de memória: “O que secreta, veste, estabelece, constrói, decreta,
mantém pelo artifício e pela vontade uma coletividade fundamentalmente
envolvida em sua transformação e sua renovação” (NORA, 1993, p. 13). E o
historiador Pierre Nora prossegue: “Museus, arquivos, cemitérios e coleções,
festas, aniversários, tratados, processos verbais, monumentos, santuários,
associações, são os marcos testemunhais de uma outra era, das ilusões da
eternidade” (NORA, 1993, p. 13).
O estudo
sobre a memória é originário do campo da saúde e vai além da mente humana,
enquanto função cognitiva. Sigmund Freud se dedicou à consciência; Henri
Bergson refletiu sobre o aspecto filosófico das recordações. No campo das
ciências humanas, Maurice Halbwachs seria o responsável em adaptar o conceito
às relações sociais. Discípulo de Henri Bergson e contemporâneo de Emile
Durkheim, Halbwachs estudaria a classe dos operários quando concluiu que o
homem se caracterizaria pelo grau de integração no tecido das relações sociais.
Preso pela Geheime Staatspolizei, a
Gestapo[5], em 1944, ele deixaria como legado
pesquisas sobre a função e o processo da memória coletiva, publicadas
postumamente.
Para
Halbwachs (1990), existe uma memória interior — também
chamada de memória pessoal ou autobiográfica — e uma
memória externa — conhecida ainda como memória social ou histórica.
A primeira classificação encontraria eco no segundo grupo, que seria mais
amplo. “Por outra parte, ela não nos representaria o passado senão sob uma
forma resumida e esquemática, enquanto que a memória de nossa vida nos
apresentaria um quadro bem mais contínuo e mais denso” (HALBWACHS, 1990, p.
55). O teórico aponta que as memórias dos indivíduos são baseadas nas
recordações de terceiros, que acabam por influenciar aqueles que não presenciaram
determinadas histórias.
[A] lembrança é em larga medida uma
reconstrução do passado com a ajuda de dados emprestados do presente, e, além
disso, preparada por outras reconstruções feitas em épocas anteriores e de onde
a imagem de outrora manifestou-se já bem alterada. (HALBWACHS, 1990, p. 71-72).
Para ele, se lembramos apenas daquilo que nos
é permitido recordar, então as lembranças não podem ser classificadas somente
como subjetivas, já que somos influenciados pelo filtro do coletivo. Afinal de
contas, ainda que cada cidadão carregue experiências individuais, os
pensamentos são moldados por terceiros, seja através da oralidade da família e de
amigos, seja pelos discursos públicos de governo ou de informações divulgadas
pela mídia. Assim, a memória de um grupo é ensinada ao outro, o que acarreta
uma padronização de lembranças e opiniões. Intrigado pela questão de a memória
não favorecer a pluralidade de origens, o sociólogo austríaco Michael Pollak
(1989) pôs-se a estudar o silêncio e o posterior apagamento de referências a
alguns grupos:
Embora na maioria das vezes esteja
ligada a fenômenos de dominação, a clivagem entre memória oficial e dominante e
memórias subterrâneas, assim como a significação do silêncio sobre o passado,
não remete forçosamente à oposição entre Estado dominador e sociedade civil.
Encontramos com mais frequência esse problema nas relações entre grupos
minoritários e sociedade englobante. (POLLAK, 1989, p. 3).
A memória
funciona como um mecanismo de proteção para a sociedade, que une aqueles que podem
ser considerados comuns: “O que está em jogo na memória é também o sentido da
identidade individual e do grupo” (POLLAK, 1989, p. 8). Por estar à margem do
fluxo normal das narrativas do cotidiano e divergir do que é imposto, a cultura
dos grupos subordinados passa despercebida. Tudo o que possa causar
estranhamento ao grupo dominador acaba por ser esquecido ou tratado como
invisível. Ambientadas num local divergente ao normal, as histórias de vida
dessas pessoas são tocadas em ritmos diferentes, mesmo porque não há
intervenção individual direta das instituições dominantes (CONNERTON, 1993).
Exemplos dessas questões podem ser evidenciadas em dois documentários
brasileiros: Holocausto brasileiro (2016)[6],
baseado no livro homônimo da jornalista Daniela Arbex, e Menino 23:
Infâncias perdidas no Brasil (2016)[7].
Neste, a cena de abertura expõe a dolorosa frase: “Na fina camada entre memória
e esquecimento, por vezes o que se revela, desconcertante e assustador, é o
presente”.
Como será
trabalhado mais adiante, o mercado editorial põe à venda biografias que
reforçam determinadas marcas contextuais. Essas narrativas não demonstram
apenas um desequilíbrio de gênero entre o sexo dos jornalistas-escritores ou
dos protagonistas, mas ainda uma imposição de que homens são mais valorizados
na sociedade. Isto é, mais lembrados na História pelo fato da cronologia ser
ordenada segundo uma visão dominante: a masculina. Como indagamos na
introdução, afinal de contas, quem merece ser resgatado do passado? Pelo
levantamento encontrado nas editoras, as autobiografias são um espaço ideal em
que os personagens podem revisitar seu passado e expressar suas lembranças sem
depender de terceiros — no caso, os biógrafos. Ainda que nas autobiografias a
presença das mulheres seja um pouco mais visível, os resultados ainda são
desanimadores: “[...] escrever e publicar a narrativa da própria vida foi por
muito tempo, e ainda continua sendo, em grande medida, um privilégio reservado
aos membros das classes dominantes” (LEJEUNE, 2014, p. 131). E quando se fala
em classe dominante, a vantagem não se limita a questões financeiras: abrange
também aspectos sexuais e étnicos.
Por isso, e a
fim de buscar respostas à pergunta norteadora do artigo, o texto irá discutir,
no próximo tópico, a presença de homens e mulheres enquanto autores e
protagonistas de biografias/autobiografias.
A resistência
frente à invisibilidade
Em
levantamento preliminar, desenvolvido a partir dos catálogos das editoras
associadas ao Sindicato Nacional dos Editores de Livros (SNEL), realizado no
Mestrado[8] do autor, junto à
Universidade Estadual de Ponta Grossa (UEPG), inferiu-se que o Grupo Companhia
das Letras, Grupo Editorial Record, L&PM Editores e Globo Livros, nesta
ordem, são as quatro casas que mais editam narrativas biográficas (LIMA, 2009)
no Brasil. Com o intuito de avaliar os tipos de história de vida mais
consumidas no país, escolheu-se, para o presente trabalho, as duas maiores
casas editoriais do país.
Partiu-se
para este levantamento com duas hipóteses em mente: primeiro, que existem mais
homens autores e homens protagonistas em biografias e, segundo: as
autobiografias podem servir de espaço para uma maior quantidade de mulheres
autoras. Como será observado adiante, a primeira questão foi concretizada; já a
última, apesar do aumento significativo na participação feminina entre as
autoras, o resultado continuou desanimador para os estudos de gênero.
Diante disso,
cabe questionar sobre o que é ofertado pelas editoras ao público brasileiro.
Se, há quarenta anos, a realidade editorial era cercada de proibições de
livros, cujas ideias, opiniões ou mensagens eram simplesmente banidas, hoje se
vive uma multiplicidade de assuntos — todavia, comandados pelas mesmas
vozes. “A utilização do livro por pessoas privilegiadas o estabelece como um
segredo do qual somente eles são os ‘verdadeiros’ intérpretes. [...] Deste
ponto de vista, o sentido ‘literal’ é o sinal e o efeito de um poder social, o
de uma elite” (DE CERTEAU, 1994, p. 267). São vestígios que acabam sendo
deixados pelo caminho e que a sociedade, enquanto leitora e consumidora de bens
culturais, aceita como algo natural. A circulação da indústria do livro afeta o
impacto e a chegada dessas obras ao mercado.
Ao definir as
explicações a respeito de identidade e diferença, Tomaz Tadeu da Silva (2000)
indicou que aquele que tem o poder de representar, tem o poder de definir e,
ainda, de determinar a identidade:
A afirmação da identidade e a
marcação da diferença implicam, sempre, as operações de incluir e de excluir.
[...] A identidade e a diferença se traduzem, assim, em declarações sobre quem
pertence e sobre quem não pertence, sobre quem está incluído e quem está
excluído. Afirmar a identidade significa demarcar fronteiras, significa fazer distinções
entre o que fica dentro e o que fica fora. A identidade está sempre ligada a
uma forte separação entre “nós” e “eles”. (SILVA, 2000, p. 82).
Num um país multifacetado e segregado como é o Brasil, a oferta de livros
biográficos pode se tornar um espaço de apagamento, na medida em que os
protagonistas dessas obras não representem o mosaico étnico e sexual do país. À luz da
pesquisa organizada por Perrot (2005), ou dos apontamentos de Dalcastagnè
(2012), o presente texto buscou analisar e questionar a cultura que se consome
através dos livros catalogados pelas editoras brasileiras. De acordo com o
catálogo virtual do Grupo Companhia das Letras e do Grupo Editorial Record, no
período de 1990 a 2020, foram encontrados 558 e 495 obras, respectivamente, na
categoria “Biografia & Autobiografia”.
A seguir, o
Gráfico 1 registra as divisões dos principais tipos de histórias de vida. É
importante esclarecer que as planilhas foram elaboradas, pela primeira vez, em
outubro/novembro de 2018 e atualizadas em novembro/dezembro de 2020. Foi considerado o ano de lançamento divulgado
na página oficial da editora, na internet, ainda que a publicação original seja
datada de outra época. Às vezes, o livro apareceu duas vezes na lista, porque a
obra precisou ser relançada, devido a alguma adaptação cinematográfica, por
exemplo. Por fim, embora Lima (2009) considere as memórias como um texto
pertencente às narrativas biográficas, para este artigo, títulos ou sinopses em
que aparecem o nome memórias foram também classificados como
autobiografias.
Gráfico
1 -
Quantidade de narrativas biográficas no catálogo do Grupo Companhia das Letras
e no Grupo Editorial Record
Fonte: Elaborado
pelos autores (2021)
Para Lima
(2009, p. 425), a biografia é uma narrativa de longo percurso, “[...] cuja
missão é contar toda a vida de uma pessoa, viva ou morta”. Porém, a totalidade
dessa vida se torna uma utopia, quando se pensa que nenhuma vida seria capaz de
caber em um livro, independente das páginas ou volumes. Ademais, parte-se da
ideia de que um livro biográfico trate da vida de pessoas, mas quanto à questão
comercial, autores e editoras decidiram aplicar o termo bio para outras
narrativas a respeito de existências, como bandas de música (ABBA: A
biografia, 2014; The Rolling Stones: A biografia definitiva, 2015),
lugares (Os degraus de Ipanema, 1997), jornais (Até a última página:
Uma história do Jornal do Brasil, 2018; Jornal da Tarde: Uma ousadia que
reinventou a imprensa brasileira, 2019), gêneros musicais (A onda que se
ergueu no mar: Novíssimos mergulhos na Bossa Nova, 2017; Uma história do
samba, 2017) e até de doenças (O imperador de todos os males: Uma
biografia do câncer, 2012), com um evidente alargamento de sentido da
expressão.
Já nas
histórias autobiográficas, a narração é radicalmente unificada entre o biógrafo
e o biografado, pelo autor e o protagonista: “escrever sobre a própria vida é
desejar intensamente partilhar com os outros os insights e a
luminosidade das histórias que se apoderam da imaginação de quem as registra”
(VILAS BOAS, 2002, p. 59). Segundo classificação de Vilas Boas (2002, p. 48),
chamam-se ditadas as biografias “[...] em que o biógrafo escreve uma
autobiografia ou memória em nome do personagem central, no papel de ghostwriter”.
Ademais, o autor ajuda a explicar o contexto envolvido, como a de um bairro, de
um país ou de fragmentos da própria vida, como fizeram a escritora Zélia Gattai
(Chão de meninos: Memórias, 2011; A casa do Rio Vermelho: Memórias,
2010; Códigos de família, 2010), a partir de momentos específicos sobre
o relacionamento com o companheiro Jorge Amado; ou o velejador Amyr Klink, que
fez questão de compartilhar as aventuras do mar e as histórias de cada barco (Linha-d’água:
Entre estaleiros e homens do mar, 2006; Cem dias entre céu e mar,
1995; Paratii: Entre dois pólos, 1992), com os leitores.
Igualmente
chama atenção a quantidade de textos mais intimistas, presentes no
levantamento. Segundo Lejeune (2014), por exemplo, a escrita cotidiana do
diário apresenta uma sequência de sinais temporais cuja utilidade é, dentre
outras, conservar a memória:
[...] escrever uma entrada pressupõe
fazer uma triagem do vivido e organizá-lo segundo eixos, ou seja, dar-lhe uma
‘identidade narrativa’ que tornará minha vida memorável. [...] O diário será ao
mesmo tempo arquivo e ação, ‘disco rígido’ e memória viva. (LEJEUNE, 2014, p.
302).
Para fins
deste artigo, o trabalho terá foco somente nas biografias e autobiografias.
Entretanto, antes de analisar os próximos gráficos, cabe aqui um detalhe a
respeito de algumas características dos títulos biográficos, que servem como
reflexões preliminares. A adjetivação expressa nos títulos das obras é a
primeira delas. Palavras como definitiva (Freddie Mercury: A
biografia definitiva, 2013), autorizada (Deus tenha misericórdia
dessa nação: A biografia não autorizada de Eduardo Cunha, 2019), oficial
(Tudo de novo: A biografia oficial do Roupa Nova, 2013), verdadeira
(Diana: Sua verdadeira história, 2013) são usadas como uma forma de
atrair o leitor. Além disso, termos como a vida (Travessia: A vida de
Milton Nascimento, 2006; Mick: A vida louca e o gênio selvagem de Jagger,
2015), a biografia (Hebe: A biografia, 2017; Kardec: A
biografia, 2019), o segredo (Sou dona da minha alma: O segredo de
Virginia Woolf, 2010; O segredo de Copérnico, 2011) também são
empregados.
Identificamos,
ainda, o uso dos substantivos homem e mulher associados a
qualidades, como em Duque de Caxias: O homem por trás do monumento
(2008), A dona das chaves: Uma mulher no comando das prisões do Rio de
Janeiro (2010), Mona Lisa: A mulher por trás do quadro (2018) ou Ferrari:
O homem por trás das máquinas (2019).
Por fim, como se não bastasse, as editoras aplicam superlativos como modo
de engrandecer a figura masculina, como em “mais original” (Sócrates: A história e as histórias do
jogador mais original do futebol brasileiro, 2014) ou “mais perigoso” (O homem mais perigoso do país: Biografia de
Filinto Müller, 2017). Adiante, o Gráfico 2 evidencia a presença de homens
e mulheres enquanto biografados, catalogada tanto pelo Grupo
Companhia das Letras, quanto pelo Grupo Editorial Record.
Gráfico
2 -
Sexo dos biografados no Grupo Companhia das Letras e no Grupo Editorial Record
Fonte: Elaborado
pelos autores (2021)
Independentemente
da editora, percebe-se a relativa baixa quantidade de protagonistas mulheres em
livros biográficos: na Companhia das Letras, o número de homens é cinco vezes maior
(38 mulheres contra 201 homens); já na Record, o valor é quase o triplo (54
mulheres versus 152 homens). Por quais razões, determinados sujeitos são
priorizados? Por que não há um reconhecimento cultural das histórias femininas?
Mais uma vez, há uma segregação que se evidencia, inclusive, no mercado
editorial.
Muitas
autoras já se debruçaram a discutir a representação feminina nos mitos e em
contos de fadas (FRANZ, 1990; ESTÉS, 2018). Mas como já indicado, este texto se
inspirou na pesquisa realizada por Dalcastagnè (2012), dedicada a analisar os
romances brasileiros publicados no período de 1990 a 2004. No trabalho, a
autora observou os autores, personagens, lugares, sexos, etnias; enfim, a
pluralidade — ou melhor, a ausência dela — nas páginas
dos textos de ficção contemporâneos:
Reconhecer-se em uma representação
artística, ou reconhecer o outro dentro dela, faz parte de um processo de
legitimação de identidades, ainda que elas sejam múltiplas. Daí o estranhamento
quando determinados grupos sociais desaparecem dentro de uma expressão
artística que se fundaria exatamente na pluralidade de perspectivas.
(DALCASTAGNÈ, 2012, p. 147).
É provável que uma das respostas para a quantidade irrisória de mulheres
biografadas esteja também no pequeno número de mulheres autoras de biografias.
A desproporção é tão grande que a presença de homens escritores chega a ser o
dobro, no Grupo Editorial Record (148 versus
76) e, no Grupo Companhia das Letras (192 versus
51), quase quatro vezes maior. Diante da dicotomia evidenciada pelo
levantamento exposto no Gráfico 2, é necessário questionar também o sexo dos
autores das obras biográficas, como é possível observar no Gráfico 3:
Gráfico
3 -
Sexo dos autores de biografias catalogadas no Grupo Companhia das Letras e no
Grupo Editorial Record
Fonte: Elaborado
pelos autores (2021)
Michelle
Perrot (2005) estudou as práticas da memória feminina. Além de serem
personagens, as mulheres também assumem papéis de leitoras e autoras, ambas
caracterizadas por privações: “Como a leitura, a escrita é, frequentemente,
para as mulheres, um fruto proibido. [...] Ela deve se defender e esconder-se
para continuar o quê, aos olhos do pai, é uma criancice e um desperdício”
(PERROT, 2005, p. 36). Como se fosse um pecado aproveitar desse prazer
literário, as mulheres precisavam apagar qualquer vestígio que pudesse indicar
a leitura: “Este ato de autodestruição é também uma forma de adesão ao silêncio
que a sociedade impõe às mulheres [...]. Queimar seus papeis é uma purificação
pelo fogo desta atenção a si mesma que confina ao sacrilégio” (PERROT, 2005, p.
37).
No Grupo
Companhia das Letras, dos 51 livros em que mulheres assinam sozinhas narrativas
biográficas, somente em 17 (33,33%) delas os protagonistas também são mulheres.
E detalhe: oito delas — ou quase metade das obras — tratam do
universo de indivíduos femininos concentrados em palácios e castelos: Vitória,
a Rainha: Biografia íntima da mulher que comandou um Império (2018), As
irmãs Romanov: As vidas das filhas do último tsar (2016), Elizabeth I:
Uma biografia (2016), A imperatriz de ferro: A concubina que criou a
China moderna (2014), A esposa secreta de Luís XIV: Madame de Maintenon (2012),
Georgiana: Duquesa de Devonshire (2012), Cleópatra: Uma biografia
(2011) e Vitória (1999).
No Grupo
Editorial Record, das 76 obras biográficas cujas mulheres são autoras
exclusivas, 32 (42,10%) delas também tratam de mulheres. As ocupações são mais
plurais, desde escritoras (Agatha Christie, Rachel de Queiroz e Virginia
Woolf), atrizes (Brigitte Bardot e Jennifer Lawrence), cantoras/compositoras
(Chiquinha Gonzaga, Ivone Lara, Lily Allen e Rihanna), filósofas (Hanna Arendt
e Simone de Beauvoir) a outras personagens históricas (Anne Frank, Eva Perón,
Maria Antonieta, Mona Lisa, Xica da Silva). Destaque aos sete livros da
escritora norte-americana Jean Sasson, que tratou de personagens oriundas do
Oriente Médio: Princesa: Mais lágrimas para chorar (2016), sobre a
princesa saudita Sultana; A escolha de Yasmeena (2014), a respeito da
comissário de bordo Yasmeena; Por amor a um filho: A jornada de uma mulher
afegã em busca do filho perdido (2014); Sob a sombra do terror (2010);
Amor em terra de chamas (2008), que conta a vida de Joanna al-Askari,
princesa do Curdistão; Mayada (2005) e As filhas da princesa (2004).
Se a presença de mulheres biógrafas e biografadas era pequena, a situação não
parece ser muito diferente nas autobiografias, conforme apresentado no Gráfico
4:
Gráfico
4 -
Sexo dos autores das autobiografias catalogadas no Grupo Companhia das Letras e
no Grupo Editorial Record
Fonte: Elaborado
pelos autores (2021)
Como
percebido, as mulheres ganham um tímido espaço nas autobiografias, onde os
relatos são mais intimistas. Da mesma forma que ocorrem com as feridas expostas
pelos sobreviventes de grandes traumas, como o Holocausto, ao longo da Segunda
Guerra Mundial, ou as perseguições, prisões e torturas cometidas durante o período
militar, nas ditaduras latino-americanas, a literatura de testemunho se
demonstra como condição de sobrevivência (SELIGMAN-SILVA, 2008) e funciona como
um espaço de desabafo onde se escoam os medos, decepções ou raivas: “Na
situação testemunhal o tempo passado é tempo presente [...] Mais
especificamente, o trauma é caracterizado por ser uma memória de um passado que
não passa” (SELIGMAN-SILVA, 2008, p. 69).
Seja sozinho
ou com a ajuda de um segundo escritor que possa auxiliar na organização das
ideias, as autobiografias também são um instrumento de retorno ao passado, com
o intuito de revisitar o sobrenome da família, recordar os lugares de origem,
lembrar dos eventos de que se participou, compartilhar das experiências
individuais. São exemplos os livros Evocação (2009), de Aleida March,
viúva de Ernesto Che Guevara; Aprendizados: Minha caminhada para uma vida
com mais significado (2018), da modelo brasileira Gisele Bündchen ou Minha
história, da ex-primeira-dama dos Estados Unidos, Michelle Obama.
É importante lembrar que a intenção deste artigo não é tratar a
autobiografia e o testemunho como sinônimos, por se tratar de uma narrativa
sobre experiências: “Não há testemunho sem experiência, mas tampouco há
experiência sem narração: a linguagem liberta o aspecto mudo da experiência,
redime-a de seu imediatismo ou de seu esquecimento e a transforma no
comunicável, isto é, no comum” (SARLO, 2007, p. 24-25). São nesses tipos
de livros que as mulheres possuem a oportunidade de alertar e orientar sujeitos
que possam sofrer do mesmo problema, como o que ocorreu nas obras
autobiográficas Não há silêncio que não termine: Meus anos de cativeiro na
selva colombiana (2010), da ex-senadora colombiana Íngrid Betancourt,
sequestrada pelo grupo de guerrilha FARC, em 2002; À venda: Minha luta
contra o tráfico sexual na Europa (2012), da ativista romena Iana Matei; Eu
sou Malala, da ativista paquistanesa Malala Yousafzai (2013); A última
sobrevivente: O testemunho tocante da última pessoa a ser resgatada nas Torres
Gêmeas (2014), de Genelle Guzman-McMillan; Para poder viver: A jornada
de uma garota norte-coreana para a liberdade (2016), da ativista Yeonmi
Park. “As narrações testemunhais sentem-se confortáveis no presente porque é a
atualidade (política, social, cultural, biográfica) que possibilita sua
difusão, quando não sua emergência [...]. O núcleo do testemunho é a sua
memória” (SARLO, 2007, p. 58). Essa memória evidencia
que elas conseguiram escapar do problema e que outras mulheres igualmente podem
se libertar do sofrimento e do domínio.
Considerações finais
O presente
artigo se propôs a discutir o problema exposto na introdução: quem merece ser
resgatado do passado? Para tanto, o texto buscou analisar o catálogo virtual do
Grupo Companhia das Letras e do Grupo Editorial Record, a fim de apresentar uma
radiografia preliminar de quem escreve e a quem se referem os livros
biográficos editados no Brasil, ao longo das últimas três décadas (1990-2020).
Para isso, o
trabalho iniciou por uma discussão a respeito da noção do arquivo e, em
seguida, no tópico 3 (A memória como silêncio (ou apagamento) do passado),
um debate sobre o papel da memória, no contexto histórico. Por fim, na seção 4
(A resistência frente à invisibilidade), serviu como espaço para uma
problematização sobre o levantamento. Embora não seja uma surpresa inferir que
homens e mulheres apresentam desequilíbrio nas funções que ocupam na sociedade,
nunca é exagero reforçar, com dados quantitativos, o quanto essa representação
é desigual. O que mais choca é o abismo de diferenças no segmento cultural,
setor este que deveria mais incluir, ao invés de segregar.
Como
observado nos gráficos, homens lideram a maioria de biografias, bem como são
maioria entre os biografados. Já entre as autobiografias, as mulheres apresentaram
um tímido crescimento, mas nada que afete a dominação masculina. Se ainda
persiste um abismo de diferença, por que as editoras não reformulam o critério
de participação dos sexos? Isso terá a ver com a identidade dos leitores? Ou com
suas capacidades aquisitivas?
Além da
questão numérica, cabe mencionar o valor qualitativo dos títulos biográficos.
Mesmo não sendo regra, percebe-se que, enquanto os livros de e sobre mulheres
falam de superação (aprendizados ou minha luta), as obras de e
sobre homens fortalecem um lugar dominante (mais original ou mais
perigoso).
Por isso, em
tempos em que o feminismo tem tomado espaço — e, felizmente, se apresenta como
tendência nos debates — o trabalho serviu para conhecer um primeiro
levantamento sobre a multiplicidade de títulos nos catálogos de algumas
editoras; contudo, é necessário voltar o olhar para a sua quase nula
diversidade. O trabalho conclui que é urgente se questionar sobre o tipo de
cultura literária produzida, imposta e consumida. Este processo evidencia um
preconceito velado, onde a diversidade é proibida e o espaço, radicalmente
limitado.
Notas
[1] O livro inspirou a produção do filme The
name of the rose, lançado em 1986. Dirigido pelo cineasta Jean-Jacques
Annaud, os protagonistas Guilherme de Baskerville e Adso Melk foram
interpretados, respectivamente, pelos atores Sean Connery e Christian Slater.
Disponível em: <https://bit.ly/3ieLbcl>.
Acesso em 20 mai. 2021.
[2] Tribunal instituído pela
Igreja Católica Apostólica Romana, com o intuito de julgar e punir os
praticantes de heresias — isto é, as pessoas que agiam contra a fé católica —
entre os séculos XIII e XIX.
[3] Endereço eletrônico do Grupo Companhia das
Letras: <https://bit.ly/3xqqjmV>.
[4]
Endereço eletrônico do Grupo Editorial Record: <https://bit.ly/3lcMSZL>.
[5] Tradução livre: Polícia Estadual
Secreta. Era um dos órgãos de segurança da Alemanha nazista.
[6] Disponível em: <https://bit.ly/3xjaSfY>. Acesso em 20
mai. 2021.
[7] Disponível em: <https://bit.ly/3lfZZsZ>. Acesso em 20
mai. 2021.
[8] Embora tenha sido
realizado, o levantamento da SNEL não foi empregado no trabalho final do
Mestrado. Para a dissertação, o autor utilizou somente os dados das editoras
conveniadas à Associação Brasileira das Editoras Universitárias (ABEU).
Referências
ASSMANN, Aleida. Espaços da recordação: formas e
transformações da memória cultural. Campinas: Editora da Unicamp, 2011.
BRIGGS, Asa; BURKE, Peter. Uma história social da mídia: de Gutenberg à Internet. Rio de
Janeiro: Jorge Zahar, 2006.
CAÇADORES DE OBRAS-PRIMAS. Direção: George Clooney.
Produção: George Clooney e Grant Heslov. Elenco:
George Clooney, Matt Damon, Bill Murray, John Goodman e outros. Alemanha/EUA: Studio
Babelsberg; FOX 2000 Pictures, 2014. (118 min.), son., P&B. Disponível em: <https://www.youtube.com/watch?v=7abLqIpNtck>. Acesso em 20 mai.
2021.
CONNERTON, Paul. Como
as sociedades recordam. Oeiras: Celta, 1993.
DALCASTAGNÈ, Regina. Literatura
brasileira contemporânea: um território contestado. Vinhedo: Horizonte,
2012.
DE CERTEAU, Michel. A
invenção do cotidiano: artes de fazer. Petrópolis: Vozes, 1994.
ECO, Umberto. O nome da rosa. Rio de Janeiro: Nova
Fronteira, 1983.
ESTÉS, Clarissa Pinkola. Mulheres
que correm com os lobos: mitos e histórias do arquétipo da mulher selvagem.
Rio de Janeiro: Rocco, 2018.
FRANZ, Marie-Louise Von. A
interpretação dos contos de fada. São Paulo: Paulus, 1990.
FIGUEIREDO, Eurídice. A
literatura como arquivo da ditadura brasileira. Rio de Janeiro: 7 Letras,
2017.
FOUCAULT, Michel. A
arqueologia do saber. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2008.
HALBWACHS, Maurice. A
memória coletiva. São Paulo: Vértice, 1990.
LE GOFF, Jacques. História
e memória. Campinas: Editora Unicamp, 2003.
LEJEUNE, Philippe. O
pacto autobiográfico: de Rousseau à Internet. Belo Horizonte: Editora UFMG,
2014.
LIMA, Edvaldo Pereira. Páginas ampliadas: o
livro-reportagem como extensão do jornalismo e da literatura. São Paulo:
Manole, 2009.
NORA, Pierre. Entre memória e história: a problemática dos
lugares. Projeto História, São Paulo, v.10, p. 7-28, dez. 1993.
Disponível em: <https://revistas.pucsp.br/index.php/revph/article/view/12101>. Acesso em 20 mai.
2021.
PERROT, Michelle. As mulheres ou os silêncios da história.
Bauru: EDUSC, 2005.
POLLAK, Michael. Memória, esquecimento, silêncio. Estudos Históricos, Rio de Janeiro, v.
2, n. 3, p. 3-15, 1989. Disponível em: <http://www.uel.br/cch/cdph/arqtxt/Memoria_esquecimento_silencio.pdf>. Acesso em 20 mai.
2021.
SARLO, Beatriz. Tempo
passado: cultura da memória e guinada subjetiva. Belo Horizonte: Editora da
UFMG; São Paulo: Companhia das Letras, 2007.
SELIGMAN-SILVA, Márcio. Narrar o trauma: a questão dos
testemunhos de catástrofes históricas. Psicologia Clínica, Rio de Janeiro, v. 20, n. 1, p.
65-82, 2008. DOI: <https://doi.org/10.1590/S0103-56652008000100005>.
SILVA, Tomaz Tadeu da. A produção social da identidade e da
diferença. In: SILVA, Tomaz Tadeu da (org.); HALL, Stuart;
WOODWARD, Kathryn. Identidade e diferença: a perspectiva dos
Estudos Culturais. Petrópolis: Vozes, 2000. p. 73-102.
VILAS BOAS, Sérgio. Biografia
e biógrafos: jornalismo sobre personagens. São Paulo: Summus, 2002.
[1]Jornalista e doutorando em Comunicação Social
pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUC-RS). Bolsista
com financiamento da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível
Superior (Capes). E-mail: felipeadam91@gmail.com.
[2] Doutor em Letras pela PUCRS, Pós-doutorado em Jornalismo pela Universidade Fernando Pessoa. Pesquisador do CNPq.. E-mail: a_hohlfeldt@yahoo.com.br
[3]Jornalista e doutorando em Comunicação Social
pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUC-RS). Bolsista
com financiamento da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior
(Capes). E-mail: felipeadam91@gmail.com.
[4] Doutor em Letras pela PUCRS, Pós-doutorado em Jornalismo pela Universidade Fernando Pessoa. Pesquisador do CNPq.. E-mail: a_hohlfeldt@yahoo.com.br