Referências
em série:
memes e
intertextualidade em fandoms de
narrativas seriadas
Daniel
Rios[1]
Resumo: As séries televisivas estadunidenses circulam no Brasil há
bastante tempo. Contudo, nos últimos vinte anos, observa-se uma mudança no
status de legitimidade dessas produções estrangeiras. Em decorrência disso, há
a emergência de inúmeras comunidades de fãs voltadas para essas produções.
Assim como em outros fandoms, os fãs
de narrativas seriadas produzem variados tipos de materiais, como fanfics, fanarts e memes
de internet. A partir disso, este artigo tem como objetivo investigar quais são
as semelhanças e as diferenças que memes circulados em fandoms de narrativas seriadas distintas carregam entre si. Para
isso, foi realizada uma pesquisa de inspiração etnográfica em três comunidades
de fãs, cada uma voltada para uma série diferente. Entre junho de 2018 e maio
de 2019, os memes circulados pelos sujeitos dentro dos fandoms foram observados, buscando identificar aqueles que
apresentavam referências intertextuais com elementos de outras narrativas
seriadas. Argumenta-se que os memes seriam uma importante ferramenta para a
circulação das ficções seriadas estadunidenses no Brasil e para as dinâmicas de
sociabilidade dos fãs brasileiros, contribuindo para a expansão do universo
narrativo e influenciando a experiência do consumo midiático. Por fim,
constata-se um intenso uso de intertextualidade, embora as produções midiáticas
referenciadas nas três comunidades sejam distintas.
Palavras-chave: Estudos de Televisão; Séries Televisivas;
Comunidades de Fãs; Memes; Intertextualidade.
References in series:
memes and intertextuality in fandoms of serialized
narratives
Daniel
Rios[2]
Abstract: American television
series have been circulating in Brazil for a long time. However, in the last
twenty years, there has been a change in the status of the legitimacy of these
foreign productions. As a result, there is an emergence of numerous fan
communities focused on these productions. Just like in other fandoms, fans of serial
narratives produce various types of material, such as fanfics, fanarts, and internet memes. Thus, this article aims to
investigate what are the similarities and differences that memes circulated in
fandoms of different serial narratives carry among themselves. To this end, an
ethnographic-inspired survey will be conducted in three fan communities, each
focused on a different series. Between June 2018 and May 2019, the memes
circulated within the fandoms were observed, seeking to identify those who presented
intertextual references with elements from other serial narratives. It is
argued that memes are an important tool for the circulation of American serial
fictions in Brazil and for the sociability dynamics of Brazilian fans,
contributing to the expansion of the narrative universe and influencing the
experience of media consumption. There is an intense use of intertextuality,
although the media productions referenced in the three communities are
different.
Keywords: Television Studies;
TV Series; Fandoms; Memes; Intertextuality.
Introdução
As
séries televisivas estadunidenses circulam no Brasil há bastante tempo.
Contudo, se antes eram chamadas negativamente de “enlatados”, observa-se que
esses produtos midiáticos atualmente têm adquirido status de legitimidade. Esse
movimento advém de profundas mudanças industriais, tecnológicas e culturais
(SILVA, 2014) que influenciam a difusão e o consumo dessas narrativas não
apenas no Estados Unidos, como também em outros locais do mundo. Nesse cenário,
pesquisadores de diferentes países têm apontado para a emergência de uma
audiência ávida por séries estadunidenses (JOST, 2012; KIM, 2019). Ao mesmo
tempo, é possível notar que fandoms
de programas televisivos adotaram o ambiente digital, seja para se organizarem,
discutirem ou apenas divulgarem informações sobre os produtos midiáticos que
gostam (ANDREJEVIC, 2008; ROSS, 2008). As comunidades de fãs funcionam como
espaço de circulação de artefatos culturais confeccionados e/ou compartilhados
por esses sujeitos, como as fanfics, as fanzines e, também, os memes de internet.
Embora
muitas vezes sejam vistos pelo senso comum como superficiais, os memes podem se
mostrar como uma importante ferramenta para a construção de identidades
coletivas (MILNER, 2016). Assim, tomando como ponto de partida a proliferação
do consumo de séries estadunidenses no Brasil (SILVA, 2014) e as dinâmicas
organizacionais e de sociabilidade das comunidades de fãs no meio digital
(BAYM, 2007; PEARSON, 2010), o presente artigo procura saber quais são as
semelhanças e as diferenças que memes circulados em fandoms voltados para narrativas seriadas distintas carregam entre
si. Em outras palavras: os fãs de diferentes séries televisivas utilizam os
mesmos recursos intertextuais? Tendo em vista que são ricos em
intertextualidade (KNOBEL; LANKSHEAR, 2020 [2007]), os memes que circulam em fandoms de narrativas seriadas poderiam
ser úteis para mapear quais os outros objetos midiáticos que fazem parte do
universo dos fãs brasileiros.
Para
realizar o trabalho proposto, realizei uma pesquisa de inspiração etnográfica
em três grupos situados no Facebook, cada um deles voltado para uma série
televisiva distinta. O primeiro se chama “Grey's MiiL gRaU” e é voltado para os
fãs da série médica Grey’s Anatomy (ABC,
2005-). Já o segundo é chamado de “Game of Thrones Brasil L&S” e volta-se para a fantasia Game of Thrones (HBO, 2011- 2019) e a saga literária na qual a
série é baseada. Por fim, o último grupo se chama “O mundo sombrio de Sabrina
Brasil” e gira em torno de The Chilling Adventures of Sabrina (Netflix, 2018-2020). A pesquisa foi
realizada entre julho de 2018 e maio de 2019, período no qual mapeei a produção
e circulação de memes dentro das três comunidades, verificando como a
intertextualidade era articulada nessas peças.
Não
pretendo fazer uma descrição muito extensa de todas as práticas existentes nos fandoms analisados. Em geral, esses
grupos não apontam estruturações muito diferentes de outros estudos pautados em
subculturas ou comunidades de fãs: possuem seus próprios códigos de conduta e
também suas formas de distinção específicas (THORNTON, 1996; CAMPANELLA, 2012).
Ao mesmo tempo, não procuro fazer uma celebração acrítica da cultura de fãs e
nem tampouco dos estudos dos memes. Fandoms
não possuem, necessariamente, um caráter subversivo (FREIRE FILHO, 2007) e, de
fato, muitos deles reproduzem mecanismos de opressão já existentes na sociedade
(SANDVOSS, 2013). Do mesmo modo, memes também podem ser repletos de
preconceitos, apresentando falas racistas, sexistas ou xenófobas, por exemplo
(SHIFMAN, 2014; PHILLIPS, 2015; LAMERICHS et
al., 2018).
Todavia,
argumento que os memes seriam uma importante ferramenta para a circulação de
ficções seriadas estadunidenses no Brasil e para as dinâmicas de sociabilidade
dos fãs brasileiros, contribuindo para a expansão do universo narrativo e
influenciando a experiência do consumo midiático. Além disso, ao considerar que
geralmente os sujeitos não se restringem a consumir um único objeto cultural,
mas sim transitam por produtos com características semelhantes (JENKINS, 2006;
ROSS, 2008), memes carregados de intertextualidade atuariam como indicadores
dos hábitos de espectatorialidade dos fandoms
analisados.
Circulação e
consumo de séries estadunidenses no Brasil
Atualmente,
a indústria de ficção seriada televisiva estadunidense passa por um momento de
ascensão. Para além do aumento considerável no número de títulos lançados a
cada ano nos Estados Unidos[1],
também pode ser observada uma mudança cultural no status atribuído a essas
produções (NEWMAN; LEVINE, 2012). Com isso, as séries do país têm sido vistas
como legitimadas, movimento em grande parte facilitado 1) pelo discurso de
distinção via qualidade atribuído a algumas dessas narrativas (MAIO, 2009;
CASTELLANO; MEIMARIDIS, 2016); 2) pelo surgimento de tecnologias como o DVD e o
download de arquivos digitais, que
permitiram à audiência um maior controle sobre as práticas de
espectatorialidade desvinculadas ao fluxo linear (LOTZ, 2007); e 3) pela
proliferação de fandoms e outros
espaços, profissionais e amadores, voltados para divulgação de narrativas
seriadas (ANDREJEVIC, 2008; ROSS, 2008; SILVA, 2014)[2]. Nesse processo, as séries estadunidenses têm feito sucesso
em diversos países do globo, como na França (JOST, 2012), na Coreia do Sul
(KIM, 2019) e também no Brasil (SILVA, 2014).
No caso
brasileiro, até o final da década de 1990 o discurso acerca desses produtos era
bastante diferente do que se presencia atualmente, sendo comum que fossem
chamados de “enlatados”, termo que carrega um valor pejorativo. Na rede de
televisão aberta, eles funcionavam majoritariamente para preencher espaços
vazios na grade, embora emissoras como a TV Record já tenham veiculado séries
estadunidenses no horário nobre na tentativa de competir com a programação da
TV Globo (FOLHA DE S. PAULO, 1990, p.4)[3]. Já na rede de TV paga, alguns canais posicionavam-se como
alternativas à rede aberta e investiam na importação de séries de sucesso nos
Estados Unidos, focando em nichos de mercado específicos, como a Sony com
comédias e a AXN com séries de ação (STRAUBHAAR; DUARTE, 2005, p. 247)[4].
Após
meados da década de 2000, observa-se o crescimento da circulação das séries
estadunidenses no Brasil. Segundo Meimaridis e Oliveira (2018), a
espectatorialidade em torno dessas narrativas sempre foi marcada pelo espaço de
tempo entre a exibição do episódio na emissora original e a exibição na rede
televisiva brasileira, o que poderia demorar semanas, meses ou até mesmo anos.
Esse período de espera passou a ser gradativamente diminuído a partir da
popularização da internet banda larga no país, que facilitou o consumo pirata
desses produtos e, posteriormente, com a proliferação de empresas de vídeo sob
demanda, como Netflix e Globoplay.
De
fato, o meio digital exerceu um importante papel nesse processo, principalmente
quando se leva em conta a adoção da internet como um espaço para a criação de
comunidades dedicadas a distribuir novos episódios, confeccionar legendas e/ou
compartilhar notícias sobre a trama (SÁ, 2014). Para Silva (2014),
estaríamos vivendo um momento de intenso consumo de narrativas seriadas
facilitado pela possibilidade de consumir produtos televisivos advindos de
diversas partes do mundo e a partir de múltiplas telas. Isso seria decorrência
de uma diminuição de barreiras geográficas e temporais que permitem não apenas
assistir ilegalmente ao último episódio de uma série ainda em exibição, como
também acessar a uma série finalizada há mais de vinte anos através de uma
plataforma de streaming.
Entretanto, ainda que atualmente
a audiência tenha uma maior autonomia sobre o que assistir, não se deve deixar
de lado o fato de que a disponibilidade e a acessibilidade desses materiais
passam por fatores mercadológicos e culturais. Isso é visível em produções que
não circulam por meios oficiais. Por um lado, quanto menos popular for uma
série, torna-se mais difícil encontrar os episódios. Além disso, temos uma
barreira linguística: muitos dos fãs brasileiros precisam de legendas em
português para consumir essas produções, legendas essas que são feitas pelo
próprio fandom ou por equipes de
legendagem independentes. Em contrapartida, sujeitos que assistem séries
através de serviços de vídeo sob demanda ficam dependentes dos títulos
disponibilizados nesses portais. Nesse
sentido, por mais que a explosão no consumo de narrativas seriadas
estadunidenses seja tratada como um fenômeno global, a forma como esse processo
ocorre deve ser visto de acordo com as especificidades de cada país.
Memes e
intertextualidade
Com o desenvolvimento da
internet, as comunidades de fãs adotaram o ambiente digital como ferramenta
presente na experiência do consumo televisivo (ANDREJEVIC, 2008; ROSS, 2008),
espalhando-se em diversos espaços, como blogs, fóruns e sites de redes sociais,
e adaptando-se de acordo com as possibilidades oferecidas em cada uma dessas opções
(BAYM, 2007). Contudo, a construção de fandoms
online não deve ser vista de forma utópica: embora os primeiros trabalhos sobre
comunidades no meio digital celebrem esses espaços a partir de seu potencial
democrático, a perspectiva atual aponta que esses grupos também podem ser
repletos de disputas e divergências, nem sempre buscando uma construção
coletiva de conhecimento (CAMPANELLA, 2012). Dentro dos fandoms, inúmeros materiais confeccionados por fãs são postos em
circulação, como fanfics,
fanfilms e fanarts (JENKINS,
2006; SANDVOSS, 2013). Para além de auxiliarem na divulgação do produto
midiático pelo qual o fandom é
estruturado (AMARAL et al., 2015),
essas peças também podem oferecer indícios sobre os hábitos de consumo desses
sujeitos e as leituras que são negociadas nesse processo (JENKINS, 1992; STEIN;
BUSSE, 2009).
Dentre os mais diversos materiais
circulados em comunidades de fãs, destaca-se aqui o papel dos memes. Shifman (2014,
p. 41) os descreve como um conjunto de itens digitais que circulam na internet
e guardam semelhanças estéticas, textuais e/ou ideológicas entre si e que são
difundidas conscientemente pelos sujeitos através de práticas de imitação ou
edição, como cópias, paródias, sátiras e as mais diversas formas de remix[5]. Ao mesmo tempo, o próprio
conceito de circulação de memes compreende uma dupla relação que abarca tanto
as peças confeccionadas e publicadas pelos indivíduos quanto o próprio ato de
espalhar a informação (e o meme) por meio de ferramentas como encaminhar,
repostar e compartilhar, por exemplo. Para Chagas (2018; 2020), cada meme pode
ser definido como um acervo: da mesma forma que uma sala de museu é organizada
a partir de diferentes obras conectadas por elementos centrais, cada meme
também é formado por variadas peças cujo sentido só pode ser entendido quando
se olha o conjunto.
Embora o conceito
tenha nascido em um momento anterior à internet, foi com o meio digital que ele
passou a ser popular. A partir de meados da década de 2000, membros de
comunidades subculturais como o 4chan
e o Reddit passaram a utilizar o
termo para se referirem a peças pautadas por um tipo de humor[6] baseado nos códigos compartilhados por esses sujeitos e
geralmente criadas a partir de algum procedimento de manipulação digital
(DAVISON, 2012). Com o passar do tempo, alguns dos padrões estéticos e
discursivos presentes nesses materiais foram se desenvolvendo, como os image macros[7] e os exploitables[8]. Segundo Phillips (2015), o ponto de virada foi no começo da
década de 2010, quando esses formatos transitaram para locais moldados por uma
lógica mainstream, sendo usado em
campanhas publicitárias e/ou em sites de redes sociais como o Facebook.
Em paralelo, o debate sobre memes
na Academia também passou por um intenso crescimento nas últimas duas décadas
com pesquisas que procuraram não só delimitar o conceito, como também entender
as dinâmicas que envolvem sua circulação (CHAGAS, 2020). A partir de uma
pesquisa realizada na década de 2000, Knobel e Lankshear (2020) argumentam que um dos fatores
predominantes nos memes circulados na internet é a presença da
intertextualidade. Nas teorias da narrativa, ela é sinalizada pela relação de
objetos que fazem referência a textos anteriores, contudo sua definição varia
de acordo com o aporte teórico utilizado. Entende-se aqui que a
intertextualidade é marcada pela presença de dois ou mais textos em um único
objeto, seja em formas literais, como na citação, seja em formas mais abstratas,
como na alusão (GENETTE, 2006).
Dentro dos estudos de memes, é
possível perceber que a utilização de intertexto é uma estratégia bastante
comum, podendo acionar referências a acontecimentos e personagens da cultura
local, a outros formatos de memes já existentes e também a outros produtos
midiáticos (SHIFMAN, 2014; MILNER, 2016). Ao mesmo tempo, estudos sobre
intertextualidade também se fazem presente em inúmeras análises de textos
feitos por fãs (JENKINS, 1992; STEIN; BUSSE, 2009). De fato, a inserção de
referências intertextuais adiciona novas camadas de significados a um objeto.
Esses acionamentos servem de auxílio para analisar não apenas “quais” textos
compõem as camadas de significado desses memes, como também falam diretamente
sobre “quem” são os sujeitos que as circulam.
Assim como a própria organização
dos fandoms é afetada diretamente
pelo contexto histórico-social em que está inserida (GRAY, 2010), os memes
presentes nesses espaços também são atravessados por elementos culturais que
influenciam na sua circulação. Quando vistos por uma perspectiva transnacional,
é comum que esses itens tenham seus significados alterados para abarcarem o
contexto local. Essa “glocalização”[9] é
trabalhada para substituir termos específicos de determinada cultura e inserir
aspectos nacionais, regionais ou subculturais (SHIFMAN, 2014, p. 153). Por
exemplo, dentro do fandom brasileiro
de Game of Thrones, é
comum que fãs “traduzam” o nome do personagem Jon Snow
(Kit Harrington) para “João das Neves” com o intuito de obter um efeito cômico.
O mesmo acontece na comunidade de Grey’s Anatomy, que se referem a protagonista da trama,
Meredith Grey (Ellen Pompeo),
como “Maria Edith”.
Nos fandoms televisivos, é notável
que os memes circulados ofereçam pistas sobre os hábitos de espectatorialidade
dos sujeitos, sejam eles compartilhados de forma simultânea ao consumo do
episódio (ALMEIDA, 2020) ou espalhadas em outros momentos da experiência do fã.
Nesse sentido, a presença de intertextualidade é encarada como um apontamento
para os demais produtos midiáticos que fazem parte do universo de consumo
desses sujeitos.
Três séries,
três fandoms
Aqui, procuro delimitar os três
grupos analisados neste trabalho, situados no Facebook. Enquanto plataforma, essa
rede social apresenta diferentes formas de interações, algumas feitas de modo
público, outras em locais de acesso restrito. Nesse cenário, as comunidades
analisadas nesta pesquisa possuem uma estruturação semelhante: todas são grupos
privados[10] destinados a fãs brasileiros de uma ficção
seriada estadunidense. O primeiro fandom
é o “Grey's MiiL gRaU”. Composto por cerca de 18 mil participantes[11], a
comunidade é formada por fãs de Grey’s Anatomy, mas também abarca conversas de outras
produções feitas pela empresa de Shonda Rhimes, a Shondaland, como How to Get Away With Murder
(ABC, 2014-) e Station 19 (ABC, 2018-). Lançada em 2005, Grey’s Anatomy já
passou por canais brasileiros da rede aberta (SBT) e da rede paga (canal Sony).
Atualmente, também faz parte do catálogo da Netflix no Brasil. A série narra a
vida conturbada da cirurgiã Meredith Grey e dos
demais médicos de um hospital em Seattle, que precisam lidar com a pressão e as
exigências da profissão ao mesmo tempo em que administram os conflitos de suas
vidas pessoais.
Já o segundo é o “Game of Thrones Brasil L&S”. Com
264 mil membros[12], a comunidade é voltada para Game of Thrones, adaptação da saga literária As Crônicas de Gelo e Fogo. Descrita
pelos showrunners
como “uma batalha épica por poder que se passa em um vasto e violento reino de
fantasia” (LITTLETON, 2011), a narrativa não tem um protagonista fixo, mas pode
ser resumida em três arcos principais. No continente fictício de Westeros, o misterioso assassinato do
conselheiro do rei se torna o estopim para que famílias nobres entrem em guerra
pelo domínio do trono real, em um jogo marcado por disputas, alianças e
traições. Enquanto isso, duas forças se erguem: ao leste, no continente de Essos, uma
princesa dada como morta organiza um plano de vingança para tomar o lugar que
considera seu por direito; ao norte, criaturas de gelo começam a ganhar força,
trazendo consigo um longo inverno. Atualmente finalizada, a série era veiculada
no Brasil apenas na rede de TV paga, pelo canal HBO.
Por fim, o último fandom analisado é “O mundo sombrio de
Sabrina Brasil”. Com cerca de 83 mil participantes[13], ele é
voltado para a série Chilling Adventures of Sabrina, desenvolvida pela Netflix e finalizada após
quatro temporadas. A série é baseada em uma graphic novel homônima. A narrativa é centrada na meio-bruxa Sabrina Spellman, personagem criada pela Archie
Comics na década de 1960 e que, desde então, possuiu
diversas adaptações. Dentre as versões mais famosas está a comédia Sabrina: The Teenage
Witch (ABC, 1996-2000; The WB, 2000-2003), que
durante muito tempo também foi exibida no Brasil pelo canal SBT. Na nova
versão, muitos dos elementos clássicos da narrativa se mantêm. Filha de um pai
bruxo e uma mãe humana, a vida de Sabrina sempre se viu dividida entre esses
dois mundos. Após completar 16 anos, ela precisa escolher qual caminho seguir:
abraçar a magia e esquecer sua vida humana ou renunciar seus poderes e viver
como uma mortal.
Metodologicamente, foi feita uma
pesquisa de inspiração etnográfica analisando os conteúdos e interações que
emergiam nas comunidades, semelhante a trabalhos como o de Campanella (2012),
por exemplo. Em termos empíricos, foi feita uma observação participante entre
julho de 2018 e maio de 2019, período em que Grey’s Anatomy veiculava sua 15ª temporada e Game of Thrones sua 8ª temporada. Já Chilling Adventures of
Sabrina lançou sua 1ª temporada em outubro de 2018, um episódio especial de
natal em dezembro do mesmo ano e sua 2ª temporada em abril de 2019[14]. A
escolha das três séries e de suas respectivas comunidades se deu por dois
motivos centrais. Em primeiro lugar, essas narrativas possuem ampla circulação
pelo Brasil e, como pode ser visto nos fandoms,
abarcam um número considerável de fãs. Em paralelo, elas possuem públicos-alvo
distintos entre si. Desde o início, Grey’s Anatomy traz questões voltadas para um público feminino
adulto. Game of
Thrones, por outro lado, possui uma narrativa que
dialoga principalmente com códigos de masculinidade, assim como outras séries
produzidas pela HBO. Já com Chilling Adventures of Sabrina, a
Netflix tem um público-alvo adolescente, ao mesmo tempo em que se utiliza da
nostalgia para atrair também uma audiência que assistia à Sabrina: The Teenage Witch[15].
Embora tenham diferenças, as três
comunidades possibilitam a mesma funcionalidade: proporcionar um espaço para a
interação entre fãs de ficções seriadas e, com isso, a circulação de memes
sobre as séries. No decorrer dos dez meses de pesquisa, observei diariamente as
comunidades, mantive um diário de campo e identifiquei um incontável número de
produções que foram compartilhadas dentro dos grupos. A seguir, apresento
alguns dos memes que chamaram a atenção durante o trabalho, focando
especificamente naqueles que articulavam referências intertextuais. Em termos
concretos, são esses memes que compõe o corpus da pesquisa.
Uma série de
referências
O primeiro aspecto que chama a
atenção são as formas de compartilhamento de memes. Dentro dos grupos, é comum
que os membros não apenas publiquem conteúdos criados por eles mesmos, como
também encaminhem publicações de outros espaços, seja por meio da ferramenta de
compartilhamento do próprio Facebook, seja através da captura de tela de outros
sites de redes sociais. Em geral, a dinâmica de difusão de memes nos grupos se
assemelha a identificada por autores como Almeida (2020): há uma grande
presença de memes de reação comentando sobre elementos da narrativa (Figuras 1,
2 e 3). Nesse sentido, ao compartilhar um meme, o sujeito “passa adiante” um
item cultural ao mesmo tempo em que aponta sentimentos sobre a peça, esperando
que os outros membros da comunidade compartilhem das mesmas sensações (SHIFMAN,
2014, p. 19).
Figura 1 - Meme de reação circulado
na “Grey's MiiL gRaU”
Fonte: Grey's MiiL
gRaU (2018).
Figura 2 - Meme de reação circulado
na “Game of Thrones Brasil
L&S”
Fonte: Game of Thrones
Brasil L&S (2019).
Figura 3 - Meme de reação circulado
na “O mundo sombrio de Sabrina Brasil”
Fonte: O mundo sombrio de Sabrina Brasil (2019).
No que tange especificamente a
intertextualidade, os fãs a utilizam em determinados memes como ferramentas de
hierarquização das produções, especialmente de outras narrativas seriadas.
Essas disputas aparecem desde formas mais incisivas, como no compartilhamento
de publicações feitas com intuito de “eleger” a melhor série, quanto de
maneiras mais sutis. Na Figura 4, circulada na “Game of
Thrones Brasil L&S”, há uma clara ordenação dos
títulos apresentados, ainda que todos sejam considerados na imagem como “boas”
produções. De forma semelhante, na Figura 5 também há uma disputa “encenada” na
discussão entre fãs de Game of Thrones e fãs da série Supernatural (CW, 2005-2020). Esses
exemplos também apontam para um fator recorrente nas três comunidades: a
utilização de formatos já reconhecidos como memes. O primeiro é retirado de uma
cena do filme Steve Jobs (2015),
enquanto o segundo é baseado em uma briga ocorrida no reality show American Chopper (Discovery
Channel, 2003-2007; TLC, 2008-2010).
Figura 4 – Meme com intertextualidade entre Game
of Thrones, The Walking Dead e Supernatural
Fonte: Game of Thrones
Brasil L&S (2018).
Figura 5 - Meme com
intertextualidade entre Game of Thrones e Supernatural
Fonte: Game of Thrones
Brasil L&S (2019).
Em ambos os casos, os padrões de
forma e conteúdo viralizaram e acabaram se tornando uma espécie de “template” com os sentidos “traduzidos” para o
contexto do fandom em questão. Mas
isso não significa dizer que todos os fãs concordam totalmente com os conteúdos
compartilhados. Na publicação da Figura 4, por exemplo, pude observar
comentários como “SPN > ALL”[16],
indicando que Supernatural é melhor que as demais. Em outro caso, uma fã
rebateu a publicação da Figura 5, comentando com uma imagem que trazia a
legenda “TROFÉU POSTA BOSTA/PARABÉNS FERA! VOCÊ MERECEU!”,
claramente discordando do meme publicado. Portanto, assim como em outras
produções de fãs (JENKINS, 1992; SANDVOSS, 2013), a legitimidade dos discursos
trazidos pelos memes é negociada a todo momento dentro da comunidade.
Mais do que as disputas por legitimidade,
é interessante observar na análise dos fandoms
os objetos midiáticos que são mencionados. Por exemplo, em “O mundo sombrio de
Sabrina Brasil” recorrentemente citam a série policial Lúcifer (Fox, 2016-2018; Netflix, 2019-), que se une à Chilling Adventures of Sabrina pela linha narrativa, tendo em vista que o
personagem Lúcifer é central em ambas as produções: a primeira como
protagonista e na segunda como vilão. Com isso, é comum que fãs publiquem memes
trabalhando de forma cômica sobre esse elemento (Figura 6). Em paralelo, também
é comum na comunidade a circulação desses itens com referências musicais.
Durante a pesquisa, identifiquei um meme que trazia como legenda versos de “Thank You, Next”,
música da cantora estadunidense Ariana Grande (Figuras 7 e 8). Embora distintos
esteticamente, as imagens possuíam um formato que se conectava através do texto
e serviam para comentar sobre os relacionamentos de Sabrina na trama.
Figura 6 - Meme com intertextualidade entre Chilling
Adventures of Sabrina e Lúcifer
Fonte: O mundo sombrio de Sabrina Brasil (2019).
Figura 7 - Meme com intertextualidade entre Chilling
Adventures of Sabrina e Thank You
Next
Fonte: O mundo sombrio de Sabrina Brasil (2019).
Figura 8 - Meme com intertextualidade entre Chilling
Adventures of Sabrina e Thank You,
Next
Fonte: O mundo sombrio de Sabrina Brasil (2019).
Enquanto os memes
de Chilling Adventures of Sabrina giram em torno de satanismo e bruxaria, as
publicações da “Grey’s MiiL
GrAu” focam em temas como morte e tragédias,
recorrentes em Grey’s Anatomy.
Dentro da comunidade, as referências intertextuais geralmente recaem sobre
séries que também foram produzidas pela Shondaland ou
que contenham algum dos atores que passaram pelo drama médico. Entretanto, um
dos memes que se destacou durante a pesquisa é o apresentado na Figura 9, que
traça conexões com Pretty Little Liars
(Freeform, 2010-2017), série de suspense voltada para
o público adolescente. A imagem original na verdade é baseada em uma campanha
promocional de Pretty Little Liars
que ficou famosa e se espalhou como um padrão imagético. Nela, os personagens
de Grey’s Anatomy ainda
vivos são justapostos no rosto das protagonistas da outra série mencionada,
enquanto os que já morreram estão sendo enterrados.
Figura 9 - Meme com intertextualidade entre Grey’s
Anatomy e Pretty
Little Liars.
Fonte: Grey’s MiiL
GrAu (2019).
Já na “Game of
Thrones Brasil L&S”, as referências intertextuais
costumam ser vinculadas às séries ditas como voltadas para o público masculino,
como Supernatural e The Walking Dead (AMC, 2010-), ou que estão inseridas no discurso
de distinção via qualidade (MAIO, 2009), como Breaking Bad (AMC,
2008-2013). Outra série bastante citada no grupo durante a pesquisa foi a
ficção científica Westworld
(HBO, 2017-), produção que atualmente é o carro-chefe da HBO. A Figura 10, por
exemplo, apresenta um trocadilho com “Valar Dohaeris”,
um tipo de saudação presente em Game of Thrones, com Dolores, nome
da protagonista de Westworld.
Figura 10 - Meme com intertextualidade entre Game of Thrones e Westworld.
Fonte: Game of Thrones
Brasil L&S (2019).
A partir dos casos que foram aqui
apresentados, é possível ter uma noção de como funciona a circulação de memes
nesses fandoms. Em primeiro lugar,
pontua-se que, embora haja referências intertextuais a produtos midiáticos de
outros campos, como do cinema e da música, o que foi observado é a presença
majoritária de títulos relacionados ao universo da indústria de ficção seriada
televisiva. Apesar disso, as séries mobilizadas em cada comunidade raramente
são as mesmas. Claro, podemos salientar que fãs de um determinado produto
costumam se interessar por outros de gêneros semelhantes (JENKINS, 1992; 2006).
Mas, ao mesmo tempo, isso também significa dizer que, se quisermos pensar em
profundidade sobre o atual momento da circulação de séries no Brasil, é também
preciso estar atento a essas nuances apresentadas pela audiência.
Por outro lado, por mais que as
referências intertextuais presentes nas comunidades analisadas não se
sobreponham, é interessante notar que os recursos das dinâmicas de estruturação
dos memes circulados são bastante parecidos. Nesse sentido, para além dos memes
de reação (Figuras 1, 2 e 3), também se destaca a utilização de padrões
imagéticos (Figuras 4, 5 e 9) e/ou textuais (Figuras 7 e 8) provenientes de
outros espaços e que são remixados e aproveitados pelos membros dos fandoms. Nessas peças, a
intertextualidade é utilizada como recurso mobilizado pelos fãs para dialogarem
com outros produtos midiáticos que fazem parte do universo de consumo desses
sujeitos, seja para distingui-los e hierarquizá-los, seja para fazer
comentários engraçados sobre as séries.
As dinâmicas de circulação de
memes que foram observadas se opõem a uma abordagem das comunidades de fãs como
ambientes isolados ou formados por um público homogêneo. Longe disso, a
presença de intertextos nas peças analisadas aponta para uma percepção dos fãs
de série sobre a cultura em que estão inseridos e retratam as complexas
relações que são negociadas por esses sujeitos. Memes, enquanto artefatos
discursivos culturais (MINER, 2016; KNOBEL; LANKSHEAR, 2020), são partes
essenciais nos processos de sociabilidade e de atravessamentos contextuais
característicos desses grupos.
Considerações
Finais
A circulação de séries
estadunidenses pelo mundo sofreu grandes modificações nos últimos vinte anos.
Embora estejamos falando de um processo industrial, tecnológico e cultural
proveniente dos Estados Unidos, seus efeitos também são sentidos no Brasil. No
cenário atual, as comunidades de fãs encontraram em sites como o Facebook um espaço para se
organizarem. Aliado a isso, esses grupos também servem como espaço para
circulação de diferentes materiais criados pelos próprios fãs e que dialogam
diretamente com o produto midiático de que gostam, inclusive memes.
Neste artigo, procuramos observar
os memes compartilhados em comunidades de fãs de ficção seriada com o intuito
de identificar quais outros produtos são acionados pelos sujeitos. Assim,
tratamos memes como uma importante peça de sociabilidade circulada nas
comunidades de fãs de séries, capaz de ressaltar aspectos de consumo e
espectatorialidade. Muito mais do que apenas uma resposta da recepção, os memes
são peças recorrentes no processo de circulação das séries de televisão
estadunidenses no Brasil. Através da intertextualidade, esses memes conectam
diferentes produtos midiáticos nos quais os fãs se inserem, criando uma
verdadeira teia de referências.
Sem dúvida, o trabalho possui
limitações, de forma que incentivamos abordagens que tragam outros corpus e
métodos de análise. Todavia, ressaltamos também as contribuições provenientes
do esforço proferido. Ao constatar que as séries referenciadas nas três
comunidades de fãs não são as mesmas, denota-se que existem subgrupos de
gostos. Embora essa constatação possa parecer óbvia, essa afirmação vai de
encontro com o discurso homogeneizante da circulação de séries no país. Por
fim, é preciso também se perguntar quais são as narrativas seriadas que
circulam no Brasil, por quais meios são difundidas e como são hierarquizadas
pelos fãs. Só assim teremos um melhor entendimento dos processos culturais que
envolvem a circulação de séries estadunidenses vivenciados no Brasil
atualmente, as configurações midiáticas existentes e os fluxos de conteúdo que
o nosso mercado apresenta.
Notas
[1] Em 2019, mais de 500 séries foram veiculadas nos Estados
Unidos (GOLDBERG, 2020).
[2] Silva
(2014) cita a coluna de Patricia Kogut,
no Jornal O Globo, e o site Seriemaníacos, feito por
fãs, que se dedicam a falar sobre séries e demais assuntos relacionados à
televisão.
[3] Em 1990, a TV Record exibiu no horário nobre a série
policial Jake and The Fatman (CBS, 1987-1992). A inclusão periódica de
produções estadunidenses era uma estratégia recorrente na emissora e pôde ser
vista com a exibição de narrativas como C.S.I.
(CBS, 2000-2015) até meados da década de 2010 (PAZ, 2020).
[4] Todavia, o acesso à TV paga ainda era limitado. Segundo
Gomes (2016), embora a popularização do número de assinaturas tenha ocorrido
com maior evidência a partir de 2004, o público consumidor era formado
majoritariamente por famílias de classe A e B.
[5] A visão
apresentada pela autora procura se desprender de outros textos clássicos da memética, como o de Dawkins
(1976), que enxerga esses materiais como unidades separadas de informação
cultural, e traz contribuições para as complexas articulações que ocorrem
atualmente no meio digital.
[6] Entretanto, cabe ressaltar que nem todos os memes são
pautados pelo humor.
[7] Image macro é um formato de meme desenvolvido
a partir de uma imagem sobreposta de legendas.
[8] Exploitable é um
formato de meme desenvolvido a partir de imagens justapostas, geralmente
construídos a partir de manipulação digital.
[9] Shifman
(2014) argumenta que o termo combina conteúdos locais num cenário de
globalização, ao mesmo tempo em que se opõe a um argumento de homogeneização
cultural.
[10] No Facebook, os grupos privados ficam
indexados no mecanismo de pesquisa da plataforma, porém é preciso solicitar o
ingresso aos administradores para conseguir acessar os conteúdos publicados.
[11] Dados
coletados em 24 jun. 2020.
[12] Dados
coletados em 24 jun. 2020.
[13] Dados
coletados em 24 jun. 2020.
[14] Por ser uma série desenvolvida pela Netflix, Chilling Adventures of Sabrina disponibilizava todos os episódios da
temporada no mesmo dia.
[15] Nos últimos anos, a
Netflix tem lançado diversas séries que abordam questões ligadas à nostalgia,
como Stranger Things
(Netflix, 2016-) e Fuller House (Netflix,
2016-). Castellano e Meimaridis (2017) argumentam que a empresa instrumentaliza
a nostalgia em uma tentativa de retomar a audiência. Para as autoras, em um
contexto de grande competição, seria mais atrativo investir em histórias já
previamente conhecidas.
[16]
“SPN” é uma abreviação utilizada por fãs para se referirem à série Supernatural.
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[1] Doutorando pelo Programa de
Pós-Graduação em Comunicação da Universidade Federal FLuminense (PPGCOM-UFF).
Pesquisador associado ao grupo de pesquisa TeleVisões (UFF), ao coLAB (UFF) e
ao projeto Série Clube (UFF). E-mail: daniel_rios@id.uff.br.
[2] Doutorando pelo Programa de
Pós-Graduação em Comunicação da Universidade Federal FLuminense (PPGCOM-UFF).
Pesquisador associado ao grupo de pesquisa TeleVisões (UFF), ao coLAB (UFF) e
ao projeto Série Clube (UFF). E-mail: daniel_rios@id.uff.br.