O custo da participação:

lazer e trabalho gratuito (de fãs) na cultura da conectividade

 

Tarcízio Macedo[1]

 

Resumo: Este artigo endereça uma discussão acerca das armadilhas na cultura da convergência e da participação, com destaque ao debate sobre os movimentos de apropriação lucrativa do tempo de lazer de fãs (e a retenção de sua atenção) para a conversão de atividades online prazerosas em forças de trabalho gratuito. Tomando o contexto das culturas participativas na cultura da conectividade e do capitalismo tardio, cognitivo e de plataforma, seu intuito é se debruçar tanto na dinâmica comunicacional sob a retórica da participação, quanto defender que essas formas de participar podem ser vistas como atividades laborais informais, convertidas em modalidades de trabalho gratuito e precarizado encoberto como entretenimento e lazer. A partir de uma aproximação com a economia política, este trabalho busca entender o custo (às custas) da participação, enquanto retórica deslocada do imaginário do movimento contracultural para favorecer o projeto neoliberal. O resultado desse esforço aponta para a existência de uma sociodinâmica das culturas participativas. A procura por uma compreensão desse fenômeno revela formas e práticas de participação na internet, além de revelar a estrutura e arquitetura de exploração de uma rede de atividades laborais nas culturas participativas. Essa proposta oferece uma maneira de decupar elementos, práticas e atores que atuam na tessitura desse social.

 

Palavras-chave: Capitalismo; Trabalho Gratuito; Cultura da Convergência; Culturas Participativas; Fãs.

 

The cost of participation:

leisure and free (fan) labor in the culture of connectivity

 

Tarcízio Macedo[2]

 

Abstract: This paper addresses a discussion of the pitfalls in the convergence and participation culture, with an emphasis on the debate about the movements of profitable appropriation of fans' leisure time (and the retention of their attention) for the conversion of pleasurable online activities into free labor forces. Taking the context of participatory cultures in the culture of connectivity and late, cognitive, and platform capitalism, his intent is to address both the communicational dynamics under the rhetoric of participation, and to argue that these forms of participation can be seen as informal labor activities, converted into modes of free and precarized labor disguised as entertainment and leisure. From an approximation with political economy, this paper seeks to understand the cost (at the expense) of participation, as rhetoric displaced from the imaginary of the countercultural movement to favor the neoliberal project. The result of this effort points to the existence of a socio-dynamic of participatory cultures. The search for an understanding of this phenomenon reveals forms and practices of participation on the Internet and reveals the structure and architecture of exploitation of a network of labor activities in participatory cultures. This proposal offers a way to decoupage elements, practices, and actors that act in the weaving of this social.

 

Keywords: Capitalism; Free Labor; Convergence Culture; Participatory Cultures; Fan.

 

Introdução

                      

Nos primeiros anos do século XXI, a imprensa e vários teóricos das mídias saudaram a figura do usuário e declararam a sua vitória antecipada (VAN DIJCK, 2013), visivelmente animados com as possibilidades participativas introduzidas à medida que as plataformas de “mídia social” surgiam e se atualizavam (Wikipédia, Blogger, Facebook e YouTube, por exemplo). Em 2006, Henry Jenkins (2009) nos dava as boas-vindas a sua “cultura da convergência”, que em sua crença instaurava-se na sociedade. Nesse caminho, as relações sociais estariam ainda mais baseadas na participação coletiva, descrita por Jenkins pelo uso da expressão “cultura participativa”, amplamente abordada por um número exponencial de manifestações — digitais ou não.

Autores como Jenkins et al. (2006) e Yvana Fechine (2014) consideram mais apropriado se reportar às culturas participativas. O intuito é sinalizar que não se trata de um fenômeno único ou de uma terminologia monolítica, mas de uma multiplicidade de manifestações apoiadas pelo desejo de uma interferência mais próxima nos processos de produção, sejam eles motivados pelo consumo cultural ou sustentados pelo caráter político. O nascimento de uma retórica cultural da participação tem sido caracterizado por fomentar processos colaborativos ativados por meio de modos de comunicação ditos, frequentemente, como mais horizontais, democráticos e igualitários (JENKINS et al., 2006).

A realidade, porém, impõe-se a qualquer projeto de crenças utópicas caras ao universo imaginário da cultura digital, à medida que, como em demais campos da vida social, os poderes não são distribuídos simetricamente entre os sujeitos. Afinal, a prova desse imbróglio é o fato de a própria cooptação desse espírito participativo original ser a responsável pelo crescimento das gigantes plataformas digitais de hoje (VAN DIJCK, 2013). Reside aqui o interesse deste artigo: a apropriação lucrativa do tempo de lazer de fãs (e a retenção de sua atenção) para a conversão de atividades online prazerosas em forças de trabalho gratuito (TERRANOVA, 2000). Este texto busca entender, a partir de uma aproximação com a economia política, o custo (às custas) da participação, enquanto retórica deslocada do imaginário do movimento contracultural para favorecer o projeto neoliberal diante dos processos de captura exercidos pelo estágio atual do capitalismo contemporâneo (MUSSA; FALCÃO; MACEDO, 2020).

Empreende-se um debate com a finalidade de compreender tanto a dinâmica da comunicação nas culturas participativas — isto é, as principais formas pelas quais os fãs participam ao longo da existência de um determinado objeto (SANDVOSS, 2013) —, quanto defender que essas formas de participação são convertidas em modalidades de trabalho gratuito e precarizado disfarçado de entretenimento, cuja justificativa encontra apoio na dimensão afetiva do fã com um produto midiático.

No intuito de buscar entender parte dessa sociodinâmica, como assim chamamos, identificamos neste trabalho alguns aspectos da arquitetura das culturas participativas, nos termos colocados por Jenkins (2009), agregando elementos teóricos e observativos gerais. Esta abordagem tem origem a partir de reflexões apresentadas e desdobradas em trabalhos de campo anteriores (MACEDO, 2016, 2017; MACEDO; AMARAL FILHO, 2016; MACEDO; CUNHA, 2017). Uma vez que a participação é complexa e na casa dos milhões, apresentamos um panorama geral de como as formas de participação são articuladas — com exemplos pontuais — enquanto modalidades de trabalho gratuito. Nosso objetivo é, com isto, auxiliar no estudo crítico das comunidades de fãs, bem como compreender a arquitetura e a dinâmica de exploração laboral no contexto das culturas participativas existentes na cultura da conectividade.

Assim, seguimos com base em quatro eixos de formas de participação, definidos por Jenkins et al. (2006), e o articulamos em um esquema geral para compreensão da sociodinâmica das culturas participativas enquanto formas de trabalho gratuito (TERRANOVA, 2000), com o cuidado de não reduzir a diversidade do fenômeno. Acrescentamos ainda a resistência como um quinto eixo ao conjunto das formas de se participar e trabalhar informalmente. Identificamos uma porção da sociodinâmica das culturas participativas a partir de uma rede de trabalho gratuito de exploração de mão de obra não remunerada de fãs, em um contexto de acumulação de capital. Essa proposta procura oferecer uma maneira de decupar elementos, práticas e atores que participam da tessitura desse social.

 

A batalha pelos sentidos da convergência e da participação

 

“Convergência” é um conceito bastante disseminado no léxico das mídias digitais desde os anos 1970. Sua grande popularidade é diretamente proporcional à flexibilidade que possui. Cultura da Convergência, de Henry Jenkins (2009), introduziu um novo sentido ao discordar da dominante percepção técnica que acompanhava o conceito, associada a uma característica de dispositivos que agregam uma variedade de funções em apenas um aparato — como smartphones. Jenkins (2009) usa o termo convergência para entender o aparecimento de transformações pelas quais opera a lógica da indústria voltada para o consumo cultural, que estaria promovendo uma reconfiguração do circuito midiático de tal forma que se constituiria numa nova cultura, batizada por ele de “cultura da convergência”. A convergência dos meios abarcaria, assim, complexas alterações culturais, sociais, tecnológicas e empresariais na forma como os sujeitos se envolvem com os meios de comunicação. No ambiente das culturas participativas, o consumidor é considerado um segmento atuante da produção e da circulação de novos conteúdos.

Para Jenkins, a convergência não se trataria de um processo que ocorre a partir de aparelhos, independente dos seus níveis de requinte, mas “[...] dentro dos cérebros de consumidores individuais e em suas interações sociais com outros” (JENKINS, 2009, p. 28). A ideia ganhou ampla difusão e influência, seja em meios acadêmicos ou profissionais. Atrelada à noção de convergência, a promessa retórica da participação — iniciativa, criatividade, relações informais e afetivas, aspirações utópicas, percepções de autonomia e liberdade, vontade de compartilhamento, exploração e precariedade (BRIZIARELLI; ARMANO, 2015; BULUT, 2020) — surgiu para narrar a explosão das tecnologias digitais interativas que permitiriam aos consumidores registrar, produzir, apropriar, arquivar e recircular conteúdos de mídia de maneiras inovadoras e diferentes, funcionando como sujeitos substanciais para sua propagação e sobrevivência. É dessa forma restrita e específica que a expressão “cultura participativa” é introduzida por Jenkins (2009) em sua obra.

Existem variadas concepções do que constitui uma cultura participativa. As discussões sobre essa noção surgem a partir de tentativas para criar canais alternativos para comunicação do público. Esse tipo de público realiza uma produção interativa de significado e valores, que são apropriados e explorados pelas empresas no rentável mercado online. Quando mencionamos o termo “culturas participativas” na internet associa-se, principalmente, às relações praticadas em uma comunidade de fãs ou fandom, um dos seus manifestos mais ilustrativos. Na literatura, fã é um sujeito que está emotivamente comprometido e expressa um engajamento constante e periódico com um determinado objeto, seja ele narrativa ou texto, que atravessam diferentes mídias, incluindo equipes de esportes, ícones, celebridades etc. (SANDVOSS, 2013).

Entretanto, Marcelo Garson (2019) argumenta que o conceito criado por Jenkins (2009) apresenta tantos gargalos quanto o que criticava. Ao investigar as origens, popularidade e implicações ideológicas da dupla dimensão presente na noção de convergência (aparato técnico e comportamento do consumidor), Garson (2019) expõe como o conceito e a ideia de participação não são termos incidentais, mas se alinham a uma série de utopias ao passo que validam as diferenças de poder entre produtores e consumidores de cultura. “O resultado, no entanto, é uma visão muito pouco crítica das relações de poder que governam o ciberespaço. As interações entre fãs parecem ocorrer em um ambiente harmônico e livre de hierarquias” (GARSON, 2019, p. 65), assim como o potencial colaborativo aparece aberto a todos, sem que houvesse discriminação, disputa ou constrangimento de qualquer tipo, reforça o autor[1].

A abordagem crítica de autores como José van Dijck (2013) e Garson (2019), acerca das armadilhas presentes nos conceitos de convergência e participação, é particularmente útil aos objetivos deste artigo. A cultura da convergência, e suas consequentes e aclamadas culturas participativas, não pode ser compreendia sem que se faça contexto às mudanças acometidas na economia política global. O tópico a seguir procura acrescentar esta camada ao debate.

 

A cultura da convergência e as culturas da participação no horizonte crítico da cultura da conectividade

 

O capitalismo cognitivo, fundamentado na acumulação a partir da exploração do conhecimento como recurso e produto, levou a várias transformações nas relações de consumo, produção e trabalho (CORSANI, 2003). Diversos são os conhecimentos produzidos e valorizados no âmbito do capitalismo cognitivo: científicos, técnicos, artísticos e/ou ideológicos, argumenta Antonella Corsani (2003).

A cultura da convergência e as culturas participativas inserem-se no contexto de emergência dos impactos da Web 2.0[2] na produção e no consumo cultural. Este foi um momento particular de inflexão do mercado em termos de manutenção econômica e uma forma de resiliência do capitalismo frente a uma possível nova crise na recém-inaugurada economia digital (TERRANOVA, 2000; ZUBOFF, 2019), caracterizada pelo advento de novas tecnologias e novos tipos de trabalhadores (TERRANOVA, 2000). Além disso, tornou-se um espaço de oportunidade para consolidar um modelo de negócio baseado no capitalismo cognitivo e de vigilância (CORSANI, 2003; ZUBOFF, 2019). Essas mudanças tecnológicas permitiram, segundo Garson (2019), a construção de uma nova arquitetura da informação propícia ao desenvolvimento de plataformas digitais como YouTube, Facebook e Instagram, alimentadas pelo conteúdo produzido coletivamente e compartilhado pelos usuários em larga escala.

Van Dijck (2013) relembra que o desenvolvimento de um novo espaço público distante do controle e da governança corporativa, que os usuários hipoteticamente ajudaram a construir, durou apenas alguns anos. Entretanto, o espírito igualitário, colaborativo, coletivo e comunitário[3] recebeu impulso nos anos 2000 com a inserção da Web 2.0 (VAN DIJCK, 2013). Diferentemente de Garson (2019), Van Dijck (2013) argumenta que a propagação das plataformas de mídia social foi (e continua sendo) de maneira recorrente e inocentemente creditada ao aparecimento da Web 2.0, sobretudo pelo potencial participativo da mídia social, às vezes incorretamente atribuído ao design tecnológico da Web. “Sua capacidade embutida de comunicação bidirecional supostamente tornava a mídia online infinitamente mais democrática do que a mídia antiga (unilateral)”[4] (VAN DIJCK, 2013, p. 10, tradução nossa). Foi neste ínterim que [o paradigma da] participação ganhou amplo destaque para descrever o potencial da Web 2.0.

Em sua história crítica da ascensão das mídias sociais, Van Dijck (2013) define a cultura da conectividade como uma cultura na qual um agregado de plataformas de crescimento constante define padrões técnicos e normativos para práticas sociais online. Plataformas diversas como Amazon, Netflix, Facebook e Google representariam uma nova concentração de capital e poder. A interconexão das plataformas produziria uma nova infraestrutura, uma em que o ecossistema de mídia conectiva possuiria alguns agentes com grande poder e uma multidão de outros com pouco. Essa transição de uma cultura participativa para uma cultura de conectividade decorreu num período relativamente curto de dez anos, especialmente entre 2006 a 2010 conforme Van Dijck (2013).

A conectividade (automatizada) evoluiu para um recurso valioso no mercado global de serviços de redes sociais e conteúdos gerados pelos usuários, a partir do momento em que empresas descobriram modos de codificar as informações em algoritmos. Estes, então, passaram a marcar uma forma particular de socialidade online e torná-la lucrativa nos mercados online, cuja “[...] organização do intercâmbio social está baseada nos princípios econômicos neoliberais”[5] (VAN DIJCK, 2013, p. 21, tradução nossa). As práticas das chamadas culturas participativas, portanto, inserem-se no contexto dessas socialidades online que são fonte de acumulação de capital pelas empresas detentoras de direitos autorais e de plataformas digitais.

Culturas participativas entre entretenimento, lazer e trabalho gratuito

 

“Todos os dias, alguém ligado a uma rede está realizando microtrabalhos não remunerados por horas a fio”[6] (GALLOWAY, 2012, p. 136, tradução nossa). A internet é intensamente alimentada por trabalho cultural e técnico (TERRANOVA, 2000), numa produção de valor ininterrupta e inerente aos fluxos da sociedade plataformizada (VAN DIJCK, 2013; VAN DIJCK; POELL; DE WAAL, 2018). Ainda que nossa proposta possa soar alarmista e exagerada, é no argumento de Tiziana Terranova (2000) e em seu conceito de “trabalho gratuito” que nossa abordagem encontra eco e base. A sustentabilidade da internet como meio é diretamente dependente de quantias enormes de trabalho, que não são equivalentes ao emprego (TERRANOVA, 2000). A autora defende que parte substancial dessa imensa quantidade de trabalho que sustenta a internet é derivada de uma forma particular de trabalho gratuito, que vai desde não ser pago, mal pago, produzido socialmente e de origem coletiva (BRIZIARELLI; ARMANO, 2017; TERRANOVA, 2000).

O trabalho gratuito é aquele momento em que esse consumo de conhecimento de cultura se traduz em produção excedente de atividades, as quais são abraçadas com prazer e, ao mesmo tempo, geralmente são descaradamente exploratórias (TERRANOVA, 2000, p. 37).

 

A hipótese de Terranova (2000) é a de que o trabalho gratuito é estrutural para a economia cultural no capitalismo tardio, de tal forma que a internet incorpora uma continuação do capital ao invés de uma ruptura com ele. Essa afirmação coloca a teoria da convergência em um prisma acadêmico díspar da economia política desenvolvida por autores como Terranova (2000) e Van Dijck (2013). Além disso, questiona o argumento central que a promessa da cultura da convergência e da participação hipoteticamente levaram a crer: a de uma cultura sem estrutura, hierarquias e disputas (CAMPANELLA, 2012; GARSON, 2019; JENKINS, 2009). A análise de autores como Terranova (2000), Bruno Campanella (2012), Alex Primo (2015), Abigail Kosnik (2013), Ergin Bulut (2020), Garson (2019), Thiago Falcão, Daniel Marques e Ivan Mussa (2020), Macedo e Amaral Filho (2016), Macedo e Cunha (2017), Macedo (2016, 2017) e Mussa, Falcão e Macedo (2020), dentre outros, mostram que essa crença encontra menos bases nas quais ainda poderia se firmar.

A oferta de trabalho gratuito é vista por Terranova (2000) como um elemento essencial na criação de valor nas economias digitais. Um ponto relevante é que a confiança e o afeto de fãs — quase como uma dependência — é parte de mecanismos mais amplos de extração capitalista de valor que são intrínsecos ao capitalismo tardio, segundo demonstra a autora. Assim posto, o trabalho gratuito é um desejo de trabalho inerente ao capitalismo tardio, e este é o campo que o multiplica e o esgota (TERRANOVA, 2000). A partir desse prisma, as culturas participativas seriam identificadas mais pela ambígua relação desencadeada pelas promessas da participação — mencionadas anteriormente — do que pela “passividade” de outrora. Uma arguição válida para o entendimento dessa ambiguidade pode ser resumida na seguinte frase de Byung-Chul Han (2015, p. 28): “é uma ilusão acreditar que quanto mais ativos nos tornamos tanto mais livres seríamos”.

Terranova (2000) compreende o trabalho gratuito como sendo cedido simultaneamente, não aproveitado voluntariamente, desfrutado e explorado, incluindo atividades como construção de sites, de ambientes online, modificação de pacotes de software etc. Esse movimento nos permite redefinir as culturas participativas também em termos de trabalho gratuito de fãs, ou seja, situações em que o fã participa de forma gratuita e voluntária da criação de valor, impelido pela motivação ligada ao lazer/entretenimento, afeto, exibição do consumo, expressão da identidade e pelo impulso de uma subjetividade neoliberal.

As culturas participativas consideram o trabalho digital e do conhecimento como a manifestação da subsunção real ao capital. Ao pensarmos em fãs como parte de uma nova categoria de trabalhadores digitais, podemos vê-los como um meio poderoso de trabalho informal que reproduz a integração entre o momento da produção e do consumo típico da economia digital contemporânea: ambos produzem para o consumo e consomem para produzir em plataformas variadas. Nesse ínterim, movidos pelo afeto e pelo espírito colaborativo, fãs direcionam especificamente suas atividades produtivas (conhecimentos artísticos, técnicos, profissionais, culturais etc.) aos produtos de mídia que se envolvem. Essa base é, então, explorada por relações de trabalho informais e afetivas, aspirações utópicas, percepções de autonomia e liberdade, vontade de compartilhamento e as fronteiras ainda indefinidas e borradas entre tempo livre, lazer e trabalho gratuito (BRIZIARELLI; ARMANO, 2017; BULUT, 2020; FALCÃO; MARQUES; MUSSA, 2020; MUSSA; FALCÃO; MACEDO, 2020).

Garson (2019, p. 66) aproxima-se de nossa reflexão ao questionar a obra de Henry Jenkins, Joshua Green e Sam Ford (2014) com um argumento pertinente: “como lidar, no entanto, com a acusação de que as marcas exploram esse entusiasmo, lucrando com o trabalho não pago dos fãs?” Jenkins, Green e Ford (2014) partem de um entendimento que considera o público consciente de que suas formas de participação (sugestões, comentários, produções e edições) podem ser apropriadas para o lucro das empresas. O termo “engajado” é usado na obra em detrimento da expressão “alienado” ou “explorado”. A adoção do primeiro ao invés destes últimos não é casual, mas reforça uma ideia de fãs atrelada a uma ação dentro do escopo daquilo que é percebido como entretenimento e lazer.

Para muitos fãs, a natureza não comercial da cultura do fã é uma de suas características mais importantes. Essas histórias são fruto do amor; elas operam numa economia de doação e são oferecidas gratuitamente a outros fãs que compartilham da mesma paixão pelos personagens (JENKINS, 2009, p. 242-243).

Com o pensamento de que ao fã importa fortalecer os laços comunitários entre seus pares ao invés de ganhar dinheiro, Jenkins (2009) e Jenkins, Green e Ford (2014) ao passo que louvam a dimensão afetiva e informal de trabalho do fandom, reforçando a imperativa retórica neoliberal, produzem um discurso em defesa das empresas contra as acusações de exploração que a elas competem, na medida em que os sujeitos estariam conscientes da apropriação não paga de suas atividades pelo capital. A assimetria estrutural de poderes entre produtores e consumidores seria posta de lado como algo inferior, reforça Garson (2019), sem que as empresas que controlam e prescrevem as relações entre trabalho e entretenimento sejam questionadas.

Essa visão invariavelmente orientada a partir de um raciocínio norte-americano neoliberal, ainda que o autor se afirme crítico desta retórica (JENKINS; GREEN; FORD, 2014, p. 19), ignora o consumo midiático precarizado do Sul e define essa atividade a partir de uma redução perigosa a percepções particulares à vida no Norte. Além disso, brinda a condição do fã como um sujeito explorado conscientemente, em que estes cooperariam com as empresas deliberadamente em busca de trocas afetivas ao passo que estas lucrariam com a monetização de suas atividades de trabalho informal. Assim, fãs deixariam de ser vistos como trabalhadores para serem tratados como “[...] consumidores ativos de mercadorias significativas”[7] (TERRANOVA, 2000, p. 37, tradução nossa).

A partir de Terranova (2000), podemos crer que fãs trabalham movidos pela representação de um desejo cultural e afetivo que não deixa de ser real porque é fabricado socialmente — esse movimento é característico da cultura da conectividade descrita por Van Dijck (2013). O conceito de paratexto recai de forma crucial para entender a relevância desse tipo de modalidade de trabalho gratuito, assim como os imensos lucros advindos dele por parte de plataformas digitais e da indústria global de entretenimento.

 

Paratexto, fonte de trabalho gratuito

 

A noção de paratexto é fundamental para compreender a sociodinâmica das culturas participativa enquanto modalidades de trabalho gratuito, porque posiciona a importância dessas produções no circuito do consumo midiático. Evocar este conceito faz uma alusão à obra de Gérard Genette (1997), mas tomamos emprestado sua apropriação por Peter Lunenfeld (1999) e Thiago Falcão (2015). Genette (1997) realizou um amplo estudo e percebeu como esses para-textos — materiais e discursos “separados” do texto principal e que “cercam” o objeto narrativo — são decisivos para a experiência de uma obra. Para ele, são elementos que possibilitam a entrada no texto e formam uma zona de transação, não apenas de transição, que exerce influência com o objetivo de auxiliar na recepção do texto central, constituindo-se, segundo Falcão (2015, p. 376), em “elementos externos ao texto que incidem diretamente sobre sua experiência”.

Para compreender esses elementos, Genette (1997) estabelece uma subdivisão que os enquadra como epitextos e peritextos. Os últimos são paratextos específicos que permanecem internos a determinada obra (apêndices, notas, prefácios, títulos), pertencendo ao mesmo volume do texto principal no qual os paratextos rondam. Os primeiros, contudo, são externos à obra. Dessa forma, elementos paratextuais como entrevistas e críticas seriam significativos para a compreensão e experiência do texto principal, apesar de externos a ele. É relevante salientar que Genette (1997) constrói suas teorias partindo da literatura e considera o paratexto em termos de indústria editorial. Lunenfeld (1999), ao se apropriar desse debate, desenvolve um argumento acerca da estética do inacabado como sendo a estética da cultura digital contemporânea, incluindo a prática de apropriação não contemplada na obra do seu predecessor.

Discordando de Genette (1997), Lunenfeld (1999) argumenta que a partir das transformações na indústria editorial — sobretudo na forma como os conglomerados de entretenimento administram os conteúdos produzidos —, a questão da centralidade do texto passou a ter menos bases nas quais ainda poderia se justificar, na medida em que essa ideia é decorrente de um padrão implantado pela indústria editorial antes do fenômeno da convergência midiática (FALCÃO, 2015; JENKINS, 2009, 2014) e posterior cultura da conectividade e plataformização (VAN DIJCK, 2013; VAN DIJCK; POELL; DE WAAL, 2018). O conjunto dessas mudanças na indústria incapacitou “[...] o paratexto a tal ponto que é impossível distinguir entre ele e o texto”[8] (LUNENFELD, 1999, p. 14, tradução nossa). Lunenfeld (1999) formula, portanto, que essas noções confundem-se. Seguindo o raciocínio de Falcão (2015, p. 384), subscrevemos que “texto e paratexto funcionam como uma unidade correlacionada”, embora o argumento de que a fronteira entre ambos estaria completamente desintegrada, como defendido por Lunenfeld (1999), deve ser relativizado.

Conjuntos paratextuais são muito mais do que produzir respostas para os enigmas em diferentes mídias, como em jogos digitais (FALCÃO, 2015). Dessa forma, podemos definir paratextos como o conjunto de elementos que orbitam os produtos de mídia contemporâneos, compondo os constantes movimentos dos processos comunicativos nessas redes complexas. Eles agem produzindo produtos carregados de significados plurais, cuja produção de sentido advém das interações para com todos os componentes que orbitam no texto e em torno dele, não necessariamente da experiência do próprio texto (FALCÃO, 2015).

Essa transformação na dimensão e na relevância do paratexto é particularmente incentivada pelas possibilidades trazidas pela Web 2.0 para a internet, por isso cremos ser útil entendê-la como uma abundante fonte de valor e trabalho gratuito. A internet, entretanto, não transforma automaticamente qualquer usuário em um produtor e trabalhador ativo, como argumenta Terranova (2000). Da mesma forma, nem todo trabalho gratuito deve ser tomado como sinônimo de exploração. Essa afirmativa abre espaço para uma valorização e proliferação do trabalho de fã, do valor gerado por fãs e para fãs e das habilidades envolvidas (STANFILL; CONDIS, 2014).

O processo a partir do qual as culturas participativas, o consumo e a produção são redefinidos dentro da categoria de trabalho gratuito acena para o desenrolar de uma lógica distinta de valor que não é inteiramente nova, mas cujas operações precisam de um tratamento adequado. A seguir, remontamos parte dessa rede de exploração para identificar como a socialidade online é condicionada por um setor corporativo, em que valores neoliberais como competição, disputa e meritocracia definem a camada básica sobre a qual uma miríade de produções são construídas. O intuito é de demonstrar algumas das modalidades pelas quais as indústrias e plataformas digitais apropriam-se do trabalho de fãs para transformá-lo em valiosas commodities digitais.

                                  

Às custas da participação: a rede de trabalho gratuito de fãs na sociodinâmica das culturas participativas

 

Diversos produtos de entretenimento dependem diretamente do tempo e esforço dedicado por suas comunidades de base; e é no “engajamento” diário de legiões de fãs que a manutenção econômica e cultural de produtos midiáticos é garantida. A energia e o tempo que os fãs dedicam para fazer objetos significarem é aqui defendida como trabalho, e a grande maioria desse trabalho é realizado gratuitamente, como também reforça Kosnik (2013). A partir de um olhar à obra de Jenkins et al. (2006), Jenkins (2009) e Jenkins, Green e Ford (2014), podemos definir as modalidades de trabalho gratuito e precarizado de fãs a partir das formas de manifestação das culturas participativas, as quais se dividem em quatro eixos: (1) filiação; (2) expressão; (3) resolução colaborativa de problemas; e (4) circulação. A esse conjunto de formas de participar (e explorar a atividade de fãs), acrescentamos a resistência como um quinto elemento, em um contraponto ao argumento de Jenkins, Green e Ford (2014) oferecido em trabalhos anteriores (cf. MACEDO, 2017; MACEDO; CUNHA, 2017) — neste texto, tratamos de apresentar uma nova leitura crítica às nossas ideias[9].

A partir desses elementos, buscamos compreender a forma como as culturas participativas são particularmente valiosas para as empresas e plataformas digitais em um contexto de economia digital e de capitalismo cognitivo, marcado pela acumulação privada de capital a partir da exploração da força de trabalho e do conhecimento, a sobreposição de trabalho e lazer e pela expansão das práticas comunicativas. Na figura 1, propomos um diagrama para entender as etapas do processo de modalidades de trabalho gratuito empreendido pelos fãs nas culturas participativas. Organizamos as formas da cultura da participação para que possa ser analiticamente útil no intuito de remontar a arquitetura de práticas de trabalho cultural, técnico, criativo, profissional e de conhecimento apropriadas e exploradas por plataformas digitais e empresas detentoras de direitos autorais. Trata-se de um esforço no intuito de mapear e representar categorias/modalidades gerais em que diversas atividades de trabalho gratuito são incluídas. A partir desse diagrama, é viável conceber as organizações dos processos de exploração de atividades de trabalho de fãs que não sejam nem abrangentes demais, nem reducionistas ou excludentes.

 

Figura 1 – A rede de trabalho gratuito de fãs na sociodinâmica das culturas participativas

https://bit.ly/3gHY4KN

Fonte: Elaborado pelo autor (2021)

Na dinâmica presente nas redes de comunicação baseadas na internet, os sujeitos são simultaneamente produtores e receptores. Essa ambiguidade deliberadamente associada à ideia contemporânea de consumidor favorece que atividades de trabalho sejam exploradas. Nossa representação esquemática evidencia o processo comunicativo das práticas laborais das culturas participativas em uma rede de exploração de significados e valores gerados pelos fãs. As setas tracejadas indicam possibilidades de ocorrência e as setas contínuas prováveis eventos, variáveis para cada contexto. Dito isto, convém oferecer uma leitura sobre nosso diagrama.

Primeiramente, diferentes formas de manifestação e apropriação de atividades laborais nas culturas participativas podem ser definidas como Código F (filiação), Código E (expressão), Código R (resistência), Código RP (resolução colaborativa de problemas) e Código C (circulação) que são espalhados em variadas plataformas e canais, assim compondo um conjunto do que chamamos de Código P (paratextos). São atividades criadas pelos fãs para posterior circulação. As filiações se desdobram a partir da criação de fóruns, serviços de redes sociais, sites de fãs de um produto, grupos em aplicativos de mensagens instantâneas, em sites de serviços de redes sociais etc. Essa dinâmica ocorre por meio da criação e/ou operação em associações (formais — isto é, mantidas pelas empresas — e informais, criadas pelos próprios fãs) instaladas em ambientes online, sob formato de comunidades e distribuídas em diferentes espaços da internet. O Código F, portanto, refere-se às diversas formas de filiações ou associações. As variadas atividades laborais são, de forma mais ou menos frequente, inseparáveis de participar do desenvolvimento de um fandom (STANFILL; CONDIS, 2014).

Por sua vez, o Código E diz respeito às diversas formas de expressão criadas pelos fãs. Essas expressões são definidas pela produção de formas de conteúdo para a internet, incluindo vídeos, blogs, fanfictions (fanfics, ficções de fãs), memes, fóruns, sites, fanarts, fanzines, imagens, quadrinhos, customizações em produtos (práticas de modding, modificações amadoras de jogos digitais comerciais) etc., o que inclui o engajamento dos fãs a partir de comentários, apropriações, customizações, adaptações e variadas outras formas de expressão dos sujeitos. Já o Código R representa os diversos modos de resistência operados pelos fãs, que podem culminar em práticas de ativismo de fãs passíveis de cooptação pelo mercado. A resistência indica uma possibilidade que está presente nos variados tipos de filiações e/ou expressões, que carregam a potência de se transformar em formas de resistências a uma postura, decisão ou estratégica comercial.

A indústria de video games há muito trabalha para confundir a linha tênue entre trabalho e diversão, recrutando fãs como beta-testers para jogos e atualizações que serão lançadas, alimentando comunidades em sites de fãs e fóruns como Reddit. As empresas enfatizam os benefícios e o prestígio associados ao acesso antecipado. Super Mario Maker 1 e 2 (Nintendo, 2015, 2019), para citar apenas dois exemplos de uma base muito ampla, são uma referência de títulos que garantem uma manutenção progressiva e praticamente infinita com base na exploração do trabalho gratuito e invisível de fãs-jogadores. A mecânica do jogo (figura 2) consiste na produção de conteúdo que é gratuitamente cedido para a desenvolvedora, cuja representação encontra eco na expressão “compartilhe a diversão” — disponível no site do jogo[10]. Originalmente concebido como uma ferramenta de desenvolvimento interno da Nintendo[11], a série Super Mario Maker (Nintendo, 2015, 2019) tem como principal característica o uso de ferramentas para criação de fases customizadas baseadas em elementos da franquia — função desenvolvida por uma equipe de design de jogos — e o compartilhamento com outros jogadores — que podem jogá-las e eleger, assim, as melhores. Até janeiro de 2020, a Nintendo anunciou que o jogo ultrapassou a marca de 10 milhões de fases postadas por jogadores de todo mundo. Em comemoração, o limite de fases que cada jogador poderia enviar, antes 64, aumentaria para 100[12].

Figura 2 – Interface de criação de fases de Super Mario Maker 2 e modo online com as fases compartilhadas pelos jogadores

https://bit.ly/3kCTCxU
https://bit.ly/3yr6Q5X

Fonte: Nintendo (2020)

Muito além de atividades prazerosas e criativas, essas produções configuram-se como trabalho gratuito, como produção de dados/conteúdos convertidos em commodities rentáveis, exploradas pela corporação que detém a plataforma — a Nintendo. Na indústria dos video games, há ainda inúmeros exemplos de modds inspirados em jogos comerciais que foram, posteriormente, adquiridos por grandes desenvolvedoras e convertidos em títulos de sucesso, como Counter-Strike (Valve, 2000) e Dota (Valve, 2003).

Da mesma forma é possível rastrear inúmeras ficções de fãs que se tornaram produtos culturais massivos de sucesso ao serem apropriados pela indústria editorial e cinematográfica, a exemplo da saga Cinquenta Tons de E. L James. As fanfics são uma forma de expressão bastante comum, definidas por Kosnik (2013) como uma modalidade de trabalho gratuito que favorece a indústria massiva ao produzir valor para os produtos culturais (cf. KOSNIK, 2013; PRIMO, 2015).

Se no início a indústria reagiu contra a popularização de inúmeras formas de intervenção em bens protegidos por direitos autorais, hoje a grande maioria celebra suas comunidades e o resultado do engajamento, com cada vez mais eventos para manter seus membros ativos — a exemplo do concurso de fanfics sobre a personagem Nami Iara em League of Legends (Riot Games, 2009) (cf. MACEDO, 2016). Esses poucos exemplos de uma base considerável compartilham o fato de que os fãs não percebem seu esforço criativo/artístico, técnico, cultural, de conhecimento e o tempo que dedicam a essas atividades como trabalho, muito menos que tais produções emergentes agregam valor aos produtos originais e colaboram com a indústria massiva, como aponta Kosnik (2013).

O conjunto dessas atividades, sejam de filiações, de expressões e resistências, constituem um conjunto paratextual que nomeamos de Código P. Este, por sua vez, circula de distintas maneiras pelas plataformas, canais e formatos representados pelo código C. A circulação destes conteúdos é gratuitamente realizada pelos fãs e esse conjunto de produções costuma ser usado no Código RP (resolução colaborativa de problemas), a partir da cooperação e trabalho em equipe para completar tarefas e desenvolver novos conhecimentos não remunerados (por meio de wikis, tutorias e guias variados). Aqui a atividade de fãs substitui os serviços de atendimento ao consumidor. Plataformas e empresas se aproveitam do trabalho e do conhecimento de seus públicos, que atuam recorrentemente como moderadores de fóruns e canais oficiais ou informais, onde fandoms se engajam na produção de diversas formas de conteúdo, ação e bens procedentes do seu objeto de culto.

 

Participação a todo custo? Conclusões, limites e caminhos a uma agenda de estudos

 

Ainda que uma pequena quantidade de produtores de conteúdo seja hoje reconhecida como trabalhadores (obtendo ou procurando obter sua principal renda dessa atividade), inclusive participando de programas de benefícios de plataformas como YouTube e Twitch — que possuem várias obrigações e metas — e de parcerias com empresas detentoras de direitos autorais, sob a camada superior existe uma multidão de fãs, trabalhando em longas jornadas e recebendo quantias irrisórias ou nenhuma remuneração. A maioria das atividades que sustentam a internet é baseada em trabalho gratuito — em suas variadas formas, algumas delas aqui descritas. Com o crescimento da plataformização da sociedade e do capitalismo de plataforma (VAN DIJCK; POELL; DE WAAL, 2018), os atos de jogar, assistir, ler e cultuar ídolos e celebridades passam a produzir de modo crescente mais valores para o capital, seja em forma de dados, interações e excedentes comportamentais.

Os fãs que integram esses coletivos são responsáveis pela progressiva evolução e manutenção desses produtos, garantindo o espalhamento, propagação e sobrevivência de conteúdos diversos. A dinâmica é sintetizada na frase de efeito “se algo não se propaga, está morto” (JENKINS; GREEN; FORD, 2014, p. 353). Em outras palavras, aquilo que não captura, retém e direciona a atenção e o investimento de tempo dos sujeitos — posteriormente minerados e transformados em lucros (MUSSA; FALCÃO; MACEDO, 2020) — não perdura na lógica do capitalismo tardio, cognitivo e de plataforma.

Participar, mesmo sob o manto da resistência ao grande capital midiático, implica em grande medida também na contribuição para sua manutenção e proliferação. A “arquitetura da participação”, desenvolvida a partir da Web 2.0, criou condições para que formas de trabalho pudessem ser apropriadas gratuitamente. O afeto e a confiança dos fãs passaram a ser mobilizados como parte de mecanismos mais amplos de extração capitalista de valor que são intrínsecos ao capitalismo tardio. Neste artigo, mostramos que a exploração de mão de obra gratuita de fãs é o custo a ser pago pela participação tanto por serviços oferecidos “gratuitamente” quanto pelo tempo, atenção e afeto ligados a produtos culturais da grande indústria de entretenimento global.

O preço da participação, no contexto da economia digital, do capitalismo tardio, cognitivo e de plataforma, é assim pago em serviços cognitivos em que, na ampla maioria do tempo, não se sabe que a atividade desempenhada se trata de uma forma de trabalho, cuja exploração gerará lucro para terceiros. Cedidas simultaneamente, não aproveitadas voluntariamente, desfrutadas e exploradas, as modalidades de trabalho gratuito nas culturas participativas incluem variadas práticas de filiação, expressão, resistência, resolução colaborativa de problemas e circulação.

O trabalho gratuito de fãs seria, assim, composto por atividades laborais distribuídas sem pagamento, em troca de poderem revisar, retrabalhar (rework), refazer (remake), remixar e circular produtos da cultura de massa sem temer ação legal ou outra interferência dos detentores de direitos autorais. Essas atividades são, de forma mais ou menos frequente, inseparáveis de participar do desenvolvimento de uma comunidade, à medida que esta funciona e é criada pelo trabalho de fãs, dando forma ao fandom como uma prática, comunidade ou cultura (STANFILL; CONDIS, 2014).

Embora exista um argumento de que, de sua perspectiva, Jenkins (2009) seja um acadêmico “cibertariano” que afirma “[...] que a nova mídia fornece um aparato popular que subverte o patriarcado, o capitalismo e outras formas de opressão”[13]  (MILLER, 2009, p. 425, tradução nossa), sua visão evidencia uma série de utopias sobre as possibilidades de participação dos sujeitos. Para participar plenamente, o próprio autor reconhece a necessidade do desenvolvimento de competências e habilidades sociais e técnicas essenciais (JENKINS et al., 2006). Além disso, há inúmeras assimetrias e desigualdades ligadas ao acesso e aquisição de bens culturais midiáticos, de oportunidades, habilidades, experiências e conhecimentos necessários para fomentar a participação ampla em produtos de mídia. Esses imperativos são  delimitados por atravessamentos baseados em relações de gênero, de classe e étnico-raciais que, portanto, não devem ser desconsiderados. Ao promover uma decupagem de elementos e atores de uma determinada cultura participativa, cabe a uma abordagem crítica se comprometer em questionar os limites da participação para investigar quem pode, de fato, fazê-la.

Assim posto, considerações e aproximações interseccionais, pós-coloniais, decoloniais e feministas, por exemplo, são particularmente necessárias para fornecer um panorama que desvele de maneira mais adequada a arquitetura e estrutura de funcionamento existente no cerne de uma determinada cultura participativa sob escrutínio. É de particular responsabilidade do/a pesquisador/a oferecer necessária atenção para como os sistemas relacionados de poder, hierarquia, opressão, dominação e discriminação (todos orientados por relações capitalistas, genderizadas, racializadas e classistas) a infligem. O adensamento dessas questões é particularmente relevante e pungente no horizonte do Sul, uma vez que as condições para o florescimento desse sistema hierárquico de poder dependeram, historicamente, da exploração das relações coloniais.

 

Notas

[1] No entanto, em uma obra sobre os desafios da cultura participativa na educação para a mídia, Jenkins et al. (2006) reconhece alguns limites à participação.

[2] Conceito apresentado por Tim O’Relly para designar as mudanças introduzidas na internet e de uma nova arquitetura de informações e oferta de serviços.

[3] Espírito esse característico do movimento contracultural dos anos 1970 e que seria, posteriormente, adotado pelos defensores da cibercultura, incluindo teóricos utópicos como Pierre Lévy (2003), cuja influência é significativa no trabalho de Jenkins (2009).

[4] No original: “Its built-in capacity for two-way communication supposedly rendered online media infinitely more democratic than the old (one-way) media.”

[5] No original: “[…] organization of social exchange is staked on neoliberal economic principles.”

[6] No original: “Each and every day, anyone plugged into a network is performing hour after hour of unpaid micro labo”.

[7] No original: “[…] active consumers of meaningful commodities.”

[8] No original: “[…] the paratext to such a point that it is impossible to distinguish between it and the text.”

[9] Aqui tratamos de reposicionar essa compreensão para agregar a reflexão de que essa resistência, ainda assim, pode ser explorada pelas grandes empresas de entretenimento.

[10] Disponível em: <https://bit.ly/3yvGjFx>. Acesso em: 07 mar. 2021.

[11] Disponível em: <https://bit.ly/37uuSSx>. Acesso em: 13 mar. 2021.

[12] Disponível em: <https://bit.ly/3k4rBPP>. Acesso em: 13 mar. 2021.

[13] No original: “[…] that the new media provide a populist apparatus that subverts patriarchy, capitalism and other forms of oppression.”

 

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[1] Doutorando em Comunicação pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). Mestre em Comunicação, Cultura e Amazônia pela Universidade Federal do Pará (UFPA). Pesquisador associado ao Laboratório de Artefatos Digitais (UFRGS), ao InovaCom (UFPA) e ao Consia (UFPA/Unama). E-mail: tarciziopmacedo@gmail.com.

[2] Doutorando em Comunicação pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). Mestre em Comunicação, Cultura e Amazônia pela Universidade Federal do Pará (UFPA). Pesquisador associado ao Laboratório de Artefatos Digitais (UFRGS), ao InovaCom (UFPA) e ao Consia (UFPA/Unama). E-mail: tarciziopmacedo@gmail.com.