A circulação de sentidos sobre o Exército
Brasileiro no Complexo da Maré
Ana Paula
da Rosa[1]
Bruno
Garcia Vinhola[2]
Resumo: O artigo examina o fenômeno da midiatização com foco nos
processos de circulação de sentidos. Em meio à profusão imagética da sociedade
midiatizada, investiga-se a disputa pela construção da imagem do Exército
Brasileiro durante a operação de pacificação do Complexo da Maré, ocorrida
entre 2014 e 2015. Como referencial teórico, defende-se uma compreensão do
fenômeno da midiatização baseada na abordagem mais recente de Verón (2014), que
encaminha às noções de circulação a partir de Braga (2012) e Fausto Neto (2010)
e de dispositivo midiático a partir de Ferreira (2013). Quanto aos aspectos
metodológicos, parte-se do esquema prógono de Verón para análise da
midiatização (1997) para a constituição de dois eixos de análise, organizados
em três coleções de imagens referentes a acontecimentos da operação.
Tensionadas quanto a aspectos sócio-semio-técnicos, as coleções revelam
categorias de imagens produzidas sobre o Exército, posteriormente
sistematizadas em diagramas inferenciais. Conclui-se que, na circulação
midiática atual, cada vez mais heterogênea e transversal, além da disputa
intermidiática que atravessa a construção da imagem do Exército na Maré,
configura-se também uma coprodução da imagem institucional, potencializada pela
processualidade simbólica que, paradoxalmente, fortalece determinadas imagens
em detrimento de outras.
Palavras-chave: Midiatização; Circulação; Imagem; Simbólico;
Exército.
Images in
dispute:
The
circulation of meanings about the Brazilian Army in Complexo da Maré
Ana Paula
da Rosa[3]
Bruno
Garcia Vinhola[4]
Abstract: The article
examines the phenomenon of mediatization focusing on processes of circulation
of meanings. In the midst of the imagery profusion of the mediatized society,
we investigate the dispute for the construction of the image of the Brazilian
Army during the pacification operation of the Maré Complex, which occurred
between 2014 and 2015. As a theoretical source, we defend a perception of the
phenomenon of mediatization based on the most recent Verón's approach (2014),
which leads to the circulation concepts of Braga (2012) and Fausto Neto (2010),
and Ferreira's media dispositif
(2013). As for the methodological aspects, the article was based on Verón's
precursor scheme for analysis of the mediatization (1997) for the constitution
of two analysis axes and organized in three collections of images referring to
events of the operation. Tensioned about socio /semiological/technical aspects,
the collections reveal categories of images produced about the Army, and later
systematized in inferential diagrams. We conclude that in the current media
movement, more heterogeneous and transverse, apart from the inter-media dispute
that intersects the construction of the image of the Army at Maré, there is a
co-production of the institutional image, potentialized by the symbolic
processuality, which, paradoxically,
strengthens defined images in detriment of others.
Keywords: Mediatization;
Circulation; Image; Symbolic; Army.
Introdução
Entre
abril de 2014 e junho de 2015, o Exército Brasileiro comandou uma força-tarefa
no Complexo da Maré, um conjunto de favelas da cidade do Rio de Janeiro
historicamente conhecido pelo domínio do narcotráfico. A missão, que tinha como
objetivo restabelecer a paz social na região, foi batizada de Operação São
Francisco.
Através
dos contatos rotineiros na chamada “Área de Pacificação”, a imagem do Exército
foi posta em jogo. A cada experiência vivida nesse(s) acontecimento(s),
diferentes histórias foram contadas na comunidade. Logo, diferentes imagens do
Exército passaram a ser (re)construídas. Por outro lado, a produção de sentidos
sobre a operação, ou mesmo sobre a instituição, não iniciou no momento da
chegada das tropas, pois já existiam elaborações em trânsito, presentes no
imaginário coletivo. O que se evidencia
é que o embate de sentidos. Foi deslocado a outro plano, o intermidiático. E,
nesse plano, outros narradores têm a prerrogativa de conduzir a história e,
consequentemente, de (re)construir imagens.
Segundo
Quéré (2005), todo acontecimento tem natureza dual. Por um lado, ele é fato,
constituído de dados e que pode ser explicado de maneira causal, de acordo com
o contexto em que se apresenta. Por outro, ele se constrói independente de
expectativa e/ou previsão, abre possíveis cenários dos mais diversos e, dessa
forma, reconfigura passado, presente e futuro. Levando em conta essas duas
dimensões, contempla-se o poder hermenêutico do acontecimento, ligado não
apenas ao factual, mas à experiência. Assim, só é acontecimento aquilo que
afeta a alguém.
O
mesmo autor defende a importância da consideração da passibilidade dos
acontecimentos. Em uma espécie de travessia, na qual “[...] aquele a quem
acontece o acontecimento [...] se expõe, corre riscos, perigos, põe em causa a
sua identidade” (QUÉRÉ, 2005, p. 66), o acontecimento é individualizado. Sob
diferentes percepções/significações, um mesmo acontecimento pode se desdobrar
em outros diferentes, a depender do olhar. Dessa forma, ele se evidencia também
como um “começo”, para além de significação pré-definida causal, mas como
irrupção de novos sentidos projetados. Ao mesmo tempo em que o poder do
indivíduo sobre o acontecimento é limitado, visto que depois de realizado não é
possível modifica-lo, “[...] podemos compreendê-lo de outra maneira, fazer dele
um outro acontecimento e reconfigurá-lo através da maneira como o apropriamos”
(QUÉRÉ, 2005, p. 69).
A
irrupção do acontecimento constitui imediatamente um campo problemático, que
envolve a atuação de diferentes matrizes de interpretação. Alguns desses campos
já são pré-existentes, enquanto outros se configuram em função do
acontecimento. De qualquer forma, as diferentes instâncias envolvidas —
sujeitos ou organizações — procuram impor suas lógicas de interpretação para
resposta/ajuste ao que se apresenta. Nesse sentido, Quéré (2005) reconhece o
papel das mídias tradicionais como fundamental na identificação e exploração
dos acontecimentos, bem como no fomento do debate público. Contudo, ele lembra
que nunca haverá uma coordenação perfeitamente organizada na narrativa de um
acontecimento, tendo em vista as diferentes afetações e apropriações e, nesse
sentido, aponta para as críticas feitas à produção do acontecimento midiático,
especialmente em virtude do “presentismo” e regime de historicidade, que podem
neutralizar o poder hermenêutico do acontecimento.
Compreendemos que, tradicionalmente,
caberia à instituição midiática de cunho jornalístico a tarefa de dar forma
narrativa ao acontecimento e inseri-lo no plano intermidiático, em virtude de
seu sistema produtivo e de lógicas de funcionamento. Entretanto, quando o poder
da construção da realidade é creditado exclusivamente à essa mídia “canônica”,
retorna-se a uma “sociedade dos meios”. No contexto atual, de uma sociedade
aceleradamente midiatizada, Fausto Neto (2008) salienta que as tecnologias
transformadas em meios conferiram condições de produção a todos indivíduos. Ao
fazerem usos e apropriações das técnicas e lógicas midiáticas, atores e
instituições, que originalmente não seriam classificados nesse grupo, credenciam-se como novos produtores de
sentido, participando ativamente da narrativa dos acontecimentos no plano
intermidiático.
Neste
sentido, Eskjaer, Hjavard e Mortensen (2015) discutem as dinâmicas de midiatização,
isto é, relações que se estabelecem para a produção do sentido entre múltiplos
agentes, dentre os quais os meios. Para os autores tais dinâmicas são
construídas a partir de três movimentos: amplificação, enquadramento ou
agenciamento de performance e coestruturação social da interação. Por
amplificação entende-se tanto o potencial de prolongar um conflito ou uma
temática social em dispositivos midiáticos (portanto, na circulação), como
reduzir os embates sociais a partir da pressão por soluções. Já a noção de
enquadramento, amplamente explorada nas discussões do jornalismo, trata dos
modos de pôr em cena, midiaticamente, sujeitos e situações. Engloba, assim, a
criação de modos de visão que muitas vezes passam pelo agenciamento da
performance, isto é, como os modos de agir e se portar são pautados por lógicas
de midiatização, por valores morais e pela visibilidade. Por fim, a
coestruturação social indica exatamente que no cenário da midiatização já não é
mais possível que os discursos e sentidos estejam localizados em um único campo,
pois ascendem ao espaço discursivo inúmeros sujeitos, isso implica que tanto os
meios como os atores sociais coestruturam a sociedade a partir de práticas
interacionais.
Frente a esse cenário, emerge o
seguinte problema: de que maneira circula a imagem do Exército Brasileiro
durante a pacificação do Complexo da Maré? Para contemplá-lo, define-se como
objetivo examinar a heterogeneidade das produções midiáticas acerca da imagem
institucional durante a operação, bem como analisar as relações transversais
entre os atores envolvidos nesse processo. Tal abordagem tem potência para
contribuir com os estudos de interface entre as (sub)áreas da midiatização e da
comunicação institucional/organizacional. De um lado, os estudos dessa área,
que costumam dar maior importância às afetações do fenômeno sobre os fazeres
quando focados em objetos institucionais/ organizacionais, podem ser
estimulados a atentarem para outras lógicas e dimensões, não apenas
relacionadas à construção de imagem, mas a outras questões como a
interdependência sistêmica e as relações de poder, que ultrapassam a fala
autorizada e planejada. Do outro, as perspectivas da comunicação
institucional/organizacional que, no geral, dão maior atenção às consequências
dos usos e apropriações das técnicas midiáticas quando convocam os aportes da
midiatização, podem ser incentivadas a atentarem para as complexas lógicas desse
processo como elementos tensionadores (da imagem institucional, por exemplo).
Parte-se,
então, em busca de indícios que nos permitam compreender de que forma a
sociedade desenvolve processos tentativos de construção da imagem do Exército
em operação na Maré. Para delimitar o corpus,
procede-se com a organização de tais processos sob o critério da expressividade
da produção, tomando como base o esquema para análise da midiatização de Verón
(1997).
Figura 1 – Esquema prógono para análise da midiatização
Fonte: Verón (1997)
Nesse
esquema, pioneiro na reflexão conceitual sobre o fenômeno da midiatização, Verón
(1997) apresenta uma divisão em três polos, que não se relacionam apenas de
forma linear, mas em uma mistura de circuitos. As instâncias representam,
segundo o autor, as instituições não midiáticas, os meios e os atores
individuais da sociedade. Ainda que o cenário desenhado pelo autor tenha
evoluído e a representação seja relativamente simples para uma realidade
comunicacional de extrema complexidade (atualmente é difícil falar em
instituições não atravessadas pelas lógicas de mídia, por exemplo), o esquema
de Verón possibilita perceber a ambiência de fluxos transversais, as relações
com tendências simétricas e de constante inversão entre produção e recepção,
além da mútua afetação entre mídia, atores individuais e
instituições/organizações.
Portanto,
na constituição do caso[1] que se
evidencia, de disputa pela produção da imagem do Exército na Maré,
consideram-se as três instâncias do esquema de Verón — devidamente adaptadas ao
caso — e suas respectivas imagens produzidas acerca do acontecimento. A primeira
é a institucional (originalmente não midiática): a imagem que próprio o
Exército produz sobre sua presença nas favelas (em dispositivos por ele
chancelados). A segunda está ligada à imagem produzida pela mídia
tradicional/canônica (jornalismo), atravessada pelos critérios de
noticiabilidade, dentro de um sistema produtivo específico a partir de um
conjunto de regras que configuram seu fazer. Por último, as produções dos
atores individuais, os amadores: a imagem do Exército percebida pelos cidadãos
que convivem com a rotina da operação.
Dessa forma, procedeu-se com a coleta dos produtos circulantes em
dispositivos midiáticos diversos, inscritos pelas instâncias supracitadas[2]. Formaram-se três coleções,
constituídas por materiais que fazem referência a acontecimentos que marcaram a
trajetória do Exército na Maré[3]. Tais
episódios são: a entrada dos militares na comunidade (o início da operação), a
morte do Cabo Mikami (único militar morto em serviço durante a missão) e a
saída dos militares do Complexo da Maré (transição do comando da Área de
Pacificação para a Polícia Militar do Rio de Janeiro). A organização das
coleções se dá em dois níveis, em consequência do que o próprio objeto revela:
o primeiro é a heterogeneidade das produções postas em jogo, com ênfase nas
estratégias de cada subconjunto disputante; e o segundo diz respeito à
transversalidade, em que são observadas as afetações mútuas decorrentes das
estratégias anteriormente reveladas, ou seja, os encontros entre as produções
na circulação. Como apoio ao processo de análise, procede-se com a construção
de diagramas, agentes complementares na correlação de indícios, que redinamizam
as lógicas do esquema de Verón. Ao final, faz-se necessária uma análise
coletiva, que dê conta de toda a processualidade. Para isso, são postas em
contato as três coleções, na tentativa de revelar a possibilidade de uma
imagem-síntese da participação do Exército na Maré. Antes da apresentação das
análises empíricas, haverá uma breve recuperação dos conceitos de midiatização,
circulação e dispositivo midiático, basilares na construção do presente
trabalho[4].
Midiatização, circulação,
dispositivos midiáticos
São
diversas as apropriações da palavra “midiatização”. Em que pese o fato de
tratar-se de um importante conceito em elaboração e tensionamento contínuos,
talvez seu uso mais corriqueiro, como nos lembra Braga (2018), esteja
relacionado à simples presença de algo na mídia. Abordagem essa — muito
utilizada no senso comum — que reduz a complexidade do fenômeno. Na academia,
as heterogeneidades se evidenciam de forma mais intensa. Vejamos brevemente
algumas das perspectivas mais trabalhadas pelos autores dedicados à temática.
A
abordagem institucional, cujo maior expoente é Stig Hjardvard[5], enfatiza a influência generalizada
das lógicas de mídia sobre as das demais
instituições (BRAGA, 2018). Dessa forma, regras, protocolos, técnicas e hábitos
presentes nas instituições midiáticas afetam os modos de vida de quaisquer
formas organizacionais. Hepp (2014) explica que a preocupação central dessa
perspectiva é o relacionamento entre a mídia — como instituição autônoma — e as
demais instituições sociais.
A
tradição socioconstrutivista, de acordo com Hepp (2014), tem forte ligação com
o interacionismo simbólico e a sociologia do conhecimento. A midiatização,
entendida como (meta)processo de mudança social, implica um olhar que não a
considere um fenômeno isolado, mas que conecte o desenvolvimento midiático à
evolução das formas comunicativas. Um autor que representa tal perspectiva é
Friederich Krotz.
Outro
ângulo de entrada é o “[...] direcionamento de novas tecnologias digitais para
ações que são de ordem comunicacional — tecnologias transformadas em meios e
dispositivos de comunicação” (BRAGA, 2018, p. 302). As produções sob essa
ênfase geralmente tendem a vincular o processo de midiatização à
contemporaneidade ou valorizam esse recorte temporal em especial. Um aspecto
importante dessas abordagens é o desenvolvimento tecnológico, que possibilita
menos custo, mais acesso e, consequentemente, mais usos e apropriações pelos
atores sociais. Podemos citar Andreas Hepp e Uwe Hasebrink como representantes
dessa vertente, com seu conceito de midiatização profunda[6].
Há
ainda a perspectiva que valoriza o fato de que a sociedade (re)constroi seus
processos midiáticos próprios, adaptando-os de acordo com suas
necessidades/interesses. José Luiz Braga[7]
representa essa concepção e defende que as invenções sociais de cunho
midiático/interacional nem sempre são originalmente voltadas para a
comunicação, mas inclinam-se a tais objetivos em virtude das experimentações
sociais (BRAGA, 2018). Assim, como Braga, o conjunto de trabalhos desenvolvidos
na linha de Midiatização e Processos Sociais da Unisinos tenta problematizar o
conceito tendo a circulação como elemento central, portanto, deslocando a ênfase
dos meios para o espaço da produção de sentido em interação.
Além
desses exemplos, existem abordagens ainda mais específicas, ou que se revelam
transversais em relação ao que apresentamos. De qualquer modo, não é possível
definir qualquer das correntes elencadas como a abordagem mais reconhecida da
midiatização. Em meio à heterogeneidade de ângulos de entrada e a potência de
exploração do conceito, partimos do pressuposto que a midiatização é fenômeno
em processo, que impulsiona reconfigurações em uma sociedade atravessada por
lógicas midiáticas de forma crescente, o que implica em novos modos de ser em
sociedade e de vivenciar situações de conflito. Tais conflitos são, ao mesmo
tempo, midiatizados pelas instâncias em jogo, mas também são frutos do próprio
processo de midiatização (Eskjaer, Hjavard, Mortensen, 2015).
De
forma ainda mais específica, a perspectiva que orienta o trabalho se inscreve
na concepção histórica de longo prazo de Verón (2014, p.14), que considera a
midiatização como “resultado operacional de uma dimensão nuclear de nossa
espécie biológica, mais precisamente, sua capacidade de semiose”. Para o autor,
as mídias, sob os mais diversos formatos, sempre estiveram presentes na sociedade.
A midiatização é, dessa forma, uma sequência de momentos cruciais em que
fenômenos midiáticos são institucionalizados na sociedade. O “momento crucial”
para o qual atentaremos no presente trabalho é o da contemporaneidade,
caracterizado pela institucionalização da mediação digital.
O
momento atual revela que o processo de midiatização está ainda mais acelerado,
devido ao aumento da conversão de fenômenos técnicos em meios (FAUSTO NETO,
2008). Essa reconfiguração das tecnologias em novas práticas midiáticas criou
condições para que qualquer ator ou campo social faça uso e/ou se aproprie dessas
técnicas e lógicas. O campo midiático,
que assumia a superintendência das relações societárias — pois era o
tematizador público legitimado — até meados da década de 1990, na chamada
“sociedade dos meios”, é deslocado de sua posição central nos dias atuais.
Afinal, o acesso irrestrito às técnicas e lógicas nesse âmbito dissipa o elo
organizador, quebrando o controle gerencial do campo dos media. Sabe-se que ainda há modos de expressão de poder dos meios,
a partir das rearticulações que os mesmos elaboram em suas adaptações à nova
ambiência, mas o fato é que o tecido social atravessado pela cultura de mídia
(FAUSTO NETO, 2008) faz da midiatização uma processualidade que redinamiza a
organização social e a produção de sentido.
Para
Braga (2018), as alternativas oferecidas pelo digital oportunizam uma ambiência
midiática de formatação menos rígida e mais aberta à experimentação. Dessa
forma, não apenas as lógicas de mídia institucionalizadas se expandem, mas
novas formas de encadeamento são criadas pelos atores sociais. Novos circuitos
alternativos são constituídos, assim como atores “ilegítimos” passam a cruzar
diferentes campos. Por outro lado, as interações escapam aos controles
institucionais.
Esse
acesso irrestrito à lógica midiática oferecido pela diversificação de
alternativas significa ainda mais indeterminação, desvios e desajustes na
produção de sentidos. A quebra da linearidade é característica da circulação
midiática atual. Segundo Fausto Neto (2010), o conceito de circulação repousou
por muito tempo, entendido como uma simples zona de passagem/transmissão. O
autor explica que as mudanças nos regimes sócio-técnico-discursivos fizeram
emergir uma lógica de interfaces, em que produtores e receptores convivem de
maneira mais simétrica, o que impede a redução da circulação a uma simples
zona. Nesse sentido, Braga (2012) propõe um pensamento para além das instâncias
de produção e recepção, pois os sentidos circulantes ultrapassam tais esferas e
seguem em um fluxo sempre adiante. Isso torna impossível a distinção de pontos
de partida e chegada e, consequentemente, a visualização da produção e da
recepção como polos separados. Algumas características da nova paisagem
circulatória, segundo Fausto Neto (2010): 1) novas condições de produção; 2)
quebra de contratos por parte da recepção; 3) interesse por várias mídias ao
mesmo tempo; 4) (co)produção dos acontecimentos a partir das trocas de papéis
entre produtores e receptores.
Para
Ferreira (2013), a circulação se concretiza nos dispositivos midiáticos. Esses,
segundo o autor (FERREIRA, 2006), podem ser abordados a partir de uma matriz
triádica: sócio-antropológica, semio-linguística e técnico-tecnológica. Essa
relação matricial faz do dispositivo midiático um espaço de acoplamentos, que
contempla o atravessamento de diferentes circuitos, incentiva a inclusão de
novos atores midiatizados (tanto na perspectiva da inscrição/acesso como da
chancela/assinatura de dispositivos) e possibilita a criação de novos códigos.
Dessa forma, os dispositivos articulam a circulação, revelando sua
especificidade. O autor os considera centrais no estudo da midiatização e da
circulação: “sugere-se que o objeto primeiro da circulação seja a interação
entre dispositivos midiáticos” (FERREIRA, 2013, p.145). Essa interação pode ser
explorada tanto no nível intermidiático (entre dispositivos) como
intramidiático (no interior de um dispositivo).
Ante
o exposto, é importante pensar como a circulação de imagens emerge neste
cenário. Ao compreender esse processo como uma disputa de sentidos que se
realiza em dispositivos midiáticos, é possível considerar que esse fluxo
imagético passa por uma relação de atribuição de valor: de exposição e
o moral. Dessa forma, a imagem integra a dinâmica da midiatização ao
mesmo tempo em que a amplifica, visto que ela deixa de ser somente
representação e adentra na esfera dos imaginários. Ou seja, aqui a dinâmica que
nos interessa é a dos múltiplos acionamentos do imaginário social e coletivo
por meio de imagens representativas ou exógenas (BELTING, 2004) e, vice-versa,
as imagens representativas que carregam imaginários como uma espécie de
aderência. Sugere-se aqui que emerge uma
dinâmica de midiatização específica, com lógicas próprias, centrada na imagem.
Essa dinâmica se caracteriza, de um lado, pela produção cada vez mais intensa
de imagens por atores e instituições variadas para agenciar a circulação e, de
outro, pela recomposição ou reiteração de imaginários sociais. No caso a ser
analisado neste trabalho, verifica-se como esta dinâmica adquire contornos
claros, como uma imagem desaparecida do fluxo, pode retornar em outra, uma vez
que a referência para a produção do sentido perdura mesmo quando invisível aos
olhos.
A heterogeneidade das visões do
acontecimento
Para
a identificação e análise dos movimentos de circulação e das estratégias de
produção acionados pelas três instâncias em jogo, são levadas em consideração
as dimensões sócio-semio-técnicas dos materiais coletados. Abaixo, as imagens
produzidas por ocasião da entrada dos militares na favela, a título de
exemplificação desse processo inicial de classificação.
A
figura 2 trata de uma ação cívico-social promovida pelo Exército na comunidade,
divulgada no portal oficial da instituição. Observa-se a tentativa da
valorização de uma boa relação entre Exército e comunidade. A figura 3 é uma
produção jornalística, que opta por enunciar uma ocupação, o que tensiona a
tentativa institucional de promover a “pacificação”. Nela, a imagem dos
moradores em contato com o militar evidencia uma espécie de estranhamento para
com a Força que adentra na favela. E, na figura 4, a produção dos atores
individuais (de uma página colaborativa do Facebook),
que faz uma campanha direta contra a ação dos militares na favela, convocando
os moradores a resistirem à “ditadura dos territórios favelados”.
Figura 2 – Produção institucional sobre o início da operação
Fonte: Exército Brasileiro (2014)
Figura 3 - Produção canônica sobre o início da operação
Fonte: G1 (2014)
Figura 4 - Produção amadora sobre o início da operação
Fonte: Maré Vive (2014)
Percebe-se, nas figuras, a heterogeneidade produtiva que circula
nos dispositivos. Matrizes de interpretação concorrentes emergem com a irrupção
do acontecimento. Verifica-se, por exemplo, que as imagens produzidas pelo
Exército apresentam um formato de registro documental, seu enquadramento é mais
geral e tenta constituir, pelos elementos das fotografias, uma presença positiva
que remeta à noção de pacificação. Tome-se aí o relacionamento com crianças, os
ares de descontração e aparente segurança, além da presença do veículo militar
não como sinônimo de força, mas de nacionalismo. Diferentemente, a matriz
interpretativa propiciada pelas imagens fora do âmbito institucional dá conta
de tensões que extrapolam a noção de uma pacificação prometida discursivamente.
A imagem jornalística faz o recorte da cena a partir do olho de quem “ocupa” a
favela, portanto, do olhar externo. A família não demonstra na imagem sensação
de proteção mas, ao contrário, de medo e dúvida. Trata-se de uma imagem que
sugere, inclusive, um apontar de armas (não perceptível na cena), mas que nosso
olhar preenche. Assim, o título da manchete, que não menciona a pacificação,
mas a ocupação, já coloca outras camadas de sentido em cena. Do mesmo modo, a
imagem produzida por atores sociais e que reproduz a lógica de cartazes aponta,
exatamente, para uma comunidade acuada, onde a luz da liberdade se manifesta para
longe da presença do Exército enquanto poder e força. Assim, evidencia-se uma
atmosfera tensional, um cenário de disputa intermidiática por conferência de
sentido envolvendo diferentes discursos postos a circular sob a forma de
imagens advindas de diferentes “agenciadores”.
Ante
o exposto, procede-se então com a tentativa de identificar as imagens-síntese[8] de cada um dos três episódios
eleitos, a partir das materialidades analisadas e das lógicas do esquema de
Verón (1997) para análise da midiatização. Abaixo, o exemplo referente ao
episódio da entrada dos militares na Maré.
Figura 5 - A heterogeneidade produtiva no episódio “Início da
Operação”
Fonte: Elaborado pelos autores (2021)
Essa
concorrência entre três processos de construção imagética indica que a mediação
não é mais tarefa exclusiva das mídias tradicionais. As instâncias estão
reconfiguradas na ambiência da circulação, respondendo ao mesmo tempo pelos
papeis de produtor e consumidor. Uma ascensão de novos indivíduos no processo
de construção de sentidos que permite não apenas a inscrição, mas também a
assinatura de dispositivos midiáticos.
Na sociedade dos meios,
apenas o campo das mídias tradicionais —sobretudo o jornalismo — teria
autonomia para produzir e tematizar publicamente a imagem do Exército. Somente
a sua produção poderia deslocar-se entre as fronteiras dos demais campos
sociais (RODRIGUES, 2000), enquanto as imagens construídas pela instituição e
pelos atores sociais permaneceriam enclausuradas em seus próprios domínios de
experiência.
Portanto,
quando a conflitualidade interacional existente nas ruas da Maré é deslocada
para o plano intermidiático, ela se potencializa. Com mais disputantes em jogo,
mais signos são construídos e as diferentes imagens do Exército reverberam em
múltiplas construções de sentido que nem mesmo a organização consegue conter.
Isto porque o ambiente de fluxos estimula os contatos entre
produtores/consumidores, em um regime de interfaces. Por esse motivo, torna-se
necessária uma analítica mais complexa.
A
transversalidade das estratégias postas em circulação
Na
tentativa de inscrever seus discursos, instituições e atores individuais
começam a interagir com lógicas estranhas às suas, em virtude das trocas
efetivadas nas interfaces. Em um contexto de contínua redefinição, fluem
experimentações e indeterminações. Quando abandonam seus domínios, os
disputantes podem concorrer, mas também se aproveitar dos movimentos alheios. A
instituição jornalística pode, de um lado, se ver obrigada a seguir um registro
amador. Já o Exército, pode questionar a credibilidade do discurso da mídia
tradicional e, o amador, por sua vez, assumir para si a instantaneidade
jornalística. Ou seja, estamos diante de um embate de sentidos ante as forças
que entram em jogo e, logo, sobre novas operações e táticas de gestão de
imagens.
As
figuras 6 e 7 estão ligadas ao segundo episódio elencado para análise, a morte
do Cabo Mikami. Na figura 6, tem-se uma produção amadora, de uma página
colaborativa do Facebook. Trata-se de
um vídeo que exibe o momento em que Mikami chega — ainda com vida — a uma
Unidade de Pronto Atendimento. No pequeno texto que acompanha a postagem, a
informação de que o militar foi atingido na cabeça por um tiro.
Esse
material revela como o poder do registro dos fatos está em disputa na sociedade
midiatizada, o que potencializa a criação de circuitos experimentais. Quando o
amador é o responsável pelo primeiro registro, o equilíbrio das condições de
produção é desvelado. O valor da instantaneidade, uma das marcas do jornalismo,
está ao alcance de todos nessa nova ambiência, além das próprias regras
jornalísticas que foram didatizadas pelos meios para a sociedade. A figura 7
mostra de fato a troca de papéis. A matéria da mídia canônica fica obrigada a
seguir o registro amador, que se torna a imagem referência desse episódio,
inclusive com um ângulo de proximidade que, certamente, não seria permitido
para o fotojornalista.
Figura 6 - Produção amadora sobre a morte do Cabo Mikami
Fonte: Fatos da Maré (2014)
Figura 7 - Produção canônica sobre a morte do Cabo Mikami
Fonte: Portal G1 (2014)
Nas
figuras 8 e 9, outros exemplos de circuitos que emergem das interfaces. Alguns
mais estabelecidos, como na figura 8, uma reportagem padrão da mídia
jornalística tradicional: instantaneidade, novidade, revelação pública, fontes
claramente apresentadas. Em contrapartida, há os circuitos que se rompem, como
na figura 9: a instituição Exército contraria a veracidade das informações da
instituição jornalística. Chama atenção que tal iniciativa não ocorre mais
apenas no exercício de um direito de resposta em um espaço destinado pelo
dispositivo jornalístico. É a própria instituição que coloca seu direito de
resposta para circular em seus próprios dispositivos. Afeta-se a mídia
tradicional, estabelecem-se espaços interativos desviantes.
Figura 8 - Produção canônica sobre a morte do Cabo Mikami
Fonte: Portal Veja (2014)
Figura 9 - Produção institucional sobre a morte do Cabo Mikami
Fonte: Exército Brasileiro (2014)
Na
ambiência circulatória atual, as instâncias amadurecem em um jogo que, antes de
ser midiático, é social. Esse é um regime de contatos, de interfaces
produtivas, que faz necessária uma complexificação do esquema de Verón (1997),
agora atualizando-o para um cenário onde acentuam-se as relações e apagam-se as
linearidades. Na nova representação, as dimensões de cada esfera/instância
respeitam as respectivas performances no episódio Mikami. O institucional e sua
tentativa da criação da figura de um herói. A mídia canônica e a sugestão do
insucesso da operação. E os atores individuais indicando a vulnerabilidade de
todos frente ao poder do narcotráfico. Os amadores, por terem sido responsáveis
pelo registro referencial do episódio Mikami, recebem maior destaque no
diagrama. O jornalismo (mídia tradicional/canônica) segue a imagem amadora, mas
rearticula-se e adiciona novas camadas de sentido; suas reinscrições e
ressignificações são responsáveis pela chancela da imagem amadora, provocando
reações por parte do Exército. Esse, por sua vez, manifestou-se por último, de
modo que a imagem do herói Mikami não adquiriu valor na circulação,
permanecendo restrita aos domínios institucionais.
Figura 10 - a transversalidade circulatória no episódio
“Mikami”
Fonte: Elaborado pelos autores (2021)
As
lógicas do esquema de Verón foram mobilizadas na tentativa de representação
dessas áreas de sobreposição. As interfaces também respeitam o nível atingido
nas relações entre as instâncias. O diagrama contempla duas interfaces maiores:
canônico-institucional e canônico-atores. Entre a mídia canônica e o
institucional, uma verdadeira concorrência entre o sucesso e o fracasso da
operação. De um lado, a derrota. Do outro, o herói. Entre eles, a dúvida. Na
interface canônico-atores, o registro amador que se torna referência e segue
adiante, replicado e ressignificado por outra instância. Mesmo com as novas
camadas de sentido, as estratégias se combinam, se encontrando em uma imagem de
fragilidade. Por sua vez, a área de interface entre atores individuais e o institucional
é representada pelo símbolo da nulidade, pois as interações são muito escassas
nos dispositivos.
Para Fausto Neto (2010), essas interfaces são acoplamentos onde os
discursos heterogêneos se encontram, após atravessarem fronteiras em movimentos
pouco usuais antes da formação dessa nova arquitetura comunicacional. Nessa
lógica impulsionada pela circulação intermidiática, a regulação do sentido é
dificultada, pois as apropriações e os (re)direcionamentos são dos mais variados.
Circuitos mais estabelecidos, circuitos mais tentativos e aqueles que podem
romper. Desses encontros, outras imagens são construídas e as verdadeiras
marcas da circulação podem ser apreendidas. Uma ambiência em que nenhum ator
pode ficar alheio. Afinal, nenhum disputante produzirá sozinho, pois a mútua
afetação é característica fundamental da circulação midiática no momento atual
do processo de midiatização. Nos contatos de um regime de interfaces, algo
sempre “sobra”. Algo que não é só disputa, mas que também é coprodução. Algo
cujas pistas estão na transversalidade.
O jogo simbólico:
sobre atribuição de valor na processualidade
As
imagens e os discursos trazem à tona realidades que estão em coprodução, isto
é, não são dadas a priori porque envolvem relações. O fato da imagem
institucional do Exército figurar como algo impossível de ser controlado por
qualquer ator ou instituição aponta para um cenário de aberturas e
imprevisibilidade, o que não impede o exercício de intervenções sobre ela.
Nas
materialidades a seguir, imagens produzidas pelas instâncias por ocasião da
saída dos militares da favela, ao final da operação. Na figura 11, o sentido do
dever cumprido acompanha a produção institucional a partir da insistência nas
imagens de registro e da pose. A postagem do Twitter oficial do Exército exalta o sucesso do final da operação,
uma transição saudável para a Polícia Militar do Rio de Janeiro.
Figura 11 - Produção institucional sobre o final da operação
Fonte: Exército Brasileiro (2015)
Nas figuras 12 e 13, novamente a
força da interface mídia canônica (jornalismo) e amadores. O sucesso proposto
pelo Exército passa longe das imagens de insuficiência e incapacidade
construídas pelas instituições jornalísticas e pelos atores individuais que concebem
perspectivas marcadas pela angulação da despedida. O policial militar que
observa a saída das tropas do Exército metaforiza a derrota. Na
transversalidade dos contatos entre as instâncias e suas produções durante o
terceiro episódio escolhido para análise, “sobram” as imagens do desgaste e da
incredulidade.
Figura 12 - Produção canônica sobre o final da operação
Fonte: G1 (2015)
Figura 13 - Produção amadora sobre o final da operação
Fonte: Fatos da Maré (2015)
A produção institucional não adere ao constructo
maior porque, em um contexto de final de operação, a imagem do Exército já foi
atravessada por mais de um ano de tensionamentos. Qualquer elaboração sobre a
presença dos militares na Maré estaria fadada à contaminação. Quando os
disputantes inscrevem suas imagens sobre a saída dos militares, elas entram em
contato com aquelas de tensão, medo, dúvida, fragilidade, entre outras que
circularam anteriormente. O mesmo ocorreu com as imagens de força, heroísmo e
outras inscrições institucionais que esbarraram em suas concorrentes e se
apagaram no fluxo adiante. Assim, a imagem da pacificação da Maré não vingou.
Em contrapartida, as estratégias da mídia canônica e dos atores sociais
obtiveram valor nas interações e prevaleceram na disputa.
Ao
final da operação, tem-se um hexágono imagético que envolve a imagem
institucional como uma nova camada de sentido. Esta é a imagem-síntese do
Exército na Maré, construída entre a disputa e a coprodução. Isto é, não se
trata de uma única imagem, mas de um conjunto que não permite um fechamento em
si mesmo. As seis categorias que formam o hexágono estão relacionadas às
imagens produzidas nas interfaces entre as instâncias.
Figura 14 – Hexágono-síntese da imagem institucional ao final
do acontecimento Maré[9]
Fonte: Elaborado pelos autores (2021)
Todavia,
por que em um contexto de profusão imagética e — aparente — equilíbrio
discursivo, algumas imagens acabam ficando pelo caminho da circulação, ao passo
que algumas produções se mostram inabaláveis, mesmo confrontadas por outras
estratégias? As pistas para esse evento podem estar em outra processualidade
que se revela na circulação, algo que é da ordem do simbólico.
A imagem institucional, exposta no terreno intermidiático, não é
uma imagem pura. O contexto histórico/social que a envolve indica que este é um
constructo complexo, atravessado por forças simbólicas. Quando resgatados pelas
instâncias que disputam a elaboração imagética, os símbolos também abandonam
domínios de experiências e cruzam fronteiras, ficando vulneráveis às
interações. Na atividade circulatória, algumas forças simbólicas destacam-se,
outras não, dependendo do contexto em que aparecem (MERLEAU-PONTY, 2004). Isto
é, o acionamento de imagens e de símbolos arraigados na cultura não são
garantia de valorização social, pois dependem das interações sociais e do
potencial de circulação que desenvolvem.
Por
esse motivo, muitas produções institucionais não adquiriram valor na
circulação. No episódio Mikami, por exemplo, o Exército o compara a um herói da
Segunda Guerra, o Sargento Max Wolf. Este é um símbolo que nunca se aventurou
fora do seu domínio de experiência e, em um contexto de tensionamento
intermidiático, estava fadado a ficar pelo caminho. Em contrapartida, a
interface canônico-amadores resgatou a força simbólica da vulnerabilidade dos
cidadãos perante o domínio do tráfico. Algo bem mais próximo da matriz
societária e mais propenso a adquirir valor.
As
imagens como símbolos dominantes são chamadas por Rosa (2014) de totens. Depois
que atingem esse status, se tornam inquebráveis. As imagens totêmicas são
exatamente aquelas que evocam imaginários anteriores ou laços profundos do
social e que se instalam como barreiras para novas inscrições. Isto é, são
imagens que se fixam no imaginário, mesmo quando ausentes enquanto
materialidades. Cabe destacar que essas forças simbólicas convocadas não se
tornaram totens durante a operação São Francisco. As imagens de hoje estão
baseadas em um inventário iconográfico que compõe nossa história e memória. Ou
seja, são cobertas ou obscurecidas por imagens já existentes que são, estas
sim, os verdadeiros totens, que bloqueiam novas produções e que ressurgem, como
sombras, ao longo de intervalos de tempo. Vejamos as figuras 15 e 16,
construções de anos anteriores, mas que carregam as mesmas forças simbólicas
convocadas pelos disputantes na Maré.
Figura 15 - O simbólico da vulnerabilidade da sociedade em
relação ao tráfico
Fonte: Portal R7 (2011)
Figura 16 - O simbólico da falência das instituições nacionais
Fonte: Portal Veja (2013)
A figura 15, do ano de 2011, expõe um
policial baleado durante uma operação em outra favela do Rio de Janeiro. É o
símbolo da fragilidade da população quando em contato com o tráfico. Já a
figura 16, do ano de 2013, representa as imagens construídas ao final da
tentativa de pacificação do Complexo do Alemão, outro conjunto de favelas do
Rio de Janeiro em que o Exército atuou. Dessa vez, a força simbólica que
aparece é a falência das instituições brasileiras. Imagens muito parecidas com
os materiais analisados anteriormente (figuras 6 e 12) e que nos passam a
sensação de que já as vimos em algum outro momento ou que sempre estiveram lá,
numa espécie de eterno retorno (ELIADE, 1992).
Considerações Finais
Diante das reflexões finais, a
pergunta inicial sobre a maneira que a imagem do Exército Brasileiro circulou
durante a pacificação do Complexo da Maré parece abrir novas possibilidades
analíticas. O próprio processo de pacificação aqui observado pode ser deslocado,
hoje, para a compreensão de outros fenômenos envolvendo o Exército ou as Forças
Armadas nas ruas das cidades brasileiras como, por exemplo, as mais recentes
operações de pacificação no Rio de Janeiro ou mesmo as tensões que emergem de
novas políticas públicas sobre segurança. Isso posto, é preciso ressaltar que o
processo de midiatização é um atravessamento social que ultrapassa usos e
apropriações de mídia e adquire conotação de um efetivo domínio de lógicas de
midiatização — específicas e experimentais — que derivam em um fazer
interacional de diversos atores em jogo.
Significa pensar que a produção de sentido social, hoje, não está mais
restrita aos meios e tampouco às organizações como o Exército. Ainda que esses
atores façam gestão sobre seus processos comunicacionais, as defasagens
características da circulação sempre extrapolam suas tentativas de controle.
O objeto empírico evidencia essa
heterogeneidade na produção de sentido, por meio das produções midiáticas
acerca da imagem institucional da corporação durante a operação São Francisco.
Enquanto a organização tentava manter as lógicas de mídia já consolidadas
(imagens de registro, textos que não se abrem para os conflitos e um foco na
pose e na configuração do herói-militar), mesmo que fazendo uso das redes
sociais, as instituições jornalísticas e os atores sociais passaram a elaborar
imagens calcadas em olhares muito díspares, que evidenciam não só o uso da
força como política de Estado — mesmo que
em nome de uma suposta pacificação —, mas também a presença forte de um
imaginário de opressão, morte e criminalidade silenciado (sobre o qual o
Exército não parece disposto a se abrir para a negociação discursiva). Assim,
ainda que a organização tente argumentar, exibindo elementos que humanizem a sua
presença no Complexo da Maré, as memórias de fatos anteriores também se
presentificam com a chegada das tropas, gerando mais conflitos. A ideia de que
é preciso intervir nem sempre se coaduna com a noção de que é preciso mostrar a
intervenção. E entre o que se mostra e o que se diz há sempre uma força
política.
Dessa
forma, a processualidade simbólico-midiatizada sugere um paradoxo. Em meio à
potencialização das interações e à profusão de imagens produzidas, como podemos
estar diante de estruturas que exercem dominação e excluem outras
possibilidades de representação? Por que a sensação de estarmos frente a
histórias que já conhecemos ou de estarmos vendo cenas repetidas? A resposta
parece estar na dimensão simbólica que invade a narrativa intermidiática,
trazendo à tona estruturas profundas do social (CASSIRER, 2001). Esses sentidos
já estabelecidos recuperam um acervo cíclico.
Ao
compreender a circulação como uma forma de atribuição de valor (ROSA, 2019),
que pode ser agenciada por qualquer uma das instâncias que participam do jogo
interacional (nesse caso atores sociais, o jornalismo e o próprio Exército),
verifica-se que algumas imagens que tentam se estabelecer como sínteses dos
acontecimentos esbarram naquelas já existentes, que são mobilizadas em outras
produções atuais. Quando os atores sociais produzem vídeos e fotografias da
presença dos soldados, dos blindados e do armamento, por exemplo, há uma
evocação de imagens de força que se instalam barrando a possibilidade de
qualquer ideia de pacificação. Do mesmo modo, quando vemos a criança brincando
com soldados em postagem institucional, saltam aos olhos as defasagens, já que
aquilo que a organização atribui valor é completamente diferente daquilo que é
valorado pela comunidade. Em parte, isso seria esperado, mas o caso de pesquisa
analisado revela mais do que uma (micro)ocorrência. Ele revela a presença de
imagens totêmicas que vão se fixando como barreiras na circulação midiática. Ou
seja, as tentativas do Exército de romper com imagens de violência, do
narcotráfico, da falência das instituições não se efetiva porque são feitas a
partir da não interação com as comunidades e sua negação. As tentativas são
sempre desviantes do conflito e não da sua reflexão.
À vista disso, o
hexágono inferido acima se consolida não apenas como a imagem do Exército ao
final do acontecimento Maré, mas como a imagem do Exército em operações de paz,
criada em meio às recentes intervenções da instituição em território nacional e
que abastece e afeta um constructo maior, a imagem institucional. São exemplos a
operação na favela da Rocinha, em setembro de 2017, e a intervenção federal, iniciada em fevereiro
de 2018. Ambas novamente no Rio de Janeiro. Têm-se, no hexágono, os três
momentos temporais do caso analisado: ocupação, morte de um militar e
desocupação. Respectivamente, há três imagens em disputa, que emergem da
transversalidade dos conjuntos de sentidos: a tensão e o medo; a dúvida e a
fragilidade sobre o próprio poder de articulação da organização e, por fim, a
imagem do desgaste junto à da incredulidade. A disputa é contínua e
característica de uma semiose infinita. Desse modo, a missão do Exército na
Maré se encerrou, mas a imagem institucional segue em tensionamento na
incompletude da circulação midiática, contaminada por esse hexágono
imagético/simbólico que, de certa forma, já está a nos contar a história da
próxima tentativa de pacificação, dando pistas sobre um devir.
Notas
[1] A ideia de caso refere-se aqui a um caso
construído pelo pesquisador, fruto da articulação de inferências abdutivas,
dedutivas e indutivas. Trata-se de um caso midiatizado, isto é, o foco está na
exasperação do caso para além daquilo que está nos meios ou mídias tradicionais
como acontecimento.
[2]
Definiu-se como fonte de pesquisa os dispositivos midiáticos encontrados na
internet, por dois motivos principais: 1) a possibilidade de recuperação das
imagens a qualquer momento, em função dos protocolos de disponibilização,
exibição e arquivo; 2) em função da internet ser um espaço em que todas as
instâncias disputantes teriam condições mais simétricas de produção em larga
escala, sem disparidades relevantes que poderiam prejudicar o caráter
abrangente da análise (materiais impressos, por exemplos, conferem destacada
“vantagem” de visibilidade às produções da mídia tradicional).
[3]
Não foram adotados recortes por temporalidade (um mês de acontecimentos, por
exemplo) ou por resgate histórico (sequência lógica de acontecimentos) em
virtude do risco da não apreensão de indícios nas três instâncias propostas ou
de um corpus demasiadamente extenso. Ressalta-se que na apresentação das
análises empíricas não serão exibidos todos os materiais coletados, tendo em
vista as limitações de formatação do artigo. Contudo, para cada eixo de
análise, serão apresentados fragmentos de uma das coleções, junto de suas
respectivas análises.
[4] O presente artigo é uma apresentação
sintetizada do percurso metodológico e dos resultados obtidos na dissertação de
mestrado “Entre a disputa e a coprodução: heterogeneidades e transversalidades
da circulação midiatizada” (VINHOLA, 2016). Alguns de seus resultados parciais
foram relatados no artigo “Entre a disputa e a coprodução: a imagem do Exército
no Complexo da Maré” (ROSA; VINHOLA, 2016), publicado no volume 13 (n.24) do
periódico Organicom. Tendo em vista a impossibilidade de expor as coleções de
materiais analisados em sua totalidade, elegemos alguns exemplos de figuras —
bem como suas respectivas análises — que pudessem representar o esforço
analítico empreendido durante o processo.
[5] Ver HJARVARD,
S. Midiatização: teorizando a mídia como agente de mudança social e cultural. Matrizes, São Paulo, v. 5, n. 2, p.
53-91, jan/jun. 2012.
[6] Ver HEPP, Andreas; HASEBRINK, Uwe.
Researching transforming communications in times of deep mediatization: a
figurational approach. In: HEPP, Andreas; HASEBRINK, Uwe; BREITER, Andreas. Communicative
figurations: transforming communications in times of deep
mediatization. Bremen:
Palgrave Macmillan, 2018.
[7] Ver BRAGA, José Luiz. Mediatização como
processo interacional de referência. Animus, v.5, n. 2 , 2006.
[8] Entendemos por imagem-síntese aquilo que
Rosa (2012) considera como as imagens que não são, necessariamente, símbolos,
mas que visam significar os acontecimentos a que se referem de modo a
restringir a permanência na circulação de outras imagens. São aquelas que
tentam fechar o sentido, ainda que tal tentativa nunca se efetive já que a
circulação é naturalmente um espaço de defasagens.
[9] A espessura das linhas dos lados do hexágono
respeitam a intensidade dos contatos desenvolvidos nas interfaces produtivas
(entre instâncias).
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[1] Doutora em Ciências da Comunicação pela Universidade do Vale do Rio
dos Sinos. Docente e pesquisadora no PPG em Ciências da Comunicação da
Universidade do Vale do Rio dos Sinos. E-mail: anarosa208@yahoo.com.br.
[2] Doutorando em Comunicação e Informação pela Universidade Federal do
Rio Grande do Sul e Mestre em Ciências da Comunicação pela Universidade do Vale
do Rios dos Sinos. E- mail: bruno.vinhola@gmail.com.
[3] Doutora em Ciências da Comunicação pela Universidade do Vale do Rio
dos Sinos. Docente e pesquisadora no PPG em Ciências da Comunicação da Universidade
do Vale do Rio dos Sinos. E-mail: anarosa208@yahoo.com.br.
[4] Doutorando em Comunicação e Informação pela Universidade Federal do
Rio Grande do Sul e Mestre em Ciências da Comunicação pela Universidade do Vale
do Rios dos Sinos. E- mail: bruno.vinhola@gmail.com.