A memória do feminino:

Um esboço do catálogo biográfico da Companhia das Letras e Record (1990-2020)

 

Felipe Adam[1]

Antonio Hohlfeldt[2]

                                                                                             

Resumo: Este artigo apresenta observações preliminares e exploratórias sobre investigação em andamento, realizada junto ao doutorado em Comunicação Social da PUCRS. O estudo se propõe a apresentar uma radiografia de livros cujo foco sejam biografias, postas à venda no mercado editorial brasileiro. O problema de pesquisa, que serve de norte para o trabalho, é: quem merece ser resgatado do passado? Para isso, será apreciado o catálogo virtual do Grupo Companhia das Letras e do Grupo Editorial Record, no período de 1990 a 2020. Nelas, foram encontradas 558 e 495 obras, respectivamente, na categoria “Biografia & Autobiografia”. O levantamento também evidenciou o número de homens e mulheres que biografam e/ou são biografados no país. Por meio do debate a respeito da noção de arquivo (ASMANN, 2011; FOUCAULT, 2008; FIGUEIREDO, 2017) e memória (HALBWACHS, 1990; POLLAK, 1989) — no tópico nomeado como A memória como silêncio (ou apagamento) do passado — e estudos relacionados ao feminismo (DALCASTAGNÈ, 2012; PERROT, 2005), na seção intitulada A resistência frente à invisibilidade, o texto conclui que é necessário questionar a cultura que se consome no Brasil, através das obras biográficas. Isso porque é possível inferir certo preconceito velado, onde a diversidade é camuflada e o espaço, sutilmente limitado.

Palavras-chave: Livros Biográficos; Arquivo; Memória; Estudos Do Feminino; Mercado Editorial Brasileiro.

 

The memory of the feminine:

A sketch of the Companhia das Letras e Record's biographical catalog (1990-2020)

Felipe Adam[3]

Antonio Hohlfeldt[4]

 

 

Abstract: This article presents preliminary and exploratory observations on ongoing research, carried out with the doctorate in Social Communication at PUCRS. The study proposes to present an X-ray of books focused on biographies, offered for sale in the Brazilian publishing market. The research problem, which serves as a guide for the work, is: who deserves to be rescued from the past? For this, the virtual catalog of Grupo Companhia das Letras and Grupo Editorial Record, from 1990 to 2020, will be analyzed. In them, 558 and 495 works were found, respectively, in the “Biografia & Autobiografia” category. The survey also highlighted the number of men and women who biograph and/or are biographed in the country. Through the debate about the notion of arquivo (ASMANN, 2011; FOUCAULT, 2008; FIGUEIREDO, 2017) and memory (HALBWACHS, 1990; POLLAK, 1989) in the topic named A memória como silêncio (ou apagamento) do passado and studies related to feminism (DALCASTAGNÈ, 2012; PERROT, 2005), in the section entitled A resistência frente à invisibilidade, the text concludes that it is necessary to question the culture that is consumed in Brazil, through biographical works. This is because it is possible to inferinfer a certain veiled prejudice, where diversity is camouflaged and space, subtly limited.

Keywords: Biographical Books; Archive; Memory; Studies Of The Feminine; Brazilian Publishing Market.


Introdução

 

 

O ano era 1327 e o cenário, um mosteiro localizado ao norte da Itália. Durante a investigação de uma sequência de óbitos que aconteceram nessa abadia, o monge franciscano Guilherme de Baskerville e o noviço Adso Melk entram em uma torre proibida, onde descobrem segredos intocáveis pelos frades. Presos a uma grande quantidade de documentos que se transformam em um labirinto cuja analogia faz lembrar as dúvidas do homem medieval em meio à descoberta do conhecimento os protagonistas dialogam sobre o achado:

 

Mas como podemos confiar na antiga sabedoria, de que vós sempre buscais as pegadas, se ela é transmitida por livros mendazes que a interpretaram com tanta liberdade?

Os livros não são feitos para acreditarmos neles, mas para serem submetidos a investigações. Diante de um livro não devemos nos perguntar o que diz, mas o que quer dizer, ideia que os velhos comentadores dos livros sagrados tiveram claríssima. (ECO, 1983, p. 361).

 

Embora Il nome della rosa[1] (em português: O nome da rosa) seja um livro de ficção do escritor italiano Umberto Eco, publicado em 1980, a obra suscita questões estratégicas a respeito da Idade Média, como a restrição ao conhecimento, pela Igreja Católica. As obras, consideradas subversivas pelos clérigos, vinham relacionadas no Índex, um catálogo “[...] de livros impressos que os fiéis estavam proibidos de ler. [...] O Índex-modelo editado em 1564, começava com uma série de regras gerais proibindo três tipos principais de livros: os heréticos, os imorais e os mágicos” (BRIGGS; BURKE, 2006, p. 56). Segundo a Inquisição[2], caso algum livro fosse acessado pelos católicos, sem autorização, provocava inevitável punição para os curiosos: da excomunhão à fogueira. Além dos aspectos históricos, o longa-metragem também retrata o controle da informação que perpassa a preservação da memória, na época medieval.

 

Cristianização da memória e da mnemotécnica, [...] desenvolvimento da memória dos mortos, principalmente dos santos, papel da memória no ensino que articula o oral e o escrito, [...] tais são os traços mais característicos das metamorfoses da memória. (LE GOFF, 2003, p. 438).

 

Neste texto, busca-se apresentar uma radiografia de quem são os personagens biografados escolhidos para serem lembrados e que, por consequência, geraram obras postas à venda no mercado editorial brasileiro. Para isso, será apreciado, a título de estudo exploratório, o catálogo virtual de duas editoras brasileiras, no período de 1990 a 2020: o Grupo Companhia das Letras[3] e o Grupo Editorial Record[4]. Diante desse perfil preliminar de três décadas, parte-se do pressuposto de que os critérios para a escolha de um biografado perpassam, também, questões comerciais. A partir disso, lança-se o problema do artigo: quem merece ser resgatado do passado? Afinal, o livro, enquanto produto cultural, ainda possui um valor simbólico de conhecimento, o que reforça a aceitação da mensagem que se quer vender. Com intuito didático, as próximas páginas serão organizadas a partir de três tópicos “A noção do arquivo”, “A memória como silêncio (ou apagamento) do passado” e “A resistência frente à invisibilidade” que se propõem a questionar a cultura que se consome no país, através da literatura de não-ficção, no caso, as obras biográficas comercializadas no Brasil.

 

 

A noção de arquivo

 

 

Jacques Le Goff (2003) afirma que a valorização da memória provém da Antiguidade. Os gregos já a haviam personificado na deusa Mnemósine, fonte de imortalidade e antídoto contra o esquecimento. Na Grécia antiga, segundo Le Goff, a memória foi celebrada numa perspectiva coletiva e associada a ritos divinos, a partir da instituição de um cargo, o mnémon:

 

O aparecimento destes funcionários da memória lembra os fenômenos que já evocamos: a relação com o mito, com a urbanização. Na mitologia e na lenda, o mnémon é o servidor de um herói que o acompanha sem cessar, para lembrar-lhe uma ordem divina cujo esquecimento traria a morte. [...] Com o desenvolvimento da escrita, estas “memórias vivas” transformam-se em arquivistas. (LE GOFF, 2003, p. 433).

 

Para se ter noção da importância do conceito de arquivo, para o estudo sobre a memória, cabe uma explicação sobre o termo. De acordo com Assmann (2011, p. 367), “[a] palavra ‘arquivo’ vem do grego arché, que, além de ‘início’, ‘origem’ e ‘autoridade’, significa ‘repartição pública’ e ‘escritório público’”. Ou seja, o conceito de arquivo vai além de um sistema de registros, que poderia ser particular. Na verdade, ele precisa ser ou tornar-se público. Na Idade Média, por exemplo, “[...] armazenavam-se nos arquivos dos príncipes, dos mosteiros, das igrejas e das cidades os documentos que serviam para atestação de instituições e grupos. [...] Controle do arquivo é controle da memória” (ASMANN, 2011, p. 368). Durante aquele período, a escassez de livros marcou a Europa. Mas a partir do século XVI, o processo se inverteu: “Com a multiplicação dos livros, as bibliotecas tiveram de ser ampliadas, ficou mais difícil encontrar um livro nas prateleiras, e os catálogos se tornaram cada vez mais necessários” (BRIGGS; BURKE, 2006, p. 27). O desafio era manter uma organização e posterior atualização de novas publicações.

Para a alemã Aleida Asmann, três são as funções do arquivo, enquanto um espaço de armazenamento, a começar pela acessibilidade, que “[...] define se a instituição é democrática ou repressiva” (ASMANN, 2011, p. 368). Em seguida, a seleção. O arquivo não significa somente um lugar de estoque de informações, mas também um espaço onde se pensa no que fazer com aqueles documentos. Para isso, a conservação é fundamental, papel este que reverbera nos debates públicos.

 

Os Estados democráticos seculares, que combateram as instâncias centralizadoras de censura [...], veem-se diante de uma nova tarefa e uma nova responsabilidade. A eles é atribuída a obrigação da conservação, mas não necessariamente a da seleção. (ASMANN, 2011, p. 382).

 

Somemos ao debate o francês Michel Foucault, que também contribuiu para esta conceituação. Para ele, arquivo não seria “[...] a soma de todos os textos que uma cultura guardou em seu poder, como documentos de seu próprio passado, ou como testemunho de sua identidade mantida” (FOUCAULT, 2008, p. 146). Mais do que um acúmulo de documentos ou um amontoado de papeis, arquivo é “[...] a lei do que pode ser dito, o sistema que rege o aparecimento dos enunciados como acontecimentos singulares” (FOUCAULT, 2008, p. 147). Na busca por sentidos, Foucault prossegue, na tentativa de encontrar significados ao sistema de enunciados inseridos no funcionamento de um arquivo:

 

É evidente que não se pode descrever exaustivamente o arquivo de uma sociedade, de uma cultura ou de uma civilização; nem mesmo, sem dúvida, o arquivo de toda uma época. [...] O arquivo não é descritível em sua totalidade; e é incontornável em sua atualidade. [...] A análise do arquivo comporta, pois, uma região privilegiada: ao mesmo tempo próxima de nós, mas diferente de nossa atualidade, trata-se da orla do tempo que cerca nosso presente, que o domina e que o indica em sua alteridade; é aquilo que, fora de nós, nos delimita. (FOUCAULT, 2008, p. 148).

 

No Brasil, Eurídice Figueiredo analisou a literatura como uma ferramenta de arquivo a respeito da ditadura militar brasileira. Figueiredo (2017) busca, nos textos do francês Jacques Derrida, a noção de mal de arquivo, ou seja, a noção dicotômica inerente à função do arquivo, que é de conservar, mas também de destruir: “[...] a obsessão pelo arquivo é o corolário da perda da memória; arquiva-se para se resguardar do esquecimento. Como não existe mais memória, vivemos numa cultura dos vestígios, vestígios esses que são preservados em arquivos” (FIGUEIREDO, 2017, p. 28).

Não obstante a ficção tenha se apropriado do período ditatorial para constituir múltiplas histórias, muitas vezes silenciadas, a literatura de não-ficção também é farta a respeito da época do regime militar. Justamente porque os personagens, no segmento de não-ficção, não são indivíduos inventados pelo narrador, essas obras funcionam como testemunho, onde o trauma é evidenciado e exposto como uma forma de compensação no processo de interpretação do sofrimento. “Tratar da literatura sobre a ditadura convoca categorias de pensamento como o testemunho, o trauma, o exílio, a memória, o arquivo, enfim, a responsabilidade dos autores frente à História e aos leitores” (FIGUEIREDO, 2017, p. 41). São casos como os da biografia Marighella: O guerrilheiro que incendiou o mundo (2012), escrita pelo jornalista Mário Magalhães ou da reportagem Holocausto brasileiro (2013), que premiou a jornalista Daniela Arbex, exemplos que ilustram o poder que narrativas de fôlego que suscitam o entendimento dos leitores a respeito daquela época.

No tópico a seguir, o texto se pautará na contextualização da memória enquanto uma relação de vetores tensionados pela lembrança e pelo esquecimento. São essas duas linhas de força que interferem de maneira intrínseca e dicotômica: a partir de quais razões protagonistas são evidenciados e outros sequer são mencionados, sendo apagados como se não existissem. Para tanto, o artigo busca respostas a partir dos estudos sobre a memória, defendidos por Pollak (1989) e Halbwachs (1990).

 

 

A memória como silêncio (ou apagamento) do passado

 

 

No filme de longa-metragem The monuments men (2014) em português: Caçadores de obras-primas, um grupo de especialistas é enviado aos territórios europeus ocupados por nazistas, a fim de salvar objetos de arte roubados pelos soldados alemães durante a Segunda Guerra. Em uma das conversas motivacionais com a equipe, o oficial Frank Stokes (personificado por George Clooney) reflete sobre o trabalho tido como desnecessário em meio ao desastre causado pelo confronto:

 

Nunca pretenderam que a missão fosse um sucesso. Se fossem sinceros, nos diriam isso. Nos diriam que com tanta gente morrendo, quem liga para a arte? Estão errados, porque é exatamente por ela que lutamos. Por nossa cultura, nosso estilo de vida. Você pode dizimar uma geração de pessoas, pode reduzir suas casas a cinzas e de alguma forma, elas ainda voltam. Mas se destruir suas realizações, sua história, é como se nunca tivessem existido. (CAÇADORES DE OBRAS-PRIMAS, 2014).

 

Apesar de as obras de arte serem objetos que, vale ressaltar, não substituem a perda humana de uma pessoa para uma família, elas representam valores, simbolizam culturas, preservam identificações. Os laços afetivos vão além do produto em si: transbordam sentimentos de pertencimento que reforçam um retorno ao local de origem. Assim como aqueles objetos, peças de roupas e lugares também são indicativos de memória: “O que secreta, veste, estabelece, constrói, decreta, mantém pelo artifício e pela vontade uma coletividade fundamentalmente envolvida em sua transformação e sua renovação” (NORA, 1993, p. 13). E o historiador Pierre Nora prossegue: “Museus, arquivos, cemitérios e coleções, festas, aniversários, tratados, processos verbais, monumentos, santuários, associações, são os marcos testemunhais de uma outra era, das ilusões da eternidade” (NORA, 1993, p. 13).

O estudo sobre a memória é originário do campo da saúde e vai além da mente humana, enquanto função cognitiva. Sigmund Freud se dedicou à consciência; Henri Bergson refletiu sobre o aspecto filosófico das recordações. No campo das ciências humanas, Maurice Halbwachs seria o responsável em adaptar o conceito às relações sociais. Discípulo de Henri Bergson e contemporâneo de Emile Durkheim, Halbwachs estudaria a classe dos operários quando concluiu que o homem se caracterizaria pelo grau de integração no tecido das relações sociais. Preso pela Geheime Staatspolizei, a Gestapo[5], em 1944, ele deixaria como legado pesquisas sobre a função e o processo da memória coletiva, publicadas postumamente.

Para Halbwachs (1990), existe uma memória interior também chamada de memória pessoal ou autobiográfica e uma memória externa conhecida ainda como memória social ou histórica. A primeira classificação encontraria eco no segundo grupo, que seria mais amplo. “Por outra parte, ela não nos representaria o passado senão sob uma forma resumida e esquemática, enquanto que a memória de nossa vida nos apresentaria um quadro bem mais contínuo e mais denso” (HALBWACHS, 1990, p. 55). O teórico aponta que as memórias dos indivíduos são baseadas nas recordações de terceiros, que acabam por influenciar aqueles que não presenciaram determinadas histórias.

 

[A] lembrança é em larga medida uma reconstrução do passado com a ajuda de dados emprestados do presente, e, além disso, preparada por outras reconstruções feitas em épocas anteriores e de onde a imagem de outrora manifestou-se já bem alterada. (HALBWACHS, 1990, p. 71-72).

 

 Para ele, se lembramos apenas daquilo que nos é permitido recordar, então as lembranças não podem ser classificadas somente como subjetivas, já que somos influenciados pelo filtro do coletivo. Afinal de contas, ainda que cada cidadão carregue experiências individuais, os pensamentos são moldados por terceiros, seja através da oralidade da família e de amigos, seja pelos discursos públicos de governo ou de informações divulgadas pela mídia. Assim, a memória de um grupo é ensinada ao outro, o que acarreta uma padronização de lembranças e opiniões. Intrigado pela questão de a memória não favorecer a pluralidade de origens, o sociólogo austríaco Michael Pollak (1989) pôs-se a estudar o silêncio e o posterior apagamento de referências a alguns grupos:

 

Embora na maioria das vezes esteja ligada a fenômenos de dominação, a clivagem entre memória oficial e dominante e memórias subterrâneas, assim como a significação do silêncio sobre o passado, não remete forçosamente à oposição entre Estado dominador e sociedade civil. Encontramos com mais frequência esse problema nas relações entre grupos minoritários e sociedade englobante. (POLLAK, 1989, p. 3).

 

A memória funciona como um mecanismo de proteção para a sociedade, que une aqueles que podem ser considerados comuns: “O que está em jogo na memória é também o sentido da identidade individual e do grupo” (POLLAK, 1989, p. 8). Por estar à margem do fluxo normal das narrativas do cotidiano e divergir do que é imposto, a cultura dos grupos subordinados passa despercebida. Tudo o que possa causar estranhamento ao grupo dominador acaba por ser esquecido ou tratado como invisível. Ambientadas num local divergente ao normal, as histórias de vida dessas pessoas são tocadas em ritmos diferentes, mesmo porque não há intervenção individual direta das instituições dominantes (CONNERTON, 1993). Exemplos dessas questões podem ser evidenciadas em dois documentários brasileiros: Holocausto brasileiro (2016)[6], baseado no livro homônimo da jornalista Daniela Arbex, e Menino 23: Infâncias perdidas no Brasil (2016)[7]. Neste, a cena de abertura expõe a dolorosa frase: “Na fina camada entre memória e esquecimento, por vezes o que se revela, desconcertante e assustador, é o presente”.

Como será trabalhado mais adiante, o mercado editorial põe à venda biografias que reforçam determinadas marcas contextuais. Essas narrativas não demonstram apenas um desequilíbrio de gênero entre o sexo dos jornalistas-escritores ou dos protagonistas, mas ainda uma imposição de que homens são mais valorizados na sociedade. Isto é, mais lembrados na História pelo fato da cronologia ser ordenada segundo uma visão dominante: a masculina. Como indagamos na introdução, afinal de contas, quem merece ser resgatado do passado? Pelo levantamento encontrado nas editoras, as autobiografias são um espaço ideal em que os personagens podem revisitar seu passado e expressar suas lembranças sem depender de terceiros no caso, os biógrafos. Ainda que nas autobiografias a presença das mulheres seja um pouco mais visível, os resultados ainda são desanimadores: “[...] escrever e publicar a narrativa da própria vida foi por muito tempo, e ainda continua sendo, em grande medida, um privilégio reservado aos membros das classes dominantes” (LEJEUNE, 2014, p. 131). E quando se fala em classe dominante, a vantagem não se limita a questões financeiras: abrange também aspectos sexuais e étnicos.

Por isso, e a fim de buscar respostas à pergunta norteadora do artigo, o texto irá discutir, no próximo tópico, a presença de homens e mulheres enquanto autores e protagonistas de biografias/autobiografias.

 

 

A resistência frente à invisibilidade

 

 

Em levantamento preliminar, desenvolvido a partir dos catálogos das editoras associadas ao Sindicato Nacional dos Editores de Livros (SNEL), realizado no Mestrado[8] do autor, junto à Universidade Estadual de Ponta Grossa (UEPG), inferiu-se que o Grupo Companhia das Letras, Grupo Editorial Record, L&PM Editores e Globo Livros, nesta ordem, são as quatro casas que mais editam narrativas biográficas (LIMA, 2009) no Brasil. Com o intuito de avaliar os tipos de história de vida mais consumidas no país, escolheu-se, para o presente trabalho, as duas maiores casas editoriais do país.

Partiu-se para este levantamento com duas hipóteses em mente: primeiro, que existem mais homens autores e homens protagonistas em biografias e, segundo: as autobiografias podem servir de espaço para uma maior quantidade de mulheres autoras. Como será observado adiante, a primeira questão foi concretizada; já a última, apesar do aumento significativo na participação feminina entre as autoras, o resultado continuou desanimador para os estudos de gênero.

Diante disso, cabe questionar sobre o que é ofertado pelas editoras ao público brasileiro. Se, há quarenta anos, a realidade editorial era cercada de proibições de livros, cujas ideias, opiniões ou mensagens eram simplesmente banidas, hoje se vive uma multiplicidade de assuntos todavia, comandados pelas mesmas vozes. “A utilização do livro por pessoas privilegiadas o estabelece como um segredo do qual somente eles são os ‘verdadeiros’ intérpretes. [...] Deste ponto de vista, o sentido ‘literal’ é o sinal e o efeito de um poder social, o de uma elite” (DE CERTEAU, 1994, p. 267). São vestígios que acabam sendo deixados pelo caminho e que a sociedade, enquanto leitora e consumidora de bens culturais, aceita como algo natural. A circulação da indústria do livro afeta o impacto e a chegada dessas obras ao mercado.

Ao definir as explicações a respeito de identidade e diferença, Tomaz Tadeu da Silva (2000) indicou que aquele que tem o poder de representar, tem o poder de definir e, ainda, de determinar a identidade:

 

A afirmação da identidade e a marcação da diferença implicam, sempre, as operações de incluir e de excluir. [...] A identidade e a diferença se traduzem, assim, em declarações sobre quem pertence e sobre quem não pertence, sobre quem está incluído e quem está excluído. Afirmar a identidade significa demarcar fronteiras, significa fazer distinções entre o que fica dentro e o que fica fora. A identidade está sempre ligada a uma forte separação entre “nós” e “eles”. (SILVA, 2000, p. 82).

 

Num um país multifacetado e segregado como é o Brasil, a oferta de livros biográficos pode se tornar um espaço de apagamento, na medida em que os protagonistas dessas obras não representem o mosaico étnico e sexual do país. À luz da pesquisa organizada por Perrot (2005), ou dos apontamentos de Dalcastagnè (2012), o presente texto buscou analisar e questionar a cultura que se consome através dos livros catalogados pelas editoras brasileiras. De acordo com o catálogo virtual do Grupo Companhia das Letras e do Grupo Editorial Record, no período de 1990 a 2020, foram encontrados 558 e 495 obras, respectivamente, na categoria “Biografia & Autobiografia”.

A seguir, o Gráfico 1 registra as divisões dos principais tipos de histórias de vida. É importante esclarecer que as planilhas foram elaboradas, pela primeira vez, em outubro/novembro de 2018 e atualizadas em novembro/dezembro de 2020. Foi considerado o ano de lançamento divulgado na página oficial da editora, na internet, ainda que a publicação original seja datada de outra época. Às vezes, o livro apareceu duas vezes na lista, porque a obra precisou ser relançada, devido a alguma adaptação cinematográfica, por exemplo. Por fim, embora Lima (2009) considere as memórias como um texto pertencente às narrativas biográficas, para este artigo, títulos ou sinopses em que aparecem o nome memórias foram também classificados como autobiografias.

 

Gráfico 1 - Quantidade de narrativas biográficas no catálogo do Grupo Companhia das Letras e no Grupo Editorial Record

https://bit.ly/3ylJPBm

Fonte: Elaborado pelos autores (2021)

 

Para Lima (2009, p. 425), a biografia é uma narrativa de longo percurso, “[...] cuja missão é contar toda a vida de uma pessoa, viva ou morta”. Porém, a totalidade dessa vida se torna uma utopia, quando se pensa que nenhuma vida seria capaz de caber em um livro, independente das páginas ou volumes. Ademais, parte-se da ideia de que um livro biográfico trate da vida de pessoas, mas quanto à questão comercial, autores e editoras decidiram aplicar o termo bio para outras narrativas a respeito de existências, como bandas de música (ABBA: A biografia, 2014; The Rolling Stones: A biografia definitiva, 2015), lugares (Os degraus de Ipanema, 1997), jornais (Até a última página: Uma história do Jornal do Brasil, 2018; Jornal da Tarde: Uma ousadia que reinventou a imprensa brasileira, 2019), gêneros musicais (A onda que se ergueu no mar: Novíssimos mergulhos na Bossa Nova, 2017; Uma história do samba, 2017) e até de doenças (O imperador de todos os males: Uma biografia do câncer, 2012), com um evidente alargamento de sentido da expressão.

Já nas histórias autobiográficas, a narração é radicalmente unificada entre o biógrafo e o biografado, pelo autor e o protagonista: “escrever sobre a própria vida é desejar intensamente partilhar com os outros os insights e a luminosidade das histórias que se apoderam da imaginação de quem as registra” (VILAS BOAS, 2002, p. 59). Segundo classificação de Vilas Boas (2002, p. 48), chamam-se ditadas as biografias “[...] em que o biógrafo escreve uma autobiografia ou memória em nome do personagem central, no papel de ghostwriter”. Ademais, o autor ajuda a explicar o contexto envolvido, como a de um bairro, de um país ou de fragmentos da própria vida, como fizeram a escritora Zélia Gattai (Chão de meninos: Memórias, 2011; A casa do Rio Vermelho: Memórias, 2010; Códigos de família, 2010), a partir de momentos específicos sobre o relacionamento com o companheiro Jorge Amado; ou o velejador Amyr Klink, que fez questão de compartilhar as aventuras do mar e as histórias de cada barco (Linha-d’água: Entre estaleiros e homens do mar, 2006; Cem dias entre céu e mar, 1995; Paratii: Entre dois pólos, 1992), com os leitores.

Igualmente chama atenção a quantidade de textos mais intimistas, presentes no levantamento. Segundo Lejeune (2014), por exemplo, a escrita cotidiana do diário apresenta uma sequência de sinais temporais cuja utilidade é, dentre outras, conservar a memória:

 

[...] escrever uma entrada pressupõe fazer uma triagem do vivido e organizá-lo segundo eixos, ou seja, dar-lhe uma ‘identidade narrativa’ que tornará minha vida memorável. [...] O diário será ao mesmo tempo arquivo e ação, ‘disco rígido’ e memória viva. (LEJEUNE, 2014, p. 302).

 

Para fins deste artigo, o trabalho terá foco somente nas biografias e autobiografias. Entretanto, antes de analisar os próximos gráficos, cabe aqui um detalhe a respeito de algumas características dos títulos biográficos, que servem como reflexões preliminares. A adjetivação expressa nos títulos das obras é a primeira delas. Palavras como definitiva (Freddie Mercury: A biografia definitiva, 2013), autorizada (Deus tenha misericórdia dessa nação: A biografia não autorizada de Eduardo Cunha, 2019), oficial (Tudo de novo: A biografia oficial do Roupa Nova, 2013), verdadeira (Diana: Sua verdadeira história, 2013) são usadas como uma forma de atrair o leitor. Além disso, termos como a vida (Travessia: A vida de Milton Nascimento, 2006; Mick: A vida louca e o gênio selvagem de Jagger, 2015), a biografia (Hebe: A biografia, 2017; Kardec: A biografia, 2019), o segredo (Sou dona da minha alma: O segredo de Virginia Woolf, 2010; O segredo de Copérnico, 2011) também são empregados.

Identificamos, ainda, o uso dos substantivos homem e mulher associados a qualidades, como em Duque de Caxias: O homem por trás do monumento (2008), A dona das chaves: Uma mulher no comando das prisões do Rio de Janeiro (2010), Mona Lisa: A mulher por trás do quadro (2018) ou Ferrari: O homem por trás das máquinas (2019).

Por fim, como se não bastasse, as editoras aplicam superlativos como modo de engrandecer a figura masculina, como em “mais original” (Sócrates: A história e as histórias do jogador mais original do futebol brasileiro, 2014) ou “mais perigoso” (O homem mais perigoso do país: Biografia de Filinto Müller, 2017). Adiante, o Gráfico 2 evidencia a presença de homens e mulheres enquanto biografados, catalogada tanto pelo Grupo Companhia das Letras, quanto pelo Grupo Editorial Record.

 

 

Gráfico 2 - Sexo dos biografados no Grupo Companhia das Letras e no Grupo Editorial Record

https://bit.ly/3ym4aqh

Fonte: Elaborado pelos autores (2021)

 

Independentemente da editora, percebe-se a relativa baixa quantidade de protagonistas mulheres em livros biográficos: na Companhia das Letras, o número de homens é cinco vezes maior (38 mulheres contra 201 homens); já na Record, o valor é quase o triplo (54 mulheres versus 152 homens). Por quais razões, determinados sujeitos são priorizados? Por que não há um reconhecimento cultural das histórias femininas? Mais uma vez, há uma segregação que se evidencia, inclusive, no mercado editorial.

Muitas autoras já se debruçaram a discutir a representação feminina nos mitos e em contos de fadas (FRANZ, 1990; ESTÉS, 2018). Mas como já indicado, este texto se inspirou na pesquisa realizada por Dalcastagnè (2012), dedicada a analisar os romances brasileiros publicados no período de 1990 a 2004. No trabalho, a autora observou os autores, personagens, lugares, sexos, etnias; enfim, a pluralidade ou melhor, a ausência dela nas páginas dos textos de ficção contemporâneos:

 

Reconhecer-se em uma representação artística, ou reconhecer o outro dentro dela, faz parte de um processo de legitimação de identidades, ainda que elas sejam múltiplas. Daí o estranhamento quando determinados grupos sociais desaparecem dentro de uma expressão artística que se fundaria exatamente na pluralidade de perspectivas. (DALCASTAGNÈ, 2012, p. 147).

 

É provável que uma das respostas para a quantidade irrisória de mulheres biografadas esteja também no pequeno número de mulheres autoras de biografias. A desproporção é tão grande que a presença de homens escritores chega a ser o dobro, no Grupo Editorial Record (148 versus 76) e, no Grupo Companhia das Letras (192 versus 51), quase quatro vezes maior. Diante da dicotomia evidenciada pelo levantamento exposto no Gráfico 2, é necessário questionar também o sexo dos autores das obras biográficas, como é possível observar no Gráfico 3:

 

Gráfico 3 - Sexo dos autores de biografias catalogadas no Grupo Companhia das Letras e no Grupo Editorial Record

https://bit.ly/3mGc7nZ

Fonte: Elaborado pelos autores (2021)

 

Michelle Perrot (2005) estudou as práticas da memória feminina. Além de serem personagens, as mulheres também assumem papéis de leitoras e autoras, ambas caracterizadas por privações: “Como a leitura, a escrita é, frequentemente, para as mulheres, um fruto proibido. [...] Ela deve se defender e esconder-se para continuar o quê, aos olhos do pai, é uma criancice e um desperdício” (PERROT, 2005, p. 36). Como se fosse um pecado aproveitar desse prazer literário, as mulheres precisavam apagar qualquer vestígio que pudesse indicar a leitura: “Este ato de autodestruição é também uma forma de adesão ao silêncio que a sociedade impõe às mulheres [...]. Queimar seus papeis é uma purificação pelo fogo desta atenção a si mesma que confina ao sacrilégio” (PERROT, 2005, p. 37).

No Grupo Companhia das Letras, dos 51 livros em que mulheres assinam sozinhas narrativas biográficas, somente em 17 (33,33%) delas os protagonistas também são mulheres. E detalhe: oito delas ou quase metade das obras tratam do universo de indivíduos femininos concentrados em palácios e castelos: Vitória, a Rainha: Biografia íntima da mulher que comandou um Império (2018), As irmãs Romanov: As vidas das filhas do último tsar (2016), Elizabeth I: Uma biografia (2016), A imperatriz de ferro: A concubina que criou a China moderna (2014), A esposa secreta de Luís XIV: Madame de Maintenon (2012), Georgiana: Duquesa de Devonshire (2012), Cleópatra: Uma biografia (2011) e Vitória (1999).

No Grupo Editorial Record, das 76 obras biográficas cujas mulheres são autoras exclusivas, 32 (42,10%) delas também tratam de mulheres. As ocupações são mais plurais, desde escritoras (Agatha Christie, Rachel de Queiroz e Virginia Woolf), atrizes (Brigitte Bardot e Jennifer Lawrence), cantoras/compositoras (Chiquinha Gonzaga, Ivone Lara, Lily Allen e Rihanna), filósofas (Hanna Arendt e Simone de Beauvoir) a outras personagens históricas (Anne Frank, Eva Perón, Maria Antonieta, Mona Lisa, Xica da Silva). Destaque aos sete livros da escritora norte-americana Jean Sasson, que tratou de personagens oriundas do Oriente Médio: Princesa: Mais lágrimas para chorar (2016), sobre a princesa saudita Sultana; A escolha de Yasmeena (2014), a respeito da comissário de bordo Yasmeena; Por amor a um filho: A jornada de uma mulher afegã em busca do filho perdido (2014); Sob a sombra do terror (2010); Amor em terra de chamas (2008), que conta a vida de Joanna al-Askari, princesa do Curdistão; Mayada (2005) e As filhas da princesa (2004). Se a presença de mulheres biógrafas e biografadas era pequena, a situação não parece ser muito diferente nas autobiografias, conforme apresentado no Gráfico 4:

 

Gráfico 4 - Sexo dos autores das autobiografias catalogadas no Grupo Companhia das Letras e no Grupo Editorial Record

https://bit.ly/3mJTgIK

Fonte: Elaborado pelos autores (2021)

 

Como percebido, as mulheres ganham um tímido espaço nas autobiografias, onde os relatos são mais intimistas. Da mesma forma que ocorrem com as feridas expostas pelos sobreviventes de grandes traumas, como o Holocausto, ao longo da Segunda Guerra Mundial, ou as perseguições, prisões e torturas cometidas durante o período militar, nas ditaduras latino-americanas, a literatura de testemunho se demonstra como condição de sobrevivência (SELIGMAN-SILVA, 2008) e funciona como um espaço de desabafo onde se escoam os medos, decepções ou raivas: “Na situação testemunhal o tempo passado é tempo presente [...] Mais especificamente, o trauma é caracterizado por ser uma memória de um passado que não passa” (SELIGMAN-SILVA, 2008, p. 69).

Seja sozinho ou com a ajuda de um segundo escritor que possa auxiliar na organização das ideias, as autobiografias também são um instrumento de retorno ao passado, com o intuito de revisitar o sobrenome da família, recordar os lugares de origem, lembrar dos eventos de que se participou, compartilhar das experiências individuais. São exemplos os livros Evocação (2009), de Aleida March, viúva de Ernesto Che Guevara; Aprendizados: Minha caminhada para uma vida com mais significado (2018), da modelo brasileira Gisele Bündchen ou Minha história, da ex-primeira-dama dos Estados Unidos, Michelle Obama.

É importante lembrar que a intenção deste artigo não é tratar a autobiografia e o testemunho como sinônimos, por se tratar de uma narrativa sobre experiências: “Não há testemunho sem experiência, mas tampouco há experiência sem narração: a linguagem liberta o aspecto mudo da experiência, redime-a de seu imediatismo ou de seu esquecimento e a transforma no comunicável, isto é, no comum” (SARLO, 2007, p. 24-25). São nesses tipos de livros que as mulheres possuem a oportunidade de alertar e orientar sujeitos que possam sofrer do mesmo problema, como o que ocorreu nas obras autobiográficas Não há silêncio que não termine: Meus anos de cativeiro na selva colombiana (2010), da ex-senadora colombiana Íngrid Betancourt, sequestrada pelo grupo de guerrilha FARC, em 2002; À venda: Minha luta contra o tráfico sexual na Europa (2012), da ativista romena Iana Matei; Eu sou Malala, da ativista paquistanesa Malala Yousafzai (2013); A última sobrevivente: O testemunho tocante da última pessoa a ser resgatada nas Torres Gêmeas (2014), de Genelle Guzman-McMillan; Para poder viver: A jornada de uma garota norte-coreana para a liberdade (2016), da ativista Yeonmi Park. “As narrações testemunhais sentem-se confortáveis no presente porque é a atualidade (política, social, cultural, biográfica) que possibilita sua difusão, quando não sua emergência [...]. O núcleo do testemunho é a sua memória” (SARLO, 2007, p. 58). Essa memória evidencia que elas conseguiram escapar do problema e que outras mulheres igualmente podem se libertar do sofrimento e do domínio.

 

Considerações finais

 

 

O presente artigo se propôs a discutir o problema exposto na introdução: quem merece ser resgatado do passado? Para tanto, o texto buscou analisar o catálogo virtual do Grupo Companhia das Letras e do Grupo Editorial Record, a fim de apresentar uma radiografia preliminar de quem escreve e a quem se referem os livros biográficos editados no Brasil, ao longo das últimas três décadas (1990-2020).

Para isso, o trabalho iniciou por uma discussão a respeito da noção do arquivo e, em seguida, no tópico 3 (A memória como silêncio (ou apagamento) do passado), um debate sobre o papel da memória, no contexto histórico. Por fim, na seção 4 (A resistência frente à invisibilidade), serviu como espaço para uma problematização sobre o levantamento. Embora não seja uma surpresa inferir que homens e mulheres apresentam desequilíbrio nas funções que ocupam na sociedade, nunca é exagero reforçar, com dados quantitativos, o quanto essa representação é desigual. O que mais choca é o abismo de diferenças no segmento cultural, setor este que deveria mais incluir, ao invés de segregar.

Como observado nos gráficos, homens lideram a maioria de biografias, bem como são maioria entre os biografados. Já entre as autobiografias, as mulheres apresentaram um tímido crescimento, mas nada que afete a dominação masculina. Se ainda persiste um abismo de diferença, por que as editoras não reformulam o critério de participação dos sexos? Isso terá a ver com a identidade dos leitores? Ou com suas capacidades aquisitivas?

Além da questão numérica, cabe mencionar o valor qualitativo dos títulos biográficos. Mesmo não sendo regra, percebe-se que, enquanto os livros de e sobre mulheres falam de superação (aprendizados ou minha luta), as obras de e sobre homens fortalecem um lugar dominante (mais original ou mais perigoso).

Por isso, em tempos em que o feminismo tem tomado espaço e, felizmente, se apresenta como tendência nos debates o trabalho serviu para conhecer um primeiro levantamento sobre a multiplicidade de títulos nos catálogos de algumas editoras; contudo, é necessário voltar o olhar para a sua quase nula diversidade. O trabalho conclui que é urgente se questionar sobre o tipo de cultura literária produzida, imposta e consumida. Este processo evidencia um preconceito velado, onde a diversidade é proibida e o espaço, radicalmente limitado.

 

Notas

 

[1] O livro inspirou a produção do filme The name of the rose, lançado em 1986. Dirigido pelo cineasta Jean-Jacques Annaud, os protagonistas Guilherme de Baskerville e Adso Melk foram interpretados, respectivamente, pelos atores Sean Connery e Christian Slater. Disponível em: <https://bit.ly/3ieLbcl>. Acesso em 20 mai. 2021.

[2] Tribunal instituído pela Igreja Católica Apostólica Romana, com o intuito de julgar e punir os praticantes de heresias — isto é, as pessoas que agiam contra a fé católica — entre os séculos XIII e XIX.

[3] Endereço eletrônico do Grupo Companhia das Letras: <https://bit.ly/3xqqjmV>.

[4] Endereço eletrônico do  Grupo Editorial Record: <https://bit.ly/3lcMSZL>.

[5] Tradução livre: Polícia Estadual Secreta. Era um dos órgãos de segurança da Alemanha nazista.

[6] Disponível em: <https://bit.ly/3xjaSfY>. Acesso em 20 mai. 2021.

[7] Disponível em: <https://bit.ly/3lfZZsZ>. Acesso em 20 mai. 2021.

[8] Embora tenha sido realizado, o levantamento da SNEL não foi empregado no trabalho final do Mestrado. Para a dissertação, o autor utilizou somente os dados das editoras conveniadas à Associação Brasileira das Editoras Universitárias (ABEU).

 

 

Referências

 

ASSMANN, Aleida. Espaços da recordação: formas e transformações da memória cultural. Campinas: Editora da Unicamp, 2011.

BRIGGS, Asa; BURKE, Peter. Uma história social da mídia: de Gutenberg à Internet. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2006.

CAÇADORES DE OBRAS-PRIMAS. Direção: George Clooney. Produção: George Clooney e Grant Heslov. Elenco: George Clooney, Matt Damon, Bill Murray, John Goodman e outros. Alemanha/EUA: Studio Babelsberg; FOX 2000 Pictures, 2014. (118 min.), son., P&B. Disponível em: <https://www.youtube.com/watch?v=7abLqIpNtck>. Acesso em 20 mai. 2021.

 

CONNERTON, Paul. Como as sociedades recordam. Oeiras: Celta, 1993.

DALCASTAGNÈ, Regina. Literatura brasileira contemporânea: um território contestado. Vinhedo: Horizonte, 2012.

DE CERTEAU, Michel. A invenção do cotidiano: artes de fazer. Petrópolis: Vozes, 1994.

ECO, Umberto. O nome da rosa. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1983.

ESTÉS, Clarissa Pinkola. Mulheres que correm com os lobos: mitos e histórias do arquétipo da mulher selvagem. Rio de Janeiro: Rocco, 2018.

FRANZ, Marie-Louise Von. A interpretação dos contos de fada. São Paulo: Paulus, 1990.

FIGUEIREDO, Eurídice. A literatura como arquivo da ditadura brasileira. Rio de Janeiro: 7 Letras, 2017.

FOUCAULT, Michel. A arqueologia do saber. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2008.

HALBWACHS, Maurice. A memória coletiva. São Paulo: Vértice, 1990.

LE GOFF, Jacques. História e memória. Campinas: Editora Unicamp, 2003.

LEJEUNE, Philippe. O pacto autobiográfico: de Rousseau à Internet. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2014.

LIMA, Edvaldo Pereira. Páginas ampliadas: o livro-reportagem como extensão do jornalismo e da literatura. São Paulo: Manole, 2009.

NORA, Pierre. Entre memória e história: a problemática dos lugares. Projeto História, São Paulo, v.10, p. 7-28, dez. 1993. Disponível em: <https://revistas.pucsp.br/index.php/revph/article/view/12101>. Acesso em 20 mai. 2021.

PERROT, Michelle. As mulheres ou os silêncios da história. Bauru: EDUSC, 2005.

POLLAK, Michael. Memória, esquecimento, silêncio. Estudos Históricos, Rio de Janeiro, v. 2, n. 3, p. 3-15, 1989. Disponível em: <http://www.uel.br/cch/cdph/arqtxt/Memoria_esquecimento_silencio.pdf>. Acesso em 20 mai. 2021.

SARLO, Beatriz. Tempo passado: cultura da memória e guinada subjetiva. Belo Horizonte: Editora da UFMG; São Paulo: Companhia das Letras, 2007.

SELIGMAN-SILVA, Márcio. Narrar o trauma: a questão dos testemunhos de catástrofes históricas. Psicologia Clínica, Rio de Janeiro, v. 20, n. 1, p. 65-82, 2008. DOI: <https://doi.org/10.1590/S0103-56652008000100005>.

SILVA, Tomaz Tadeu da. A produção social da identidade e da diferença. In: SILVA, Tomaz Tadeu da (org.); HALL, Stuart; WOODWARD, Kathryn. Identidade e diferença: a perspectiva dos Estudos Culturais. Petrópolis: Vozes, 2000. p. 73-102.

VILAS BOAS, Sérgio. Biografia e biógrafos: jornalismo sobre personagens. São Paulo: Summus, 2002.



[1]Jornalista e doutorando em Comunicação Social pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUC-RS). Bolsista com financiamento da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Capes). E-mail: felipeadam91@gmail.com.

[2] Doutor em Letras pela PUCRS, Pós-doutorado em Jornalismo pela Universidade Fernando Pessoa. Pesquisador do CNPq.. E-mail: a_hohlfeldt@yahoo.com.br

[3]Jornalista e doutorando em Comunicação Social pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUC-RS). Bolsista com financiamento da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Capes). E-mail: felipeadam91@gmail.com.

[4] Doutor em Letras pela PUCRS, Pós-doutorado em Jornalismo pela Universidade Fernando Pessoa. Pesquisador do CNPq.. E-mail: a_hohlfeldt@yahoo.com.br