A
mídia independente pós junho 2013:
a comunicação alternativa da
Ponte Jornalismo e dos Jornalistas Livres
Adilson
Vaz Cabral Filho[1]
Jaqueline Suarez Bastos[2]
Resumo: Com as chamadas Jornadas de Junho de 2013,
uma série de transformações ocorridas no cenário político brasileiro incidiu
também na reconfiguração de iniciativas de produção e circulação de grupos de
mídia alternativa, afetando modos de atuação política e a conformação de
movimentos sociais contemporâneos. Tendo em consideração essas mudanças,
busca-se propor uma nova classificação ao conjunto dessas iniciativas, tendo o
viés alternativo como articulador que reforçam dimensões independente,
comunitária ou contra-hegemônica, que passaram a originar novos fluxos de
produção e circulação de conteúdos, não apenas mobilizadores de alternativas
midiáticas, como de um questionamento que se passou a fazer na prática e em
processos cotidianos de atuação articulada com as várias frentes de ação
presentes. Com base nesse panorama inicialmente traçado e a partir de pesquisas
bibliográfica e documental, são analisadas duas iniciativas que trabalham com
um refazer jornalístico afirmado pela alternativa no posicionamento e
independência nas práticas jornalísticas dos coletivos de mídia: os coletivos
Ponte Jornalismo e Jornalistas Livres. A pesquisa parte do acompanhamento da
atuação dessas iniciativas na produção de conteúdos jornalísticos, além de
entrevistas com seus realizadores.
Palavras-chave: Mídia Independente; Comunicação
Alternativa; Sustentabilidade da Mídia; Ponte Jornalismo; Jornalistas Livres.
Independent media post-June 2013: alternative
communication of Ponte Jornalismo and Jornalistas Livres
Adilson
Vaz Cabral Filho[3]
Jaqueline Suarez Bastos[4]
Abstract: With the so-called Journeys of June
2013, transformations occurred in the Brazilian political scenario also
affected the reconfiguration of production and circulation initiatives by
alternative media groups, affecting ways of political action and the conformation
of contemporary social movements. Taking these changes into consideration, we
seek to propose a new classification to the set of these initiatives, having
the alternative bias as an articulator that reinforces independent, community
or counter-hegemonic, which started to originate new flows of production and
circulation of contents, not only by activists of media alternatives, as well
as a questioning that started to be done in practice and in everyday processes
of articulated action with the many activist fronts. Based on this overview
initially outlined and considering bibliographic and documentary research,
there are analyzed two initiatives that work with a journalistic
reconstruction, affirmed by the alternative in placement and independence in the
journalistic practices of the media collectives: the collectives Ponte Jornalismo and Jornalistas
Livres. The research starts from monitoring the performance of these
initiatives in the production of journalistic content, in addition to
interviews with their directors.
Keywords:
Independent Media;
Alternative Communication; Media Sustainability; Ponte Jornalismo; Jornalistas
Livres.
Introdução
As chamadas Jornadas de Junho de
2013 resultaram num complexo divisor de águas no cenário político brasileiro,
afetando modos de atuação política e a conformação de movimentos sociais
contemporâneos. Nesse contexto, os conteúdos midiáticos tradicionais passaram a
ser percebidos e questionados pelos manifestantes nas ruas, bem como pelos coletivos
que promoviam ou apenas participavam dos atos. Assim passaram a originar novos
fluxos de produção e de circulação de conteúdos, não apenas mobilizadores de
alternativas midiáticas, como de um questionamento que se passou a fazer na
prática e em processos cotidianos de atuação articulada com as várias frentes
de ação presentes.
Os diversos coletivos surgidos a
partir daí refizeram o campo da comunicação distinta da tradicional. A começar
pelo próprio conceito de coletivo, substituindo os de grupo e de organização,
como um processo mais dinâmico e referenciado nos temas que movem seus
integrantes e na prática derivada de seus interesses. A sustentabilidade passa
a ser também tema determinante, na medida da reivindicação da autonomia como
princípio de independência para afirmar essas iniciativas.
Trata-se, portanto, de propor uma
nova classificação ao conjunto dessas iniciativas, em virtude de movimentações
já relativamente recentes, tendo como ponto de partida a reorientação
proporcionada pelos protestos de junho de 2013. Compreende-se, portanto, o viés
alternativo como articulador de iniciativas de comunicação comprometidas com a
investigação de temas relevantes para a sociedade, em torno dos quais são
identificadas dinâmicas que reforçam dimensões independentes, comunitárias ou
mesmo contra-hegemônicas em sua atuação cotidiana.
Dentro do panorama inicialmente
traçado, são abordadas mais especificamente duas iniciativas que trabalham com
um refazer jornalístico em contraponto aos conteúdos das mídias tradicionais
referenciados nos protestos, buscando afirmar alternativa no posicionamento e a
independência nas práticas jornalísticas dos coletivos de mídia. São estes os
coletivos: Ponte Jornalismo e Jornalistas Livres.
Busca-se investigar, portanto, o
seguinte problema de pesquisa: que alternativa esses coletivos defendem e
buscam implementar em suas trajetórias? Para tanto, serão trabalhadas o
acompanhamento da atuação dessas iniciativas na produção de conteúdos
jornalísticos, além de entrevistas desenvolvidas junto a seus realizadores
durante os dias de pesquisa de campo. Será trabalhada também uma pesquisa
bibliográfica, visando a abordagem temática dessas iniciativas no contexto da
comunicação alternativa e dos desdobramentos a partir das jornadas de junho de
2013, além de pesquisa documental referente a textos de referência de fundação
e posicionamentos políticos dos coletivos a serem pesquisados. A partir de seus
resultados, tem-se, como expectativa, identificar possibilidades de legitimação
social dessas iniciativas que permitam sua continuidade.
Comunicação em adjetivos
Autoras como Regina Festa (FESTA;
LINS; SILVA, 1986), Beatriz Dornelles (2007) e Cicília Peruzzo (2009) se
debruçaram na complexa tarefa de tipificar tais iniciativas, a partir de
associações organizadas em torno dessas iniciativas, como a Asociación Latinoamericana de Educación y
Comunicación Popular (ALER) e a Associação Mundial de Rádios Comunitárias
(AMARC). De um modo geral, suas contribuições tomavam como referência a
caracterização das iniciativas em relação ao seu fazer cotidiano, ao modo de
atuação de seus produtores e à destinação social de suas atividades. Ou seja, a
definição de um ou outro adjetivo teve relação direta com a própria experiência
em si e seu entorno.
Uma possibilidade de tipificação
dessas iniciativas seria levar em conta o reconhecimento legal no contexto da
regulamentação e regulação da área de comunicação. Assim, tal como proposto
pela AMARC e diversos autores, constituiria-se o setor comunitário como
distinto do estatal e do privado nas legislações dos distintos países, tendo
incidência em aspectos como a distribuição do espectro eletromagnético e da
verba publicitária, entre outros.
Assim, é possível compreender as
distintas qualificações da comunicação realizadas por e para grupos populares
em torno de adjetivos como popular, participativa, participatória, horizontal,
dialógica ou mesmo social, que denotam uma comunicação que reforça atributos de
articulação dos grupos envolvidos ou a destinação dos conteúdos produzidos.
Reforçam mais características e ressaltam contribuições proporcionadas por
grupos de apoio e de assessoria na articulação com pessoas para as quais são
destinados os produtos realizados.
Termos como alternativa ou
independente atribuídos à comunicação afirmariam a dimensão política de
processos e produtos comunicacionais, ressaltando a distinção que se define
pelo descolamento com a mídia tradicional, buscando caminhos a serem
evidenciados na gestão, na programação e na produção, em especial na linguagem
e nos formatos de conteúdos relacionados à população. São termos utilizados
também pela própria mídia comercial, ao se distinguirem de determinados padrões
tradicionais de qualidade estética, embora tais iniciativas não sejam objeto
desta pesquisa.
Tentativas mais recentes de
reação a esse modelo hegemônico resultaram em novas adjetivações ao longo das
primeiras décadas do século XXI. A mídia radical (DOWNING, 2002), surgida de
agrupamentos populacionais que se percebem em processos de enraizamento social
em seus locais de atuação, conforma espaços próprios de atuação que recolocam
em outras bases as práticas de comunicação popular dos anos 1970 e 1980.
Nesses modelos contemporâneos, a
forma coletivo, recorrente nos circuitos artísticos dos anos 1970, ressurge
como reagenciamento de grupos populares e sociais, de assessoria ou não a
setores de baixa renda da população, promovendo práticas comunicacionais que
resultam em processos interativos e até colaborativos. Traduzem-se numa
De toda essa vasta gama de
possibilidades e referências de qualificação do ativismo midiático, as
iniciativas surgidas em torno da radiodifusão comunitária apresentam trajetórias
particularmente interessantes, na medida em que foram implementadas no
enfrentamento a processos regulatórios de países com maior ou menor restrição
política. Assim, estas iniciativas são passíveis de regulamentação específica
por se utilizarem do espectro eletromagnético, uma propriedade restrita ao
âmbito federal.
Ponto de virada
Cabe compreender, no entanto, que
as Jornadas de Junho de 2013 proporcionaram um novo ponto de virada e uma nova
perspectiva de análise para a compreensão dessas iniciativas. Vale lembrar que,
a despeito das possibilidades tecnológicas e necessidades políticas, a
apropriação social dos processos comunicacionais nunca foi determinante no meio
acadêmico ou no meio social, mesmo dentro do campo da Comunicação. Assim, as
tentativas de considerável visibilidade dessas iniciativas, bem como da
necessidade de compreensão de políticas de comunicação nas quais tivessem
reconhecimento, foram raras desde a articulação mais organizada de um movimento
pela democratização da comunicação no país.
É possível identificar três
momentos de ampliação dessa visibilidade da luta pela democratização da
comunicação no Brasil: a ramificação brasileira da Campanha CRIS (pela sigla em
inglês, Direito à Comunicação na Sociedade da Informação), no início do século
XXI, que mobilizou movimentos sociais distintos para a compreensão da
Comunicação como processo; a realização, em 2009, da I Confecom — Conferência
Nacional de Comunicação —, que mobilizou grupos e organizações de diversos
setores em todo o país; e, por último, as Jornadas de Junho de 2013, na qual
surgiram coletivos distintos a partir das próprias ruas, que se apropriaram de
tecnologias digitais e de rede, proporcionando uma mídia alternativa aos
conteúdos veiculados pela mídia tradicional, visto que esses não traduziam a
realidade da opressão sofrida nos protestos diários em diversas cidades do
país.
Comunicação alternativa como chave conceitual
Uma sociedade verdadeiramente
democrática deveria buscar, tal como proposto por Dieter Prokop (apud MARCONDES FILHO, 1986, p.17) a
“supressão da contraposição entre produtores e receptores de comunicação”, isso
porque a diferença de acesso aos meios de produção de discursos implica na
manutenção de uma assimetria de poder. Contudo, o que se observa na gestão da
radiodifusão, especialmente no cenário brasileiro, é o domínio do pólo de
emissão por um número reduzido de pessoas ou grupos, enquanto à maioria é
reservado (quando o é) apenas o direito de ouvir. Esse desequilíbrio, para
Moles e Zeltman (1975 apud GRINBERG,
1987), nos coloca no centro das desigualdades e contradições sociais, servindo
de impulso ao surgimento de ações alternativas no campo da comunicação.
Essa outra comunicação, para
Downing (2002), costuma emergir de um contexto de opressão ou instabilidade
social, no qual a informação seja objeto de controle. O autor desenvolveu a
ideia de “mídia radical” para designar práticas de formatos variados, que
expressem perspectivas alternativas às hegemônicas. A formulação do termo,
segundo o autor, justifica-se pela abrangência e ambiguidade da ideia de
“alternativo”. Afinal, é alternativo ao quê?
John Downing não está sozinho ao
apontar o aspecto relativamente mutável do termo. Grinberg (1987, p.30) realiza
uma avaliação similar, contudo empenha também um esforço de delimitar em
relação ao que ou quem essa comunicação se constrói como opção. Para o autor,
essa “opção é sempre frente aos grupos que usufruem, em proveito de setores
privilegiados (econômicos e/ou políticos), da propriedade e/ou controle dos
meios de informação”. É preciso que essa ideia de oposição seja somada ainda a
uma prática, verdadeiramente alternativa, manifesta por meio do discurso
observável, “explícita ou implicitamente, pela escolha dos temas, por sua
classificação e seu tratamento, claramente aberto e antiautoritário”.
Sob o rótulo de comunicação
alternativa, encontram-se experiências bastante variadas, exigindo que as
tentativas de definição não sejam estanques. As características dessas
iniciativas serão diretamente influenciadas (e modificadas) pelas
possibilidades e limitações presentes no contexto social do qual emergem.
Apesar de suas singularidades, Peruzzo (2009, p. 58) argumenta que elas podem
ser tomadas como sinônimas “quando se referem às lutas de segmentos subalternos
por sua emancipação”. Ou seja, a busca por transformações sociais por meio do
acesso à palavra é um ideal comum, como também apontam Kucinski (2003) e
Grinberg (1987). Outro ponto de convergência está na participação — mais ou
menos ativa — do cidadão na produção e difusão do conteúdo, visando o
empoderamento (e aprendizado) dos envolvidos no decorrer do processo (FREIRE,
2003; PERUZZO, 2009).
No Brasil, o termo alternativo,
como resgata Peruzzo (2009) e Kucinski (2003), se popularizou entre as décadas
de 1960 e 1980, em referência à comunicação feita pelos movimentos sociais —
que mais tarde seria reconhecida e identificada como comunicação popular — e,
também, pela imprensa que não se aliou ao regime militar. Era uma época “em que
a maioria dos grandes jornais se alinhava à visão oficial do governo, por opção
político-ideológica ou pela coerção, sob a força da censura” (PERUZZO, 2009, p.
53). Nesse cenário, a formação da imprensa alternativa faz parte de um contexto
mais amplo de cerceamento à liberdade de expressão, tensões sociais, além da
forte influência do movimento de contracultura e da atuação dos movimentos
estudantis.
Propomos nesse trabalho o
entendimento da comunicação alternativa como um conceito chave para a
observação das demais experiências de comunicação, que se baseiam na distinção
ao sistema estatal/privado. As adjetivações demarcam identidades particulares —
quem participa; a finalidade; o conteúdo; a dinâmica de produção etc. —, mas a
existência dessa variedade de nomes não anula o caráter comum de alternativa ao
sistema hegemônico presente em todas elas.
Costa (2010) entende o
alternativo como um grande guarda-chuva — em nível teórico e prático — capaz de
abarcar outras comunicações, sem, no entanto, tomá-las como iguais. Para o
autor, a mídia alternativa “engloba toda produção considerada marginal à
convencional, no fundo, porque representa uma alternativa à natureza dominante
do sistema sócio, político, econômico e cultural de um país” (COSTA, 2010, p.
238). A partir disso, é possível afirmar a mídia independente como forma de
comunicação alternativa, sem, no entanto, apagar sua identidade própria. Mas,
além disso, conceber a definição de um conceito chave a partir de
transformações no modo de produzir e disseminar conteúdos de mídia, que
demarcou uma nova época de ativismo político e midiático.
Do que estamos falando, quando
usamos o termo independente para definir esta mídia? Trata-se de um debate
aberto e controverso. Como um conceito, seu significado é relacional, isto é, não
há uma essência determinada, assumindo compreensões diversas em contextos
variados. Ainda assim, trata-se de termo que, por muito tempo, vem sendo
disputado no campo da comunicação. Karppinen e Moe (2016) argumentam que seu
uso é motivado, sobretudo, por uma necessidade de legitimação ao discurso
jornalístico, sendo reivindicado, inclusive, pelas empresas hegemônicas de
comunicação.
A ideia de mídia independente —
fora da lógica comercial — foi bastante acionada no começo desse século, a
partir da atuação do Centro de Mídia Independente (CMI), que surgiu como parte
de um projeto global de comunicação (CABRAL, 2019). A iniciativa emergiu
durante as manifestações contra representantes globais do capitalismo, que
ocorreram a partir de 1998 em várias cidades do mundo. Cabral (apud Cabral,
2010, p. 827) aponta que estas iniciativas propõem:
[...] modelos alternativos de
gestão, de uso das tecnologias disponibilizadas, bem como de organização social
e produção cultural que permitem afirmar o termo independente como relacionado
a algo que se constrói no processo, nas articulações promovidas pelo fluxo da
informação produzida, distribuída e circulada na rede, em suas inúmeras
composições.
Como verificado em um estudo
anterior (BASTOS; COSTA, 2018), a retomada do discurso independente se
fundamenta na necessidade de diferenciar-se das demais ações alternativas de
comunicação em curso, reivindicando uma identidade própria. O discurso e as
práticas em torno da autonomia editorial e da sustentabilidade financeira são
as principais características desse tipo de iniciativa como discutiremos a
seguir.
Vertentes independentes da mídia alternativa
A ânsia por definições esbarra na
variedade e inconstância das iniciativas de mídia que reivindicam o termo
independente. Nossa maior preocupação é não tomar um único caso como
representativo do todo, por isso, ressaltamos que nossa análise, ainda em
estágio inicial, é centrada em sujeitos específicos: os coletivos Ponte
Jornalismo e Jornalistas Livres. Nosso objetivo é entender que alternativa
esses arranjos defendem e buscam realizar em suas trajetórias. Para tanto,
utilizamos como instrumentos a revisão bibliográfica, o levantamento documental
e, principalmente, o trabalho de observação participante e as entrevistas com
colaboradores dos dois projetos.
Ponte e Jornalistas Livres são
coletivos criados após as manifestações de 2013, período de expansão desse tipo
de arranjo no Brasil. A onda de protestos, que teve continuidade nos anos
seguintes, foi um fator determinante, porém não foi o único. A instabilidade
social, que se manifestava com a ocupação das ruas, foi alimentada pelos
escândalos de corrupção na política, pelo aumento do desemprego e das
desigualdades sociais no país, além do endurecimento da violência, atingindo principalmente
grupos minoritários (pessoas negras, LGBTQIA+, indígenas, periféricos, etc.).
No campo jornalístico, o declínio
de confiança da população nos veículos tradicionais e o encolhimento de várias
redações — e consequente demissão de profissionais — foram fatores que
impulsionaram a busca por alternativas, tanto por parte de quem consome as
informações, como também, por quem as produz. O posicionamento adotado pelas
grandes empresas de comunicação frente a esse cenário, especialmente na
cobertura das manifestações, impulsionou um crescente descontentamento da
população, o questionamento aos seus interesses (políticos) e a crítica ao
modelo de realidade construído por essas empresas.
Ponte e Jornalistas Livres foram
projetos iniciados por jornalistas que faziam ou fazem, ainda hoje, parte da
chamada grande mídia. Criados em 2014 e 2015, respectivamente, ambos têm sua
sede na cidade de São Paulo, ampliando suas bases de trabalho por outros
estados. Ao menos onze pessoas compõem o núcleo fixo da Ponte, que conta ainda
com colaboradores esporádicos de fora da capital paulista. Já o Jornalistas
Livres, tem um modelo de trabalho mais aberto, organizado a partir de uma rede
de coletivos espalhados pelo Brasil, totalizando um número indefinido de
participantes.
Entendemos a partir das
experiências de campo realizadas até aqui, que Ponte e Jornalistas Livres são
representativos de dois arranjos diferentes encontrados na mídia independente.
O primeiro configura-se como um mercado alternativo às empresas jornalísticas
tradicionais, mantendo semelhanças quanto à lógica de produção, com a
participação (apenas) de profissionais da comunicação e remuneração dos
envolvidos, como acontece na Ponte Jornalismo. Um segundo grupo é exemplificado
pelo modelo assumido pelo coletivo Jornalistas Livres, no qual os colaboradores
exercem seu ativismo por meio da comunicação, podendo ou não ter experiência
formal na área e com atuação voluntária na produção do conteúdo.
Em ambos os casos, os projetos
pautam a sua independência sob o viés da transparência, tomando as questões de
autonomia editorial e financiamento como centrais na sua construção. Ponte e
Jornalistas Livres apresentam-se como independentes e explicitam em suas
páginas a ausência de vínculos com empresas, partidos ou instituições
governamentais. O desatrelamento institucional, como verificado em um estudo
anterior (BASTOS; COSTA, 2018) é, para os realizadores, fundamental para a
garantia do exercício de uma comunicação livre. Para Grinberg (1987) qualquer
relação associativa pode acarretar implicações à comunicação alternativa, isso
porque seja qual for a organização apoiadora do projeto, esta possui interesses
próprios, que podem ou não coincidir com as intenções dos participantes.
Em vista de maior autonomia, o
modelo de financiamento coletivo é o adotado pela maior parte dos projetos da
mídia independente, incluindo Ponte e Jornalistas Livres. O objetivo não é o
lucro, mas sim a sustentabilidade econômica das atividades. O modelo adotado
pela mídia independente pode ou não envolver a remuneração dos colaboradores,
porém, na maioria das vezes essa atuação é voluntária e, não raramente, são os
próprios participantes que contribuem financeiramente para que a iniciativa
continue existindo, seja por meio da doação direta de dinheiro ou da utilização
de equipamentos próprios ou compra (BASTOS; COSTA, 2018).
Desde sua criação até o momento,
a obtenção de recursos da Ponte se dá por meio de doações regulares da
sociedade civil. Os recursos são destinados ao custeio do trabalho, a locação
de uma sede, manutenção do site e remuneração de parte da equipe envolvida. O
coletivo também organiza ou participa de eventos, cursos e editais, que
constituem uma via secundária para obtenção de recursos.
A sobrevivência financeira do
Jornalistas Livres também tem como base o financiamento coletivo. Diferente da
Ponte, o coletivo mantém suas atividades desde o início (2015) com cerca de 150
mil arrecadados em uma campanha única de lançamento. Os recursos têm sido
destinados à compra de equipamentos, manutenção do site e viagens para
coberturas específicas. O projeto chegou a ter uma sede própria, mas o espaço
foi entregue depois de alguns anos como medida de economia. Todos os envolvidos
no projeto participam voluntariamente e não recebem qualquer tipo de
remuneração financeira.
Ponte Jornalismo
A Ponte Jornalismo é um coletivo
pautado pela produção de conteúdo na área de Direitos Humanos, com foco na
Segurança Pública. A equipe fundadora foi reunida inicialmente pela Agência
Pública para realização de uma série de reportagens sobre o tema (Segurança
Pública). Com a conclusão do projeto, parte do grupo decidiu continuar, dando
início ao coletivo em 2014.
O núcleo duro da Ponte é composto
por profissionais reconhecidos no meio jornalístico, que trabalham ou já
trabalharam em grandes redações. Isto tem influência não apenas na qualidade
técnica (tomando o jornalismo comercial como referência), como também, na
credibilidade do conteúdo produzido por eles. Interessante pontuar, que algumas
reportagens da Ponte são replicadas pelo Jornal El País e, mais recentemente,
também pelo UOL, site de propriedade do Grupo Folha.
O discurso que circunda a proposta da Ponte tem
como base o contraponto à mídia tradicional:
violência de
estado, segurança pública, racismo e preconceito de gênero são problemas que
afetam o funcionamento de toda a sociedade e que só podem ser resolvidos se
forem expostos. Infelizmente a imprensa brasileira em geral prefere
ignorá-los (PONTE, 2020, grifo nosso).
Mais do que lançar outro olhar, a
missão do coletivo é fazer uma ponte entre as questões da periferia e a
sociedade de forma geral. Essa é, segundo a jornalista Maria Carolina Trevisan,
a ideia que deu origem ao nome Ponte Jornalismo, que faz uma alusão à música Da
ponte pra cá, dos Racionais MC’s. A letra evidencia as diferenças entre o
“asfalto” e a periferia, tomando como referência a favela do Capão Redondo, na
capital paulista.
Leonardo Coelho, colaborador da
Ponte no Rio de Janeiro, destaca que o diferencial do coletivo não está apenas
no conteúdo, mas, principalmente, na forma de tratamento dado ao mesmo. A ordem
em que os relatos aparecem no texto jornalístico sugestiona ao leitor uma ordem
hierárquica, que na Ponte é invertida. As fontes oficiais são ouvidas, mas não
têm a centralidade que ocupam na proposta editorial dos veículos comerciais. A
prioridade, segundo Leonardo, é ouvir as pessoas comuns envolvidas ou vitimadas
pelo ocorrido.
A linha editorial é algo que você
vai pegando no dia a dia, porque cobrir Direitos Humanos, Justiça e Segurança
Pública é diferente de você cobrir polícia. Então, necessita de uma mudança de
ótica aí. Se tem uma coisa que você não pode fazer na Ponte é [escrever] ‘de
acordo com a polícia, etc, etc, etc’ e deixar por isso mesmo, entende? Vão
perguntar se você ouviu o outro lado, quem são as vítimas (COELHO, 2019,
informação verbal)[1].
Leonardo começou a colaborar com
o coletivo em 2016 por intermédio de uma conhecida que já fazia parte do
projeto. Seu trabalho no coletivo é voluntário, porém há matérias de maior
destaque pelas quais ele é remunerado, como a cobertura do assassinato da
vereadora Marielle Franco (PSOL), em março de 2018. As matérias pagas, segundo
ele, são conteúdos de maior urgência e repercussão, enquanto pautas menores
costumam ser realizadas sem remuneração financeira. Por estar afastado da base
do coletivo — localizada em São Paulo —, o contato que ele tem com a equipe se
dá, quase exclusivamente, por grupo de mensagens, desde a discussão de pautas
até possíveis alterações em alguma matéria.
A indicação sobre o quê e quando
cobrir é sugerido na maior parte das vezes por Leonardo, mas também há
indicações que vêm do núcleo principal (SP). As pautas cobertas pela Ponte
chegam, principalmente, por indicação à página ou site e/ou diretamente ao
colaborador do coletivo. Muitos membros do grupo participam ou são conhecidos
de movimentos, entidades e sujeitos com forte atuação e envolvimento na área de
Segurança Pública, o que garante acesso aos temas e rede de contatos.
A abertura à participação
externa, assim como, a horizontalidade no processo de produção são
características comuns entre as mídias independentes, podendo ser observada em
níveis diferentes em cada coletivo. O intuito é fazer com que o leitor ocupe um
lugar mais potente que o de simples receptor daquilo que é produzido, abrindo
espaço para uma participação mais ativa e cidadã.
Na Ponte, o leitor é convidado a
participar de três formas: por meio de doações, repercutindo o conteúdo ou,
ainda, colaborando diretamente na construção das reportagens. Necessário
pontuar que, apesar das possibilidades de participação, sem medidas concretas
que estimulem a prática por parte do coletivo, o número de pessoas e o grau de
envolvimento dessas no processo de produção ainda são mínimos.
Jornalistas Livres
O Jornalistas Livres teve início
em março de 2015 durante uma série de manifestações contrárias e favoráveis ao
processo de impeachment contra a presidente Dilma Rousseff. A proposta,
liderada naquele momento por jornalistas, era fazer uma cobertura diferente dos
veículos tradicionais, abrindo espaço para que as pessoas fossem ouvidas: “a
gente queria ter gente na manifestação no chão, que pudesse contar o que estava
acontecendo de verdade ali, quem eram aquelas pessoas presentes, quais eram as
reivindicações, que tipo de pauta estava sendo pedida” (TREVISAN, 2015, n.p.).
Em um momento marcado pela polarização política, o coletivo esteve na cobertura
pró e contra a saída de Dilma.
Contudo, não podemos tomar a
presença em ambos os eventos como uma tentativa de imparcialidade ou
neutralidade por parte do coletivo, muito pelo contrário. Num manifesto de
apresentação, disponível no site, o coletivo afirma que a ideia de
independência defendida está relacionada muito mais à transparência e à
diversidade, do que a não existência de uma opinião ou posicionamento político:
Temos lado (cada uma de nós tem
seus próprios lados). Individualmente, não somos neutros, isentos,
apartidários, brancos ou nulos. Nossa pluralidade é resultado do agrupamento de
todos nós, não da ruptura interna de nossos corpos e mentes individuais
(JORNALISTAS LIVRES, 2020)[2].
A neutralidade não costuma ser um
princípio perseguido pela mídia independente (BASTOS; COSTA 2018; FIGARO,
2018), o que não significa que esta seja, necessariamente, atrelada a partidos
ou atores políticos. Ao contestar os ideais de imparcialidade, neutralidade e
objetividade, a mídia independente nega, consequentemente, um suposto
afastamento entre realizadores e narrativas. Distancia-se ainda do
posicionamento corriqueiro adotado por veículos hegemônicos, assumindo ser
inalcançável ao sujeito que atua na cobertura anular sua individualidade e seu
cotidiano.
Afirmar tal implicação não
denota, necessariamente, abertura ao subjetivismo, mas demarca para o público
que o coletivo e o realizador possuem um lado. O Jornalistas Livres é,
assumidamente, um coletivo de esquerda: “o que tem que ficar claro é que nós
somos um coletivo de mídia à esquerda, nós não somos um coletivo de mídia
partidário, são coisas muito diferentes. Nós não estamos e nem estaremos a
serviço de nenhum partido” (PASSOS, 2019, informação verbal).
Kátia Passos é jornalista e faz
parte do grupo que estava na fundação do projeto. A diversidade do coletivo se
dá tanto pelas vertentes políticas (à esquerda ou independentes), como também,
pelas áreas de atuação profissional. Àqueles que são de fora do campo da
comunicação vão aprendendo durante o processo, com o auxílio dos que possuem
formação ou conhecimento técnico. O número total de participantes, segundo
Kátia, é indefinido. Isso porque, a divisão em núcleos e organização, quase
exclusivamente, via grupos de mensagem dificulta a contabilização. Além disso,
a entrada e saída de novos membros são constantes.
A rede do Jornalistas Livres se
organiza a partir do Telegram. Há grupos para cada cidade e/ou estado, outros
são formados a partir de coberturas específicas, além do grupo de Publicadores.
É neste último que estão todos que possuem acesso direto para publicação nos
perfis do coletivo. Sobre essa dinâmica, Kátia explica que todos os grupos
locais possuem, ao menos, um membro que também está no [grupo] Publicadores.
Essas pessoas são responsáveis por publicar ou repassar o conteúdo a outro
publicador, que fará a revisão e publicação do material. Sobre a entrada de
novos membros, Lucas Martins, estudante de Letras e fotógrafo no coletivo,
explica:
Quase sempre é o mesmo processo.
Vai começando a colaborar, pegando a dinâmica, tendo coisas publicadas e daí,
ou desiste porque não se interessa ou não tem tempo e sai, ou vai chegando e se
incorpora, por exemplo, aos Publicadores. Estar no [grupo] Publicadores não tem
nenhum prestígio, mas é o mais importante porque é o papel funcional, é
importante pela responsabilidade (MARTINS, 2019, informação verbal)[3].
Para estimular a participação
e/ou entrada de novos colaboradores, o núcleo de São Paulo realizava reuniões
de pauta abertas à comunidade. No entanto, a ideia foi abandonada, segundo
Lucas, por não haver pessoas o suficiente para acompanhar o processo de entrada
dos novos participantes: “isso exige um trabalho muito grande de
acompanhamento. Tem que fazer pauta, auxiliar e dar atenção as pessoas que
estão entrando. Não é descaso, mas é difícil manter isso” (MARTINS, 2019). O
envio de pautas ou material já pronto diretamente à página ou perfil individual
dos ativistas é o meio mais potente de participação externa no Jornalistas
Livres na atualidade.
Por fim, importante pontuar sobre
o envolvimento dos ativistas em movimentos sociais e grupos políticos diversos.
A atuação particular junto a essas organizações aproxima o coletivo das pessoas
e das realidades retratadas, fortalecendo a relação e facilitando o acesso às
fontes. Grande parte das reportagens realizadas, segundo Lucas, tem origem em
denúncias feitas em off. Nesse sentido, a conquista e manutenção da confiança
tornam-se vitais para a reputação do coletivo. A recepção ao Jornalistas
Livres, como pudemos observar durante a cobertura da celebração do Dia da Consciência
Negra (2019), em São Paulo, é bastante positiva.
Considerações finais
O amplo e diverso conjunto de
adjetivações usado para designar a comunicação fora do espectro estatal/privado
por vezes contribui para o apagamento da natureza comum a todas elas: a
constituição de uma alternativa ao sistema dominante. Se por um lado
compreendeu-se aqui a comunicação alternativa como chave conceitual para
conceber essas iniciativas, por outro tais adjetivações também têm uma função
essencial ao delimitar uma identidade própria a cada uma delas. A reivindicação
do termo independente pós 2013, cumpre, assim, uma função de caracterizar e,
principalmente, demarcar o que difere esses novos projetos das iniciativas em
curso naquele momento.
A partir do observado, podemos
afirmar que não há uma mídia independente uníssona, mas sim um conjunto amplo e
diverso que reivindica o uso do termo, sendo os coletivos Ponte Jornalismo e
Jornalistas Livres representantes de dois modelos bastante diferentes entre si.
O discurso de desatrelamento às instituições (sejam quais forem), que se
materializa no tipo de financiamento, no arranjo de produção e, especialmente,
no conteúdo, é o ponto comum a ambos os projetos. Outro ponto compartilhado é a
construção na noção de independência associada à transparência.
Nossa compreensão, defendida ao
longo deste trabalho, é que a mídia independente, que se configurou no contexto
das manifestações populares de 2013 no Brasil, trouxe contribuições específicas
no que tangem ao discurso e prática de uma comunicação alternativa, sem, no
entanto, se isolar das demais práticas do campo. Desse modo, a mídia
independente se reinventa e se redefine como parte do amplo ecossistema que
caracteriza a comunicação alternativa no país.
Notas
[1] Leonardo Coelho em entrevista à
autora no Rio de Janeiro, gravada em 30/09/2019.
[2] O manifesto está disponível em
<https://bit.ly/3Alyti6>. Acesso em: 8 ago. 2021.
[3] Lucas Martins em entrevista à autora em São Paulo, gravada em
22/11/2019.
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[1] Professor Titular da Universidade
Federal Fluminense, com atuação no Departamento de Comunicação Social e no
Programa de Pós-graduação em Mídia e Cotidiano (PPGMC). Doutor em Comunicação
Social pela Universidade Metodista de São Paulo (UMESP). Email: acabral@comunicacao.pro.br.
[2] Mestre em Mídia e Cotidiano pela
Universidade Federal Fluminense (UFF). Email: suarez.jaque@gmail.com.
[3] Professor Titular da Universidade
Federal Fluminense, com atuação no Departamento de Comunicação Social e no
Programa de Pós-graduação em Mídia e Cotidiano (PPGMC). Doutor em Comunicação
Social pela Universidade Metodista de São Paulo (UMESP). Email:
acabral@comunicacao.pro.br..
[4] Mestre em Mídia e Cotidiano pela Universidade Federal Fluminense (UFF). Email: suarez.jaque@gmail.com.