Referências em série:

memes e intertextualidade em fandoms de narrativas seriadas

 

Daniel Rios[1]

                                                                          

Resumo: As séries televisivas estadunidenses circulam no Brasil há bastante tempo. Contudo, nos últimos vinte anos, observa-se uma mudança no status de legitimidade dessas produções estrangeiras. Em decorrência disso, há a emergência de inúmeras comunidades de fãs voltadas para essas produções. Assim como em outros fandoms, os fãs de narrativas seriadas produzem variados tipos de materiais, como fanfics, fanarts e memes de internet. A partir disso, este artigo tem como objetivo investigar quais são as semelhanças e as diferenças que memes circulados em fandoms de narrativas seriadas distintas carregam entre si. Para isso, foi realizada uma pesquisa de inspiração etnográfica em três comunidades de fãs, cada uma voltada para uma série diferente. Entre junho de 2018 e maio de 2019, os memes circulados pelos sujeitos dentro dos fandoms foram observados, buscando identificar aqueles que apresentavam referências intertextuais com elementos de outras narrativas seriadas. Argumenta-se que os memes seriam uma importante ferramenta para a circulação das ficções seriadas estadunidenses no Brasil e para as dinâmicas de sociabilidade dos fãs brasileiros, contribuindo para a expansão do universo narrativo e influenciando a experiência do consumo midiático. Por fim, constata-se um intenso uso de intertextualidade, embora as produções midiáticas referenciadas nas três comunidades sejam distintas.

 

Palavras-chave: Estudos de Televisão; Séries Televisivas; Comunidades de Fãs; Memes; Intertextualidade.

 

References in series:

memes and intertextuality in fandoms of serialized narratives

 

Daniel Rios[2]

 

Abstract: American television series have been circulating in Brazil for a long time. However, in the last twenty years, there has been a change in the status of the legitimacy of these foreign productions. As a result, there is an emergence of numerous fan communities focused on these productions. Just like in other fandoms, fans of serial narratives produce various types of material, such as fanfics, fanarts, and internet memes. Thus, this article aims to investigate what are the similarities and differences that memes circulated in fandoms of different serial narratives carry among themselves. To this end, an ethnographic-inspired survey will be conducted in three fan communities, each focused on a different series. Between June 2018 and May 2019, the memes circulated within the fandoms were observed, seeking to identify those who presented intertextual references with elements from other serial narratives. It is argued that memes are an important tool for the circulation of American serial fictions in Brazil and for the sociability dynamics of Brazilian fans, contributing to the expansion of the narrative universe and influencing the experience of media consumption. There is an intense use of intertextuality, although the media productions referenced in the three communities are different.

 

Keywords: Television Studies; TV Series; Fandoms; Memes; Intertextuality.
Introdução

 

As séries televisivas estadunidenses circulam no Brasil há bastante tempo. Contudo, se antes eram chamadas negativamente de “enlatados”, observa-se que esses produtos midiáticos atualmente têm adquirido status de legitimidade. Esse movimento advém de profundas mudanças industriais, tecnológicas e culturais (SILVA, 2014) que influenciam a difusão e o consumo dessas narrativas não apenas no Estados Unidos, como também em outros locais do mundo. Nesse cenário, pesquisadores de diferentes países têm apontado para a emergência de uma audiência ávida por séries estadunidenses (JOST, 2012; KIM, 2019). Ao mesmo tempo, é possível notar que fandoms de programas televisivos adotaram o ambiente digital, seja para se organizarem, discutirem ou apenas divulgarem informações sobre os produtos midiáticos que gostam (ANDREJEVIC, 2008; ROSS, 2008). As comunidades de fãs funcionam como espaço de circulação de artefatos culturais confeccionados e/ou compartilhados por esses sujeitos, como as fanfics, as fanzines e, também, os memes de internet.

Embora muitas vezes sejam vistos pelo senso comum como superficiais, os memes podem se mostrar como uma importante ferramenta para a construção de identidades coletivas (MILNER, 2016). Assim, tomando como ponto de partida a proliferação do consumo de séries estadunidenses no Brasil (SILVA, 2014) e as dinâmicas organizacionais e de sociabilidade das comunidades de fãs no meio digital (BAYM, 2007; PEARSON, 2010), o presente artigo procura saber quais são as semelhanças e as diferenças que memes circulados em fandoms voltados para narrativas seriadas distintas carregam entre si. Em outras palavras: os fãs de diferentes séries televisivas utilizam os mesmos recursos intertextuais? Tendo em vista que são ricos em intertextualidade (KNOBEL; LANKSHEAR, 2020 [2007]), os memes que circulam em fandoms de narrativas seriadas poderiam ser úteis para mapear quais os outros objetos midiáticos que fazem parte do universo dos fãs brasileiros.

Para realizar o trabalho proposto, realizei uma pesquisa de inspiração etnográfica em três grupos situados no Facebook, cada um deles voltado para uma série televisiva distinta. O primeiro se chama “Grey's MiiL gRaU” e é voltado para os fãs da série médica Grey’s Anatomy (ABC, 2005-). Já o segundo é chamado de “Game of Thrones Brasil L&S” e volta-se para a fantasia Game of Thrones (HBO, 2011- 2019) e a saga literária na qual a série é baseada. Por fim, o último grupo se chama “O mundo sombrio de Sabrina Brasil” e gira em torno de The Chilling Adventures of Sabrina (Netflix, 2018-2020). A pesquisa foi realizada entre julho de 2018 e maio de 2019, período no qual mapeei a produção e circulação de memes dentro das três comunidades, verificando como a intertextualidade era articulada nessas peças.

Não pretendo fazer uma descrição muito extensa de todas as práticas existentes nos fandoms analisados. Em geral, esses grupos não apontam estruturações muito diferentes de outros estudos pautados em subculturas ou comunidades de fãs: possuem seus próprios códigos de conduta e também suas formas de distinção específicas (THORNTON, 1996; CAMPANELLA, 2012). Ao mesmo tempo, não procuro fazer uma celebração acrítica da cultura de fãs e nem tampouco dos estudos dos memes. Fandoms não possuem, necessariamente, um caráter subversivo (FREIRE FILHO, 2007) e, de fato, muitos deles reproduzem mecanismos de opressão já existentes na sociedade (SANDVOSS, 2013). Do mesmo modo, memes também podem ser repletos de preconceitos, apresentando falas racistas, sexistas ou xenófobas, por exemplo (SHIFMAN, 2014; PHILLIPS, 2015; LAMERICHS et al., 2018).

Todavia, argumento que os memes seriam uma importante ferramenta para a circulação de ficções seriadas estadunidenses no Brasil e para as dinâmicas de sociabilidade dos fãs brasileiros, contribuindo para a expansão do universo narrativo e influenciando a experiência do consumo midiático. Além disso, ao considerar que geralmente os sujeitos não se restringem a consumir um único objeto cultural, mas sim transitam por produtos com características semelhantes (JENKINS, 2006; ROSS, 2008), memes carregados de intertextualidade atuariam como indicadores dos hábitos de espectatorialidade dos fandoms analisados.

 

Circulação e consumo de séries estadunidenses no Brasil

Atualmente, a indústria de ficção seriada televisiva estadunidense passa por um momento de ascensão. Para além do aumento considerável no número de títulos lançados a cada ano nos Estados Unidos[1], também pode ser observada uma mudança cultural no status atribuído a essas produções (NEWMAN; LEVINE, 2012). Com isso, as séries do país têm sido vistas como legitimadas, movimento em grande parte facilitado 1) pelo discurso de distinção via qualidade atribuído a algumas dessas narrativas (MAIO, 2009; CASTELLANO; MEIMARIDIS, 2016); 2) pelo surgimento de tecnologias como o DVD e o download de arquivos digitais, que permitiram à audiência um maior controle sobre as práticas de espectatorialidade desvinculadas ao fluxo linear (LOTZ, 2007); e 3) pela proliferação de fandoms e outros espaços, profissionais e amadores, voltados para divulgação de narrativas seriadas (ANDREJEVIC, 2008; ROSS, 2008; SILVA, 2014)[2]. Nesse processo, as séries estadunidenses têm feito sucesso em diversos países do globo, como na França (JOST, 2012), na Coreia do Sul (KIM, 2019) e também no Brasil (SILVA, 2014).

No caso brasileiro, até o final da década de 1990 o discurso acerca desses produtos era bastante diferente do que se presencia atualmente, sendo comum que fossem chamados de “enlatados”, termo que carrega um valor pejorativo. Na rede de televisão aberta, eles funcionavam majoritariamente para preencher espaços vazios na grade, embora emissoras como a TV Record já tenham veiculado séries estadunidenses no horário nobre na tentativa de competir com a programação da TV Globo (FOLHA DE S. PAULO, 1990, p.4)[3]. Já na rede de TV paga, alguns canais posicionavam-se como alternativas à rede aberta e investiam na importação de séries de sucesso nos Estados Unidos, focando em nichos de mercado específicos, como a Sony com comédias e a AXN com séries de ação (STRAUBHAAR; DUARTE, 2005, p. 247)[4].

Após meados da década de 2000, observa-se o crescimento da circulação das séries estadunidenses no Brasil. Segundo Meimaridis e Oliveira (2018), a espectatorialidade em torno dessas narrativas sempre foi marcada pelo espaço de tempo entre a exibição do episódio na emissora original e a exibição na rede televisiva brasileira, o que poderia demorar semanas, meses ou até mesmo anos. Esse período de espera passou a ser gradativamente diminuído a partir da popularização da internet banda larga no país, que facilitou o consumo pirata desses produtos e, posteriormente, com a proliferação de empresas de vídeo sob demanda, como Netflix e Globoplay.

De fato, o meio digital exerceu um importante papel nesse processo, principalmente quando se leva em conta a adoção da internet como um espaço para a criação de comunidades dedicadas a distribuir novos episódios, confeccionar legendas e/ou compartilhar notícias sobre a trama (SÁ, 2014). Para Silva (2014), estaríamos vivendo um momento de intenso consumo de narrativas seriadas facilitado pela possibilidade de consumir produtos televisivos advindos de diversas partes do mundo e a partir de múltiplas telas. Isso seria decorrência de uma diminuição de barreiras geográficas e temporais que permitem não apenas assistir ilegalmente ao último episódio de uma série ainda em exibição, como também acessar a uma série finalizada há mais de vinte anos através de uma plataforma de streaming.

Entretanto, ainda que atualmente a audiência tenha uma maior autonomia sobre o que assistir, não se deve deixar de lado o fato de que a disponibilidade e a acessibilidade desses materiais passam por fatores mercadológicos e culturais. Isso é visível em produções que não circulam por meios oficiais. Por um lado, quanto menos popular for uma série, torna-se mais difícil encontrar os episódios. Além disso, temos uma barreira linguística: muitos dos fãs brasileiros precisam de legendas em português para consumir essas produções, legendas essas que são feitas pelo próprio fandom ou por equipes de legendagem independentes. Em contrapartida, sujeitos que assistem séries através de serviços de vídeo sob demanda ficam dependentes dos títulos disponibilizados nesses portais. Nesse sentido, por mais que a explosão no consumo de narrativas seriadas estadunidenses seja tratada como um fenômeno global, a forma como esse processo ocorre deve ser visto de acordo com as especificidades de cada país.

 

Memes e intertextualidade

Com o desenvolvimento da internet, as comunidades de fãs adotaram o ambiente digital como ferramenta presente na experiência do consumo televisivo (ANDREJEVIC, 2008; ROSS, 2008), espalhando-se em diversos espaços, como blogs, fóruns e sites de redes sociais, e adaptando-se de acordo com as possibilidades oferecidas em cada uma dessas opções (BAYM, 2007). Contudo, a construção de fandoms online não deve ser vista de forma utópica: embora os primeiros trabalhos sobre comunidades no meio digital celebrem esses espaços a partir de seu potencial democrático, a perspectiva atual aponta que esses grupos também podem ser repletos de disputas e divergências, nem sempre buscando uma construção coletiva de conhecimento (CAMPANELLA, 2012). Dentro dos fandoms, inúmeros materiais confeccionados por fãs são postos em circulação, como fanfics, fanfilms e fanarts (JENKINS, 2006; SANDVOSS, 2013). Para além de auxiliarem na divulgação do produto midiático pelo qual o fandom é estruturado (AMARAL et al., 2015), essas peças também podem oferecer indícios sobre os hábitos de consumo desses sujeitos e as leituras que são negociadas nesse processo (JENKINS, 1992; STEIN; BUSSE, 2009).

Dentre os mais diversos materiais circulados em comunidades de fãs, destaca-se aqui o papel dos memes. Shifman (2014, p. 41) os descreve como um conjunto de itens digitais que circulam na internet e guardam semelhanças estéticas, textuais e/ou ideológicas entre si e que são difundidas conscientemente pelos sujeitos através de práticas de imitação ou edição, como cópias, paródias, sátiras e as mais diversas formas de remix[5]. Ao mesmo tempo, o próprio conceito de circulação de memes compreende uma dupla relação que abarca tanto as peças confeccionadas e publicadas pelos indivíduos quanto o próprio ato de espalhar a informação (e o meme) por meio de ferramentas como encaminhar, repostar e compartilhar, por exemplo. Para Chagas (2018; 2020), cada meme pode ser definido como um acervo: da mesma forma que uma sala de museu é organizada a partir de diferentes obras conectadas por elementos centrais, cada meme também é formado por variadas peças cujo sentido só pode ser entendido quando se olha o conjunto.

Embora o conceito tenha nascido em um momento anterior à internet, foi com o meio digital que ele passou a ser popular. A partir de meados da década de 2000, membros de comunidades subculturais como o 4chan e o Reddit passaram a utilizar o termo para se referirem a peças pautadas por um tipo de humor[6] baseado nos códigos compartilhados por esses sujeitos e geralmente criadas a partir de algum procedimento de manipulação digital (DAVISON, 2012). Com o passar do tempo, alguns dos padrões estéticos e discursivos presentes nesses materiais foram se desenvolvendo, como os image macros[7] e os exploitables[8]. Segundo Phillips (2015), o ponto de virada foi no começo da década de 2010, quando esses formatos transitaram para locais moldados por uma lógica mainstream, sendo usado em campanhas publicitárias e/ou em sites de redes sociais como o Facebook.

Em paralelo, o debate sobre memes na Academia também passou por um intenso crescimento nas últimas duas décadas com pesquisas que procuraram não só delimitar o conceito, como também entender as dinâmicas que envolvem sua circulação (CHAGAS, 2020). A partir de uma pesquisa realizada na década de 2000, Knobel e Lankshear (2020) argumentam que um dos fatores predominantes nos memes circulados na internet é a presença da intertextualidade. Nas teorias da narrativa, ela é sinalizada pela relação de objetos que fazem referência a textos anteriores, contudo sua definição varia de acordo com o aporte teórico utilizado. Entende-se aqui que a intertextualidade é marcada pela presença de dois ou mais textos em um único objeto, seja em formas literais, como na citação, seja em formas mais abstratas, como na alusão (GENETTE, 2006).

Dentro dos estudos de memes, é possível perceber que a utilização de intertexto é uma estratégia bastante comum, podendo acionar referências a acontecimentos e personagens da cultura local, a outros formatos de memes já existentes e também a outros produtos midiáticos (SHIFMAN, 2014; MILNER, 2016). Ao mesmo tempo, estudos sobre intertextualidade também se fazem presente em inúmeras análises de textos feitos por fãs (JENKINS, 1992; STEIN; BUSSE, 2009). De fato, a inserção de referências intertextuais adiciona novas camadas de significados a um objeto. Esses acionamentos servem de auxílio para analisar não apenas “quais” textos compõem as camadas de significado desses memes, como também falam diretamente sobre “quem” são os sujeitos que as circulam.

Assim como a própria organização dos fandoms é afetada diretamente pelo contexto histórico-social em que está inserida (GRAY, 2010), os memes presentes nesses espaços também são atravessados por elementos culturais que influenciam na sua circulação. Quando vistos por uma perspectiva transnacional, é comum que esses itens tenham seus significados alterados para abarcarem o contexto local. Essa “glocalização[9] é trabalhada para substituir termos específicos de determinada cultura e inserir aspectos nacionais, regionais ou subculturais (SHIFMAN, 2014, p. 153). Por exemplo, dentro do fandom brasileiro de Game of Thrones, é comum que fãs “traduzam” o nome do personagem Jon Snow (Kit Harrington) para “João das Neves” com o intuito de obter um efeito cômico. O mesmo acontece na comunidade de Grey’s Anatomy, que se referem a protagonista da trama, Meredith Grey (Ellen Pompeo), como “Maria Edith”.

Nos fandoms televisivos, é notável que os memes circulados ofereçam pistas sobre os hábitos de espectatorialidade dos sujeitos, sejam eles compartilhados de forma simultânea ao consumo do episódio (ALMEIDA, 2020) ou espalhadas em outros momentos da experiência do fã. Nesse sentido, a presença de intertextualidade é encarada como um apontamento para os demais produtos midiáticos que fazem parte do universo de consumo desses sujeitos.

 

Três séries, três fandoms

Aqui, procuro delimitar os três grupos analisados neste trabalho, situados no Facebook. Enquanto plataforma, essa rede social apresenta diferentes formas de interações, algumas feitas de modo público, outras em locais de acesso restrito. Nesse cenário, as comunidades analisadas nesta pesquisa possuem uma estruturação semelhante: todas são grupos privados[10] destinados a fãs brasileiros de uma ficção seriada estadunidense. O primeiro fandom é o “Grey's MiiL gRaU”. Composto por cerca de 18 mil participantes[11], a comunidade é formada por fãs de Grey’s Anatomy, mas também abarca conversas de outras produções feitas pela empresa de Shonda Rhimes, a Shondaland, como How to Get Away With Murder (ABC, 2014-) e Station 19 (ABC, 2018-). Lançada em 2005, Grey’s Anatomy já passou por canais brasileiros da rede aberta (SBT) e da rede paga (canal Sony). Atualmente, também faz parte do catálogo da Netflix no Brasil. A série narra a vida conturbada da cirurgiã Meredith Grey e dos demais médicos de um hospital em Seattle, que precisam lidar com a pressão e as exigências da profissão ao mesmo tempo em que administram os conflitos de suas vidas pessoais.

Já o segundo é o “Game of Thrones Brasil L&S”. Com 264 mil membros[12], a comunidade é voltada para Game of Thrones, adaptação da saga literária As Crônicas de Gelo e Fogo. Descrita pelos showrunners como “uma batalha épica por poder que se passa em um vasto e violento reino de fantasia” (LITTLETON, 2011), a narrativa não tem um protagonista fixo, mas pode ser resumida em três arcos principais. No continente fictício de Westeros, o misterioso assassinato do conselheiro do rei se torna o estopim para que famílias nobres entrem em guerra pelo domínio do trono real, em um jogo marcado por disputas, alianças e traições. Enquanto isso, duas forças se erguem: ao leste, no continente de Essos, uma princesa dada como morta organiza um plano de vingança para tomar o lugar que considera seu por direito; ao norte, criaturas de gelo começam a ganhar força, trazendo consigo um longo inverno. Atualmente finalizada, a série era veiculada no Brasil apenas na rede de TV paga, pelo canal HBO.

Por fim, o último fandom analisado é “O mundo sombrio de Sabrina Brasil”. Com cerca de 83 mil participantes[13], ele é voltado para a série Chilling Adventures of Sabrina, desenvolvida pela Netflix e finalizada após quatro temporadas. A série é baseada em uma graphic novel homônima. A narrativa é centrada na meio-bruxa Sabrina Spellman, personagem criada pela Archie Comics na década de 1960 e que, desde então, possuiu diversas adaptações. Dentre as versões mais famosas está a comédia Sabrina: The Teenage Witch (ABC, 1996-2000; The WB, 2000-2003), que durante muito tempo também foi exibida no Brasil pelo canal SBT. Na nova versão, muitos dos elementos clássicos da narrativa se mantêm. Filha de um pai bruxo e uma mãe humana, a vida de Sabrina sempre se viu dividida entre esses dois mundos. Após completar 16 anos, ela precisa escolher qual caminho seguir: abraçar a magia e esquecer sua vida humana ou renunciar seus poderes e viver como uma mortal.

Metodologicamente, foi feita uma pesquisa de inspiração etnográfica analisando os conteúdos e interações que emergiam nas comunidades, semelhante a trabalhos como o de Campanella (2012), por exemplo. Em termos empíricos, foi feita uma observação participante entre julho de 2018 e maio de 2019, período em que Grey’s Anatomy veiculava sua 15ª temporada e Game of Thrones sua 8ª temporada. Já Chilling Adventures of Sabrina lançou sua 1ª temporada em outubro de 2018, um episódio especial de natal em dezembro do mesmo ano e sua 2ª temporada em abril de 2019[14]. A escolha das três séries e de suas respectivas comunidades se deu por dois motivos centrais. Em primeiro lugar, essas narrativas possuem ampla circulação pelo Brasil e, como pode ser visto nos fandoms, abarcam um número considerável de fãs. Em paralelo, elas possuem públicos-alvo distintos entre si. Desde o início, Grey’s Anatomy traz questões voltadas para um público feminino adulto. Game of Thrones, por outro lado, possui uma narrativa que dialoga principalmente com códigos de masculinidade, assim como outras séries produzidas pela HBO. Já com Chilling Adventures of Sabrina, a Netflix tem um público-alvo adolescente, ao mesmo tempo em que se utiliza da nostalgia para atrair também uma audiência que assistia à Sabrina: The Teenage Witch[15].

Embora tenham diferenças, as três comunidades possibilitam a mesma funcionalidade: proporcionar um espaço para a interação entre fãs de ficções seriadas e, com isso, a circulação de memes sobre as séries. No decorrer dos dez meses de pesquisa, observei diariamente as comunidades, mantive um diário de campo e identifiquei um incontável número de produções que foram compartilhadas dentro dos grupos. A seguir, apresento alguns dos memes que chamaram a atenção durante o trabalho, focando especificamente naqueles que articulavam referências intertextuais. Em termos concretos, são esses memes que compõe o corpus da pesquisa.

 

Uma série de referências

O primeiro aspecto que chama a atenção são as formas de compartilhamento de memes. Dentro dos grupos, é comum que os membros não apenas publiquem conteúdos criados por eles mesmos, como também encaminhem publicações de outros espaços, seja por meio da ferramenta de compartilhamento do próprio Facebook, seja através da captura de tela de outros sites de redes sociais. Em geral, a dinâmica de difusão de memes nos grupos se assemelha a identificada por autores como Almeida (2020): há uma grande presença de memes de reação comentando sobre elementos da narrativa (Figuras 1, 2 e 3). Nesse sentido, ao compartilhar um meme, o sujeito “passa adiante” um item cultural ao mesmo tempo em que aponta sentimentos sobre a peça, esperando que os outros membros da comunidade compartilhem das mesmas sensações (SHIFMAN, 2014, p. 19).

 

Figura 1 - Meme de reação circulado na “Grey's MiiL gRaU

 

https://bit.ly/3vowG9u

 

Fonte: Grey's MiiL gRaU (2018).

 

Figura 2 - Meme de reação circulado na “Game of Thrones Brasil L&S”

 

https://bit.ly/2SaquUm

 

Fonte: Game of Thrones Brasil L&S (2019).

 

 

Figura 3 - Meme de reação circulado na “O mundo sombrio de Sabrina Brasil”

 

https://bit.ly/3vp5gAm

 

Fonte: O mundo sombrio de Sabrina Brasil (2019).

 

No que tange especificamente a intertextualidade, os fãs a utilizam em determinados memes como ferramentas de hierarquização das produções, especialmente de outras narrativas seriadas. Essas disputas aparecem desde formas mais incisivas, como no compartilhamento de publicações feitas com intuito de “eleger” a melhor série, quanto de maneiras mais sutis. Na Figura 4, circulada na “Game of Thrones Brasil L&S”, há uma clara ordenação dos títulos apresentados, ainda que todos sejam considerados na imagem como “boas” produções. De forma semelhante, na Figura 5 também há uma disputa “encenada” na discussão entre fãs de Game of Thrones e fãs da série Supernatural (CW, 2005-2020). Esses exemplos também apontam para um fator recorrente nas três comunidades: a utilização de formatos já reconhecidos como memes. O primeiro é retirado de uma cena do filme Steve Jobs (2015), enquanto o segundo é baseado em uma briga ocorrida no reality show American Chopper (Discovery Channel, 2003-2007; TLC, 2008-2010).

 

Figura 4 – Meme com intertextualidade entre Game of Thrones, The Walking Dead e Supernatural

 

 

https://bit.ly/32Z40aS

 

Fonte: Game of Thrones Brasil L&S (2018).

 

 

Figura 5 - Meme com intertextualidade entre Game of Thrones e Supernatural

 

https://bit.ly/2S0ElML

 

Fonte: Game of Thrones Brasil L&S (2019).

 

Em ambos os casos, os padrões de forma e conteúdo viralizaram e acabaram se tornando uma espécie de “template” com os sentidos “traduzidos” para o contexto do fandom em questão. Mas isso não significa dizer que todos os fãs concordam totalmente com os conteúdos compartilhados. Na publicação da Figura 4, por exemplo, pude observar comentários como “SPN > ALL”[16], indicando que Supernatural é melhor que as demais. Em outro caso, uma fã rebateu a publicação da Figura 5, comentando com uma imagem que trazia a legenda “TROFÉU POSTA BOSTA/PARABÉNS FERA! VOCÊ MERECEU!”, claramente discordando do meme publicado. Portanto, assim como em outras produções de fãs (JENKINS, 1992; SANDVOSS, 2013), a legitimidade dos discursos trazidos pelos memes é negociada a todo momento dentro da comunidade.

Mais do que as disputas por legitimidade, é interessante observar na análise dos fandoms os objetos midiáticos que são mencionados. Por exemplo, em “O mundo sombrio de Sabrina Brasil” recorrentemente citam a série policial Lúcifer (Fox, 2016-2018; Netflix, 2019-), que se une à Chilling Adventures of Sabrina pela linha narrativa, tendo em vista que o personagem Lúcifer é central em ambas as produções: a primeira como protagonista e na segunda como vilão. Com isso, é comum que fãs publiquem memes trabalhando de forma cômica sobre esse elemento (Figura 6). Em paralelo, também é comum na comunidade a circulação desses itens com referências musicais. Durante a pesquisa, identifiquei um meme que trazia como legenda versos de “Thank You, Next”, música da cantora estadunidense Ariana Grande (Figuras 7 e 8). Embora distintos esteticamente, as imagens possuíam um formato que se conectava através do texto e serviam para comentar sobre os relacionamentos de Sabrina na trama.

 

Figura 6 - Meme com intertextualidade entre Chilling Adventures of Sabrina e Lúcifer

 

https://bit.ly/3gMo2NW

 

Fonte: O mundo sombrio de Sabrina Brasil (2019).

 

Figura 7 - Meme com intertextualidade entre Chilling Adventures of Sabrina e Thank You Next

 

https://bit.ly/3dZNm19

Fonte: O mundo sombrio de Sabrina Brasil (2019).

 

Figura 8 - Meme com intertextualidade entre Chilling Adventures of Sabrina e Thank You, Next

 

https://bit.ly/32URsBg

 

Fonte: O mundo sombrio de Sabrina Brasil (2019).

 

               Enquanto os memes de Chilling Adventures of Sabrina giram em torno de satanismo e bruxaria, as publicações da “Grey’s MiiL GrAu” focam em temas como morte e tragédias, recorrentes em Grey’s Anatomy. Dentro da comunidade, as referências intertextuais geralmente recaem sobre séries que também foram produzidas pela Shondaland ou que contenham algum dos atores que passaram pelo drama médico. Entretanto, um dos memes que se destacou durante a pesquisa é o apresentado na Figura 9, que traça conexões com Pretty Little Liars (Freeform, 2010-2017), série de suspense voltada para o público adolescente. A imagem original na verdade é baseada em uma campanha promocional de Pretty Little Liars que ficou famosa e se espalhou como um padrão imagético. Nela, os personagens de Grey’s Anatomy ainda vivos são justapostos no rosto das protagonistas da outra série mencionada, enquanto os que já morreram estão sendo enterrados.

 

Figura 9 - Meme com intertextualidade entre Grey’s Anatomy e Pretty Little Liars.

 

https://bit.ly/3dZ7kJu

Fonte: Grey’s MiiL GrAu (2019).

 

             Já na “Game of Thrones Brasil L&S”, as referências intertextuais costumam ser vinculadas às séries ditas como voltadas para o público masculino, como Supernatural e The Walking Dead (AMC, 2010-), ou que estão inseridas no discurso de distinção via qualidade (MAIO, 2009), como Breaking Bad (AMC, 2008-2013). Outra série bastante citada no grupo durante a pesquisa foi a ficção científica Westworld (HBO, 2017-), produção que atualmente é o carro-chefe da HBO. A Figura 10, por exemplo, apresenta um trocadilho com “Valar Dohaeris”, um tipo de saudação presente em Game of Thrones, com Dolores, nome da protagonista de Westworld.

 

Figura 10 - Meme com intertextualidade entre Game of Thrones e Westworld.

 

https://bit.ly/3nsQyWl

Fonte: Game of Thrones Brasil L&S (2019).

 

A partir dos casos que foram aqui apresentados, é possível ter uma noção de como funciona a circulação de memes nesses fandoms. Em primeiro lugar, pontua-se que, embora haja referências intertextuais a produtos midiáticos de outros campos, como do cinema e da música, o que foi observado é a presença majoritária de títulos relacionados ao universo da indústria de ficção seriada televisiva. Apesar disso, as séries mobilizadas em cada comunidade raramente são as mesmas. Claro, podemos salientar que fãs de um determinado produto costumam se interessar por outros de gêneros semelhantes (JENKINS, 1992; 2006). Mas, ao mesmo tempo, isso também significa dizer que, se quisermos pensar em profundidade sobre o atual momento da circulação de séries no Brasil, é também preciso estar atento a essas nuances apresentadas pela audiência.

Por outro lado, por mais que as referências intertextuais presentes nas comunidades analisadas não se sobreponham, é interessante notar que os recursos das dinâmicas de estruturação dos memes circulados são bastante parecidos. Nesse sentido, para além dos memes de reação (Figuras 1, 2 e 3), também se destaca a utilização de padrões imagéticos (Figuras 4, 5 e 9) e/ou textuais (Figuras 7 e 8) provenientes de outros espaços e que são remixados e aproveitados pelos membros dos fandoms. Nessas peças, a intertextualidade é utilizada como recurso mobilizado pelos fãs para dialogarem com outros produtos midiáticos que fazem parte do universo de consumo desses sujeitos, seja para distingui-los e hierarquizá-los, seja para fazer comentários engraçados sobre as séries.

As dinâmicas de circulação de memes que foram observadas se opõem a uma abordagem das comunidades de fãs como ambientes isolados ou formados por um público homogêneo. Longe disso, a presença de intertextos nas peças analisadas aponta para uma percepção dos fãs de série sobre a cultura em que estão inseridos e retratam as complexas relações que são negociadas por esses sujeitos. Memes, enquanto artefatos discursivos culturais (MINER, 2016; KNOBEL; LANKSHEAR, 2020), são partes essenciais nos processos de sociabilidade e de atravessamentos contextuais característicos desses grupos.

 

Considerações Finais

A circulação de séries estadunidenses pelo mundo sofreu grandes modificações nos últimos vinte anos. Embora estejamos falando de um processo industrial, tecnológico e cultural proveniente dos Estados Unidos, seus efeitos também são sentidos no Brasil. No cenário atual, as comunidades de fãs encontraram em sites como o Facebook um espaço para se organizarem. Aliado a isso, esses grupos também servem como espaço para circulação de diferentes materiais criados pelos próprios fãs e que dialogam diretamente com o produto midiático de que gostam, inclusive memes.

Neste artigo, procuramos observar os memes compartilhados em comunidades de fãs de ficção seriada com o intuito de identificar quais outros produtos são acionados pelos sujeitos. Assim, tratamos memes como uma importante peça de sociabilidade circulada nas comunidades de fãs de séries, capaz de ressaltar aspectos de consumo e espectatorialidade. Muito mais do que apenas uma resposta da recepção, os memes são peças recorrentes no processo de circulação das séries de televisão estadunidenses no Brasil. Através da intertextualidade, esses memes conectam diferentes produtos midiáticos nos quais os fãs se inserem, criando uma verdadeira teia de referências.

Sem dúvida, o trabalho possui limitações, de forma que incentivamos abordagens que tragam outros corpus e métodos de análise. Todavia, ressaltamos também as contribuições provenientes do esforço proferido. Ao constatar que as séries referenciadas nas três comunidades de fãs não são as mesmas, denota-se que existem subgrupos de gostos. Embora essa constatação possa parecer óbvia, essa afirmação vai de encontro com o discurso homogeneizante da circulação de séries no país. Por fim, é preciso também se perguntar quais são as narrativas seriadas que circulam no Brasil, por quais meios são difundidas e como são hierarquizadas pelos fãs. Só assim teremos um melhor entendimento dos processos culturais que envolvem a circulação de séries estadunidenses vivenciados no Brasil atualmente, as configurações midiáticas existentes e os fluxos de conteúdo que o nosso mercado apresenta.

 

Notas

[1] Em 2019, mais de 500 séries foram veiculadas nos Estados Unidos (GOLDBERG, 2020).

[2] Silva (2014) cita a coluna de Patricia Kogut, no Jornal O Globo, e o site Seriemaníacos, feito por fãs, que se dedicam a falar sobre séries e demais assuntos relacionados à televisão.

[3] Em 1990, a TV Record exibiu no horário nobre a série policial Jake and The Fatman (CBS, 1987-1992). A inclusão periódica de produções estadunidenses era uma estratégia recorrente na emissora e pôde ser vista com a exibição de narrativas como C.S.I. (CBS, 2000-2015) até meados da década de 2010 (PAZ, 2020).

[4] Todavia, o acesso à TV paga ainda era limitado. Segundo Gomes (2016), embora a popularização do número de assinaturas tenha ocorrido com maior evidência a partir de 2004, o público consumidor era formado majoritariamente por famílias de classe A e B.

[5] A visão apresentada pela autora procura se desprender de outros textos clássicos da memética, como o de Dawkins (1976), que enxerga esses materiais como unidades separadas de informação cultural, e traz contribuições para as complexas articulações que ocorrem atualmente no meio digital.

[6] Entretanto, cabe ressaltar que nem todos os memes são pautados pelo humor.

[7] Image macro é um formato de meme desenvolvido a partir de uma imagem sobreposta de legendas.

[8] Exploitable é um formato de meme desenvolvido a partir de imagens justapostas, geralmente construídos a partir de manipulação digital.

[9] Shifman (2014) argumenta que o termo combina conteúdos locais num cenário de globalização, ao mesmo tempo em que se opõe a um argumento de homogeneização cultural.

[10] No Facebook, os grupos privados ficam indexados no mecanismo de pesquisa da plataforma, porém é preciso solicitar o ingresso aos administradores para conseguir acessar os conteúdos publicados.

[11] Dados coletados em 24 jun. 2020.

[12] Dados coletados em 24 jun. 2020.

[13] Dados coletados em 24 jun. 2020.

[14] Por ser uma série desenvolvida pela Netflix, Chilling Adventures of Sabrina disponibilizava todos os episódios da temporada no mesmo dia.

[15] Nos últimos anos, a Netflix tem lançado diversas séries que abordam questões ligadas à nostalgia, como Stranger Things (Netflix, 2016-) e Fuller House (Netflix, 2016-). Castellano e Meimaridis (2017) argumentam que a empresa instrumentaliza a nostalgia em uma tentativa de retomar a audiência. Para as autoras, em um contexto de grande competição, seria mais atrativo investir em histórias já previamente conhecidas.

[16] “SPN” é uma abreviação utilizada por fãs para se referirem à série Supernatural.

 

Referências

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[1] Doutorando pelo Programa de Pós-Graduação em Comunicação da Universidade Federal FLuminense (PPGCOM-UFF). Pesquisador associado ao grupo de pesquisa TeleVisões (UFF), ao coLAB (UFF) e ao projeto Série Clube (UFF). E-mail: daniel_rios@id.uff.br.

[2] Doutorando pelo Programa de Pós-Graduação em Comunicação da Universidade Federal FLuminense (PPGCOM-UFF). Pesquisador associado ao grupo de pesquisa TeleVisões (UFF), ao coLAB (UFF) e ao projeto Série Clube (UFF). E-mail: daniel_rios@id.uff.br.