Dialogismo e aspectos metasonoros em Saneamento básico, de Jorge Furtado

        

Afonso Barbosa[1]

Luiz Antonio Mousinho[2]

 

Resumo: O presente artigo objetiva realizar uma análise sobre dados da produção de sentido na obra de Jorge Furtado, desenvolvendo observações em torno da trilha sonora de Saneamento básico, o filme, longa-metragem de 2007. Nesse sentido, o estudo pretende examinar como a porção sonora da obra se destaca pelo investimento que faz em estruturas dialógicas, abrindo espaço ainda para debater a maneira como esses elementos também incorporam aspectos metalinguísticos na tessitura do filme. Saneamento básico possui aspectos multifacetados, diálogos explícitos e implícitos, além de jogos metalinguísticos amparados por dispositivos cômicos e discussões importantes acerca da própria arte em seu estatuto autorreferencial ou enquanto elemento sensibilizador, mobilizador e de congregação comunitária. Nesse contexto, o estudo deve debruçar-se ainda sobre esta duplicação que se desdobra a partir da utilização de um processo metaficcional dentro da narrativa do filme e elementos da construção do cômico. Além disso, cabe-nos examinar como o impulso criativo está entrelaçado a elementos como o conhecimento internalizado e a sensibilidade artística — latente, velada e revelada —, que é paulatinamente desenvolvida nos personagens. Dessa forma, este artigo procura observar os desdobramentos da metalinguagem e do dialogismo, examinando como esses conceitos se aplicam no filme, especialmente pela análise dos engajamentos que são construídos a partir da trilha sonora.

Palavras-chave: Cinema; Jorge Furtado; Trilha Sonora; Dialogismo; Metalinguagem.

 

Dialogism and metasound aspects in Basic sanitation, by Jorge Furtado    

Afonso Barbosa[3]

Luiz Antonio Mousinho[4]

 

 

Abstract: This article aims to develop an analysis about aspects of the meaning production data in Jorge Furtado's work, developing observations realated to the soundtrack of Basic Sanitation, the movie , a feature film from 2007. In this sense , the study intends to examine how the sound portion of the movie is highlighted through dialogical structures, expanding the debate on how these elements also incorporate metalinguistic aspects in the production of the film. Basic Sanitation has multifaceted aspects, explicit and implicit dialogues, as well metalinguistic devices developed from comic components, and important discussions about artistic work itself in its self-referential status or as a sensitizing, mobilizing, and community congregation element . In this context, the study should also focus on this duplication that unfolds from the use of a metafictional process within the narrative of the film and elements of the construction of the comic. In addition, we must examine how the creative impulse is interwoven with elements such as internalized knowledge and artistic sensitivity - latent, veiled and revealed - that is gradually developed in the characters. Therefore, this article seeks to observe the development of metalanguage and dialogism, examining how these concepts are apply in the film, especially by analyzing the contribution that are constructed from the soundtrack.

Keywords: Cinema; Jorge Furtado; Soundtrack; Dialogism; Metalanguage.

 


Palavras e sonoridades no eixo de análise bakhtiniano

 

Este trabalho pretende observar dados da trilha sonora de Saneamento básico, de Jorge Furtado, a partir de uma análise que se desenvolve na investigação de elementos metalinguísticos e componentes dialógicos presentes no longa-metragem. Para isso, interessa-nos examinar, dentre outros aspectos, como os personagens são mobilizados pela questão artística, tanto no âmbito da experienciação quanto em relação à produção, sobretudo quando explorados os recursos sonoros do filme.

Saneamento básico narra a história de Marina (Fernanda Torres) e Joaquim (Wagner Moura) na busca por recursos públicos junto à prefeitura com o intuito de resolver o problema de esgotamento sanitário que afeta Linha Cristal, comunidade onde moram. Sem sucesso na captação financeira para sanar a questão do saneamento, eles descobrem a existência de uma verba já alocada para a realização de um curta-metragem e recebem a sugestão de uma funcionária municipal para que utilizem parte do dinheiro na produção do vídeo e a outra seja destinada aos reparos de infraestrutura necessários.

Mikhail Bakhtin, estudioso russo fundamental para o desenvolvimento da discussão deste artigo, possui certas peculiaridades na sua trajetória de linguista. Dentre elas, o fato de não ter publicado em seu nome algumas obras, cujas autoriaseram tidas como suas. Os motivos alegados pela pesquisadora Marina Yaguello são de naturezas distintas: a primeira, por recusa “às modificações impostas pelo editor; de caráter intransigente, ele teria preferido não publicar do que mudar uma vírgula; Volochínov e Medviédiev ter-se-iam, então, proposto a endossar as alterações” (1988, p. 12). A segunda possui um dado mais próximo a uma peculiaridade do caráter de Bakhtin, que explicaria, por exemplo, o uso de pseudônimos, que estariam relacionados ao seu

 

gosto pela máscara e pelo desdobramento e também, parece, à sua profunda modéstia científica. Ele teria professado que um pensamento verdadeiramente inovador não tem necessidade, para assegurar sua duração, de ser assinado por seu autor (YAGUELLO, 1988, p. 12). 

 

A segunda possibilidade possui mais elementos reconhecíveis da personalidade do teórico russo e, de certo modo, parecem ir ao encontro de alguns de seus pensamentos. Em Marxismo e filosofia da linguagem, há debates sobre questões fundamentais a respeito da construção do diálogo estabelecido no trânsito das relações sociais e que acabam se configurando em uma experiência longe de um patamar individual. De acordo com Bakhtin/Volóchinov, “sabemos que cada palavra se apresenta como uma arena em miniatura onde se entrecruzam e lutam os valores sociais de orientação contraditória” (1988, p. 66). Ainda segundo Volóchinov, “uma palavra nos lábios de um único indivíduo é um produto da interação viva das forças sociais” (2018, p.140).

A partir do filme Saneamento básico, tomemos a palavra “cientista” e o significado que ela possui para os moradores de Linha Cristal quando pensamos em termos argumentativos na elaboração do vídeo O monstro do fosso: um homem de idade mais avançada, vestindo branco, num laboratório repleto de tubos de ensaio e pronto para eliminar quaisquer questões sobre a origem e o melhor modo de enfrentamento de um monstro. O discurso hollywoodiano se apresenta assim na materialização das formas e usos que os personagens dão ao conhecimento internalizado que possuem por meio do contato com filmes a que assistiram durante a vida.

Há evidentemente, nesse contexto, também os deslocamentos em torno da acepção da palavra, os dados de sua construção social e ainda os desdobramentos que os personagens operam para ressignificá-la de acordo com seus universos de referência, a exemplo da cena em que Seu Otaviano (Paulo José), já trajado de cientista, estira a língua para fora, em frente ao espelho, numa alusão à famosa imagem do físico alemão Albert Einstein. 

Segundo Volóchinov, “toda compreensão responde, isto é, traduz o compreendido em um novo contexto, ou seja, em um contexto de possível resposta.” (VOLÓCHINOV, 2018, p. 179). Desse modo, o processo estabelecido entre o que se coloca e o que se compreende pode ser considerado em relação ao âmbito imediato do discurso verbal, mas também, dando um passo em direção ao nosso objeto de estudo, à prática conversacional da produção artística.

Devemos levar em consideração que, “se a obra é mediadora entre o autor e o público, este é mediador entre o autor e a obra, na medida em que o autor só adquire plena consciência da obra quando lhe é mostrada através da reação de terceiros” (CANDIDO, 2006, p. 84, grifo do autor). Essa conjuntura já vinha há muito sendo observada e, no século XX, analisada por Mikhail Bakhtin e Antonio Candido em um cenário no qual os processos de interação eram bastante diferentes daqueles a que estamos habituados contemporaneamente, mas que, nem por isso, exerciam menos força de impacto nos segmentos envolvidos.

O dialogismo, enquanto estrutura multimodalizada, é um mecanismo que possui engajamentos discursivos que operam sob demandas interacionais. E, para entender que os entremeios são inúmeros, podemos relacionar alguns exemplos do campo da música, como o riff[1] de Day tripper (1965), dos Beatles, que está em Realce, no Unplugged MTV (1994), de Gilberto Gil, ao som de uma flauta transversal. A mesma melodia da banda inglesa também surge na introdução de O mundo é bão, Sebastião, dos Titãs, no disco A melhor banda de todos os tempos da última semana (2001).  

Ainda no contexto musical, mas propondo uma análise do texto verbalizado, ressaltamos como as trocas conversacionais podem assumir um caráter dialógico mais próximo ao conceito de polifonia, que “consiste justamente no fato de que as vozes, aqui, permanecem independentes e, como tais, combinam-se numa unidade de ordem superior à da homofonia” (BAKHTIN, 2018, p. 23). Nossa discussão compreende ainda, para o caso a seguir, que “qualquer texto que tenha dormido com outro texto, dormiu também, necessariamente, com todos os outros textos com os quais este tenha dormido” (STAM, 2003 p. 226). Nesse caso, vale o registro do ménage à trois promovido pela transtextualização das canções Divino, maravilhoso, de Caetano Veloso e Gilberto Gil; Apenas um rapaz latino-americano, de Belchior; e Eu também vou reclamar, de Raul Seixas e Paulo Coelho. Na primeira música, famosa na interpretação de Gal Costa, no disco de 1969 que levava o nome da cantora, os versos dizem:

 

Atenção

Ao dobrar uma esquina

Uma alegria

Atenção, menina

Você vem?

Quantos anos você tem?

Atenção

Precisa ter olhos firmes

Pra este sol

Para esta escuridão

Atenção

Tudo é perigoso

Tudo é divino, maravilhoso

(GIL; VELOSO, 1969).

 

A segunda canção, presente no álbum Alucinação, de 1976, responde à primeira provocando um efeito de “pluralidade de vozes que não se fundem em uma consciência, mas que, em vez disso, existem em registros diferentes, gerando um dinamismo dialógico entre elas próprias” (STAM, 2000, p. 96). O confronto é aberto e procura a antítese explicitamente entre tudo/nada.

 

Eu sou apenas um rapaz latino-americano

Sem dinheiro no banco

Sem parentes importantes

E vindo do interior

Mas sei que nada é divino

Nada, nada é maravilhoso

(BELCHIOR, 1976).

 

A terceira música, do LP Há 10 mil anos atrás, de 1976, possui uma formatação irônica e, para se referir à canção de Belchior, adota uma postura paródica. Desse modo, a investida tende a eliminar a fusão das vozes, visto que

 

Efetivamente, na estilização, na narração e na paródia a palavra do outro é absolutamente passiva nas mãos do autor que opera com ela. Ele toma, por assim dizer, a palavra indefesa e sem reciprocidade do outro e a reveste da significação que ele, autor, deseja, obrigando-a a servir aos seus novos fins. (BAKHTIN, 2018, p. 226).

 

            A utilização do diminutivo é apresentada como dado estilístico que potencializa escarnecimento, desdenhando do discurso do outro.

 

Mas agora eu também resolvi

Dar uma queixadinha

Porque eu sou um rapaz latino-americano

Que também sabe se lamentar

(COELHO; SEIXAS, 1976).

 

A polifonia, de acordo com Diana Barros, é caracterizada por um certo tipo de texto “em que o dialogismo se deixa ver, aquele em que são percebidas muitas vozes, por oposição aos textos monofônicos que escondem os diálogos que os constituem” (BARROS, 1997, p. 35). O efeito cascata aqui detectado procura expandir esse conceito para obras diferentes que dividem, no entanto, o mesmo contexto socio-histórico e cultural. Assim, percebemos que a noção dialógica bakhtiniana pode ser utilizada enquanto abordagem teórica para circunstâncias não apenas imediatas, mas mediadas por enunciados que não se comunicam exclusivamente a olho nu. 

José Luiz Braga aponta as interações comunicacionais como delineadoras da relação comunicativa, destacando que nessa instância se desenvolvem processos de troca, podendo haver, assim, a manutenção de diálogos entre objetos de naturezas diversas (BRAGA, 2001, p. 17). Aqui, podemos conceber a ideia de que campos discursivos distintos e seus emissores/receptores podem sim estar ligados apesar de comporem nichos artísticos diferentes, por exemplo. A questão, quando trazida para a análise da produção de Jorge Furtado, demonstra as influências múltiplas que o diretor possui e que não estão necessariamente ligadas ao domínio do audiovisual, mas que se complexificam com a literatura, a música e as histórias em quadrinhos, por exemplo, assim como a arregimentação característica do próprio cinema e da TV. 

O debate sobre essas trocas conversacionais registra de perto a ponte que conecta cineastas e espectadores, mas também observa a relação entre cineastas pertencentes a contextos sejam eles próximos ou distantes e suas obras. Assim, em outros termos, esse procedimento se efetiva seja quando tomamos como referência as parcerias de Jorge Furtado e de Guel Arraes, num circuito com menos intermediações, a partir de projetos corroteirizados; seja no diálogo ensejado em circunstâncias mais diversas e, em alguns momentos, mais eclipsadas, fomentando um regime intertextual e multimodalizado, como a utilização da obra Romeu e Julieta, de William Shakespeare, no roteiro do filme Romance[5], de 2008. 

 

Ficções: a linguagem entre espelhos

 

A narrativa de Saneamento básico também trabalha no sentido de usar a trilha sonora, em sua porção verbalizada, concatenada ao texto do filme. Podemos detectar esse procedimento quando Joaquim vai conversar com Marcela (Janaína Kremer), funcionária da prefeitura, sobre a exigência da elaboração de um projeto e de um roteiro para dar entrada nos 10 mil reais. Ela esclarece que “a verba é necessariamente para obras de ficção”. Numa outra evidência dos laços contínuos que a comunidade mantém com a arte, a cena se passa onde Marcela se reúne com outras pessoas para ensaiar com um coral e se desdobra no mesmo lugar onde, no prosseguimento da história, será exibido O monstro do fosso. E, logo após a fala da funcionária, especificamente, ao término da pronúncia da palavra “ficção”, o grupo entoa: 

 

Um vampiro, um lobisomem, um saci-pererê

                                           Quando à meia-noite me encontrar junto a você

Algo diferente vou sentir, vou precisar me esconder

Na sombra da lua cheia, esse medo de ser

Um vampiro, um lobisomem, um saci-pererê

Um vampiro, um lobisomem, um saci-pererê

(ZÉ FLÁVIO, 1975).

 

A Canção da meia-noite bastante conhecida no final dos anos 70 enquanto trilha da primeira versão da novela Saramandaia, composta por Zé Flávio e, no filme, homodiegética serve de ponte entre a sequência que a precede e a que a sucede, em uma metáfora que aglutina a ficcionalidade folclórica àquela que os personagens do filme vislumbram mais à frente e que possui feições hollywoodianas. De forma mais específica, a música abre a discussão a respeito do conceito de ficção, que se estende no debate entre Joaquim e Marina, na investigação da protagonista junto ao pai e na busca dicionarizada com Marcela.

A caça à palavra e às suas acepções insere-se num contexto metalinguístico, que vai abarcar a metaficionalidade resultante desses procedimentos.  Marcela lê para Marina: “Ficção. Substantivo feminino. Ato ou efeito de fingir (…). Mentira, farsa, fraude”. Marina questiona em seguida: “Não é crime?”. A transgressão a que Marina refere-se seria o fato de utilizar o dinheiro destinado à realização do vídeo para a construção do esgotamento sanitário da comunidade. E embaralhar essa lógica até que ela realize um giro total de 360 graus, voltando ao ponto de origem da verba, gastando os 10 mil e mais um pouco do próprio bolso para fazer o vídeo, configuraria algum tipo de delito?  

Sigamos deixando a resposta nas entrelinhas. O detalhe é que, com a leitura completa do verbete do Dicionário Houaiss, as personagens dariam de cara com a explicação, similar aos conceitos acadêmicos que usamos, de ficção literária e cinematográfica. A supressão da leitura pode ter sido invocada pelo receio que a palavra “fraude” suscita em Marina o medo que a protagonista possui de estar cometendo ato ilícito por planejar o desvio do dinheiro do curta-metragem para as obras de esgotamento sanitário. Ou a simples omissão gerada pela nova dúvida que surge entre as personagens quanto à necessidade ou não da utilização de um monstro no vídeo por tratar-se de uma obra de ficção. A elipse, independente do motivo, funciona para evitar um efeito elucidativo que pudesse diluir parte dos problemas que são necessários à costura narrativa de Saneamento básico, fazendo assim com que o processo de descoberta do fazer artístico-cinematográfico perpasse a própria feitura do curta-metragem.

O plano-sequência que apresenta essa passagem tem início com o prédio da prefeitura, que já nos havia sido mostrado no início do filme, mas que, aos poucos é ressignificado quando nos damos conta de que se trata, efetivamente, de uma maquete do edifício. A leitura do conceito de ficção e a ambiguidade presente acerca da verdade e da mentira não estão dispostas num gesto gratuito. Os mecanismos utilizados para dar vida ao jogo metaficcional podem assumir diversas configurações. Aqui, a sutileza do artifício desconstrói a própria ideia do real diegeticamente representado, como um mágico que faz seu truque, mas, logo em seguida, aponta para o fundo falso onde esconde o coelho na cartola. 

Além disso, a cena nos remete à logomarca da Casa de cinema de Porto Alegre, uma das produtoras à qual Saneamento básico está ligado e que tem Jorge Furtado como um de seus sócios. No início dos filmes vinculados a ela, é exibida uma curta animação em que vemos uma casa junto a uma árvore numa tela branca. A partir de um plano aberto, a perspectiva que temos do desenho é alterada o suficiente para enxergarmos que tanto a casa como a árvore são objetos cenográficos. Colocado dessa forma, a vocação anti-ilusionista de muitas das obras vinculadas à produtora responde até mesmo a uma convicção estética.

Segundo Jorge Furtado, “o documentário é honesto e ganha status de arte quando explicita os mecanismos de sua realização” (2003, p. 158). Ele ainda preconiza

 

[...] que a ficção, que é sempre um documentário sobre sentimentos privados e inconfessáveis, explore radicalmente e sem censuras o coração humano. Que o documentário revele de forma transparente a sua dose de ficcionalidade. E que não esqueçamos as palavras de Elias Canneti: “Não acredite em alguém que sempre diz a verdade” (2003, p. 158).

 

A metalinguagem na obra de Jorge Furtado está embebida em trabalhos como o “falso making off” (MOUSINHO, 2012, p. 79), que é o Cena aberta (2003). Está também diluída no voyeurismo de André (Lázaro Ramos), em O homem que copiava (2003), quando ele assiste à vida dos outros, numa clara homenagem ao suspense hitchcockiano Janela indiscreta (1954). Muitas vezes está metaficionalmente articulada em várias de suas produções, como a inserção do game eletrônico que Duca joga em Meu tio matou um cara (2004), duplicando a predisposição investigativa do filme e do próprio garoto. Se pensarmos em seu projeto de 2015 para a televisão, esse arranjo se coloca de um modo peculiar. Mister Brau, série criada por Furtado e exibida na Rede Globo, é uma comédia que discute temas como o racismo, ao contar a história de um cantor negro que atingiu um grande sucesso no Brasil e que vai morar em um condomínio luxuoso no Rio de Janeiro, onde a predominância dos moradores é de pessoas brancas. O programa de TV, mesmo sem uma proposta eminentemente metalinguística, possui ainda assim traços autorreferentes quanto ao labor artístico, em cenas que empregam um efeito duplicante no processo de composição musical do protagonista.

 

Os atalhos da trilha sonora ou as aventuras do som na terra do texto (en)cantado

 

Muitas das sonoridades de Saneamento básico compõem o lastro cotidiano da vida dos personagens, seja com os sons da natureza, como o riacho correndo; seja com os da Movelaria, como o barulho das máquinas provenientes do ambiente de trabalho da família Marghera. Nesse último caso, a oficina vai sendo contaminada acusticamente pelas discussões acerca do projeto cinematográfico, mesmo no horário do expediente. A fusão entre esses contextos aparentemente desconexos se presentifica também na utilização de alguns objetos da carpintaria para o figurino do monstro construído por Joaquim e Fabrício (Bruno Garcia). Para eles, o traje constitui uma interpretação quase literal do significado de quimera encontrado por Marina e Marcela no dicionário: “Cabeça de leão, corpo de cabra, cauda de serpente e [lança] fogo pelas narinas”. 

Após a discussão entre Marina e Joaquim que começou sobre o conceito de ficção e terminou acerca da micose do marido o casal, em clima pesaroso, se comunica em casa de forma truncada. O elemento restaurador do entendimento é a canção Piangi con me, a mesma utilizada no início do filme como pano de fundo para a ida dos protagonistas à prefeitura.

Joaquim, que está aborrecido mudando consecutivamente de canais de TV, para na música romântica, que acaba sendo o elo celebrativo da reconciliação com a esposa. No filme, temos ainda os dois antagonistas, Seu Otaviano e Seu Antônio (Tonico Pereira), que se unem emocionados para ouvir uma ária italiana. É como se a arte, mais especificamente a música, estivesse aí cumprindo uma das missões incorporadas ao próprio cinema, nesse caso, diluindo tensões. E, mais que isso, é a possibilidade de ligar mundos, lançar sentidos[6], evocar uma memória comum que traz uma noção de pertencimento, de ligação pessoal e coletiva. 

O filme manobra elementos da trilha sonora que perpassam o longa-metragem ora homodiegeticamente, ou seja, dentro do universo diegético de seus personagens; ora heterodiegeticamente, em outras palavras, além da história. Saneamento básico se faz perceber, muitas vezes, pelos elos que estabelece e pelas pontes que constrói para conectar duas pontas de uma mesma linha na costura de sua narrativa. Um dos pontos em questão está nas cenas intercaladas que se unem tematicamente por sua ideia de sensibilidade artística, seja na maneira como os personagens têm acesso a uma obra ou quando estão elaborando uma.  

Seu Otaviano mostra para Seu Antônio uma ária, Quanto è bella, quanto è cara. No toca-fitas do carro, a obra ouvida pelos dois descendentes de italianos os vai emocionando ao passo que ouvem a canção. Essa, aos poucos, vai permeando a sequência fílmica, que se desdobra, fazendo a música migrar de um patamar homodiegético para outro heterodiegético. Ou seja, a canção que estava dentro do universo da história, ao contato de seus personagens e também da recepção, passa a ficar fora desse universo, ao contato apenas do espectador. Ela segue perpassando o longa-metragem aliada a imagens aéreas do lugarejo até encontrar, “além da história”, outra dupla: Joaquim e Marina. Ele, na leitura de um trecho do roteiro que Marina já havia concluído; ela, mergulhada na escrita de uma parte posterior do texto.  

A canção se dilui em parte dessa sequência em que Joaquim indaga Marina sobre dados do roteiro, mas retorna ao final, heterodiegeticamente, para fazer o caminho de volta e alcançar novamente Seu Antônio e Seu Otaviano, enternecidos pela música, agora, novamente, homodiegética. O arco narrativo pelo qual se estende a canção engloba e busca harmonizar uma ideia de imersão do construto artístico. Ela opera no sentido de ampliar simbolicamente o registro sonoro, na tentativa de também forjar uma unidade imagética ao indicar uma comunhão de valores que a experiência de contato e de produção artística poderia engendrar nos personagens do filme.

Boa parte das canções que são utilizadas em Saneamento básico é de origem italiana, assim como a comunidade de colonos representada em Linha Cristal. Io che amo solo te, interpretada por Sergio Endrigo, é a música utilizada para a passagem em que Joaquim vende sua moto com o intuito de completar o orçamento do curta-metragem. A edição da sequência possui uma dinâmica peculiar em relação ao restante do filme. A construção apresenta, a priori com uma fotografia turva/acinzentada, um plano-sequência a partir de um take que possui uma extensão maior, diferentemente de várias outras presentes no longa-metragem. A tomada finaliza-se com um zoom quando vemos a motocicleta, em primeiro plano, à frente de Joaquim, que acalenta o veículo em um gesto de despedida. A canção ao fundo reforça esse dado, adentrando na segunda etapa do adeus:

 

C'è gente che ha avuto mille cose

Tutto il bene, tutto il male del mondo

 

Io ho avuto solo te

E non ti perderò 

Non ti lascierò 

Per cercare nuove aventure

 

C'è gente che ama mille cose

E si perde per le strade del mondo

Io che amo solo te

Io mi fermerò

E ti regalerò

Quel che resta della mia gioventú[7]

(ENDRIGO, 1962).

 

A música, que tem como título a expressão “Eu  só amo você”, contribui para construir a noção de apego à motocicleta a partir do mecanismo poético da prosopopeia. A personificação que a canção de amor ajuda a propagar, num segundo instante, também está esmiuçada nos planos abertos de uma estrada solitária e planos mais agudos que, por meio de aproximações de câmera, buscam transformar piloto e veículo em um só. A motocicleta ganha o aspecto de um personagem que parece estar de partida, e os cortes de cena, por vezes, acompanham ritmicamente a canção, numa fotografia que respira a partir de um cenário aberto em cores menos opacas, ampliando figurativamente aquele primeiro momento em que sabemos de Joaquim e de sua moto.

            Na narrativa, essa sequência procura delinear poeticamente o desprendimento do personagem, mas apresentando esse comportamento como uma difícil tarefa para ele. O espaço diegético, em planos abertos de uma estrada solitária, que mostra Joaquim pilotando a motocicleta, aliado à trilha sonora constituem essa relação que o personagem tinha com o veículo, acentuando a nobreza de seu feito. A atitude confirma a adesão indubitável, que é signo de um movimento cadenciado na teia narrativa do longa-metragem. Entretanto, a construção de sentido não seria tão eficaz se a moto nos fosse apresentada como um objeto qualquer, pronto para ser vendido, surgindo na trama forçosamente para justificar uma saída que subsidiasse o custo de edição do curta-metragem. Na verdade, esse seria inicialmente o texto do filme, em uma versão do roteiro de Jorge Furtado em 01/01/2005:

 

[JOAQUIM] Se nós temos que montar o filme a gente monta. Qual é o problema?

[MARINA] Vai ter que pagar.

[JOAQUIM] Quanto?

[MARINA] Não sei. Não sei nem quem faz, como faz. Vamos ter que ir a Santa Maria.

[JOAQUIM] Eu faço uma pesquisa por telefone. Vai ver nem é tão caro. Eu tenho aquela moto parada, já me ofereceram dois mil por ela.

[MARINA] Você vai vender a moto para pagar o filme? 

[JOAQUIM] Por que não? Beijam-se.

(FURTADO, 2005).

 

Além de se compadecer com a mulher pela falta de dinheiro para pagar um editor de imagens, a atitude demonstra a importância que o filme gradativamente vai ganhando para aqueles que o estão realizando. Ao passo que, na história, os personagens vão filmando O monstro do fosso, há um comprometimento e uma dedicação até por parte dos habitantes de Linha Cristal mais desconfiados em relação ao curta-metragem. O cinema passa a ganhar valor por si próprio, pois, a essa altura, os esforços não estão arraigados tão somente à construção da fossa. A produção cinematográfica assume um caráter comunitário na divisão de tarefas entre os moradores da região, como a ajuda de Seu Antônio enquanto dublê de Seu Otaviano, e até pela contribuição financeira dos empresários locais. No entanto, esse elemento está enfaticamente representado na consternação de Marina quando ela enxerga a necessidade de auxílio técnico e no sacrifício do marido para encontrar um meio de custear essa demanda, em uma atitude prenunciada pela compra da primeira fita de gravação, ainda no início do filme.

O duo coadunado pela sonoplastia de Saneamento básico e de O monstro do fosso ganha um aspecto metasonoro, se assim podemos denominar, em alguns pontos do longa-metragem, como a primeira exibição que Zico (Lázaro Ramos) faz para Marina do final que ele elaborou para o curta-metragem. Enquanto discutem, a canção It had to be you, interpretada por Billie Holiday, ajuda a convencer a protagonista a usar uma cena garimpada pelo editor numa das fitas que ele recebeu para montar o filme, na qual Silene (Camila Pitanga) se despe num cenário bucólico.  

A sequência do longa-metragem em que a montagem com a música é apresentada para Marina possui um fio condutor sobre uma representação da sensibilidade em relação à arte que percorre o filme em diferentes trechos a partir da suscetibilidade dos moradores de Linha Cristal. Sabemos que a imagem é a “matéria-prima fílmica” (MARTIN, 2003, p. 21), entretanto, nesse caso, é em torno da música que a aquiescência de Marina vai sendo construída quadro a quadro. Trata-se de uma demonstração figurativa do apelo que a trilha sonora pode exercer numa construção cinematográfica. É como se filmássemos um espectador sensibilizando-se e, até mesmo nessa situação, uma diretora vendo seu filme tomar forma.

O olhar angustiado de Marina, ao ver que alguém está planejando “divulgar” um vídeo íntimo de sua irmã, vai sendo substituído por um semblante e um gestual condescendentes. A adesão da protagonista, nesta passagem, resume o traçado de Saneamento básico: terminar o filme torna-se uma meta mais importante que as obras de esgotamento sanitário, já que a partir de então se tem claramente a noção de que uma escolha precisa ser feita, pois o aporte financeiro não permite a execução dos dois projetos.

 

Considerações Finais

 

As releituras desses dados, que, muitas vezes são caracterizados a partir de um uso reiterado, nos oferecem novos olhares sobre esse contexto social e estão, de certo modo, ligadas ao fato de que “a língua elabora um meio de introdução mais sutil e flexível da resposta e do comentário autoral ao discurso alheio” (VOLÓCHINOV, 2018, p. 258). Ao aliarmos essa discussão ao debate sobre a produção artística, mais especificamente, na esfera do audiovisual, vale assinalar ainda que “a vida começa apenas quando um enunciado encontra o outro, isto é, quando começa a interação discursiva, mesmo que ela não seja direta [...]” (VOLÓCHINOV, 2018, p. 298).

Não é nosso objetivo delimitar as zonas fronteiriças onde ocorrem esses processos comunicacionais, interessa-nos, todavia, procurar compreender quais valores estão envolvidos e como eles se estabelecem. As linhas que parecem, à primeira vista, paralelas terminam por se encontrar numa espécie de horizonte dialógico, gerando, com essas aproximações, outras possibilidades do fazer artístico.

A representação do cotidiano está ligada ao prosaico e, nesse sentido, há de se pensar no poético que se instaura no ambiente diegético. O resultado dessa investida é concebido por meio dos dados artísticos que perpassam a vida comum, também a partir dos elementos que conectam os personagens, gerando um efeito que procura flexibilizar as relações e estreitar os laços entre os moradores de Linha Cristal. Logo, o jogo, o lúdico e os aspectos dessa natureza não estão somente representados na porção majoritária evidentemente que o vídeo ocupa na vida dos personagens, mas se vincula e também se torna intenso em momentos variados da trama. Assim, atinge-se a noção de arte mobilizadora, mas também, com isso, enquanto mecanismo de agregação quando também reúne e brinca, assim como em Saneamento, com verbo, som e imagem.

 

Notas

[1] Trecho curto instrumental que se repete com frequência na música.

[5] Longa-metragem dirigido por Guel Arraes, que teve a parceria de Furtado na escrita do roteiro.

[6] Conforme sugerem os versos “Ligar gente/Lançar sentido”, da canção A outra banda da terra, gravada por Caetano Veloso, no disco Uns, de 1983.

[7] “Há gente que teve mil coisas/Todo o bem, todo o mal do mundo/Eu tive só você/Eu não te perderei/Não te deixarei/Para procurar novas aventuras/ Há gente que ama mil coisas/ E se perde pelas estradas do mundo/Eu que amo só você/Eu me deterei e te presentearei/[Com] aquilo que resta da minha juventude”. Disponível em: <https://bit.ly/38QEF6g>. Acesso em: 18 set. 2019.

 

Referências

 

BAKHTIN, Mikhail. Marxismo e filosofia da linguagem. São Paulo: Editora Hucitec, 1988.

BAKHTIN, Mikhail. Problemas da poética de Dostoiévski. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2018..

BARROS, Diana Luz Pessoa. Contribuições de Bakhtin às teorias do discurso. In: BRAIT; Beth (org.) Bakhtin, dialogismo e construção de sentido. Campinas:  Editora da UNICAMP, 1997, p.27-38.

BELCHIOR. Apenas um rapaz latino-americano. In: Alucinação. Brasil: PolyGram, 1976. 1 disco vinil, lado A, faixa 1 (4 min).        

BRAGA, José Luiz. Constituição do campo da comunicação. In: FAUSTO NETO, Antônio; PRADO, José Luiz Aidar; PORTO, Sérgio Dayrell (org.). Campo da comunicação: caracterização, problematizações e perspectivas. João Pessoa: Editora Universitária, 2001, p.11-39.

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MARTIN, Marcel. A linguagem cinematográfica. São Paulo: Editora Brasiliense, 2003.

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SANEAMENTO BÁSICO, O FILME. Direção: Jorge Furtado. Intérpretes: Fernanda Torres, Wagner Moura, Camila Pitanga, Bruno Garcia, Lázaro Ramos, Janaína Kremer, Tonico Pereira, Paulo José et al. Roteiro: Jorge Furtado. Brasil: Casa de Cinema PoA, 2007. 1 DVD (112 min), son., color., Super-16/35mm.    

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[1]Doutor em Letras pela Universidade Federal da Paraíba (UFPB). E-mail: afonsobarbosa780@gmail.com.

[2]Professor Titular do Departamento de Comunicação, da Pós-graduação em Comunicação e da Pós-graduação em Letras da Universidade Federal da Paraíba (UFPB). E-mail: luizantoniomousinho@gmail.com.

[3]Doutor em Letras pela Universidade Federal da Paraíba (UFPB). E-mail: afonsobarbosa780@gmail.com.

[4]Professor Titular do Departamento de Comunicação, da Pós-graduação em Comunicação e da Pós-graduação em Letras da Universidade Federal da Paraíba (UFPB). E-mail: luizantoniomousinho@gmail.com.