Arquivo Televisivo:

Imaginário, Memória e Laço Social Revisitado

 

Mario Abel Bressan Junior[1]

Heloisa Juncklaus Preis Moraes[2]

 

Resumo: Este estudo objetiva expor reflexões sobre a reformulação do Laço Social constituído com a televisão, através das recordações evocadas nos telespectadores, com a atuação de uma memória teleafetiva e com os novos formatos de consumo audiovisual. Analisa os comentários do público que assistiu ao remake do programa Cassino do Chacrinha, exibido em 2017, na Rede Globo de Televisão e no Canal Viva, em comemoração ao centenário de Abelardo Barbosa, importante comunicador brasileiro entre as décadas de 1970 e 1980. Como procedimentos metodológicos, aplica-se a análise de conteúdo de Laurence Bardin (2011) nos textos postados no Twitter com a expressão “Cassino do Chacrinha” nos dias 28 de agosto de 2017 (programa exibido no Canal Viva) e 6 de setembro de 2017 (Rede Globo). O embasamento teórico é fundamentado nos conceitos de memória coletiva (HALBWACHS, 2003), Memória Teleafetiva (BRESSAN JÚNIOR, 2019), Laço Social (WOLTON, 1996) e Imaginário (DURAND, 2002); (MORAES, 2019); (SILVA, 2017).  A pesquisa discute as relações entre imaginário, memória e laço social, a partir de um arquivo televisivo, apresentando marcas da memória teleafetiva por imagens pregnantes e compartilhadas nos comentários analisados.

Palavras-chave: Memória; Arquivo Televisivo; Televisão; Laço Social; Chacrinha.

 

Televisual Archive:

Imaginary, Memory and Re-Visited Social Bond

 

Mario Abel Bressan Junior[3]

Heloisa Juncklaus Preis Moraes[4]

 

Abstract: This respective study aims to expose some thoughts about the reformulation of the social bond constituted with the television, through remembrances evoked among television viewers involving a tele-affective memory and new formats inside audiovisual consumption. In addition to this, it analyses the comments of people that watched a remake of the Brazilian program Cassino do Chacrinha (Chacrinha’s Casino), which aired in 2017 on Rede Globo de Televisão (TV Globo) and Canal Viva (Viva), commemorating the centenary of Abelardo Barbosa, a very important Brazilian TV host who acted between the ’70s and ’80s. Our methodology follows the Content Analysis mobilised by Laurence Bardin (2011) in relation to texts posted on Twitter containing the expression “Cassino do Chacrinha” in August 3, 2017 (aired on Viva) and September 6, 2017 (aired on TV Globo). We want to discuss the relationship between imaginary, memory, and social bond starting from a televisual archive, where we present tele-affective marks of memory through substantial and shared images that appear in these analysed comments.

Keywords: Memory; Televisual Archive; Television; Social Bond; Chacrinha.

 

Introdução

 

As pesquisas que temos promovido buscam discutir as constituições de laços sociais a partir das tecnologias do imaginário — dispositivos de formação de imagens que fazem sentido coletivamente. A televisão ainda é um desses mecanismos que coloca na cena cotidiana imagens que, simbolicamente, têm uma força de adesão ao conjunto. Tratamos aqui, especialmente, de cenas de rememoração. Ainda que pelas atualizações estéticas, criam um vínculo de pertencimento e, por isso, afetivo, mobilizadas pelo arquivo televisivo. Logo, partimos do princípio de que o Laço Social conceituado por Wolton (1996) sofre alterações ao ser relacionado aos novos espaços para o consumo audiovisual, diante da hiper e pós-televisão, da interatividade, ubiquidade e com as pulsões afetivas das recordações presentes no imaginário social, perante as imagens que são revisitadas.

Este estudo objetiva expor reflexões sobre a reformulação do Laço Social constituído com a televisão, através das recordações evocadas nos telespectadores, com a atuação de uma memória teleafetiva e com os novos formatos de consumo audiovisual. Como objeto de estudo, escolhemos o remake do programa Cassino do Chacrinha, exibido em 2017, na Rede Globo de Televisão e no Canal Viva, em comemoração ao centenário de Abelardo Barbosa, importante comunicador brasileiro entre as décadas de 1970 e 1980. Vale reforçar que Barbosa, o Chacrinha, é ícone da comunicação no Brasil, com um estilo pessoal e de programa muito peculiar.  O "Velho Guerreiro”, como era também chamado o comunicador, começou a carreira no rádio, mas fez história na televisão. Estreou na Rede Globo de Televisão em 1967, onde comandou programas de auditório de sucesso.  Morreu em 1988, aos 70 anos. O Cassino do Chacrinha foi um programa de auditório popular, marcado pela excentricidade e extravagância do apresentador, desde o figurino à condução do programa, e pelos bordões conhecidos até hoje (MEMÓRIA GLOBO, 2019).

Para essas discussões, trazemos como questões problemas: 1) De que maneira o Laço Social formado pela televisão generalista é reformulado pelo público que (re)assiste o mesmo formato e elementos de um programa de massa das décadas de 1970 e 1980, nos canais aberto e fechado, a partir da atuação de uma memória teleafetiva? 2) Qual a função do arquivo televisivo ao reconstruir um programa trinta anos depois? 3) Que imaginário há nessa a relação afetiva da memória televisiva?

Estamos amparados pelas assertivas de que as imagens ganham força pela existência comum, tal como nos alerta Maffesoli (2007, p. 12), ao lembrar-nos de que “o ético, fundamento do vínculo social, depende estruturalmente do estético: é essa capacidade de experimentar emoções, compartilhá-las, transformá-las em cimento de uma sociedade”. Essa ética da estética que move o imaginário social lança imagens simbolicamente expressivas e que fazem sentido coletivamente, quer via imaginação — imagens do devir —, quer via memória — imagens do passado que estão, em si, carregadas de sentido e afetividade e sempre adquirem potência pela emoção. Estamos lançando aqui essa noção de um imaginário que se fortalece pelo vínculo e ganha no arquivo televisivo um dispositivo de engendramento levando o que Bressan Júnior (2019) nomeia de memória teleafetiva.

No trajeto antropológico (DURAND, 2002) individual ou coletivo, absorvemos, carregamos e ressignificamos emoções, sensações, experiências arquivadas através de imagens. Neste percurso, “a memória é um instrumento precioso em que o imaginário se manifesta e (re)constrói as ações simbólicas cotidianas” (MORAES, BRESSAN E JORGE, 2018, p. 162). Assim, nossa busca é analisar marcas de afeto e sentido, através de imagens do passado que se atualizam, que formam uma ambiência simbólica, espécie de aura coletiva, perceptíveis nas narrativas que se formam através de comentários da rede social Twitter.

Esperamos que ao discutir essas questões estejamos contribuindo com as reflexões sobre os sentidos e as ambiências sociais mediadas pela tecnologia que marcam a ética e a estética contemporânea, especialmente mediadas pela televisão e ancoradas por imagens capazes de mobilizar o imaginário social pela memória teleafetiva.

 

Do arquivo televisivo à memória teleafetiva

 

A televisão, desde seus primeiros passos, mostra-nos o quanto é necessário estudá-la enquanto meio social de produção simbólica e afetiva. Além disso, atua como um arquivo “flutuante” de conteúdo, que guarda, recupera e expõe elementos para serem recordados tempos depois. 

Nessa história, desde a Paleotelevisão e a Neotelevisão, classificação dada por Umberto Eco (1984) ao diferenciar a função da TV, em que a primeira consistia em uma fase mais informativa, com “[...] pouca coisa para ver”, diferente da segunda, em que o entretenimento transpunha a experiência televisiva (ECO, 1984, p. 203), o estar diante dela caracteriza o que Wolton (1996) define de Laço Social. Para o autor, a TV de massa apresenta duas funcionalidades parcialmente distintas: 1) a de sustentar o Laço Social na sociedade, que é padronizada; 2) e, ao mesmo tempo, conceder esse laço num contexto que aparece cada vez mais contraditório. Consiste em uma transversalidade importante, se analisarmos as distintas manifestações culturais e simbólicas da audiência. Uma única programação pode unir indivíduos, independente da classe social, cultural e região em que estão inseridos.

A força da televisão está no religamento dos níveis da experiência individual e da coletiva. Ela é a única atividade a fazer a ligação igualitária entre ricos e pobres, jovens e velhos, rurais e urbanos, entre os cultos e os menos cultos. Todo mundo assiste à televisão e fala sobre ela. Qual outra atividade é, hoje, tão transversal? Se a televisão não existisse, muita gente sonharia em inventar um instrumento capaz de reunir todos os públicos. Isso é o que é a unidade teórica da televisão (WOLTON, 1996, p. 16).

É com a televisão, afirma Wolton (1996), que o Laço Social é formado justamente nessa função de religamento, que nos insere em uma unidade. Para o autor, a televisão serve como instrumento de comunicação entre indivíduos pelo fato de pautar suas conversas sobre o que se vê na TV e não ao que se assiste. Por isso ela é um objeto que possibilita a conversação, dentro e fora de casa, sobre o conteúdo exibido. “Nisso é que ela é um Laço Social indispensável numa sociedade onde os indivíduos ficam frequentemente isolados e, às vezes, solitários” (WOLTON, 1996, p. 16).

Nas demais instituições, a formação do Laço Social já se estabelecia. Na igreja, no trabalho, na escola, na família, nas “práticas institucionalizadas”. Conforme descrito por Wolton, sempre houve a formação de um traço ligando os indivíduos. Porém, com o advento da televisão, isso passou a ser percebido no campo da recepção. Para ele, a televisão tornara-se o “espelho” da sociedade, no qual o espectador poderia se ver. 

No entanto, conforme Wolton (1996), o Laço Social na televisão só ocorre na TV aberta, por oferecer uma programação comum, em uma sociedade que, para ele, é individualista. Contudo, consideramos que seja possível observar esse Laço Social também na TV fechada e na programação on demand, dada a função de unificar um público que a assiste, proporcionando experiências individuais e coletivas.

Com a participação do telespectador em sites de rede sociais, esse laço passa a ser identificado, deixa de ser anônimo. Esta pode ser uma das principais mudanças na história de como podemos entender a televisão via fenômeno social e cultural. Mesmo inserida em outras telas e plataformas, o consumo do audiovisual permanece. No entanto, consideramos a permanência de um Laço Social, não mais dentro de uma teia invisível. As conversações em sites de redes sociais sobre os conteúdos televisivos demarcam sua existência e transferem para o processo de transmidiação a readequação de uma nova unidade, um outro formato de vínculo e união social, agora ubíquo, características da atual fase da televisão.

A televisão com sua função de arquivo guarda fatos e imagens. São centenas de registros: notícias, ficção, narrativas, variedades. Situações em que a TV “fala” de forma informativa (Paleotelevisão) e de si mesma (Neotelevisão), e que em determinado momento evocam reminiscências ao exibi-los tempos depois.

O rememorar consiste em trazer de volta um tempo que estava armazenado, escondido ou pouco visitado em nossas memórias. Nessa perspectiva, a televisão consiste em um dispositivo que produz lembranças constantes aos telespectadores.  Ao reprisar um programa, expõe elementos que serão percebidos e, com isso, uma recordação será impulsionada. O arquivo televisivo carrega consigo essa qualidade de rememorar um tempo passado.

A memória só acontece porque as pessoas buscam as reminiscências no que está preservado dentro de si.  A partir disso, o arquivo televisivo faz sentido quando, além de obter a função de guardar registros, constituído por um repositório audiovisual, estabelece uma significação que sobrepuja o aparato técnico. Ou seja, para se constituir como dispositivo sociocultural, de nada adianta, se não houver uma memória vivida e sentida pelo telespectador. O arquivo é máquina; a memória é humana.

Nessa relação de evocação das lembranças, os afetos se fazem presentes quando o arquivo televisivo traz um sentido ao público. As pessoas são socialmente constituídas em uma relação afetiva. Nesse contexto, Bressan Júnior (2019) apresenta um conceito de memória teleafetiva, evidenciada pela reformulação de um Laço Social e fortalecida pelos grupos de referência, que auxiliam na constituição desses elementos.

A memória teleafetiva recupera uma recordação de uma experiência vivida em determinada época, data ou ano, em que pessoas tiveram acontecimentos diante do arquivo televisivo (re)exibido e rememorado. Uma cena, uma notícia ou uma música, por exemplo, podem evocar sensações prazerosas e sentimentais sobre algo vivido. Isso em virtude de uma relação afetiva intensificada pela TV.

 

Esta memória teleafetiva é a responsável por recuperar e reformular reminiscências reconstituídas a partir das imagens exibidas na televisão e pelos afetos em torno das vibrações provocadas por ela. Além de socializadora (FERRÉS, 1998), de Laço Social (WOLTON, 1996), a TV pode ser um desses "lugares" (HALBWACHS, 2003) que revisitamos e que são percebidos pelas nossas memórias (BRESSAN JÚNIOR, 2019, p. 96).

 

É teleafetiva porque está inserida em uma relação emocional que somente a televisão, o consumo audiovisual permite acontecer. O arquivo nesse meio consiste em um objeto que estabelece uma mediação socioafetiva com o público. A memória teleafetiva recupera uma recordação de uma experiência vivida em determinada época, data ou ano, em que pessoas tiveram acontecimentos diante da TV ou rememorado a partir dela. Difere-se da memória afetiva (BRESSAN JÚNIOR, 2019) por trazer pulsões geradas a partir da visualização das imagens televisivas, provocadas pelos efeitos emocionais durante o ato de reassistir. A teleafetividade da memória, nesse caso, é resultado do Laço Social reformulado pelas recordações (BRESSAN JÚNIOR, 2019).

Com a função do arquivo televisivo em trazer um tempo passado, o Laço Social proposto por Wolton (1996) é reconstruído com as memórias afetivas da audiência, visto os afetos dispostos nesse resgate. Esta teia invisível passa a ser redesenhada com as experiências antigas e atuais. Há uma pulsão emotiva através da lembrança que acrescenta um “fio duplo”, traçado pelas ingerências de um déjà vu.

O déjà vu na televisão possibilita laços constantes. Quem assistiu a uma programação há tempos está inserido em Laço Social. Assim, quando revê a cena, além do laço formado naquela época, outros são constituídos, a partir de uma memória resgatada. 

A memória teleafetiva, quando mobilizada, traz sentimentos agenciados pelas imagens presentes no imaginário individual, mas que ganha uma mobilização coletiva que forma o Laço Social e de identificação em torno de seus símbolos. Ou seja, um trajeto formado de imagens que podem ser rememoradas e atualizadas por capacidade do próprio imaginário. Essa sua faculdade de rememoração é o que discutiremos na seção a seguir.

 

Imaginário e Imagens de rememoração

 

            As discussões que relacionam Memória e Imaginário levam em consideração o caráter simbólico da vida social, pois é através desse tipo de laço simbólico que se dá o consenso na partilha do sensível. Maffesoli (2007) baseia suas análises sobre o imaginário pós-moderno na unidade do cotidiano pelas formas sensíveis. É nesse circuito que colocamos o nosso objeto de análise ou, mais precisamente, o que o recorte de nossa análise nos permite discutir, pelas narrativas-depoimentos, as marcas do sentir e do viver mobilizadas simbolicamente pelo arquivo televisivo.

A memória nos permite revisitar um tempo vivido ou, ainda, criar um ambiente simbólico de saudosismo e pertencimento pelas imagens. É nessa assertiva que se enquadram pessoas que não viveram determinada época, mas sentem-se atraídas e partilham simbolicamente os momentos e sua ambiência cultural. Para Durand (2002, p. 403), “a memória — como imagem — é essa magia vicariante pela qual um fragmento existencial pode resumir e simbolizar a totalidade do tempo reencontrado”. Logo, podemos inferir, baseados nas palavras do autor, que a memória tem caráter fundamental ao imaginário que é ser eufemismo, a “função fantástica da memória” (DURAND, 2002, p. 402).

Um mecanismo de rememoração torna acessível o passado pelas vias do imaginário. A memória, assim como a imaginação, muitas vezes imbricando-se àquela, é uma faculdade do imaginário. Entendemos este — o imaginário — a partir de Durand (2002, p. 18), como “o conjunto das imagens e das relações de imagens que constitui o capital pensado do homo sapiens”, grande denominador das criações humanas.

Maffesoli (2007) defende que as fantasias pós-modernas ancoram-se nos costumes: uma figura física pode presentificar sentimentos e paixões que vêm de longe, de tempos anteriores. As figuras, imagens, “são simbólicas na medida em que unificam, garantem a coerência, tornam visível uma força invisível” (MAFFESOLI, 2007, p. 115), formando um grupo, uma comunidade. Há uma

 

“‘consciência retentora’ que garante no presente a presença do passado. Nesse sentido, essas figuras levam a nós mesmos, para além de nós mesmos. Em suma, o que ‘foi percebido’ sedimentou-se e continua a viver, atualiza-se no cotidiano. Toda perspectiva fenomenológica repousa na compreensão desse ‘ter-sido’ que perdura sob a forma de vestígios, mas vestígios funcionais” (MAFFESOLI, 2007, p. 116).

 

Enraizamento dinâmico cujos processos de reminiscências faz-nos participar de uma coletividade, de uma comunidade (MAFFESOLI, 2007). A vivência prática de uma experiência individual enraíza-se na experiência coletiva. Há “memoriais”, imagens contempladas, que permitem não só o processo de rememoração, mas de identificação e pertencimento do Laço Social. O imaginário é formado por potencial criador, pois, enquanto seres simbólicos, forjamos imagens para desempenhar as nossas ações cotidianas (MORAES, 2019). Assim, “o imaginário coloca-se como reservatório semântico potencializador do cotidiano” (MORAES, BRESSAN E JORGE, 2018, p. 166).

Por isso, tal como apresenta Durand, cremos no semantismo das imagens, o fato de não serem apenas signos, mas “conterem materialmente, de algum modo, o seu sentido” (DURAND, 2002, p. 59). E é em busca desse semantismo, via narrativas dos telespectatores do arquivo televisivo, que buscamos as marcas da memória teleafetiva criadora de vínculos e mobilizadoras de imaginários.

 

Procedimentos metodológicos

 

A presente pesquisa possui como campo de análise a internet, por meio das menções dos termos publicados no Twitter sobre o Cassino do Chacrinha, exibido pelo Canal Viva, no dia 26 de agosto de 2017, e pela Rede Globo, em 6 de setembro de 2017.

A internet, explicam Fragoso, Recuero e Amaral (2013), pode ser tanto objeto (o que é estudado), local (espaço onde é realizada a investigação) e instrumento de pesquisa (mecanismo para coleta de dados). Dessa forma, é o  nosso campo para a busca de elementos e informações para a concepção da análise. Este procedimento metodológico possui amparo em ações e conceitos de transmidiação, que vêm crescendo muito no Brasil.

A participação dos brasileiros nessa rede de investigação vem aumentando. Em 2017, Lopes e Greco (2018) destacam que a telenovela A Força do Querer (Globo) obteve 829 milhões de impressões no Twitter, por meio de 6 milhões de tweets. “Os dados de Kantar Ibope Media indicam que essa foi a ficção televisiva com maior repercussão no Twitter em 2017” (LOPES; GRECO, 2018, p. 123).

Diante desses dados, justificamos o uso desse meio para campo de investigação, visto que, conforme descrito por Lopes e Greco (2016), é considerável e notável a importância da ferramenta como espaço de compartilhamento de conteúdo e de “conversas” sobre ficção. Além disso, as redes sociais permitem uma interlocução marginal: “as interações com a informação (ou a busca de conteúdo) tem sido estabelecida pela energia despertada pela ação dos símbolos e dos afetos (MORAES, 2019, p. 98). Assim, pelas redes sociais é possível manifestar uma adesão simbólica e estabelecer um Laço Social.

Baseamos essa escolha também, no que Fechine (2014) chama de “sofá estendido”, visto que são classificações de conversas interpessoais que acontecem no espaço off-line e que agora migram para o on-line. São temas que estão presentes no Laço Social, no dia a dia das pessoas e pautam discussões.

Como metodologia, aplicamos a Análise de Conteúdo de Laurence Bardin (2011), visto estarmos diante de manifestações discursivas a respeito do objeto de estudo. Para a autora, a análise de conteúdo consiste em mostrar indicadores, podendo ser quantitativos ou qualitativos, o que permite o conhecimento das condições de produção e recepção das mensagens. O primeiro indicativo consiste na exibição quantitativa dos números de publicações, para que, a partir disso e após a leitura flutuante dos comentários, possamos construir as categorias de análise.

Bardin (2011) defende que os critérios para categorização e agrupamento dos dados podem ser semânticos (categorias temáticas), sintáticos (verbos, adjetivos), léxicos (sentido das palavras, sinônimos) e expressivos (categorias que expressam conflitos diversos da linguagem). A importância de classificar esses elementos se dá, segundo a autora, pela proximidade que possam ter. Por isso, a classificação permite ver partes comuns entre eles.

Optamos pela categorização semântica, no sentido de estabelecer categorias temáticas e, a partir disso, estudá-las, conforme os elementos que aparecerão no discurso dos telespectadores ao comentar sobre o centenário de Abelardo Barbosa, o Chacrinha.

Coletamos os dados com o auxílio da ferramenta Grid Monitoramento, que permite inserir os termos pesquisados e obter a primeira classificação das postagens. O Grid é um software utilizado pela Universidade do Sul de Santa Catarina (UNISUL), local de trabalho destes pesquisadores, que funciona como um monitor em sites de redes sociais e que permite a busca de termos chave no Twitter.

Os dados foram coletados nos dois dias em que o programa foi exibido. Primeiro, no Canal Viva e, posteriormente, na Rede Globo de Televisão. Ao seguir os critérios semânticos dos comentários, separamos os conteúdos que apresentavam algum tipo de recordação ao estar diante do arquivo televisivo. Na análise a seguir, é possível identificar os procedimentos iniciais de investigação.

 

(Re) encontro da audiência: memória e Laço Social

 

No total, foram coletados 671 tweets de telespectadores que assistiram ao programa em homenagem ao Cassino do Chacrinha no Canal Viva e 1.595 dos que acompanharam, dias depois, na TV Globo.

Dos comentários postados no dia 26 de agosto de 2017, durante a exibição do Programa Chacrinha, o eterno guerreiro, no Canal Viva, oito deles trouxeram algum tipo de recordação em suas frases. Na Rede Globo, 30 deles apresentaram conteúdos rememorativos[1].

Constatamos que a função do arquivo televisivo, nesta análise, é a mesma em ambos os canais. Não observamos diferenças nos comentários apresentados. O programa foi exibido primeiro no Canal Viva, canal fechado e, uma semana depois, para todo o Brasil, via canal aberto.

 

Tabela 1 – Primeiros tweets analisados

 

Canal Viva

Sensação boa (re)ver Chacrinha vivo! Baita interpretação, linda homenagem! Nostalgia dos anos 80.

 #100AnosChacrinhaNoVIVA

 

 

Rede Globo

Q delícia relembrar os programas do #Chacrinha!!! Maravilhoso!!! Parabéns pela linda homenagem, @RedeGlobo! #ChacrinhaOEternoGuerreiro

 

Fonte: Twitter Canal Viva e Rede Globo (2017)

 

Os comentários acima, por exemplo, demarcam um mesmo sentido para as duas exibições. A televisão potencializa um afeto, um sentimento de alegria e prazer ao reexibir tempos depois o Cassino do Chacrinha. As expressões sensação boa, linda homenagem, nostalgia, Q delícia, maravilhoso expressam manifestações similares e comprovam a função do arquivo televisivo em revisitar um Laço Social constituído anos atrás. Diante da TV aberta ou fechada, o elo criado no momento da exibição e relembrado posteriormente por um arquivo é o mesmo.

Há nas expressões postadas em rede um conjunto de sentimentos potencializados pelo reviver da programação, mesmo sendo esta uma reconstituição com base no original. Para o público, o remake cumpriu a sua função de trazer novamente Abelardo Barbosa e a sua irreverência.

Dos tweets analisados, percebemos que os telespectadores manifestaram sentimentos de nostalgia, rememoraram algumas partes da sua vida e classificaram o passado como um tempo bom, único e diferente do presente.

Em relação aos que externaram demonstrações saudosistas, todos descrevem um sentimento positivo e que faz bem ao lembrar com as imagens exibidas.

 

Tabela 2Tweets nostalgia e televisão

 

 

 

Canal Viva

 

Genteeeee.... to me deliciando com o chacrinha!!! Quanta recordação boa!!! #100AnosChacrinhaNoVIVA

 

 

 

 

 

 

Rede Globo

 

Esse programa do Chacrinha acabando com meu psicológico, fico lembrando das histórias sobre a minha tia. Bate uma saudade...

 

Tenho 36 anos e cheguei assistir chacrinha é era essa loucura toda aí. #chacrinha

 

Que nostalgia boa! Que homenagem maravilhosa pro #Chacrinha @RedeGlobo

 

@RedeGlobo que delicia ver o chacrinha o saudade eu nao perdia um sabado vendo o velho guerreiro chorando aqui ,

 

Dá vontade de chorar assistindo a esse especial do Chacrinha. Quantas memórias boas, meu Deus. A gente era feliz demais!

 

Fonte: Twitter Canal Viva e Rede Globo (2017)

 

Analisamos nas postagens acima um reencontro da audiência com o passado. Todos notificam o prazer de voltar no tempo, sentir saudade e estar diante de algo que proporcione isto. Essa é a função do Laço Social propiciado quando revisitado o arquivo televisivo. Retoma imagens de tempos atrás e apresenta pulsões novas através da rememoração. Acreditamos que há uma força do sujeito em querer reconstruir esse laço. A TV esteve presente na coletividade e na socialização quando exibiu pela primeira vez o Cassino do Chacrinha. Ao revisitar os lugares com a produção desse remake, o laço reaparece, com outro fio, agora, duplo. O primeiro, configurado com aquilo que foi vivido no passado e, o segundo, no presente, com as interferências do primeiro e “costurado” com recordações afetuosas. Lembranças que podem ser tanto alegres, quanto tristes e que são passíveis de verificação nas expressões semânticas que constituem os comentários.

Um dos telespectadores diz chorar ao rever o programa, outro demonstra saudade da tia e  no último tweet há o registro de uma felicidade intensificada por essa “memória boa”, a ponto de clamar a Deus, por estar diante delas.

Há uma memória teleafetiva que dá sentido ao arquivo televisivo. Ela reconstrói uma teia que era invisível, reestrutura-se no presente com os afetos que aparecem ao lembrar do passado.

Acontece uma afetividade por conta dos quadros e grupos de referência justificado por Halbwachs (2003). É na coletividade em que nos identificamos como seres sociais e emocionalmente pertencentes no mundo. Por isso, a memória coletiva (HALBWACHS, 2003) é importante para compreendermos as funções socioafetivas uns com os outros. A televisão, através do arquivo reexibido, fomenta uma ligação entre as fases que vivemos. Os comentários abaixo evidenciam este encadeamento com duas fases importantes na vida dos telespectadores: a infância e a adolescência.

 

Tabela 3Tweets adolescência e infância

 

 

 

 

 

Canal Viva

 

A minha infância de sábado era tarde toda Chacrinha , onde era possível ver os artistas que eu ouvia no rádio #100AnosChacrinha?

 

Chacrinha 100 anos, eu vi muito qdo criança, tenho 38... ta sou de humanas! #100AnosChacrinhaNoVIVA https://t.co/VmxvKhVr8k

 

Stepan numa caracterização incrível. Vi o Chacrinha qdo criança e chega ser emocionante a interpretação de agora #100AnosChacrinhaNoVIVA

 

 

 

 

 

Rede Globo

 

Ver o Cassino do Chacrinha, é relembrar minha adolescência, de cabo a rabo!!!!!

 

Matando saudade da minha infância nas tardes de sábado que eu assistia ao Cassino do Chacrinha! #ChacrinhaOEternoGuerreiro #VelhoGuerreiro

 

Assistindo chacrinha e lembrando de papai que Adorava assisti-lo aos domingos às 20h. Saudades. ........?????

 

 

Fonte: Twitter Canal Viva e Rede Globo (2017)

 

Só é possível estabelecer essa relação afetiva com a infância e a adolescência quando, diante da televisão, porque é por ela que se constitui uma memória teleafetiva. Quando pequenos, assistíamos a determinados programas e, independente de estarmos sozinhos ou com familiares e amigos, a televisão fazia-se presente. Nesses comentários há uma comprovação de que o Cassino do Chacrinha fez-se elo com o telespectador jovem que, ao tornar-se adulto, diante do arquivo televisivo, recria um Laço Social, evoca uma memória que, além de afetiva, é teleafetiva.

A memória teleafetiva potencializa essa relação adulto x criança, visto que há um desejo de reconstrução, reformulação de lembranças e do Laço Social que foi formado tempos atrás. Mesmo de forma inconsciente, o telespectador pede por isso. A relação egocentrista aparece em função das afetividades e dos desejos do público que assistiu ao programa Chacrinha, o eterno guerreiro.

Tanto nos comentários dos telespectadores da TV generalista, quanto do canal fechado, os efeitos de sentido são os mesmos: não diferem a formação do Laço Social que é revisitado tempos depois. O que nos leva a constatar que, independentemente do modo onde é exibido, da plataforma ou dispositivo, a memória teleafetiva se fará presente.

Isso faz refletir sobre o atual consumo audiovisual, com uma programação ondemand e ubíqua. Concluímos que o Laço Social reformulado pelo arquivo televisivo pode acontecer em qualquer ambiente em que este possa ser exibido, visto as manifestações afetivas proporcionadas da relação da televisão com o público.

Nesse processo há uma memória teleafetiva, reconquistada, que reformula uma nova experiência, envolvida de sentimentos. “Como explicado por Halbwachs (2003), em alguns momentos, é preciso fazer dos depoimentos exteriores uma espécie de semente de rememoração para que possa fazer surgir as lembranças” (BRESSAN JÚNIOR, 2019, p. 95). A TV perfaz esse papel ao configurar um dispositivo externo que auxilia na volta ao passado.

A exibição de um arquivo audiovisual traz questões importantes para a composição socioafetiva da memória e seus afetos. Torna-se evidente a força dele como mecanismo de transposição de tempo, conforme percebemos nos próximos tweets.

 

Tabela 4Tweets televisão e sociabilidade

 

 

 

Canal Viva

 

 

 

 

 

 

 

Rede Globo

To vendo o Chacrinha, anuncio que os trapalhões estão de volta, será que os bons tempos estão voltando?

 

Ver a homenagem ao Chacrinha com esse programa é voltar no tempo e relembrar que as tardes eram titulares absolutas com?

 

Ai vc assiste o chacrinha e vc volta a sua mocidade Nossa mente volta.. o tempo bom era aquele ?

 

Fonte: Twitter Canal Viva e Rede Globo (2017)

 

A televisão, como observado por Wolton (1996, p. 16), apresenta a função de estabelecer o Laço Social, cuja força está “no religamento dos níveis da experiência individual e da coletiva”. Os comentários acima comprovam essas relações sociais e individuais dos telespectadores. Mesmo não aparecendo nos posts do programa durante a exibição no Canal Viva, no decorrer da exibição do Eterno Guerreiro na Rede Globo, observamos três evidências de que o arquivo televisivo transporta para um tempo em que as experiências dos telespectadores são rememoradas com afetos e são pulsantes. Nas três frases, a palavra “tempo” aparece com outras expressões que demarcam o quanto bom era ele e a falta que sentem desse período.

As experiências coletivas e individuais acontecem em função da programação que, no dizer de Wolton (1996), é uma atividade essencial na televisão e que se deve entendê-la sob três fenômenos: o primeiro diz respeito à função de calendário e estruturação, visto que a TV é um tipo de relógio puro da vida cotidiana; o segundo é compreender claramente o que é informação e o que são programas; e o terceiro consiste no respeito entre os diversos gêneros da programação, entendendo a oferta e a demanda de variados tipos de programação.

Consideramos pontuar que o Laço Social explicado por Wolton (1996) materializa-se diante do arquivo televisivo e em sites de redes sociais por comprovar que há uma teia invisível que une as pessoas ao assistir e comentar sobre isso. Na internet, o laço passa a ser visível, na medida em que conseguimos quantificar e identificar as pessoas que assistem, curtem e comentam.

A televisão tem a peculiaridade de vai e vem, de ir e vir das narrativas, capaz de mostrar o passado para que possa ser comparado com outros passados e com o presente. É a TV como um lugar de arquivo para acionar memórias. Com o avanço da tecnologia, com o acesso aos dispositivos móveis e com o arquivo digital, cada vez mais isso se faz presente. 

 

Considerações Finais

 

Concluímos com esta pesquisa que o arquivo televisivo permite o Laço Social trazendo de volta o “estar com”. As manifestações de nostalgia, de se “rever” como criança ou adolescente e lembrar-se de um “tempo bom”, pontuadas pelos telespectadores, foram decisivas para concluir que o sujeito sempre recorda por intermédio de outras pessoas e por estar inserido em um contexto coletivo e social.

As recordações ocorreram em virtude das relações afetivas procedentes de um arquivo televisivo exibido. É através do Laço Social reconstruído pelas reminiscências que visualizamos a teleafetividade das memórias. Por exemplo: o indivíduo que assistiu ao Cassino do Chacrinha na década de 1980 presenciou as atrações, os jurados, as chacretes [2], o contexto narrativo e a trilha sonora que mantinham a atração. Naquele momento, um Laço Social invisível foi criado em função da TV aberta, da coletividade e dos grupos de referências. A televisão e o programa também estavam presentes nesse coletivo e fizeram parte do cotidiano, do momento vivido pelos telespectadores. Situações particulares, ou não, ocorreram, na medida em que foi um tempo vivido e que fez um Laço Social ser reconstruído, agora pelas recordações evocadas. Podemos dizer que a teia invisível que une as pessoas, descritas por Wolton (1996) através da televisão, é tão forte, que não se limita somente à “igualdade” de assistir a uma programação, mas também traz marcações de momentos na vida de cada um.

O arquivo na televisão possui essa função, de trazer de volta um tempo através de memórias teleafetivas. Ele sempre terá uma ressignificação para a audiência. Não irá vê-lo somente como arquivo, mas sim como elemento constitutivo na evocação de suas memórias. Dessa forma, sentimentos serão impulsionados e revividos através dele.  Cada rememoração é única, mas, por isso mesmo, igual às demais, formando uma constante cultural: “o passado como imaginário acessível a partir de um mecanismo qualquer de rememoração” (SILVA, 2017, p. 20).

 

Notas

[1] Os tweets foram descritos do mesmo modo como publicado pelo telespectador. Colocamos na íntegra o conteúdo postado e separamos por veículo de comunicação: a) na primeira parte da tabela, os comentários diante da exibição do Canal Viva; b) e, na parte seguinte, os originados pela audiência da Rede Globo de Televisão.

[2]Dançarinas que dividiam o palco com o apresentador.

 

Referências

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SILVA, Juremir Machado da. Diferença e descobrimento. O que é o imaginário? (A hipótese do excedente de significação). Porto Alegre: Sulina, 2017.

WOLTON, Dominique. Elogio do grande público: uma crítica da televisão. São Paulo: Ática, 1996.

 

 



[1]Professor no Programa de Pós-Graduação em Ciências da Linguagem da Universidade do Sul de Santa Catarina - UNISUL. E-mail: marioabelbj@gmail.com       

[2]Doutora em Comunicação Social (PUCRS). Professora no Programa de Pós-Graduação em Ciências da Linguagem – UNISUL. E-mail: heloisapreis@hotmail.com

[3]Professor no Programa de Pós-Graduação em Ciências da Linguagem da Universidade do Sul de Santa Catarina - UNISUL. E-mail: marioabelbj@gmail.com       

[4]Doutora em Comunicação Social (PUCRS). Professora no Programa de Pós-Graduação em Ciências da Linguagem – UNISUL. E-mail: heloisapreis@hotmail.com