Reunião
conceitual no filme A separação:
Desafios e astúcias das dialéticas
da tragédia
Gustavo Chataignier[1]
Luiz Baez[2]
Resumo:
Partindo da filosofia de G. W. F.
Hegel, nomeadamente de sua ideia sobre a modernidade enquanto tempo de
separações, bem como de seus escritos acerca da arte e da tragédia — sobretudo
no que concerne à figura de Antígona —, este artigo investiga as operações
cinematográficas empreendidas pelo diretor persa Asghar Farhadi no filme A
separação (2011), vencedor do Oscar e de três prêmios no Festival de
Berlim. Entende-se, para tanto, a obra não em continuidade com um cinema
metarrealista e autorreflexivo característico do Irã nos anos 1990, mas antes
em ruptura, como um retorno contemporâneo ao trágico. Esse regresso, em vez de
simplesmente obedecer aos esquemas narrativos herdados da Grécia, insere-se no
terreno de uma arte construída por distâncias e intervalos inaugurados por
enquadramento e montagem. Nessa lógica, para além de seu referente imediato, um
conflito judicial entre marido e esposa, a “separação” do título se
universaliza, dizendo também respeito a processos entre indivíduo e Estado,
vida e morte, diferenças de gênero e de classe ou, em última instância, à
dialética fundadora do audiovisual, entre o audível e o visível.
Palavras-chave:
Asghar Farhadi; Cinema Iraniano;
Tragédia; Hegel; Dialética.
Conceptual assembly in A
separation:
The challenges and cunning of
tragic dialectics
Gustavo Chataignier2
Luiz Baez3
Abstract: Based on G. W. F. Hegel's philosophy,
namely on his idea about modernity as a time of separations, but also on his
writings about arts and tragedy — foremost
the ones concerning the tragic character Antigone —, this article investigates the cinematographic operations
undertaken by Persian director Asghar Farhadi in the film A separation (2011), winner of an Oscar and three prizes in the
Berlin Film Festival. We understand, for this purpose, the work not as a
continuity with a metarealistic and self-reflexive cinema typical of Iran in
the 1990s, but rather as a rupture, a contemporary return to the tragic. This
comeback, in spite of simply obeying the narrative schemes inherited from
Greece, inserts itself in the domain of an art constructed by the distances and
intervals founded by framing and montage. In this logic, beside from the
immediate reference, a judicial conflict between a husband and a wife, the
title's "separation" is universalized, concerning also procedures
between the individual and the nation, life and death, genre and class
differences or, ultimately, audiovisual's founding dialectics, the one between
the audible and the visible.
Keywords: Asghar Farhadi; Iranian Cinema; Tragedy; Hegel; Dialectics.
Introdução
A relação entre o olhar ocidental
e o cinema iraniano deparou-se, nos anos 1990, com um ponto de virada. Se, até
então, poucos eram os que conseguiam cruzar as fronteiras, o encanto dos
festivais europeus com um conjunto de obras metarrealistas e autorreflexivas —
como Close-up, de Kiarostami; O espelho, de Panahi; e Salve o
cinema, de Makhmalbaf — culminou, já no segundo ano da década, na exibição
simultânea de treze filmes em Cannes. A inovação, porém, esgotou-se tão logo se
converteu em fórmula, e poucos cineastas — entre eles, os mencionados —
lograram preservar o prestígio e o interesse outrora alcançados. Nesse
contexto, não deixa de surpreender a ampla entrada de Farhadi em salas
estrangeiras e sua subsequente indicação ao Oscar de 2012, dezesseis anos após
o último representante do país (NAFICY, 2012). Vencedor, ainda, de três prêmios
em Berlim, seu longa-metragem A separação (2011) marca, em certa medida,
o afastamento de um período eminentemente metalinguístico. Contra um olhar
categorizador que, diante disso, tenta enquadrá-lo na estaticidade de um gênero
— o suspense[1] —, o diálogo proposto
por este artigo parte da filosofia de Hegel e de seus entendimentos acerca da
modernidade, da arte e, mais particularmente, da tragédia para propor limites —
ainda que sempre móveis — às questões suscitadas pela
obra.
A visão hegeliana sobre a arte —
quer seja na Estética, quer seja em referências pontuais, como na Fenomenologia
do espírito — é talvez a parte de seu sistema mais controversa: passando do
coroamento do “panlogicismo”, que assassina a um só tempo arte e sensibilidade[2], à inusitada revalorização — ao
melhor estilo dialético — graças às leituras ensejadas pela arte conceitual e
pelas vanguardas do século XX (DANTO, 2014). O presente texto esforça-se por
reativar uma das linhas argumentativas mobilizadas na letra hegeliana. Antes de
mais nada, cabe melhor situar o debate. Além do fundo conceitual devedor da
dialética, o local que se presta a uma tal discussão não é senão as
considerações acerca da tragédia
A questão, então, passa a ser
qual forma de contradição hegeliana melhor ilumina o filme analisado, entendido
como figura contemporânea do trágico. Pois, se com os desenvolvimentos
consagrados a Antígona, vemos o trabalho do negativo sem resolução
aparente, as demais compreensões sobre a tragédia antiga apontam para um
momento posterior, cuja configuração e arranjo mormente se compreendem como uma
síntese, no sentido de estabilidade e acomodação das forças em presença. No que
tange ao exame da peça de Sófocles, a forma de contradição, como se o
verificará, é entre o particular e o universal — dentre outras denominações ou
variações do tema —, entre família e Estado. Representam os protagonistas do
filme — Nader e Simin — essas instâncias? Ora, será que a obra de Farhadi se
encaixa nesse esquema? Não seria um gesto repetidor da metafísica da adequação,
segundo o qual o bloco sensível tão só ilustraria noção preexistente? Haveria
um deslocamento do eixo grego para uma dialética das particularidades, cabendo
ao Estado um papel difuso, e, no entanto, presente? Não temos motivos para
comemorações, já que o sistema das artes hegeliano, além de se encontrar
cronologicamente impedido de contemplar o cinema, retira a proeminência
anteriormente outorgada às artes. O que mostram os filmes? De quais separações
fala Farhadi? Que o leitor não desista de nos acompanhar.
Trágicas separações: os afastamentos
cinematográficos
Mais de um autor está de acordo
em atribuir papel de proa à cultura grega na formação do pensamento de Hegel.
Szondi (2004, p. 39) afirma que “interpretado por Hegel como autodivisão e
autoconciliação da natureza ética, o processo trágico manifesta pela primeira
vez e de modo imediato sua estrutura dialética”. Partilham o parecer, Hyppolite
(HEGEL, 1983) e também Thibodeau, ao verem na tragédia ática um “modelo” de compreensão
da história do ocidente. Longe do saudosismo de essências perdidas,
interroga-se o passado em função da condição presente: compreender como nos
tornamos aquilo que nos tornamos pode sinalizar para outros caminhos por vir. O
próprio diagnóstico da modernidade como tempo de separações — sujeito e objeto,
sujeitos entre si, ser e tempo — é o que enseja a filosofia. Nessa lógica, o
título traduzido no Brasil para a obra vencedora do Festival de Berlim troca a
indefinição do artigo expressa na maioria dos países (uma separação: eine
Trennung, em alemão; a separation, em inglês) pela certeza do artigo
definido (a separação). Talvez pareça uma simples diferença de registro,
mas uma leitura universalista logo se autoriza na sequência de abertura.
Uma fotocopiadora reproduz
passaportes e vistos de um casal. Na trama, Simin quer deixar o Irã por motivo
desconhecido ao espectador. Para tanto, precisa, por um lado, separar-se do
marido e, por outro, convencer a filha a ir consigo. Inserida em uma sociedade
patriarcal, nada ela pode fazer sem o consentimento de Nader. O homem não
deseja o divórcio, mas tampouco quer deixar sozinho o idoso pai, acometido do
mal de Alzheimer. O título persa, mas também o alemão, pode-se traduzir como Nader
e Simin: uma separação, o que indica um embate muito particular,
matrimonial, entre dois indivíduos. Trata-se, porém, de uma separação, a
partir da qual Farhadi discorre sobre outras, coletivas: a começar por aquela
entre cidadão e Estado. Enquanto a dupla apresenta seus argumentos diante do
juiz, a câmera permanece imóvel, cada um enquadrado em extremo oposto —
dinâmica espacial repetida em outros planos, entre eles o último do filme. Isto
é, permanecendo a voz da autoridade em off, ou negando-se um rosto ao
poder, o conflito se universaliza.
Entendida a ficção, terreno da
mentira, aristotelicamente como modo de inteligibilidade, o cinema contraria
sua vocação maquínica para restituir dramaturgias: estas herdadas, em Farhadi,
da estrutura clássica da tragédia. Nada obstante, sua narrativa se forma não
pelo enredo — sendo
este apenas um pretexto —, mas, sobretudo, por distâncias e intervalos (écarts)
engendrados por enquadramentos e montagem (RANCIÈRE, 2013). No exemplo, o
conflito entre indivíduo e Estado opera não sob a ordem da hybris —
experiência desmedida enfrentada por um herói trágico —, mas antes da dialética
fundadora do audiovisual, entre o que se vê — personagens sem voz (sem a
reivindicação reconhecida) — e o que se ouve — o poder sem rosto.
Há algumas fontes-chave para o
estudo da tragédia em Hegel. Privilegiaremos suas considerações, na Fenomenologia
do espírito, sobre Antígona,
de Sófocles (século V A.C.), por orquestrarem a perda do sentido imediato: a
ruptura com uma totalidade harmônica e religiosa implica a assunção de um
destino. Tudo graças à ação, desencadeadora de processos não intencionados. Não
à toa Hegel não mede palavras em sua admiração pela peça, “a obra de arte mais
excelente, a mais satisfatória” (HEGEL, 2004, p. 257). O que está em jogo é
desde já o modelo de um passar do tempo que determina seus atores, a despeito
de suas autorrepresentações. Em suma, a tragédia oferece um modelo de
compreensão análogo à história. Explicitar o processo trágico implica,
forçosamente, chegar-se a um ponto efetivo e compartilhado não planejado, para
daí recompor a própria racionalidade: do logos da tragédia à tragédia do
logos. Uma vez exposta ao “rigor trágico do conceito” (HEGEL, 1983, p.
248), a singularidade se perde, abrindo sua unilateralidade. A centralidade
atribuída à Fenomenologia do espírito se explica na medida em que a
chamada síntese processual ou reconciliação não produz um repouso, por assim
dizer, da negatividade. Ainda que a mudança de cena e a redefinição de papéis
engendrem um apaziguamento de vontades e uma desaceleração de embates, o
estranhamento enquanto motor de conhecimento não é abandonado. Em suma, a ideia
de tragédia, ou de perpétua autonegação em um mundo relacional, permite leitura
autônoma, destacada da necessidade sistemática construída ulteriormente.
Religião, tragédia e
cinema: metáforas do pensamento
O lugar exato da Fenomenologia na obra e no sistema
hegeliano é matéria para debates desde o falecimento do autor, em 1831.
Publicação que demarca o pensador em sua juventude, em 1807, não se enquadra
ainda na grande lógica e tampouco no compêndio de ciências — ambas as produções
integrantes e organizadoras da intenção sistemática. Adentrar em tal debate
ultrapassa em muito nosso escopo. Não obstante, nossos apelos a uma teoria da
ação nos colocariam no campo de uma formação da consciência, Bildung ou
nova Paideia.
A consciência se dirige ao objeto, tenciona conhecê-lo; não
obstante, ao apreendê-lo, também conhece a si mesma. Para além das divisões da
modernidade ou das especificações operadas pelo entendimento (separação entre
sujeito e objeto), a reflexão é um momento do Absoluto, pois produz um
atemporal voltar a si — ou o absoluto como passagem de um estado ao outro. O ponto
inicial da experiência é intensificado e repetido com outra base empírica. A
consciência só descobre o que já era (em si) quando passa pelo exame da
contingência, ou seja, ao se manifestar para nós; passa então a ser em si e
para si, modificada pelo encontro e pelo percurso. Tal câmbio de sujeito e
objeto, se por um lado confere certa estabilidade às forças em presença, por
outro exigirá novas configurações, tão logo naturalidade da reprodução e
indiferença em relação aos entes sejam suspensas. A identidade entre sujeito e
objeto se dá ou de maneira efêmera na experiência, ou de maneira essencial no
pensamento. Em regime de determinação recíproca e, portanto, de troca de
posição no que tange a atividade e passividade, ambos se tornam algo distinto
do que eram, pois estão na história, no fluxo que tudo carrega. Eis a identidade,
especulativa, e não imediata, entre os termos em relação.
Será por meio da autocrítica do saber fenomênico que se chegará ao
absoluto: do imediato ao imediato, pela mediação (a um só tempo temporal e
conceitual). Recusando o tema do fim da história, importa meditar sobre a
processualidade hegeliana como uma sucessiva retificação dos erros, um eterno
refazer-se da consciência, obrigada a se rever em face da alteridade (o que faz
com que se veja outra). É possível dizer que toda normatividade estabelecida
pode ser reconduzida a uma gênese — não a uma origem abstrata, exterior ao mundo
relacional dos encontros, mas a um rastro recriado conceitualmente. E, uma vez
tal criação alcançada, o momento presente a ser analisado já é outro. A
experiência é efêmera; pode, todavia, ser conservada (e negada, pois mantida em
outro patamar) na experiência do pensamento. Eis a superação (do conceito) no
decurso do tempo. Há superação na medida em que há elucidação dos pontos
unilaterais anteriores.
Tal qual a tragédia para o grego, o cinema oferece, por este
ângulo, uma metáfora do pensamento contemporâneo. A experiência imediata das
imagens, mediada pelo conjunto da obra, não funciona senão sob a lógica de um
perpétuo passado. Quando se tenta apreendê-las, não estão mais disponíveis ao
olhar, uma vez enfrentada a ruptura do corte (BADIOU, 2002). Afetado
sensivelmente pelo audiovisual, o espectador só pode restituí-lo a
posteriori, no plano intelectual. É o que Bazin chamava, já nos anos 1950,
de passagem ou visitação, conceito retomado no presente por Badiou (2013).
Confrontada às produções das últimas décadas, semelhante noção encontra
instância reflexiva em certo cinema iraniano do período pós-Pahlavi. Ao
reduzirem o enredo a seu ponto mínimo e adiarem a revelação de informações
essenciais, diretores como Kiarostami desencadeiam uma atitude espectatorial na
qual o afastamento provocado por um corte retardado ou suspenso propicia o
surgimento de um espaço de apreensão de ideias. Tal como no paralelo acima
sugerido, o sentido da ação não é evidente. Farhadi, é bem verdade, rompe com
essa tradição em seu retorno ao trágico. Não deixa, porém, de reservar um
“princípio de incerteza”, como bem denominou Mulvey (apud ERFANI, 2012, p. 6) a
respeito de Kiarostami. Por que Simin quer deixar o Irã? Quem a filha escolheu?
Contra o esgotamento de interpretações de um regime ditatorial, algumas
questões devem permanecer em aberto.
Do coro ao corte:
um narrador sem memória
O ponto
inicial da Fenomenologia é a “consciência sensível” diante do aqui e
agora evanescente do objeto, apreendido enquanto sensação. Ao se ver
apreendendo a coisa, a consciência passa a buscar as leis internas do fenômeno,
chegando ao “entendimento” separador de leis. Ao compreender a realidade, a
consciência se compreende; é ela a portadora do desejo de conhecimento que se
opõe tanto ao objeto quanto a outras consciências — ensejando o
reconhecimento intersubjetivo. Nesse processo desigual, ambas as consciências
são inicialmente vistas como objetos. Para preservar a vida, a derrotada se
retira; a vencedora se crê fruidora, conquanto seja servida (leia-se, mediada)
pela outra. Eis a dialética entre senhor e escravo. Ora, não é de tal ordem a
querela entre Nader e Simin? Ou entre ele e a funcionária que lhe acusa de
agressão? Se, naquele exemplo, os motivos da esposa se desqualificam como
“coisas tão triviais” para afirmar-se a vontade do marido, neste é ele quem se
sujeita às ameaças de um conflito permeado por mentiras e ocultações. A chave
está no reconhecimento dos direitos da mulher —
no primeiro caso — ou do nascituro — no segundo — supostamente
morto pela violência do protagonista. Mulher e morte: intui-se o espectro de
Antígona.
As
identidades das personagens, jamais estáticas, se constroem, assim, a partir de
uma dinâmica intersubjetiva oscilante entre dominante e dominado — ou, em termos
hegelianos, entre as figuras dialéticas do senhor e do escravo. Como se
defenderá adiante, porém, tal processo não leva, em termos narrativos, à
formação de consciência livre, e permanece o dinheiro — mais um signo de distinção — o único intercâmbio possível entre esses dois núcleos. Não aparecendo a
alteridade senão sob a forma de objeto a ser dominado, cumpre a quem assiste,
enquanto integrante da relação tríplice entre duas inteligências — a saber, a do artista e a sua — partir da instância mediadora da obra (o terceiro termo)
para pensar outros universos possíveis. Porque não oferece soluções fáceis,
Farhadi preserva uma abertura reflexiva diante da rigidez histórica, ao enxergar
seu espectador como um igual e dispensar-lhe explicações sobre a lógica da
dominação já há muito conhecida — e é
justamente nessas fraturas onde pode ocorrer o pensamento emancipatório.
Voltando
a Hegel (1992), há, em seguida, a figura da consciência infeliz: estoico e
homem do medievo se projetam no além, separados da objetividade. Uma tal
insatisfação é o motor para o movimento que leva até seu contrário, ou seja, à
felicidade. A razão observadora atua na realidade e, por meio de seus atos, a
consciência se torna para si. Passa-se do espírito subjetivo ao objetivo, cuja
apresentação e compreensão se dá na moral, no direito, nas instituições e na
história. Finalmente, o espírito absoluto, ou a maneira histórica pela qual se
fugiu da natureza e se superaram oposições: arte (momento objetivo de
conhecimento intuitivo), religião (momento subjetivo de conhecimento pela fé ou
representacional) e filosofia (conceito que reúne os elementos anteriores).
Detenhamo-nos no espírito objetivo, seguindo nosso escopo. Aqui se tem o início
hipotético da história. A consciência, como razão (momentos anteriores), se
criou um mundo.
O espírito já não se restringe a um Eu, mas toma a forma de um
Nós. As redes de oposição e de reciprocidade engendram um “mundo do Nós”, que
guia o devir da vida, introduzindo assim sua “dimensão da historicidade”: “um
Eu que é um Nós e um Nós que é um Eu” (HEGEL, 1975, p. 154). A vida comunitária
ou ética se manifesta no cidadão.
Em Antígona, como em outras peças trágicas, um jogo
dialético entre ignorância e conhecimento delineia-se a partir da figura do
coro. Exemplo ainda mais assertivo está em Édipo Rei, cuja construção
dramática parte daquilo mesmo que o herói trágico desconhece, a causa última de
seu infortúnio apresentada de antemão ao público. Berço da civilização
ocidental, a Grécia Antiga não deixa de encontrar ressonância na cultura persa — pode-se pensar em uma
universalidade de processos, para além de determinações. A tradição do teatro taziyeh
—
e suas técnicas de
quebra da quarta parede e direcionamento ao espectador — forneceu bases para o
desenvolvimento do cinema metarrealista
e autorreflexivo do período pós-Pahlavi (NAFICY, 2012). Farhadi, como visto,
opera de forma mais sutil. Em vez da narração pelo coro ou pela autoinscrição
do cineasta no próprio filme, sugerimos, portanto, a figura de um narrador
demente.
Malgrado o título, o arco dramático de A separação gira em
torno do aborto de Razieh, provocado por um impacto físico. Apenas nos
derradeiros minutos se descobre um atropelamento, desfazendo-se a acusação
inicial de violência infligida por Nader. Como nas mencionadas tragédias, os
protagonistas — Nader e Simin — ignoram essa essencial informação. O papel do coro — isto é, o de relatar ao público —
caberia à única testemunha,
o idoso de quem cuida Razieh. Essa personagem, pai de Nader, sofre, porém, com
o mal de Alzheimer, sendo fisicamente impossibilitada de narrar. Neste momento,
algumas soluções cinematográficas se apresentam. Na mais evidente delas, a
câmera de Farhadi poderia assumir o papel de narrador observador: nesse caso,
contudo, configuraria uma hierarquia de saberes, operando como um cine-olho — ou acreditando na imediação. Em vez disso, ela contraria sua
vocação maquínica — de comando ativo sobre
uma matéria passiva —, restitui horizontalidade, e a ação se interrompe antes do
desfecho. Se não se pode narrar por meio de palavras — afinal, não é disso que trata o cinema —, se o faz por meio de
imagens sempre parciais. Episódios de tontura, visibilidades incompletas:
alguns indícios antecipam a revelação final, mas todos turvos, como se
passassem pela mediação de um “coro” desvanecente.
Imagens veladas:
público e privado separados por um hijab
Segundo
o comentário de Hyppolite (1974), a exposição hegeliana de Antígona se
presta a dotar de imagem a decadência da cidade antiga. Extrapolando o quadro
hermenêutico, ao menos em um sentido mais concreto, a relação entre ethos
normativo e trocas subjetivas entra em contradição. Ora, a atemporalidade dessa
cena nos permite a evocação desse passado: presentificado e, no entanto, em
defasagem com o presente, erige-se como modelo crítico. Por meio da tragédia,
“a lógica da contradição entrava na Grécia do século V” (VERNANT &
VIDAL-NAQUET, 1999, p. 280). “A própria cidade se questiona. Ora os heróis, ora
o coro, encarnam sucessivos valores cívicos e valores anticívicos” (VERNANT
& VIDAL-NAQUET, 1999, p. 280). O cidadão é, tanto no teatro quanto em sua
vida, espectador. O intuito aqui é o de, em um único movimento, pensar e dizer
a tragédia, para identificá-la com o pensamento — cujo fim (trágico) é se desfazer,
perpetuamente.
A
oposição fundamental se dá entre Nomina (costume) e nomos (lei) —lei divina e lei
humana, família e cidade, singular e universal —,
colada à experiência imediata em um dado histórico, no espírito de um povo
(que, aqui, será superado). Não se trata de oposição entre indivíduo e mundo,
em prol da realização de um ideal, pois o mundo já é esse ideal de participação
de todos — o ideal (novo) se dá com a perda do
mundo. Tanto Antígona quanto Creonte sabem exatamente o que fazer. Suas ações
atualizam seus conteúdos na consciência ética. Creonte não vacila a condenar
Polinices; tampouco Antígona titubeia a enterrar o irmão: “Quando a vacilação
se apresenta na tragédia grega não é outra coisa senão debilidade diante da
ação, não um conflito moral” (HYPPOLITE, 1974, p. 226). Boas intenções, dever
ser ou ainda amar o amor apartam-se do choque com o outro.
O
“passo dialético”, por assim dizer, consiste na seguinte formulação: se o
singular (uma lei) se opõe ao universal (ente que se relaciona com todos os
entes), este (o universal) entra em oposição consigo mesmo — pois, o
singular deve participar do universal. Como conclusão, estabelece-se a
contradição universal.
Neste
sentido, o desafio é elaborar uma nova lei que leve em conta o humano e o
divino. De um lado, a lei da cidade, pública, regula a vida social e política
do povo; manifestação exterior da vontade, autoconsciente; de outro, a dos
Penates (deuses do lar), oculta, natural, gérmen do mundo, imediatidade. Tal
empreendimento é particularmente caro à sociedade iraniana, onde a balança
pende para o lado do direito e da religião — em certa medida indiscerníveis.
Não apenas narrativamente, na figura de uma mulher (Razieh) que precisa da
autorização de seu clérigo para as atividades mais banais, um cerceamento das
vontades se sugere também por meio de metáforas: as borboletas presas a um
quadro, o idoso preso a seu tanque de oxigênio, as mulheres presas a seu hijab. Neste ponto ressalta-se o
comentário de Erfani (2012) a respeito da imagem do véu. Se a maioria dos
cineastas pós-Pahlavi buscou driblar a censura seja pelas locações em
automóveis — limiares entre os ambientes
público e privado, onde o véu é obrigatório, mas afrouxado — (BERNARDET, 2004), seja pela substituição por crianças —
isentas de algumas das restrições — de personagens adultas (NAFICY, 2012), Farhadi filma
mulheres cobertas dentro de suas próprias casas. Ora, a câmera torna qualquer
espaço público, então ele não poderia fazê-lo de outra maneira; mas, ao
conscientemente recusar qualquer trucagem, a estranheza do olhar promove uma
reflexão sobre o uso do véu, contrariando ativamente os objetivos da censura.
Aqui a
interpretação hegeliana de De Boer (2010, p. 2) merece nossa atenção. Em seu
livro sobre a “oscilação da negatividade”, ela centra sua análise sobre o que
nomeia de uma “lógica do emaranhamento” (entanglement). Tal
emaranhamento seria constitutivo, e Hegel teria tido duas maneiras de se ocupar
dele: uma “trágica” e outra “dialética”. Em suma, um viés “ético” e outro tido
por “ontológico” (DE BOER, 2010, p. 26) —
termo que, aqui especificamente, se presta à
compreensão de uma normatividade fechada. Nas tragédias, argumenta,
determinações complementares inerentes a princípios particulares
necessariamente se opõem; o conflito só cessa quando ambos os lados reconhecem
suas respectivas unilateralidades. Não se trata, portanto, de um simples
conflito de identidades —mas,
fundamentalmente, de “determinações contrárias de qualquer princípio
particular” (DE BOER, 2010, p. 3). Independentemente do objeto, essa filosofia
“(…) o compreenderá — qualquer que seja — como o esforço para se atualizar por meio de uma
autodiferenciação que resolve o conflito trágico entre determinações
contrárias” (DE BOER, 2010, p. 26), restringindo a simetria inicial. Trata-se,
antes, de um princípio de subordinação, de um efeito relacional, do que de um télos. Mesmo porque o processo se
repete. Lida-se, conclui a autora, com a “extrema precariedade da vida humana”
(DE BOER, 2010, p. 28), cujos esforços de atualização, na história ou no campo
conceitual, tentam desvencilhar-se de uma indiferenciação primeira e
irredutível.
Não
há como reduzir, seguindo esse raciocínio, a tragédia farhadiana à
singularidade de seus conflitos. Se, à primeira vista, se trata de uma questão
matrimonial, do confronto entre o desejo migratório de Simin e a
impassibilidade de Nader, a emergência de uma terceira personagem — qual seja,
Razieh — rapidamente complexifica o embate ao
expor novas e irreconciliáveis separações: dentre elas, a de classe. A este
respeito, duas sequências apontam caminhos divergentes. Na primeira — e mais otimista —, as
meninas Termeh e Somayeh estudam lado a lado enquanto seus pais se “digladiam”
perante o juiz. O conteúdo, lido em voz alta, por acaso diz respeito à luta de
classes, mas sequer o precisava. Importa mais que as garotas compartilhem
aquele espaço, aberto pelas operações fílmicas, intercalado entre uma e outra
troca de acusações, no qual a igualdade — e
não a diferença — estabelece ponto de partida.
Em um segundo — e mais pessimista — momento, uma exigência financeira se impõe como único
intermediário possível entre os adultos. Somente um “equivalente universal”,
como o chamava Marx (2013, p. 205), poderia ensejar tamanha simplificação. De
fato, as separações se emaranham, as reivindicações se demonstram irredutíveis,
e resta ao cinema, à dialética entre imagem e som, reorganizar o visível, e não
o subjugar.
Memória, história e sujeito: no rastro das conclusões
As
escalas, micro e macro, encontram-se, portanto, emaranhadas. Não segundo uma
perspectiva atomística, pela qual os indivíduos se fecham em si mesmos,
Halbwachs (2006) explora a memória em experiências absolutamente
intransferíveis. Para além de um processo cognitivo com um ponto inicial
identificável, trata-se de um fenômeno eminentemente social.
Em
Hegel (1997), arriscaríamos dizer que o próprio processo de formação da
consciência — a saber, a ruptura com a estabilidade substancial que
origina a figura subjetiva, tal como mencionamos anteriormente — não é senão uma reconfiguração da memória. A contingência
do mundo exterior é reposta, de maneira imaterial, pelo pensamento, que se
esforça para lhe conferir uma forma. Para o hegelianismo, em última instância,
pensar é pensar o passado, o que nos leva ao tema da memória.
Recorramos
a uma figura de linguagem célebre, a do alçar voo da coruja de minerva, figura
da filosofia que só vem depois. Ainda que o tema surja no contexto de um
pensamento sobre a história, a sistematicidade hegeliana nos permite partir da
escala individual e já ver aí trabalhando ritmos impessoais de determinação.
Mesmo porque, dialeticamente, já o vimos, cidade e indivíduos se contêm. Dito isso,
não cabe ao pensamento determinar o rumo da realidade, em delírio racionalista.
Antes, a realidade só se torna pensável e se nos oferece à apreciação quando já
é outra — o que implica que nos alteremos (se quisermos estar à
altura do nosso tempo). Acreditamos que a reprodução do parágrafo abaixo nos
auxiliará a elucidar a questão. A necessidade do tempo para o pensamento
acarreta na centralidade da memória, em escala subjetiva, e, concomitantemente,
por outro lado, faz da história um horizonte para as manifestações individuais.
Vejamos:
Para dizermos algo mais sobre a
pretensão de se ensinar como deve ser o mundo, acrescentaremos que a filosofia
chega sempre muito tarde. [...]. O que o conceito ensina mostra-o a história
com a mesma necessidade: é na maturidade dos seres que o ideal se ergue em face
do real, e depois de ter apreendido, o mundo na sua substância reconstrói-o na
forma de um império de ideias. Quando a filosofia chega com a sua luz
crepuscular a um mundo já a anoitecer, é quando uma manifestação de vida está
prestes a findar. Não vem a filosofia para a rejuvenescer, mas apenas
reconhecê-la. Quando as sombras da noite começaram a cair é que levanta voo o
pássaro [a coruja] de Minerva (HEGEL, 1997, p. xxxix).
O
estranhamento entre o eu e o não-eu, cuja potência é a criação, a posteriori, de um sujeito, engendra
uma relação especulativa, no sentido de estabelecimento de ligação, em oposição
à identidade imediata entre os termos, entre as partes, eu e mundo, dentro e
fora. Por conta de uma tal interiorização (rememoração), o passado não cessa de
nos influenciar:
[...] pode-se dizer que o
conhecimento do universal não é senão uma rememoração, um ir para dentro de si
mesmo, e que fazemos o que a princípio se mostra sob uma forma externa e
determinada como um diverso, em um interior, um universal, porque entramos em
nós mesmos e, assim, trazemos à consciência o que é interior em nós (HEGEL,
2016, p. 34).
O
voltar a si posterior à exteriorização de trabalho, linguagem e desejo,
vivificados pelo necessário (ou fatídico) contato com a irredutível alteridade,
implica a compreensão da memória constituída enquanto retroatividade e
plasticidade. Voltar-se ao passado é também ir para dentro. Enquanto isso, o
tempo passa, e já vemos a partir de uma posição outra. Se tomarmos o filme em
questão como pensamento produtor de novas relações em sua constituição interna
(por meio dos elementos de linguagem), o voltar a si do “sujeito pensante” (ou
a dialética filme-recepção) produz mais e mais imagens, redundando em uma
narrativa — não idêntica a si em seu desenrolar, o que exige uma pausa
para a interpretação. O tempo cronológico da película produz temporalidade a
ser apreciada, experienciada em outro tempo —
justamente o do pensamento, causado pelas sensações fílmicas.
Como
lembra Rancière (2012), afinal, o termo “cinema” designa uma multiplicidade de
coisas, dentre as quais as imagens lembradas ou remanescentes na memória do
espectador, mesmo que, em uma revisão posterior, não se encontrem na
materialidade fílmica[3]. Em
outros termos, podemos ainda afirmar: a imaginação — ou a produção
simbólica de imagens —, em “livre jogo” com o
raciocínio, estabelece novos horizontes históricos (LACOSTE, 1986), retirando
as pessoas de seu centro para em seguida restituir outros parâmetros, estes
deslocados após a experiência primeira. Eis a tragédia: sujeitos se deparam com
resultados não intencionados. Nesse sentido, a experiência da desmedida, da
saída de certezas (hubrística, da ordem da hybris)
que aflige Nader e Simin encontra seu paralelo —
ou, antes, se completa — em quem lhes assiste:
uma vez negado o ponto de vista do “narrador sem memória” — como vimos, impossibilitado de narrar —, a aposta em projetar imagens outras, para além da
identificação inicial, é o que separa a massa do público do sujeito espectador,
induzido pelo fenômeno cinematográfico.[4]
Segundo
D’Hondt (1966, p. 458, grifo do autor), “a substância é sujeito, mas somente em si”. Ao deter-nos sobre a história
como um processo entre continuidade e ruptura, o sujeito emergente é um coautor
da história. Aquele é a verdade desta, já que cabe a si a criação da esfera
ético-política. Recebendo e exteriorizando, depositando sua “camada de
leitura”, o espectador é criado pela obra e cocriador dela. As esferas
subjetiva e objetiva se unem, com contemplação e reflexão, passividade e
atividade, no interior do filme, mas também em sua recepção, em um “nós”:
personagens se veem lançadas em situações que não controlam, sendo forçadas a
criar soluções ante o estabelecimento de normatividade desconhecida; somos
levados, pela desapresentação da narrativa[5],
a abandonar padrões moralistas de oposição sumária e imediata entre certo e
errado (mais especificamente, nos parece difícil, senão impossível, tomar
partido entre as “separações” apresentadas).
O pai
de Nader, já em acelerado estado de demência, parar completamente de falar é
tão ruim quanto Razieh interromper a gestação? Como se pode escolher entre
viver na pura contingência e sequer viver? Em mito fundador da cultura helênica,
o manco e trôpego Sileno, metade homem e metade bode, parece ter pronta a
resposta: sendo inseparável a vida do sofrimento, não se pode desejar nada
melhor que nunca ter nascido. Como todo saber mítico, porém, a verdade guardada
pelo beberrão sátiro não deve ser lida literalmente, exigindo o exercício
interpretativo[6]. Analogamente, há tão
só um filme, cujos enlaces surpreendem as normas socialmente aceitas e convidam
ao julgamento o espectador, que, ao comparar a experiência presente com seu
arcabouço próprio, é apto a sair de si e a voltar outro, mediado pelo filme — e então
compreender-se ao compreendê-lo. Não obstante as peculiaridades da cultura
persa, os dramas de Nader e Simin universalizam-se tais quais os da polis grega: trata-se sim de um universal
— não separado da história, ou da narrativa
fílmica, se assim quiser —, mas constituído de
um particular que o desafia ao mesmo tempo que o forma. Decifra-me enquanto te
rumino, e assim te crio, parece sussurrar o filme.
Se há
palavra, ela balbucia pela boca trêmula de Razieh, cujo próprio ato de fala,
longe das certezas de um dizer ordenador — orientado por um télos
— se torna problemático. O gesto da dúvida, da
impossibilidade de precisar o verdadeiro motivo da morte do feto, a coloca em
conflito. Em oposição ao rígido controle hermenêutico religioso — que orienta até mesmo se ela deve ou não tocar o idoso —, não há como sustentar tal postura axiomática em uma
situação atravessada por múltiplas causas — ou
inserida em um regime de sobredeterminação. Em última instância, é esse
desencontro entre uma moral a priori
(“tenho medo de sermos punidos”, diz, independentemente de intenções) e um
racionalidade a posteriori (seriam os
sintomas pregressos indícios de uma perda anterior do bebê?) que torna inviável
qualquer mediação. A saída da estabilidade para deixar-se desafiar pelo que se
coloca diante de si, caso exista no filme, envolve uma necessária alteridade:
entre espectador e obra, entre tragédia grega e cultura persa, entre olhar
ocidental e cinema iraniano — nosso caso —, o que implica, é claro, não algo da ordem do
irreconciliável, mas de um voltar a si modificado. A separação de Nader
e Simin é, portanto, apenas isto: uma separação, um exemplo universal a
partir do qual se podem discutir outros afastamentos — entre homem e mulher, indivíduo e Estado, vida e morte,
audível e o visível. Se Farhadi oferece mais perguntas que respostas, se a
falsa universalidade do dinheiro se apresenta como único intercâmbio possível
entre as personagens, quiçá caiba à imaginação —
à produção simbólica de imagens — inaugurar
espaços de pensamento apartados desse encadeamento narrativo.
Notas
[1] Nessa leitura, seu filme
predecessor, À procura de Elly (2009), já contém no próprio nome uma
estrutura de investigação. Os sucessores O passado (2013) e O
apartamento (2016), por sua vez, constroem-se a partir do embate entre a
posse de um segredo por parte de uma ou mais personagens e seu total
desconhecimento por parte de outras. Afinal, de que importa esse processo? Uma
resposta indica-se no título de seu último lançamento, Todos lo saben
(2018). Se “todos já sabem”, pouco ou nada vale esse jogo detetivesco, sendo o
desenvolvimento da trama indiferente à experiência estética. Esta, em Farhadi,
caracteriza-se sempre como abertura contra o esgotamento totalitarista de
interpretações. Se há mistério, somente o há na acepção mallarmeana da palavra:
“um vestígio não comprovado, um signo cujo referente não é obrigatório”
(BADIOU, 2002, p. 174).
[2] Quanto à relação ambígua a respeito da arte, o argumento
negativo, no sentido de limitador, assim está registrado: em seu tempo, lido
como período romântico ou pós-medievo, “o caráter peculiar da produção
artística e de suas obras já não satisfaz nossa mais alta necessidade.
Ultrapassamos o estágio no qual se podia venerar e adorar obras de arte como
divinas”. Já se indica, na frase seguinte, uma fruição mediada, característica
da cultura reflexiva: “A impressão que elas provocam é de natureza reflexiva e
o que suscitam em nós necessita ainda de uma pedra de toque superior e de uma
forma de comprovação diferente” (HEGEL, 2015, p.34). O outro lado do argumento
afirma que arte é a manifestação sensível do absoluto: “Pois a arte e seu ideal
são justamente o universal na medida em que é configurado para a intuição e,
por isso, ainda está em unidade imediata com a particularidade e sua
vitalidade” (p. 194).
[3] Rancière (2012) relata ter revisto Amarga esperança (1948), de Nicholas
Ray, na esperança de reencontrar um plano preservado em sua memória desde que
assistira ao filme pela primeira vez. Para a sua surpresa, no entanto, aquelas
imagens sequer existiam na obra original, tendo sido criadas mentalmente nos
intervalos da narrativa.
[4] A
separação entre público passivo
(“reunião inconsciente de uma série de pessoas”) e espectador ativo (quem “percebeu e denominou a singularidade”) é
trabalhada por Badiou (2013, p. 87, 2012, p. 110) com base na distinção
psicanalítica entre realidade
(construção fantasística simbólico-imaginária) e real (ponto de detenção de uma verdade, cuja impossibilidade de
captura enseja um processo de simbolização a
posteriori, após seguidas aproximações e projeções imaginárias).
[5] Uma palavra sobre o termo
em questão, “desapresentação”: não se trata de reconhecer um fim para toda e
qualquer narrativa audiovisual, cujo destino, já antigo, seria o de completar
uma ação. Ora, é essa instância mesma que se encontra colocada em xeque.
Forçosamente há a presença da imagem em movimento e, por via de consequência,
apresentação. Todavia, graças aos engenhos de criação artística, a obra guarda
a potência de erigir imagens que dão a pensar por meio não de uma
referencialidade ou adequação às expectativas hegemônicas, mas, antes, por
conta de sua opacidade. Assim, o sintagma ora sumariamente analisado visa dar
conta da presença de contrários, a saber, a apresentação e o desaparecimento.
[6]
Em sua célebre interpretação, Nietzsche (1999) afirma a existência, a criação
de sentido a partir do não sentido — cujo lugar privilegiado é a arte, em
geral, e a tragédia, em particular — para lidar com os horrores da vida.
Referências
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[1] Professor do Programa de
Pós-graduação em Comunicação da PUC-Rio, doutor em filosofia e pesquisador
associado ao departamento de filosofia da Universidade Paris 8. E-mail:
gustavo.chat.gad@gmail.com
[2] Doutorando e Mestre em Comunicação e
Bacharel em Cinema pela PUC-Rio. Membro da equipe editorial da Revista ALCEU.
E-mail: luiz-baez@aluno.puc-rio.br.