Estudos de infraestrutura e práticas artísticas:

reconhecendo entrecruzamentos

Ruy Cézar Campos Figueiredo1

Resumo

Ainda que na última década tenha se proliferado amplamente a atenção dos estudos de Mídia e Comunicação pelo tema das infraestruturas, há uma carência significativa de publicações e pesquisas sobre tal tema no contexto brasileiro. Buscando e assim justificando a relevância da presente colaboração com o avanço do conhecimento sobre o tema no cenário nacional, o presente artigo tem como objetivo apresentar referências e conceitos relacionados aos estudos de infraestruturas das mídias. Oferece-se, todavia, um direcionamento para como tais estudos encontram em práticas artísticas modos de expor, aprofundar e performar questões de pesquisa, balizando-se de meios da arte para avançar no apontamento de problemas, na apresentação de conceitos e no desenvolvimento epistemológico dos estudos a partir de uma abordagem não logocêntrica, ou seja, que descentraliza a significância do textual e do verbal a partir de multimodalidades de exposição do conhecimento. Sendo assim, o artigo atravessa referências como Susan Leigh Star (1999), Lisa Parks (2014; 2015), Nicole Starosielski (2015), Jussi Parikka (2010; 2015), Ned Rossiter (2016), Jamie Allen (2014), Friedrich Kittler (2017), Vilém Flusser (2015), Wanda Strauven (2013), Robert Smithson (1968), Siegfried Zielinski (1996), Luisa Crosman (2020), Cláudio Bueno e Lígia Nobre (2018) para apresentar o tema e realizar entrecruzamentos entre arqueologia das mídias, estudos de infraestruturas e a arte.

Palavras-chave

Arte; Infraestrutura das Mídias; Arqueologia das Mídias.

1 Doutor em Comunicação pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ) e bolsista CAPES. E-mail: czr.campos@gmail.com.

Infrastructure studies and artistic practices:

recognizing crossroads

Ruy Cézar Campos Figueiredo1

Abstract

Despite that in the last decade there was a broad proliferation of attention towards the subject of infrastructures in Media Studies and Communication, there is still a significant lack of publications and research about such a subject in the Brazilian context. Aiming and therefore justifying the relevance of this collaboration towards the advancement of the subject on the national context, the present article has the objective of presenting references and concepts related with the study of media infrastructures. It is offered, however, a direction to how such studies find in artistic practices ways of exposing, deepening and performing matters of research, beaconing on artistic medium to advance on the pointing of questions, in the presentation of concepts and in the epistemological development of such studies in a non-logocentric approach, i.e., an approach which decentralizes the importance of the textual and verbal through multimodal ways sharing knowledge. Therefore, the article crosses references such as Susan Leigh Star (1999), Lisa Parks (2014; 2015), Nicole Starosielski (2015), Jussi Parikka (2010; 2015), Ned Rossiter (2016), Jamie Allen (2014), Friedrich Kittler (2017), Vilém Flusser (2015), Wanda Strauven (2013), Robert Smithson (1968), Siegfried Zielinski (1996), Luisa Crosman (2020), Cláudio Bueno and Lígia Nobre (2018) to present the subject and make connections between media archaeology, infrastructure studies and art.

Keywords

Art; Media Infrastructure; Media Archaeology.

1 Doutor em Comunicação pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ) e bolsista CAPES. E-mail: czr.campos@gmail.com.

Infraestrutura da rede, infraestrutura das mídias

Os estudos de Mídia e Comunicação, nos anos 2010, foram afetados por um crescente interesse pelo tema das infraestruturas nas Ciências Sociais e nas Humanidades. Cabos submarinos, data centers, torres de transmissão, protocolos administrativos, softwares de logística e as questões territoriais, ecológicas, laborais e geopolíticas que envolvem infraestruturas das mídias se tornaram um prolífico campo de investigação. O movimento permite reconhecer, de modo geral, como esses elementos operam tanto como forma material quanto como construção discursiva, seguindo rotas do passado colonial e sendo instaladas em territórios e ecologias marcadas por turbulências de ordens diversas.

O presente texto tem como objetivo, nesse sentido, apresentar referências e conceitos relacionados a esse campo de estudo com uma ênfase na relevância que práticas artísticas adquirem para se levantar, aprofundar e performar questões de pesquisa. Como veremos, autores destacados a desenvolver um pensamento sobre esse tema nos estudos de Mídia e Comunicação se balizaram de meios das artes para avançar em perguntas, definir problemas e apresentar conceitos.

Chamamos atenção, especialmente, para os modos de fazer avançar a agenda de pesquisa sobre o tema no modo que o tem feito pesquisadores tais como Jussi Parikka e Lisa Parks, ambos se engajando em distintas práticas audiovisuais e de base artística; Ned Rossiter, que fundamentou aspectos de sua pesquisa sobre infraestruturas através da criação de uma versão demo de um game; além de Nicole Starosielski, que realizou significativa pesquisa sobre o sistema de cabos submarinos do Pacífico fazendo uso de fotografias e estruturas narrativas, difundindo os resultados através de um site interativo. Tais pesquisadores, conforme veremos, conseguiram avançar nos desafios metodológicos que Susan Leigh Star, ainda em 1999, apontou ao escrever um dos ensaios fundamentais dos estudos sobre o tema: The Ethnography of Infrastructure (1999).

Considerando isso, o artigo busca chamar atenção para o fato de que meios não logocêntricos (que fazem as pesquisas avançar através de práticas multimodais e resultar em híbridos entre arte e academia) favorecem os estudos de Mídia e Comunicação a estabelecer uma “disposição infraestrutural”, o que Parks (2015) define como um foco não só no que as mídias representam ou no que é por elas representado, mas também no que há de mais elementar nelas: seus componentes químicos e minerais, seus modos de distribuição através de escala planetária, os territórios/lugares específicos nos quais elas estão situadas e ambientalmente implicadas. O foco na infraestrutura chama atenção para as materialidades da distribuição das mídias — seus recursos, tecnologias, trabalho, entornos, bem como relações que dão forma, energizam, sustentam ou se emaranham na distribuição global, nacional e local de sinais.

Uma disposição infraestrutural em colaboração com meios não logocêntricos de pesquisa proporciona ao campo da Comunicação superar a disjunção entre a quantidade de pesquisa acadêmica dedicada ao conteúdo do que se apresenta como mediado e a pouca quantidade de compreensão desenvolvida sobre as infraestruturas que distribuem os sinais que possibilitam a mediação desse conteúdo.

Ao mesmo tempo, tal disposição com práticas artísticas amplia o alcance do conhecimento produzido sobre esta temática e realiza uma distribuição sensível deste saber ao circular em exposições de arte, festivais de tecnologia e programações de conteúdo audiovisual na rede, para além de encontros acadêmicos logocêntricos e nem sempre abertos ao público. Justifica-se a relevância do tema ao se apontar que na área de Comunicação no Brasil, todavia, ainda há uma carência de atenção e iniciativas que destaquem e desenvolvam epistemologicamente e metodologicamente abordagens inovadoras sobre o assunto.

Estudos de infraestrutura e seus cruzamentos

Parte-se aqui, portanto, da consideração de que os estudos de infraestruturas das mídias buscam “entender as materialidades das coisas, locais, pessoas e processos; localizando a distribuição das mídias no interior de sistemas de poder” [1] (PARKS; STAROSIELSKI, 2015, p. 5) (tradução nossa). Além disso, estas infraestruturas consistem em hardware, software, prédios espetaculares, processos imperceptíveis, objetos sintéticos, pessoal humano, estando elas situadas tanto em ambientes rurais quanto urbanos.

Os desafios metodológicos encontrados ao se estudar este tema foram pontuados inicialmente por Star (1999), quando afirmou que a maior dificuldade metodológica emerge, primeiramente, de uma questão conceitual: infraestrutura é fundamentalmente um conceito relacional, tornando-se uma infraestrutura real sempre em relação com outras práticas. É mais uma propriedade relacional do que uma coisa ou um objeto em si.  Pensando a partir do campo etnográfico nos estudos de informação, Star (1999) apresentou algumas dicas para se contornar o desafio de pesquisar algo que é mais relacional do que objetal e de se lidar com essa tarefa “aterrorizadora e deliciosa”.

A autora considerou, naquele momento, como ainda sendo “subdesenvolvido” o lado metodológico das questões que costumam ser investigadas quando se tem a infraestrutura como unidade de análise. Apesar de oferecer soluções preliminares, ela destaca que pesquisas avançando no tema metodológico seriam bem-vindas.

Suas sugestões iniciais envolveram considerar a identificação da difusão de “narrativas mestre” e “narrativas sobre outros” em discursos de agentes de infraestruturas da telecomunicação; o exercício de práticas que dão visibilidade ao que está invisibilizado em sistemas técnicos; e a exploração da condição paradoxal do que é infraestrutural, de onde emerge um problema metodológico de escalabilidade — ou seja, a consideração de que sistemas infraestruturais existem em escalas geográficas e temporais que desafiam qualquer enquadramento estável.

A primeira sugestão de Star (1999) para encarar tais desafios envolve identificar qual voz discursiva fala de modo inconsciente a partir de um suposto centro de onde emana a infraestrutura e em nome de uma entidade única que não problematiza nem evoca a diversidade que sempre envolve, em distintas ordens, qualquer sistema técnico.

A segunda proposta envolve dar visibilidade às operações e aos agentes de trabalho ou de espaço que não costumam ser percebidos ou formalmente organizados no discurso sobre sistemas técnicos, como trabalhadores de limpeza, secretários, familiares dos trabalhadores de sistemas infraestruturais.

A terceira sugestão da autora orienta quem pesquisa a considerar tanto a tarefa de produção dos sistemas técnicos quanto as tarefas escondidas de articulação, aproximação e recursividade desses sistemas, podendo as análises investigativas ocorrer levando em consideração que tais sistemas são por vezes amplos geograficamente, mas situados e dependentes de contingências locais.

Os estudos de infraestrutura, ao longo dos anos seguintes à publicação de tal ensaio, têm apontado caminhos para ampliar os meios de se pesquisar e de se lidar com o caráter relacional e a escalabilidade epistemologicamente desafiadora dos sistemas técnicos de distribuição de sinais. Os estudos de Mídia e Comunicação, mais especificamente, tomaram como referência as indicações de Star (1999) e levaram adiante a diversificação de metodologias para a pesquisa das lógicas distributivas da rede digital. Especialmente, tal movimento ocorreu a partir do que se tem chamado de “arqueologia das mídias”.

Relacionadas constantemente com o que se chama de Teoria Alemã das Mídias, as arqueologias das mídias se desenvolveram como um exercício prolongado de cruzamento entre fronteiras disciplinares para além das Humanidades, guiando-se pelo interesse de se confrontar as condições da mediação na Biologia, na Literatura, na Filosofia, na Educação, na espiritualidade, para além da Comunicação; chamando atenção, especialmente, para como as técnicas devem ser situadas a partir de questões materiais, temporais e espaciais.

Nesse sentido, há 25 anos, Zielinski afirmou as arqueologias das mídias como uma abordagem para se estudar de modo pragmático o hardware e o software do audiovisual ou, em outras palavras, uma forma de atividade (Tätigkeit) para “escavacar caminhos secretos na história e que podem nos ajudar a encontrar um caminho para o futuro” [2] (ZIELINSKI, 1996, s.p) (tradução nossa). Na definição então oferecida, o emprego da palavra alemã Tätigkeit faz referência ao pensador austríaco Ludwig Wittgenstein, que questionava a produção de pensamento realizada pelo filósofo que apenas ficava sentado em uma cadeira, pois para este autor a filosofia tratava-se de uma ação e não uma doutrina.

A proposta germinal da arqueologia das mídias, nesse sentido, é ser um meio de articulação entre pensamento e ação no campo de estudos de mídia, orientando-se para modos pragmáticos de produzir conhecimento ao se escavar os passados, presentes e futuros das mídias, jogando com cronografias especulativas. Espera-se retirar, enfim, os pesquisadores da clássica posição de reduzir a produção do conhecimento à operação de uma mente descorporificada, ainda preponderante no meio acadêmico.

Ao longo da última década, para além da definição germinal de Zielinski, intensificou-se o debate que ramificou compreensões sobre o que são as arqueologias das mídias. Considerada como metodologia, conceito ou subdisciplina dos estudos de mídia, Strauven (2013) identifica três ramos de onde esta arqueologia surgiu inicialmente: 1) na história do cinema e das mídias, a partir de teóricos como  Elsaesser; 2) na arte-mídia, a partir dos estudos de teóricos como  Zielinski e Huhtamo sobre práticas artísticas; 3) na teoria das novas mídias, que estaria relacionada com arte feita a partir de uma abordagem arqueológica, diretamente interessada em abrir circuitos, hackear hardwares e estabelecer processos críticos à operacionalidade do tempo na cultura contemporânea.

Mais objetivamente, Strauven (2013) afirma que por mais diversas que possam ser as “escolas” de arqueologia das mídias, suas agendas de pesquisa possuem em comum quatro aspectos: 1) uma relação crucial entre teoria e história, de modo que a história não é mais o estudo do passado, mas o presente potencial e os futuros possíveis; 2) uma conexão vital entre arte e pesquisa, entre pesquisadores e artistas; 3) um papel central desempenhado por materiais de arquivo; 4) um repensar das temporalidades, o que inclui problematizações de ordem metodológica.

Desde a elaboração de Strauven, diversificou-se ainda mais o emprego do termo e o desafio de o conter em terminologias e categorizações pode se tornar problemático, diante de uma certa insubordinação e mobilidade disciplinar que o envolve. A força propulsora comum da diversidade de abordagens definidoras do que vem a ser arqueologias das mídias, todavia, é “o descontentamento com as narrativas ‘canonizadas’ da cultura e história das mídias” [3] (HUHTAMO; PARIKKA, 2011, p. 2-3) (tradução nossa).

Enfim, pode-se dizer que a diversidade de manifestações das arqueologias das mídias envolve uma reconfiguração da reflexão sobre o que é mídia a partir de questões que atravessam e problematizam a linearidade do tempo, o distanciamento entre teoria e prática e entre arte e ciência, além de uma consideração para a materialidade das mídias, o que inclui as ecologias nas quais elas estão inseridas ou das quais dependem para se constituírem, invocando-se para os Estudos de Mídia o próprio tempo geológico e as forças da terra (não seus elementos enquanto substância, mas suas materialidades e mineralidades enquanto vetores relacionais).

Estudos de infraestruturas e práticas artísticas

Influenciada pela arqueologia das mídias, a pesquisadora norte-americana Nicole Starosielski em seu livro The Undersea Network (2015), desenvolve uma “arqueologia da rede” da infraestrutura de cabos submarinos do Pacífico, também apresentando surfacing.in, um mapa digital dos cabos submarinos com arquivos, fotografias e narrativas que podem ser acessadas de modo não linear para conhecimento paralelo ao livro.

Além disso, ao longo do livro são apresentadas com destaque algumas palavras-chave cuja compreensão pode ser expandida através de textos e imagens no site. Seu modo de conduzir sua pesquisa sobre o sistema de cabos submarinos do Pacífico foi apresentado no livro como uma correção para a visibilidade limitada dos sistemas de cabos nos estudos de Mídia e nas Ciências Sociais e Humanidades no geral.

Como as infraestruturas enfrentam um problema que envolve (in)visibilidade, modos de pesquisar que incorporam a modalidade visual são fundamentais ao se realizar uma “arqueologia da rede”: “Eu fotografei redes de cabos através das minhas viagens para desenvolver novas abordagens de representação dos cabos” [4] (STAROSIELSKI, 2015, p. 22) (tradução nossa). A pesquisadora combinou, portanto, estratégias visuais com um modelo multivalente para o estudo de sistemas de distribuição de sinais ópticos transoceânicos, envolvendo trabalho de campo com práticas artísticas, arquivistas e de base etnográfica.

A arqueologia da rede, nesses modos de realização, seria trazer para a superfície as camadas históricas, políticas e biológicas dos ambientes que estão no entorno de sistemas técnicos e históricos de cabos, performando-se uma análise crítica a partir de referências dos estudos de Mídia. De modo explícito, Starosielski define a arqueologia da rede como uma agenda de pesquisa capaz de:

Historizar os movimentos e conexões permitidas pelos sistemas de distribuição e revelar os ambientes que dão forma a distribuição contemporânea das mídias. [...]. The Undersea Network segue os caminhos das nossas transmissões de sinais — das estações de cabo submarino onde sinais terminam, através de zonas nas quais eles aportam, até o fundo dos oceanos nos quais eles estão submersos. Essas zonas, obscurecidas nas linhas finas do diagrama da rede, são as geografias materiais das comunicações cabeadas e através da sua escavação nós podemos começar a entender a natureza semicentralizada, territorial, precária e rural das redes digitais [5] (STAROSIELSKI, 2015, p. 15) (tradução nossa).

Parks, por vez, colaborou como tutora da pesquisa de Starosielski e, em suas próprias pesquisas sobre satélites, torres de transmissão e túneis para animais sobre autoestradas, afirma ter tentado desenvolver uma metodologia crítica para analisar a significância específica da relação de objetos e locais de infraestrutura com seus entornos e as condições ambientais, geopolíticas e socioeconômicas deles. Este tipo de método “[...] envolveu visitas à locais e investigações físicas de objetos infraestruturais usando a observação pessoal, fotografia, mapas, vídeo, arte, desenhos e outras visualizações” [6] (PARKS, 2015, p. 355) (tradução nossa).

Considerando isso, a pesquisadora sugere que os estudos de infraestruturas das mídias devem, para além de analisar como elas aparecem na cultura das mídias, também visitar os objetos e sítios infraestruturais, testemunhar processos de construção dos mesmos, interagir com os trabalhadores do setor e se aproximar o máximo possível da dispersão e da não inteligibilidade dos sistemas técnicos (PARKS, 2015, p. 370-371).

Aproximando tais considerações das práticas artísticas, Parks (2015) apresenta, por exemplo, a obra Lineman (2009) de Michael Parker. Consiste em uma videoinstalação que apresenta a documentação do cotidiano de trabalho e treinamento técnico de Parker e um grupo de 50 eletricistas com postes de energia, a maior parte deles negros e latinos que haviam perdido seus empregos prévios durante a recessão de 2008 nos Estados Unidos.

Parks (2015) analisa a estética da obra e o modo de apresentação e encenação disposto em vídeos e cenas, demonstrando como a arte oferece em si mesma o conceito de perspectiva infraestrutural, onde o espectador pode ver e imaginar o mundo a partir do ponto de vista de um poste de energia. A autora também chama atenção para questões laborais e de distribuição relacionadas com a cultura digital, apontando também para produção dos conceitos de disposição infraestrutural (um pensamento sobre as mídias que envolve não apenas o seu conteúdo, mas a sua elementaridade e sua distribuição) e cidadania infraestrutural (o modo como cidadãos percebem ou passam a perceber, afetam e são afetados, pelo conhecimento sobre infraestruturas) através da arte (PARKS, 2015).

Já no livro Software, Labor and Infrastructure: a media theory for logistical nightmares (2016), o australiano Ned Rossiter discute relações entre infraestrutura, território, imperialismo, trabalho e logística, baseando-se no seu próprio processo de criação da versão demo de um game chamado Cargonauts. Ambientado no porto de Piraeus (principal porto na região de Atenas, Grécia), o game mobiliza as análises de um capítulo do livro. Rossiter aproxima a posição do player da posição de operadores de softwares de logística e infraestrutura, utilizando a jogabilidade como ferramenta analítica e de imaginação política, promovendo simulações de sabotagens e movimentos de trabalhadores do setor de logística.

O que o autor busca chamar atenção é para o fato de que espaços infraestruturais como portos, data centers e as estações de cabo submarino constituem uma camada onde territorialidade, soberania e geopolítica podem se estender para além das fronteiras de um Estado. O pesquisador lança luz, especialmente, para o poder de globalização da China e a sua capacidade de extrair valor de todo aspecto da vida social, interseccionando a lógica de acúmulo de capital com a força da expansão de sua soberania.

A preocupação de Rossiter (2016) é sobre como os estudos de Mídia e Comunicação podem conseguir desenvolver uma teoria sobre a dimensão logística desses regimes extraterritoriais de poder ou, simplesmente, de imperialismo infraestrutural. As estações de cabo submarino e os data centers seriam as arquiteturas onde se assentam novas entidades soberanas de governança extraestatal, locais onde se dão as instâncias desse imperialismo na forma de “impérios logísticos”.

Jussi Parikka, celebrado autor de livros como Geology of Media (2015) e Insect Media (2010), tem realizado incursões no campo do audiovisual, participando de obras como White Mountain (2016) de Emma Charles e Seed, Image, Ground, em colaboração com Abelardo Gil-Furnier. Especificamente na videoinstalação White Mountain suas palavras dançam com as imagens do interior e do entorno de um dos principais data centers da Europa, localizado em um bunker da época da Guerra Fria na cidade de Estocolmo, na Suécia. O texto de Parikka especula sobre as relações entre as forças geológicas da Terra, as camadas geopolíticas do tempo e a operação e sustentabilidade das infraestruturas midiáticas no contexto do digital.

Destaca-se aqui, ainda, o projeto Critical Infrastructure apresentado no festival Transmediale 2014 por Jamie Allen e David Gauthier. Através de textos, um laboratório e uma instalação artística no espaço expositivo do festival, os artistas pesquisadores buscaram apontar outras formas de pensar sobre o que seria “pós-digital”, considerando “pós” não um olhar para o que vem depois da euforia celebratória dos anos 1990 e 2000, mas para o que está abaixo, no “sedimento do presente tecnológico”. Mais especificamente, eles propuseram pensar o “pós-digital” como “infradigital”:

Se “pós” geralmente se refere a aquilo que vem depois, vamos olhar aqui para o que está abaixo — mapeando um percurso não em termos de eras, gerações ou épocas, mas através de camadas, gradientes verticais, folheados e estratos — conduzindo o nosso “pós” em direção ao chão. O resplendor, a ressaca, do boom digital que experienciamos desde os anos 1980 evidenciam uma real disposição de camadas de matéria: a sujeira e a poeira dos sistemas digitais, das interconexões e protocolos que agora envolvem a Terra [7] (ALLEN, 2014, p. 182) (tradução nossa).

Tais questões surgem no contexto da consolidação de um entendimento sobre o Antropoceno [8] e seus efeitos para as teorias das Mídias e os estudos sobre o digital, mais especificamente considerando preocupações com o reconhecimento de como o digital colabora e é atravessado pela crise ecológica que tal era representa.

A arte tem um papel fundamental nesse processo, por um lado, ao viabilizar meios para que público e estudiosos imaginem modos de propriocepção infraestrutural, ou seja, deem uma atenção para o posicionamento infraestrutural de grupos para viabilizar sua organização e coordenação. Por outro lado, a arte e suas trajetórias possuem relevância por serem marcadas por movimentos como o da arte conceitual e sua crítica institucional, além da virada performativa nos anos 1970. Na academia, há vezes que tais viradas parecem não ter surtido efeitos nos modos de pesquisar e apresentar, seja nas revistas ou nos congressos acadêmicos, ainda majoritariamente logocêntricos.

Em um novo sopro do que foi postulado há 50 anos no campo das artes, atualmente, certos artistas têm buscado avançar com uma crítica infraestrutural (tanto em seu próprio campo quanto além). No Brasil, tal temática foi abordada de modo mais original e sagaz justamente na área das artes, por artistas pesquisadores. Luiza Crosman apresentou na 33ª Bienal de São Paulo o projeto TRAMA (2018), especificamente avançando em uma agenda de crítica infraestrutural.  A concepção envolvia intervenções institucionais, uma instalação, diagramas, uma série de publicações de traduções de textos para o português (em parceria com a Zazie Edições) e peças sonoras.

Destaca-se como, através da obra, a artista propôs uma reflexão sobre as condições materiais da própria Bienal de São Paulo, ao realizar uma intervenção que consistiu em instalar placas solares no teto do espaço expositivo e as conectar com um computador minerando a criptomoeda Ethereum (que fazia parte da instalação).  Conforme exposto por Crosman em artigo em que, posteriormente, reflete sobre suas proposições:

Durante o período da exposição — de setembro a dezembro — a intervenção consistiu nesse sistema e na sua possibilidade de gerar recursos a partir das condições físicas e da infraestrutura do prédio. Ou seja, usando um gerador de energia sustentável, painéis solares, como modo de oferecer energia elétrica para minerar Ethereum (nesse sentido, a obra também funciona como um experimento com criptoinfraestrutura, o que demanda grande quantidade de energia elétrica para acontecer). Os recursos financeiros gerados seriam utilizados na produção de um evento em outro local depois de terminada a bienal, assim gerando uma redistribuição de recursos de uma grande instituição para uma menor. Uma instituição como a Fundação Bienal consegue atrair grande quantidade de financiamento; entretanto, um contexto rico se faz não só a partir de grandes instituições e exposições, mas também de outras menores e diversas, às vezes com muito mais impacto [9] (CROSMAN, 2020, p. 44-45) (tradução nossa) (grifo nosso).

Ao propor que os painéis solares permanecessem fornecendo energia ao prédio da Fundação Bienal após o fim da exposição, a artista gerou ruídos institucionais em razão de um dos principais financiadores do evento ser a companhia que possui a concessão de fornecimento de energia para a cidade de São Paulo. Para a artista, “era um experimento prático de investigar o modo com o qual novas tecnologias podem oferecer alternativas quando associadas com questões sociais e econômicas” [10] (CROSMAN, 2020, p. 46) (tradução nossa).

Outro evento de destaque no Brasil trazendo tal temática foi a exposição Campos de Invisibilidade, que ocorreu com curadoria de Cláudio Bueno e Lígia Nobre no Sesc São Paulo – Belenzinho, entre novembro de 2018 e fevereiro de 2019. A exposição convidou o público “a refletir sobre a ecologia de problemas mobilizada pelo que chamaremos aqui de infra¬estrutura tecnológica global” (BUENO; NOBRE, 2018, p. 14).

De modo transversal, essa reflexão trouxe desde questões econômicas até questões espirituais, sexuais e geográficas, problematizando a dimensão ecológica “da nuvem”, de data centers, cabos submarinos, torres de transmissão e lixões de descarte eletrônico a partir de territórios como Praia do Futuro (ligado a obra A Chegada de Monet [2016], de Ruy Cézar Campos); Agbogbloshie (vindo da obra All That is Solid [2014] de Louis Henderson); Pico do Jaraguá (a partir da ocupação de torres de transmissão pela Comissão Guarani Yvyrupá em São Paulo); Manhattan (a partir da obra White Mountain [2016], de Emma Charles), dentre outros.

A exposição também chamou atenção para as relações de consumo e energia provocada pelo digital a partir de obras que problematizam territórios marcados pela extração e circulação de carvão, hidrelétricas e petróleo. O texto curatorial critica o estabelecimento de infraestruturas a partir de uma cosmovisão monotecnológica e busca promover a tecnodiversidade:

A perpetuação dessa narrativa, em contex¬tos atravessados por tecnologias eletrônicas e digitais, tende a tratar como neutro e universal o saber e o corpo do sujeito que a escreve. Mas sabemos que nossas visões de mundo são sempre recortadas, e também limitadas, assim como a de programadores de algoritmos, cientistas da com-putação, engenheiros de grandes infraestruturas etc. Estes acabam por valorizar, visibilizar e es¬truturar o funcionamento das tecnologias e suas infraestruturas, a partir de certos saberes, corpos, culturas, geografias, políticas, e não outros (BUENO; NOBRE, 2018, p. 16).

Além disso, Campos de Invisibilidade convidou a artista Tabita Rezaire e as intelectuais Débora Danowski e Keller Easterling, oferecendo uma assemblage peculiar para as questões problemáticas que marcam o pensamento sobre o digital e as infraestruturas na contemporaneidade.

Considerações Finais

Antes dos autores e artistas mais jovens citados anteriormente, todavia, dois teóricos que podem ser relacionados às arqueologias das mídias já ensaiavam um destaque para a importância do tema infraestrutura: Vilém Flusser e Friedrich Kittler. O tópico conclusivo, assim, buscará apresentar também como isso aparece em seus textos e relacionar tais produções com as de um outro teórico-artista mais obliterado pelos estudos de Mídia e Comunicação: Robert Smithson, mais reconhecido pelos seus trabalhos com land art, como Spiral Jetty (1970).

Flusser (2015) definiu a ciência da Comunicologia como um híbrido entre arte e ciência, crítica sobre o papel das infraestruturas da comunicação na cultura. A Comunicologia seria uma ciência que assume uma responsabilidade com a cultura a partir de práticas artísticas como pesquisa, em razão da própria estrutura da comunicação ser uma infraestrutura de nossa vida intersubjetiva, cultural, política e ambiental, mais do que algo meramente técnico, físico e objetivo.

Ao lado da ideia marxista da economia como infraestrutura da sociedade, no século XIX aceitou-se de forma geral a seguinte estrutura da realidade. A infraestrutura é a física, as ciências físicas. O nível seguinte são as biológicas, o seguinte, as psicológicas, o superior, as ciências sociológicas. Pelo menos desde Edmund Husserl, ou seja, pelo menos desde que a intuição fenomenológica (phënomenologishe Shau) foi disciplinada, acreditamos que as ordenações que descobrimos nas coisas foram levadas por nós mesmos dentro delas. Eu assumo a estrutura da comunicação como infraestrutura da sociedade (FLUSSER, 2015, p. 46) (grifo nosso).

Portanto, ao considerar “a estrutura da comunicação como infraestrutura da cultura e da sociedade”, o autor entendeu a Teoria da Comunicação como um “jogo de malícia” e responsabilidade (capacidade de responder) entre a cultura e a ciência da Comunicação (e, portanto, com suas infraestruturas).  Malemolência maliciosa, a prática científica do comunicólogo envolve perceber quais conectores comunicológicos estão ocultos “ao se abrir a barriga da cultura” com os bisturis da “contemplação criativa”, termos usados Flusser (2015, p. 45) e que podemos entender simplesmente como teoria através de práticas artísticas para pensar com responsabilidade sobre infraestrutura. “Quando uma comunicação está estabelecida de forma que eu possa responder, então ela vibra na vibração da responsabilidade” (FLUSSER, 2015, p. 110).

Com seu método esquisito de fazer Teoria da Comunicação, Flusser se esforçou para que a conectividade em rede possibilitasse concretizar sua afirmação de que “os cabos devem ser todos reversíveis” (FLUSSER, 2015, p. 76) com a colaboração da arte. É ao se referir ao espaço privado, ao espaço individual, que o checo-brasileiro ensaia a significância uma reflexão sobre cabos, em sua escrita polissêmica que envolve desde a subjetividade quanto a infraestruturalidade em rede de tecnologias da comunicação e de forças da terra:

Minha casa não tem mais muros nem telhado. As paredes estão perfuradas por cabeamento visível e invisível, como um queijo suíço. O telhado está perfurado por antenas. O vento da revolução da comunicação passa zunindo pela minha casa (FLUSSER, 2015, p. 91).

Tal citação aparece no livro Comunicologia no capítulo “do espaço e das ordens” (FLUSSER, 2015, p.79-96), quando ele aponta suas concepções sobre espaço e coisa pública na sociedade que, para ele, oscila entre uma rede dialógica e um enfeixamento totalitário:

A revolução da comunicação consiste no fato de que o fluxo de informações comuta. As informações não precisam mais ser buscadas no espaço público; todas as informações são entregues no espaço privado, seja por enfeixamento ou por conectividade em rede (FLUSSER, 2015, p. 90).

Apenas muitas páginas depois, o autor se aprofunda em tais colocações, retomando com a afirmação de que “a revolução da comunicação permite dois tipos de relés, de transmissão: cabeamento em feixe e em rede” (FLUSSER, 2015, p. 273). Flusser olha para o vínculo etimológico entre feixe e fascia para apontar o risco de que o cabeamento da sociedade leve ao fascismo, defendendo que para a sociedade estar de fato conectada em rede,

[...] os cabos devem ser todos reversíveis [...] Quando digo redes e conectividades não quero dizer redes de pesca. Quero dizer sinapses neurológicas. Está em curso uma conectividade em rede que se espalha como cérebro ao redor do globo terrestre, sendo que os canais são os nervos, e os nós são as pessoas e os aparelhos. Essa rede que repousa sobre a bioesfera, como a biosfera sobre a hidrosfera, esse cérebro coletivo está surgindo, que não conhece nem geografia, nem história, pois suprimiu (aufgehaben) em si a geografia e a história. Sua função nada mais é do que um cruzamento de competências para secretar novas informações e aumentar a competência total do cérebro. Esse é o modelo da sociedade telemática (FLUSSER, 2015, p. 76) (grifo nosso).

Tais colocações que aproximam infraestrutura, comunicação, subjetividade e política são um sintoma de sua cosmovisão conectada, de onde o sujeito desaparece para se tornar um projeto possível pelo cabeamento reversível, intersubjetivo com as forças (Kräften) que o atravessam:

O que antigamente se chamava de sociedade é de fato apenas uma coisificação, a reificação de uma rede intersubjetiva. O que se chamava de indivíduo nada mais é do que uma reificação de um nó em uma rede. Há os fios da rede na qual fomos jogados e temos a estranha possibilidade de fazermos fios nós mesmos (FLUSSER, 2015, p. 323).

Tal compreensão sobre a rede estabelece um esquisito vínculo entre uma certa ontologia eletromagnética (existimos no campo magnético dos fios que nos conectam) e o próprio espaço como mídia. Enquanto Starosielski (2015, p. 28), ao pesquisar sobre a rede de cabos no Pacífico, insiste na importância de que se pesquise a topografia para além da topologia (entendendo por topografia da rede os modos em que os sistemas se tornam envolvidos pelo ambiente que está em seu entorno), Flusser (2005, p. 322) afirma que “ao se pensar em cidades, deveríamos pensar topograficamente ao invés de geograficamente e ver a cidade não como um lugar geográfico, mas como uma flexão em um campo”.

Flusser apontou há décadas caminhos para que os pesquisadores possam projetar as linguagens (especialmente as não logocêntricas, que superam a escrita linear) com as quais se faz pesquisa em redes de intersubjetividade, especificamente atuando na cultura por meio da arte. Não ao acaso, essa esquisita encruzilhada é o terreno de exploração também das arqueologias das mídias, destacando-se aqui uma de suas referências definidoras, o amigo e admirador de Flusser, Friedrich Kittler.

Em seu texto “A Cidade é uma Mídia”, Kittler (2017, p. 236) também urbaniza esse modo flusseriano de se pensar o sujeito através da intersubjetividade de redes infraestruturais:

Desde o momento em que as cidades não puderam mais ser completamente vistas do alto das torres ou do castelo e não se limitavam mais ao espaço encerrado por muros e fortificações, elas são permeadas e conectadas por uma rede formada por muitas outras redes — também e especialmente nas margens, bordas e tangentes. Não importa se essas redes transmitem informações ou energia, ou seja, se as chamamos de telefone, rádio, televisão ou redes de água, eletricidade ou até mesmo autoestrada — todas elas são informação (pois cada fluxo moderno de energia depende de uma rede paralela de controle, mas essas redes existem mesmo naqueles tempos remotos) [...]. O rastro quase invisível de uma trilha de jumentos entre as rochas substituía os trilhos ferroviários e as autoestradas; e o rastro igualmente transitório do mensageiro, os fios de cobre ou de fibra óptica (KITTLER, 2017, p. 237).

Kittler chama atenção para a impossibilidade de aplainamento teórico do espaço (em termos conceituais), enfatizando como os cruzamentos epistemológicos das forças da terra com as redes demandam um trabalho de base arqueológica com estratos e camadas: “Nas capitais, sobrepõem-se redes nas cidades e redes entre as cidades. Interseções sob a terra, na terra e acima da terra impossibilitam qualquer aplainamento” (KITTLER, 2017, p. 241).

Por aplainamento, entende-se aqui a planificação do conhecimento acadêmico em uma esfera linear e estável de desenvolvimento que ignora, mirando ao horizonte, eventuais forças da terra que apontam para baixo e para outras direções.

Fundamenta-se aqui o artigo, portanto, em uma ciência das Mídias e da Comunicação que assume uma relação de responsabilidade com os estratos da terra como mídia em micro e macroescala de projetos de subjetividade e espaço, constituídos no campo eletromagnético em movimento. Ainda que Flusser não seja uma referência comum nos recentes estudos sobre infraestrutura e que o uso da arte como metodologia em Comunicação não tenha alcançado uma escala que constitua um indício de atenção significativa do campo para as questões metodológicas colocadas para Flusser, suas colocações seguem atuais.

Parikka afirma que das práticas e escritos sobre geologia de artistas como Robert Smithson, por exemplo, surgem outras linhagens fundacionais para os estudos de Mídias: ao invés de se compreendê-las como extensão do homem (como proposto por Marshall McLuhan), pode-se compreender os meios como extensão da Terra. Smithson (1968, p. 2), pouco estudado na área de Comunicação talvez justamente por atuar através da land art, contrapôs-se ainda na década de 1960 ao entendimento de McLuhan e afirmou que os meios não são extensão do homem, mas da mineralidade planetária, ou seja, de uma dimensão geológica que costuma escapar da escala do sujeito.

Nas suas obras e em seu texto sobre a “sedimentação da mente” (1968), ele aponta que as mídias são químicas, agregadas de elementos, tanto no nível filosófico como material, ou seja, derivam de elementos químicos que formam a Terra em sua própria geologia. Nessa abordagem, o humano perde um pouco seu protagonismo e a sua centralidade: o próprio material geológico atravessa do campo material para o linguístico, que afinal, não são esferas separadas.

Os nomes de minerais e os minerais em si mesmos não se diferenciam um do outro, pois no fundo do material e da impressão está o começo de um número abismal de fissuras. Palavras e pedras contêm a linguagem que segue uma sintaxe de rupturas e separações. Olhem para qualquer palavra grande o suficiente e você a verá aberta em uma série de falhas, em um terreno de partículas cada uma contendo o seu vazio [11] (SMITHSON, 1968, p. 87) (tradução nossa).

O olhar de Smithson para a materialidade das mídias é como uma linha que atravessa do cérebro para um material estético e para terra:

‘Formas’, ‘coisas’, ‘objetos’, ‘sólidos’, etc., com começos e fins são meras ficções convenientes: há apenas uma ordem desintegradora que transcende os limites das separações racionais. As ficções erigidas no córrego do tempo em erosão estão aptas para serem engolidas pelo pântano de qualquer momento. O cérebro em si mesmo parece uma pedra erodida da qual brotam ideias e ideais [12] (SMITHSON, 1968, p. 90) (tradução nossa).

Concluindo, destacam-se como alguns de seus pensamentos, ao serem articulados com pensadores como Flusser e Kittler e com o recente interesse pela questão da materialidade das mídias a partir de uma atenção para a questão das infraestruturas, podem ser base para reconsiderações epistemológicas na área da Comunicação e dos estudos de Mídia. De modo mais claro, podem ser uma das noções a partir das quais o campo pode reconhecer uma contribuição teórica e conceitual mais significativa da parte de artistas que permaneceram obliterados pelo logocentrismo tradicional da academia, ao mesmo tempo em que se convoca os pesquisadores da Comunicação para experimentarem mais enquanto artistas ou simplesmente híbridos comunicólogos.

Notas

[1] “to understand the materialities of things, sites, people, and processes that locate media distribution within systems of power”. (PARKS; STAROSIELSKI, 2015, p. 5)

[2] “dig out secret paths in history, which might help us to find our way into the future”. (ZIELINSKI, 1996, n.p.)

[3] “Discontent with “canonized” narratives of media culture and history”. (HUHTAMO; PARIKKA, 2011, p. 2-3)

[4] “I have photographed cable networks throughout my travels to develop new approaches to cable representation”. (STAROSIELSKI, 2015, p. 22)

[5] “to historicize the movements and connections enabled by distribution systems and to reveal the environments that shape contemporary media circulation. Based on existing research in media archaeology, a network archaeological approach draws on archives and historical narratives to shed light on emerging practices and, in light of these practices, to offer new vantage points on the past. To do so, The Undersea Network follows the paths of our signal transmissions—from the cable stations in which signals terminate, through the zones in which they come ashore, and to the deep ocean in which they are submerged. These zones, obscured in the thin lines of the network diagram, are the material geographies of cable communications, and through their excavation we can begin to understand the semicentralized, territorial, precarious, and rural natures of digital networks”. (STAROSIELSKI, 2015, p. 15)

[6] “involved site vists and physical investigationss of infrastructural objects using personal observation, photography, maps, video, art, drawings and other visualizations”. (PARKS, 2015, p. 355)

[7] If “post-” usually refers to that which comes after, let’s look here at what lies below—charting a course not in terms of eras, generations and epochs, but through layers, vertical gradients, veneers and strata—driving our “post-” into the ground. The afterglow, the hangover, of the digital booms and busts we have been experiencing since the late 80’s evidence a very real layering of matter: the dirt and dusts of the digital systems, interconnects and protocols that now wrap the Earth. (ALLEN, 2014, p. 182)

[8] Era geológica reconhecida pela estratigrafia no ano de 2015 e que, com tal nomeação contraditória, reconhece que o planeta sofre intensas transformações geológicas em um curto espaço de tempo por causas antropogênicas.

[9] “During the course of the exhibition—from September to December—the intervention consisted of this system and its possibility of generating resources out of the physical conditions and infrastructure of the building. That is, using a sustainable energy generator, solar panels, as a way to provide electrical energy for mining Ethereum (in this sense the work also functions as an experiment within crypto-infrastructure, which requires large amounts of electrical energy to run). The financial resources generated were to be used to produce an event at another venue, 45 thus generating a redistribution of resources from a large-scale institution to a smaller one. An institution like the Biennial Foundation manages to attract large amounts of funding; however, a rich context is made not only of big institutions and exhibitions, but also of smaller and diverse ones, sometimes much more impactful”.  (CROSMAN, 2020, p. 44-45)

[10] “it was a practical experiment investigating the way in which new technologies might offer alternatives when associated with economic and social questions”. (CROSMAN, 2020, p. 46)

[11] “The names of minerals and the minerals them- selves do not differ from each other, because at the bottom of both the material and the print is the beginning of an abysmal number of fissures. Words and rocks contain a language that follows a syntax of splits and ruptures. Look at any word long enough and you will see it open up into a series of faults, into a terrain of particles each containing its own void”. (SMITHSON, 1968, p. 87)

[12] “Separate “things,” “forms,” “objects,” “shapes,” etc., with beginnings and endings are mere convenient fictions: there is only an uncertain disintegrating order that transcends the limits of rational separations. The fictions erected in the eroding time stream are apt to be swamped at any moment. The brain itself resembles an eroded rock from which ideas and ideals leak”. (SMITHSON, 1968, p. 90)

Referências

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