Tensionamentos discursivos da infertilidade masculina:

bioprodutos, cuidados de si e engajamento moral na paternidade ativa desde a concepção

Eliza Bachega Casadei1

Resumo

A partir do pressuposto de que homens e mulheres são convocados para o consumo das tecnologias reprodutivas de formas diferenciais, o artigo tem como objetivo discutir como a infertilidade masculina é discursivamente construída pela imprensa e pelos materiais de divulgação das clínicas de fertilidade brasileiros, em uma busca realizada em seus respectivos sites em 2021. A partir dos pressupostos metodológicos da Análise do Discurso, é possível observar que o mercado das tecnologias reprodutivas para os homens é mediado por meio de três vertentes discursivas relacionadas: (1) aos elementos defeituosos do corpo como passíveis de uma intervenção médica socialmente legitimada, que traz subjacente uma responsabilização do indivíduo que deve buscar transformar o biológico em bioprodutos; (2) uma orientação para a vida saudável por intermédio de um discurso do cuidado de si vinculado ao engajamento moral do sujeito na paternidade; e (3) no discurso sobre o envolvimento em práticas vinculadas a um “reproempreendedorismo” de sucesso, que espelha o sonho de ter filhos a outros elementos de êxito na vida. Transversalizadas por discursos neoliberais, tais materializações comunicacionais encontram reverberações em demandas relacionadas a formas mais ativas de paternidade desde a concepção urdindo-as a imperativos da masculinidade hegemônica.

Palavras-chave

Comunicação; Consumo; Fertilidade; Masculinidade; Tecnologias Reprodutivas.

1 Doutora em Ciências da Comunicação pela Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo (ECA-USP). Professora Titular do Programa de Pós-graduação em Comunicação e Práticas do Consumo da Escola Superior de Propaganda e Marketing (PPGCOM ESPM). E-mail: elizacasadei@yahoo.com.br.

Discursive tensions of male infertility:

bioproducts, moral self-care in active and engaged paternity since creation

Eliza Bachega Casadei1

Abstract

Based on the assumption that men and women are triggered to consume reproductive technologies in different ways, this article aims to discuss how male infertility is discursively constructed by press and by dissemination materials of Brazilian fertility clinics, on their respective websites in 2021. From methodological assumptions of Discourse Analysis, it is possible to observe that reproductive technologies market for men is mediated through discursive fields related to: (1) defective body elements as subject to a socially legitimate medical intervention, which underlies the responsibility of the individual who must seek to transform the biological into bioproducts; (2) an orientation towards a healthy life through a discourse of self-care linked to the subject’s moral engagement in his paternity; and (3) in the discourse about involvement in practices linked to successful repro-entrepreneurship, which mirrors the dream of having children to other elements of a successful life. Transversalized by neoliberal discourses, these public communicational materializations have reverberations in demands related to more active forms of paternity since conception, urging them to the imperatives of hegemonic masculinity.

Keywords

Communication; Consumption; Fertility; Masculinity; Reproductive Technologies.

1 Doutora em Ciências da Comunicação pela Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo (ECA-USP). Professora Titular do Programa de Pós-graduação em Comunicação e Práticas do Consumo da Escola Superior de Propaganda e Marketing (PPGCOM ESPM). E-mail: elizacasadei@yahoo.com.br.

Introdução

Os indivíduos intervêm em seus processos reprodutivos a partir de uma série de escolhas de consumo (seja ao optar por determinados tipos de alimentos, tomar vitaminas e comprar roupas e acessórios, seja ao utilizar serviços de diagnóstico e reprodução). Os avanços médicos complexificam esse processo, uma vez que aumentam a quantidade de serviços à disposição dos indivíduos aspirantes à parentalidade a partir das tecnologias reprodutivas. Os estudos sobre mercantilização da reprodução devem levar em consideração o fato de que

[...] o consumo é um conjunto de práticas sociais através das quais a reprodução está sujeita ao poder do mercado, mas também é um meio pelo qual as pessoas expressam sua imaginação, criatividade e necessidades [1] (FLETCHER, 2006, p. 44) (tradução nossa).

Entre os valores culturais engendrados ao mercado reprodutivo, podemos destacar as questões de gênero, uma vez que elas demarcam uma partilha discursiva no que se refere às convocações para o consumo (PRADO, 2013) de bens e serviços.

Se o debate público sobre as tecnologias reprodutivas para mulheres é construído a partir de um discurso orientado para a perda da capacidade reprodutiva com a idade (BUTE et al., 2010), no caso dos homens, a correlação entre fertilidade e virilidade é marcante. Neste artigo, investigaremos como a infertilidade masculina é discursivamente construída por dois diferentes participantes comunicacionais do mercado de tecnologias reprodutivas para homens: a imprensa e os sites de clínicas de fertilidade brasileiros, através de uma apuração realizada em seus respectivos sítios eletrônicos, de acordo com os critérios explicitados a seguir.

A escolha do material empírico se justifica porque o mercado de fertilidade para homens é desenhado não apenas pelas clínicas médicas, mas também pelas esferas comunicacionais que medeiam imaginários sobre paternidade, masculinidade e fertilidade. Para a seleção dos materiais, a busca ocorreu no dia primeiro de abril de 2021, com critérios específicos à imprensa e às clinicas Em relação às clínicas de fertilidade, foi feita uma pesquisa pelo Google com as palavras-chave “infertilidade masculina” e “tratamentos”. E foram observados os sites das clínicas de fertilidade que apareceram nos dez primeiros resultados: a saber, Conrado Alvarenga, DZS Infertilidade, ArtFértil, Vida Bem Vinda, Ceferp, Guilherme Wood, Fivmed, Nilo Frantz, Mater Prime, Clinica Genics.

Para o material jornalístico, utilizou-se o buscador do Google Notícias com as mesmas palavras-chave. A partir dos resultados, foram excluídos os textos não noticiosos e selecionadas as dez primeiras reportagens da busca. Elas pertencem aos veículos A Gazeta, BBC, Diário do Sudoeste, Estadão, Folha de Pernambuco, Gazeta do Povo, G1, GQ e UOL, compreendendo um período entre fevereiro de 2020 e abril de 2021 e mais uma que é de 2017 . O objetivo da presente pesquisa não é obter um dado quantitativo sobre tais articulações discursivas, mas sim, observar as discursividades comuns que alicerçam a temática da infertilidade masculina nesses veículos e que pautam elementos importantes dos debates públicos sobre o tema.

Para a análise do material empírico, fundamentamo-nos nos pressupostos da Análise de Discurso de linha francesa, a partir de Maingueneau (2005), para investigar as formações discursivas que engendram relações de poder e sistemas sociais de conhecimento e crença. “Os discursos se revelam em seus efeitos, a saber, nas materialidades que produzem” (GOMES, 2019, p. 271), de forma que o discurso produz “um conjunto de enunciados que se alinhavam, como conjunto, pela disposição de dizeres sobre o mesmo assunto, incluindo os correlatos e os complementares, ou sobre assuntos diferentes sob um mesmo viés” (GOMES, 2019, p. 272). A partir disso, “uma formação discursiva traz consigo um entendimento de como o mundo ‘funciona’ e, portanto, um entendimento de como as sociedades e os indivíduos devem responder a esse funcionamento” (GOMES, 2019, p. 273).

Sobre esse aspecto, lembramos que, para Maingueneau (2005), a interdiscursividade é anterior à discursividade, o que significa que os sujeitos enunciadores nunca têm pleno domínio sobre seu discurso, pois este se gera e adquire especificidade sempre a partir de uma relação com outros discursos no interior de um campo discursivo. Portanto, todo discurso é atravessado por outros, dado que o primado do interdiscurso constrói “um sistema no qual a definição da rede semântica que circunscreve a especificidade de um discurso coincide com a definição das relações desse discurso com seu Outro” (MAINGUENEAU, 2005, p. 35). Nessa perspectiva, iremos mapear alguns dos cruzamentos discursivos presentes no discurso publicitário e jornalístico sobre infertilidade masculina.

Assim, analisaremos como estão articulados os discursos de convocação ao consumo (PRADO, 2013), enfatizando-se as inscrições discursivas de uma comunidade de pertencimento para esses consumidores (homens tentantes) e as estratégias discursivas utilizadas nas convocações afetivas em suas urdiduras narrativas com agenciamentos coletivos amplos vinculados às masculinidades socialmente construídas.

Tecnologias reprodutivas para homens

As tecnologias de reprodução são métodos que “possibilitam a realização de gestações que não aconteceriam espontaneamente, isto é, que colocam a intervenção médico-tecnológica como condição para sua ocorrência” (RAMÍREZ-GÁLVEZ, 2009, p. 86). Afinal, “mais do que objetos de desejo, os filhos seriam precisamente objetos de consumo” (BAUMAN, 2004 apud MAZZILLI, 2017), uma vez que

[...] seja pelo prolongamento da expectativa de vida, seja pelas estratégias de controle de natalidade, [...] o fato é que estamos cada vez mais acostumados e expostos a um verdadeiro arsenal de técnicas que se ocupam de nossas potencialidades reprodutivas. (MAZZILLI, 2017, p. 50)

Com isso, essas tecnologias abrem um mercado que não apenas permite a configuração de famílias consanguíneas, como aciona concepções de gênero vinculada à arena reprodutiva submetida à lógica do mercado e transformada em commodity.

Para Borlot e Trindade (2004, p. 64), o mercado de tecnologias reprodutivas fomenta a obsessão pelo projeto da parentalidade “elaborado numa linguagem de direitos”, que “reforça a importância do parentesco biológico e a comercialização das relações pessoais”. A ausência de filhos é discursivamente elaborada como uma patologia que pode ser tratada a partir do consumo de serviços médicos. A medicalização de processos antes tidos como naturais, como concepção, parto e nascimento, gerou “a criação de um mercado farmacológico e diagnóstico, que cresceu paralelo ao gerenciamento da reprodução através do consumo de práticas médicas” (RAMÍREZ-GÁLVEZ, 2009, p. 86) — e são direcionados, discursivamente, à “ideologia do consumo, que associa a ideia de inclusão, de sensação de ‘bem-estar’ e ‘felicidade’ ao ato de consumir” (RAMÍREZ-GÁLVEZ, 2009, p. 86).

No campo acadêmico, Culley, Hudson e Lohan (2013, p. 225) diagnosticam que “as pesquisas têm muito mais probabilidade de se concentrar nos entendimentos e experiências das mulheres do que nos homens” [2] (tradução nossa). Isso é um fruto de um desdobramento social amplo, onde a reprodução ainda é interpretada como central na vivência feminina, em suposições normativas que ligam a reprodução à feminilidade e mitigam o papel masculino no campo de direitos e responsabilidades no planejamento e preparação familiar. Não obstante isso, se historicamente, o mercado da fertilidade esteve prioritariamente voltado para mulheres (TANAKA; ALVARENGA, 1999), configurações parentais recentes fazem com que as convocações ao consumo masculino de tais tecnologias se tornem frequentes.

Homens e mulheres, contudo, não são acionados da mesma forma por esse mercado e as tecnologias reprodutivas apelam a uma arena genérica mais ampla como forma de articular discursivamente as convocações para o consumo (PRADO, 2013). Connell (2005) traz o conceito de arena reprodutiva para se referir ao conjunto de relações associadas às estruturas corporais dos processos de reprodução, incluindo a excitação e a relação sexual, o parto e os cuidados infantis e as diferenças e semelhanças corporais e sexuais. Trata-se de uma das expressões a partir das quais o gênero toma forma, com implicações na política, nas instituições e na autopercepção das pessoas e suas relações.

Assim, embora o gênero não se resuma à arena reprodutiva, ele é a expressão social de como tornamos a arena reprodutiva significativa, posto que o vínculo com essa arena não diz respeito ao ato biológico de ter filhos ou não, mas é simbólica e coletivamente demarcada. Para Mohr e Almeling (2020, p. 166), “a reprodução emerge como um dispositivo central de ordenação da sociabilidade sem que a sociabilidade seja limitada ou confinada pela reprodução” [3] (tradução nossa). E é por isso que

[...] ordenar a vida social por meio da política de reprodução ou de acordo com a arena reprodutiva é [...] uma construção social com consequências para o modo como imaginamos e vivemos as relações sociais [4] (MOHR; ALMELING, 2020, p. 166) (tradução nossa).

A partir do conceito de arena reprodutiva, compreendemos por que as materializações comunicacionais e sociais da infertilidade acionam homens e mulheres de maneiras diferenciadas, estando imbricadas às simbologias relacionadas ao filho biológico, ao relacionamento do casal e aos papéis sociais correlacionados. Bute et al. (2010) apontam que no discurso público em contextos norte-americanos e europeus, a infertilidade feminina é organizada discursivamente a partir da noção de escolha (frequentemente posta na forma de um embate entre vida familiar e profissional) sobre a hora certa de engravidar, transversalizada pelo envelhecimento reprodutivo da mulher.

Em relação ao homem, é a virilidade que entra em questão e se torna o principal tema que organiza o discurso. Para Culley, Hudson e Lohan (2013), os poucos estudos sociais de infertilidade que se concentram em homens argumentam que eles sofrem de um conjunto específico de dificuldades associado a uma ameaça percebida à masculinidade, “amplamente relacionado à ligação de masculinidade com potência e virilidade, indexada pela ‘paternidade’ de uma criança” [5] (CULLEY; HUDSON; LOHAN, 2013, p. 228) (tradução nossa). Como, então, as tecnologias reprodutivas apelam aos homens em suas convocações para o consumo?

Segundo Kroløkke (2020), em um estudo feito em 2017 foi apontado que, nos últimos anos, os homens foram discursivamente implicados como “reproconsumidores” de tais tecnologias. A partir do estudo das estratégias de marketing utilizadas por empresas voltadas à biomedicalização da fertilidade nos Estados Unidos, Reino Unido, Dinamarca e Japão, a autora mostra que são engendrados discursos voltados a masculinidades reprodutivas “proativas” e “preocupadas com a prevenção”, em uma perspectiva de otimização contínua da reprodução masculina.

A ligação entre fertilidade e virilidade nesse tipo de dispositivo comunicacional é um tropo potente, como discutido por Vázquez (2018) em um estudo sobre reportagens que abordavam o tema da infertilidade publicadas na revista Pais & Filhos entre 1968 e 2000. As matérias sobre mães tentantes com dificuldades

[...] apresentam imagens de crianças, fotos de mulheres com o olhar voltado para o horizonte [...] e até uma reportagem com a foto de um belo e enfeitado berço, porém vazio, sem nenhum bebê. Em contrapartida, as poucas reportagens sobre a esterilidade masculina não estão associadas às imagens de crianças ou berços. (VÁZQUEZ, 2018, p. 5)

As reportagens sobre esterilidade masculina estudadas por Vázquez (2018) eram costumeiramente acompanhadas por fotografias genéricas de homens com calça jeans justa, centradas na genitália. No texto, “pode-se observar que, quando a infertilidade ou a esterilidade feminina eram o tema, não havia, em nenhum momento, vinculação com o desejo sexual” (VÁZQUEZ, 2018, p. 5). Em compensação, “todas as vezes em que a infertilidade masculina foi tratada, houve, em todos os períodos, a menção à potência sexual” (VÁZQUEZ, 2018, p. 5).

Trata-se de formações historicamente construídas. Em um estudo que observa o cenário clínico da infertilidade masculina na França e na Suíça entre 1890 e 1970, Bajeux (2020) argumenta que pacientes e profissionais de saúde não se engajaram apenas em assuntos relacionados à infertilidade, mas a masculinidade do paciente se tornava tópico do discurso. A associação entre fertilidade e masculinidade fazia com que não apenas os homens, mas também os médicos relutassem em explorar o fator masculino da reprodução, elaborando estratégias (como atenuar diagnósticos de infertilidade masculina ou responsabilizar as parceiras pela saúde reprodutiva dos homens) para dispensá-los do ambiente clínico e evitar prejudicar seus sentimentos de masculinidade.

Para lidar com as correlações simbólicas entre reprodução e virilidade, Daniels (2006) propõe o conceito de masculinidade reprodutiva, referindo-se ao conjunto de crenças e suposições sobre as relações dos homens com a reprodução humana. Envolve construções estereotípicas sobre a paternidade como, por exemplo, o entendimento de que os homens são “secundários na reprodução biológica” ou “menos vulneráveis a danos reprodutivos do que as mulheres” [6] (DANIELS, 2006, p. 7) (tradução nossa). Estas formulações, embora muitas vezes desmentidas, ainda fundam sociabilidades engendradas em torno da masculinidade hegemônica e seus lugares comuns (como independência, invulnerabilidade e virilidade). Além disso, são naturalizadas generalizações que posicionam a masculinidade como naturalmente fundada na capacidade reprodutiva dos homens e no gênero dicotômico.

Mohr e Almeling (2020) destacam que, no campo de estudos que aborda as relações entre a arena reprodutiva e as masculinidades, existem alguns pressupostos comuns: o primeiro deles demarca que as conexões entre homens, masculinidades e reprodução não são dadas de antemão, mas se estabelecem no e por meio do social. Além disso, as relações são

[...] (re)estabelecidas e (re)naturalizadas ao longo do tempo, assumindo a forma de um conjunto abrangente e persuasivo de crenças e práticas que informam as autopercepções, personificações, relacionamentos e instituições sociais [7] (MOHR; ALMELING, 2020, p. 168) (tradução nossa).

Relações que vão sendo contestadas e reformadas na vida reprodutiva dos homens a partir de agenciamentos individuais e coletivos. Por fim, os vínculos entre homens, masculinidades e reprodução se manifestam tanto no nível institucional das políticas e práticas sociais organizadas quanto no nível individual dos elos e biografias dos indivíduos.

Nos próximos itens deste estudo, iremos analisar as convocações discursivas para o consumo das tecnologias reprodutivas para os homens, construídas e mediadas por meio de discursos relacionados ao corpo, aos cuidados médicos e a um modo de subjetivação vinculados a culturas de consumo.

O protagonismo médico, o corpo sem pessoa e seus bioprodutos

Nos materiais dos sites das clínicas de fertilidade voltados para homens e nas reportagens sobre infertilidade masculina analisados no presente artigo, é possível observar a articulação de um discurso específico sobre corporalidade. Trata-se de um corpo que, como discutiremos a seguir, é biomedicalizado — sede de processos vitais, marcados por fisiologias e anatomias específicas, compartimentado e particularmente marcado por suas partes defeituosas.

Consiste, ainda, em um corpo atravessado por biopoderes, uma vez que “um polo do biopoder foca em uma anatomopolítica do corpo humano, buscando maximizar suas forças e integrá-lo em sistemas eficientes” (RABINOW; ROSE, 2006, p. 28), particularmente marcado pelas possibilidades de melhoramento. O saber médico ganha destaque como protagonista de uma ação capaz de consertar as partes imperfeitas do corpo e transformar o orgânico defeituoso em um bioproduto — em uma versão melhorada da natureza, um corpo com um valor a mais após a sua passagem por processos médico-industriais.

Ramírez-Gálvez (2009) chama a atenção para a “corporalidade sem pessoa” presente nos materiais de divulgação de clínicas de fertilidade brasileiras e norte-americanas no final do século XX e início do XXI. O corpo é visto não a partir de sua integralidade, mas sim, são as partes do sistema que compõem o objeto do discurso. Isso pode ser encontrado em alguns materiais que nós analisamos no presente artigo, como o da clínica Conrado Alvarenga. Em um texto que expõe as causas da infertilidade masculina é apresentado um gráfico “revelando queda expressiva na concentração de espermatozoides no mundo” (CONRADO ALVARENGA, 2021, On-line). Como principais causas, são apontadas alterações hormonais ou a varicocele, que é

[...] a dilatação das veias do testículo. O processo é semelhante ao que acontece nas varizes de outros locais do corpo: há uma insuficiência das veias de drenagem dos testículos que leva a um represamento sanguíneo e a uma dilatação venosa com refluxo sanguíneo. (CONRADO ALVARENGA, 2021, On-line)

O detalhamento sobre as explicações biológicas das causas da infertilidade masculina está presente em todos os materiais analisados, como é possível observar em relação à clínica DSZ Infertilidade Masculina, que também aponta a azoospermia — “a ausência de espermatozoides no ejaculado, diagnosticada no espermograma após exaustiva análise e centrifugação de todo o material ejaculado” (DSZ, 2021, On-line) — e o hipogonadismo como causas importantes. Em um dos textos do site é possível ler que

[...] faço nas consultas com meus pacientes uma analogia com um motor de um carro: de nada adianta ter um carro com ótimo motor se a gasolina existente é pouca. O motor, por melhor que seja, irá andar muito pouco devido à falta de combustível. Esta situação é conhecida como Hipogonadismo Hipogonadotrófico ou Insuficiência Testicular Secundária. Os hormônios FSH e LH, responsáveis respectivamente pela produção de espermatozoides e testosterona pelo testículo estão ausentes ou em pouca quantidade. (DSZ, 2021, On-line)

Nos textos disponibilizados pelas clínicas de fertilidade analisados neste estudo é possível observar um corpo que é tratado não apenas desde suas partes, mas sim, a partir de seus elementos defeituosos, carentes de conserto, desvinculado de sua integralidade ou individualização, a partir da objetividade do conhecimento médico — tal como um carro que precisa de um mecânico para o seu pleno funcionamento.

Nessa maneira de apresentar as causas da infertilidade, está subjacente um discurso que disseca todo o processo de reprodução a partir de suas partes constituintes, mostrando o processo a partir de “sequências de estágios autocontidos, isolados e manipuláveis” (RAMÍREZ-GÁLVEZ, 2009, p. 100). O corpo, tornado objeto de intervenção médica, permite que as partes e processos em desajuste possam ser medidas, consertadas e, até mesmo, melhoradas a partir de processos de intervenção.

As técnicas de melhoria da qualidade do sêmen são enfatizadas nessas produções. No guia Infertilidade masculina, da clínica Vida Bem Vinda, é explicado como funciona o espermograma: “é o teste de laboratório de sêmen que analisa o líquido ejaculado. Sob um microscópio, o número, a forma e o movimento dos espermatozoides são analisados” (VIDA BEM VINDA, 2021, On-line). O guia enfatiza que “equipamentos especiais e experiência da equipe de Andrologia são necessários para uma análise seminal com precisão” (VIDA BEM VINDA, 2021, On-line).

A partir do tratamento oferecido pelas clínicas, torna-se possível reverter os quadros anormais que eventualmente tenham sido diagnosticados. No material de divulgação da clínica ArtFértil lê-se que:

[...] nos casos em que a infertilidade é causada por distúrbios hormonais, é indicada a reposição hormonal, que possibilita o reequilíbrio dos níveis e, consequentemente, a regularização da produção dos espermatozoides. Quando o problema é causado por processos inflamatórios, são prescritos antibióticos orais ou injetáveis. (ARTFÉRTIL, 2021, On-line)

Por fim, “a administração de medicamentos específicos também pode contribuir para melhorar a função sexual” (ARTFÉRTIL, 2021, On-line). No material jornalístico, o mesmo direcionamento é adotado. O jornal Estadão, em reportagem assinada por Pollo (2017), destaca que

[...] para os homens, a investigação costuma iniciar com uma conversa com o médico sobre o histórico do paciente. Se necessário, o especialista pode pedir um espermograma, exame que identifica três parâmetros: a quantidade de espermatozoides, a motividade — ou seja, como eles se mexem e quantos nadam ‘para frente’ — e o formato. Quando se constata alguma alteração, o médico poderá indicar o tratamento necessário. (POLLO, 2017, On-line)

Nesse material utilizado na pesquisa é possível observar que a reprodução, na concepção apresentada por Rabinow e Rose (2006), se torna “objeto de uma série de formas de conhecimento, tecnologias e estratégias” que tem “pouco a ver com a sexualidade” e a infertilidade se torna “uma condição médica potencialmente remediável” (RABINOW; ROSE, 2006, p. 43), ou seja, passível de uma intervenção socialmente legitimada. A intervenção médica dá uma espécie de valor a mais para o biológico, a partir de melhoramentos que “só são factíveis através da mediação técnica de pesquisadores, médicos e de outros profissionais da área da saúde, que possibilitam a transformação de partes do corpo humano em mercado” (RAMÍREZ-GÁLVEZ, 2009, p. 88).

E, assim, “sem essa mediação, [...] não teriam nenhum valor de uso, tampouco valor de troca” (BERLINGUER; GARRAFA, 2001 apud RAMÍREZ-GÁLVEZ, 2009, p. 88) (grifos do autor). Os homens são convocados a uma ética do melhoramento do corpo a partir da intervenção médica — em materiais que dizem pouco sobre a eficácia desses métodos. Está subjacente ao discurso uma responsabilização do indivíduo que deve buscar tais melhoramentos para conseguir o sonho do filho consanguíneo, mesmo que isso signifique o engajamento em obrigações onerosas. Afinal, o discurso apresenta uma solução simples para a infertilidade masculina, desde que os indivíduos se engajem nas práticas médicas.

As partes do corpo e seus produtos, como o sêmen, por exemplo, se tornam mercadorias, bioprodutos — uma vez que dotados de biovalor. Tal como exposto por Kroløkke, Dickinson e Foss (2016), o biovalor é um tipo de mais-valia que ganha potencialidade quando a matéria biológica é processada em laboratórios e ganha novos valores por meio desses processos (como, por exemplo, placentas transformadas em cosméticos).

Assim, nesses processos, em que “a produtividade dos tecidos se cruza com a produtividade dos mercados” [8] (KROLØKKE; DICKINSON; FOSS, 2016, p. 140) (tradução nossa), há a agregação de um valor, um biovalor, que

[...] mostra como a matéria biológica está alinhada não apenas com a ciência e a medicina, mas também está simultaneamente situada dentro de uma cultura capitalista mais ampla em que o lixo pode, em última análise, ser transformado em uma mercadoria valiosa [9] (KROLØKKE; DICKINSON; FOSS, 2016, p. 140) (tradução nossa).

No biovalor está subjacente a potencialidade do produto biológico — de forma que ele representa não apenas o que ele é, mas o que pode se tornar depois de passar por processos médico-industriais.

De acordo com esse discurso, há uma estruturação demarcada para os atores da ação: o corpo, o médico e o paciente. Quanto ao corpo, ele é desenhado como um lugar compartimentado, cujos processos são objeto de conhecimento, de eventuais melhoramentos e potenciais biovalores que podem ser alcançados após intervenção médica. Em relação ao profissional de medicina, é ele o ator que assume a condição de herói, de forma que

[...] o medicamento e o especialista constituem os protagonistas da geração da vida, o helping hand, que sugere parte das estratégias através das quais se coloca em ‘evidência’ a ineficiência da natureza e o domínio da mesma mediante a biotecnologia (RAMÍREZ-GÁLVEZ, 2009, p. 94) (grifos do autor).

Já o paciente infértil é convocado ao consumo a partir uma ética somática (ROSE, 2013), voltada à responsabilização do indivíduo para o melhoramento contínuo do corpo, de forma que ele deve se engajar em práticas que permitam que o sonho de ter um filho biológico se realize. O discurso coaduna a paternidade ativa aos imperativos da masculinidade hegemônica relacionados ao engajamento e à proatividade diante dos problemas. Tal ética somática se materializa em outros elementos do discurso voltado ao cuidado de si, como discutiremos a seguir.

Discursos sobre as paternidades proativas e o cuidado de si

Uma das constantes narrativas presentes em reportagens sobre infertilidade masculina analisadas por nós é a censura em relação à demora masculina em procurar os consultórios para tratamento. Em uma matéria do G1 (INFERTILIDADE..., 2021, On-line), lê-se que “os homens, ensinados desde muito cedo a serem os provedores, abdicarem dos medos e se manterem ‘fortes’, [...] viram as costas ao consultório para o tratamento da infertilidade”. A revista GQ, em reportagem assinada por Xavier (2020), alerta que “aspectos sociais e psicológicos podem atrapalhar a busca por tratamento, já que nós, homens, fomos ensinados que a masculinidade está diretamente ligada à fertilidade e virilidade”. Nesses materiais, é possível notar um tom de denúncia a aspectos da masculinidade tóxica vinculada a ideários de virilidade — e que prejudicariam a saúde reprodutiva masculina.

Assim, embora como discutimos anteriormente, a virilidade seja um discurso constantemente urdido para convocação masculina ao consumo de tais produtos, também é possível notar que há um deslocamento de sentido em relação ao que significa ser viril. A convocação ao consumo se dá através da explicitação dos aspectos tóxicos que podem afastar o homem de um tratamento adequado. Há, aqui, um deslocamento discursivo em que ser viril é reconhecer os elementos tóxicos da masculinidade hegemônica (especialmente em questões de saúde, que afastam os homens do tratamento) e a busca pelo imperativo de que a virilidade e a responsabilidade com o cuidado de si estariam correlacionados. Em tal censura, está subjacente um discurso que reclama por uma paternidade mais ativa desde a concepção e é direcionada a um apelo para um maior cuidado do corpo e de si como preparação para paternidades proativas e responsáveis. O discurso da virilidade continua importante como mecanismo de convocação ao consumo, mas sob um outro significado, da ação ativa no mundo.

A paternidade responsável desde a concepção é reforçada, também, nos textos que falam sobre os cuidados com a saúde geral que um homem deve ter caso ele queira ser pai. A Gazeta (CINCO..., 2021, On-line), por exemplo, aponta, como causas da infertilidade masculina “o sedentarismo, uso de álcool e drogas e má alimentação”. Isso também está presente no material de divulgação das clínicas, como pode ser observado no site da Vida Bem Vinda, que indica também possíveis causas da infertilidade: “[...] má nutrição, exposição a produtos tóxicos, obesidade, exposição excessiva ao calor testicular, excesso de exercícios físicos, uso de anabolizantes, uso de drogas, como a maconha e a cocaína, além do tabagismo” (VIDA BEM VINDA, 2021, On-line).

No guia Infertilidade masculina, produzido pela mesma clínica, recomenda-se ainda que “se você trabalha em um cargo que pode afetar sua fertilidade, é importante usar roupas de proteção e seguir as diretrizes de segurança e saúde ocupacional” (VIDA BEM VINDA, 2021, On-line) e evitar a exposição a produtos químicos prejudiciais.

Nesses textos observamos que a medicina não atua somente na função de cura, mas assume “uma função política de criação e transmissão de normas sobre o corpo, a saúde e o comportamento no contexto da biopolítica” (FOUCAULT, 1997 apud RAMÍREZ-GÁLVEZ, 2009, p. 100). Os materiais analisados estão repletos de orientações sobre a vida saudável que convocam os homens inférteis para uma postura proativa em relação à saúde geral e reprodutiva que se esparrama sobre os hábitos cotidianos do sujeito. Os homens são convocados à responsabilização dirigida à maximização das potencialidades do corpo através da adoção de hábitos saudáveis, em um espelhamento entre a paternidade proativa e os cuidados consigo mesmo em relação a sua saúde geral. Para ser pai, portanto, o sujeito é convocado a ser um indivíduo com hábitos saudáveis, por intermédio de um regime do cuidado de si vinculado à ideia de sujeito moral ativo e engajado na paternidade.

Esse tipo de discurso, voltado ao melhoramento do corpo e a preocupação com os cuidados de saúde para uma melhor concepção foi, durante muito tempo, mais direcionado para as mulheres do que para os homens, especialmente vinculados ao desejo de engravidar e aos cuidados durante a gravidez. O acompanhamento médico constante, a adoção de hábitos de vida saudáveis e a preocupação com a fertilidade foram, por muito tempo, temáticas consideradas femininas, em literaturas de aconselhamento para mães repletas de normatividades sobre o que comer ou quais tipos de exercícios físicos e cuidados devem ser adotados por tentantes ou gestantes.

A vinculação do masculino a esse discurso prolonga os cuidados e preparações para o corpo saudável para a gravidez também para os pais, em uma convocação para o consumo que articula a paternidade ativa desde a concepção. Tal discurso encontra ecos, também, em uma articulação discursiva voltada ao “reproempreendedorismo” de sucesso (KROLØKKE; PANT, 2015), conforme discutiremos na sequência.

Articulações discursivas do “reproempreendedor” de sucesso

Por “reproempreendedores” (no original, repropreneurs) ou empreendedores reprodutivos, Kroløkke e Pant (2015) se referem a indivíduos que se engajam no processo da reprodução a partir de uma autorreflexividade baseada em discursos neoliberais, no cruzamento de debates biopolíticos e bioéticos que respondem a critérios individuais, coletivos e afetivos. O conceito se refere à forma como os indivíduos negociam com práticas do mercado com o objetivo de alcançar o desejo de ter um filho — o que envolve a escolha de uma clínica, de um tratamento, de um profissional médico e da adoção de hábitos de vida e de produtos voltados para a concepção.

É uma definição que abrange aspectos vinculados ao consumo simbólico desses serviços, bem como o modo como os próprios indivíduos se agenciam no processo, a partir de simbologias e mediações culturais. Rudrappa (2014), em um estudo que investiga as autorrepresentações de casais homoafetivos que buscam barrigas de aluguel, evidencia que narrativas vinculadas à competência, estabilidade e sucesso estão frequentemente presentes nas autopercepções dos indivíduos que se engajam para demonstrar um “reproempreendedorismo” bem-sucedido. Assim, o amor parental assume a forma não apenas do desejo de ter um filho, mas também, se vincula a como os sujeitos se engajam e se comprometem na busca de recursos, serviços e valores que materializam esse engajamento pessoal.

É possível observar esse apelo ao “reproempreendedorismo” no material analisado. Nas reportagens jornalísticas, isso se materializa em histórias de sucesso do tratamento, de forma que os resultados das intervenções médicas são ilustrados por histórias de vida, como é o caso relatado na Folha de Pernambuco (FERRAZ; CORRÊA, 2021, On-line): “feita a correção, o espermograma [...] demonstrou a evolução das taxas e, sete meses após a cirurgia, Renata [...] descobriu que estava grávida de Júlio César, hoje com 1 ano de idade”. A exposição de histórias de sucesso renova a perspectiva de que, para os homens inférteis, basta boa vontade e dinheiro para a realização do sonho de ter filhos biológicos, uma vez que a medicina oferece uma variedade de soluções para os problemas físicos.

Muitas clínicas também remetem a histórias de sucesso. O CEFERP destaca a seguinte história de Silvia e Tales (nomes fictícios, conforme o site): “Após três anos de relacionamento decidiram ter seu primeiro filho, mas o bebê não chegava após dois anos de tentativa. Foi aí que uma grande jornada se iniciava” (CEFERP, 2021, On-line) e, depois de algumas investigações médicas

[...] o inesperado aconteceu… não foram identificados espermatozoides no espermograma. O exame foi repetido e nada da tão esperada ‘sementinha’ masculina.  [...] Tales foi submetido à PESA e a grande notícia chegou: havia muitos espermatozoides! A fábrica de espermatozoides estava intacta, apenas o caminho para saída destes gametas estava obstruído. [...] Na primeira transferência foram colocados dois embriões no forninho e o positivo chegou. E a batalha contra a azoospermia foi vencida com o nascimento de um lindo meninão! (CEFERP, 2021, On-line)

O site da DSZ Infertilidade Masculina traz depoimentos de pacientes como Fausto, por exemplo:

[...] na época do diagnóstico, eu estava com 26 anos recém-completados e todo o processo foi muito rápido. Diagnóstico do câncer em novembro e, em dezembro, já fiz a cirurgia de retirada do testículo. Antes, por orientação do urologista, recorri à criopreservação de sêmen. [...] A criopreservação foi importante, pois tirou um fator de preocupação, não teve influência direta no tratamento, mas era um conforto não precisar pensar neste ponto durante a quimio (DSZ, 2021, On-line).

A partir desses textos, é possível observar que o “reproempreendedor” de sucesso é discursivamente elaborado como um indivíduo capaz de identificar os bens e serviços que ele deve adquirir para conseguir a parentalidade e, além disso, ser capaz de conseguir acesso a eles, já que se trata de tratamentos caros, que exigem empenho financeiro e emocional. Tornar-se pai não materializa apenas a realização do sonho de ter o filho consanguíneo, mas articula-se à narrativas de êxito em outras áreas da vida, tanto do ponto de vista afetivo quanto financeiro. Riggs e Due (2019) chamam a atenção para o fato de que, a partir do discurso “reproempreendedor”, há uma mitigação da fragilidade dos pais tentantes, uma vez que o foco da narrativa se volta para as possibilidades que o mercado oferece. Esses indivíduos podem, assim, do ponto de vista do discurso, reescrever a sua vulnerabilidade como uma história de engajamento e sucesso (RIGGS; DUE, 2019). As narrativas frequentemente apelam para a figura de um sujeito capaz de driblar as dificuldades da infertilidade, a partir de seu empenho pessoal.

Subjacente a esse discurso, está a ideia de que os homens devem se considerar responsáveis por sua fertilidade e por gerenciar as falhas e riscos que podem ocorrer durante o processo. Para Baldwin (2018), “os valores neoliberais de responsabilidade individual e autorrealização” [10] emolduram o discurso “por meio de um processo de responsabilização” [11], enquadrando o consumidor dessas tecnologias “como um indivíduo estratégico, responsável por fazer escolhas” [12] (BALDWIN, 2018, p. 870) (tradução nossa) para atingir um determinado projeto de vida.

Considerações Finais

O mercado de tecnologias reprodutivas apela de maneiras diferenciais para homens e mulheres. Ao passo que o discurso público sobre infertilidade feminina gira em torno da idade reprodutiva da mulher e de uma aparente dicotomia na escolha entre vida familiar e profissional, o consumo masculino das tecnologias de reprodução é convocado por elementos que apelam a ideários de masculinidade e virilidade. Muitas vezes, tal associação é feita a partir de discursos que convocam a ideia de que ser viril é cuidar de si e do outro.

Com base na análise do material consultado, é possível perceber que o mercado das tecnologias reprodutivas para os homens é construído e mediado por meio de três vertentes discursivas que se referem: (1) aos elementos defeituosos do corpo como passíveis de uma intervenção médica socialmente legitimada, que traz subjacente uma responsabilização do indivíduo que deve buscar transformar o biológico em bioprodutos a partir do melhoramento do corpo; (2) uma orientação geral para a vida saudável por intermédio de um discurso do cuidado de si vinculado à ideia de sujeito moral ativo e engajado na paternidade; e, por fim, (3) no discurso sobre o envolvimento do sujeito em práticas vinculadas a um “reproempreendedorismo” de sucesso, que espelha o sonho de ter filhos a outros elementos de êxito na vida como o próprio acesso a tais tecnologias reprodutivas.

Tais discursos encontram reverberação nas demandas sobre formas mais ativas de paternidade que devem estar presentes desde o envolvimento nos trâmites que envolvem a concepção — um assunto que, historicamente, era destinado às mulheres, mas que, em configurações mais recentes, implicam também os homens em uma ética do cuidado (de si e do outro) e da responsabilização. Além disso, o discurso se abriga em formas estáveis vinculadas às masculinidades hegemônicas, uma vez que vincula a reprodução e o sonho do filho consanguíneo a valores como sucesso financeiro (acesso aos tratamentos), à resiliência, força de vontade e empenho pessoal.

O “reproempreendedorismo” veiculado por tais materiais convoca o sujeito ao consumo ao atribuir as intervenções médicas no corpo infértil de um valor clínico, industrial e afetivo. A tecnologia é materializada como um mecanismo capaz de acabar com as falhas da natureza, desde que manipulada por sujeitos engajados, ativos e bem-sucedidos.

Notas

[1] “Consumption is a set of social practices through which reproduction is subject to market power, but it is also a means by which people express their imagination, creativity and needs”. (FLETCHER, 2006, p. 44)

[2] “[…] research studies are far more likely to be focused on the understandings and experiences of women than those of men”. (CULLEY; HUDSON; LOHAN, 2013, p. 225)

[3] “[...] reproduction emerges as a central ordering device of sociality without sociality being limited to or confined by reproduction”. (MOHR; ALMELING, 2020)

[4] “Ordering social life through the politics of reproduction or according to the reproductive arena is [….] a social construction with consequences for how we imagine and live social relations”. (MOHR; ALMELING, 2020, p. 166)

[5] “[....] largely related to the linking of masculinity with potency and virility, indexed by ‘fathering’ a child” (CULLEY; HUDSON; LOHAN, 2013, p. 228).

[6] “secondary in biological reproduction [...] or less vulnerable to reproductive harm than women”. (DANIELS, 2006, p. 7)

[7] “[...] (re)established and (re)naturalized over time taking form as a pervasive and persuasive set of beliefs and practices that inform self-perceptions, embodiments, relationships, institutions, and societies throughout”. (MOHR; ALMELING, 2020, p. 168)

[8] “[...] the productivity of tissues intersects with the productivity of markets”. (KROLØKKE; DICKINSON; FOSS, 2016, p. 140)

[9] “[...] shows how biological matter is aligned not only with science and medicine but is also simultaneously situated within a larger capitalist culture in which trash can ultimately be transformed into a valuable commodity”. (KROLØKKE; DICKINSON; FOSS, 2016, p. 140)

[10] “neoliberal values of individual responsibility and self-actualisation”. (BALDWIN, 2018, p. 870)

[11] “through a process of responsibilisation”. (BALDWIN, 2018, p. 870)

[12] “as a strategic, choice making, responsibilised individual”. (BALDWIN, 2018, p. 870)

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