A
incompletude constitutiva do sujeito e o reconhecimento de si:
o mangá
Naruto como metáfora para (re)pensar a condição
humana
Diego Rodrigues da Silva[1]
Francisco Vieira da Silva[2]
Resumo: O referente trabalho busca analisar a
necessidade humana em ser reconhecido e como se busca esse caminho de
“existência” e os efeitos disso na constituição do sujeito. Para tanto, tomamos
como corpus de análises alguns
recortes do mangá Naruto, de Masashi
Kishimoto. O referido mangá
trata do personagem homônimo que possui no seu interior o demônio
“Raposa de Nove Caudas”,
responsável pela destruição da vila e que essa “Raposa de Nove Caudas” fora
introduzida em Naruto como uma espécie de pacto do pai do personagem, o qual
conseguiu salvar a vila do ataque do ser maléfico que habita o corpo de Naruto.
O aparato teórico que sustenta nosso estudo
ampara-se em autores como Estés (1999), Cyrulnik (2013) e Comte-Spoville (2007).
Metodologicamente falando, trata-se de um estudo descritivo-interpretativo de
natureza qualitativa. As análises dos recortes de Naruto permitem-nos
evidenciar que na saga interpenetram uma série de questões que envolvem a busca
por reconhecimento, a incompletude constitutiva do sujeito num processo
contínuo de construção de si e do outro. Esses (des)caminhos levam-nos a
pensar na configuração da existência mimetizada nos mangás
como um dispositivo importante dos fluxos comunicacionais da contemporaneidade.
Palavras-chave:
Reconhecimento;
Mangá; Incompletude; Sujeito; Naruto.
The subject’s constitutive
incompleteness and the recognition of the self:
the Naruto manga as a metaphor to (re)think the human
condition
Diego Rodrigues da Silva[3]
Francisco Vieira da Silva[4]
Abstract: The
referent work seeks to analyze the human need to be recognized and how this
“existence” path is sought and the effects of this on the subject's
constitution. For this purpose, we took as a corpus of analysis some clippings
from the Naruto manga by Masashi Kishimoto. The manga
deals with the eponymous character that has the demon "Nine-Tailed
Fox", responsible for the destruction of the village and that “Nine-Tailed
Fox” was introduced in Naruto as a kind of pact of the father of the character
who managed to save the attack village of the evil being that inhabits Naruto's
body. The theoretical apparatus that supports our study is supported by authors
such as Estés (1999), Cyrulnik
(2013) and Comte-Spoville (2007). Methodologically
speaking, it is a descriptive-interpretative study of a qualitative nature. The
analyzes of Naruto's clippings allow us to show that in the saga, a series of issues
interpenetrate a number of questions that involve the search for recognition,
the constitutive incompleteness of the subject in a continuous process of
building himself and the other. These (dis) paths lead us to think about the
configuration of existence mimicked in manga as an important device of
contemporary communication flows.
Keywords:
Recognition; Manga; Incompleteness; Subject; Naruto.
Introdução
Primeiramente, é salutar
compreender que nas mais variadas pesquisas contemporâneas já se acolhem, mesmo
que timidamente, as histórias em quadrinhos como fontes de estudos legítimas,
assinaladas por diversas possibilidades metodológicas/epistemológicas. Uma das
responsáveis por desenvolver pesquisas desta natureza no nosso país foi Luyten (2005), ao realizar trabalhos que envolvem “a
indústria dos mangás (designação em língua japonesa
para histórias em quadrinhos)” (LUYTEN, 2000, p.13),
associados às áreas da educação e das ciências humanas em geral. A pesquisadora
é considerada referência tanto nacional quanto internacionalmente, também conceituada por criar e lecionar a disciplina de
“História em quadrinhos” na USP entre 1972 a 1984.
Será através de parte de seus
resultados, bem como de outras referências, que efetuaremos a ligação com a
discussão acerca da necessidade em existir e a constituição de si na obra
“Naruto”, do mangaká [1] Masashi
Kishimoto. Nosso foco, portanto, será analisar de que
forma tanto os aspectos verbais quanto visuais desse mangá
poderão nos oferecer recursos para pensar e discutir as ambiguidades da
existência no interior dessa história. Somos cientes de que, na esteira de Lévi-Strauss
(2012), as culturas são incomensuráveis. Cremos que o exame do mangá a ser analisado permite-nos entrever alguns aspectos
da cultura japonesa. Nas palavras do antropólogo francês, “[...] para quem não
nasceu nela, não cresceu nela, um resíduo em que se encontra a essência mais
íntima permanecerá inacessível, mesmo se dominássemos a língua e outros meios
exteriores de abordá-la (LÉVI-STRAUSS, 2012, p. 12).
Convém enfatizar que o mangá Naruto, ao virar um anime em 2002, alcançou um
sucesso prodigioso não apenas no Japão como no resto do mundo. Conforme estudo
da empresa japonesa Oricon, especializada na produção
de estatísticas de vendas nas áreas de arte e entretenimento, Naruto figura
entre os cinco mangás e animes mais importantes de
todos os tempos (LIPPE, 2017). A difusão dessas produções no circuito
comunicacional, notadamente na web,
mostra a expressividade do anime como um artefato cultural no âmbito do consumo
e da produção audiovisual.
Naruto apresenta personalidades
que se aproximam mais do cotidiano das crianças e de jovens, porquanto se
“identificam com os personagens que retratam situações vividas no dia a dia ou
revelam anseios e sonhos escapistas”, bem como pelo “alívio de tensão e
estresse, principalmente da faixa infanto-juvenil” (LUYTEN, 2000, p.13-15). Por
conter essas típicas características dos mangás no que
concerne a sua abordagem e desenvolvimento da condição humana em suas histórias,
que a obra analisada facilmente alcança a realidade desses públicos enquanto
ponte para os seus afetos. Inclusive, tais elementos são o que separam e
distinguem o mangá das histórias em quadrinhos
ocidentais:
Uma das explicações pode ser encontrada nos
personagens do mangá, que, ao contrário dos
super-heróis produzidos no Ocidente, são heróis concebidos a partir do mundo
real, nos quais as pessoas podem encontrar, além de uma espécie de miniatura de
suas vidas, os ingredientes para vivenciar suas fantasias. [...]
Os mangás se solidarizam com o leitor: os
personagens lutam, amam, brigam, aventuram-se, viajam e até exercitam-se por
ele. (LUYTEN, 2000, p.40)
Essa perspectiva cultural
divergente torna, concomitantemente, uma aprendizagem nem melhor nem pior, mas
diferente: apropriar os sentimentos expressos por outro estilo de vida e
sociedade é um caminho perspicaz para entendermos melhor a si mesmos, já que é
no “outro” que, de fato, nos encontramos. Os mangás,
assim, não só “são uma importante forma de expressão e captação, que ultrapassa
qualquer limite ou fronteiras nacionais e culturais” (LUYTEN, 2000, p.16) — o
que torna compreensível assimilar melhor o comentário de Ortiz (2000) sobre o
Japão enquanto espaço possível de leitura de um movimento de mundialização da
cultura (capaz de converter as culturas externas a partir de um espírito
japonês) —, como possui heróis com atitudes que “se voltam mais para outra
dimensão — a interior —, expressa por meio de uma virtude que é muito prezada e
levada em consideração pelo povo nipônico: a sinceridade emocional” (LUYTEN,
2000, p.70).
Todavia, é importante frisar, não
se tem a pretensão de tratar o mangá em questão como
a única e/ou melhor obra que aborde sobre tal assunto, mas, sim, de trazê-lo à
tona enquanto um exemplo pertinente, por ter em sua trama original personagens
que experienciam e dialogam com essas discussões
acerca do reconhecimento. Dessa forma, sua escolha foi, além do mencionado
acima, também em vista de sua ampla repercussão e por se tratar de um título
consagrado entre os fãs como clássico. Logo, existem muitos outros mangás capazes de instigar distintas problemáticas sobre
variadas questões, a depender de seu tema, proposta, público e intenção do/a
autor/a.
Por fim, vale destacar que Naruto
insere-se no gênero shounen, o qual é
voltado para o público infanto-juvenil masculino e contém uma trama, geralmente
de ação, protagonizada por um herói, o que não exclui necessariamente a
identificação do público feminino pela obra. Contudo, por acreditar ser amplo o
debate de como tais gêneros influenciam ou não o consumo e a identidade desses
seletos públicos, decerto estereotipados, não será, portanto, foco de nosso
atual trabalho, o que permite um espaço para futuras pesquisas sobre a
problemática.
Enfim, do ponto de vista
organizacional, este texto divide-se em quatro tópicos, além destes comentários
introdutórios. Assim, no tópico a seguir, tem-se uma síntese do mangá e uma reflexão sobre a constituição de si;
posteriormente, o enfoque debruça-se sobre o poder da palavra nas configurações
de Naruto. O reconhecimento delineia-se no tópico ulterior, a partir do olhar
sobre si e sobre o outro. Na seção final, tratamos de discutir, com intuito
conclusivo, os principais aspectos destacados neste texto, aludindo a recortes
do mangá em estudo.
A busca: um lugar para chamar de “seu”
Para nos situarmos razoavelmente
no debate proposto, se faz necessária uma breve sinopse acerca da obra. Deste
modo, “Naruto”, nome tanto do protagonista quanto da obra que se passa num
mundo ninja, é um jovem garoto que tem em seu interior um demônio chamado
“Raposa de Nove Caudas”, responsável por quase destruir sua vila há muitos anos
atrás. Na época, em meio ao ocorrido, pessoas comuns e ninjas da conhecida
“Vila da Folha Oculta”, bem como os seus próprios pais, morreram durante a
resistência para proteger seu lar. O seu pai, intitulado o Quarto Hokage, uma classe da hierarquia de ninjas, é considerado o
herói por salvar a vila do ataque mediante o sacrifício de selar o demônio
dentro do seu filho ainda recém-nascido, Naruto.
No mesmo instante, com o corpo enfraquecido
pelo parto e pelas consequências da destruição na vila, sua mãe falece, tornando
Naruto um órfão de nascença. Seus pais imaginaram, desejaram mais do que tudo,
que o filho fosse acolhido também como herói em toda a vila, por justamente se
tratar do responsável em conter/aprisionar um mal que jamais poderia escapar e
causar problemas novamente ao seu povo. Contudo, o tiro sai
pela culatra e, exatamente por este motivo, todos os habitantes passam a
evitá-lo, segregá-lo e excluí-lo principalmente pelo receio de que, em algum
momento, o demônio dentro dele possa sair e machucá-los outra vez. Eis sua
indizível dor, a de não ser notado.
Fatalmente, Naruto é relegado a
uma (sobre)vida pautada, tristemente, no desejo de ser
notado e reconhecido pelos outros, principalmente por aqueles que, com o tempo,
passam a admirá-lo. Cyrulnik (2013, p. 61), ao tecer
reflexões sobre a vulnerabilidade das crianças abandonadas, pressupõe que elas
“[...] enquanto têm força para esperar, basta que um substitutivo afetivo se
apresente para que se precipitem e se agarrem a ele”, ligando-se “a qualquer
adulto como quem se afoga e se agarra a qualquer coisa que flutue”.
Imagem 1 – O Hokage, à
direita, conversando com alguém sobre a condição de Naruto. À esquerda, o
garoto que se encontra sozinho.
Fonte: Naruto (2015, n.1, p.37)
Assim, por muito tempo, Naruto
elabora diversas maneiras de ser notado, chamando atenção através de
travessuras e brincadeiras. Também firma sua presença frequentemente por meio
de uma fala pautada por berros e gritos. A partir deste ponto, desenrolam-se os
pormenores de sua busca por uma existência mais suportável. E descobre, talvez
felizmente, que alguns indivíduos ao seu redor possuem dores, sofrimentos e
vazios com tonalidades até um pouco semelhantes, mas por circunstâncias, razões
e intensidades notadamente diferentes. Aqui, ao encontrá-los e conhecê-los,
percebe neles uma versão de si mesmo; nota o quanto existem sujeitos que
compartilham, cada a um a sua maneira, de uma busca
pelo reconhecimento do outro no mundo. Daí em diante, a história faz-nos
reparar: estamos impelidos a nos atrair por sujeitos que possuem algo que nos é
comum, por quem nos identificamos.
Na percepção de Todorov (1996, p.
64-67), ao defender que “[...] a existência do outro tem um papel constitutivo”
para nós, aponta que não só temos relações como, acima de tudo, a relação em si
(seja por prazer, para se alimentar ou gozar sexualmente — meros meios para
alcançá-la) “é o objetivo que buscamos para assegurar nossa própria
existência”. Por isso que, em vista de seu principal desejo em encontrar e
estabelecer relações significantes, a trama de Naruto centraliza-se na ideia de
aceitação que, por sua vez, é a possibilidade da dominação de si mesmo. Esse
domínio, na verdade, diz respeito a poder conhecer mais de si a partir do olhar
do outro, desse olhar que nos insere na existência. Para tanto, há diversos
trajetos que podem nos dar migalhas de reconhecimento, temporário ou duradouro,
raso ou profundo. De qualquer forma, mesmo uma faísca de reconhecimento é capaz
de retirar um indivíduo do mais profundo dos abismos: o de si mesmo.
Imagem 2a – Ao fundo, todas as crianças
da academia ninja conseguem aprovação, menos o Naruto, sentado num balanço
Imagem 2b – À direita, Naruto sentado
num banco. À esquerda, outras crianças conversando.
Fonte: Naruto (2015,
n.1, p.21)
No começo, Naruto não apenas
sente a dor de ser um órfão, mas a angústia de não ter, na ausência de seus
pais, qualquer espaço que o acolha afetivamente. O horror do vazio, portanto, o
desloca constantemente para a dor de estar só e não poder ser reconhecido. A má
notícia: não dependia somente dele mudar esta condição. Na figura anterior,
Naruto, sem vitalidade no rosto, observa manifestações de carinho, de afeto e
de reconhecimento entre a turma, com suas famílias e amigos/as, por causa da
aprovação na escola. Ao mesmo tempo, revolvem-lhe a
confirmação e a expressão de alívio pelo fato dele não fazer parte da
celebração coletiva. Pois, mesmo que aprovado, quem poderia ir abraçá-lo?
Percebê-lo? Tão somente reconhecê-lo? Estava sozinho, e sabia disso.
Como “a solidão atenua a expressão das emoções, reprimindo sua manifestação,
enfraquecendo os gritos, ou os risos, acalmando as mímicas, os gestos e a
palavra”, não é surpresa notarmos, no seu semblante, que “ela debilita suas
forças” e o torna desencorajado para encarar a vida (LE BRETON, 2009, p.163). O céu, em
sua mente, anuviava-se gradualmente.
Como agravante da situação do
protagonista, tentaram apagar o passado (especificamente a época em que a vila
esteve próxima de ser destruída pelo demônio da Raposa) para evitar que
olhassem Naruto como culpado, de alguma maneira, daquele acontecimento. Assim,
o Hokage estabeleceu e proibiu qualquer habitante de
tocar neste assunto, tampouco revelar para o garoto que, na verdade, ele tem
selado dentro de seu próprio corpo o demônio que todos tanto desprezam. Naruto,
quando “[...] isolado entre os outros, sente-se só, expulso da condição humana”
(CYRULNIK, 2013, p. 28). Percebe o olhar
desaprovador que lançam corriqueiramente a sua pessoa e imagina, com receio, se
acaso seria ele um monstro tão repulsivo a ponto de negarem-lhe, mais uma vez,
um “mísero” punhado de existência (CYRULNIK, 2013, p. 28). Daqui em diante,
damo-nos conta de que “o homem nasce em primeiro lugar”, e somente “depois
nasce para a condição humana” (MORIN; CYRULNIK, 2004, p. 23). Para Naruto, a
partir do momento em que nasce para tal condição , “o
mundo se tornara de novo um mal-estar inescapável” (LISPECTOR, 1998, p. 29).
Palavra: instrumento que condena e salva
Para Naruto, o primeiro exemplo/modelo
que teve foi Iruka, seu professor da academia de
ninjas, que, em dado momento, torna-se a chama inicial daquilo mais próximo que
já chegou a considerar como amor em sua vida. Porém, embora Iruka
conheça a história do seu aluno e entenda os desafios que o protagonista precisa
enfrentar para ser aceito, nunca pôde se abrir e conversar com ele devido,
justamente, a
restrição imposta à vila como medida de proteção de Naruto. O
peso que se nota no semblante de Iruka, na figura a
seguir, é o de querer resgatar o outro sem ter que desobedecer ao cumprimento
de seu dever hierárquico: a sociedade o inibe. Naruto, desavisado sobre sua
própria história, não compreende a raiz de seus problemas, de sua desaprovação
original e de sua existência não-reconhecida e largada pelos outros. Sempre
imaginou que fosse por qualquer outra prerrogativa que, apesar de não o
convencer, fazia-o ser excluído da comunidade da qual duvidava, não rara as
vezes, ser sua.
Imagem 3 - À esquerda, Naruto de
castigo limpando uma bagunça que fizera e, à direita, Iruka
Umino, seu professor.
Fonte: NARUTO (2015, n.1, p.15)
Nossa história, desta forma, não
é um mero depoimento, mas, sim, uma narrativa; é recontar com fábulas, imagens
e fantasia. Quem conta, reconta. Somente quando se reconta é que se é capaz de ressignificar a própria história. Ora, como fazer alguém
entender a dor que é estar sozinho sem tocar naquilo que a compõe inteiramente
como humana, isto é, a sua história? A partir desta pergunta, devemos pensar no
seguinte: se o olhar do outro tem o poder de nos inserir, de fato, na
existência, é a palavra o meio que nos transporta para dentro dela. É a
fundadora da condição humana, a que constrói o nosso mundo, que dá ao homem
aquilo que falta. “A palavra oferece o meio de experimentar
o ser. Ela não pode ser racional, mas poética e metafórica. Só ela permite
abrir uma clareira no meio da floresta imaginária na qual se encontra o homem”
(FERRY; VINCENT, 2011, p.113). E por esta razão, a nossa fala
traduz parte significativa de nossa incompletude constitutiva. Assim, além de
seu notável poder de criação, a palavra é também um instrumento valioso para
nossa regulação afetiva. Quando fala da palavra, Cyrulnik
(2013, p. 60-61) nos explica os efeitos de sua ausência quando sofremos uma
perda irreparável na infância: “[...] quando uma perda precoce sobrevém antes
da idade da palavra, impregna na memória uma aptidão para sofrer sentimento de
perda, e a menor separação posterior pode desencadear uma depressão.”
De que maneira, portanto,
seríamos capazes de adaptar nossas lembranças “para suportá-las sem angústia” e
“para dar coerência” a uma melhor “representação do passado” quando estamos
interditados de conhecer a própria história que constitui nosso presente
(CYRULNIK, 2013, p. 22-23)? Se for pelo fato do ser humano ser livre “que
ele acede à história autêntica” de si, como somos capazes de amputar logo o
direito mais caro do humano, que é o de “conhecer sua própria história” (FERRY;
VINCENT, 2011, p. 22)? Em casos como esse, “a resiliência torna-se”,
deveras, “difícil” (CYRULNIK, 2013, p. 62). Logo, a construção de uma
representação “sadia” é fundamental para acionar uma vida colorida pela
confiança, tornando possível esboçar futuras condutas. Quem clareia acerca da
preciosidade que as nossas histórias contêm para a compreensão de nós mesmos é Estés (1999, p. 19), ao frisar que
As histórias conferem movimento à nossa
vida interior, e isso tem importância especial nos casos em que a vida interior
está assustada, presa ou encurralada. As histórias lubrificam as engrenagens,
fazem correr a adrenalina, mostram-nos a saída e, apesar das dificuldades,
abrem para nós portas amplas em paredes anteriormente fechadas, aberturas que
nos levam à terra dos sonhos, que conduzem ao amor e ao aprendizado [...] (ESTÉS,
1999, p.19).
Diante disto, ao saber que “[...]
as histórias são bálsamos medicinais” (ESTÉS, 1999, p. 16), fica evidente: tudo
o que penso de mim é útil para que eu não tenha que pensar o que deixei de ser
ou mesmo do que poderia ter sido. Pois, independente do que nos acontece ou dos
fatos que não lembramos, o que importa, de verdade, são os relatos e as
interpretações que construímos sobre nós mesmos. Essa “[...] interpretação do mundo à qual se entrega o cérebro se baseia”, decerto,
“no duo apaixonado da sensibilidade e da ação” (FERRY; VINCENT, 2011, p. 147),
ou seja, através dos afetos e do desejo de movimentar-se para algum lugar. Dessa
forma, há de se acreditar no que Luc Ferry e Jean-Didier quando colocam que “[...] os seres humanos não são prisioneiros de seu passado”, muito pelo
contrário, são “livres para livrar-se dele, para inventar sua história” (FERRY;
VINCENT, 2011, p. 15). Por estar “[...] intricado em suas ações, suas relações
com os outros, com os objetos que o entornam, com o seu meio, etc.”, o homem
“está permanentemente sob influência dos acontecimentos e sendo por eles
tocado” (LE BRETON, 2009, p.112). Mesmo tendo em mente de que “[...] não existe
atividade mais íntima que o trabalho de atribuir sentido”, tomamos a consciência
de que somos nós que devemos construir o significado sobre aquilo (ou quem) que
nos afeta (CYRULNIK, 2006, p. 13). Como diria Cyrulnik
(2013, p. 23): “se nossa existência fosse pacífica”, certamente, “nós não
seríamos sequer capazes de descobrir quem somos”. A ideia de confortabilidade, portanto, não lança ninguém para novas
experiências e consciências.
Captar o olhar, mergulhar por sede
Como comentamos antes, existem
caminhos diversos para (tentar) suportar a amálgama desta condição humana, por
certo inescapável, no cotidiano. Um dos caminhos é através da agressividade,
seja ela: a eliminação de um rival, contra um ser julgado inferior, contra um
julgado superior ou, inclusive, contra si mesmo. A agressão, nesse viés,
estaria pautada na obtenção de “ser o primeiro (o único) a ocupar o lugar
cobiçado”, pois como este fator está “a serviço da busca de reconhecimento” (TODOROV,
1996, p.62) do outro que possui papel constitutivo para nós. A escolha desta
trajetória não pode ser reduzida à superficialidade de um discurso de violência
“em si” caso seja de nosso sério interesse querer, sobretudo, compreendê-la
profundamente. Assim sendo, e por um longo período de suas querelas, Naruto
conduziu sua agressividade para toda e qualquer pessoa que se pusesse como seu
rival. Contudo, sua belicosidade estava focada, sobretudo, “a seus detentores
potenciais”, ditos superiores, para se vingar do que eles recusavam a
concedê-lo (TODOROV, 1996, p.62).
Dessa forma, ao passo que Naruto
se encontra com personagens que o fazem lembrar de sua própria dor de buscar e
querer existir, abre um diálogo que começa sempre pelos punhos — para se
firmar um reconhecimento mútuo e ter finalmente o lugar da palavra — e
termina no pulsar sincero e berrante de seu coração. Se antes “seu coração se
enchera com a pior vontade de viver” por não sentir-se
alcançado pelo olhar do outro (LISPECTOR, 1998, p. 36). Em certo momento,
descobre que “para amar é preciso não só ser forte”, como sempre imaginou, “mas
também sábio”, seja nas escolhas, seja na maneira como terá que, criativamente,
aprender a lidar com elas (ESTÉS, 1999, p.101).
Imagem 4 –Naruto (imagem de cima)
ao término de uma batalha mortal contra o seu até então inimigo, Gaara (abaixo).
Fonte: Naruto (2016,
n.16, p.80)
Ao criar empatia pelo seu inimigo
através de uma identidade forjada pela dor, Naruto entende que não está sozinho
na sua busca por reconhecimento, que existem diversos sujeitos com esse
objetivo pelas mais distintas razões, utilizando-se dos mais diversos meios
para alcançá-los. Esse “[...] pôr-se no lugar é enriquecer-se”, ao mesmo tempo em
que “é um esforço, é ir à descoberta de um novo continente mental, de uma nova
maneira de pensar, de uma nova maneira de ser homem” e de viver essa novidade
(MORIN; CYRULNIK, 2004, p. 49). Nesse movimento, trazemos o outro para perto de
nós não necessariamente de maneira física, mas afetiva.
Em seguida, Gaara,
o personagem que reconhece a existência de Naruto primeiramente pelo respeito à
sua vitória, percebe, simultaneamente, que o sofrimento humano não pode ser
medido tampouco quantificado, mas compreendido em sua diferença. Quer dizer,
descobriu que a sua dor não era a maior dor do mundo. Mas uma dor, com história
e afetividades singulares. É sabido que uma das estratégias para não sofrer
(tanto) é tentar sempre controlar tudo, as emoções, as situações e, inclusive,
as pessoas. “Se não podemos abolir todo o sofrer, podemos abolir parte dele, e
mitigar a outra parte” (FREUD, 2010, p.29), desta forma, podemos amenizar o sofrimento
para sermos mais felizes.
No caso tanto de um como de outro, a redução do
sofrimento estava localizada integralmente no conflito de suas forças, salvando
a eles próprios, mesmo que pouco, a partir do outro que o via, o atacava e o
atingia: sim, que o afetava e o fazia sentir-se vivo. Em vista disso, estava na
agressividade não só suas cotas por atenção, mas o desejo de uma relação. Então,
a
surpresa no semblante de Gaara condiz com a quebra de
suas certezas: jamais considerara que outro alguém entenderia sua vontade de
existir e, sobretudo, nunca desconfiou que houvesse tamanho sofrimento
semelhante ao dele. É o que autores como Ferry e Vicent
(2011, p. 149) chamam de “consciência refletida” que, por sua
vez, é a consciência “[...] produzida pelo sujeito ao reconhecer-se como tal”,
também possível através de uma “subjetividade vivida que pode também ser uma
subjetividade partilhada”. No mais, a pior dor, compreenderam os
dois, é aquela que não aprenderam a sentir. Ambos, ao sentirem-se entendidos mutuamente,
estavam, finalmente, existindo.
Estar incompleto, a que
especificamente se refere Naruto na imagem anterior, é não conhecer o amor. E
amar é estar perto de quem fornece conforto e abrigo, é ser cuidado, ou como
diria Clarice, é não ser devorado (LISPECTOR, 1998, p.106-107). O amor,
portanto, fala a língua da segurança. Todavia, não temos nada mais infernal do
que esse sentimento. Pois “[...] o amor tem seu custo. Ele exige coragem. Ele
exige que percorramos a distância” necessária para alcançarmos o outro (ESTÉS,
1999, p. 106). Assim, o amor, além de não ter nenhum envolvimento com a noção
do “romântico”, não combina com liberdade, mas com segurança. Quer dizer, “[...] nunca
estamos mais desprotegidos ante o sofrimento do que quando amamos”, já que amar
é estar vulnerável, e “nunca mais desamparadamente infelizes do que quando
perdemos o objeto amado ou seu amor” (FREUD, 2010, p.26). Ou seja, “no ser
vivo, o que vive é o paradoxo” de uma condição integralmente humana (MORIN;
CYRULNIK, 2004, p. 39). Por conta desta realidade, a condição humana pode ser
aludida, um verdadeiro espelho, ao dilema do porco-espinho: quando próximos
demais, nos machucamos, quando distantes demais, morremos no frio.
Devido a essa discussão, corremos
o risco de afirmar: o amor é um sentimento frágil, uma patologia social, não se
constituindo como elemento fundamental das relações. Amar é um ato de coragem,
é anti-social, não é para todos, pois não vamos lidar
com nossos limites e fantasias, com nossas fraquezas e sujeiras, mas a do outro
que nos correspondemos.
Além disso, há de se registrar
mais um ponto: quando buscamos por reconhecimento do outro, independente do
caráter deste responsável por nos saciar dessa sede, nos
ligamos a ele desesperadamente. Embora a única forma que temos de nos humanizar
seja descobrindo que somos o outro, vale lembrar que “não se pode falar do ser
humano sem o considerar, ao mesmo tempo, como um ser biológico, cultural,
psicológico e social”. Portanto, tampouco podemos falar que a nossa condição
humana para sofrer esteja somente atrelada a um ou outro tipo de “ser” no mundo
(MORIN; CYRULNIK, 2004, p.10). Logo, como nosso sofrimento é polifônico, também
o é o próprio homem; e dessa polifonia em “ser” no mundo, se encontram as
nossas ambiguidades naquilo que dizemos, agimos, construímos, evitamos e
vivemos. Na relação que estabelecemos com o outro, temos que ter exatamente
esta máxima em mente: a relação que nos faz sofrer, paradoxalmente, também é
capaz de nos salvar. Desta maneira, “o amor, mesmo o mais fraco, o mais doentio”, se
capaz de nos estender a mão quando em profunda queda nos encontramos, “vale
mais que alguma onipotência que fosse sem amor” (COMTE-SPOVILLE, 2007, p. 45).
Assim, Naturo constitui uma metáfora para pensarmos o
que nos torna demasiadamente humanos, especialmente pelo fato de possibilitar
ponderarmos sobre o amor e de que maneira nossa existência não é completa sem
uma relação constante com o outro.
Imagem 5 – Rock Lee (na parte de cima) defendendo sobre
o modelo de pessoa que podemos seguir e Gaara (abaixo)
explicando a ambiguidade do humano.
Fonte: Naruto (2017,
n.25, p.21)
A consequência dessa condição é a
de descobrir que somos o grande assassino de nós mesmos, pois matamos muitas
possibilidades do “eu” para poder conviver com esses outros que vão nos retirar
do vazio da solidão. É um paradoxo porque não salva ou condena, mas ambos,
simultaneamente. A conquista de um ponto é o sofrimento diametral de um outro e
vice-versa: se fico sozinho, ninguém me machuca, mas não existo (e isso dói);
se construo relações e laços, existo e tenho segurança, mas fico extremamente
vulnerável quando estou na presença daqueles que amo (e são estas as relações
que podem me machucar). Não podemos viver sozinhos: como conciliar então desejo
e dependência? É o que mais tentamos desvendar. E dessa condição não escapamos,
jamais.
Em outras palavras, nossa vida é
uma escolha que vem com um preço. O que nos une, também separa. Tal sentença
chega a todas as esferas de nossa condição: a linguagem unifica o humano, as
línguas o separam; nos unimos pela cultura e nos separamos por culturas. O que
nos une é a vida, o que nos separa é a morte. Somos contraditórios: amamos e
odiamos, desejamos e enojamos, tudo ao mesmo tempo. Não é à toa que se “[...] é
preciso, efetivamente, deixar de ver a humanidade como algo de dado, de fixo,
mas sim como o produto de um devir sempre muito ambivalente” (MORIN; CYRULNIK,
2004, p. 28), contraditório, complexo. À luz de tudo isso, não parece mais tão
absurdo quando constatamos que, à reflexão da imagem anterior, nos apegamos a
quem nos faz sofrer e maltratamos a quem nos faz gozar. No mais, somos cientes:
sofremos e fazemos sofrer. Todavia, “[...] um ser humano não pode viver dentro
de um aquário, precisa de espaço e de palavras” (CYRULNIK, 2013, p.41), precisa
da dor e do prazer, do sofrimento e da alegria, sensações essas que só
localizamos na amargura e na doçura que são os outros. Sem o outro, decerto,
sufocamos. “Não sei a que ponto o outro me é necessário senão quando corro o
risco de perdê-lo” (TODOROV, 1996, p. 70) do alcance dos meus braços, do
alcance dos meus olhos.
No esteio de nossas ambiguidades,
encontramos uma em especial, a que está entre as maiores de nossas
contradições: a liberdade. Quer dizer, quanto mais dependente somos, mais
livres e autônomos nos tornamos. Só podemos ser livres na dependência do olhar
do outro, posto que “tudo acontece como se a intenção do
outro habitasse meu corpo, ou como se as minhas habitassem o dele”
(MERLEAU-PONTY apud LE BRETON, 2009, p.117). O conceito, portanto, dentro
da cultura humana, só é um: a escolha. Liberdade, ainda, não se atrela à noção
de uma infinitude de escolhas possíveis. Ela se
limita a um leque reduzido de possibilidades, de escolhas, condicionadas pelo espaço
e pelo tempo, pela cultura e pelos afetos. O mangá
analisado fornece alguns elementos importantes para discutirmos a existência
humana e suas complexidades, bem como as ambiguidades que a atravessam a partir
de elementos da cultura japonesa.
Considerações Finais
Quando teve a chance de dar
“coerência ao insensato” de sua memória, Naruto conseguiu felizmente tornar “o
horror suportável e até” transformá-lo “em uma conta vantajosa” (CYRULNIK,
2013, p.30) aliada ao seu mais alto sonho, o de ser reconhecido. Contudo, esse
cenário nem sempre é possível, pois “quando ninguém junta os pedaços para contê-los, o
sujeito fica morto ou volta mal à vida. Mas, quando é sustentado pelo cotidiano
afetivo das pessoas de convívio próximo e”, consequentemente, “quando o
discurso cultural dá sentido a sua ferida, ele
consegue retomar outro tipo de desenvolvimento” capaz de retirá-lo daquela
caverna (CYRULNIK, 2006, p. 8).
Quando (re)conciliado com o meio que habita, já que “[...] não são exatamente as circunstâncias em si que
determinam a afetividade do ator, e sim a interpretação que lhes confere — sua repercussão íntima por meio do prisma de sua história, de sua
psicologia”, o sujeito torna-se capaz de desenvolver condições favoráveis para
construir sua resiliência (LE BRETON, 2009, p.125). E isso só é possível graças
ao
“contexto afetivo e social que propõe ao lesionado alguns tutores de
resiliência ao lado de quem poderá se desenvolver” (CYRULNIK, 2006, p.5). Ao se
perceber costurando laços forjados na solidariedade e na afetividade com seus
companheiros, Naruto vislumbrava que “dentro de sua pequenez, grande
escuridão pusera-se”, finalmente, “em movimento” e, mesmo sem perceber, ajudou
a pôr em movimento a do outro também (LISPECTOR, 1998, p. 106).
Imagem 6 – Naruto (canto superior
direito) explicando sua história e Gaara (canto
superior esquerdo) refletindo sobre si a partir do outro.
Fonte: Naruto (2016, n.16, p.82)
Gaara nota
mais tarde, no contexto da figura acima, que a força de Naruto provia não
simplesmente do esforço de seus punhos e técnicas acumuladas, mas da sua
coragem de conseguir amar. Sem amor não seríamos capazes de escolher viver. “É
o amor que vale, já que é só por meio dele que existe valor. É o amor que faz
viver, pois só ele torna a vida amável” (COMTE-SPOVILLE, 2007, p.42). Seu
inimigo, Gaara, não entendia esse amor por considerar
— dado sua história de vida e as experiências pelas quais passou — que nele
residia apenas a dor e a frustração. Sendo assim, para viver sem sofrimento, a
solução que encontrava estava no isolamento dos outros, no esforço diário de
não permitir que seus afetos flertassem o campo de qualquer outro. Nunca
percebeu tão fortemente, desde sua batalha com Naruto, que o amor, apesar de
sua poderosa força em nos machucar, também possui uma magia descomunal em nos
salvar deste buraco de nós mesmos. E só a partir desse conflito com seu inimigo
que Gaara encara a possibilidade de que a manutenção
de sua existência não precisaria repousar somente na eliminação dos outros —
objetivo que marcou toda sua trajetória até o momento —, mas talvez tentando
construir relações com quem estivesse aberto à
recepcioná-lo verdadeiramente. Contudo, agora sabia, relacionar-se é correr
risco: e somente neste risco à beira do abismo é que poderia, de fato, existir.
Devemos, por estas razões, argumentar
[...] que se pode e deve viver com a
incerteza. A vida é uma navegação num oceano de incerteza, através de
arquipélagos de certeza. Estamos numa aventura coletiva desconhecida, mas cada
um vive a sua aventura. Cada um está certo da sua morte, mas ninguém conhece a
data ou as circunstâncias. É evidente que se arrisca, então, a ficar submerso
pela angústia. Na minha opinião, a resposta à angústia é a comunhão, a
comunidade, o amor, a participação, a poesia, o jogo... todos esses valores que
fazem o próprio tecido da vida. (MORIN; CYRULNIK, 2004, p. 47)
De tal maneira, a dor de Naruto,
no decorrer de muitos anos, acabou sendo uma das principais fontes de sua
conquista por um lugar no mundo: ao encarar as trevas do seu interior e trazer,
para seu lado, o seu pior demônio como companheiro, pôde construir uma melhor
versão de si mesmo, uma versão que conseguiu amar e ser amado por quem lhe
fazia sentir-se vivo.
Em outras palavras, ele consegue
entender que o próprio demônio da Raposa de Nove Caudas dentro de si também
possuía suas devidas dores enquanto criatura — outrora —
autônoma. Ao passo que transformamos o medo por aquilo que nos é desconhecido
em compreensão, essa distância que nos faz míope se encurta, cada vez mais. No
seu devido tempo, o medo nos fará perceber que todo o mal residia justamente em
não nos importarmos pelas histórias e pelos afetos dos outros distantes,
diferentes, desconhecidos. Ao transformar a criatura que sempre fora sinônimo
de dor e motivo de exclusão em sua vida como parceira, encontrou uma força que
jamais sonhara aprender, mas sobretudo fez emergir a maior aprendizagem de
todas: a superação. Contudo, percebeu que “[...] superar não é esquecer, não é
destruir” uma dor, um sofrimento, uma angústia, “é integrar” na própria vida
(MORIN; CYRULNIK, 2004, p.60). Quer dizer, o processo de aprender a extrair da
dor, responsável por uma função mobilizadora de nossas escolhas, a própria
força para continuar vivendo e a coragem para continuar tentando, sem dúvidas,
é onde está sua maior vitória. “Administrar seu medo, eis exatamente a
vocação do sujeito preso na armadilha do mundo”, fora sua flecha decisiva entre
sucumbir e superar, o maior “poder” que desenvolveu (FERRY; VINCENT, 2011, p. 159)
Naruto aprendeu, por fim, que o
que faz um rio grande são os pequenos : sua vida
sempre fora um pequeno rio, mas a partir da sua relação com os outros, das
experiências e vivências que deles aprendeu, o protagonista compreendeu que “na
verdade, ninguém vive sozinho: toda vida humana supõe outras, que a geram, que
a educam, que a acompanham, que cruzam com ela, que a perturbam, que a
fortificam, contra as quais se apoia ou se opõe, se define ou se busca”
(COMTE-SPOVILLE, 2007, p.68).
No entanto, vale ainda ressaltar, Naruto
jamais tivera o costume de usar sua dor para atrair os outros para si. Como tal
atitude está geralmente atrelada a sujeitos inseguros e medrosos, que puxam as
demais para trás, não se aplicaria a sua “conduta ninja” de prometer para si e
para os outros um dia ocupar o maior e mais importante cargo de todos, o de Hokage.
Dessa lição, extraímos a seguinte
reflexão: “para que os seres humanos vivam” mais sabiamente, “é preciso”,
afinal, “que se enfrente aquilo que mais se teme” (ESTÉS, 1999, p. 98). E, não
menos importante, da ação constitutiva que o outro tem em nós, de como
precisamos dele para nos alimentar afetivamente e existencialmente. Esse
exercício “obriga”, exemplos como Naruto, “a forjar-se, a tornar-se a si
próprio para encontrar um outro, que é também ele um outro si próprio”, (MORIN;
CYRULNIK, 2004, p.84). No fim, foi esta a mais dura batalha que Naruto
enfrentou. Provou a si mesmo que “era mais forte do que as circunstâncias” que
o reduziam à espaço nenhum (CYRULNIK, 2013, p.55), e que só teria
“alguma chance de vencer apoiando-se nos outros” (COMTE-SPOVILLE, 2007, p.69),
pois era neles que residia sua verdadeira força: existir para proteger a quem
tanto, agora, se ama. Por isso, que Naruto, destemidamente, mesmo sem
saber da tamanha relevância que terá no futuro para sua vila, nos afirma com
tanta coragem: “meu maior sonho é ...
Imagem 7 – Naruto, quando perguntado,
explica para o seu grupo sobre qual é seu maior sonho.
Fonte: Naruto (2015, n.1, p.114)
Notas
[1] Termo
utilizado para designar um pessoa que trabalha
desenhando e criando histórias para mangás.
Referências
COMTE-SPOVILLE, André. A vida
humana. São Paulo: Martins Fontes, 2007.
CYRULNIK, Bóris. A guerra aos 6 anos. Rio de Janeiro: Rocco,
2013.
CYRULNIK, Bóris.
Falar de amor à beira do abismo. São Paulo: Martins Fontes, 2006.
ESTÉS, Clarissa Pinkola. Mulheres que correm com os lobos: mitos e
histórias do arquétipo da mulher selvagem. Rio de Janeiro: Rocco, 1999.
FERRY, Luc; VINCENT, Jean-Didier. O que é o ser humano? Sobre os princípios
fundamentais da filosofia e da biologia. Petrópolis: Vozes, 2011.
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lista dos 5 mangás e animes mais famosos da história. In: History. [S.l.]. Disponível em: <https://br.historyplay.tv/noticias/empresa-cria-lista-dos-5-mangas-e-animes-mais-famosos-da-historia-confira-0>.
Acesso em: 31 jan. 2020.
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mal-estar na civilização, novas conferências introdutórias à psicanálise e
outros textos. São Paulo: Companhia das Letras, 2010.
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KISHIMOTO, Masashi. Naruto gold. São Paulo: Editora
Panini Comics, n.16, 2016.
KISHIMOTO, Masashi. Naruto gold. São Paulo: Editora
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LE BRETON, David. As
paixões ordinárias: antropologia
das emoções. Petrópolis: Vozes, 2009.
LÉVI-STRAUSS, Claude.
A
outra face da lua: escritos sobre o Japão. São Paulo: Companhia das
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LEWIS, Clive
Staples. Sobre histórias. Rio
de Janeiro: Thomas Nelson Brasil, 2018.
LIPPE, Pedro
Henrique Lutti. Estes são os 10 animes mais
adorados de todos os tempos. In: Site Uol. [S.l.], 29 abr. 2017. Disponível em: https://www.uol.com.br/start/listas/estes-sao-os-10-animes-mais-adorados-de-todos-os-tempos.htm. Acesso em: 04 jan. 2020.
LISPECTOR, Clarice. Laços
de família (contos). Rio de Janeiro: Rocco, 1998.
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Bibe. Introdução. In: LUYTEN, Sonia Bibe (org.). Cultura pop japonesa. São
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CYRULNIK, Boris. Diálogo sobre a natureza humana. Lisboa:
Instituto Piaget, 2004.
ORTIZ, Renato. O
próximo e o distante: Japão e modernidade-mundo. São Paulo:
Braziliense, 2000.
TODOROV, Tzvetan. A vida em comum: ensaio de antropologia
geral. São Paulo: Papirus, 1996.
[1] Mestrando do Programa de
Pós-Graduação em Ensino (POSENSINO) da associação UERN/UFERSA/IFRN. E-mail: diegoasce94@gmail.com.
[2] Doutor em Linguística. Docente da
Universidade Federal Rural do Semi-Árido (UFERSA) e do Programa de
Pós-Graduação em Ensino (POSENSINO), associação UERN/UFERSA/IFRN. E-mail: francisco.vieiras@ufersa.edu.br.
[3] Mestrando do Programa de
Pós-Graduação em Ensino (POSENSINO) da associação UERN/UFERSA/IFRN. E-mail: diegoasce94@gmail.com.
[4] Doutor em Linguística. Docente da
Universidade Federal Rural do Semi-Árido (UFERSA) e do Programa de
Pós-Graduação em Ensino (POSENSINO), associação UERN/UFERSA/IFRN. E-mail: francisco.vieiras@ufersa.edu.br.