A persistência da linha:
lógicas processuais e linearidade nas tecnologias da comunicação
Thales Estefani1
Resumo
A consciência histórica do ser humano é inaugurada, de acordo com Vilém Flusser, a partir do desenvolvimento da linguagem verbal. Este é o cerne da ideia de “pensamento-em-linha” elaborada pelo filósofo. Tendo este conceito como inspiração temática e ponto de partida, busca-se demonstrar a persistência de lógicas processuais lineares e das metáforas da linha nas estruturas e formas expressivas das tecnologias da comunicação humana no decorrer da história. Entendidas como processos, as tecnologias da comunicação não são encaradas, entretanto, como contínuos indiscrimináveis desde suas remotas origens na linguagem e na contagem; são pontuadas e descritas sinteticamente, enfatizando suas incessantes inovações. É realizada uma breve digressão ao período da Revolução Industrial, orientada para compreender o consequente desenvolvimento das tecnologias computacionais, relatando suas origens na aplicação de teorias matemáticas à indústria têxtil. Em seguida, são abordados os efeitos dessas tecnologias sobre a criação das mais recentes expressões comunicacionais contemporâneas, como os jogos digitais e a realidade virtual. Neste ensaio, a linha é vista como um símbolo do desenvolvimento comunicacional, mesmo nos emaranhados e nós que constituem a multilinearidade das possibilidades da comunicação humana.
Palavras-chave
Tecnologias da Comunicação; História da Comunicação; Processo; Pensamento-em-Linha; Vilém Flusser.
1 Doutorando em Materialidades da Literatura, bolsista FCT (Universidade de Coimbra, Portugal); Mestre em Artes, Cultura e Linguagens, bolsista CAPES (IAD-UFJF); graduado em Comunicação Social (ECo-UFRJ). E-mail: thales.chaun@gmail.com.
Line persistence:
procedural logics and linearity in communication technologies
Thales Estefani1
Abstract
According to Vilém Flusser, the historical consciousness of the human being starts with the development of verbal language. This is at the heart of the idea of “line thought” elaborated by the philosopher. Taking this concept as thematic inspiration and starting point, we seek to demonstrate the persistence of linear logics of process and metaphors of line in the structures and expressive forms of human communication technologies throughout history. Understood as processes, communication technologies are not seen, however, as indiscriminate continuums from their remote origins of language and counting; they are pointed out and synthetically described, emphasizing their incessant innovations. A brief digression to the period of the Industrial Revolution is carried out, aimed at understanding the consequent development of computational technologies, reporting its origins in the application of mathematical theories to the textile industry. Then, the effects of these technologies on the creation of the most recent contemporary communicational expressions, such as digital games and virtual reality, are discussed. In this essay, the line is seen as a symbol of communicational development, even in the tangles and nodes that constitute the multilinearity of the possibilities of human communication.
Keywords
Communication Technologies; Communication History; Process; Line Thought; Vilém Flusser.
1 Doutorando em Materialidades da Literatura, bolsista FCT (Universidade de Coimbra, Portugal); Mestre em Artes, Cultura e Linguagens, bolsista CAPES (IAD-UFJF); graduado em Comunicação Social (ECo-UFRJ). E-mail: thales.chaun@gmail.com.
O trajeto histórico da comunicação humana tem um ponto inicial de difícil definição, mas é possível argumentar que nossos mais antigos ancestrais começaram a se comunicar da mesma forma que outros mamíferos: com gritos, grunhidos e posturas corporais. Com o volume do cérebro e a capacidade de aprendizagem aumentando gradativamente no processo evolutivo, os sistemas de comunicação foram ficando mais elaborados, levando ao início da articulação da linguagem — por volta de 40 mil anos atrás, segundo indícios que apontam que as características fisiológicas das cordas vocais do Homo sapiens já forneciam possibilidades para desenvolver a fala[1] (DEFLEUR; BALL-ROKEACH, 1993, p. 23) (tradução nossa). Entretanto a constituição de uma linguagem estruturada também pressupõe processos de iteração, variação, estabilização e difusão, o que demanda tempo — trata-se de uma construção. É nesse sentido que Vilém Flusser definiu a comunicação humana como um processo artificial, visto que se baseia em “artifícios, descobertas, ferramentas e instrumentos, a saber, em símbolos organizados em códigos” (FLUSSER, 2007, p. 89).
Apesar de classificar a comunicação como artificial, o que poderia sugerir uma diferenciação entre natureza e cultura, Flusser não trata tal característica como condição fixa, afirmando que ao aprendermos um código “tendemos a esquecer a sua artificialidade” (FLUSSER, 2007, p. 90). Se recorrermos a certa perspectiva da ciência cognitiva, é possível compreender como cultura e natureza agem conjuntamente e como esse processo transforma diretamente a mente humana. Andy Clark (2003) defende — a partir dos conceitos de embodied, situated and distributed cognition — que a fusão entre organismos biológicos e matrizes sociotecnológicas para desempenhar funções no ambiente trata-se de uma característica intrinsicamente humana[2]. A linguagem verbal pode ser entendida como uma dessas matrizes sociotecnológicas — estrutura externa criada e mantida por agentes sociais e transmitida culturalmente — que tornam possível “formas totalmente novas de pensamento e razão”[3] (CLARK, 2006, p. 370) (tradução nossa). Outras tecnologias e processos de comunicação, tal qual a linguagem, apesar de artificiais, tornaram-se essenciais na nossa relação intersubjetiva e com o ambiente ao estabelecer uma codificação do mundo; “um mundo construído a partir de símbolos ordenados” para a nossa apreensão (FLUSSER, 2007, p. 96). A escrita, por exemplo, tornou esse processo de ordenação ainda mais evidente.
As primeiras formas de escrita eram bastante pictóricas, representando ideias por desenhos estilizados. A partir do desenvolvimento gradual e de processos de simplificação e transformação, esses desenhos deram origem a sinais gráficos mais similares às letras. Especialmente inovadores neste processo foram os sumérios, que “por volta de 1700 a.C. [...] tiveram a ideia de fazer cada pequeno símbolo estilizado representar um determinado som em vez de uma ideia” (DEFLEUR; BALL-ROKEACH, 1993, p. 34). Iniciava-se o caminho para o desenvolvimento da escrita alfabética como conhecemos no ocidente.
A escrita fez com que a humanidade organizasse ainda mais o pensamento porque pressupõe acrescentar cada elemento pensado, um após o outro, numa estrutura capaz de ser difundida e compreendida. De acordo com Flusser, as linhas de texto são discursos em “que cada ponto é um símbolo de algo que existe lá fora no mundo (um ‘conceito’). As linhas de texto, portanto, representam o mundo ao projetá-lo em uma série de sucessões [...] na forma de um processo” (FLUSSER, 2007, p. 103). A metáfora flusseriana está em conformidade com uma das possíveis definições matemáticas da linha (ou reta): uma categoria abstrata unidimensional caracterizada por uma sucessão de pontos — também pode ser identificada pelas possíveis posições de um ponto em deslocamento contínuo.
Essa forma de representação do mundo, como um código de pontos sucessivos que só é compreendido se decifrado e sintetizado ao final da linha, tem um efeito drástico na experiência temporal humana, fazendo com que ela própria adquira um aspecto linear. “Com a invenção da escrita começa a história, não porque a escrita grava os processos, mas porque ela transforma as cenas em processos” (FLUSSER, 2007, p. 133).
Vilém Flusser defende que tal lógica do processo — o “pensamento-em-linha” — é bastante diferente da lógica de outras formas de comunicação como, por exemplo, a comunicação por imagens; muito usada antes da escrita e mesmo depois, no contexto religioso, nas artes plásticas e nos meios visuais da comunicação contemporânea (FLUSSER, 2007, p. 104). A leitura de linhas obedeceria a uma estrutura imposta em que se segue o fluxo das informações da esquerda para a direita, de cima para baixo (no ocidente). Ao ler uma imagem, em contrapartida, estaríamos movendo-nos com alguma liberdade por uma estrutura proposta — sugerida pelas técnicas de composição da imagem (FLUSSER, 2007, p. 104). Contudo, o próprio Flusser admite que a descrição acima “sugere que as duas leituras sejam lineares [...] e que a diferença entre as duas tem a ver com a liberdade” (FLUSSER, 2007, p. 105). O filósofo volta a tentar diferenciar a leitura das imagens da leitura de linhas ao enfatizar que geralmente abarcamos a totalidade da imagem num só lance de olhar, para depois analisá-la de maneira mais minuciosa, no ato do scanning — seguindo aí a estrutura proposta da imagem (FLUSSER, 2007, p. 105). Entretanto, é possível dizer que a linearidade persiste mesmo “num só lance de olhar”. Estudos no âmbito da óptica e o desenvolvimento de equipamentos como o eye tracking mostraram que o olhar não capta uma imagem em sua totalidade, de forma automática, como o faz a câmera fotográfica. Há no olhar uma sequencialidade inescapável: os movimentos oculares sucessivos de busca e fixação, que formam trajetórias complexas de linhas inextricáveis no processo de exploração visual[4]. Portanto, quando consideramos nossa fisiologia na recepção das informações, é possível afirmar que nos deparamos com a persistência da linha mesmo nas experiências de comunicação visual.
Retornando à comunicação verbal, é imprescindível destacar que a estrutura lógica dos textos lineares alcança o status de método no desenvolvimento do pensamento científico (FLUSSER, 2007, p. 134). A lógica sequencial de processo já estava instalada mesmo na linguagem oral — de forma ampla, por exemplo, na cultura retórica da Grécia Antiga[5] —, mas a maior parte do desenvolvimento científico e das transformações advindas deste devem-se à fixação e à difusão do pensamento em linhas sobre um suporte. Esse ato tornou mais viável o debate científico ao criar “um objeto disponível para nós mesmos e para os outros, [...] a estrutura acessível e estável à qual os pensamentos subsequentes podem se vincular”[6] (CLARK, 2006, p. 372) (tradução nossa). A criação de um objeto sobre o qual podemos pensar e recorrer repetidas vezes, amplia as possibilidades de discussão e aprofundamento sobre as ideias que ele materializa, rompendo barreiras temporais e geográficas mais facilmente. Entretanto, esse foi um processo lento, visto que o conhecimento da escrita e leitura esteve confinado por muito tempo em instituições e classes sociais específicas.
A prensa gráfica de tipos móveis de metal foi inventada[7] aproximadamente em 1450, por Johannes Gutenberg. Walter Ong argumenta que a partir desta invenção, as pessoas passaram a escrever de forma diferente, aplicando um controle rígido nunca alcançado no manuscrito. “Com a imprensa, os livros literalmente alinham as coisas de forma mais drástica”[8] (ONG, 1977, p. 88) (tradução nossa), mas não apenas do ponto de vista organizacional — que gerou sistemas de indexação, por exemplo —; “com a impressão, o que se escrevia tendia cada vez mais a ser pensado como um alojamento, eventualmente, em um lugar fixo”[9] (ONG, 1977, p. 88) (tradução nossa). É reconhecido que o status de um texto impresso enquanto fixo ou imutável já foi questionado diversas vezes por indícios históricos e estudos comparativos entre edições de uma mesma obra. O que está em causa aqui é mais um alinhamento do pensamento pela capacidade de fazê-lo difundir-se de forma ampla e consistente, devido à maior reprodutibilidade das linhas possibilitada pela imprensa.
Há um fato comumente observado na história das tecnologias da comunicação: a relação entre uma mudança nos sistemas de mídia e as alterações nos sistemas de circulação de pessoas e mercadorias. “A comunicação de mensagens é — ou, pelo menos, foi — parte de um sistema de comunicação física”; desde as estradas do Império Romano ao fluxo de informações que seguia o comércio além-mar (BRIGGS; BURKE, 2006, p. 31). Assim, os trajetos, caminhos, rotas ou cursos d’água podem também ser metaforizados como linhas por onde as informações são difundidas. “A própria impressão gráfica se difundiu na Europa pelo rio Reno, da Mainz de Gutenberg a Frankfurt, Estrasburgo e Basiléia” (BRIGGS; BURKE, 2006, p. 31). Ela possibilitou que discursos e ideias complexas fossem mais facilmente disseminados pelas rotas físicas na forma de objetos portáveis e produzidos em maior escala, os livros impressos.
Seguindo esse processo, diferentes discursos começaram a penetrar a sociedade. O Renascimento Cultural estimulou um acentuado intercâmbio do conhecimento, assim como o avanço de teorias e aperfeiçoamento de técnicas para a compreensão do mundo. O campo antes conhecido como filosofia natural teve então um grande impulso no século XVII, passando a aplicar novos enfoques metodológicos — como experimentos (controle sistemático) e matematização (descrição quantitativa)[10]. Figuras como Galileu Galilei, com seu perspicillum[11], instrumento ótico para ver a longas distâncias, inauguraram uma nova perspectiva para compreender o mundo e até o universo, possivelmente infinito[12]. Para descrever essas novas concepções era necessária uma linguagem, uma forma de delinear os processos em descoberta, tarefa para a qual a matemática correspondia bem. Segundo Galileu:
A filosofia [i.e. a ciência] está escrita neste grandíssimo livro que permanece continuamente aberto diante dos nossos olhos (refiro-me ao universo) [...] Está escrito em linguagem matemática, e os seus caracteres são triângulos, círculos e outras figuras geométricas sem as quais é humanamente impossível entender uma palavra; sem estes vagueia-se em vão através de um labirinto escuro.[13] (MARINHO, 2015, Online).
O labirinto da metáfora de Galileu nos remete tematicamente ao mito de Teseu e o Minotauro. Para escapar do labirinto em que o monstro habitava, o herói teve de guiar-se com uma linha de lã, presa ao novelo que Ariadne segurava no ponto de partida; era de fato um fio condutor. O universo científico em expansão oferecia múltiplas possibilidades, mas para explorá-las era necessário traçar um novo caminho. Juntamente com a matemática, correntes filosóficas como o racionalismo de René Descartes e o empirismo de Locke e Hume juntaram as pontas de algumas linhas soltas, contribuindo ao seu modo para o desenvolvimento da ciência moderna.
Nesse ponto é crucial fazer menção ao trabalho de Gottfried Wilhelm Leibniz, pensador cujo conhecimento não estava restrito a um só campo. Leibniz produziu estudos matemáticos sobre combinatória, cálculo integral e diferencial, mas uma exploração especialmente importante foi aquela realizada no campo dos sistemas de numeração posicional. Leibniz propôs um sistema constituído da menor base possível, a base 2 (binária), em oposição ao sistema de contagem comumente conhecido, de base 10 (decimal). No artigo publicado em 1703, Leibniz descreve como o uso de numerais formados apenas por zero e um pode simplificar a realização de cálculos. Este trabalho fora escrito “como reação a cartas que trocava com o missionário francês Joachim Bouvet (1656-1730), então residente em Pequim” e faz referência direta a um sistema binário criado na China muito tempo antes (LOPES, 2011, p. 90):
[...] essa aritmética de 0 e 1 contém o mistério das linhas de um antigo rei e filósofo chamado Fuxi, que se crê ter vivido há mais de quatro mil anos, e que os chineses veem como fundador de seu império e de suas ciências. Há várias figuras lineares a ele atribuídas que se relacionam todas a essa aritmética [...] uma linha inteira — significa a unidade ou 1, [...] uma linha quebrada — significa o zero ou 0. (LOPES, 2011, p. 93).
Leibniz argumentou que os chineses haviam perdido a significação daquelas linhas e que faziam “comentários sobre elas procurando encontrar não sei quais sentidos distantes” (LOPES, 2011, p. 93). Os kua, conjuntos de três ou seis linhas, constituem a base do I Ching, texto filosófico clássico e instrumento oracular chinês. No I Ching, especialmente os oito trigramas (kua de três linhas), foram concebidos “como imagens de tudo o que ocorre no céu e na terra [...] num estado de contínua transição, [...] assim como uma transição sempre está ocorrendo, no mundo físico, de um fenômeno para outro” (WILHELM, 2002, p. 5). É curiosa a crítica de Leibniz de que os chineses procurariam encontrar “sentidos distantes” nesses conjuntos de linhas, já que ele próprio se dedicou tanto à elaboração de sua Characteristica Universalis: uma linguagem formal universal de relações lógicas transparentes, cujas categorias e combinações deviam refletir com a estrutura da própria realidade[14]. Leibniz talvez tenha vislumbrado que sua matemática binária pudesse expressar uma grande variedade de cálculos e ideias, mas provavelmente não tenha idealizado como ela influenciaria, no futuro distante, justamente a criação de linguagens formais capazes de representar quase tudo por meio das mídias digitais.
Potentes e graduais processos de transformação nos contextos socioeconômicos europeus naquele período possibilitaram “a uma burguesia em ascensão se inserir na consciência histórica da elite”, na lógica linear proporcionada pela leitura de textos (FLUSSER, 2007, p. 134). A absorção de teorias políticas, econômicas e científicas foi um importante catalisador dos processos de mudança que ocorriam e daqueles que viriam a ocorrer, como a Revolução Industrial. Tecnologias como a máquina a vapor de James Watt só se tornaram possíveis porque aplicaram os conhecimentos de desenvolvimento recente na época. Vilém Flusser nos lembra que as “máquinas são ferramentas projetadas e fabricadas a partir de teorias científicas” (FLUSSER, 2007, p. 37).
Em todos os países que iniciaram o processo de industrialização nesse período, principalmente na Grã-Bretanha, o que ditava o ritmo do crescimento eram as indústrias têxteis. A linha aqui, não metafórica, era trabalhada em equipamentos como “a máquina de fiar, o tear movido a água, a fiadeira automática e, um pouco mais tarde, o tear a motor” (HOBSBAWM, 1977, p. 52). Entretanto, esse processo ocorrera de forma gradual. Primeiramente, a escassez de mão-de-obra barata e eficiente na fiação do algodão fez com que os industriais buscassem a mecanização do processo; já a etapa de produção da tecelagem foi mecanizada mais tarde; e, em 1830, a indústria do algodão se tornaria a única indústria britânica em que predominava a maquinaria a motor (HOBSBAWM, 1977, p. 53).
A digressão sobre o desenvolvimento da ciência moderna e a consequente industrialização europeia apresentada acima pode parecer conectar-se às ideias de linearidade e processo na comunicação por meio de um fio bastante frágil, prestes a arrebentar. Entretanto, trata-se do ponto de virada fundamental deste ensaio. A indústria não se conecta ao “pensamento-em-linha” apenas por materializar o desenvolvimento de teorias científicas. Vilém Flusser nos lembra que um dos efeitos da Revolução Industrial foi retirar a população das pequenas aldeias “para concentrá-la como massa em volta das máquinas, program[ando] essa massa com códigos lineares, graças à imprensa e à escola primária” (FLUSSER, 2007, p. 134). Além disso, a expansão dos efeitos da Revolução Industrial e a emergência das profissões resultantes do ensino técnico possibilitaram que diversas tecnologias fossem amplamente conhecidas e aprimoradas (KIRBY et al., 1990, p. 327). No curso desse desenvolvimento técnico-científico — circuitos elétricos, eletromagnetismo, raios catódicos etc. —, surgiram diversas tecnologias de comunicação.
Em 1837, o telégrafo rompeu a “ligação entre transporte e comunicação das mensagens”, já que um indivíduo não precisaria deslocar-se ou enviar um artefato a alguém para que a informação fosse transmitida — apesar de ainda ser necessária uma linha telegráfica que ligasse duas regiões (BRIGGS; BURKE, 2006, p. 33). Algum tempo depois, a partir de experiências com vibrações sonoras, campos magnéticos e variações de corrente, o telefone foi inventado. Já em 1887, “quando Hertz descobriu as ondas eletromagnéticas, havia em operação extensas linhas de fios e cabos transmitindo mensagens telegráficas e telefônicas”[15] (KIRBY et al., 1990, p. 344) (tradução nossa). A melhor compreensão dessas ondas eletromagnéticas foi o que possibilitou posteriormente o desenvolvimento de outro dispositivo, o rádio, uma tecnologia que transmitia informações por terra e mar, sem o uso das linhas (wireless). Já no século XX, o avanço das pesquisas com ondas eletromagnéticas possibilitou a invenção da televisão, equipamento que “consiste em converter a luz em impulsos elétricos, transmitindo esses impulsos e reconvertendo-os na estação receptora”[16] ( KIRBY et al., 1990, p. 348) (tradução nossa). Apesar de a transmissão das informações via rádio ou televisão não estarem condicionadas fisicamente a uma linha (fios e cabos) ambas são dependentes da rede elétrica. Além disso, há a utilização da linguagem verbal na codificação da informação que transmitem, inescapável da lógica do “pensamento-em-linha”. Bem antes da invenção da televisão, o cinema apresentara também uma forma de sequencialidade da imagem bastante distinta, “em que os fotogramas das cenas se seguem uns aos outros” rapidamente, criando uma linha narrativa que se apresenta ao espectador em perfeita fluidez (FLUSSER, 2007, p. 107).
Marshall McLuhan definiu certos meios de comunicação como possuindo estruturas menos lineares que outros: os jornais e as revistas “são preeminentemente em forma de mosaico”[17] (McLUHAN, 2013, p. 178) (tradução nossa), reunindo diferentes informações descontínuas; essa forma teria ganhado ainda mais relevância através da influência da televisão e sua imagem icônica também em mosaico. Contudo, Janet H. Murray (2003) observa que esses meios criaram padrões de pensamentos aos quais nos acostumamos, de modo que “[s]omos orientados pelo tamanho das manchetes e pela disposição dos artigos na página para nos localizar entre os diferentes tipos de histórias nos jornais” — reconhecer diferentes caminhos, linhas e sequências; da mesma forma, remontamos as “imagens descontínuas em padrões de continuidade mais amplos” quando assistimos a um programa de televisão (MURRAY, 2003, p. 154).
Conforme descrito acima, é possível perceber como a linearidade e a lógica de processo que nascem com a linguagem — a primeira tecnologia fortemente estruturada para comunicar — mantêm-se presentes em alguma medida nas expressões formais ou estruturas dos dispositivos de comunicação que surgem após o desenvolvimento industrial. Neste ponto, faz-se necessário retornar por um instante às indústrias têxteis antes de prosseguir. O que ficou faltando perceber foi como o processo de automatização ocorreu, o que nos faz compreender quais as influências diretas daquele período nas tecnologias de comunicação contemporâneas. Como sugeriu Vilém Flusser (2007, p. 35), é possível reconhecer os homens por suas fábricas.
Em 1804, o francês Joseph Marie Jacquard desenvolveu os primeiros mecanismos que permitiram aos teares selecionar automaticamente suas próprias linhas e repetir operações em sequência[18]. O sistema consistia em um conjunto de cartões perfurados ligados uns aos outros, formando, assim, uma espécie de fita — um padrão linear. Essa fita passava por um conjunto de agulhas metálicas que desciam sobre os cartões, de modo que o padrão de perfurações determinava quais agulhas passavam ou não através do cartão, o que permitia ao tear criar automaticamente complexos padrões têxteis. Esse processo corresponde diretamente à lógica binária[19].
Charles Babbage foi um engenheiro e matemático britânico que trabalhou por muitos anos no desenvolvimento de sistemas mecanizados[20]. Após criar máquinas feitas estritamente para calcular, Babbage passou a dedicar-se a máquinas que pudessem fazer algo além de prever resultados, que pudessem também agir com base nessa previsão. Assim, a concepção da Máquina Analítica marcou sua transposição de uma aritmética de cálculo mecanizada para a computação de propósito geral. Em 1841, após um seminário na Itália, Babbage tivera contato com Ada Lovelace, a quem convidara para se juntar a ele no desenvolvimento da Máquina Analítica (PLANT, 1997, p. 5). Filha única de Annabella Milbanke, matemática, e Lord Byron, o poeta britânico, Ada parece representar um fio de ligação entre duas das tecnologias mais antigas que a humanidade utilizou para entender o mundo e a nós mesmos: a contagem e a linguagem.
A história de Jacquard se cruza com a de Babbage porque o mecanismo empregado na indústria têxtil inspirou o sistema concebido para a Máquina Analítica. E, segundo Ada Lovelace, o que possibilitaria dotar a invenção de Babbage de uma vasta capacidade inerente para seus propósitos era justamente “a introdução do princípio que Jacquard idealizou para regular, por meio de cartões perfurados, os padrões mais complicados na fabricação de brocados”[21] (LOVELACE, 1843 apud PLANT, 1997, p. 18) (tradução nossa). Babbage aperfeiçoou o projeto da máquina, aplicando os cartões, e “Ada produziu o primeiro exemplo do que mais tarde foi chamado de programação de computador”[22] (PLANT, 1997, p. 9) (tradução nossa). No sofisticado sistema automático, seria possível utilizar os cartões várias vezes e depois depositá-los em determinada posição (armazenamento). Quando necessário, seriam trazidos novamente ao uso (processamento). Dessa forma possibilitaria a redução do número de cartões e a capacidade de gerar ciclos de operações (ciclos de busca-execução, assim como viria a ser nos computadores da era digital).
Contemporâneo aos desenvolvimentos de Babbage e Lovelace, outro avanço substancial, que iria impactar profundamente os processos de comunicação futuros, ocorria na matemática pura. Em meados do século XIX, George Boole inventou um sistema de lógica simbólica bastante ambicioso, chamado mais tarde de Álgebra Booleana:
[c]omo o cérebro humano racional usa a lógica para pensar, se encontrássemos uma maneira pela qual a lógica pode ser representada pela matemática, também teríamos uma descrição matemática de como o cérebro funciona (PETZOLD, 2000, p. 87).
Apesar de a afirmação soar um tanto inocente, devido à complexidade do cérebro humano, não há dúvidas de que uma proposta de definição matemática da lógica do pensamento viria a ser revolucionária. E já na primeira metade do século XX, cientistas[23] implementaram a Álgebra Booleana e aritmética binária aos circuitos elétricos, fundamentando as bases para o computador digital.
Atualmente, os dispositivos e os sistemas computacionais tornaram-se os principais meios através dos quais conhecemos o mundo, ou seja, os usamos para nos comunicar em linguagem oral, por linhas de texto, transmissão de imagens estáticas e vídeos. São os instrumentos de trabalho; de sistematização de entidades econômicas e políticas; de projeção de riscos — e de surgimento de novos riscos —; são os artefatos que nos possibilitam formar comunidades que ultrapassam as fronteiras físicas ou mesmo fechar-nos em bolhas de pretensa proteção absoluta. “Desde que aplicamos metodicamente o cálculo ao mundo (ou seja, pelo menos desde a geometria analítica de Descartes), a estrutura do mundo modificou-se a ponto de tornar-se irreconhecível” (FLUSSER, 2007, p. 83). A informática levou a aplicação dessa lógica ao mais elevado nível.
O ato de computar, ou seja, calcular, é visto por Vilém Flusser (2007, p. 84) como “escolher pedrinhas num monte e acumulá-las em pequenos montículos” de maneira a “transformar aquilo que é friamente calculado em algo novo, algo que nunca existiu antes”. Condicionar as nossas formas de comunicação e representação a esse processo de fragmentação e subsequente síntese romperia a lógica do processo, a linearidade que se manteve até então? O próprio Flusser apresenta um fator que abre caminho para a resposta dessa pergunta: “desde que os números foram transcodificados em cores, formas e tons, graças aos computadores, a beleza e a profundidade do cálculo tornaram-se perceptíveis aos sentidos” (FLUSSER, 2007, p. 84). Ou seja, a nossa experiência comum com a computação não encara diretamente o cálculo, o processo fragmentário, mas aquilo que a codificação nos apresenta através dos dispositivos de output.
No meio digital, grande parte das formas de comunicação, ao nível da interface, constituem remediações das mídias antigas. Pensemos no editor de texto que — sem nem mesmo dissimular a metáfora — tem no ato de movimentar a barra lateral de rolagem o mesmo nome do objeto de organização linear do pensamento no qual foi inspirado: scroll (os rolos medievais). No contexto digital, as mensagens orais ou formadas por caracteres em textos continuam a se organizar em rígidas estruturas lineares para que sejam compreendidas; as imagens continuam a nos apresentar caminhos propostos para seguirmos com o olhar; o audiovisual ainda é uma sucessão de “fotogramas” com faixas de áudio acopladas[24]. Entretanto, um observador atento poderia argumentar que no contexto digital existem também formas expressivas de organização multimídia, interativas e em rede, e que talvez nelas a metáfora da linha não persista.
Janet H. Murray escreveu em seu prefácio para a edição brasileira de Hamlet on the Holodeck que pretendia, com essa obra, defender o potencial expressivo do computador; e que o aspecto mais inexplorado do meio parecia residir na capacidade da máquina em fornecer múltiplos resultados, pontos de vistas e destinos possíveis. Tomando como exemplo as narrativas interativas, Murray argumenta que muitos “confundem as narrativas multissequenciais com as não-sequenciais [...] acham que a inexistência de um formato linear convencional significa a ausência da causalidade” no digital (MURRAY, 2003, p. 9). A autora enfatiza que os formatos “multissequenciais” ou “multiformes” nos dão a possibilidade de percorrer eventos de maneiras e por caminhos bastante diferentes, mas ainda assim bem definidos. Tal condição pode ser observada nos hipertextos e construções hipermídia das páginas web que, assim como o nome sugere, não excluem a linearidade, mas a intensificam em forma de teia, criando contextos multilineares. Conforme Murray defendeu, um sentido mais profundo pode surgir “da compreensão desses caminhos entrecruzados” (MURRAY, 2003, p. 10).
Uma das mais recentes potencialidades expressivas das tecnologias digitais é criar ambientes — como em Realidade Virtual[25] — para experiências de visualização ou jogos, como os chamados jogos de mundo aberto, por exemplo. Aparentemente, esses ambientes poderiam sugerir a supressão de qualquer indício de linearidade. Contudo, trata-se de construções multimodais interativas nas quais os caminhos, de uma variedade inimaginável, geralmente são organizados por tarefas e missões (quests), como a busca de determinados itens do jogo. Dessa forma, apesar de não se fazer tão explícito, o processo do jogo (gameplaying) constrói o caminho; assim como nos versos de Antonio Machado: “caminhante, não há caminho/ se faz caminho ao andar”[26]. E mesmo no ambiente menos controlado possível, ainda assim há uma linha, um caminho, simplesmente pelo fato de que aquele ambiente foi codificado para funcionar de determinada maneira. Em ambientes digitais, o que vemos é apenas interface, aquilo que o dispositivo nos mostra, aquilo com que podemos interagir. É a camada mais “externa”. Já no nível mais “interno” corre a linha do código programado numa linguagem específica para fazer este ou aquele software funcionar — uma linha ininterrupta na qual não deve haver um erro sequer. Mais “profundamente”, corre também a codificação binária da máquina, aquela mesma que traz a herança da fita de cartões perfurados de Jacquard.
Vilém Flusser, apesar de ter vivido relativamente pouco na era digital, fez considerações aplicáveis sobre os processos descritos acima. De acordo com Flusser (2007, p. 31), antes da era digital o ser humano ordenava formalmente o mundo aparente; e o que ele faz agora é tornar aparente mundos projetados, codificados em números. Essa mudança torna primordial que aprendamos os códigos, senão seremos “condenados a prolongar uma existência sem sentido em um mundo que se tornou codificado pela imaginação tecnológica” (FLUSSER, 2007, p. 137). Um mundo em que, de acordo com o tom apocalíptico costumeiro do filósofo, pode levar “ao fim da história, no sentido estrito da palavra” (FLUSSER, 2007, p. 137). Em oposição a isso, este ensaio sugere que o código computacional não é arauto do fim da história; é antes a confirmação da sua continuação: de que a linguagem e a contagem, as tecnologias mais antigas que a humanidade utilizou para entender o mundo, possibilitaram o desenvolvimento de diversas outras tecnologias de comunicação que mantiveram a metáfora da linha e uma certa lógica linear do processo ora em suas expressões formais, ora nas suas estruturas — ou mesmo nas subestruturas. Contudo, o alerta de Flusser para que aprendamos os códigos faz imenso sentido.
Em sua obra mais famosa, Filosofia da caixa preta (2011), Flusser descreve as categorias dos instrumentos (prolongamentos do corpo, bons para produzir bens de consumo); máquinas (instrumentos que englobam teorias científicas); e os aparelhos (objetos pós-industriais que simulam um tipo de pensamento e visam transformar o ser humano). Os aparelhos estão associados ao contexto contemporâneo da computação. São definidos como brinquedos dos quais o homo ludens busca esgotar o programa, penetrar “o aparelho a fim de descobrir-lhe as manhas” (FLUSSER, 2011, p. 37). Contudo, em O universo das imagens técnicas, o filósofo argumenta que teríamos perdido o controle sobre os aparelhos, que “se autonomizaram das decisões humanas” (FLUSSER, 2012, p. 104). Nesse sentido, passamos a funcionar em função deles, numa maré de programas que exigem sempre outros aparelhos mais rápidos, pequenos e baratos, sobre os quais também não há controle (FLUSSER, 2012, p. 105).
Entretanto, com um fio de esperança utópica, Flusser enfatiza que ao mesmo tempo em que muitos perderam o controle, também há aqueles que participam do diálogo “‘sobre’ aparelhos, diálogo possível atualmente graças a técnicas desenvolvidas pelos próprios aparelhos” e que, por conseguinte, “poderia resultar em ‘competência’ superior à dos aparelhos” (FLUSSER, 2012, p. 109). Dessa maneira seria possível reconquistar o controle e reprogramá-los. “O engajamento em prol de sociedade de programadores (o oposto de ‘democracia programada’) me parece atualmente o único engajamento possível” (FLUSSER, 2012, p. 110). Quando aprendemos os códigos, somos capazes de produzir discursos organizados por meio deles, de nos apropriar dos meios digitais de uma forma mais ativa, que possibilite criar o que chamamos de mídia tática (tactical media):
a intervenção e a ruptura de um regime semiótico dominante, a criação temporária de uma situação em que signos, mensagens e narrativas são colocados em jogo e o pensamento crítico se torna possível[27] (RALEY, 2009, p. 6) (tradução nossa).
Tomar posse das linhas de código é tornar possível, por exemplo, videogames persuasivos, em que “discussões críticas são feitas por meio da ênfase nos efeitos das ações do jogo”[28], abordando temas como a economia mundial, guerras, a questão contemporânea dos refugiados, etc (RALEY, 2009, p. 4) (tradução nossa). O trabalho do programador, segundo Rita Raley (2009, p. 11) (tradução nossa), “por um lado, é um meio de valor econômico, mas por outro pode ser uma fonte de potencialidade subversiva, se não revolucionária”,[29] quando cria discursos de embate a certas estruturas sociopolíticas e econômicas “de dentro, intervindo no local dos sistemas simbólicos de poder”[30]. Iniciativas desta natureza já são realizadas há bastante tempo, mas por vezes permanecem restritas às galerias ou aos círculos acadêmicos. As mais recentes e disruptivas práticas artísticas digitais devem estar presentes também na micropolítica cotidiana e, principalmente, na educação. As questões da alfabetização digital e das competências em informação já vêm sendo debatidas há muito tempo e é urgente que sejam efetivamente aplicadas.
Nós tecemos o nosso próprio mundo a partir de cada linha que dizemos, escrevemos, datilografamos, imprimimos ou “pixelizamos” nas telas. Um uso tático das linhas de código — e a compreensão das técnicas de visualização, análise de dados e uso da internet — é fundamental para criarmos um ambiente mais seguro e justo ao lidar com as recentes tecnologias que nos conectam. Assim, podemos ser também resistência, não apenas mais um ponto preso ao fiar das grandes corporações de tecnologia ou embaraçados nos nós das fake news. Conforme declarou o Critical Art Ensemble (CAE)[31], “a estrutura autoritária não pode ser quebrada; ela só pode ser resistida”[32] (CAE, 1996, p. 24 apud RALEY, 2009, p. 10) (tradução nossa). E assim, em termos flusserianos, por mais que não estejamos nunca livres da hierarquia “aparelhizada” dos metaprogramas que controlam a sociedade, é fundamental entendê-la e saber navegar por ela, já que as linhas que nos conectam e formam, de fato, uma trama amplamente ramificada, continuarão a se estender através da história; pelo menos até que Átropos resolva cortá-las.
Considerações Finais
Sintetizar tantos processos históricos neste ensaio pode dar a ideia de que se está apenas a alinhavar acontecimentos. Entretanto, é preciso enfatizar que a comunicação na forma expressiva do ensaio é obrigatoriamente processual e só alcança sua função total no último ponto final.
Conforme citado anteriormente, uma linha (ou reta) para a matemática pode ser caracterizada por uma sucessão de pontos ou as possíveis posições de um ponto em deslocamento contínuo. A descrição histórica feita aqui buscou enfatizar alguns dos pontos cruciais da linha do tempo da comunicação humana nos quais é possível notar que a linearidade e a lógica processual se mantiveram, mesmo com mudanças radicais nos meios e sistemas tecnológicos. Os kua do I Ching, apesar de se constituírem de linhas esquemáticas fixas, “são símbolos que representam mutáveis estados de transição [...] não são representações das coisas enquanto tais, mas de suas tendências de movimento” (WILHELM, 2002, p. 5). Da mesma forma, a realidade é definida por transições contínuas, mas ao descrever os acontecimentos e defini-los por nomes, com datas e invenções, criamos pontos no contínuo real.
Por outro lado, ao interpretar a linha do tempo da comunicação aqui apresentada como o deslocamento de um mesmo ponto, é possível definir esse ponto como aquele que é o objeto fundamental do ensaio, os sistemas sociotecnológicos de comunicação — os quais buscou-se descrever sinteticamente no decorrer da argumentação. É importante ressaltar que a linha de raciocínio aqui apresentada é apenas uma possibilidade de análise para esse ponto. Na categoria matemática, um ponto pode ser definido pelo cruzamento de duas linhas (retas). Do mesmo modo, em qualquer ponto do raciocínio exposto, a linha que escolhi seguir é interceptada por outras linhas de análise e reflexão sobre os desenvolvimentos da comunicação humana: seja a fisiologia, a economia, a engenharia, a política etc. Essas linhas representam sempre contínuos em movimento, que não se encerram num próximo ponto, mas abrem, sim, novas possibilidades à reflexão.
Notas
[1] “The physical features associated with spoken language […] are identical between Cro-Magnon people and humans living today”. Disponível em: <https://bit.ly/3rID9xB>. Acesso em: 19 ago. 2021.
[2] Para Andy Clark, deixamos “vestígios de fósseis cognitivos” relacionados a essa característica no cortejo histórico das tecnologias, como as da comunicação. Ver CLARK, A. Natural-born cyborgs: minds, technologies, and the future of human intelligence. Nova York: Oxford University Press, 2003, p. 4.
[3] “whole new forms of thought and reason”.
[4] Ver AUMONT, J. A imagem. Campinas: Papirus, 1993, p. 60.
[5] Ver HAVELOCK, E. A. Preface to Plato. Cambridge: The Belknap Press of Harvard University Press, 1963, p. 39.
[6] “an object available to ourselves and to others, […] the stable attendable structure to which subsequent thinkings can attach”.
[7] A invenção de tipos móveis já teria ocorrido na China no século XI (BRIGGS; BURKE, 2006, p. 24). Por tratar-se de um panorama ocidental, entretanto, aplicou-se aqui o contexto de Gutenberg.
[8] “With print, books literally line things up more drastically”.
[9] “with print what one wrote tended more and more to be thought of as lodging eventually in a fixed place”.
[10] Ver CHIBENI, S. S. Origens da ciência moderna. Textos didáticos: filosofia da ciência, Unicamp, [s.d.]. Disponível em: <https://bit.ly/3pAorpB>. Acesso em: 19 ago. 2021.
[11] Ver Perspicillum, Fundação Planetário da Cidade do Rio de Janeiro. Disponível em: <https://bit.ly/3pSclbJ>. Acesso em: 19 ago. 2021.
[12] Ver KOYRÉ, A. Do mundo fechado ao universo infinito. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2006.
[13] Trecho traduzido em MARINHO, C. O matemático Galileu Galilei, o Mestre dos Mestres. Sociedade Portuguesa de Matemática, [S. l.], 2015. Disponível em: <https://bit.ly/3DzablM>. Acesso em: 19 ago. 2021.
[14] Ver Characteristica Universalis, Oxford Reference. Disponível em: <https://bit.ly/3y1xOT3>. Acesso em: 29 ago. 2021.
[15] “when Hertz discovered electromagnetic waves, there were in operation extensive wire and cable lines transmitting telegraph and telephone messages”.
[16] “consists of converting light into electrical impulses, transmitting these impulses and reconverting them at the receiving station”.
[17] “are preeminently mosaic in form”.
[18] Ver Science and Industry Museum, Programming patterns: the story of the Jacquard Loom. Disponível em: <https://www.scienceandindustrymuseum.org.uk/objects-and-stories/jacquard-loom> Acesso em: 15 dez. 2021.
[19] Lógica de variáveis em que há sempre dois valores: verdadeiro/falso – podendo ser representados por sim/não; 1/0; ou, no caso apresentado, perfuração/sem-perfuração.
[20] Ver Computer History Museum, The Engines. Disponível em: <https://bit.ly/301dmVJ>. Acesso em: 20 ago. 2021.
[21] “the introduction of the principle which Jacquard devised for regulating, by means for punched cards, the most complicated patterns in the fabrication of brocaded stuffs”.
[22] “Ada had produced the first example of what was later called computer programming”.
[23] Em 1937, Claude Shannon cria o projeto do circuito digital e, em 1948, funda a teoria da informação. No mesmo ano, Alan Turing, considerado pai da ciência da computação, produz um relatório fundacional para o campo. Ver GIANNINI, T.; BOWEN, J. P. Life in code and digits: when Shannon met Turing. Proceedings of Electronic Visualisation and the Arts, Londres, 2017. Disponível em: <https://bit.ly/3y6R7dJ>. Acesso em: 29 ago. 2021.
[24] Em A Mathematical Theory of Communication (1948), Shannon estabelece que “all modes of communication, and all media can be expressed in code as binary digits or bits”. Ver GIANNINI, T.; BOWEN, J. P. Life in code and digits: when Shannon met Turing. Proceedings of Electronic Visualisation and the Arts, Londres, 2017, p. 51. Disponível em: <https://bit.ly/3y6R7dJ>. Acesso em: 29 ago. 2021.
[25] “an artificial environment which is experienced through sensory stimuli (such as sights and sounds) provided by a computer and in which one’s actions partially determine what happens in the environment”. Disponível em: <https://bit.ly/3DwCCRw>. Acesso em: 20 ago. 2021.
[26] “caminante, no hay camino, /se hace camino al andar”. Ver Escritas.org, Cantares de Antonio Machado. Disponível em: <https://bit.ly/3ouAJQT>. Acesso em: 20 ago. 2021.
[27] “the intervention and disruption of a dominant semiotic regime, the temporary creation of a situation in which signs, messages, and narratives are set into play and critical thinking becomes possible”.
[28] “critical arguments are made via the emphasis on the effects of gameplay actions”.
[29] “on the one hand it is a means of economic value, but on the other it can be a source of subversive, if not revolutionary, potentiality”.
[30] “from within by intervening on the site of symbolic systems of power”.
[31] Coletivo estadunidense formado em 1987 e composto por artistas praticantes de mídia tática, com especialidades diferentes. Ver Critical Art Ensemble. Disponível em: <https://bit.ly/3owHIZD>. Acesso em: 29 ago. 2021.
[32] “authoritarian structure cannot be smashed; it can only be resisted”.
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