O
custo da participação:
lazer e trabalho gratuito (de fãs) na cultura da conectividade
Tarcízio Macedo[1]
Resumo: Este artigo endereça uma discussão acerca
das armadilhas na cultura da convergência e da participação, com destaque ao
debate sobre os movimentos de apropriação lucrativa do tempo de lazer de fãs (e
a retenção de sua atenção) para a conversão de atividades online prazerosas em
forças de trabalho gratuito. Tomando o contexto das culturas participativas na cultura
da conectividade e do capitalismo tardio, cognitivo e de plataforma, seu
intuito é se debruçar tanto na dinâmica comunicacional sob a retórica da
participação, quanto defender que essas formas de participar podem ser vistas
como atividades laborais informais, convertidas em modalidades de trabalho
gratuito e precarizado encoberto como entretenimento e lazer. A partir de uma
aproximação com a economia política, este trabalho busca entender o custo (às
custas) da participação, enquanto retórica deslocada do imaginário do movimento
contracultural para favorecer o projeto neoliberal. O resultado desse esforço
aponta para a existência de uma sociodinâmica das culturas participativas. A
procura por uma compreensão desse fenômeno revela formas e práticas de
participação na internet, além de revelar a estrutura e arquitetura de
exploração de uma rede de atividades laborais nas culturas participativas. Essa
proposta oferece uma maneira de decupar elementos, práticas e atores que atuam
na tessitura desse social.
Palavras-chave:
Capitalismo;
Trabalho Gratuito; Cultura da Convergência;
Culturas Participativas; Fãs.
The cost of participation:
leisure and free (fan) labor
in the culture of connectivity
Tarcízio Macedo[2]
Abstract:
This paper addresses a discussion of the
pitfalls in the convergence and participation culture, with an emphasis on the
debate about the movements of profitable appropriation of fans' leisure time
(and the retention of their attention) for the conversion of pleasurable online
activities into free labor forces. Taking the context of participatory cultures
in the culture of connectivity and late, cognitive, and platform capitalism,
his intent is to address both the communicational dynamics under the rhetoric
of participation, and to argue that these forms of participation can be seen as
informal labor activities, converted into modes of free and precarized labor
disguised as entertainment and leisure. From an approximation with political
economy, this paper seeks to understand the cost (at the expense) of
participation, as rhetoric displaced from the imaginary of the countercultural
movement to favor the neoliberal project. The result of this effort points to
the existence of a socio-dynamic of participatory cultures. The search for an
understanding of this phenomenon reveals forms and practices of participation
on the Internet and reveals the structure and architecture of exploitation of a
network of labor activities in participatory cultures. This proposal offers a
way to decoupage elements, practices, and actors that act in the weaving of
this social.
Keywords: Capitalism; Free Labor; Convergence
Culture; Participatory Cultures; Fan.
Introdução
Nos primeiros anos do século XXI,
a imprensa e vários teóricos das mídias saudaram a figura do usuário e
declararam a sua vitória antecipada (VAN DIJCK, 2013), visivelmente animados
com as possibilidades participativas introduzidas à medida que as plataformas
de “mídia social” surgiam e se atualizavam (Wikipédia, Blogger, Facebook e YouTube, por exemplo). Em 2006, Henry Jenkins (2009) nos dava as
boas-vindas a sua “cultura da convergência”, que em sua crença instaurava-se na
sociedade. Nesse caminho, as relações sociais estariam ainda mais baseadas na
participação coletiva, descrita por Jenkins pelo uso da expressão “cultura
participativa”, amplamente abordada por um número exponencial de manifestações —
digitais ou não.
Autores como Jenkins et al. (2006) e Yvana Fechine (2014) consideram mais apropriado se reportar às culturas participativas. O intuito é sinalizar que não se trata de um fenômeno único ou de uma terminologia monolítica, mas de uma multiplicidade de manifestações apoiadas pelo desejo de uma interferência mais próxima nos processos de produção, sejam eles motivados pelo consumo cultural ou sustentados pelo caráter político. O nascimento de uma retórica cultural da participação tem sido caracterizado por fomentar processos colaborativos ativados por meio de modos de comunicação ditos, frequentemente, como mais horizontais, democráticos e igualitários (JENKINS et al., 2006).
A realidade, porém, impõe-se a
qualquer projeto de crenças utópicas caras ao universo imaginário da cultura
digital, à medida que, como em demais campos da vida social, os poderes não são
distribuídos simetricamente entre os sujeitos. Afinal, a prova desse imbróglio
é o fato de a própria cooptação desse espírito participativo original ser a
responsável pelo crescimento das gigantes plataformas digitais de hoje (VAN
DIJCK, 2013). Reside aqui o interesse deste artigo: a apropriação lucrativa do
tempo de lazer de fãs (e a retenção de sua atenção) para a conversão de
atividades online prazerosas em forças de trabalho gratuito (TERRANOVA, 2000).
Este texto busca entender, a partir de uma aproximação com a economia política,
o custo (às custas) da participação, enquanto retórica deslocada do imaginário
do movimento contracultural para favorecer o projeto neoliberal diante dos
processos de captura exercidos pelo estágio atual do capitalismo contemporâneo (MUSSA;
FALCÃO; MACEDO, 2020).
Empreende-se um debate com a finalidade
de compreender tanto a dinâmica da comunicação nas culturas participativas —
isto é, as principais formas pelas quais os fãs participam ao longo da
existência de um determinado objeto (SANDVOSS, 2013) —, quanto defender que
essas formas de participação são convertidas em modalidades de trabalho
gratuito e precarizado disfarçado de entretenimento, cuja justificativa
encontra apoio na dimensão afetiva do fã com um produto midiático.
No intuito de buscar entender
parte dessa sociodinâmica, como assim chamamos, identificamos neste trabalho
alguns aspectos da arquitetura das culturas participativas, nos termos
colocados por Jenkins (2009), agregando elementos teóricos e observativos
gerais. Esta abordagem tem origem a partir de reflexões apresentadas e desdobradas
em trabalhos de campo anteriores (MACEDO, 2016, 2017; MACEDO; AMARAL FILHO,
2016; MACEDO; CUNHA, 2017). Uma vez que a participação é complexa e na casa dos
milhões, apresentamos um panorama geral de como as formas de participação são
articuladas — com exemplos pontuais — enquanto modalidades de trabalho gratuito.
Nosso objetivo é, com isto, auxiliar no estudo crítico das comunidades de fãs,
bem como compreender a arquitetura e a dinâmica de exploração laboral no
contexto das culturas participativas existentes na cultura da conectividade.
Assim, seguimos com base em
quatro eixos de formas de participação, definidos por Jenkins et al.
(2006), e o articulamos em um esquema geral para compreensão da sociodinâmica
das culturas participativas enquanto formas de trabalho gratuito (TERRANOVA,
2000), com o cuidado de não reduzir a diversidade do fenômeno. Acrescentamos
ainda a resistência como um quinto eixo ao conjunto das formas de se participar
e trabalhar informalmente. Identificamos uma porção da sociodinâmica das
culturas participativas a partir de uma rede de trabalho gratuito de exploração
de mão de obra não remunerada de fãs, em um contexto de acumulação de capital.
Essa proposta procura oferecer uma maneira de decupar elementos, práticas e
atores que participam da tessitura desse social.
A batalha
pelos sentidos da convergência e da participação
“Convergência” é um conceito bastante disseminado no léxico das mídias digitais desde os anos 1970. Sua grande popularidade é diretamente proporcional à flexibilidade que possui. Cultura da Convergência, de Henry Jenkins (2009), introduziu um novo sentido ao discordar da dominante percepção técnica que acompanhava o conceito, associada a uma característica de dispositivos que agregam uma variedade de funções em apenas um aparato — como smartphones. Jenkins (2009) usa o termo convergência para entender o aparecimento de transformações pelas quais opera a lógica da indústria voltada para o consumo cultural, que estaria promovendo uma reconfiguração do circuito midiático de tal forma que se constituiria numa nova cultura, batizada por ele de “cultura da convergência”. A convergência dos meios abarcaria, assim, complexas alterações culturais, sociais, tecnológicas e empresariais na forma como os sujeitos se envolvem com os meios de comunicação. No ambiente das culturas participativas, o consumidor é considerado um segmento atuante da produção e da circulação de novos conteúdos.
Para Jenkins, a convergência não se trataria de um processo que ocorre a partir de aparelhos, independente dos seus níveis de requinte, mas “[...] dentro dos cérebros de consumidores individuais e em suas interações sociais com outros” (JENKINS, 2009, p. 28). A ideia ganhou ampla difusão e influência, seja em meios acadêmicos ou profissionais. Atrelada à noção de convergência, a promessa retórica da participação — iniciativa, criatividade, relações informais e afetivas, aspirações utópicas, percepções de autonomia e liberdade, vontade de compartilhamento, exploração e precariedade (BRIZIARELLI; ARMANO, 2015; BULUT, 2020) — surgiu para narrar a explosão das tecnologias digitais interativas que permitiriam aos consumidores registrar, produzir, apropriar, arquivar e recircular conteúdos de mídia de maneiras inovadoras e diferentes, funcionando como sujeitos substanciais para sua propagação e sobrevivência. É dessa forma restrita e específica que a expressão “cultura participativa” é introduzida por Jenkins (2009) em sua obra.
Existem variadas concepções do que constitui uma cultura participativa. As discussões sobre essa noção surgem a partir de tentativas para criar canais alternativos para comunicação do público. Esse tipo de público realiza uma produção interativa de significado e valores, que são apropriados e explorados pelas empresas no rentável mercado online. Quando mencionamos o termo “culturas participativas” na internet associa-se, principalmente, às relações praticadas em uma comunidade de fãs ou fandom, um dos seus manifestos mais ilustrativos. Na literatura, fã é um sujeito que está emotivamente comprometido e expressa um engajamento constante e periódico com um determinado objeto, seja ele narrativa ou texto, que atravessam diferentes mídias, incluindo equipes de esportes, ícones, celebridades etc. (SANDVOSS, 2013).
Entretanto, Marcelo Garson (2019) argumenta que o conceito criado por Jenkins (2009) apresenta tantos gargalos quanto o que criticava. Ao investigar as origens, popularidade e implicações ideológicas da dupla dimensão presente na noção de convergência (aparato técnico e comportamento do consumidor), Garson (2019) expõe como o conceito e a ideia de participação não são termos incidentais, mas se alinham a uma série de utopias ao passo que validam as diferenças de poder entre produtores e consumidores de cultura. “O resultado, no entanto, é uma visão muito pouco crítica das relações de poder que governam o ciberespaço. As interações entre fãs parecem ocorrer em um ambiente harmônico e livre de hierarquias” (GARSON, 2019, p. 65), assim como o potencial colaborativo aparece aberto a todos, sem que houvesse discriminação, disputa ou constrangimento de qualquer tipo, reforça o autor[1].
A abordagem crítica de autores como José van Dijck (2013) e Garson (2019), acerca das armadilhas presentes nos conceitos de convergência e participação, é particularmente útil aos objetivos deste artigo. A cultura da convergência, e suas consequentes e aclamadas culturas participativas, não pode ser compreendia sem que se faça contexto às mudanças acometidas na economia política global. O tópico a seguir procura acrescentar esta camada ao debate.
A cultura da convergência
e as culturas da participação no horizonte crítico da cultura da conectividade
O capitalismo cognitivo, fundamentado na acumulação a partir da exploração do conhecimento como recurso e produto, levou a várias transformações nas relações de consumo, produção e trabalho (CORSANI, 2003). Diversos são os conhecimentos produzidos e valorizados no âmbito do capitalismo cognitivo: científicos, técnicos, artísticos e/ou ideológicos, argumenta Antonella Corsani (2003).
A cultura da convergência e as culturas participativas inserem-se no contexto de emergência dos impactos da Web 2.0[2] na produção e no consumo cultural. Este foi um momento particular de inflexão do mercado em termos de manutenção econômica e uma forma de resiliência do capitalismo frente a uma possível nova crise na recém-inaugurada economia digital (TERRANOVA, 2000; ZUBOFF, 2019), caracterizada pelo advento de novas tecnologias e novos tipos de trabalhadores (TERRANOVA, 2000). Além disso, tornou-se um espaço de oportunidade para consolidar um modelo de negócio baseado no capitalismo cognitivo e de vigilância (CORSANI, 2003; ZUBOFF, 2019). Essas mudanças tecnológicas permitiram, segundo Garson (2019), a construção de uma nova arquitetura da informação propícia ao desenvolvimento de plataformas digitais como YouTube, Facebook e Instagram, alimentadas pelo conteúdo produzido coletivamente e compartilhado pelos usuários em larga escala.
Van Dijck (2013) relembra que o
desenvolvimento de um novo espaço público distante do controle e da governança
corporativa, que os usuários hipoteticamente ajudaram a construir, durou apenas
alguns anos. Entretanto, o espírito igualitário, colaborativo, coletivo e
comunitário[3] recebeu impulso nos anos 2000 com a inserção da Web
2.0 (VAN DIJCK, 2013). Diferentemente de Garson (2019), Van Dijck (2013)
argumenta que a propagação das plataformas de mídia social foi (e continua
sendo) de maneira recorrente e inocentemente creditada ao aparecimento da Web
2.0, sobretudo pelo potencial participativo da mídia social, às vezes
incorretamente atribuído ao design tecnológico da Web. “Sua capacidade
embutida de comunicação bidirecional supostamente tornava a mídia online
infinitamente mais democrática do que a mídia antiga (unilateral)”[4] (VAN
DIJCK, 2013, p. 10, tradução nossa). Foi neste ínterim que [o paradigma da]
participação ganhou amplo destaque para descrever o potencial da Web 2.0.
Em sua história crítica da ascensão das mídias sociais, Van Dijck (2013) define a cultura da conectividade como uma cultura na qual um agregado de plataformas de crescimento constante define padrões técnicos e normativos para práticas sociais online. Plataformas diversas como Amazon, Netflix, Facebook e Google representariam uma nova concentração de capital e poder. A interconexão das plataformas produziria uma nova infraestrutura, uma em que o ecossistema de mídia conectiva possuiria alguns agentes com grande poder e uma multidão de outros com pouco. Essa transição de uma cultura participativa para uma cultura de conectividade decorreu num período relativamente curto de dez anos, especialmente entre 2006 a 2010 conforme Van Dijck (2013).
A conectividade (automatizada) evoluiu para um recurso valioso no mercado global de serviços de redes sociais e conteúdos gerados pelos usuários, a partir do momento em que empresas descobriram modos de codificar as informações em algoritmos. Estes, então, passaram a marcar uma forma particular de socialidade online e torná-la lucrativa nos mercados online, cuja “[...] organização do intercâmbio social está baseada nos princípios econômicos neoliberais”[5] (VAN DIJCK, 2013, p. 21, tradução nossa). As práticas das chamadas culturas participativas, portanto, inserem-se no contexto dessas socialidades online que são fonte de acumulação de capital pelas empresas detentoras de direitos autorais e de plataformas digitais.
Culturas participativas entre entretenimento,
lazer e trabalho gratuito
“Todos os dias, alguém ligado a
uma rede está realizando microtrabalhos não remunerados por horas a fio”[6] (GALLOWAY,
2012, p. 136, tradução nossa). A internet é intensamente alimentada por
trabalho cultural e técnico (TERRANOVA, 2000), numa produção de valor
ininterrupta e inerente aos fluxos da sociedade plataformizada (VAN DIJCK, 2013;
VAN DIJCK; POELL; DE WAAL, 2018). Ainda que nossa proposta possa soar alarmista
e exagerada, é no argumento de Tiziana Terranova (2000) e em seu conceito de
“trabalho gratuito” que nossa abordagem encontra eco e base. A sustentabilidade
da internet como meio é diretamente dependente de quantias enormes de trabalho,
que não são equivalentes ao emprego (TERRANOVA, 2000). A autora defende que
parte substancial dessa imensa quantidade de trabalho que sustenta a internet é
derivada de uma forma particular de trabalho gratuito, que vai desde não ser
pago, mal pago, produzido socialmente e de origem coletiva (BRIZIARELLI;
ARMANO, 2017; TERRANOVA, 2000).
O trabalho gratuito é aquele momento em que
esse consumo de conhecimento de cultura se traduz em produção excedente de
atividades, as quais são abraçadas com prazer e, ao mesmo tempo, geralmente são
descaradamente exploratórias (TERRANOVA, 2000, p. 37).
A hipótese de Terranova (2000) é
a de que o trabalho gratuito é estrutural para a economia cultural no
capitalismo tardio, de tal forma que a internet incorpora uma continuação do
capital ao invés de uma ruptura com ele. Essa afirmação coloca a teoria da
convergência em um prisma acadêmico díspar da economia política desenvolvida
por autores como Terranova (2000) e Van Dijck (2013). Além disso, questiona o
argumento central que a promessa da cultura da convergência e da participação
hipoteticamente levaram a crer: a de uma cultura sem estrutura, hierarquias e
disputas (CAMPANELLA, 2012; GARSON, 2019; JENKINS, 2009). A análise de autores
como Terranova (2000), Bruno Campanella (2012), Alex Primo (2015), Abigail
Kosnik (2013), Ergin Bulut (2020), Garson (2019), Thiago Falcão, Daniel Marques
e Ivan Mussa (2020), Macedo e Amaral Filho (2016), Macedo e Cunha (2017),
Macedo (2016, 2017) e Mussa, Falcão e Macedo (2020), dentre outros, mostram que
essa crença encontra menos bases nas quais ainda poderia se firmar.
A oferta de trabalho gratuito é
vista por Terranova (2000) como um elemento essencial na criação de valor nas
economias digitais. Um ponto relevante é que a confiança e o afeto de fãs —
quase como uma dependência — é parte de mecanismos mais amplos de extração
capitalista de valor que são intrínsecos ao capitalismo tardio, segundo demonstra
a autora. Assim posto, o trabalho gratuito é um desejo de trabalho inerente ao
capitalismo tardio, e este é o campo que o multiplica e o esgota (TERRANOVA, 2000).
A partir desse prisma, as culturas participativas seriam identificadas mais
pela ambígua relação desencadeada pelas promessas da participação — mencionadas
anteriormente — do que pela “passividade” de outrora. Uma arguição válida para
o entendimento dessa ambiguidade pode ser resumida na seguinte frase de
Byung-Chul Han (2015, p. 28): “é uma ilusão acreditar que quanto mais ativos
nos tornamos tanto mais livres seríamos”.
Terranova (2000) compreende o
trabalho gratuito como sendo cedido simultaneamente, não aproveitado
voluntariamente, desfrutado e explorado, incluindo atividades como construção
de sites, de ambientes online, modificação de pacotes de software etc. Esse
movimento nos permite redefinir as culturas participativas também em termos de
trabalho gratuito de fãs, ou seja, situações em que o fã participa de forma
gratuita e voluntária da criação de valor, impelido pela motivação ligada ao
lazer/entretenimento, afeto, exibição do consumo, expressão da identidade e
pelo impulso de uma subjetividade neoliberal.
As culturas participativas
consideram o trabalho digital e do conhecimento como a manifestação da
subsunção real ao capital. Ao pensarmos em fãs como parte de uma nova categoria
de trabalhadores digitais, podemos vê-los como um meio poderoso de trabalho
informal que reproduz a integração entre o momento da produção e do consumo
típico da economia digital contemporânea: ambos produzem para o consumo e
consomem para produzir em plataformas variadas. Nesse ínterim, movidos pelo
afeto e pelo espírito colaborativo, fãs direcionam especificamente suas
atividades produtivas (conhecimentos artísticos, técnicos, profissionais,
culturais etc.) aos produtos de mídia que se envolvem. Essa base é, então,
explorada por relações de trabalho informais e afetivas, aspirações utópicas,
percepções de autonomia e liberdade, vontade de compartilhamento e as fronteiras
ainda indefinidas e borradas entre tempo livre, lazer e trabalho gratuito
(BRIZIARELLI; ARMANO, 2017; BULUT, 2020; FALCÃO; MARQUES; MUSSA, 2020; MUSSA;
FALCÃO; MACEDO, 2020).
Garson (2019, p. 66)
aproxima-se de nossa reflexão ao questionar a obra de Henry Jenkins, Joshua Green
e Sam Ford (2014) com um argumento pertinente: “como lidar, no entanto, com a
acusação de que as marcas exploram esse entusiasmo, lucrando com o trabalho não
pago dos fãs?” Jenkins, Green e Ford (2014) partem de um entendimento que
considera o público consciente de que suas formas de participação (sugestões,
comentários, produções e edições) podem ser apropriadas para o lucro das
empresas. O termo “engajado” é usado na obra em detrimento da expressão
“alienado” ou “explorado”. A adoção do primeiro ao invés destes últimos não é
casual, mas reforça uma ideia de fãs atrelada a uma ação dentro do escopo
daquilo que é percebido como entretenimento e lazer.
Para muitos fãs, a natureza não comercial da cultura
do fã é uma de suas características mais importantes. Essas histórias são fruto
do amor; elas operam numa economia de doação e são oferecidas gratuitamente a
outros fãs que compartilham da mesma paixão pelos personagens (JENKINS, 2009,
p. 242-243).
Com o pensamento de que ao fã importa fortalecer os laços comunitários entre seus pares ao invés de ganhar dinheiro, Jenkins (2009) e Jenkins, Green e Ford (2014) ao passo que louvam a dimensão afetiva e informal de trabalho do fandom, reforçando a imperativa retórica neoliberal, produzem um discurso em defesa das empresas contra as acusações de exploração que a elas competem, na medida em que os sujeitos estariam conscientes da apropriação não paga de suas atividades pelo capital. A assimetria estrutural de poderes entre produtores e consumidores seria posta de lado como algo inferior, reforça Garson (2019), sem que as empresas que controlam e prescrevem as relações entre trabalho e entretenimento sejam questionadas.
Essa visão invariavelmente orientada a partir de um raciocínio norte-americano neoliberal, ainda que o autor se afirme crítico desta retórica (JENKINS; GREEN; FORD, 2014, p. 19), ignora o consumo midiático precarizado do Sul e define essa atividade a partir de uma redução perigosa a percepções particulares à vida no Norte. Além disso, brinda a condição do fã como um sujeito explorado conscientemente, em que estes cooperariam com as empresas deliberadamente em busca de trocas afetivas ao passo que estas lucrariam com a monetização de suas atividades de trabalho informal. Assim, fãs deixariam de ser vistos como trabalhadores para serem tratados como “[...] consumidores ativos de mercadorias significativas”[7] (TERRANOVA, 2000, p. 37, tradução nossa).
A partir de Terranova (2000),
podemos crer que fãs trabalham movidos pela representação de um desejo cultural
e afetivo que não deixa de ser real porque é fabricado socialmente — esse movimento
é característico da cultura da conectividade descrita por Van Dijck (2013). O
conceito de paratexto recai de forma crucial para entender a relevância desse
tipo de modalidade de trabalho gratuito, assim como os imensos lucros advindos
dele por parte de plataformas digitais e da indústria global de entretenimento.
Paratexto,
fonte de trabalho gratuito
A noção de paratexto é
fundamental para compreender a sociodinâmica das culturas participativa
enquanto modalidades de trabalho gratuito, porque posiciona a importância
dessas produções no circuito do consumo midiático. Evocar este conceito faz uma
alusão à obra de Gérard Genette (1997), mas tomamos emprestado sua apropriação
por Peter Lunenfeld (1999) e Thiago Falcão (2015). Genette (1997) realizou um
amplo estudo e percebeu como esses para-textos
— materiais e discursos “separados” do texto principal e que “cercam” o objeto
narrativo — são decisivos para a experiência de uma obra. Para ele, são
elementos que possibilitam a entrada no texto e formam uma zona de transação,
não apenas de transição, que exerce influência com o objetivo de auxiliar na
recepção do texto central, constituindo-se, segundo Falcão (2015, p. 376), em
“elementos externos ao texto que incidem diretamente sobre sua experiência”.
Para compreender esses elementos,
Genette (1997) estabelece uma subdivisão que os enquadra como epitextos e peritextos. Os últimos são paratextos específicos que permanecem
internos a determinada obra (apêndices, notas, prefácios, títulos), pertencendo
ao mesmo volume do texto principal no qual os paratextos rondam. Os primeiros,
contudo, são externos à obra. Dessa forma, elementos paratextuais como
entrevistas e críticas seriam significativos para a compreensão e experiência
do texto principal, apesar de externos a ele. É relevante salientar que Genette
(1997) constrói suas teorias partindo da literatura e considera o paratexto em
termos de indústria editorial. Lunenfeld (1999), ao se apropriar desse debate,
desenvolve um argumento acerca da estética do inacabado como sendo a estética
da cultura digital contemporânea, incluindo a prática de apropriação não
contemplada na obra do seu predecessor.
Discordando de Genette (1997),
Lunenfeld (1999) argumenta que a partir das transformações na indústria
editorial — sobretudo na forma como os conglomerados de entretenimento
administram os conteúdos produzidos —, a questão da centralidade do texto
passou a ter menos bases nas quais ainda poderia se justificar, na medida em que
essa ideia é decorrente de um padrão implantado pela indústria editorial antes
do fenômeno da convergência midiática (FALCÃO, 2015; JENKINS, 2009, 2014) e
posterior cultura da conectividade e plataformização (VAN DIJCK, 2013; VAN
DIJCK; POELL; DE WAAL, 2018). O conjunto dessas mudanças na indústria
incapacitou “[...] o paratexto a tal ponto que é impossível distinguir entre
ele e o texto”[8]
(LUNENFELD, 1999, p. 14, tradução nossa). Lunenfeld (1999) formula, portanto,
que essas noções confundem-se. Seguindo o raciocínio de Falcão (2015, p. 384),
subscrevemos que “texto e paratexto funcionam como uma unidade correlacionada”,
embora o argumento de que a fronteira entre ambos estaria completamente
desintegrada, como defendido por Lunenfeld (1999), deve ser relativizado.
Conjuntos paratextuais são muito
mais do que produzir respostas para os enigmas em diferentes mídias, como em
jogos digitais (FALCÃO, 2015). Dessa forma, podemos definir paratextos como o
conjunto de elementos que orbitam os produtos de mídia contemporâneos, compondo
os constantes movimentos dos processos comunicativos nessas redes complexas.
Eles agem produzindo produtos carregados de significados plurais, cuja produção
de sentido advém das interações para com todos os componentes que orbitam no
texto e em torno dele, não necessariamente da experiência do próprio texto
(FALCÃO, 2015).
Essa transformação na dimensão e na
relevância do paratexto é particularmente incentivada pelas possibilidades
trazidas pela Web 2.0 para a internet, por isso cremos ser útil entendê-la
como uma abundante fonte de valor e trabalho gratuito. A internet, entretanto,
não transforma automaticamente qualquer usuário em um produtor e trabalhador
ativo, como argumenta Terranova (2000). Da mesma forma, nem todo trabalho
gratuito deve ser tomado como sinônimo de exploração. Essa afirmativa abre
espaço para uma valorização e proliferação do trabalho de fã, do valor gerado
por fãs e para fãs e das habilidades envolvidas (STANFILL; CONDIS, 2014).
O processo a partir do qual as
culturas participativas, o consumo e a produção são redefinidos dentro da
categoria de trabalho gratuito acena para o desenrolar de uma lógica distinta
de valor que não é inteiramente nova, mas cujas operações precisam de um
tratamento adequado. A seguir, remontamos parte dessa rede de exploração para
identificar como a socialidade online é condicionada por um setor corporativo,
em que valores neoliberais como competição, disputa e meritocracia definem a camada
básica sobre a qual uma miríade de produções são construídas. O intuito é de
demonstrar algumas das modalidades pelas quais as indústrias e plataformas
digitais apropriam-se do trabalho de fãs para transformá-lo em valiosas commodities
digitais.
Às custas da participação:
a rede de trabalho gratuito de fãs na sociodinâmica das culturas participativas
Diversos produtos de
entretenimento dependem diretamente do tempo e esforço dedicado por suas
comunidades de base; e é no “engajamento” diário de legiões de fãs que a
manutenção econômica e cultural de produtos midiáticos é garantida. A energia e
o tempo que os fãs dedicam para fazer objetos significarem é aqui defendida
como trabalho, e a grande maioria desse trabalho é realizado gratuitamente,
como também reforça Kosnik (2013). A partir de um olhar à obra de Jenkins et
al. (2006), Jenkins (2009) e Jenkins, Green e Ford (2014), podemos definir
as modalidades de trabalho gratuito e precarizado de fãs a partir das formas de
manifestação das culturas participativas, as quais se dividem em quatro eixos:
(1) filiação; (2) expressão; (3) resolução colaborativa de problemas; e (4) circulação. A esse conjunto de formas de participar (e explorar a
atividade de fãs), acrescentamos a resistência
como um quinto elemento, em um contraponto ao argumento de Jenkins, Green e
Ford (2014) oferecido em trabalhos anteriores (cf. MACEDO, 2017; MACEDO; CUNHA,
2017) — neste texto, tratamos de apresentar uma nova leitura crítica às nossas
ideias[9].
A partir desses elementos, buscamos
compreender a forma como as culturas participativas são particularmente
valiosas para as empresas e plataformas digitais em um contexto de economia
digital e de capitalismo cognitivo, marcado pela acumulação privada de capital
a partir da exploração da força de trabalho e do conhecimento, a sobreposição
de trabalho e lazer e pela expansão das práticas comunicativas. Na figura 1,
propomos um diagrama para entender as etapas do processo de modalidades de
trabalho gratuito empreendido pelos fãs nas culturas participativas.
Organizamos as formas da cultura da participação para que possa ser
analiticamente útil no intuito de remontar a arquitetura de práticas de
trabalho cultural, técnico, criativo, profissional e de conhecimento
apropriadas e exploradas por plataformas digitais e empresas detentoras de
direitos autorais. Trata-se de um esforço no intuito de mapear e representar
categorias/modalidades gerais em que diversas atividades de trabalho gratuito
são incluídas. A partir desse diagrama, é viável conceber as organizações dos
processos de exploração de atividades de trabalho de fãs que não sejam nem
abrangentes demais, nem reducionistas ou excludentes.
Figura
1 – A rede
de trabalho gratuito de fãs na sociodinâmica das culturas participativas
Fonte:
Elaborado pelo autor (2021)
Na dinâmica presente nas redes de
comunicação baseadas na internet, os sujeitos são simultaneamente produtores e
receptores. Essa ambiguidade deliberadamente associada à ideia contemporânea de
consumidor favorece que atividades de trabalho sejam exploradas. Nossa
representação esquemática evidencia o processo comunicativo das práticas
laborais das culturas participativas em uma rede de exploração de significados
e valores gerados pelos fãs. As setas tracejadas indicam possibilidades de
ocorrência e as setas contínuas prováveis eventos, variáveis para cada
contexto. Dito isto, convém oferecer uma leitura sobre nosso diagrama.
Primeiramente, diferentes formas
de manifestação e apropriação de atividades laborais nas culturas
participativas podem ser definidas como Código F (filiação), Código E (expressão),
Código R (resistência), Código RP (resolução colaborativa de problemas) e
Código C (circulação) que são
espalhados em variadas plataformas e canais, assim compondo um conjunto do que
chamamos de Código P (paratextos). São atividades criadas pelos fãs para
posterior circulação. As filiações se desdobram a partir da
criação de fóruns, serviços de redes sociais, sites de fãs de um produto,
grupos em aplicativos de mensagens instantâneas, em sites de serviços de redes
sociais etc. Essa dinâmica ocorre por meio da criação e/ou operação em
associações (formais — isto é, mantidas pelas empresas — e informais, criadas
pelos próprios fãs) instaladas em ambientes online, sob formato de comunidades e distribuídas em diferentes espaços
da internet. O Código F, portanto, refere-se às diversas formas de filiações ou associações. As variadas
atividades laborais são, de forma mais ou menos frequente, inseparáveis de
participar do desenvolvimento de um fandom (STANFILL; CONDIS, 2014).
Por sua vez, o Código E diz
respeito às diversas formas de expressão
criadas pelos fãs. Essas expressões
são definidas pela produção de formas de conteúdo para a internet, incluindo
vídeos, blogs, fanfictions (fanfics, ficções de fãs), memes,
fóruns, sites, fanarts, fanzines,
imagens, quadrinhos, customizações em produtos (práticas de modding, modificações amadoras de jogos digitais comerciais) etc., o
que inclui o engajamento dos fãs a partir de comentários, apropriações,
customizações, adaptações e variadas outras formas de expressão dos sujeitos. Já o Código R representa os diversos modos
de resistência operados pelos fãs, que podem culminar em práticas de ativismo
de fãs passíveis de cooptação pelo mercado. A resistência indica uma
possibilidade que está presente nos variados tipos de filiações e/ou expressões, que carregam a potência de se transformar em
formas de resistências a uma postura, decisão ou estratégica comercial.
A indústria de video games há muito trabalha para
confundir a linha tênue entre trabalho e diversão, recrutando fãs como beta-testers
para jogos e atualizações que serão lançadas, alimentando comunidades em sites
de fãs e fóruns como Reddit. As empresas enfatizam os benefícios e o
prestígio associados ao acesso antecipado. Super Mario Maker 1 e 2
(Nintendo, 2015, 2019), para citar apenas dois exemplos de uma base muito
ampla, são uma referência de títulos que garantem uma manutenção progressiva e
praticamente infinita com base na exploração do trabalho gratuito e invisível
de fãs-jogadores. A mecânica do jogo (figura 2) consiste na produção de
conteúdo que é gratuitamente cedido para a desenvolvedora, cuja representação
encontra eco na expressão “compartilhe a diversão” — disponível no site do jogo[10].
Originalmente concebido como uma ferramenta de desenvolvimento interno da
Nintendo[11], a série
Super Mario Maker (Nintendo, 2015, 2019) tem como principal característica
o uso de ferramentas para criação de fases customizadas baseadas em elementos
da franquia — função desenvolvida por uma equipe de design de jogos — e o
compartilhamento com outros jogadores — que podem jogá-las e eleger, assim, as
melhores. Até janeiro de 2020, a Nintendo anunciou que o jogo ultrapassou a
marca de 10 milhões de fases postadas por jogadores de todo mundo. Em
comemoração, o limite de fases que cada jogador poderia enviar, antes 64,
aumentaria para 100[12].
Figura 2 – Interface de criação de
fases de Super Mario Maker 2 e modo
online com as fases compartilhadas pelos jogadores
https://bit.ly/3kCTCxU
https://bit.ly/3yr6Q5X
Fonte:
Nintendo (2020)
Muito além de atividades
prazerosas e criativas, essas produções configuram-se como trabalho gratuito,
como produção de dados/conteúdos convertidos em commodities rentáveis,
exploradas pela corporação que detém a plataforma — a Nintendo. Na indústria
dos video games, há ainda
inúmeros exemplos de modds inspirados em jogos comerciais que foram,
posteriormente, adquiridos por grandes desenvolvedoras e convertidos em títulos
de sucesso, como Counter-Strike (Valve, 2000) e Dota (Valve,
2003).
Da mesma forma é possível
rastrear inúmeras ficções de fãs que se tornaram produtos culturais massivos de
sucesso ao serem apropriados pela indústria editorial e cinematográfica, a
exemplo da saga Cinquenta Tons de E. L James. As fanfics são uma
forma de expressão bastante comum, definidas por Kosnik (2013) como uma
modalidade de trabalho gratuito que favorece a indústria massiva ao produzir
valor para os produtos culturais (cf. KOSNIK, 2013; PRIMO, 2015).
Se no início a indústria reagiu
contra a popularização de inúmeras formas de intervenção em bens protegidos por
direitos autorais, hoje a grande maioria celebra suas comunidades e o resultado
do engajamento, com cada vez mais eventos para manter seus membros ativos — a
exemplo do concurso de fanfics sobre a personagem Nami Iara em League
of Legends (Riot Games, 2009) (cf. MACEDO, 2016). Esses poucos exemplos de
uma base considerável compartilham o fato de que os fãs não percebem seu
esforço criativo/artístico, técnico, cultural, de conhecimento e o tempo que
dedicam a essas atividades como trabalho, muito menos que tais produções
emergentes agregam valor aos produtos originais e colaboram com a indústria
massiva, como aponta Kosnik (2013).
O conjunto dessas atividades,
sejam de filiações, de expressões e resistências, constituem um conjunto paratextual que nomeamos de
Código P. Este, por sua vez, circula de distintas maneiras pelas plataformas,
canais e formatos representados pelo código C. A circulação destes conteúdos é
gratuitamente realizada pelos fãs e esse conjunto de produções costuma ser
usado no Código RP (resolução
colaborativa de problemas), a partir da cooperação e trabalho em equipe
para completar tarefas e desenvolver novos conhecimentos não remunerados (por
meio de wikis, tutorias e guias
variados). Aqui a atividade de fãs substitui os serviços de atendimento ao
consumidor. Plataformas e empresas se aproveitam do trabalho e do conhecimento
de seus públicos, que atuam recorrentemente como moderadores de fóruns e canais
oficiais ou informais, onde fandoms se engajam na produção de diversas
formas de conteúdo, ação e bens procedentes do seu objeto de culto.
Participação a todo custo? Conclusões,
limites e caminhos a uma agenda de estudos
Ainda que uma pequena quantidade
de produtores de conteúdo seja hoje reconhecida como trabalhadores (obtendo ou
procurando obter sua principal renda dessa atividade), inclusive participando
de programas de benefícios de plataformas como YouTube e Twitch — que possuem várias obrigações e metas — e de
parcerias com empresas detentoras de direitos autorais, sob a camada superior existe
uma multidão de fãs, trabalhando em longas jornadas e recebendo quantias
irrisórias ou nenhuma remuneração. A maioria das atividades que sustentam a
internet é baseada em trabalho gratuito — em suas variadas formas, algumas
delas aqui descritas. Com o crescimento da plataformização da sociedade e do
capitalismo de plataforma (VAN DIJCK; POELL; DE WAAL, 2018), os atos de jogar,
assistir, ler e cultuar ídolos e celebridades passam a produzir de modo
crescente mais valores para o capital, seja em forma de dados, interações e
excedentes comportamentais.
Os fãs que integram esses
coletivos são responsáveis pela progressiva evolução e manutenção desses
produtos, garantindo o espalhamento, propagação e sobrevivência de conteúdos diversos.
A dinâmica é sintetizada na frase de efeito “se algo não se propaga, está
morto” (JENKINS; GREEN; FORD, 2014, p. 353). Em outras palavras, aquilo que não
captura, retém e direciona a atenção e o investimento de tempo dos sujeitos —
posteriormente minerados e transformados em lucros (MUSSA; FALCÃO; MACEDO, 2020)
— não perdura na lógica do capitalismo tardio, cognitivo e de plataforma.
Participar, mesmo sob o manto da
resistência ao grande capital midiático, implica em grande medida também na
contribuição para sua manutenção e proliferação. A “arquitetura da
participação”, desenvolvida a partir da Web 2.0, criou condições para
que formas de trabalho pudessem ser apropriadas gratuitamente. O afeto e a
confiança dos fãs passaram a ser mobilizados como parte de mecanismos mais
amplos de extração capitalista de valor que são intrínsecos ao capitalismo
tardio. Neste artigo, mostramos que a exploração de mão de obra gratuita de fãs
é o custo a ser pago pela participação tanto por serviços oferecidos “gratuitamente”
quanto pelo tempo, atenção e afeto ligados a produtos culturais da grande
indústria de entretenimento global.
O preço da participação, no
contexto da economia digital, do capitalismo tardio, cognitivo e de plataforma,
é assim pago em serviços cognitivos em que, na ampla maioria do tempo, não se
sabe que a atividade desempenhada se trata de uma forma de trabalho, cuja
exploração gerará lucro para terceiros. Cedidas simultaneamente, não
aproveitadas voluntariamente, desfrutadas e exploradas, as modalidades de
trabalho gratuito nas culturas participativas incluem variadas práticas de
filiação, expressão, resistência, resolução colaborativa de problemas e
circulação.
O trabalho gratuito de fãs seria,
assim, composto por atividades laborais distribuídas sem pagamento, em troca de
poderem revisar, retrabalhar (rework), refazer (remake), remixar
e circular produtos da cultura de massa sem temer ação legal ou outra
interferência dos detentores de direitos autorais. Essas atividades são, de
forma mais ou menos frequente, inseparáveis de participar do desenvolvimento de
uma comunidade, à medida que esta funciona e é criada pelo trabalho de fãs,
dando forma ao fandom como uma prática, comunidade ou cultura (STANFILL;
CONDIS, 2014).
Embora exista um argumento de que, de sua perspectiva, Jenkins (2009) seja um acadêmico “cibertariano” que afirma “[...] que a nova mídia fornece um aparato popular que subverte o patriarcado, o capitalismo e outras formas de opressão”[13] (MILLER, 2009, p. 425, tradução nossa), sua visão evidencia uma série de utopias sobre as possibilidades de participação dos sujeitos. Para participar plenamente, o próprio autor reconhece a necessidade do desenvolvimento de competências e habilidades sociais e técnicas essenciais (JENKINS et al., 2006). Além disso, há inúmeras assimetrias e desigualdades ligadas ao acesso e aquisição de bens culturais midiáticos, de oportunidades, habilidades, experiências e conhecimentos necessários para fomentar a participação ampla em produtos de mídia. Esses imperativos são delimitados por atravessamentos baseados em relações de gênero, de classe e étnico-raciais que, portanto, não devem ser desconsiderados. Ao promover uma decupagem de elementos e atores de uma determinada cultura participativa, cabe a uma abordagem crítica se comprometer em questionar os limites da participação para investigar quem pode, de fato, fazê-la.
Assim posto, considerações e aproximações interseccionais, pós-coloniais, decoloniais e feministas, por exemplo, são particularmente necessárias para fornecer um panorama que desvele de maneira mais adequada a arquitetura e estrutura de funcionamento existente no cerne de uma determinada cultura participativa sob escrutínio. É de particular responsabilidade do/a pesquisador/a oferecer necessária atenção para como os sistemas relacionados de poder, hierarquia, opressão, dominação e discriminação (todos orientados por relações capitalistas, genderizadas, racializadas e classistas) a infligem. O adensamento dessas questões é particularmente relevante e pungente no horizonte do Sul, uma vez que as condições para o florescimento desse sistema hierárquico de poder dependeram, historicamente, da exploração das relações coloniais.
Notas
[1] No entanto, em uma obra sobre os desafios
da cultura participativa na educação para a mídia, Jenkins et al. (2006) reconhece alguns limites à participação.
[2] Conceito apresentado por Tim O’Relly para
designar as mudanças introduzidas na internet e de uma nova arquitetura de
informações e oferta de serviços.
[3] Espírito esse característico do movimento
contracultural dos anos 1970 e que seria, posteriormente, adotado pelos
defensores da cibercultura, incluindo teóricos utópicos como Pierre Lévy
(2003), cuja influência é significativa no trabalho de Jenkins (2009).
[4] No original: “Its built-in capacity
for two-way communication supposedly rendered online media infinitely more
democratic than the old (one-way) media.”
[5] No original: “[…] organization of
social exchange is staked on neoliberal economic principles.”
[6] No original: “Each and every day,
anyone plugged into a network is performing hour after hour of unpaid micro
labo”.
[7] No original: “[…] active consumers of
meaningful commodities.”
[8] No original: “[…] the paratext to
such a point that it is impossible to distinguish between it and the text.”
[9] Aqui tratamos de reposicionar essa
compreensão para agregar a reflexão de que essa resistência, ainda assim, pode
ser explorada pelas grandes empresas de entretenimento.
[10] Disponível em: <https://bit.ly/3yvGjFx>. Acesso em: 07
mar. 2021.
[11] Disponível em: <https://bit.ly/37uuSSx>. Acesso em: 13
mar. 2021.
[12] Disponível em: <https://bit.ly/3k4rBPP>.
Acesso em: 13 mar. 2021.
[13] No original: “[…] that the new media provide a populist
apparatus that subverts patriarchy, capitalism and other forms of oppression.”
Referências
BRIZIARELLI, Marco;
ARMANO, Emiliana. Introduction: From the Notion of Spectacle to Spectacle 2.0:
e Dialectic of Capitalist Mediations. In: BRIZIARELLI, Marco; ARMANO, Emiliana
(ed.). The Spectacle 2.0: Reading Debord in the Context of Digital
Capitalism. London: University of Westminster Press, 2017, p. 15-47.
BULUT, Ergin. A
precarious game: the illusion of dream jobs in the video game industry. Ithaca: Cornell University
Press, 2020.
CAMPANELLA, Bruno. O fã na cultura da divergência: hierarquia
e disputa em uma comunidade on-line. Contemporânea, Salvador, v. 10, n.
3, p. 474-489, 2012. DOI: <https://doi.org/10.9771/contemporanea.v10i3.6435>.
CORSANI, Antonella. Elementos de uma ruptura:
a hipótese do capitalismo cognitivo. In: GALVÃO, Alexander; SILVA, Gerardo;
COCCO, Giuseppe (org.). Capitalismo cognitivo: trabalho, redes e
inovação. Rio de Janeiro: DP&A, 2003, p. 16-32.
FALCÃO, Thiago. Paratextos, programas de ação? Significação, São Paulo, v. 42,
n. 44, p. 373-392, 2015. DOI: <https://doi.org/10.11606/issn.2316-7114.sig.2015.103655>.
FALCÃO, Thiago; MARQUES, Daniel; MUSSA, Ivan. Boycottblizzard:
capitalismo de plataforma e a colonização do jogo. Contracampo, Niterói,
v. 39, n. 2, p. 59-78, 2020. DOI: <https://doi.org/10.22409/contracampo.v0i0.38578>.
FECHINE, Yvana. Transmidiação e cultura participativa:
pensando as práticas textuais de agenciamento dos fãs de telenovelas
brasileiras. Contracampo, Niterói, v. 31, n. 1, p. 5-22, 2014. DOI: <https://doi.org/10.22409/contracampo.v0i31.694>.
GALLOWAY, Alexander. The
interface effect. Cambridge: Polity, 2012.
GARSON, Marcelo. O conceito de convergência e suas armadilhas.
Galáxia, São Paulo, n. 40, p. 57-70, 2019. DOI:
<https://doi.org/10.1590/1982-25542019135324>.
GENETTE, Gérard. Paratexts: Thresholds of Interpretations.
Cambridge: Cambridge University Press, 1997.
HAN, Byung-Chul. Sociedade do Cansaço. Rio de Janeiro: Vozes,
2015.
JENKINS, Henry. Cultura
da convergência. São Paulo: Aleph, 2009.
JENKINS, Henry; CLINTON,
Katie; PURUSHOTMA, Ravi; ROBISON, Alice; WEIGEL, Margaret. Confronting the challenges of participatory
culture: media education for the 21st century. Cambridge: MacArthur
Foundation, 2006.
JENKINS, Henry; GREEN,
Joshua; FORD, Sam. Cultura da conexão: criando valor e significado
por meio da mídia propagável. São Paulo: Aleph, 2014.
KOSNIK, Abigail. Fandom as
Free Labor. In: SCHOLZ, Trebor (ed.). Digital Labor: the internet as
playground and factory. New York: Routledge, 2013, p. 98-111.
LÉVY, Pierre. Ciberdemocracia. Lisboa: Instituto
Piaget, 2003.
LUNENFELD, Peter.
Unfinished Business. In: LUNENFELD, Peter. (ed.). The Digital Dialectic: New Essays on New Media. Cambridge: The MIT Press,
1999, p. 6-22.
MACEDO, Tarcízio. A rede de negociações na arquitetura da
cultura participativa de League of Legends. In:
XV BRAZILIAN SYMPOSIUM ON COMPUTER GAMES AND DIGITAL ENTERTAINMENT, 15, 2016,
São Paulo. SBC
– Proceedings of SBGames 2016 [...]. São Paulo: SBC, 2016, p. 1-10. Disponível
em: < http://www.sbgames.org/sbgames2016/downloads/anais/156046.pdf>.
Acesso em: 10 mar. 2019.
MACEDO, Tarcízio. Quando os fãs-jogadores encontram o
ativismo: repensando a participação e resistência nas práticas digitais do
fandom de League of Legends no Brasil. In: FALCÃO, Thiago; MARQUES, Daniel.
(org.). Metagame: Panoramas dos Game Studies no Brasil. São
Paulo: Intercom, 2017, p. 165-207.
MACEDO, Tarcízio; AMARAL FILHO, Otacílio. A anatomia de um
movimento comunicativo on-line: o ativismo de fã-gamers em League of
Legends como inteligência coletiva. Revista GEMInIS, São Carlos, v.
7, n. 1, p. 147-176, 2016. Disponível em: <https://www.revistageminis.ufscar.br/index.php/geminis/article/view/256>.
MACEDO, Tarcízio; CUNHA, Elaide. Quando o ativismo de
fã-gamers entra em jogo: participação, resistências e práticas do fandom de League
of Legends no Brasil. Conexão: Comunicação e Cultura, Caxias do Sul,
v. 16, n. 2, p. 21-50, 2017. DOI: <http://dx.doi.org/10.18226/21782687.v16.n32.01>.
MILLER, Toby. Cybertarians
of the world, unite: You have nothing to lose but your tubes! In: SNICKARS,
Pelle; VONDEREAU, Patrick (ed.). The
YouTube Reader. Stockholm: National Library of Sweden, 2009, p. 406-23.
MUSSA, Ivan; FALCÃO, Thiago; MACEDO, Tarcízio. Lazer liminar:
colonização do jogo e trabalho do jogador no RappiGames. Antares,
Caxias do Sul, v. 12, n. 28, p. 313-340, 2020. DOI: <http://dx.doi.org/10.18226/19844921.v12.n28.16>.
PRIMO, Alex. A grande controvérsia: trabalho gratuito na Web
2.0. In: RIBEIRO, José; BRAGA, Vitor; SOUSA, Paulo (org.). Performances
interacionais e mediações sociotécnicas. Salvador: EDUFBA, 2015, p. 57-85.
SANDVOSS, Cornel. Quando a estrutura e a agência se encontram:
os fãs e o poder. Ciberlegenda,
Niterói, n. 28, p. 8-41, 2013. Disponível em: <https://periodicos.uff.br/ciberlegenda/article/view/36927>.
Acesso em: 8 ago. 21 2021.
STANFILL, Mel; CONDIS,
Megan. Fandom and/as labor [editorial]. Journal Transformative Works and
Cultures, [S.l], v. 15, online, 2014. DOI: <https://doi.org/10.3983/twc.2014.0593>.
TERRANOVA, Tiziana. Free
Labor: Producing Culture for the Digital Economy. Social Text, Durham, v. 18, n. 2, p.
33-58, 2000. DOI: <https://doi.org/10.1215/01642472-18-2_63-33>.
VAN DIJCK, José. The
culture of connectivity: a critical history of social media. New York: Oxford
University Press, 2013.
VAN DIJCK, José; POELL,
Thomas; DE WAAL, Martijn. The Platform Society: Public Values in a Connective World. New York: Oxford University
Press, 2018.
ZUBOFF, Shoshana. Um capitalismo de
vigilância. Le Monde diplomatique Brasil, São Paulo, 3 jan. 2019.
Disponível em: <https://diplomatique.org.br/um-capitalismo-de-vigilancia/>.
Acesso em: 30 mar. 2021.
[1] Doutorando em Comunicação pela
Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). Mestre em Comunicação,
Cultura e Amazônia pela Universidade Federal do Pará (UFPA). Pesquisador
associado ao Laboratório de Artefatos Digitais (UFRGS), ao InovaCom (UFPA) e ao
Consia (UFPA/Unama). E-mail: tarciziopmacedo@gmail.com.
[2] Doutorando em Comunicação pela
Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). Mestre em Comunicação,
Cultura e Amazônia pela Universidade Federal do Pará (UFPA). Pesquisador
associado ao Laboratório de Artefatos Digitais (UFRGS), ao InovaCom (UFPA) e ao
Consia (UFPA/Unama). E-mail: tarciziopmacedo@gmail.com.