R E V I S TA  
Revista de Serviço Social  
Programa de Pós-Graduação em Serviço Social  
Curso de Graduação em Serviço Social  
Universidade Federal de Juiz de Fora  
ISSN 1980-8518  
DOSSIÊ:  
Crise civilizatória, alternativas  
em construção e Serviço Social  
VOLUME 24  
NÚMERO 2  
JULHO/DEZEMBRO  
ANO 2024  
EXPEDIENTE  
FOCO E ESCOPO  
CONSELHO EDITORIAL  
A revista Libertas, criada em 2001, é uma  
publicação semestral da Faculdade de Serviço  
Social e do Programa de Pós-Graduação em  
Serviço Social da Universidade Federal de Juiz de  
Fora. Seu objetivo é estimular o intercâmbio da  
produção intelectual, de conteúdo crítico,  
produzida a partir de pesquisas empíricas e  
teóricas, no âmbito brasileiro e internacional,  
sobre temas atuais e relevantes da área do  
Serviço Social e das Ciências Sociais e Humanas,  
com as quais mantem interlocução.  
Alcina Maria de Castro Martins, Instituto  
Superior Miguel Torga, Portugal; Carina Berta  
Moljo, Universidade Federal de Juiz de Fora,  
Brasil; Caterine Reginensi, Ecole Nacionale  
Superieure Agronomique de Toulouse, França ;  
Elizete Menegat, Universidade Federal de Juiz de  
Fora, Brasil; Íris Maria de Oliveira, Universidade  
Federal do Rio Grande do Norte, Brasil; José  
Paulo Netto, Universidade Federal do Rio de  
Janeiro, Brasil; Margarita Rozas Pagaza,  
Universidad Nacional de La Plata, Argentina;  
Maria Aparecida Tardim Cassab, Universidade  
Federal de Juiz de Fora, Brasil; Maria Beatriz  
Abramides, Pontifícia, Universidade Católica de  
São Paulo, Brasil; Maria Patricia Fernandes Kelly,  
Princeton University, EUA; Maria Rosangela  
Batistoni, Universidade Federal de São Paulo,  
Brasil; Marilda Vilella Iamamoto, Universidade  
Estadual do Rio de Janeiro, Brasil; Nicolas Bautes,  
Universite de Caen Normandie, França; Olga  
Mercedes Paez, Universidad Nacional de  
Córdoba, Argentina; Roberto Orlando Zampani,  
Universidad Nacional de Rosário, Argentina;  
Rosangela Nair Carvalho Barbosa, Universidade  
Estadual do Rio de Janeiro; Brasil; Silvia  
Fernandes Soto, Universidad Nacional de Tandil,  
COMISSÃO EDITORIAL  
Drª. Alexandra Aparecida Leite Toffanetto Seabra  
Eiras, Faculdade de Serviço Social, Universidade  
Federal de Juiz de Fora, Brasil. Editora-chefe.  
Drª. Isaura Gomes de Carvalho Aquino,  
Faculdade de Serviço Social, Universidade  
Federal de Juiz de Fora, Brasil. Editora-adjunta.  
Dr. Bruno Bruziguessi Bueno, Faculdade de  
Serviço Social, Universidade Federal de Juiz de  
Fora, Brasil. Editor-adjunto.  
Luciano Cardoso de Souza, Faculdade de Serviço  
Social, Universidade Federal de Juiz de Fora,  
Brasil. Editor-executivo.  
Argentina;  
Xabier  
Arrizabalo  
Montoro,  
Universidad Complutense de Madri, Espanha.  
AVALIADORES  
Adrianyce A. Silva de Sousa [UFF, Niterói,  
[UFVJM, Montes Claros, MG/Brasil]; Fernanda  
Picinin Moreira [UFJF, Juiz de Fora, MG/Brasil];  
Graziela Scheffer [UERJ, Rio de Janeiro/Brasil];  
Gustavo Fagundes [UFJF, Juiz de Fora,  
MG/Brasil]; Haline Fernanda Canelada [UEL,  
Londrina, PR/Brasil]; Hormindo Pereira de Souza  
Junior [UFMG, Belo Horizonte, MG/Brasil]; Inez  
Rocha Zacarias [UFRGS, Porto Alegre, RS/Brasil];  
Jamerson Murillo Anunciação de Souza [UFPE,  
Recife, PE/Brasil]; Jeovana Nunes Ribeiro [UFPB,  
João Pessoa, PB/Brasil]; Jéssica Ribeiro Duboc  
[UFRJ, Rio de Janeiro, RJ/Brasil]; Jhony Zigato  
[UFVJM, Montes Claros, MG/Brasil]; Joana  
Valente Santana [UFPA, Belém, PA/Brasil]; José  
Amilton de Almeida [UERJ, Rio de Janeiro/Brasil];  
José Fernando Siqueira da Silva [UNESP, Franca,  
SP/Brasil]; Joseane Barbosa de Lima [UFJF, Juiz  
de Fora, MG/Brasil]; Joselita Olivia da Silva  
Monteiro [UFAL, Maceió, AL/Brasil]; Juliana  
Fiuza Cislaghi [UERJ, Rio de Janeiro/Brasil];  
Juliana Menezes Maurício [UERJ, Rio de  
Janeiro/Brasil]; Kátia Regina de Souza Lima [UFF,  
Niterói, RJ/Brasil]; Kelly Rodrigues Melatti  
[PUC/SP, São Paulo, SP/Brasil]; Larissa Dahmer  
Pereira [UFF, Niterói, RJ/Brasil]; Luana Siqueira  
[UFRJ, Rio de Janeiro, RJ/Brasil]; Lucas Bezerra  
de Araújo [UFAL, Maceió, AL/Brasil]; Luciana  
Gonçalves Pereira de Paula [UFJF, Juiz de Fora,  
MG/Brasil]; Luciana Maria Cavalcante Melo  
[UNIFESP, Santos, SP/Brasil]; Luiza Miranda  
Furtuoso [UFSJ, São João del-Rei, MG/Brasil];  
Mahalia Gomes de Carvalho Aquino [UFF,  
Niterói, RJ/Brasil]; Marcelo Braz Moraes dos Reis  
[UFRN, Natal, RN/Brasil]; Márcio Paschoino  
Lupatini [UFVJM, Teófilo Otoni, MG/Brasil];  
Marco José de Oliveira Duarte [UFJF, Juiz de  
Fora, MG/Brasil]; Maria Augusta Bezerra da  
Rocha [UFPE, Recife, PE/Brasil]; Maria Carmelita  
Yazbek [PUC/SP, São Paulo, SP/Brasil]; Maria das  
Graças e Silva [UFPE, Recife, PE/Brasil]; Maria  
Fernanda Escurra [UERJ, Rio de Janeiro/Brasil];  
RJ/Brasil]; Alexandre Aranha Arbia [UFJF, Juiz de  
Fora, MG/Brasil]; Aline do Rocio Neves [PUC/PR,  
Curitiba, PR/Brasil]; Álvaro de Azeredo Quelhas  
[UFJF, Juiz de Fora, MG/Brasil]; Ana Lívia Adriano  
[UFF, Niterói, RJ/Brasil]; Ana Livia Souza Coimbra  
[UFJF, Juiz de Fora, MG/Brasil]; Ana Luiza Avelar  
[UFJF, Juiz de Fora, MG/Brasil]; Anderson  
Martins Silva [UFJF, Juiz de Fora, MG/Brasil];  
Andrea Kelmer de Barros [UFVJM, Montes  
Claros, MG/Brasil]; Angela Vieira Neves [UnB,  
Brasília, DF/Brasil]; Anna Paula Bagetti Zeifert  
[UNIJUÍ, Ijuí, RS/Brasil]; Anne Araujo Vilela [UFG,  
Goiânia, GO/Brasil]; Antoniana Dias Defilippo  
Bigogno [UFF, Rio das Ostras, RJ/Brasil]; Bruno  
Bruziguessi Bueno [UFJF, Juiz de Fora,  
MG/Brasil]; Caio Cezar Cunha [UEL, Londrina,  
PR/Brasil]; Carina Berta Moljo [UFJF, Juiz de Fora,  
MG/Brasil]; Carlos Antonio de Souza Moraes  
[UFF, Niterói, RJ/Brasil]; Carlos Hortmann [ISCTE,  
Lisboa/Portual]; Clara Barbosa de Oliveira Santos  
[UFRJ, Rio de Janeiro, RJ/Brasil]; Cláudia Correia  
Coelho [UFRGS, Porto Alegre, RS/Brasil]; Cláudia  
Mônica dos Santos [UFJF, Juiz de Fora,  
MG/Brasil]; Cristiane Silva Tomaz [UFOP, Ouro  
Preto, MG/Brasil]; Cristina Simões Bezerra [UFJF,  
Juiz de Fora, MG/Brasil]; Daniela Leonel de Paula  
Mendes [UFJF, Juiz de Fora, MG/Brasil]; Daniele  
Batista Brandt [UERJ, Rio de Janeiro/Brasil];  
Danielle Viana Lugo Pereira [UFPB, João Pessoa,  
PB/Brasil]; Davi Machado Perez [UFOP, Ouro  
Preto, MG/Brasil]; Ednéia Alves de Oliveira  
[UFJF, Juiz de Fora, MG/Brasil]; Elcemir Paço  
Cunha [UFJF, Juiz de Fora, MG/Brasil]; Elizete  
Menegat [UFJF, Juiz de Fora, MG/Brasil]; Elziane  
Olina Dourado [UERJ, Rio de Janeiro/Brasil];  
Erika de Oliveira Silva [UFAL, Maceió, AL/Brasil];  
Everton Melo da Silva [UFAL, Maceió, AL/Brasil];  
Fábio da Silva Calleia [UFJF, Juiz de Fora,  
MG/Brasil]; Fábio do Nascimento Simas [UFF,  
Niterói, RJ/Brasil]; Fábio Fraga dos Santos  
Maria Lúcia Miranda Afonso [UNA, Belo  
Horizonte, MG/Brasil]; Maria Rosângela  
Batistoni [UNIFESP, São Paulo, SP/Brasil]; Marina  
Maciel Abreu [UFMA, São Luís, MA/Brasil];  
Marina Monteiro de Castro e Castro [UFJF, Juiz  
de Fora, MG/Brasil]; Marina Valéria Delage  
Vicente Mancini [UFRJ, Rio de Janeiro, RJ/Brasil];  
Mônica Aparecida Grossi [UFJF, Juiz de Fora,  
MG/Brasil]; Monique de Carvalho Cruz [UFRJ, Rio  
de Janeiro, RJ/Brasil]; Nailsa Maria Souza Araújo  
[UFS, São Cristóvão, SE/Brasil]; Nanci Lagioto  
Hespanhol Simões [UFJF, Juiz de Fora,  
MG/Brasil]; Nanci Soares [UNESP, Franca,  
SP/Brasil]; Natália Perdomo dos Santos [UERJ,  
Rio de Janeiro/Brasil]; Nayara de Holanda Vieira  
[UFPI, Teresina, PI/Brasil]; Nicole Alves Espada  
Pontes [UFPE, Recife, PE/Brasil]; Nicole Cristina  
Oliveira Silva [UFJF, Juiz de Fora, MG/Brasil];  
Ozileia Cardoso da Silva [UFRN, Natal, RN/Brasil];  
Patricia da Silva Coutinho [UFJF, Juiz de Fora,  
MG/Brasil]; Paula Kapp Amorim [UFF, Rio das  
Ostras, RJ/Brasil]; Pedro Gomes Barbosa [UFJF,  
Juiz de Fora, MG/Brasil]; Rachel dos Santos  
Zacarias [FIVJ, Juiz de Fora, MG/Brasil]; Rachel  
Gouveia Passos [UFRJ, Rio de Janeiro, RJ/Brasil];  
Rafaela Barbosa de Oliveira Henriques [UFF,  
Niterói, RJ/Brasil]; Raphael Dutra Bazarello  
[UFJF, Juiz de Fora, MG/Brasil]; Raquel Cristina  
Lucas Mota [UFVJM, Montes Claros, MG/Brasil];  
Raquel Raichelis Degenszajn [PUC/SP, São Paulo,  
SP/Brasil]; Regina Celia Tamaso Mioto [UFSC,  
Florianópolis, SC/Brasil]; Renata de Oliveira  
Cardoso [UFF, Rio das Ostras, RJ/Brasil]; Renata  
dos Santos Alencar [UFPA, Belém, PA/Brasil];  
Roberto Coelho do Carmo [UFOP, Ouro Preto,  
MG/Brasil]; Rodrigo Fernandes Ribeiro [UFOP,  
Ouro Preto, MG/Brasil]; Rodrigo Gonçalves  
Bigogno [UENF, Campos dos Goytacazes,  
RJ/Brasil]; Ronaldo Vielmi Fortes [UFJF, Juiz de  
Fora, MG/Brasil]; Rosana Mirales [UNIOESTE,  
Cascavel, PR/Brasil]; Rosangela Gonzaga [UFF,  
Niterói, RJ/Brasil]; Rose Leite [UFRJ, Rio de  
Janeiro, RJ/Brasil]; Sabrina Pereira Paiva [UFJF,  
Juiz de Fora, MG/Brasil]; Sofia Laurentino  
Barbosa Pereira [UFPI, Teresina, PI/Brasil];  
Susana Maria Maia [UFF, Rio das Ostras,  
RJ/Brasil]; Thaís Luiz Vargas [UFRJ, Rio de  
Janeiro, RJ/Brasil]; Thaisa Teixeira Closs [PUC/RS,  
Porto Alegre, RS/Brasil]; Valéria Lucília Forti  
[UERJ, Rio de Janeiro/Brasil]; Vanessa Follmann  
Jurgenfeld [UFVJM, Montes Claros, MG/Brasil];  
Vânia Noeli Ferreira de Assunção [UFF, Rio das  
Ostras, RJ/Brasil]; Vicente Paulo dos Santos Pinto  
[UFJF, Juiz de Fora, MG/Brasil]; Victor Miranda  
Elias [IBC, Rio de Janeiro, RJ/Brasil]; Victor  
Salomão Lacerda Brandão [UFJF, Juiz de Fora,  
MG/Brasil]; Viviane Sousa Pereira [UFJF, Juiz de  
Fora, MG/Brasil]; Wécio Pinheiro Araújo [UFPB,  
João Pessoa, PB/Brasil]; Yolanda Guerra [UFRJ,  
Rio de Janeiro, RJ/Brasil].  
Universidade Federal de Juiz de Fora  
Faculdade de Serviço Social  
Programa de Pós-graduação em Serviço Social  
Editores:  
Alexandra Aparecida Leite Toffanetto Seabra Eiras (editora-chefe);  
Isaura Gomes de Carvalho Aquino (editora-adjunta);  
Bruno Bruziguessi Bueno (editor-adjunto);  
Luciano Cardoso de Souza (editor-executivo).  
Editor de Leiaute:  
Luciano Cardoso de Souza.  
IMAGEM DA CAPA: SOUZA, Luciano Cardoso de. A mãe de todas as lutas, 2023.  
ARTE CAPA E CONTRACAPA: Luciano Cardoso de Souza.  
Juiz de Fora/MG, dezembro, 2024.  
FICHA CATALOGRÁFICA  
Libertas / Universidade Federal de Juiz de Fora, Programa de Pós-graduação em Serviço Social,  
Curso de graduação em Serviço Social. n. 1 (abril, 2001) .  
Juiz de Fora, ano 2024 –  
v. 24, n. 2.  
Semestral  
Resumo em português e inglês  
Vinculada ao Programa de Pós-graduação em Serviço Social e ao Curso de Graduação em  
Serviço Social.  
Versão online ISSN 1980-8518  
1. Serviço Social. 2. Periódico. I. Universidade Federal de Juiz de Fora, Programa de Pós-Graduação em  
Serviço Social. II. Universidade Federal de Juiz de Fora, Curso de Graduação em Serviço Social.  
Publicação indexada em:  
Sumário  
X
Editorial  
Dossiê temático:  
Crise civilizatória, alternativas em construção e  
Serviço Social  
Visões seminais do capitalismo contemporâneo: 387  
aproximações e distanciamentos  
Renato de Brito Gomes  
Políticas hídricas para o Nordeste: tendências e desafios atuais 404  
Gabriela Alves do Nascimento Silva  
Maria das Graças e Silva  
Sandra Maria Batista Silveira  
Más allá de la crisis: la energía como disputa y como lucha 426  
Laura Isabel Serna Agudelo  
Erika Barón Rodríguez  
Reforma agrária e alternativas à fome: 444  
o Plantio Solidário na Zona da Mata Mineira  
Mônica Aparecida Grossi  
Michelle Neves Capuchinho  
Paula Rocha de Souza  
Vitória Nacarate Machado  
Maria Eduarda Dias  
El ecologismo popular y campesinocomo marco para el movimiento 460  
por la soberanía alimentaria: el caso de “Nos Plantamos” (España)  
David Gallar Hernández  
Isabel Vara Sánchez  
Andrés Muñoz Rico  
Uma análise do caso Braskem e da exploração da natureza 473  
à luz do pensamento de Mészáros  
Elida Janaina Barbosa Rodrigues Pimentel  
Luana Cavalcante Pinho  
A perspectiva autogestionária no Minha Casa Minha Vida Entidades 497  
e a participação popular  
Geisa Elmokdisi Pedrosa Bordenave  
O familismo na assistência social como resposta 510  
do capital à crise estrutural  
Raíssa Cristina Arantes  
Daniella Borges Ribeiro  
Tema Livre  
Os efeitos da violência interparental nas crianças: o olhar de uma 534  
comissão de proteção de crianças e jovens (CPCJ) em Portugal  
Ana Sofia Carvalho Pinto  
Eva Raquel Xavier de Melo Gil Chaves  
Cristiana Dias de Almeida  
Mónica Alexandra Vidal Teixeira  
Racismo estrutural e encarceramento em massa no Brasil 553  
Ingrid Medeiros Lustosa Diniz Ribeiro  
Rosilene Marques Sobrinho de França  
Determinação social da saúde e Sífilis gestacional em Campos, RJ: 570  
particularidades de classe, raça, gênero e território  
Nilene dos Santos Souza  
Carlos Antonio de Souza Moraes  
Assistência multiprofissional em saúde e prontuário hospitalar: 590  
elementos para a reflexão no Serviço Social  
Marcela Gonçalves de Araújo  
Marina Monteiro de Castro e Castro  
A pesquisa sobre o método marxista no Serviço Social brasileiro 608  
Michael Gonçalves Cordeiro  
Conservadorismo enquanto ideologia-política 626  
e peleja histórica do Serviço Social  
Francisco Flavio Eufrazio  
O fenômeno do empreendedorismo no Serviço Social brasileiro: 647  
notas exploratórias  
Carina de Santana Alves  
Vinicius Pinheiro de Magalhães  
Desigualdade e reconhecimento no atual contexto 661  
da economia política  
Antônio Dimas Cardoso  
Máximo Alessandro Mendes Ottoni  
A nova ofensiva contra o trabalho na contemporaneidade e a validade 673  
histórico-analítica da teoria marxiana da crise  
Fabiana Alcântara Lima  
Exploração e jornada de trabalho em Marx: 691  
mais-valia como noção de mais-tempo  
Silvio Aparecido Redon  
Eliane Christine Santos de Campos  
Para uma crítica à “Sociedade de consumo” e ao fim da transcendência 709  
da alienação em Jean Baudrillard  
Dariane Cordeiro de Araújo  
Marlon Garcia da Silva  
Entrevista  
Fundamentos do Serviço Social e formação profissional: 734  
Entrevista com Maria Carmelita Yazbek  
Entrevistadora: Thaisa Closs  
Editorial  
Crise civilizatória, alternativas em construção e  
Serviço Social  
Finalizamos o ano de 2024. Ano conturbado no plano geopolítico, pelas disputas e  
guerras em andamento na Europa e no Oriente Médio, ameaças que tangenciam  
inequivocamente à possibilidade real de uma autodestruição humana.  
Os votos de um novo ano acompanhado de paz soariam bem destoantes nesta realidade,  
não fossem as práticas dos sujeitos que continuam agindo, construindo e disputando as  
alternativas sociais existentes visando a um projeto societário voltado para a coletividade,  
assentado em uma materialidade que democratize o acesso à riqueza socialmente produzida,  
fundamento real da emancipação humana e política.  
Conforme escrevemos na chamada para este número da Libertas, a crise estrutural do  
capital vem se apresentando através de seus múltiplos aspectos – as chamadas crises ambiental  
e climática, crise urbana, energética, etc. – evidenciando a destrutividade do capital sobre todas  
as dimensões da vida. Diante disso, torna-se urgente e indispensável dar visibilidade às  
alternativas em construção através das mais diversas iniciativas – sejam elas desenvolvidas no  
campo ou na cidade, em qualquer área do conhecimento – que apontem para novos horizontes  
civilizatórios.  
Neste sentido, o dossiê impulsionou o debate e a análise acerca do crítico momento  
histórico em que vivemos, visibilizando algumas alternativas que estão sendo construídas e as  
contribuições do Serviço Social nesse processo.  
Neste número 2, do Volume 24 da Libertas, apresentamos as “Visões seminais do  
capitalismo contemporâneo: aproximações e distanciamentos”, artigo escrito por Renato  
Gomes, que coteja concepções de Ernest Mandel, István Mészáros, David Harvey e François  
Chesnais, contribuindo para o debate “em relação à noção de equilíbrio/desequilíbrio e  
estabilidade/instabilidade, na caracterização da crise do capitalismo contemporâneo e sobre o  
fato de ele ter encontrado ou não barreiras intransponíveis ao desenvolvimento das forças  
produtivas”.  
DOI: 10.34019/1980-8518.2024.v24.47003  
Esta obra está licenciada sob os termos  
Recebido em: 23/12/2024  
Aprovado em: 23/12/2024  
Editorial  
Avançamos para temas que dialogam com a realidade latino-americana e europeia,  
textos que analisam o acesso aos recursos hídricos e energéticos; o direito à moradia; a  
exploração da natureza no capitalismo; e artigos que tratam da questão da fome e da soberania  
alimentar, na perspectiva das disputas e lutas sociais e populares.  
Assim, apresentamos o artigo sobre as “Políticas hídricas para o Nordeste: tendências e  
desafios atuais”, de Gabriela Alves do Nascimento Silva, Maria das Graças e Silva e Sandra  
Maria Batista Silveira, que analisa as propensões de implementação de políticas públicas  
voltadas para a questão hídrica na região Nordeste no período de 2016 à 2024, levando em conta  
o contexto atual que perpassa a questão ambiental, como a crise climática, e as diferentes  
estratégias adotadas pelo Estado em relação às políticas sociais. Na sequência, temos a  
importante colaboração de duas trabajadoras sociales colombianas, Laura Isabel Serna  
Agudelo e Erika Barón Rodríguez, que expõem a “crise ecológica, ambiental e energética  
como expressões concretas da relação natureza-humanidade (...) e os esforços de alguns atores  
para construir uma sociedade que transite para um modelo de justiça socioecológica”. Em seu  
artigo, intitulado “Mas alla de la crisis: la energia como disputa y como lucha”, elas apresentam  
e analisam o “Movimiento Nacional Constituyente por la Democracia Energética”, experiência  
pioneira de organização coletiva em prol da disputa pela democracia energética, na Colômbia.  
O artigo “Reforma agrária e alternativas à fome: o plantio solidário na zona da mata  
mineira”, escrito por Mônica Grossi, Michelle Capuchinho, Paula Rocha de Souza, Vitória  
Nacarate Machado e Maria Eduarda Dias, objetiva “discutir a reforma agrária popular do  
MST e a construção de alternativas à fome no Brasil, destacando a análise da experiência  
realizada pelo MST na zona da mata mineira, intitulada Plantio Solidário”, compartilhando os  
esforços do Movimento em prol de práticas produtivas agroecológicas. Neste campo temático,  
o artigo “El ecologismo popular y campesino como marco para el movimiento por la soberania  
alimentaria: El caso ‘Nos plantamos’”, de David Gallar Hernández, Isabel Vara Sánchez e  
Andrés Muñoz Rico, apresenta o movimento “Nos Plantamos”, da Espanha, como uma  
iniciativa de organizações populares que visa defender um modelo alternativo de produção  
agrícola baseado na agroecologia e na soberania alimentar frente ao modelo de produção  
representado pelos grandes grupos capitalistas.  
XI  
Já o artigo “Uma análise do caso Braskem e a exploração da natureza à luz do  
pensamento de Mészáros”, de Elida Janaina Barbosa Rodrigues Pimentel e Luana  
Cavalcante Pinho, faz uma análise fundamental sobre um dos casos que caracterizam a crise  
ambiental no Brasil atualmente, o processo de exploração de sal-gema no município de Maceió-  
AL, que evidencia o padrão depredador do modelo extrativo mineral, evidenciando a forma  
Crise civilizatória, alternativas em construção e Serviço Social  
com que o capital se apropria da natureza.  
Por sua vez, Geisa Bordenave apresenta-nos “A perspectiva autogestionária do Minha  
Casa Minha Vida Entidades e a participação popular”, trazendo elementos para a reflexão sobre  
“as possibilidades de participação popular a partir desta vertente do programa federal (...)”  
Considerando a crise do capital e os compromissos ético-políticos do Serviço Social, esse texto  
também realiza uma análise sobre “os limites e possibilidades de contribuições para a  
construção de cidades mais justas e democráticas”.  
Por fim, apresentamos o artigo de Raíssa Cristina Arantes e Daniela Borges Ribeiro  
sobre “O familismo na assistência social como resposta do capital à crise estrutural”, com  
enfoque nos cuidadores de usuários do Benefício de Prestação Continuada (BPC), na Política  
Nacional de Assistência Social. Segundo as autoras, “os dados apontam a intensificação da  
responsabilização familiar frente à crise estrutural do capital, escamoteada pela retórica do  
fracasso familiar”.  
Na sessão “Tema livre” apresentamos um conjunto de artigos que dialogam diretamente  
com a área de Serviço Social. O artigo “Os efeitos da violência interparental nas crianças: o  
olhar de uma comissão de proteção de crianças e jovens em Portugal”, escrito por Ana Sofia  
Carvalho Pinto, Eva Raquel Xavier de Melo Gil Chaves, Cristiana Dias de Almeida e  
Mônica Alexandra Vidal Teixeira, destaca elementos do trabalho profissional com crianças e  
jovens, e acerca da sociabilidade que atravessa as famílias além-mar. Aqui, no Brasil, ratifica-  
se a premência de análises no âmbito da relação raça/etnia, gênero e classe social, conforme  
destacado nos artigos “Racismo estrutural e encarceramento em massa no Brasil” (sob a autoria  
de Ingrid Medeiros Lustosa Diniz Ribeiro e Rosilene Marques Sobrinho de França) e  
“Determinação social da saúde e sífilis gestacional em Campos, RJ: particularidades de classe,  
raça, gênero e território”, escrito por Nilene dos Santos Souza e Carlos Antonio de Souza  
Moraes. Por sua vez, as autoras Marcela Gonçalves deAraújo e Marina Monteiro de Castro  
e Castro tratam da inserção do Serviço Social na área da saúde no artigo “Assistência  
multiprofissional em saúde e prontuário hospitalar”, discorrendo sobre a “categoria da  
linguagem e a questão do sigilo profissional, além de fazer apontamentos sobre a sociabilidade  
capitalista e o impacto da pandemia de covid-19 na digitalização dos prontuários”.  
Ainda na área de Serviço Social apresentamos três artigos cujos debates contribuem  
para o entendimento de questões atuais que atravessam a profissão no Brasil, são eles: “A  
pesquisa sobre o método marxista no Serviço Social brasileiro” (sob a autoria de Michael  
Gonçalves Cordeiro), “Conservadorismo enquanto ideologia-política e peleja histórica do  
Serviço Social” (escrito por Francisco Flavio Eufrazio) e “O fenômeno do  
XII  
Libertas, Juiz de Fora, v. 24, n. 2, p. X-XIII, jul./dez. 2024. ISSN 1980-8518  
Editorial  
empreendedorismo no Serviço Social brasileiro” (sob a autoria de Carina de Santana Alves e  
Vinicius Pinheiro de Magalhães).  
Fechamos este número com quatro artigos que nos remetem à produção no âmbito da  
teoria social histórico-crítica, “Desigualdade e reconhecimento no atual contexto da economia  
política” (escrito por Antônio Dimas Cardoso e Máximo Alessandro Mendes Ottoni), “A  
nova ofensiva contra o trabalho na contemporaneidade e a validade histórico-analítica da teoria  
marxiana da crise” (sob a autoria de Fabiana Alcântara Lima), “Exploração e jornada de  
trabalho em Marx: mais-valor como noção de mais tempo” (escrito por Sílvio Aparecido  
Redon e Eliane Christine Santos de Campos) e “Para uma crítica à sociedade de consumo e  
ao fim da transcendência da alienação em Jean Baudrillard” (sob a autoria de Dariane Cordeiro  
de Araújo e Marlon Garcia da Silva).  
Registramos uma rica entrevista realizada por Thaísa Closs que evidencia a trajetória e  
o contributo indispensável da professora Maria Carmelita Yazbek ao Serviço Social  
brasileiro, com ênfase no debate sobre os fundamentos históricos e teórico-metodológicos, mas  
não só, considerando o escopo de sua produção e intercâmbio internacional que formou e  
impulsionou assistentes sociais e docentes, neste e em outros países.  
A imagem que compõe a capa deste número – registrada por Luciano Cardoso de  
Souza no Assentamento Denis Gonçalves, do MST – nos lembra que a maior e mais importante  
de todas as lutas é pela preservação da vida e do gênero humano oriundos da Terra, “nossa  
Mãe”, na disposição de agirmos em prol da dissolução de todos os hábitos, conflitos e  
ideologias que levam à exploração e destruição de nosso planeta e, consequentemente, de nós  
mesmos.  
XIII  
Desejamos que os artigos que se seguem possam contribuir para reflexão acerca do atual  
estágio de crise civilizatória pelo qual passamos e, ao mesmo tempo, que sejam canais de  
socialização das diferentes experiências de resistência, de publicização das lutas e denúncias  
frente a este cenário em diferentes regiões do mundo, práticas relevantes e mais condizentes à  
expectativa de fraternidade entre os povos e de convivência pacífica. Boa leitura!  
Juiz de Fora, 30 de dezembro de 2024.  
Alexandra Eiras, Bruno Bruziguessi, Isaura Aquino e Luciano Souza.  
Visões seminais do capitalismo contemporâneo:  
aproximações e distanciamentos  
Seminal views of contemporary capitalism: similarities and differences  
Renato de Brito Gomes*  
Resumo: O artigo expõe algumas das visões  
seminais do funcionamento do capitalismo  
Abstract: The article presents some seminal  
views on the functioning of contemporary  
capitalism. The aim is to highlight the  
similarities and differences among the major  
works of authors within the scope of Marxist  
political economy: Ernest Mandel, István  
Mészáros, David Harvey, and François  
Chesnais. It concludes that similarities and  
differences can be identified regarding the use  
of categories from the “regulation school,” in  
relation to the notions of equilibrium/imbalance  
and stability/instability, in characterizing the  
crisis of contemporary capitalism and whether  
it has encountered insurmountable barriers to  
the development of productive forces and,  
ultimately, to the power of finance. Considering  
these themes, the article seeks to present each  
author’s perspective and frame them within  
specific parameters where convergences and  
divergences are explored, as well as the  
elements supporting them.  
contemporâneo.  
A
intenção  
é
notar  
aproximações e distanciamentos entre as  
principais obras de autores no âmbito da  
economia política marxista: Ernest Mandel,  
István Mészáros, David Harvey e François  
Chesnais. Conclui-se que as similitudes e  
diferenças podem ser apontadas no que diz  
respeito ao uso das categorias da “escola da  
regulação”, em relação  
equilíbrio/desequilíbrio  
à
noção de  
e
estabilidade/instabilidade, na caracterização da  
crise do capitalismo contemporâneo e sobre o  
fato dele ter encontrado ou não barreiras  
intransponíveis ao desenvolvimento das forças  
produtivas e, por fim, ao poder das finanças.  
Considerando estas temáticas, procura-se expor  
a leitura de cada autor e enquadrá-las dentro de  
determinados parâmetros em que são buscadas  
convergências e divergências, bem como  
apontados os elementos que as embasam.  
Palavras-chaves:  
Contemporâneo; Ernest Mandel; István  
Mészáros; David Harvey; François Chesnais.  
Capitalismo  
Keywords: Contemporary capitalism; Ernest  
Mandel; István Mészáros; David Harvey;  
François Chesnais.  
*
Economista. Mestre em Serviço Social pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Doutorando em  
Serviço Social pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ). ORCID: https://orcid.org/0009-0000-3978-  
8999. O presente trabalho foi realizado com apoio da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível  
Superior – Brasil (CAPES) – Código de Financiamento 001.  
DOI: 10.34019/1980-8518.2024.v24.45429  
Esta obra está licenciada sob os termos  
Recebido em: 30/07/2024  
Aprovado em:21/11/2024  
Renato de Brito Gomes  
Introdução  
Neste artigo expõe-se algumas das visões seminais do funcionamento do capitalismo  
contemporâneo. A intenção será notar aproximações e distanciamentos entre leituras de autores  
no âmbito da economia política marxista: Ernest Mandel, István Mészáros, David Harvey e  
François Chesnais.  
Ressalta-se que não serão analisadas a integralidade das obras e sim as produções de  
maior fôlego e que, simultaneamente, inspiraram e ainda inspiram maior número de estudos e  
debates no Serviço Social. Em relação a E. Mandel debruça-se sobre O Capitalismo Tardio  
(1982) e A crise do capital (1990); no caso de I. Mészáros é incontornável a análise de Para  
além do capital (2011a); já em D. Harvey aborda-se de forma central Condição pós-moderna  
(1992); e, por fim, detêm-se em A mundialização do capital (1996) e outros textos de F.  
Chesnais que vão na direção de mostrar a ampliação do poder das finanças.  
Afirma-se de antemão que a intenção não é congregar as quatro análises em uma  
tentativa de construção de uma síntese fechada que descreveria com perfeição o capitalismo  
contemporâneo. Tal tarefa parece ser em verdade impossível. Isto, contudo, não pode levar a  
pensar que tais análises, embora marcadas por alguns distanciamentos que serão apresentados,  
também não possuam importantes aproximações que podem levar a considerações mais ou  
menos seguras sobre a dinâmica atual do capital.  
388  
Desta forma, ao fim do artigo busca-se comparar as posições dos autores sobre  
problemáticas presentes nas discussões da economia política contemporânea. Uma diz respeito  
ao valor heurístico da noção de equilíbrio e de desequilíbrio, outra fala sobre quais são de fato  
as dimensões da crise contemporânea do capital e se, por outro lado, ele já haveria encontrado  
limites intransponíveis ao seu desenvolvimento. Por fim, aponta-se também como a percepção  
dos fenômenos ligados as finanças vão paulatinamente ganhando maior peso nas leituras.  
A onda longa com tonalidade regressiva: a leitura de Mandel  
Ernest Mandel realiza uma apurada apreensão da dinâmica capitalista do século XX.  
Demonstra-se como foi um pioneiro na percepção do fim dos “anos gloriosos” do pós-segunda  
guerra em que a economia passaria a um período longo de crise.  
A chave heurística de sua análise é a noção de desequilíbrio, sendo que alertava que os  
esquemas de reprodução do Livro 2 d’O capital (2014) têm como função demonstrar que o  
capitalismo pode existir de forma sustentável por longo prazo. Deles não deriva uma noção de  
que a economia tem sua dinâmica a partir de sucessivos equilíbrios. O movimento do capital  
leva à existência de “desequilíbrios constantes” (Mandel, 1982, p. 17).  
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Visões seminais do capitalismo contemporâneo: aproximações e distanciamentos  
O desenvolvimento do capitalismo depende de algumas variáveis parcialmente  
independentes (Mandel, 1982, p. 25-7) e os superlucros são um elemento particularmente  
importante. No capitalismo tardio estão associados as inovações técnicas – que “permite[m] a  
redução do uso da força de trabalho relativamente ao capital e promove a elevação da  
produtividade do trabalho” (Silva; Araújo; Duarte, 2022, p. 60) – e podem ser auferidos de  
forma prolongada, daí a existência de duas taxas de lucro. As “rendas tecnológicas” são obtidas  
por inovações da terceira revolução industrial, em que ocorre uma “fusão da ciência, tecnologia  
e produção” (Mandel, 1982, p. 151).  
Aspecto conhecido em Mandel é a incorporação crítica da teoria das ondas longas,  
conhecidas pelas formulações de N. Kondratiev (Araujo, 2001). O capitalismo passaria por  
movimentos cíclicos menores (entre 7 e 10 anos) e outros de aproximados 50 anos, estes mais  
importantes para a sua periodização. Houve a onda inicial que compreende a revolução  
industrial, o momento posterior marcado pela crise de 1847 até 1890 (primeira revolução  
tecnológica), o período que segue até a Segunda Guerra Mundial, influenciado pela segunda  
revolução tecnológica, seguido pelos anos após a segunda guerra até o fim da década de 1960,  
marcados pela terceira revolução tecnológica para, por fim, chegarmos a atual onda regressiva  
(Mandel, 1982, p. 83-4/92-3).  
Sem a compreensão do capitalismo tardio perdem-se determinações que elucidam o  
período posterior. Inicialmente aponta-se a redução de custos associada ao planejamento como  
uma tônica, que ocorreu em termos empresariais, mas, também, através de medida  
macroeconômicas, em que havia tentativas de “controle” da demanda e da oferta com o Estado  
sendo ente central. Adicionalmente, tem-se uma centralização do capital onde “a empresa  
multinacional tornou-se a forma organizativa determinante” (Mandel, 1982, p. 223).  
A supercapitalização é abordada para entender a penetração do capital na esfera da  
circulação, da reprodução e dos serviços, em que é associada à existência de capitais excedentes  
que não encontram investimentos rentáveis à taxa média de lucros (Mandel, 1982, p. 272). Isto  
é, o “capital industrial que não encontrava valorização na própria indústria foi o pré-requisito  
essencial para a expansão dos serviços” (Silva; Araújo; Duarte, 2022, p. 62).  
389  
A dinâmica dos ciclos e das crises são fornecidas por mecanismos causais parcialmente  
independentes. No entanto, em conjunto têm “sua expressão mais clara no movimento cíclico  
da taxa média de lucro”, reflexo das contradições de “todos os momentos do processo de  
produção e reprodução” (Mandel, 1982, p. 309). Não há monocausalidade, trata-se apenas de  
um indicador que pelos seus determinantes representa um momento de síntese.  
Renato de Brito Gomes  
A onda do pós-guerra é reflexo de um aumento da taxa média de lucro. Contudo, não  
poderia ser explicada sem uma menção a relação de forças, tanto o fascismo como a guerra  
possibilitaram um incremento na taxa de exploração. Assim, o “que determina os pontos de  
viragem de expansão e estagnação é a condição geral da luta de classes” (Behring, 2015, p. 41).  
Em relação à inflação tem-se que sua função no período foi gerar estabilidade pelo  
mecanismo da expansão de crédito, que visava intervir sobre o problema da realização do valor  
através da expansão dos meios de pagamentos. Existia uma autonomia relativa entre o “ciclo  
industrial” e o “ciclo do crédito”. Quando havia dificuldade na venda de mercadorias ocorria  
uma “relativamente autônoma” ampliação do crédito (Mandel, 1982, p. 309-32).  
Enfim, a economia dava sinais de estagnação, isto era sintetizado pela queda da taxa  
média de lucro no fim dos anos 1960, expressando novas determinações do capitalismo  
(Mandel, 1982, p. 48-50). Ocorria “[...] a transição de uma ‘onda longa com tonalidade  
basicamente expansionistaa uma ‘onda longa com tonalidade basicamente de estagnação’, por  
volta dos anos 1966/67” (Mandel, 1982, p. 126). Assim, “uma solução temporária para o  
problema da centralização internacional do capital só pode ser conseguida às expensas da classe  
operária” (Mandel, 1982, p. 240). O que o leva a concluir que “nos próximos anos um aumento  
(...) [da taxa de lucro] só pode ser assegurado pela elevação da taxa de mais-valia, ou seja, por  
uma exploração intensificada da classe operária” (Mandel, 1982, p. 240).  
390  
A transição de uma “onda longa com tonalidade expansionista” para uma  
“onda longa com tonalidade de estagnação” está hoje intensificando a luta de  
classes internacional. O principal objetivo da política econômica burguesa não  
é mais anular os antagonismos sociais, mas sim descarregar sobre os  
assalariados os custos do reforçamento de cada indústria capitalista nacional  
na luta concorrencial. O mito do pleno emprego permanente está se  
desvanecendo. (…) A luta pela taxa de mais-valia desloca-se para o centro  
dinâmico da economia e da sociedade (Mandel, 1982, p. 332).  
A economia experimenta um período de estagnação e crises. As crises “não são nem o  
resultado do acaso nem o produto de elementos exógenos”, derivam da “lógica imanente do  
sistema – embora fatores exógenos ou acidentais desempenhem evidentemente um papel nas  
particularidades de cada ciclo” (Mandel, 1990, p. 7). Eventos singulares não podem ser os  
elementos explicativos, “para que o detonador cumpra seu papel de catalisador, é preciso que  
toda uma série de pré-condições componentes de uma situação de crise estejam presentes”  
(Araujo, 2014, p. 111).  
Ainflação aumentou nos anos 1970 e os principais países capitalistas aplicaram políticas  
de austeridade. Engendram aquilo que Mandel (1990, p. 13) denominou como “sincronização  
internacional do ciclo industrial” em um momento depressivo. Passavam a existir “dificuldades  
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Visões seminais do capitalismo contemporâneo: aproximações e distanciamentos  
crescentes para o capital em compensar a elevação da composição orgânica do capital por uma  
alta contínua da taxa de mais-valia”, em que decorre uma redução da taxa média de lucro que  
“termina por determinar a inversão da ‘onda longa’” (Mandel, 1990, p. 27). Torna-se límpida a  
explicação da crise através do movimento do capital e sua lógica de valorização.  
Havia um elemento gerador de desordem que contribuía para a estagnação: “os grandes  
movimentos internacionais especulativos de capitais flutuantes” (Mandel, 1990, p. 86). Atentou  
para tais fenômenos e suas consequências para o ciclo econômico, em que o movimento é  
gerado principalmente pela atuação das multinacionais no mercado financeiro. Alertava que  
“em períodos de crise, o poderio do capital financeiro, exercido frequentemente de maneira  
direta pelos bancos, cresce desmesuradamente” (Mandel, 1990, p. 187).  
São levantados argumentos sobre se haveria alguma indicação de quando este ciclo de  
estagnação se esgotaria ou mesmo se o capitalismo poderia experimentar novamente um ciclo  
expansivo. A resposta parece ser negativa para ambas (Mandel, 1990, p. 77 e 73), contudo, não  
existe “um calendário de ascensão e crise do capital” (Behring, 2015, p. 41).  
A crise estrutural do capital: a interpretação de Mészáros  
Nesta seção expõe-se as contradições que levam István Mészáros a afirmar que a partir  
da década de 1970 o sociometabolismo do capital passa a esbarrar em limites estruturais,  
advindo daí sua caracterização de crise estrutural. Para Mészáros (2011a, p. 606) o elemento  
diferencial do sistema do capital foi “[...] a completa subordinação das necessidades humanas  
à reprodução do valor de troca – no interesse da autorrealização ampliada do capital”. O autor  
afirma que o capitalismo consegue “separar o valor de uso do valor de troca, sob a supremacia  
do último”, e assim ocorre que “as limitações das necessidades dadas não tolhiam seu  
desenvolvimento” (Mészáros, 2011a, p. 606). Além disso, há uma “disjunção entre produção  
para as necessidades sociais e a autorreprodução do capital” (Maranhão, 2010, p. 629).  
A “taxa de utilização descrente no capitalismo” é ponto central, estaria já “diretamente  
implícita nos avanços realizados pela própria produtividade” (Mészáros, 2011a, p. 639) e tem  
expressão nas formas de consumo. A necessidade de reprodução faz com exista uma premência  
ao descarte prematuro “muito antes de esgotada sua vida útil” (Mészáros, 2011a, p. 640). Isto  
é, “o que é verdadeiramente vantajoso para a expansão do capital não é um incremento na taxa  
(ou no grau) com que uma mercadoria (…) é utilizada e sim, pelo contrário, o decréscimo de  
suas horas de uso diário” (Mészáros, 2011a, p. 661).  
391  
Manifesta-se na produção atrelada a uma “subutilização crônica” do maquinário que  
tem seu período de amortização diminuído. As inovações tecnológicas são um elemento  
Renato de Brito Gomes  
relevante e aponta um encurtamento no ciclo de substituição do capital fixo. Influencia no uso  
da força de trabalho socialmente disponível através do fenômeno do desemprego. Enfim, “[...]  
a taxa de utilização decrescente é uma das leis tendenciais mais importantes e abrangentes do  
desenvolvimento capitalista” (Mészáros, 2011a, p. 675).  
A explicação do sociometabolismo do capital já foi realizada através da categoria de  
“persona do capital”, destacando seus “elementos objetivos e sistêmicos (…) [que] não mudam  
com o mudar de nome das personas e precisam estar presentes para a perpetuação do sistema  
do capital e a sustentação da lei do valor” (Polese, 2016, p. 48), os capitalistas seriam  
“personificações do capital” (Lambertucci; Ersina, 2022, p. 11). Levado às últimas  
consequências, tal argumento indica que “o sistema do capital é singular na história também no  
sentido em que é, na verdade, um sistema de controle sem sujeito. As determinações e os  
imperativos objetivos do capital sempre devem prevalecer contra os desejos subjetivos”  
(Mészáros, 2011a, p. 125).  
Alerta sobre a incontrolabilidade do capital e embora chegue a mencionar o equilíbrio  
como uma contratendência do desequilíbrio (Mészáros, 2011a, p. 653), não há espaço para um  
capitalismo harmonioso (Mészáros, 2011a, p. 662). Tem-se um “metabolismo social anárquico  
e incontrolável” em que “o capital global não se subordina a qualquer noção de equilíbrio”  
(Arbia, 2015, p. 140).  
392  
A linha de menor resistência coloca “em movimento não apenas grandes potenciais  
produtivos, mas também, simultaneamente, forças maciças tanto diversificadas como  
destrutivas” (Mészáros, 2011a, p. 676). A adoção das “práticas capitalistas viáveis” leva a  
desperdícios e a destruição, em suma “transforma as potencialidades das forças produtivas em  
realidades destrutivas” (Rabelo; Segundo, 2004, p. 45). A produção passa a ser “genuinamente  
orientada para o consumo destrutivo” (Mészáros, 2011a, p. 678), em que impera uma  
“irracionalidade no intercâmbio homem/natureza” que converte “as potencialidades da  
emancipação genérica em relação ao ser natural em exploração predatória” (Arbia, 2015, p.  
150). Os elementos destrutivos não abrem espaço para a superação das crises. A tendência  
destrutiva “se torna então modelo de normalidade para a vida cotidiana de todo o sistema”  
(Mészáros, 2011a, p. 693).  
A existência de crises no capitalismo não é algo estranho, nesses momentos ocorre uma  
reorganização de forma a recompor o quadro da acumulação. Em contraste, a atual crise  
estrutural seria determinada por quatro pontos: i) sua amplitude é universal, não se restringe a  
esfera financeira, comercial ou produtiva; ii) estende-se a todo o globo; iii) sua duração no  
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Visões seminais do capitalismo contemporâneo: aproximações e distanciamentos  
tempo é prolongada, contínua e não cíclica; iv) não teria caráter cataclísmico ou ou colapsante,  
seria marcada por um “modo rastejante” (Mészáros, 2011a, p. 795-6).  
Ocorre um “esgotamento do modo de intercâmbio e controle humano sobre as forças da  
natureza desenvolvido sob a égide do capital” (Maranhão, 2010, p. 629), este inconveniente  
“não é (...) tecnológico, mas social” (Rabelo; Segundo, 2004, p. 44). Em uma crise convencional  
o capital busca o manejo das contradições, encontra saídas que amenizam os impasses para a  
acumulação a curto prazo, portanto “o deslocamento das contradições só é possível enquanto a  
crise for parcial, relativa”. O raciocínio leva à conclusão que “uma crise estrutural não está  
relacionada aos limites imediatos mas aos limites últimos de uma estrutura global” (Mészáros,  
2011, p. 797).  
Antes havia “limitações imediatas” que são restrições a alguma dimensão do capital,  
não a sua integralidade, portanto “não pode haver qualquer crise estrutural enquanto este  
mecanismo vital de autoexpansão (…) continuar funcionando” (Mészáros, 2011a, p. 798). No  
novo cenário, “as perturbações e ‘disfunções’ antagônicas, ao invés de serem (...) desarmadas,  
tendem a se tornar cumulativas e (…) estruturais, trazendo com elas um perigoso bloqueio (...)  
de deslocamento das contradições.” Assim, “aquilo com o que nos confrontamos não é mais  
simplesmente ‘disfuncional’, mas potencialmente muito explosivo” (Mészáros, 2011a, p. 800).  
Desdobra sua leitura para a política indicando que a ruína do Estado de bem-estar já  
seria um reconhecimento da crise, haveria uma “crise estrutural de todas as instituições  
políticas”. Afirma que “a crise estrutural do capital se revela como uma verdadeira crise de  
dominação em geral” (Mészáros, 2011a, p. 800). Ressalta ainda “o fato acautelador de que  
qualquer intervenção no campo político – mesmo quando visa a derrubada radical do Estado  
capitalista – terá influência muito limitada na realização do projeto socialista” (Mészáros,  
2011a, p. 125). Existem leituras que afirmam que “a ‘autonomia’ do Estado frente as  
necessidades objetivas da reprodução sociometabólica do capital torna-se um sonho belo”  
(Lambertucci; Ersina, 2022, p. 17), não haveria espaço para uma atuação política não  
integralmente determinada pela imanência do capital.  
393  
Avaliando a crise de 2007/8 Mészáros afirmou que ela se tornaria “muito mais profunda,  
no sentido de invadir não apenas o mundo das finanças globais (…), mas também todos os  
domínios da nossa vida social, econômica e cultural” (Mészáros, 2011b, p. 17). Relacionando  
a sua leitura alertava que o ano de 2007 era “um prenúncio do que eu tinha em mente. Mas  
apenas um prenúncio, porque a crise estrutural do sistema do capital como um todo (…) está  
destinada a piorar consideravelmente” (Mészáros, 2011b, p. 17).  
Renato de Brito Gomes  
A acumulação flexível: o edifício teórico de Harvey  
Nosso interesse central na obra de David Harvey consiste naquilo que denominou por  
período de acumulação flexível, através de categorias da escola da regulação utiliza as  
terminologias de “regime de acumulação” e “modo de regulamentação” (Harvey, 1992, p. 118).  
Estas influências o fazem focar em aspectos de relativa estabilidade. No entanto, a leitura ampla  
de sua obra torna perceptível que para o autor crises são fenômenos recorrentes e “inerentes  
desse modo de produção” (Silva, 2012, p. 193). Há “uma teoria da possibilidade da crise – e  
não uma teoria da necessidade da crise” (Andrade; Palludeto, 2013, p. 573) já que considera  
“relações que permitem estabilizar, harmonizar e dar coerência, ainda que temporária, à forma  
disruptiva da reprodução capitalista” (Couto, 2014, p. 199).  
O “regime de acumulação flexível” está relacionado e em oposição ao “regime de  
acumulação fordista-keynesiano”. Os “anos de ouro” são caracterizados pelo fato de que “[...]  
o fordismo se aliou firmemente ao keynesianismo, e o capitalismo se dedicou a um surto de  
expansões internacionalistas de alcance mundial” (Harvey, 1992, p. 125). Foi possível devido  
a reposicionamentos de atores da economia capitalista: o Estado, os trabalhadores organizados  
e o grande capital corporativo. O que distinguia o fordismo foi  
[...] seu reconhecimento explícito de que produção de massa significava  
consumo de massa, um novo sistema de reprodução da força de trabalho, uma  
nova política de controle e gerência do trabalho, uma nova estética e uma nova  
psicologia, em suma, um novo tipo de sociedade democrática (Harvey, 1992,  
p. 121).  
394  
Percebe sinais da crise no final dos anos 1960, em que ressalta que “a queda da  
produtividade e da lucratividade corporativas depois de 1966 marcou o problema fiscal nos  
Estados Unidos que só seria sanado às custas de uma aceleração da inflação”. No período entre  
1965 e 1973 começava a ficar explícita “a incapacidade do fordismo e do keynesianismo de  
conter as contradições inerentes do capitalismo” (Harvey, 1992, p. 135). Reconhece a queda da  
produtividade e da taxa média de lucro, no entanto não seriam estes os detonadores da mudança.  
O período da crise significava que “[...] na superfície, essas dificuldades podem ser  
melhor apreendidas por uma palavra: rigidez” (Harvey, 1992, p. 135). Isto ocorre em relação  
aos sistemas produtivos, aos mercados, nos gastos do Estado etc. O único elemento “flexível”  
era a política monetária, advindo daí sua explicação do fenômeno inflacionário que  
incrementava o processo de ruína do fordismo. A determinação central estaria relacionada “[...]  
a profunda recessão de 1973 (…) [que] pôs em movimento um conjunto de processos que  
solaparam o compromisso fordista” (Harvey, 1992, p. 140). A crise de 1973 é o detonador que  
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Visões seminais do capitalismo contemporâneo: aproximações e distanciamentos  
encerra o fordismo e dá início a um novo “regime de acumulação”, ao qual denomina de  
acumulação flexível.  
A acumulação flexível (…) é marcada por um confronto direto com a rigidez  
do fordismo. Ela se apoia na flexibilidade dos processos de trabalho, dos  
mercados de trabalho, dos produtos e padrões de consumo. Caracteriza-se pelo  
surgimento de setor da produção inteiramente novos, novas maneiras de  
serviços financeiros, novos mercados e, sobretudo, taxas altamente  
intensificadas de inovação comercial, tecnológica e organizacional (Harvey,  
1992, p. 140).  
O novo regime de acumulação “parece implicar níveis relativamente altos de  
desemprego ‘estrutural’” (Harvey, 1992, p. 141). Ocorre também o “crescente uso do trabalho  
em tempo parcial, temporário ou subcontratado” (Harvey, 1992, p. 143), a tendência seria a de  
“reduzir o número de trabalhadores ‘centrais’ e empregar cada vez mais força de trabalho que  
entre facilmente e é demitida sem custos quando as coisas ficam ruins” (Harvey, 1992, p. 144).  
A acumulação flexível impõe uma produção por demanda e restitui a possibilidade de  
“pequenas fábricas” e de formas de produção “pré-capitalistas”, agora na ponta do processo de  
valorização. A nova flexibilidade permite ao capitalismo acomodar-se a tempos de crise  
intensificando o volume de inovações e explorando novos nichos de mercado. Um dos  
mecanismos para amenizar os efeitos da crise foi a diminuição do tempo de giro do capital,  
associado aos novos métodos de produção que também leva a uma espécie de “intensificação  
do consumo”. Estes processos “parecem estar na base de um notável aumento proporcional do  
emprego no setor de serviços a partir do início dos anos 70” (Harvey, 1992, p. 148).  
Ocorre uma reconfiguração do sistema financeiro global existindo uma sólida  
capacidade de coordenação advinda dos poderes da classe que opera tal processo. A  
flexibilidade começa a entrar no mundo das finanças na década de 1970 e ganha fôlego nos  
anos de 1980, passando a ser condição para a inserção dos países no fluxo internacional de  
capitais.  
395  
Os novos sistemas financeiros implementados a partir de 1972 mudaram o  
equilíbrio de forças em ação no capitalismo global, dando muito mais  
autonomia ao sistema bancário e financeiro em comparação com o  
financiamento corporativo, estatal e pessoal. A acumulação flexível  
evidentemente procura o capital financeiro como poder coordenador mais do  
que o fordismo o fazia. Isso significa que a potencialidade de formação de  
crises financeiras e monetárias autônomas e independentes é muito maior do  
que antes (Harvey, 1992, p. 155).  
Sobre a teorização da passagem entre os “regimes de acumulação”, Harvey (1992, p.  
164) admite que a escola de regulação empreende “pouco ou nenhum esforço”, já o autor faz a  
dinâmica das crises depender de um processo de superacumulação (Harvey, 1992, p. 170-1).  
Em obra anterior constrói uma tentativa de explicação das crises investigadas através do que  
Renato de Brito Gomes  
denominou como “três recortes” (Harvey, 2013). O primeiro associado às contradições entre o  
desenvolvimento das forças produtivas e as relações sociais de produção; o segundo envolve a  
relação entre os ciclos econômicos e a lógica do capital fictício; o último diz respeito à tentativa  
de integração entre geografia e o desenvolvimento desigual. Não se tratam de demarcações que  
ocorrem linearmente no tempo, o “capital enfrenta as crises de superacumulação, financeiras e  
geográficas conjugadamente”, uma melhor aproximação seria a de que existem “camadas’  
reveladas na estrutura do capitalismo” (Botelho, 2014, p. 100).  
A dinâmica econômica seria marcada por cinco momentos: a estagnação, a recuperação,  
a expansão baseada no crédito, a febre especulativa e o crash (Harvey, 2013, p. 448-53). Existe  
um esforço de teorizar sobre os elementos que levam a concretização de uma crise. O que não  
há é a construção de como esses mecanismos mais gerais se aplicariam no caso singular da  
transição da acumulação fordista para a acumulação flexível.  
Por fim, ainda que faça da taxa de lucro um dos elementos da explicação da dinâmica  
da acumulação, não incorpora a análise da queda da taxa de lucro no longo prazo. No caso dessa  
lei geral, Marx teria apresentado contratendências em uma “lista (…) tão longa que torna a  
explicação de ‘leisólida de queda de lucros uma resposta mecânica à inovação para economizar  
trabalho, que permanece uma proposta insuficiente” (Harvey, 2011, p. 82). Da mesma forma  
não considera haver uma “contradição entre as forças produtivas e as relações sociais sob o  
capitalismo” (Couto, 2014, p. 202). Posições possivelmente relacionadas ao fato de que “[...]  
ao se perguntar se o capitalismo se recuperará desta crise, Harvey responde com um sonoro,  
‘sim’” (Silva, 2012, p. 195), pois haveria um “impulso à acumulação [que] (...) tende a superar  
as suas próprias barreiras” (Couto, 2014, p. 208).  
396  
Da mundialização a hegemonia do capital portador de juros: a interpretação de  
Chesnais  
Igualmente influenciado pela “escola da regulação”, François Chesnais aos poucos vai  
tendo no marxismo o instrumental central de seus esforços de análise (Chesnais, 2018, p. 30).  
Procura-se expor o processo que denomina como “mundialização do capital”, ao mesmo tempo  
traz-se sua interpretação mais recente onde o capital portador de juros ganha relevância.  
Inicialmente “os traços característicos da mundialização estão, não tanto no nível do  
comércio internacional, quanto ao nível das empresas, portanto do capital” (Chesnais, 1996, p.  
26). Embora o crescimento do comércio exterior tenha ocorrido, a mundialização seria  
“dominada mais pelo investimento internacional do que pelo comércio exterior” (Chesnais,  
1996, p. 26).  
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Visões seminais do capitalismo contemporâneo: aproximações e distanciamentos  
O crescimento do investimento externo na década de 1980 estava mais associado a  
fusões/aquisições do que a uma expansão produtiva. Haveria um componente central na  
movimentação destes investimentos: “caráter essencialmente ‘intratriádico1’ (…), ao longo da  
década de 1980, se concentrou, em mais de 80%, dentro da área da OCDE” (Chesnais, 1996, p.  
63). A empresa funcional ao processo são as multinacionais ou “empresas-rede” que passaram  
a ter sua atuação influenciadas pela lógica financeira, já que “o rendimento financeiro dos ativos  
é vigiado pelos detentores de carteiras de ações” (Chesnais, 1996, p. 77). Os fluxos do  
Investimento Externo Direto (IED) tem primazia em relação ao comércio externo no setor de  
serviços. Os últimos, contudo, crescem a partir de meados dos anos 1980 relacionados aos  
processos de flexibilização e desregulamentação, sendo a privatização de serviços públicos uma  
“nova fronteira” da acumulação (Chesnais, 1996, p. 186).  
É dada atenção especial à relação entre a mundialização e as finanças, sendo que a  
“esfera financeira” simbolizaria “o posto avançado do movimento de mundialização do capital”  
(Chesnais, 1996, p. 239). O capital monetário consegue uma valorização de tal forma  
“autônoma” que não haveria precedente no capitalismo. Entretanto, apressa-se em anotar que  
“[...] a autonomia do setor financeiro nunca pode ser senão uma autonomia relativa. Os capitais  
que se valorizam na esfera financeira nasceram – e continuam nascendo – no setor produtivo”  
(Chesnais, 1996, p. 241).  
397  
São lembradas a criação de inúmeros mercados e “inovações financeiras”. Bancos e  
instituições financeiras ficam insatisfeitos com seu papel de intermediadores e trilham um  
caminho em que “vão necessariamente abrir a transformação da esfera financeira em campo de  
valorização específico para operações de novo tipo, suscetíveis de proporcionar mais-valia e  
lucros financeiros” (Chesnais, 1996, p. 247). Assim, “as instituições dominantes não são mais  
os bancos, e sim os mercados financeiros e as organizações financeiras que neles atuam”  
(Chesnais, 1996, p. 258) e “constata-se a promoção dos ‘mercadosa instância controladora das  
políticas econômicas nacionais” (Chesnais, 1995, p. 21).  
Os processos associados à mundialização têm efeito geral de “encadeamento depressivo  
profundo”. Aponta a década de 1990 como uma longa depressão, de tendências  
estagnacionistas, e que eventuais retomadas ainda se dariam em um quadro mais geral de baixa  
acumulação. Considerando a forma com que se deu a mundialização dos grupos industriais, das  
formas de comércio e do capital monetário eles “exercem, de modo estrutural, um efeito  
1 A tríade refere-se a Europa, Estados Unidos e Japão.  
Renato de Brito Gomes  
depressivo sobre a acumulação” (Chesnais, 1996, p. 304). Reconhecia-se um modo de  
funcionamento do capitalismo como uma “longa crise rastejante” (Chesnais, 1995, p. 2).  
A mundialização caracteriza-se por determinações que envolvem o capital industrial,  
comercial e monetário, seria “uma fase específica de um processo muito mais longo de  
constituição do mercado mundial em primeiro lugar e, depois, de internacionalização do capital,  
primeiro sob sua forma financeira e, em seguida, sob sua forma de produção no exterior”  
(Chesnais, 1995, p. 6). No início do livro é encontrado uma leitura de Marx que tende a  
estruturar a valorização hegemonizada pelo capital industrial que aos poucos vai reconhecendo  
o lugar central dos “mercados financeiros”. Embora as três formas fenomênicas sejam  
importantes para a precisão da mundialização, em grande medida apresenta-se “como mais uma  
etapa no processo de internacionalização do capital produtivo” (Nakatani, Marques, 2009, p.  
3).  
A incorporação de elementos da economia política marxista parece ter levado o  
economista a um novo lugar sobre o reconhecimento do papel das finanças, passando a falar de  
um “regime de acumulação com dominação financeira” (Chesnais, 1997). O central era  
perceber que “o movimento da acumulação e seu conteúdo econômico e social concreto seriam  
moldados pelas posições econômicas e sociais, concedidas a (…) aquela designada por Marx  
no livro III de O capital sob a expressão “capital portador de juros” (Chesnais, 2002, p. 4).  
398  
O mundo contemporâneo apresenta uma configuração específica de  
capitalismo, no qual o capital portador de juros está localizado no centro das  
relações econômicas e sociais. As formas de organização capitalista mais  
facilmente identificáveis permanecem sendo os grupos industriais  
transnacionais (…), os quais têm por encargo organizar a produção de bens e  
serviços, captar o valor e organizar de maneira direta a dominação política e  
social do capital em face dos assalariados. Mas a seu lado, menos visíveis e  
menos atentamente analisadas, estão as instituições financeiras bancárias, mas  
sobretudo as não bancárias, que são constitutivas de um capital com traços  
particulares. Esse capital busca “fazer dinheiro” sem sair da esfera financeira,  
sob a forma de juros de empréstimo, de dividendos e outros pagamentos  
recebidos a título de posse de ações e, enfim, lucros nascidos da especulação  
bem-sucedida (Chesnais, 2005, p. 35).  
Para chegar-se a tal situação foi preciso um decorrer histórico que contou com a ajuda  
de Estados (liberalização dos fluxos de capital) como um enorme processo de centralização de  
“fundos líquidos não reinvestidos das empresas e das poupanças das famílias” (Chesnais, 2005,  
p. 35-6). Ocorreu uma “acumulação financeira” (relacionada aos lucros do período fordista)  
que acabou por levar ao atual estágio.  
A soberania das finanças levou a uma intensificação da centralização do capital que é  
assessorada pelos grandes investidores financeiros e seus representantes. O capital consegue  
Libertas, Juiz de Fora, v. 24, n. 2, p. 387-403, jul./dez. 2024. ISSN 1980-8518  
Visões seminais do capitalismo contemporâneo: aproximações e distanciamentos  
conquistar uma “exterioridade da produção”, ou seja, “os grandes grupos industriais e  
comerciais são movidos pela lógica de curto prazo do capital financeiro, sendo regulados pela  
cotação das ações de suas empresas” (Nakatani, Marques, 2009, p. 8). Assim, “[...] os grupos  
são dirigidos por pessoas para as quais a tendência da Bolsa é mais importante que qualquer  
outra coisa” (Chesnais, 2005, p. 54). O êxito em termos de desenvolvimento econômico desta  
fase pode ser contestado tendo em vista as modestas taxas de crescimento das principais  
economias capitalistas. No entanto, no que tange a sua capacidade de intervir na distribuição  
do excedente entre as classes seu sucesso é notável.  
Mesmo considerando certos elementos de estabilidade, enxerga nas crises financeiras  
uma das principais manifestações das contradições do capitalismo dominado pelas finanças.  
Escreve que “é inevitável que crises graves estourem sob a forma de ‘crises financeiras’ que se  
podem atribuir unicamente à especulação ou a uma ‘instabilidade sistêmica’ congênita”  
(Chesnais, 2005, p. 62-3). Sobre a crise financeira de 2007, afirma que “é mundial, é crescente  
e inclui uma dimensão de irreversibilidade” (Chesnais, 2018, p. 30). Seria necessário  
reconhecer que “o capitalismo atingiu limites, não mais relativos e temporários, mas absolutos  
e definitivos” (Chesnais, 2018, p. 31) e ainda que “não há saída para a crise global à vista”  
(Chesnais, 2018, p. 36).  
399  
Apontamentos finais  
Um nível de recorte que se pode fazer em relação aos autores diz respeito às categorias  
da “escola da regulação”. Mandel e Mészáros podem ser caracterizados como pensadores que  
valem-se exclusivamente do método e categorias de análise legados por Marx e seus seguidores,  
partem do pressuposto que o materialismo histórico enquanto método de apreensão das  
contradições do movimento do real basta a si próprio. Em sentido diverso, tanto Harvey como  
Chesnais incorporam em suas leituras categorias como “regime de acumulação” de forma  
central, ainda que se avalie os elementos marxistas como preponderantes.  
Uma diferença teórica que advém destas distintas influências e incorporações diz  
respeito à noção de equilíbrio. Mandel e Mészáros descrevem uma dinâmica marcada pelo  
desequilíbrio e incontrolabilidade, Harvey e Chesnais, ao caracterizarem um “regime de  
acumulação”, necessariamente estão dando um certo enfoque privilegiado a elementos estáveis  
do modo de funcionamento do capitalismo. No entanto, ambos os “regimes de acumulação”  
são marcados por crises intensas e mais ou menos permanentes.  
Cabe ainda avaliar a relação que suas teorias constroem em relação à crise do  
capitalismo contemporâneo. Como procura-se demonstrar, em Mandel e Mészáros a crise  
Renato de Brito Gomes  
constitui-se como parte estruturante das reflexões, seja através da onda longa com tonalidade  
regressiva ou através da crise estrutural do capital. O central, de ambas, foi mostrar os entraves  
incontornáveis à acumulação de capital contemporânea.  
Por outro lado, e novamente suspeita-se que por influência dos elementos da escola da  
regulação, embora Harvey e Chesnais apontem as dificuldades de crescimento do capitalismo  
atual, estes não caracterizam seu funcionamento como uma “crise permanente”, ao contrário,  
os “novos regimes de acumulação” seriam justamente a solução para a recomposição da  
acumulação e para o curso do prosseguimento do capitalismo, mesmo consideradas as crises e  
a instabilidade como momentos importantes. Nos parece que nos primeiros a crise apresenta-  
se mais como necessidade da dinâmica contemporânea do capital, ao passo que nos últimos ela  
reside apenas como possibilidade, mesmo que prevista, teorizada e de ocorrência frequente.  
Já foi apontado que talvez as expressões “capitalismo maduro” ou, ainda, “tardo  
capitalismo”, possam ser mais fiéis ao conteúdo do que pretende transmitir Mandel. Através  
destas terminologias ficaria mais evidente o conteúdo interpretativo que imprime no  
capitalismo contemporâneo, sendo central a leitura de que se trata de um estágio de  
desenvolvimento das forças produtivas em que passam a existir barreiras intransponíveis ao  
prosseguimento normal da acumulação. É forçoso reconhecer a semelhança, mesmo  
consideradas as diversas tradições do marxismo ao qual os autores filiam-se, com a  
caracterização de crise estrutural de Mészáros.  
400  
Assim, além de ambos reconhecerem o capitalismo contemporâneo como uma longa  
crise, o fazem justamente porque são os mesmos autores que vislumbram que o modo de  
produção passava a confrontar-se com barreiras intransponíveis. Não seria mais possível o  
manejo das contradições de forma a no longo prazo garantir-se a ampliação do valor, os limites  
estruturais são caracterizados desta forma justamente por não permitirem mais tal mecanismo.  
Talvez por ter defrontado-se por maior tempo com o capitalismo contemporâneo  
Mészáros, em certo sentido, vai além de Mandel. Isto porque embora Mandel já tenha apontado  
limites intransponíveis para o prosseguimento normal do desenvolvimento das forças  
produtivas e tenha visto uma crise prolongada, somente Mészáros sublinha a existência  
majoritária de forças destrutivas durante o novo período da crise estrutural do  
sociometabolismo do capital. Ou seja, além de existirem barreiras insuperáveis para a  
acumulação, na verdade, no capitalismo contemporâneo as “potencialidades das forças  
produtivas” evidenciam cada vez mais apenas a destrutividade social do capital.  
Cabe ainda avaliar as posições de Harvey e Chesnais sobre a existência ou não de limites  
estruturais. Em Harvey não se encontra o reconhecimento de qualquer limite intransponível, ao  
Libertas, Juiz de Fora, v. 24, n. 2, p. 387-403, jul./dez. 2024. ISSN 1980-8518  
Visões seminais do capitalismo contemporâneo: aproximações e distanciamentos  
contrário, o autor reafirma a capacidade do capitalismo contemporâneo de continuar dando  
solução às suas crises e, em paralelo, reconhece existir uma espécie de “impulso à acumulação”  
que sempre é capaz de superar a longo prazo as barreiras anteriormente impostas pelo próprio  
capital.  
Neste caso há uma sutileza importante em relação a Chesnais. Ainda em meados da  
década de 1990 o autor já falava de uma “longa crise rastejante” ao mesmo tempo em que  
reconhecia os efeitos depressivos dos processos de mundialização, embora a acumulação  
pudesse continuar. Se a leitura da hegemonia do capital portador de juros através da  
caracterização do “regime de acumulação financeirizado” o leva a impor uma certa estabilidade  
ao capitalismo contemporâneo, tem-se também o reconhecimento de que a crise atual possui  
“uma dimensão de irreversibilidade” e não haveria vislumbre sobre a saída de tal cenário.  
Portanto, considerando os autores aqui analisados, Harvey é o único que não reconhece que o  
capitalismo contemporâneo deparou-se com limites intransponíveis.  
Outro fio que vale acompanhar nas reflexões é o debate da financeirização, presente em  
todas as obras, ainda que com pesos diferentes. Já Mandel alertava para os movimentos  
internacionais do capital especulativo e como em períodos de crise tenderia a crescer o poder  
do capital financeiro. Mészáros, por outro lado, reconhece na crise financeira iniciada em 2007  
uma manifestação da crise estrutural que, mesmo iniciada por esta esfera, estaria destinada a  
invadir todos os espaços da existência humana.  
401  
Harvey afirma que no momento de transição em relação ao “regime de acumulação  
flexível” ocorre todo um processo de reconfiguração dos sistemas financeiros globais em que a  
própria flexibilização das finanças foi um elemento fundante, assim o novo regime “procura o  
capital financeiro como poder coordenador” (Harvey, 1992, p. 155). Por fim, Chesnais é  
certamente o que dá maior relevância a tal problematização, em sua leitura o processo da  
ampliação do valor passaria a ser determinado pela lógica de valorização do capital portador de  
juros.  
Avalia-se que o crescimento no tempo de tal preocupação nas leituras está relacionado  
às próprias determinações que foram tornando-se mais latentes, visíveis e fundantes no  
capitalismo contemporâneo. Ou seja, como concretamente deu-se de forma cada vez mais  
intensa o processo de financeirização, passava a ser paulatinamente incorporado com maior  
fôlego nas análises seminais do período.  
Por fim, ressalta-se uma outra vez que o objetivo do artigo não foi apresentar uma síntese  
de leituras tão complexas sobre um fenômeno ainda contemporâneo. Por outro lado, enfatiza-  
se que a exposição de visões seminais (suas aproximações e distanciamentos) no âmbito da  
Renato de Brito Gomes  
economia política marxista oferece pistas que não podem ser desconsideradas por aqueles que  
desejam realizar um estudo sério do capitalismo contemporâneo e suas problemáticas.  
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Políticas hídricas para o Nordeste: tendências e  
desafios atuais  
Water policies for the Northeast: current trends and challenges  
Gabriela Alves do Nascimento Silva*  
Maria das Graças e Silva**  
Sandra Maria Batista Silveira***  
Resumo: Este artigo tem como objetivo refletir  
sobre as tendências das políticas hídricas no  
Nordeste, implementadas no período de 2016  
até 2024, reconhecendo que estas são  
Abstract: This article aims to reflect on the  
trends in water policies in the Northeast,  
implemented in the period from 2016 to 2024,  
recognizing that these are determined by the  
reductionist and fragmented character that has  
historically guided social policies in Brazil,  
especially since the coup d'état. 2016.  
Addresses the sociopolitical foundations that  
mark the structuring of water policies in the  
region, considering the historicity and  
contradictions arising from the capitalist mode  
of production, as well as state interventions on  
this issue. To this end, documentary research  
was carried out, guided by the critical-dialectic  
method, based on the theoretical accumulation  
and studies undertaken at the Center for Studies  
and Research on Environmental Issues and  
Social Service (NEPASS/UFPE). It is verified  
that the water issue is perpetuated in the region,  
in the period studied (2016-2024), anchored in  
the reproduction of the hegemonic discourse of  
combating drought, which imposes the  
observation that water policies require  
consideration of the particular socio-  
environmental conditions of the region. region,  
both in the countryside and in the cities.  
determinadas pelo caráter reducionista  
e
fragmentado que tem, historicamente, orientado  
as políticas sociais no Brasil, especialmente  
desde o golpe de 2016. Aborda os fundamentos  
sociopolíticos que marcam a estruturação das  
políticas hídricas na região, considerando a  
historicidade e as contradições oriundas do  
modo de produção capitalista, bem como as  
intervenções estatais sobre essa problemática.  
Para tanto, foi realizado uma pesquisa  
documental, orientada pelo método crítico-  
dialético, a partir do acúmulo teórico e dos  
estudos empreendidos no Núcleo de Estudos e  
Pesquisas sobre Questão Ambiental e Serviço  
Social (NEPASS/UFPE). Verifica-se que a  
questão hídrica é perpetuada na região, no  
período estudado (2016-2024), ancorada na  
reprodução do discurso hegemônico de combate  
a seca, o que impõe a constatação de que as  
políticas hídricas requerem a consideração das  
particularidades condições socioambientais da  
região, tanto no campo como nas cidades.  
* Graduada em Serviço Social pela Universidade Federal de Pernambuco (UFPE) e mestranda em Serviço Social  
pela UFPE. Pesquisadora do Núcleo de Estudos e Pesquisas sobre Questão Ambiental e Serviço Social -  
NEPASS/DSS/UFPE.  
** Doutora em Serviço Social pela Universidade Federal de Pernambuco (UFPE) com pós-doutorado pelo Centro  
de Estudos Sociais da Universidade de Coimbra (CES/UC). Docente dos Programas de Graduação e Pós-  
graduação em Serviço Social da UFPE e líder do Núcleo de Estudos e Pesquisas sobre Questão Ambiental e  
Serviço Social - NEPASS/DSS/UFPE. ORCID: https://orcid.org/0000-0002-6583-831X  
*** Doutora em Serviço Social pela Universidade Federal de Pernambuco (UFPE). Docente do Departamento de  
Serviço Social da UFPE. Pesquisadora do Núcleo de Estudos e Pesquisas sobre Questão Ambiental e Serviço  
Social - NEPASS/DSS/UFPE.  
DOI: 10.34019/1980-8518.2024.v24.46596  
Esta obra está licenciada sob os termos  
Recebido em: 18/11/2024  
Aprovado em: 09/12/2024  
Políticas hídricas para o Nordeste: tendências e desafios atuais  
Palavras-chaves: Água; Nordeste; Políticas  
Keywords: Water; Northeast; Water policies.  
hídricas.  
Introdução  
A água é reconhecidamente um bem natural estratégico. Esta é implicada, portanto, no  
cerne da reprodução da vida e, apesar de ser um recurso essencial, as fontes de água no planeta  
são finitas e susceptíveis a profundas alterações, em razão de mudanças nos ecossistemas onde  
se localizam ou mesmo com os que se conectam.  
A despeito da quantidade de água ser constante no planeta, a sua distribuição é bastante  
desigual, obedecendo a fatores geográficos, econômicos, como as relações de propriedade da  
terra, políticos e climáticos, levando a que determinadas partes do planeta, distintos países e  
ainda determinadas regiões vivenciem problemas de escassez (Lopes, 2009). Citando  
estatísticas da ONU, Garcia (2012) informa que até 2025, o consumo de água pode subir 50%  
nos países em desenvolvimento e 18% nos desenvolvidos. A previsão é que 1,8 bilhão de  
pessoas viverão em regiões com escassez absoluta de água, regiões do globo mais quentes e  
secas, em virtude dos reduzidos quantitativos de precipitação (Garcia, 2012)1.  
Segundo especialistas, a pressão sobre os recursos hídricos só tende a crescer: a  
demanda ascendente de energia; a poluição desenfreada dos mananciais pela ausência de  
serviços de saneamento básico adequados e pelo uso intensivo de venenos e insumos químicos  
diversos na agricultura; a degradação dos ecossistemas e a contínua supressão da vegetação  
protetiva das fontes; o crescimento populacional e as mudanças climáticas são alguns dos  
fatores apontados. Estima-se que, até 2035, o consumo global de água aumentará em 85%. O  
binômio expansão agrícola - produção de energia encontra-se na linha de frente das pressões,  
mas os biocombustíveis, a fraturação hidráulica usada na indústria do petróleo não podem ficar  
de fora da equação2.  
405  
Em face desta dinâmica, as tensões que se apresentaram em menor grau no passado vem  
ganhando destaque no século XXI, quando se pode presenciar um número sem precedentes de  
conflitos por água, tanto entre países como nos diversos territórios nacionais3.O crescimento  
1 De acordo com relatório da Organização das Nações Unidas (ONU), “mais de 2.000 milhões de pessoas vivem  
em países que sofrem uma forte escassez de água, e aproximadamente 4.000 milhões de pessoas padecem una  
grave escassez de água durante ao menos um mês ao ano. Os níveis de escassez seguirão aumentando a medida  
que cresça a demanda de agua e se intensifiquem os efeitos do câmbio climático” (ONU, 2019, p. 1).  
2 A distribuição do consumo da água no planeta revela uma disparidade abissal: 70% são destinados à agricultura,  
20% para a indústria e 10% para o consumo doméstico, aproximadamente. O alto consumo da atividade agrícola  
deve-se, em especial, à utilização cada vez mais disseminada da irrigação, responsável pelo desperdício, seja pela  
evaporação ou pelo escoamento, de tal forma que cerca 60% da água utilizada é perdida (Camdessus et al., 2005).  
3
Em relatório intitulado “Não deixar ninguém pra trás”, a Unesco destaca que, entre 2000 e 2009, houve 94  
conflitos relacionados à água no mundo. Entre 2010 e 2018, foram 263 (UNESCO, 2019).  
Gabriela Alves do Nascimento Silva; Maria das Graças e Silva; Sandra Maria Batista Silveira  
populacional e a agricultura moderna, na qual a água vem sendo consumida de forma cada vez  
mais ampla e intensa, são apontados como alguns dos responsáveis por este fenômeno, além da  
poluição e a apropriação não sustentável da natureza, em geral, provocam a diminuição da  
disponibilidade hídrica no mundo. Fato é que, o argumento da escassez de água no planeta, tem  
sido evocado por organismos internacionais, (ONU e Banco Mundial), para a defesa de que a  
saída seria a mercantilização desse bem essencial à vida. Assim, a recomendação é que água  
deve ser incorporada em diversas legislações nacionais como “recurso econômico”, e regulada  
a cobrança a partir do seu uso.  
O Brasil é considerado um celeiro de água doce, já que concentra entre 12% e 16% do  
volume total do planeta. Entretanto, sua distribuição é bastante desigual no país, pois a região  
Norte concentra 73% da disponibilidade hídrica brasileira, enquanto as demais regiões, que  
abrigam 95% da população, contam com 27% deste recurso (ANA, 2017). A despeito do mito  
do país abundante em água, portanto, livre da escassez, fato é que o Brasil tem problemas de  
disponibilidade hídrica, oriundos tanto das variedades e desigualdades pluviométricas quanto  
da inadequada gestão das águas em todo o país4 .  
Se este quadro já é em si mesmo preocupante, a crise climática tende a agravá-lo e as  
evidências empíricas vem confirmando as projeções de climatologistas e estudiosos do tema. O  
Quarto Relatório Científico do IPCC AR4 (2007) traz evidências de que mudanças no clima  
podem afetar significativamente o planeta, com a incidência de extremos climáticos,  
tendencialmente mais rigorosos nos países menos desenvolvidos da região tropical (Marengo,  
2008), o que vem se confirmando no Brasil. Segundo Marengo (2008, p. 86), o país é  
“vulnerável às mudanças climáticas atuais e mais ainda às que se projetam para o futuro,  
especialmente quanto aos extremos climáticos. As áreas mais vulneráveis compreendem a  
Amazônia e o Nordeste do Brasil”. De acordo com estudos do Instituto Nacional de Pesquisas  
Espaciais (INPE), os padrões de precipitação vêm se alterando nas últimas décadas no país,  
com algumas regiões registrando aumento nos volumes médios anuais, enquanto outras vem  
diminuindo, o que tem aumentado a ocorrência de extremos climáticos 5.  
406  
Publicação recente da Agência Nacional de Águas e Saneamento Básico (ANA, 2024),  
confirma as projeções do INPE,  
As regiões hidrográficas localizadas no Norte, Nordeste e parte do Centro-  
4 De acordo com a Agência Nacional de Águas e Saneamento Básico (ANA), historicamente, a precipitação média  
anual do Brasil é de 1.760mm, mas por causa das suas dimensões continentais, o total anual de chuva varia de 500  
mm na região semiárida do Nordeste, a mais de 3.000 mm na região Amazônica (ANA 2017, p. 23).  
5
O estudo elaborado a pedido do Ministério da Ciência, Tecnologia e Inovação (MCTI), sobre as mudanças  
observadas no clima no país nos últimos 60 anos considera dois indicadores: dias consecutivos secos (CDD) e  
precipitação máxima em 5 dias (RX5day) (Brasil, 2024).  
Libertas, Juiz de Fora, v. 24, n. 2, p. 404-425, jul./dez. 2024. ISSN 1980-8518  
Políticas hídricas para o Nordeste: tendências e desafios atuais  
Oeste tenderão a sofrer com maior escassez hídrica em virtude de uma  
tendência na diminuição da disponibilidade hídrica. Isso poderá se intensificar  
com o passar do tempo e na medida que os níveis de emissão dos gases de  
efeito estufa aumentem, e, por conseguinte, a temperatura se eleve no Brasil.  
As projeções indicam que se pode ter diminuições de até 40% na  
disponibilidade hídrica já em 2040 nas principais regiões hidrográficas  
brasileiras, além de um aumento substancial no número de trechos de rios  
intermitentes no futuro nessas regiões. O risco de escassez de água deverá  
aumentar devido a reduções na disponibilidade dessas regiões, notadamente  
nas regiões semi-áridas, afetando o abastecimento de água nas cidades, a  
geração de energia hidroelétrica e com impactos particularmente para a  
agricultura de subsistência. Os riscos para a saúde poderão se exacerbar com  
as taxas de crescimento populacional regional e as vulnerabilidades nos  
sistemas de abastecimento de água, saneamento, gestão dos resíduos,  
poluição, etc. (p. 10).  
Os impactos sociais da crise climática sobre o Nordeste brasileiro são deveras  
preocupantes. Sem descartar os riscos de inundações, especialmente nas áreas litorâneas, com  
graves custos sociais e ambientais (Pernambuco, 2022; Bahia, 2021), os cientistas preveem que  
o aumento da seca e da falta de água constituirá uma questão central para a região, que poderá  
ter parte de seu território (zona semiárida) transformada em zona árida, com graves  
consequências para a produção de alimentos, a sanidade e a saúde da população local. Isto  
porque enfrentará crise no abastecimento de água, podendo atingir cerca de 41 milhões de  
habitantes da zona semiárida, distribuídos em cerca de 1.300 municípios dos nove Estados do  
Nordeste e do Norte de Minas Gerais (Marengo, 2008).  
407  
Neste contexto, vale destacar a importância da produção e disseminação do  
conhecimento sobre possíveis cenários climático-hidrológicos, as incertezas e riscos  
envolvidos, a fim subsidiar a ação dos movimentos sociais e o pensamento crítico. Por outro  
lado, o Estado precisa incorporar a variável “crise climática6” na produção de políticas públicas,  
de modo a estimar demandas de água no futuro e implementar políticas hídricas de uso e  
gerenciamento de água que considere as necessidades de dessedentização humana e animal  
acima dos interesses da acumulação de capitais.  
O objetivo deste artigo é analisar as tendências das políticas hídricas direcionadas ao  
Nordeste do Brasil, a partir do golpe de 2016, nos governos Temer/Bolsonaro (2016/2022), até  
o atual governo Lula. Portanto, serão abordados os fundamentos sociopolíticos que determinam  
as políticas hídricas dirigidas a esta região brasileira, considerando a historicidade e as  
contradições das estratégias do Estado na condução destas políticas, buscando evidenciar,  
6 Com base em Araújo e Silva (2021), crise climática refere-se ao conjunto de mudanças drásticas e aceleradas no  
clima, causadas, principalmente, pela atividade humana por meio da exploração crescente dos recursos naturais,  
promovida pela mercantilização e privatização de serviços essenciais. Essa crise se agrava devido a políticas que  
sujeitam a água a interesses econômicos e financeiros em detrimento dos direitos humanos e ambientais.  
Gabriela Alves do Nascimento Silva; Maria das Graças e Silva; Sandra Maria Batista Silveira  
especialmente, as tendências recentes.  
As reflexões presentes neste estudo baseiam-se no método crítico-dialético, através do  
qual as políticas hídricas para o Nordeste são compreendidas como parte das estratégias do  
capital de apropriação dos recursos naturais como insumos produtivos, o que acentua os  
conflitos de classe que permeabilizam as demandas por água na região.  
A questão hídrica no Nordeste do Brasil  
A apropriação privada dos recursos naturais, dentre esses a água, determina a questão  
hídrica no Nordeste. Por questão hídrica entende-se a problemática ambiental que envolve os  
usos, a propriedade e a posse da água, sendo, portanto, constitutiva da crise ambiental,  
convertida em objeto da razão humana e da ação das classes, quando são colocadas em  
evidência as contradições do acesso e dos diversos usos da água no campo e nas cidades  
(Silveira, 2017).  
A questão hídrica emerge no bojo da questão ambiental, que, conforme Silva (2010)  
expressa as diversas manifestações da destrutividade da natureza, com impactos diretos sobre  
a disponibilidade dos recursos naturais garantidores da vida no planeta. Nas palavras da autora:  
“a problemática ambiental tem origem na forma histórica com que o sistema do capital exerce  
o domínio sobre a natureza, convertendo-a em mercadoria e submetendo-a às necessidades de  
sua reprodução” (Silva, 2010, p. 78).  
408  
As relações entre as classes sociais informam os conflitos pelos usos da água em todas  
as regiões e o Estado é desafiado a elaborar respostas na forma de políticas hídricas para suprir  
as demandas relativas aos múltiplos usos da água. Historicamente voltado a assegurar as  
condições de reprodução do capital, o Estado tem elaborado, historicamente, políticas que  
apenas sumariamente atendem às necessidades humanas de abastecimento, nos usos que  
garantem a sobrevivência humana e animal no campo e nas cidades. Constata-se uma profunda  
desigualdade na apropriação e distribuição destes recursos pelo Estado, considerando a  
propriedade da terra e a natureza privatista destas políticas (Silveira, 2017). Esta realidade não  
tem superação nos marcos da sociedade capitalista e na vigência das relações de classe, como  
informa Löwy (2013), portanto, está posto o desafio ideopolítico e teórico de desvendar as  
particularidades do processo de apropriação dos recursos naturais no Nordeste, em especial  
água e terra, com as chaves que as vinculam às tendências próprias do modo capitalista de  
produzir a riqueza material.  
As análises sobre o Nordeste brasileiro são, frequentemente, envoltas em mistificações,  
que tem como fulcro uma visão que atribuem à região características da ineficiência e atraso,  
Libertas, Juiz de Fora, v. 24, n. 2, p. 404-425, jul./dez. 2024. ISSN 1980-8518  
Políticas hídricas para o Nordeste: tendências e desafios atuais  
supostamente derivadas de fatores naturais, esmaecendo as dinâmicas e interesses do  
capitalismo dependente (Pereira, 2021). Desse modo é formada uma ideologia que esconde as  
verdadeiras causas das desigualdades, fazendo com que pareçam inerentes à região, ao invés de  
apanhá-las como produto das relações sociais e do padrão de acumulação de capital,  
mistificação essa especialmente intensificada em períodos de acirramento das contradições  
entre as classes sociais.  
Segundo Pereira (2021, p. 17), as desigualdades regionais não resultam de um  
desenvolvimento insuficiente na região ou de uma gestão ineficaz do aparelho estatal, mas  
fazem parte da própria dinâmica do padrão de reprodução do capital, especialmente em países  
de capitalismo dependente, onde “funcionam como componentes necessários e subsidiários  
para a manutenção das relações sociais”. Oliveira (1987) complementa essa visão,  
argumentando que a redivisão regional do trabalho sustentou a construção de uma ideologia  
que associa o Nordeste à pobreza e à improdutividade, descaracterizando tais condições como  
produtos das dinâmicas capitalistas.  
Com base nos dados do Censo 2022 (IBGE, 2022), o Nordeste é a região do Brasil que  
concentra o maior número de pessoas não-alfabetizadas no país, contabilizando um total de  
6.123.989 pessoas não-alfabetizadas na região; índices que se tornam mais expressivos nas  
áreas rurais do Nordeste. Nesta mesma perspectiva, com índices alarmantes, é a região Nordeste  
que detinha, no ano de 2022, 27% da população total do país, concentrando 43,5% da população  
em situação de pobreza e 54,6% em situação de extrema pobreza.  
409  
No que se trata de residências domiciliares, o Nordeste, ainda com base em dados do  
Censo 2022 (IBGE, 2022), conta com a segunda maior concentração de domicílios particulares  
improvisados do país, ficando atrás apenas da região Sudeste, explicitando as precárias  
condições de moradia vivenciadas pela população nordestina. Ademais, localizam-se na região  
34,5% da população total de pretos do Brasil, 35,35% da população que se autodeclara parda  
no país e por 26,69% do total de indígenas presentes em todo o território nacional.  
No que diz respeito ao acesso à água, dados do Censo 2022 (IBGE, 2022) apontam que  
22,99% da população do Nordeste não é atendida pela rede geral de distribuição de água, sendo  
abastecida via poços profundos ou artesianos; poços rasos, freáticos ou cacimbas; fonte,  
nascente ou minas; carros-pipa; água de chuva armazenada; rios, açudes, lagos, córregos e  
igarapés. A precariedade da infraestrutura para a distribuição de água e tratamento de esgoto  
agrava os desafios enfrentados, especialmente no Nordeste, região na qual a convivência com  
as condições climáticas adversas, especialmente no semiárido, torna o acesso a esses serviços  
ainda mais necessário.  
Gabriela Alves do Nascimento Silva; Maria das Graças e Silva; Sandra Maria Batista Silveira  
O Nordeste concentra um significativo número de conflitos que envolvem os usos, a  
posse e a propriedade da água conforme apontam os dados da Comissão Pastoral da Terra  
(CPT): entre os anos de 2002 a 2022 foram contabilizados 970 (novecentos e setenta) conflitos  
por água no Nordeste, o que representa um percentual de 32,5% da soma de todas as regiões  
brasileiras no mesmo período (2.984 conflitos). O mesmo relatório aponta que do total de  
conflitos por água na região, 80% envolvem uso e apropriação de água no campo, do que se  
pode inferir que estes conflitos envolvem as disputas diretas pela apropriação da água em  
quantidade e qualidade suficientes para as demandas de produção e consumo da agricultura  
familiar.  
Os conflitos revelam que parte da população do Nordeste, notadamente os mais pobres,  
sofrem com a indisponibilidade hídrica, que é resultante direta das disputas acirradas pela  
apropriação da água, dentre os recursos naturais da região. Também evidenciam a vinculação  
entre pobreza e dificuldades de acesso a água, que pode ser interpretada como resultado das  
características naturais da região, das estiagens previsíveis e cíclicas, ou concebê-la no bojo e  
a partir da relação entre as classes sociais na disputa pelos bens naturais no território, de modo  
específico, a água. As reflexões contidas neste artigo, segue a segunda via interpretativa.  
Neste sentido, a questão hídrica está imbricada na questão agrária, considerando que a  
concentração de terras resulta na concentração de água, de modo que políticas hídricas deveriam  
considerar uma ampla e responsável reforma agrária na região (ASA, 2011). Muito  
acertadamente Gnadlinger et al. (2005) afirma que o acesso à terra e à água configura uma base  
para o poder econômico e político. Nesse contexto, uma reforma agrária adaptada às condições  
socioambientais da região Nordeste é fundamental, pois, sem ela, as iniciativas de  
desenvolvimento sustentável na região estão fadadas ao fracasso.  
410  
Políticas de água para o Nordeste e a relação com a pobreza  
As intervenções estatais de caráter mais ou menos sistemático para o Nordeste, no  
âmbito da questão hídrica, foram principiadas no século XIX após as secas de 1825, 1827 e  
1830, tendo como principal método de intervenção a “açudagem”, prioritariamente destinada  
ao abastecimento dos grandes proprietários de terra e para a manutenção dos rebanhos (Silveira;  
Cordeiro; Clemente, 2014). Com a seca dos anos de 1877 e 1879 acentuou-se a noção do  
Nordeste como região problemática, o que resultou na consolidação de intervenções políticas  
baseadas no ideário do combate à seca (Andrade; Nunes, 2014). Em síntese, as ações planejadas  
do Estado afastaram-se do atendimento da demanda geral, difusa e reproduziram a noção de  
água como recurso, em prol dos grandes proprietários de terra.  
Libertas, Juiz de Fora, v. 24, n. 2, p. 404-425, jul./dez. 2024. ISSN 1980-8518  
Políticas hídricas para o Nordeste: tendências e desafios atuais  
Diante dessa realidade, a população mais pobre do Nordeste permanecia a mercê de  
medidas pouco favoráveis, já que o acesso às represas e açudes construídos com recursos  
públicos, seguia sob controle dos donos da terra. Lutar contra a ampliação da fome, sede e a  
pobreza, seguia como única alternativa, ainda que suas reivindicações fossem atendidas via  
medidas reducionistas e insuficientes. Diante disso, é válido reiterar os apontamos de Silva e  
Silva (2014), ao declarar que do princípio do século XX até meados dos anos de 1980, a atuação  
do Estado é conservadora e de caráter desenvolvimentista, com ausência de comprometimento  
com o bem-estar social.  
Sumariamente, as ações do aparato estatal para o Nordeste, historicamente,  
reproduziram a miséria e ampliaram a falácia da seca como culpada pela improdutividade da  
região. São disseminadas medidas que não se adequam à realidade, pois distanciam-se da  
democratização dos recursos hídricos e da implantação de uma reforma agrária que leve em  
conta os aspectos hidro-climatológicos da região.  
Após uma intensa mobilização em defesa da redemocratização do país, a Constituição  
Federal de 1988 amplia direitos socioambientais e traz a água como um bem inalienável, com  
seu sistema de gerenciamento sob responsabilidade da União (Brasil, 1988). Este ganho é  
reiterado anos mais tarde com a Lei das Águas, em 1997, por meio da qual se reconhece a água  
como recurso natural finito que deve atender prioritariamente à dessedentação humana e animal  
(Brasil, 1997). Apesar das considerações supracitadas, tais avanços legais não conseguem  
impedir o avanço do capital sobre os recursos hídricos, pois dotam a água de valor econômico  
e possibilitam a cobrança pelo seu uso, por meio da concessão de outorga, o que implica um  
passo adiante no processo de mercantilização e, nestes termos, restringindo o acesso a quem  
possa pagar.  
411  
Nestes termos, a última década do século XX não altera a natureza das políticas hídricas  
as quais não explicitam ou tensionam os fundamentos das desigualdades no acesso aos recursos  
naturais, mas apenas reproduzem a estrutura vigente, negligenciando a população mais pobre,  
que é paliativamente atendida. As políticas hegemonicamente desenvolvidas até esse período,  
especialmente no semiárido, foram instituídas com base na lógica do “combate à seca”, que  
favorece o capital, em detrimento das necessidades sociais (Silva, 2007). Isso tudo, caucionado  
em discursos de culpabilização da natureza, ao tempo em que realiza intervenções de caráter  
prejudicial ao meio ambiente, a exemplo dos megaprojetos hídricos.  
No trânsito do século XX ao XXI, em oposição à perspectiva de “combate à seca”,  
articula-se a tese da “convivência com o semiárido”, fruto da organização de trabalhadores/as  
rurais, pastorais sociais e movimentos sociais rurais. Segundo Silveira (2017), esta apresenta  
Gabriela Alves do Nascimento Silva; Maria das Graças e Silva; Sandra Maria Batista Silveira  
uma relação de respeito e adaptação ao meio, promovendo o acesso à água como um direito  
humano e a organização social voltada para a sustentabilidade e a autonomia das comunidades.  
A partir de iniciativas da convivência é criada, em 1999, a Articulação no Semiárido Brasileiro  
(ASA Brasil), rede que conecta organizações e entidades comprometidas com a transformação  
social no território do Semiárido a partir da perspectiva da convivência. AASA Brasil elaborou  
o Programa de Formação e Mobilização Social para a Convivência com o Semiárido, que  
envolve os Programas: Um Milhão de Cisternas (P1MC)7, Uma Terra e Duas Águas (P1+2)8,  
Cisternas nas Escolas e Sementes do Semiárido.  
Estes programas passam a ser, paulatinamente, reconhecidos pelo governo federal,  
recebendo financiamento, tornando-se políticas públicas. De acordo com Silva (2010),  
privilegiam-se obras de pequeno impacto ambiental e que visavam, a partir dos processos  
metodológicos e formativos protagonizados pela ASA, ampliar a autonomia das famílias  
trabalhadoras e mobilizar para a convivência com a região.  
Apesar da implementação de políticas hídricas importantes, que atendem a um conjunto  
de demandas das populações trabalhadoras do Semiárido, o governo Lula da Silva implementa  
o Projeto de Transposição do Rio São Francisco. Cercado de controvérsias tanto ambientais  
quanto sociais e tendo como grande beneficiária a agricultura de irrigação para fins de  
exportação, a exequibilidade da Transposição expõe a reprodução da lógica capitalista e  
privatista nas políticas hídricas para o Nordeste.  
412  
A Transposição, com base nas palavras de Silva (2021), revela, desde seu princípio,  
impactos ambientais significativos. A alteração do fluxo hídrico intensifica a sobrecarga de um  
rio que, ao longo de seu curso, já possui diversas barragens e usinas hidrelétricas. Esse fator é  
um dos principais argumentos de oposição ao Projeto, pois se defende que uma ação prioritária  
deveria ser a recomposição das matas ciliares e da vegetação nas margens do rio, irá recuperar  
seu volume e reduzir os efeitos ambientais. Além disso, o desmatamento e a erosão ao longo  
dos 600 km de canais do Projeto resultaram no assoreamento e na manipulação de áreas ao  
redor, especialmente durante períodos de chuva intensa, o que acelera o desgaste do solo.  
Na foz do rio, entre Sergipe e Alagoas, uma vazão reduzida permite a intrusão da água  
do mar, avançando cerca de 40 km rio adentro, e a presença de peixes marinhos já é registrada  
7 A execução deste programa se dá por meio da construção de cisternas de captação de água da chuva, localizadas  
ao lado das casas, para uso domiciliar e de armazenamento com destinação à produção de alimentos,  
prioritariamente. Foi lançado no ano de 2003 com o objetivo de democratizar o acesso aos recursos hídricos por  
meio de uma metodologia que incluía mobilização e formação das famílias rurais (ASA Brasil, 2024b).  
8 O P1+2 é implantado com objetivo de garantir a segurança hídrica e alimentar, através da instalação de cisternas  
destinadas à produção de alimentos (ASA Brasil, 2024c).  
Libertas, Juiz de Fora, v. 24, n. 2, p. 404-425, jul./dez. 2024. ISSN 1980-8518  
Políticas hídricas para o Nordeste: tendências e desafios atuais  
a 200 km do litoral. Além dos impactos ambientais, destaca-se a questão social da privatização  
das águas. Comunidades pobres ao longo dos canais enfrentam dificuldades de acesso à água,  
pois, sem condições de pagar as altas taxas de licenciamento, são impostas a buscar água a  
longas distâncias, enquanto o recurso disponível é direcionado principalmente para plantações  
comerciais (Silva, 2021). A Transposição ultrapassou a presidência de Lula, sendo estendida  
aos governos seguintes.  
Sucessora de Lula, Dilma Rousseff iniciou seu mandato em 2011 e perdurou até o golpe  
de 2016. Dilma assumiu a presidência com os objetivos de erradicar a fome no Brasil e de  
universalizar o acesso à água em quantidade e qualidade. Com base nestes fins, a presidenta  
instaurou o plano Brasil Sem Miséria (BSM), por meio do qual, nas palavras de Campos eAlves  
(2014), tornava-se explícita a vinculação entre pobreza e ausência de acesso à terra e à água.  
Assim, com o Decreto 7.535, de julho de 2011, foi criado o Programa Águas Para Todos (APT)  
que integra o BSM, no intuito de contemplar a universalidade no acesso aos recursos hídricos.  
Semelhante ao P1MC, o APT incorpora as tecnologias sociais iniciadas nos projetos da ASA.  
O APT representa um marco nas políticas de água para o Semiárido brasileiro porque  
pela primeira vez uma política hídrica para o Nordeste assume o desafio de universalizar o  
acesso à água de consumo humano para as populações rurais do Semiárido brasileiro. O APT  
amplia as ações do Estado na implementação de políticas de convivência e consolida  
definitivamente a parceria com a ASA em âmbito nacional e nos Estados.  
413  
O APT inclui, de maneira explícita, a universalização do acesso à água como condição  
de superação da pobreza rural. O Programa foi inserido no âmbito da inclusão produtiva rural,  
junto ao Programa Luz para Todos, Programa de Fomento às Atividades Produtivas Rurais e o  
Programa de Aquisição de Alimentos (PAA) (Silveira, 2017).  
A política hídrica dos governos Lula/Dilma foi marcada pela dualidade: ao tempo em  
que avançou na incorporação de políticas e programas vinculadas à perspectiva da convivência  
com o semiárido, manteve a direção estratégica de garantir água prioritariamente para para o  
agro-hidronegócio, tomando como exemplo o Projeto da Transposição do Rio São Francisco,  
que aprofunda as desigualdades e conflitos por água no Nordeste, tendo em vista que a  
prioridade do projeto continua sendo atender aos setores de exportação agrícola, que  
monopolizam o acesso à água em detrimento das população.  
Em junho de 2016 Michel Temer assumiu a presidência do Brasil, após o golpe que  
destituiu a presidenta Dilma Roussef, e instituiu na realidade nacional um regime de caráter  
ultraneoliberal, de contrarreforma explícita no campo social e ambiental, afastando-se dos  
planos de combate à miséria em todas as políticas assistenciais. As políticas hídricas também  
Gabriela Alves do Nascimento Silva; Maria das Graças e Silva; Sandra Maria Batista Silveira  
são afetadas com esta nova governabilidade, mediante a qual, segundo Mattei (2018), dá-se um  
recuo no atendimento das necessidades explícitas pela população mais pobre da região.  
As políticas de água nos governos ultraneoliberais de Temer e Bolsonaro  
Ao longo dos anos de 2016 e 2018, o governo de Temer não impulsionou a criação de  
políticas inovadoras no que se refere à questão hídrica. As ações realizadas ao longo dos seus  
dois anos de presidência são alinhadas, unicamente, aos interesses burgueses, sob o discurso de  
reerguimento da economia nacional, deixando de lado a adesão à convivência com o semiárido  
e focalizando sua atuação nos megaprojetos.  
O ex-presidente extinguiu o Ministério de Desenvolvimento Agrário (MDA), o que,  
segundo a Comissão Pastoral da Terra (CPT, 2016), resultou na ampliação dos conflitos  
socioambientais por água; aprovou a Medida Provisória 844/2018, popularmente denominada  
de MP da sede (ASSEMAE, 2018)9; e implementou um sucateamento de políticas  
agroecológicas, a exemplo do Ater Mulheres e Ater Agroecologia10, as quais, de acordo com  
Funari (s.d.), são políticas rurais voltadas para autonomia política e econômica das populações  
do Semiárido. Além das medidas supracitadas, Temer assume a disputa pela paternidade do  
Projeto de Transposição do Rio São Francisco, sendo responsável pela conclusão das obras do  
eixo Leste, que contempla os estados de Pernambuco e Paraíba (Machini, 2019).  
O governo de Michel Temer foi sucedido por Jair Messias Bolsonaro, que governou o  
país entre os anos de 2018 e 2022. Nesse período foram continuadas medidas de favorecimento  
explícito ao agro e hidronegócio, ampliando-se parcerias público-privadas, que reverberam na  
mercadorização dos recursos naturais, sendo o acesso à água descaracterizado como direito. De  
acordo com Malvezzi (2019), Bolsonaro ampliou o poder das empresas privadas ao dar  
continuidade ao megaprojeto da Transposição, desconsiderando as possibilidades de  
revitalização do rio. As obras deste projeto foram finalizadas, de acordo com dados do  
Ministério de Desenvolvimento Regional (MDR), em 2021, com a conclusão das operações do  
eixo Norte.  
414  
Simultaneamente ao andamento das obras da Transposição, Bolsonaro inaugurou o  
Programa Águas Brasileiras em dezembro de 2020, com o alegado objetivo de revitalizar as  
9
Medida responsável por ampliar a privatização dos recursos hídricos em âmbito nacional, atingindo,  
especialmente, os subsídios destinados aos serviços de abastecimento municipais (ASSEMAE, 2018).  
10  
Políticas rurais que promovem a autonomia política e econômica das populações do Semiárido, buscando  
fortalecer a inclusão de práticas sustentáveis e garantir o protagonismo feminino na produção rural. Essas políticas  
incentivam o desenvolvimento de tecnologias sociais adaptadas ao Semiárido e apoiam a formação de redes de  
apoio e troca de conhecimento entre as comunidades locais (Arruda; Silva, 2023).  
Libertas, Juiz de Fora, v. 24, n. 2, p. 404-425, jul./dez. 2024. ISSN 1980-8518  
Políticas hídricas para o Nordeste: tendências e desafios atuais  
bacias hidrográficas nacionais. O Programa, segundo a cartilha disponibilizada pelo governo  
federal, no favorecimento da população que mais sofre com a escassez hídrica. O Programa  
propunha a minimizar as desigualdades entre as classes no acesso à água no campo, a questão  
do enfrentamento à miséria, e a preservação ambiental; paradoxalmente, a sua exequibilidade  
é guiada a partir de parcerias público-privadas, ressaltadas pelo ex-presidente como essenciais,  
diante da insuficiência do Estado (Brasil, 2020).  
O Programa buscava unir os objetivos de revitalização das bacias hidrográficas e  
preservação ambiental ao modus operandi que caracteriza as grandes obras hídricas: a  
construção de ramais, barragens e adutoras como impulso à modernização da agricultura  
irrigada (Brasil, 2020). Assim, semelhante ao projeto de Transposição, o Águas Brasileiras é  
midiatizado como uma proposta de grande impacto ambiental positivo (revitalização das bacias  
hidrográficas), contudo, não foi possível localizar na pesquisa documental e bibliográfica,  
registros de sua exequibilidade. Como apontam Arruda e Silva (2023), o Programa se aproxima,  
no discurso, da perspectiva de convivência com o semiárido quando propõe a revitalização de  
bacias hidrográficas, importante reinvindicação dos movimentos sociais rurais para  
democratização do acesso à água. No entanto, o Programa não apresenta dados concretos de  
sua execução nesta estratégia. O que se pode afirmar é que a aproximação do Águas Brasileiras  
com a perspectiva da convivência é aparência que se desfaz em sua operacionalização.  
Objetivamente, as prioridades do agronegócio no tocante a política hídrica sempre foi a  
irrigação, distanciando-se da dessedentação humana e animal como prioridade assegurada na  
Lei das Águas de 1997, o que põe em dúvida a disponibilidade orçamentária para o Programa.  
Além do Águas Brasileiras, beneficiador do mercado das águas, as demais intervenções  
de Bolsonaro marcam o abandono das demandas da população mais vulnerável da região, posto  
que se ampliou a deterioração das políticas iniciadas ao longo dos governos de Lula e Dilma,  
vinculadas à perspectiva da convivência com o semiárido. Como exemplificação de tal  
afirmativa, o Programa Cisternas11 sofreu, no ano de 2021 cortes no orçamento, determinados  
pelo governo federal, o que resultou no menor número de cisternas entregues desde o ano de  
regulamentação do Programa (2013). Desse modo, bateu-se recorde negativo de 98% em  
comparação com o número de cisternas entregues em 2014 (Altino, 2021). Já em 2022, foi  
determinado um novo corte no orçamento do Cisternas para 2023; o valor disponibilizado seria  
correspondente à construção de apenas 500 cisternas em todo o ano (SINFRAJUFE, 2022).  
415  
11  
O programa, desenvolvido pelo Ministério do Desenvolvimento Social e Combate à Fome (MDS) a partir de  
2003 e regulamentado pela Lei nº 12.873, de 24 de outubro de 2013, tem como objetivo implementar tecnologias  
sociais de acesso à água, ofertando uma solução sustentável para as comunidades.  
Gabriela Alves do Nascimento Silva; Maria das Graças e Silva; Sandra Maria Batista Silveira  
Cortes orçamentários como este se deram também na Operação Carro-Pipa. Ação de  
caráter emergencial e historicamente associada à “indústria da seca”12 destinada à distribuição  
de água potável nos períodos de estiagem, sofreu com o corte de verbas em outubro de 2022,  
após a eleição presidencial e a preferência do eleitorado nordestino pelo candidato opositor ao  
governo de então. A operação, financiada com recursos do Exército Brasileiro em conjunto com  
o MDR, teve seu orçamento suspenso, comprometendo o abastecimento hídrico de oito estados  
do Nordeste, o que resultou na interrupção do abastecimento para 1,6 milhão de pessoas (Carta  
Capital, 2022a).  
Ademais, merecem destaque as denúncias de irregularidades identificadas no Programa  
Força-Tarefa das Águas13. O referido programa atua por meio de entrega de poços, cisternas e  
unidades de dessalinização, intervindo nas demandas de democratização de acesso à água e uso  
sustentável dos recursos hídricos; contudo, no ano de 2022, segundo apontamentos encontrados  
no site da Carta Capital (2022b), foram detectadas irregularidades vinculadas à ausência de  
indicação sobre a localização de poços perfurados e ao quantitativo de beneficiários do  
Programa. Tais ausências comprometem a verificabilidade da execução do mesmo.  
O Marco Legal do Saneamento básico também foi aprovado no governo do ex-  
presidente Jair Messias Bolsonaro, através da Lei ordinária 14.026/2020 (Brasil, 2020). Nesta,  
foi facilitada a privatização de estatais do setor de saneamento e se deu a prorrogação dos prazos  
para o fechamento de lixões no território brasileiro. Embora pareça positiva ao prometer a  
universalização do acesso, as alterações propostas seguem uma lógica gerencialista, na qual  
empresas privadas tornam-se responsáveis em áreas de atuação estatal. No que se trata do  
saneamento básico, Araújo e Silva (2021) apontam que as áreas onde as redes de saneamento  
são operadas por empresas privadas o acesso pela população é mais restrito.  
416  
Assim, o objetivo era promover o uso generalizado de mecanismos previstos na Lei  
11.079/2004, que trata das parcerias público-privadas, e na Lei 8.987/1995, que regulamenta a  
concessão de serviços públicos. As novas diretrizes e exigências foram determinadas para  
pressionar os prestadores públicos de água e esgoto, facilitando o avanço da privatização das  
estatais. Tal medida expressou o caráter hegemonicamente privatista do governo de Bolsonaro,  
reforçando a falácia de que o setor privado seria mais eficiente na gestão dos serviços de  
12A chamada “indústria da seca” refere-se a um cenário em que, sob a justificativa de combate à seca, as elites  
regionais aproveitam os períodos de estiagem para desviar recursos públicos especificamente destinados às  
políticas de acesso à água. Com isso, a seca se transforma em uma oportunidade lucrativa para esses grupos, que  
fazem do problema uma fonte de lucratividade (Arruda; Silva, 2023).  
13O programa, lançado em março de 2022, atua por meio de entrega de poços, cisternas e unidades de  
dessalinização, intervindo nas demandas de democratização de acesso à água e uso sustentável dos recursos  
hídricos.  
Libertas, Juiz de Fora, v. 24, n. 2, p. 404-425, jul./dez. 2024. ISSN 1980-8518  
Políticas hídricas para o Nordeste: tendências e desafios atuais  
saneamento.  
A recente privatização dos sistemas de saneamento básico configura mais um passo para  
o acesso do capital às reservas de água, antes controladas pelas empresas públicas estaduais.  
Por se tratar de um bem natural estratégico, esta medida é por si só digna de inquietação,  
sobretudo em tempos de crise climática. Nestes termos, o modelo de desenvolvimento  
ultraliberal na economia (Chesnais, 2005), sob regência de um governo protofascista,  
impulsiona uma estratégia de acesso aos recursos hídricos favorável ao grande capital, em  
detrimento da universalização do acesso.  
Decerto, o governo Bolsonaro aprofundou o caráter privatista das políticas hídricas no  
país como parte de uma estratégia mais ampla de desregulamentação da gestão ambiental  
pública. A evolução e consolidação da política ambiental brasileira, herdeira das lutas  
socioambientais travadas no bojo da redemocratização, sofre duro golpe no período do governo  
Bolsonaro, o qual implementou a maior desconstrução da política de proteção ambiental da  
história do país. Ao incentivar a exploração das áreas ambientalmente protegidas, o governo  
chancela infratores ao tempo em que implementa um amplo movimento para afrouxar a  
legislação ambiental, sucatear órgãos fiscalizadores, silenciar e coibir servidores públicos no  
exercício de suas funções (Carta Capital, 2020).  
Os seis anos marcados por governos autoritários e de caráter ultraneoliberal não  
avançam em programas e projetos hídricos, dando continuidade à inexistência de políticas  
efetivas no tocante à questão agrária, abandonam os ideais de reforma e extinguem estímulos à  
agroecologia e a valorização da produção camponesa.  
417  
O mandato de Bolsonaro finda com a eleição presidencial ao final do ano de 2022,  
marcada por disputas intensas entre os candidatos, refletindo uma polarização significativa na  
sociedade brasileira. A vitória de Luiz Inácio Lula da Silva, dá-se em um contexto permeado  
por desafios, principalmente no que se trata de gestão ambiental. Assim, consideramos que os  
desafios que perpassam o atual governo de Lula são superiores em relação à realidade de 2003,  
quando o presidente foi eleito pela primeira vez. Na contemporaneidade não se necessita apenas  
de novas garantias para a população, mas da restituição de direitos suprimidos nos governos  
que o antecederam.  
Nesse sentido, o que se espera do atual governo é um resgate da perspectiva da  
convivência com o semiárido como guia das políticas públicas de água para o campo, como  
expressão da resistência da população camponesa na defesa de seu território. Mas, acima disso,  
os desafios que perpassam a questão hídrica na atualidade exigem a quebra do monopólio de  
acesso à terra e políticas de democratização de acesso à água, de modo a garantir segurança  
Gabriela Alves do Nascimento Silva; Maria das Graças e Silva; Sandra Maria Batista Silveira  
alimentar e nutricional (Baptista; Campos, 2013a), que só podem ser obtidos a partir de uma  
ampla reforma agrária e da necessária valorização da produção familiar.  
Neste sentido, o presidente Lula da Silva determinou, no início do seu terceiro mandato,  
o retomo do Programa Bolsa Família e do Ministério de Desenvolvimento Social (2023). Com  
base em dados do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST, 2023), Lula  
reinaugurou o Conselho Nacional de Segurança Alimentar, que foi fechado em 2019; e  
restaurou, ainda durante o primeiro ano do terceiro mandato, o Programa Aquisição de  
Alimentos (PAA), responsável por possibilitar a compra direta, para fins da merenda escolar,  
de alimentos advindos da agricultura familiar, de comunidades indígenas e quilombolas.  
No mês de março de seu segundo ano de mandato (2024), Lula lançou o Programa Terra  
da Gente. Este, com base na Agência do Governo (Agência Gov., 2024), tem o objetivo de  
mapear e disponibilizar terras para assentamentos de populações que buscam viver por meio do  
trabalho no campo. Através deste programa pretende-se beneficiar, ao longo de todo o ano de  
2024, 73 mil famílias, por meio de acesso à terra e suporte técnico em prol do desenvolvimento  
de atividades ambientalmente responsáveis.  
Em comemoração ao Dia Mundial da Água, celebrado em 22 de março, o presidente  
Lula assinou o Decreto 11.960/2024, reestruturando o Conselho Nacional de Recursos Hídricos  
(Brasil, 2024). Em seu teor, o referido decreto reafirma o compromisso do Governo Federal  
com a gestão das águas, reconhecendo a necessidade de desenvolvimento sustentável e  
qualidade de vida para a população brasileira.  
418  
Dentre as competências do Conselho estão a formulação da Política Nacional e a  
articulação do planejamento de recursos hídricos, aprovando e acompanhando o Plano Nacional  
de Recursos Hídricos. O Decreto 11.960/2024 buscou fortalecer o papel do Conselho na  
governança das águas no Brasil, promovendo maior participação social e integração entre os  
entes federativos e a sociedade civil na gestão dos recursos hídricos. Dentre as diretrizes  
estabelecidas, destaca-se a importância de um planejamento que contemple as diversidades  
regionais, respeitando a pluralidade da região Nordeste, e as necessidades específicas de cada  
bacia hidrográfica, além de políticas que promovam o uso sustentável da água, fundamental  
para a segurança hídrica e o enfrentamento das mudanças climáticas.  
Outra medida de destaque no âmbito das políticas públicas de água está a Lei  
14.898/2024 (Brasil, 2024), por meio da qual foi instituída a Tarifa Social de Água e Esgoto  
(TSAE).Anova legislação assegura um desconto de 50% na tarifa da primeira faixa de consumo  
de até 15 m³ de água para famílias de baixa renda, inscritas no Cadastro Único ou que incluam  
como membros da família pessoas com deficiência ou pessoas idosas beneficiárias do Benefício  
Libertas, Juiz de Fora, v. 24, n. 2, p. 404-425, jul./dez. 2024. ISSN 1980-8518  
Políticas hídricas para o Nordeste: tendências e desafios atuais  
de Prestação Continuada (BPC). Como objetivos de tal medida estão o acesso à água e ao  
saneamento básico no Brasil, reforçando o direito fundamental à água, reconhecido pela  
Organização das Nações Unidas (ONU). A lei entrará em vigor a partir de 10 de dezembro de  
2024, como iniciativa capaz de proporcionar acesso a serviços essenciais para saúde, higiene e  
qualidade de vida aos segmentos mais pauperizados da população, o que trará impactos  
importantes para o Nordeste, cujos índices de pobreza são alarmantes, conforme exposto  
anteriormente.  
Na contramão das medidas anteriormente citadas, o Presidente Lula impulsionou  
medidas como a instituição da Lei 14.785/2023 (Brasil, 2023). Esta determinou o encurtamento  
dos prazos e a implantação de alterações nas regras de aprovação e comercialização de  
agrotóxicos; isto representou um retrocesso, pois expressa que os interesses econômicos se  
sobrepõem aos cuidados com o meio ambiente e a saúde da população.  
Em continuidade, no governo Lula, as ações vinculadas ao saneamento permaneceram  
sob orientação neoliberal, visto a decisão do governo de alterar as regras para o financiamento  
de debêntures incentivadas, que favorecem especialmente as concessionárias privadas de  
saneamento. Essas concessionárias, ao emitir títulos, respaldados por garantias estatais e  
isenções fiscais, poderão levantar até 70% do valor que pagam para adquirir as concessões de  
saneamento (Montenegro, 2024). Ou seja, com as alterações implementadas, as empresas terão  
a possibilidade de financiar grande parte do custo da outorga com recursos que são subsidiados  
pelo contribuinte, o qual arcará com os custos das operações. Esse modelo de financiamento,  
com incentivos fiscais e facilidades de captação, beneficia o setor privado pois, a população  
não apenas arca com os custos indiretos dessa operação, mas vê esses recursos, que poderiam  
contribuir para a universalização do saneamento, serem destinados a favorecer o capital e sua  
busca pelo lucro máximo.  
419  
Ao fim e ao cabo, tem-se que as políticas hídricas no contexto do terceiro governo Luís  
Inacio Lula da Silva estão premidas, como ademais ocorre com o conjunto das políticas públicas  
na atualidade, por um conjunto de restrições orçamentárias e por uma intensa pressão do capital  
pela apropriação do Fundo Público. A título de ilustração, o Orçamento Federal de 2023 teve a  
maior parcela consumida pelo pagamento da Dívida Pública: cerca de R$ 1,89 trilhão foram  
direcionados para cobrir juros e amortizações (43,23%), ou seja, R$ 5,2 bilhões por dia,  
desviando recursos de áreas essenciais para alimentar o rentismo (Auditoria Cidadã, 2024)14. A  
14  
O mapa elaborado pela entidade revela que apenas 5,99% do Orçamento foi destinado à Assistência Social;  
2,97% para a Educação; a Saúde recebeu 3,69%, enquanto áreas essenciais como Administração, Ciência e  
Tecnologia, Gestão Ambiental e Organização Agrária, receberam parcelas menores.  
Gabriela Alves do Nascimento Silva; Maria das Graças e Silva; Sandra Maria Batista Silveira  
Auditoria Cidadã da Dívida argumenta que o pagamento dos juros e amortizações constitui um  
sistema fraudulento, pois contribui para o crescimento exponencial da dívida pública (nunca  
audatada), alimentado pelo acúmulo de juros compostos, a chamada “bolsa-banqueiro”.  
Este regime fiscal restritivo dos investimentos sociais, reproduz-se também por meio  
das desigualdades no acesso aos recursos destinados à agricultura. Enquanto agricultura  
empresarial obtém R$ 400,59 bilhões, com o Plano Safra 2024/2025 para investir no setor, ou  
seja, um valor 10% maiores que na safra anterior (Brasil, 2024), a agricultura familiar terá  
acesso ao montante de R$ 85,7 bilhões e redução de juros no crédito a produtores e produtoras  
familiares. Isto, a despeito da agricultura familiar desempenhar um papel fundamental no  
abastecimento do mercado interno, ocupando 67% das áreas rurais distribuídas em,  
aproximadamente, 4 milhões de propriedades, nas quais os cerca de 10,1 milhões de  
agricultores familiares produzem alimentos para a população do país. A agricultura familiar  
brasileira é a oitava maior produtora de alimentos do mundo, movimentando a economia de  
90% dos municípios com até 20 mil habitantes, que representam 68% do total (Zadra, 2024).  
Considere-se, além das restrições orçamentárias, a ofensiva ideopolítica e ambiental do  
agronegócio, cujo tom negacionista da crise climática serve de esteio a uma intensificação do  
desmatamento e das queimadas, de fortes impactos sobre a saúde humana e dos ecossistemas  
afetados. Avançar na luta em defesa da preservação da base material de reprodução da vida,  
contra o negacionismo científico e o conservadorismo, exige do Estado Brasileiro a retomada  
da agenda ambiental, colocando-o na rota propugnada pela Constituição Federal de 1988, o que  
implica assegurar o acesso à água em quantidade e qualidade suficientes como um direito  
universal.  
420  
Considerações finais  
As políticas públicas de água para o Nordeste são permeadas por uma perspectiva dual:  
as primeiras ações do aparato estatal foram guiadas pelo combate à seca, que passa a coexistir  
com programas caucionados no princípio da convivência com o semiárido em finais do século  
XX e no século XXI, sendo notável uma relativa incorporação das bandeiras oriundas dos  
movimentos sociais rurais nos governos de conciliação de classes de Lula da Silva e Dilma  
Roussef (2003-2016).  
A partir do golpe que destituiu a presidenta eleita Dilma Roussef do poder tem-se, no  
âmbito da questão hídrica, o esfacelamento dos avanços socioambientais anteriormente obtidos:  
reatualiza-se o combate à seca, através de grandes obras hídricas; avançam as parcerias público-  
privadas, ampliando o poderio das grandes empresas e relegam ao Estado o papel de mediador;  
Libertas, Juiz de Fora, v. 24, n. 2, p. 404-425, jul./dez. 2024. ISSN 1980-8518  
Políticas hídricas para o Nordeste: tendências e desafios atuais  
e a negligência diante das demandas camponesas. Portanto, entre os anos de 2016 e 2022,  
instaura-se um período de recuos nas políticas hídricas, o que constitui importante desafio para  
o atual governo Lula e para os movimentos sociais, em especial no campo. Desse modo, é  
aguardada a retomada de políticas hídricas destinadas, especialmente à população pobre do  
semiárido, assemelhando-se à retomada de programas como o Minha Casa Minha Vida, Bolsa  
Família e Mais Médicos, que foram reeditados durante os 100 primeiros dias do terceiro  
mandato do governo petista (Vilela, 2023).  
Diante do exposto, a principal reflexão que emerge deste cenário é a necessidade de um  
equilíbrio entre as iniciativas de universalização dos serviços de saneamento básico e  
abastecimento hídrico e o fortalecimento da gestão pública no país, a qual deve ser capaz de  
garantir a eficiência e a sustentabilidade dos serviços essenciais como dever do Estado. Em  
síntese, a questão hídrica no Nordeste, em especial no semiárido perpetua-se, tendo como lastro  
ideopolítico a reprodução do discurso hegemônico sobre a seca como fenômeno natural. Essa  
realidade, requer a reestruturação de políticas públicas, fundadas no diálogo aberto com os  
movimentos sociais, reconhecendo-os como produtores de conhecimento coletivo, defensores  
das necessidades sociais e do acesso à água como direito humano fundamental.  
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425  
Más allá de la crisis: la energía como disputa y  
como lucha  
Beyond the crisis: energy as a dispute and as a fight  
Laura Isabel Serna Agudelo*  
Erika Barón Rodríguez**  
Resumo: Este artículo expone la crisis  
ecológica, ambiental energética como  
Abstract: This article examines the ecological,  
environmental, and energy crises as concrete  
expressions of the nature-humanity relationship  
under the current world system, which destroys  
the sources of all wealth: the earth with its  
natural resources and the worker. It also  
highlights the efforts of various actors to build  
a society moving towards a model of  
socioecological justice. The article emphasizes  
the Colombian case to present the agendas of  
the country's first progressive government  
regarding a just energy transition. Additionally,  
it identifies a pioneering process in the country  
aimed at building collective organization for  
energy democracy: the National Constituent  
Movement for Energy Democracy. Finally, it  
presents some contributions from Critical  
Social Work towards this transformative  
endeavor.  
y
expresiones concretas de la relación naturaleza-  
humanidad bajo el sistema mundo actual, el cuál  
destruye las fuentes de toda riqueza: la tierra  
con sus recursos naturales y al trabajador; y de  
igual manera expone los esfuerzos de algunos  
actores para construir una sociedad que transite  
hacia un modelo de justicia socioecológica. De  
esa manera, se destaca el caso colombiano para  
exponer las agendas del primer gobierno  
progresista frente a la transición energética justa  
y a su vez, se identifica un proceso pionero en  
el país que busca construir organización  
colectiva para la democracia energética: el  
Movimiento Nacional Constituyente por la  
Democracia Energética. Finalmente, se  
exponen algunas contribuciones desde el  
Trabajo Social Crítico para esta apuesta  
transformadora.  
Palavras-chaves:  
Crisis  
energética;  
Keywords: Energy crisis; Energy democracy;  
Democracia energética; Movimiento social;  
Trabajo Social crítico.  
Social movement; Critical Social Work.  
*
Trabajadora Social de la Universidad del Valle, Cali, Colombia. Integrante del Centro de Pensamiento Uramba.  
** Trabajadora Social de la Universidad del Valle, Cali, Colombia. Integrante del Centro de Pensamiento Uramba.  
DOI: 10.34019/1980-8518.2024.v24.46420  
Esta obra está licenciada sob os termos  
Recebido em: 31/10/2024  
Aprovado em: 18/12/2024  
Más allá de la crisis: la energía como disputa y como lucha  
Introducción  
Cuando se habla de energía, sus efectos abarcan prácticamente todos los aspectos de la  
vida humana: desde la energía química que impulsa a los organismos vivos, los ciclos  
energéticos dentro de la dinámica de los ecosistemas, hasta la organización de gran parte de la  
cotidianidad y de las relaciones humanas.  
La energía no sólo le otorga al ser humano la satisfacción de sus necesidades más  
básicas sino que ésta se conecta directamente con gran parte de sus derechos para garantizar  
una vida más digna, como lo son: el derecho a la salud; el derecho a una vivienda segura y  
digna; el derecho a la educación; el derecho al agua potable, entre otros.  
Por ello, asistir hoy a la crisis energética provocada por el sistema socioeconómico  
pone en riesgo el desarrollo de la vida tal cual la conocemos; sin embargo dicha crisis es sólo  
una expresión de las crisis internas del sistema y que hoy en confluencia con otras permite  
hablar de que se está viviendo una crisis civilizatoria, es decir, “el declive de un modelo de  
organización económica, productiva y social, con sus respectivas expresiones en el ámbito  
ideológico, simbólico y cultural” (Vega Cantor, 2019, p. 184).  
En ese sentido, es menester tratar dicha crisis de manera radical con el fin de  
comprender su lógica que deviene de la relación naturaleza-humanidad desde la perspectiva  
crítica marxista e identificar procesos emergentes que disputan luchas frente a la degradación  
de los ecosistemas y la vida misma.  
427  
Crisis energética, una expresión de la crisis civilizatoria  
Al explorar la crisis energética actual, resulta fundamental abordar la noción de  
“fractura metabólica” que plantea Foster (2000) en su texto “la ecología de Marx” la cual  
permite reconocer que el sistema socioeconómico no solo se basa en la explotación humana  
sino además en la explotación de la naturaleza para satisfacer su insaciable necesidad de  
acumulación.  
Esta fractura metabólica conlleva a comprender cuál es la relación humanidad-  
naturaleza en el sistema mundo actual y que es develado por Marx, quien desde el  
materialismo sentó las bases para el desarrollo de la ecología.  
Marx siempre trató a la naturaleza, en la medida en que la naturaleza entraba  
directamente en la historia humana a través de la producción, como una extensión del cuerpo  
humano (es decir, "el cuerpo inorgánico" de la humanidad). La relación humana con la  
naturaleza, según esta concepción, estaba mediatizada no sólo a través de la producción, sino  
también, y más directamente, por medio de las herramientas -ellas mismas un producto de la  
Laura Isabel Serna Agudelo; Erika Barón Rodríguez  
transformación humana de la naturaleza mediante la producción- que han permitido a la  
humanidad transformar la naturaleza de modo universal (Foster, 2000, p. 121).  
Lo anterior pone de manifiesto la relación metabólica entre humanidad-naturaleza,  
donde los seres humanos por medio del trabajo y de la producción de sus medios de  
subsistencia, transforman la naturaleza y en dicho proceso también transforman su relación  
con ella; entonces es a partir del trabajo que la naturaleza adquiere una dimensión práctica y  
se da una relación que incluye tanto “las condiciones impuestas por la naturaleza” como la  
capacidad de los seres humanos para impactar en ese proceso (Foster, 2000, p. 245). Dicha  
relación es entendida por Marx como una relación metabólica.  
Con ello se resalta entonces la relación metabólica a la que refiere Marx entre los seres  
humanos-naturaleza, en donde se considera que el mundo natural contribuye a la producción  
de valores de uso y por lo tanto es fuente de riqueza igual que el trabajo (Foster, 2000), lo que  
implica trascender la concepción de la naturaleza al servicio de los seres humanos sino como  
aquella que contribuye a la satisfacción de las necesidades humanas reales.  
En ese sentido, el sistema socioeconómico del capital provoca una “ruptura  
metabólica” al priorizar la acumulación de capital sobre la sostenibilidad de los recursos  
naturales que son finitos, por lo cual se asiste a la desestabilización de los ciclos ecológicos  
fundamentales para la vida pero también “la alienación de la naturaleza constituye la  
alienación de nuestro propio potencial como especie” (Harvey, 2014, p. 256).  
Si bien esta ruptura metabólica impacta al mundo entero, los efectos de la misma se  
presentan de manera desigual entre los países del “centro” y las periferias, lo que crea una  
relación de imperialismo ecológico que sostienen los países del Norte Global hacia los países  
del Sur y que tiene como características principales:  
428  
La destrucción de los ecosistemas de los países periféricos; la acentuación del saqueo  
de materias primas y bienes comunes de tipo natural, a través de guerras; la biopiratería y  
saqueo de la diversidad biológica y cultural de los países dominados; el traslado de desechos  
tóxicos de los centros hacia las periferias (Vega Cantor, 2019, p. 16)  
De esta manera, las crisis energéticas, ecosistémicas y ambientales son vividas de  
maneras más agudas en los países del Sur global, al ser estos los que dependen  
económicamente de la exportación de recursos naturales y esta dependencia genera patrones  
de explotación ambiental intensiva que afectan gravemente sus propios ecosistemas y  
comunidades.  
Con ese contexto, la crisis energética en Colombia responde al modelo socioeconómico  
y tiene algunas particularidades que vale la pena resaltar.  
Libertas, Juiz de Fora, v. 24, n. 2, p. 426-443, jul./dez. 2024. ISSN 1980-8518  
Más allá de la crisis: la energía como disputa y como lucha  
En principio, Colombia históricamente ha sostenido una dependencia a los recursos  
fósiles para la generación de ingresos, pues el sector petrolero y sus derivados representan un  
porcentaje significativo a nivel macroeconómico para el país, como para la producción de  
energía; lo que da cuenta de la relación de imperialismo ecológico mencionada anteriormente.  
Seguidamente, el modelo energético colombiano es un modelo centralizado que se  
encuentra bajo el control de las grandes corporaciones y en sus diferentes procesos:  
generación, transmisión, distribución y comercialización prepondera la participación de las  
empresas; es decir que hoy la energía es vista como un servicio y no como derecho, lo que  
significa que se está frente a un sector en el que se ha venido desarrollando el neoliberalismo,  
apostándole a la privatización y a la acumulación de capital. En el caso de la generación,  
actualmente hay una distribución desigual donde las empresas públicas de gran envergadura  
son 2 (EPM Y EBB) frente a un estimado de 5 privadas (ISAGEN, Enel Codensa, CELSIA,  
Hidroeléctrica El Quimbo, Hidroeléctrica San Carlos).  
Por su parte, la matriz energética en Colombia tiene la siguiente distribución; en el  
sistema interconectado nacional la generación hidráulica corresponde al 66,2%; la térmica al  
30,6%; y la solar al 2,09%, mientras que en las zonas no interconectadas hay una generación  
por diésel del 85% frente a las de la FNCER que es del 15% (Villamizar Villamizar, 2023).  
Dicha distribución se ha visto profundamente afectada por las alteraciones a los ecosistemas  
que han causado sequías y por ende alterado la producción de energía hidroeléctrica de la cual  
depende en gran medida la población a nivel nacional.  
429  
Si bien la energía hidroeléctrica utiliza la fuente vital que es el agua ésta tiene unos  
impactos ambientales inconmensurables que afectan la biodiversidad, no sólo en su fase inicial  
(de construcción de represas) sino en su funcionamiento al generar emisiones de metano y en  
el impacto del suelo que puede provocar desplazamientos en el mismo. De igual manera, su  
construcción ha implicado el desplazamiento y en muchas ocasiones la persecución de las  
comunidades quienes defienden el territorio; lo que evidencia la economía de la muerte  
alrededor de estas grandes corporaciones que para el lucro y la acumulación atentan contra los  
derechos humanos.  
Además de lo anterior, la crisis energética también se expresa en la desigualdad en el  
acceso a la energía de una gran parte de la población, en muchas ocasiones del sector rural o  
ubicadas en las periferias de las ciudades, lo que implica hablar de pobreza energética.  
Un hogar se encuentra en pobreza energética cuando no cuenta con acceso equitativo  
a servicios energéticos de alta calidad que le permitan cubrir sus necesidades fundamentales y  
básicas, las cuales son cruciales para el desarrollo personal, social y económico de las  
Laura Isabel Serna Agudelo; Erika Barón Rodríguez  
personas. (RedPe como se citó en Villamizar Villamizar, 2022, p. 10-11).  
En ese sentido, la pobreza energética es un fenómeno multidimensional y situado en  
tanto la satisfacción de las necesidades básicas está permeada por una serie de factores sociales  
y culturales. En Colombia, se puede indicar que dicha pobreza implica, además del no acceso  
a la energía, la ausencia de tecnologías de la información y comunicación, el uso de leña o  
fuentes de cocción de alimentos altamente contaminantes y nocivas para la salud, la ausencia  
de fuentes para la conservación de alimentos, la inestabilidad en el servicio y las altas tarifas  
de energía producto de la dinámica de mercado y valor de cambio emplean las empresas de  
servicios públicos.  
Ante este contexto de crisis energética, hoy se presencia no sólo en Colombia sino en  
todo el mundo la transición energética, la cual busca a grandes rasgos cambiar la matriz  
energética con el fin de detener los desastrosos efectos del capital; sin embargo dicha  
transición no necesariamente significa una transformación del sistema socioeconómico, sino  
que bajo las grandes corporaciones busca “continuar en el camino del crecimiento sin límites,  
intercambiando recursos fósiles por renovables y alta tecnología, sin modificar las lógicas de  
consumo capitalistas, ni cuestionar la distribución o el acceso a la energía de las poblaciones,  
o la participación ciudadana en los procesos de toma de decisión” (Bertinat; Chemes, 2022, p.  
136).  
430  
En ese sentido, se presencia el modelo del “capitalismo verde”, una expresión en la  
que estas grandes corporaciones aparentemente se encuentran “ocupándose” de los problemas  
ambientales y ecosistémicos, presentando ante el público su “noble” interés de reducir el  
impacto del que son responsables. Sin embargo, por más que empresas como Drummond  
encargadas del fracking en países como Colombia hagan reforestación esto no podrá revertir  
la huella de carbono provocada ni detener su impacto.  
A raíz de lo anterior, distintos sectores de las clases populares han venido disputando  
en sus territorios y comunidades los impactos ambientales y ecológicos que ocasionan las  
grandes corporaciones y las contradicciones que hoy representan éstas en dicho ámbito.  
Respecto al sector energético que atiende este artículo se ha venido desarrollando la  
“transición energética justa o popular”, un término que pone en disputa la transformación del  
sistema energético, la soberanía del mismo y que ubica a la comunidad y el territorio en el  
centro.  
Si bien dicha transición es parte del camino hace parte de un horizonte más amplio que  
implique una nueva forma de sociedad como lo es el ecosocialismo, donde el sistema  
energético funcione como “un sistema descentralizado, planificado, ahorrador, eficiente e  
Libertas, Juiz de Fora, v. 24, n. 2, p. 426-443, jul./dez. 2024. ISSN 1980-8518  
Más allá de la crisis: la energía como disputa y como lucha  
intensivo en trabajo vivo, basado exclusivamente en fuentes renovables y orientado a la  
producción de valores de uso durables, reciclables y reutilizables” (Vega Cantor, 1999, p. 52).  
De esta manera, la transición energética hace parte de la agenda pública de las  
corporaciones e instituciones estatales, por lo cual es imprescindible preguntarse bajo qué  
lógica se ha pensado dicha transición y para quienes, pues se reconoce que a gran escala ésta  
continúa bajo el modelo de mercado1 y por ello resulta relevante tanto que los gobiernos de  
izquierda y progresistas adopten una mirada radical que logre trastocar el sistema minero  
energético, como que las comunidades asuman con su capacidad organizativa las exigencias  
que demanda transformar la relación existente entre naturaleza-humanidad bajo el capital,  
comprendiendo que sin éstas la ventana de oportunidades no podrá materializarse.  
Punto de inflexión: agendas, oportunidades y horizonte desde el gobierno nacional  
En el marco de la importancia mundial de apostarle a la transición energética justa y la  
democracia energética, Colombia actualmente tiene una oportunidad histórica teniendo en  
cuenta que el Gobierno Nacional electo durante el periodo 2022-2026, presidido por Gustavo  
Petro Urrego y Francia Elena Márquez Mina. Es el primer gobierno progresista y de izquierda  
en el país, por lo que las agendas que han guiado su accionar durante el periodo 2022-2024 han  
sido las agendas construidas y defendidas históricamente por los movimientos y organizaciones  
sociales, políticas, y comunitarias. En cuanto a la democracia energética, la transición  
energética justa y de cara a la crisis medioambiental que hoy se enfrenta en el mundo, este  
gobierno pone en el centro de su agenda la defensa de la naturaleza y la biodiversidad en tanto  
es a la vez la defensa y protección de la existencia del ser humano. Esto se puede ver reflejado  
en el Plan Nacional de Desarrollo 2022-2026: Colombia Potencia Mundial de la Vida;  
documento que es la hoja de ruta del gobierno y en el cual dos de las grandes transformaciones  
que plantea es el ordenamiento territorial alrededor del agua y la transformación productiva,  
internacionalización y acción climática; reiterando de esta manera la importancia de transitar  
de un modelo económico y social desigual a un modelo ambientalmente sostenible, socialmente  
justo y descarbonizado.  
431  
Asimismo, se identifica el esfuerzo por ejecutar acciones que materialicen lo anterior y  
que aboguen por la democracia energética por medio de las comunidades energéticas, las cuales  
quedan reglamentadas en el Decreto 2236 de 20232, mediante el cual se definen las  
1
Como se puede ver en Bertinat y Chemes (2022) en su artículo “Transición energética y disputa de sentidos”.  
2
Para más información revisar el Decreto 2236 de 2023. Presidencia de la República de Colombia.  
Laura Isabel Serna Agudelo; Erika Barón Rodríguez  
comunidades energéticas como:  
comunidades organizadas que surgen en virtud de un acuerdo entre personas  
naturales y/o jurídicas de derecho público o privado que cooperan entre sí a  
través de un contrato o convenio asociativo para desarrollar las siguientes  
actividades: generación, comercialización y uso eficiente de la energía a través  
del uso de Fuentes No Convencionales de Energía Renovables -FNCER-,  
combustibles renovables y recursos energéticos distribuidos (artículo  
2.2.9.1.2, 22 de diciembre de 2023).  
Algunos de los objetivos de estas comunidades energéticas son: a) Aumentar la  
cobertura del servicio de energía y garantizar el acceso de las poblaciones vulnerables a dicho  
servicio. b) Democratizar la energía a partir de la participación de los usuarios y potenciales  
usuarios como generadores y gestores de las Fuentes No Convencionales de Energía  
Renovables -FNCER-, combustibles renovables y recursos energéticos distribuidos. c)  
Descentralizar la generación, el almacenamiento y el consumo de energía hacia las  
comunidades. d) Descarbonizar la economía a partir de Fuentes No Convencionales de Energía  
Renovables -FNCER-, combustibles renovables y recursos energéticos distribuidos (artículo  
2.2.9.1.2, 22 de diciembre de 2023).  
Entre 2022-2023, según cifras del Ministerio de Minas y Energía (s.f) hubo 18 mil  
postulaciones de organizaciones interesadas en convertirse en comunidades energéticas, lo que  
representa el interés de una parte importante de la sociedad en implementar estrategias para  
impactar de manera positiva en el ecosistema y a su vez, abogar por la reducción del costo y  
tarifas de energía.  
432  
En otra instancia, una ventana de oportunidad sin precedentes que se abre con el  
gobierno actual a favor de la justicia tarifaria y la disminución de la pobreza energética es la  
propuesta de reforma a la ley 142 y 143 de 19943. Estas dos leyes agrupan la normatividad  
básica y principal en torno a los servicios públicos en Colombia y han sido muy cuestionadas  
desde su creación ya que le dan vía libre a las empresas privadas para el manejo de la energía y  
el acueducto y el manejo de los servicios públicos como un negocio lucrativo y no como un  
derecho, lo que se ve reflejado en tarifas injustas, en muchas ocasiones un mala calidad en la  
entrega del agua o la energía en las viviendas y una desigualdad en el acceso. Según el  
Departamento Nacional de Planeación (2024) cerca de 4 millones de personas no cuentan con  
servicio de energía eléctrica, principalmente en regiones vulnerables. Si bien ha aumentado la  
cobertura, también ha sido determinante la brecha sobre la calidad del servicio y la cobertura  
3
Para más información revisar: Ley 142 de 1994. Congreso de la República de Colombia.  
Libertas, Juiz de Fora, v. 24, n. 2, p. 426-443, jul./dez. 2024. ISSN 1980-8518  
Más allá de la crisis: la energía como disputa y como lucha  
de este, por ejemplo, al tener en Bogotá el 99,9% de los hogares con la prestación del servicio  
frente al 55% de los hogares en Vichada, una zona periférica de Colombia.  
En este sentido, el gobierno viene impulsando una reforma a estas leyes que incluye  
hasta el momento 6 ejes: justicia tarifaria; universalización en la prestación del servicio; usuario  
como el centro de la regulación; fortalecimiento institucional y gobernanza; focalización de  
subsidios y Participación comunitaria en la prestación del servicio.  
Sumado a lo anterior, el Ministerio de Minas y Energía ha impulsado las denominadas  
“Asambleas Populares de Servicios Públicos y Energía”, mediante las cuales el gobierno busca  
hacer juntanza entre distintos sectores de la sociedad civil para caminar hacia una justicia  
tarifaria y justicia energética. Asimismo, busca escuchar las voces de distintos sectores para  
plantear soluciones que tengan en cuenta sus realidades. Estas Asambleas se han realizado en  
diversas partes del país. En la ciudad de Cali, por ejemplo, se han desarrollado dos Asambleas  
entre el 2023 y 2024, en las cuales se han establecido acuerdos para la implementación de  
comunidades energéticas, el fortalecimiento de la participación comunitaria en la transición  
energética justa y la reforma a la ley 142 y 143 de 1994.  
Como se puede observar, el gobierno actual tiene la concepción de la energía no como  
un fin sino como un derecho que facilita la consecución de otros derechos como el de la salud  
y a la educación. De igual manera, se ha politizado la energía y se ha ido posicionando este  
tema en el sentido común, en la cotidianidad de la población por medio de espacios abiertos  
como las Asambleas Populares, generando así estrategias para acercar a la población a un tema  
del que poco se discute en la cotidianidad, permitiendo develar los intereses particulares que  
hay en el medio.  
433  
Todas estas acciones desarrolladas son fundamentales para la construcción de un modelo  
de sociedad en el cual la energía no sea entendida como una mercancía, sino como un derecho  
y en el cual la relación con la naturaleza no se basa en la explotación de esta última. Asimismo,  
el enfoque en la participación ciudadana que ha puesto el gobierno actual para la transición  
energética justa y la democracia energética es fundamental, en tanto permite un proceso de  
aprendizaje social sobre las problemáticas energéticas y la organización colectiva y popular  
para la lucha por la justicia socioecológica.  
Como lo menciona Kolya Abramsky, citado en Angel (2016, p. 4):  
[…] toda transición energética emancipadora requeriría una transformación  
fundamental de la geometría del poder actual y, como tal, exigiría una  
estrategia política concreta y ambiciosa sobre cómo se podría alcanzar este  
tipo de transformación. De este modo, puede que la cuestión más apremiante  
no pase por cuáles serían las características exactas de una futura utopía  
energética, sino, más bien, cómo podemos construir poder y organización  
Laura Isabel Serna Agudelo; Erika Barón Rodríguez  
colectiva.  
En síntesis, en el contexto político colombiano actual la ciudadanía, organizaciones  
sociales y el movimiento social en general tienen un margen de incidencia política histórica; lo  
que se ve representado en la unión de diversas organizaciones para la defensa del proyecto  
societal que representa el gobierno actual, así como también para defender las agendas  
populares en medio de un escenario político en el cual el poder económico continúa en manos  
de la clase capitalista representada en grandes grupos empresariales, bancos, medios de  
comunicación hegemónicos, entre otros.  
En este escenario político nacional en medio de la crisis climática, ambiental y  
energética mundial, surge el Movimiento Nacional Constituyente por la Democracia  
Energética, el cual tiene como bandera la democracia energética y la lucha por la justicia  
socioambiental. De esta manera, se constituye como una alternativa que vale la pena destacar  
en tanto contribuye a pensar y construir nuevos horizontes civilizatorios.  
Asimismo, el surgimiento de MODEN puede explicarse desde la Estructura de  
Oportunidades Políticas (EOP) que propone Eisinger (1973) y profundiza Tarrow (1998), desde  
la cual se estudia la influencia del contexto político en la formación, supervivencia e impacto  
de los movimientos sociales. En este caso, el gobierno progresista actual ha significado una  
apertura del sistema político y un fortalecimiento del movimiento social en Colombia.  
434  
Movimiento Nacional Constituyente por la Democracia Energética (MODEN): una  
apuesta encaminada a nuevas formas de gobernanza energética en Colombia  
En este apartado se realizará una caracterización de los aspectos principales del  
Movimiento Nacional Constituyente por la Democracia Energética4 en tanto es un proceso  
nacional de organización colectiva pionero en lo relacionado a la democracia energética. Para  
desarrollar esta caracterización se realizó una entrevista a Juan Camilo Lara Giraldo,  
coordinador de MODEN Pacífico y Representante Legal del Centro de Pensamiento Uramba,  
en tanto ha sido un actor fundamental en la creación y consolidación del MODEN.  
En ese orden, el Movimiento surge a inicios del 2024 a partir de una necesidad de  
desarrollar agendas de democracia energética. Si bien ya existían iniciativas locales o  
comunitarias como los Comités de Usuarios, es el primer Movimiento que disputa de manera  
nacional la planificación energética, la superación de la pobreza energética del país y el  
fortalecimiento del movimiento social. Asimismo, el MODEN se convierte en un catalizador  
4
En adelante MODEN.  
Libertas, Juiz de Fora, v. 24, n. 2, p. 426-443, jul./dez. 2024. ISSN 1980-8518  
Más allá de la crisis: la energía como disputa y como lucha  
de la agenda del gobierno nacional en términos minero-energéticos, partiendo del hecho de que  
muchas de estas agendas son populares, por ende, desde el Movimiento se impulsa y profundiza  
dichas agendas.  
En cuanto a la composición del Movimiento, se destaca la presencia de organizaciones  
sindicales, organizaciones sociales de diferente tipo, entre ellas el Centro de Pensamiento  
Uramba, organización fundadora e impulsora principal a nivel nacional del Movimiento,  
organizaciones viviendistas, organizaciones campesinas o agrarias y comités de usuarios. Dicha  
configuración denota cómo la lucha por la distribución de la tierra, agraria y minero energética  
no está desarticulada de la lucha sindical que pone en el centro la relación capital-trabajo; por  
el contrario, en la ecología política se puede encontrar su confluencia entendiendo que el  
sistema mundo no sólo explota al ser humano (que hace parte inherente de la naturaleza) a partir  
del trabajo, sino que además explota los recursos naturales que ofrece la naturaleza.  
De igual manera, la estructura del movimiento se da a partir de coordinaciones  
regionales; estando presentes 5 regiones del país: coordinación pacífico, que agrupa los  
departamentos de Chocó, Valle del Cauca, Cauca y Nariño; coordinación caribe; coordinación  
centro, que agrupa los departamentos de Cundinamarca, Bogotá, Tolima, Huila, Risaralda,  
Caldas y Quindío; coordinación oriente, que articula los municipios de los llanos orientales y  
finalmente, coordinación sur, donde están los departamentos de la Amazonía y el sur del país.  
Ahora bien, se destaca que la coordinación Pacifico y Caribe son hasta el momento las más  
articuladas y organizadas, en tanto coyunturalmente la disputa por las tarifas justas es una  
disputa álgida en estas zonas del país.  
435  
Laura Isabel Serna Agudelo; Erika Barón Rodríguez  
Figura 1: Ubicación geográfica de las coordinaciones regionales del MODEN.  
Fuente: Elaboración propia.  
436  
Con relación a los objetivos del MODEN, el coordinador de la regional pacífico destaca  
cinco:  
1. Incidir en la planificación minero-energética del país.  
Actualmente la institución encargada de realizar dicha planificación es la Unidad de  
Planeación Minero-Energética (UPME), a partir de la solicitud de puntos de conexión por parte  
de las empresas de servicios públicos. Es decir, son estas empresas las que establecen donde se  
harán proyectos estratégicos para el acceso a la energía. Lo que el MODEN busca es que sea la  
misma comunidad la que planifique su territorio teniendo en cuenta sus necesidades y de esta  
manera, generar procesos de autonomía o soberanía sobre sus recursos energéticos.  
Entonces cuando hablamos de que nosotros seamos quienes realicemos (...) la  
planificación minero-energética en nuestros territorios, hablamos de hablar  
más en clave de rentabilidad social, es decir, qué es lo que más beneficia a las  
comunidades y no de la rentabilidad económica de las empresas que son  
quienes invierten en estos negocios de la energía (coordinador MODEN  
pacífico, entrevista, 15 de septiembre de 2024).  
Libertas, Juiz de Fora, v. 24, n. 2, p. 426-443, jul./dez. 2024. ISSN 1980-8518  
Más allá de la crisis: la energía como disputa y como lucha  
2. Incidir en la superación de la pobreza energética.  
Teniendo en cuenta la investigación de Villamizar Villamizar (2023), en el cual se  
calcula la pobreza energética en Colombia desde una perspectiva multidimensional y territorial,  
de los 32 departamentos y Bogotá, 29 de ellos presentan pobreza energética por encima del  
80%, en donde Bogotá y San Andrés y Providencia presentan los valores menores con un 20%  
y 45% respectivamente, en contraste con Vaupés y Putumayo, con un 98%. Esta situación  
refleja la brecha histórica en el acceso y calidad a la energía y a tecnologías de la información  
entre zonas urbanas y zonas rurales y municipios centralizados, como es el caso de Bogotá al  
ser la capital de Colombia.  
Bajo este panorama, el MODEN busca incidir en la superación de la pobreza energética  
por medio de la participación en espacios de toma de decisión y al construir propuestas en la  
que los departamentos con gran riqueza ambiental, muchos de ellos en zonas rurales, puedan  
ver reflejada esa riqueza en la satisfacción de sus necesidades básicas, en el acceso y calidad a  
la energía, a fuentes de comunicación y tecnologías de la información y al fortalecimiento de  
sus economías populares,  
3. Transformar las leyes vigentes de servicios públicos (ley 142 y 143 de 1994)  
Como se mencionó anteriormente, el marco normativo de los servicios públicos en  
Colombia se construye en el auge del Neoliberalismo en Colombia, motivo por el cual la esencia  
de las principales leyes es beneficiar a las empresas, dándoles vía libre para la privatización y  
el funcionamiento de los servicios públicos desde una economía de mercado, viendo la energía  
como una mercancía y estableciendo tarifas injustas a la población. Por ende, desde el MODEN  
es prioritario transformar las leyes en favor de la ciudadanía, con el fin de promover tarifas  
justas basadas en costos reales de producción y no en la especulación del mercado; acceso  
equitativo para disminuir las brechas; mínimo vital de energía; participación democrática y  
exigir la intervención responsable de empresas del sector para asegurar una operación continua  
y eficiente.  
437  
4. Organización comunitaria para autogeneración de energía  
Dicha organización comunitaria se realiza por medio del fortalecimiento organizativo  
de las formas asociativas pero también, articulando por medio de rutas público-populares con  
entidades como el Ministerio de Minas y Energía y su estrategia de Comunidades Energéticas,  
esto, a grandes rasgos es la apuesta por democratización del acceso a la energía.  
Laura Isabel Serna Agudelo; Erika Barón Rodríguez  
5. Democratizar el conocimiento energético.  
Por último, el conocimiento energético tiende a ser muy técnico y suele estar restringido  
a los actores empresariales. El objetivo del MODEN es que este empiece a ser de dominio  
público y que esté al alcance de las comunidades ya que para transformar el primer paso es  
conocer. De esa manera el coordinador MODEN Pacifico expresa:  
que todos y todas tengan nociones sobre cómo se controla la energía en el país,  
sobre cuál es la cadena de valor de la energía que existe en el país, sobre  
quiénes son los actores que están involucrados, sobre cómo se ha consolidado  
la legislación alrededor de la energía (...) cómo opera el sector, entonces cómo  
está constituido el mismo Estado, cómo se consolida a partir del Ministerio de  
las entidades adscritas (Coordinador MODEN Pacífico, entrevista, 15 de  
septiembre, 2024).  
En otro orden, es pertinente mencionar las estrategias que ha adoptado el Movimiento  
para lograr los objetivos propuestos. De acuerdo a lo mencionado por el representante MODEN  
Pacifico, la movilización ha sido el repertorio de acción5 más utilizado; siendo una movilización  
en el Cauca contra la Compañía Energética de Occidente (CEO) y Aire en el caribe, las más  
masivas y significativas hasta el momento. Ambas movilizaciones se desarrollaron de manera  
inicial por las tarifas altas y cortes del servicio de energía por parte de ambas empresas. Sin  
embargo, debido al impacto que tuvieron, se logró de manera inmediata la suspensión de cortes  
del servicio, mesas de trabajo y concertación con representantes de dichas empresas, el  
Ministerio de Minas y Energía y el MODEN, transitando así a repertorios de acción de índole  
jurídico. Adicional a ello se destaca la incidencia de la agenda del Movimiento para  
construcción de Políticas Públicas. Un ejemplo de lo anterior se encuentra en Cali, con la  
aprobación por parte del Consejo Municipal del proyecto de acuerdo de democracia energética  
municipal. Como resultado de lo anterior, el Movimiento se ha convertido en la instancia oficial  
de articulación del gobierno nacional con los usuarios de todo el territorio nacional, por medio  
de delegaciones en diferentes instancias.  
438  
En ese orden de ideas, vale la pena mencionar que al ser un movimiento, si bien hay  
unos mínimos políticos para vincularse, también están presentes diversas posturas políticas.  
Sobre esto el coordinador MODEN Pacífico, resalta que actualmente existen dos fuerzas dentro  
del Movimiento: aquella que busca tener una relación simbiótica con el gobierno nacional y  
5
Son acciones que llevan el mensaje de la demanda del movimiento social o acción colectiva. Son culturalmente aprendidos  
y cobran forma a partir de confrontaciones anteriores. Estos repertorios pueden ser públicos, los cuales tienen como fin  
visibilizar el movimiento y las demandas de este. También pueden ser privados y buscan mantener el movimiento en el tiempo,  
es decir, se organizan recursos que garanticen esto. Finalmente, se pueden identificar tres dimensiones en los repertorios de  
acción: una dimensión social, encaminada a construir vínculos con la sociedad; una dimensión jurídica que pretende logros en  
ámbitos formales y por último, una dimensión simbólica, que son una forma de llevar el mensaje y en ocasiones, se convierte  
en la esencia del movimiento (García, 2004).  
Libertas, Juiz de Fora, v. 24, n. 2, p. 426-443, jul./dez. 2024. ISSN 1980-8518  
Más allá de la crisis: la energía como disputa y como lucha  
otra que apoya de manera crítica las agendas del gobierno, partiendo del hecho que este  
gobierno se consolidó a partir de una correlación de fuerzas, por ende, hay agendas populares  
pero también hay quienes impulsan agendas que responden a intereses particulares y  
hegemónicos. En consecuencia, son aliados del gobierno cuando las agendas son populares y  
no lo son cuando identifican agendas opuestas al interés general.  
Esta correlación de fuerzas internas se convierte en un reto del Movimiento,  
particularmente esta primera postura es peligrosa para la sostenibilidad de este proceso en tanto  
como movimiento social su existencia no puede depender de un gobierno; por el contrario,  
deben tener sus agendas colectivas y populares y analizar si ven en otros actores la posibilidad  
de aliarse para fortalecerse y lograr los objetivos, más no puede ser un movimiento simbiótico  
o que respalde sin cuestionamientos al gobierno ya que podría alejarse de la esencia de un  
movimiento social y responder a intereses ético políticos contrarios, pues como lo menciona  
Tilly (1990) citado en García (2004) “un movimiento social consiste realmente en una serie de  
demandas o desafíos a los poderosos” (p.13)  
Finalmente, un reto principal expuesto por Juan Camilo Lara, coordinador MODEN  
Pacifico es el proceso de cualificación de las organizaciones que hacen parte del movimiento  
en los diferentes departamentos, con el fin de tener las herramientas para ejecutar el plan de  
trabajo y un proceso de democracia energética real.  
439  
Acorde a lo anterior estamos frente a un movimiento que pone en discusión un modelo  
de sociedad distinto, en el que la lucha ecológica y la lucha de clase son como menciona Foster  
cara de una misma moneda. En ese sentido, se convierte en un horizonte el ecosocialismo, el  
cual “aspira a subordinar el valor de cambio al valor de uso, organizando la producción en  
función de las necesidades sociales y las exigencias de la protección del medio ambiente”  
(Löwy, 2011, p. 30)  
Eso lo vemos reflejado en MODEN cuando coordinador Pacifico refiere:  
Hablamos de lucha de clases cuando, en el marxismo se plantea que hay un  
proceso de alienación o enajenación donde los actores no son dueños de lo  
que deberían ser dueños, no son dueños de su propio trabajo por ejemplo y en  
este caso nosotros estamos planteando tenemos que ser dueños de nuestros  
recursos estratégico (Coordinador MODEN Pacífico, entrevista, 15 de  
septiembre, 2024).  
De esta manera, la transición energética es parte de la lucha que representa el  
movimiento; sin embargo su foco y horizonte debe ser una transformación ecosocialista en  
dónde puedan continuar disputando el sistema organizativo y en el que los/as trabajadores del  
mundo sean la fuerza clave para dicha transformación y los/as encargados/as de transitar de la  
racionalidad capitalista a la racionalidad ecológica que logre incluir los ciclos ecosistémicos  
Laura Isabel Serna Agudelo; Erika Barón Rodríguez  
necesarios para la vida, restaurando así la fractura metabólica presente en la dualidad  
naturaleza-humanidad vista desde el sistema actual.  
Contribuciones desde el Trabajo Social Crítico  
Una vez expuesta la crisis ambiental y energética que se vive en el mundo y en Colombia  
en especial y la mención de una alternativa pionera que busca transitar a una sociedad más justa  
como lo es el MODEN, vale la pena reflexionar qué lugar tiene el Trabajo Social en dicho  
entramado y qué aportes puede hacer para ese horizonte de una sociedad con justicia  
socioecológica.  
De esa manera, es pertinente destacar que al ser una profesión asalariada inscrita en la  
división social y técnica del trabajo, Trabajo Social se sitúa en el proceso de reproducción de  
las relaciones sociales propias de la sociedad capitalista, lo que hace que el ejercicio profesional  
esté permeado por “ese juego de fuerzas, subordinándose, históricamente, a aquellas que son  
dominantes desde el punto de vista político, económico e ideológico, en coyunturas históricas  
determinadas” (Iamamoto, 1997, p. 110). En ese sentido, al constituirse como profesión  
asalariada, la práctica profesional se encuentra inmersa en tensiones y contradicciones producto  
de la lucha de clases; entender esta dinámica es lo que posibilita que se pueda establecer una  
estrategia profesional y política para fortalecer el objetivo del capital o del trabajo.  
En ese sentido y teniendo como compromiso un horizonte ético-político con una  
sociedad que pueda superar las condiciones de explotación y desigualdad que hoy están  
acabando con los recursos naturales y la vida misma; se identifican dos aportes desde el Trabajo  
Social.  
440  
Por un lado, como se pudo ver en los apartados anteriores, un reto para transitar hacia  
la democracia energética es acceder al conocimiento, darle herramientas a las comunidades de  
los territorios que buscan ser transformados para que puedan gestar procesos de autogeneración,  
para que comprendan el entramado técnico, político y normativo en lo relacionado a la  
transición energética, los servicios públicos, entre otros. El conocimiento es poder y es el  
catalizador para transformar.  
Así pues, estos procesos de democratización del conocimiento pueden ser acompañados  
por trabajadores/as sociales teniendo presente que para Iamamoto (1997) una de las funciones  
del Trabajo Social es la socioeducativa está “volcada para cambios en la manera de ser, de  
sentir, de ver y actuar de los individuos, que busca la adhesión de los sujetos” (p. 116). Sin  
embargo, Yazbek (1999) citado en Oliva (2005) indica que, si bien la dimensión socioeducativa  
puede estar orientada a la integración, ésta también puede estar orientada al fortalecimiento de  
Libertas, Juiz de Fora, v. 24, n. 2, p. 426-443, jul./dez. 2024. ISSN 1980-8518  
Más allá de la crisis: la energía como disputa y como lucha  
las luchas de los sectores subalternizados. Lo anterior se materializa cuando las/os trabajadores  
sociales en su ejercicio profesional tienen la pretensión de capacitar para la exigibilidad de  
derechos, disputar poder, participar en las luchas reivindicativas y estar al tanto de los cambios  
en la legislación y debates políticos, ello como parte del componente socioeducativo y  
formativo reivindicativo.  
Por otro lado y retomando a Marcos Chinchilla Montes (2006) desde el Trabajo Social  
tenemos la posibilidad y, de acuerdo al compromiso ético-político del profesional, el deber de  
promover la organización popular, desde el impulso de nuevas organizaciones sociales, así  
como el fortalecimiento de las ya existentes.  
El fortalecimiento de la organización colectiva y popular representa la posibilidad  
tangible de construcción de un proyecto de sociedad con justicia socioecológica. Sin embargo,  
esto no una exclusividad no del Trabajo Social; de ahí la importancia de no caer en una visión  
mesiánica de la profesión, al concebirla con un carácter heroico que responda a los intereses de  
las clases subalternas desvinculados de sus relaciones de poder, desconociendo los  
condicionantes históricos-coyunturales, llegando a ser de esa manera ahistóricos y  
voluntaristas, en el cual muchas veces se reduce al compromiso individual del profesional,  
como si ello fuera suficiente para modificar la vida social (Iamamoto, 1997).  
En consecuencia, en esa construcción de sociedad que supere el sistema capitalista  
intervienen diversas profesiones y particularmente, los sectores populares y grupos  
progresistas. De ahí la imperiosa necesidad de construir red y negociar con diversos sectores  
sociales que compartan los mismos principios y convicciones ético-políticas.  
441  
Reflexiones finales  
La crisis energética actual es una manifestación de la "fractura metabólica" entre la  
humanidad y la naturaleza, en donde esta última es explotada en pro de la acumulación del  
capital. Esta situación ha generado una degradación ambiental y desigualdad social sin  
precedentes que pone en riesgo nuestra propia existencia.  
La crisis energética en Colombia es un ejemplo de esta fractura metabólica, con una  
fuerte dependencia de los combustibles fósiles, una matriz energética centralizada y  
desigualdad en el acceso a la energía.  
En ese escenario, políticamente el país tiene la posibilidad de consolidar un momento  
histórico en la transición hacia una democracia y transición energéticas justa. El gobierno  
progresista ha puesto en el centro de su agenda la defensa de la naturaleza y la biodiversidad,  
promoviendo la transformación del sector energético para hacerlo más justo, sostenible y  
Laura Isabel Serna Agudelo; Erika Barón Rodríguez  
democrático.  
En medio de la crisis energética y el escenario político coyuntural el MODEN representa  
una iniciativa importante para construir un futuro energético más justo Colombia, al promover  
la participación comunitaria y desafiar el modelo energético dominante, este movimiento  
contribuye a la construcción de una sociedad digna, libre y en la que prevalezca la vida.  
Ahora bien, el Trabajo Social como profesión inmersa en las dinámicas contradictorias  
del capital, tiene un llamado importante en esta crisis que atraviesa el mundo. De esa manera,  
partiendo de un proyecto ético-político transformador y contrahegemónico, el Trabajo Social  
tiene la posibilidad de promover espacios que permitan la formación de sujetos críticos y así,  
fortalecer los procesos de organización colectiva y popular que impulsan movimientos como el  
MODEN. Asimismo, se recalca la pertinencia de construir redes y alianzas con otras  
profesiones y sectores políticos y sociales para robustecer la incidencia.  
En ese sentido, además del fortalecimiento de las bases populares, como trabajadoras/es  
sociales es fundamental participar en espacios de formulación de políticas públicas con el fin  
de posicionar en esos espacios las agendas que construye el movimiento social.  
Para finalizar, es claro que el contexto actual otorga la posibilidad de construir procesos  
organizativos con la capacidad para incidir en la transformación de los gigantescos estragos  
ambientales dejados "como herencia" del capitalismo, sin embargo, vale la pena preguntarse  
¿entiende la sociedad la lucha que asiste hoy?  
442  
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Reforma agrária e alternativas à fome:  
o Plantio Solidário na Zona da Mata Mineira  
Agrarian reform and alternatives to hunger: Plantio Solidário in Zona da  
Mata of Minas Gerais  
Mônica Aparecida Grossi*  
Michelle Neves Capuchinho**  
Paula Rocha de Souza***  
Vitória Nacarate Machado****  
Maria Eduarda Dias*****  
Resumo: O artigo objetiva discutir a reforma  
agrária popular do MST e a construção de  
alternativas à fome no Brasil, destacando a  
análise da experiência realizada pelo MST na  
zona da mata mineira, intitulada “Plantio  
Abstract: The article aims to discuss the  
popular agrarian reform of the MST and the  
construction of alternatives to hunger in Brazil,  
highlighting the analysis of the experience  
carried out by the MST in the forest zone of  
Minas Gerais, entitled "Plantio Solidário". The  
results indicate the strengthening of class  
solidarity, agroecology practices, popular and  
political organization, causing a significant  
social impact.  
Solidário”. Os resultados indicam  
o
fortalecimento da solidariedade de classe, da  
agroecologia, da organização popular e política,  
causando um impacto social significativo.  
Palavras-chaves: Reforma agrária popular;  
Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem  
Terra (MST); Alternativas à fome; Projeto  
Plantio Solidário; Região da Zona da Mata de  
Minas Gerais.  
Keywords: Popular Agrarian Reform; Landless  
Workers' Movement (MST); Alternatives to  
Hunger; Plantio Solidário Project; Zona da  
Mata Region of Minas Gerais.  
*
Professora Titular da Faculdade de Serviço Social da UFJF. Doutora pela ESS/UFRJ. Pós doutora pela  
Universidade de Córdoba, Espanha. ORCID: https://orcid.org/0000-0002-2150-0173  
**  
Professora substituta da Faculdade de Serviço Social da UFJF, doutoranda em Serviço Social pela UFJF e  
dirigente do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra de Minas Gerais. ORCID: https://orcid.org/0009-  
*** Mestranda em Serviço Social pela UFJF e militante do Coletivo Pretxs em Movimento.  
**** Assistente Social pela Faculdade de Serviço Social da UFJF.  
***** Graduanda e bolsista de extensão da Faculdade de Serviço Social da UFJF.  
DOI: 10.34019/1980-8518.2024.v24.46491  
Esta obra está licenciada sob os termos  
Recebido em: 07/11/2024  
Aprovado em: 23/12/2024  
Reforma agrária e alternativas à fome: o Plantio Solidário na Zona da Mata Mineira  
Introdução  
Este artigo é resultado de reflexões realizadas em processos de ensino, pesquisa e  
extensão relacionados à luta do MST, envolvendo professores, estudantes de graduação  
(bolsista de extensão e orientanda de TCC) e de pós graduação (mestranda e bolsista voluntária  
de extensão, e doutoranda), que situam seus estudos e atividades de extensão, noâmbito e na  
interseção, entre as questões agrária, urbana e ambiental. E a temática principaldeste artigo, a  
reforma agrária popular, como apresentaremos, traz nesta interseção, elementos para as lutas  
sociais, como a agroecologia e a soberania alimentar, e desafios, aossujeitos coletivos da classe  
trabalhadora, que estão no campo e na cidade.  
Neste momento de crise estrutural do capital e de seu atual processo de acumulação, os  
bens da natureza, com destaque para as terras, águas e sementes, e também os camponeses,  
vêm sofrendo grandes ofensivas, demonstrando que estamos vivendo um processo mais amplo  
de crise civilizatória, que se expressa na negação/retirada dos direitos à alimentação, ao  
trabalho, à terra e à vida.  
Na atual fase do capitalismo financeiro internacional, sob a hegemonia do agronegócio,  
vêm sendo desenvolvidos mecanismos de controle da agricultura e do comérciode alimentos,  
agravando a concentração da propriedade das terras, dos meios de produção e de toda cadeia  
agroalimentar, trazendo como consequências o aumento da fome e da insegurança alimentar,  
e de ameaças à existência dos camponeses e povos das terras, das águas e das florestas.  
A atual crise alimentar, a fome e a insegurança alimentar se relacionam com questões  
estruturais, que se expressam, dentre outras coisas, nas condições ambientais cada vez mais  
adversas, em que se desenvolve o atual regime alimentar, hegemonizado pelas corporações  
transnacionais do agronegócio. Neste sentido, a construção de alternativas à fome torna-se  
uma necessidade urgente para a classe trabalhadora, e os movimentos sociais, como o MST,  
vêm trazendo contribuições no desenvolvimento de ações concretas para o enfrentamento à  
fome.  
445  
O objetivo deste artigo é discutir a reforma agrária popular do MST e a construção de  
alternativas à fome no Brasil, destacando especificamente, a análise de uma experiência  
realizada pelo MST na zona da mata mineira, em parceria com a Universidade Federal de Juiz  
de Fora (UFJF) e outras organizações da sociedade civil, intitulada “Plantio Solidário”. Apartir  
da crítica ao agronegócio, buscamos discutir a luta do MST, as potencialidades em tornoda sua  
proposta de Reforma Agrária Popular, baseada na agroecologia e na soberania alimentar, para  
analisarmos a experiência do Plantio solidário, como parte deste processo deluta.  
Monica Grossi; Michelle Capuchinho; Paula Rocha de Souza; Vitória Machado; Maria Eduarda Dias  
A hegemonia do agronegócio: destruição ambiental, desigualdade e fome.  
O desenvolvimento do capitalismo no campo brasileiro, suas tendencias e  
contradições, que se apresentam na atualidade são resultado histórico das transformações da  
nossa agricultura. No Brasil, com o golpe militar de 1964, a proposta de desenvolvimento  
capitalista assumida para o país em relação à agricultura foi a modernização conservadora em  
contraposição à reforma agrária, que reúne elementos modernos e arcaicos. O elemento  
modernizante diz respeito a adoção do pacote tecnológico da revolução verde e o elemento  
arcaico que permanece é a nossa histórica concentração fundiária, aliada a produção  
monocultora para exportação.  
Sob o comando do mercado mundial, a produção da agricultura capitalista brasileira  
vem se concentrando na produção de commodities, como soja, milho e cana, além da pecuária  
extensiva voltados aos interesses do mercado externo. A monocultura de eucalipto para  
exportação voltado a produção de celulose, altamente degradadora do solo e, principalmente  
das águas, vem configurando um cenário de devastação, cuja expressão eloquente cunhada  
pelos movimentos sociais é de “deserto verde”. A concentração da produção agrícola pode ser  
materializada no seguinte dado: “No Brasil, cerca de 10% de todos os estabelecimentos  
agrícolas controlam 80% do valor da produção (Stédile, 2013, p. 25)”. Isto vem gerando a  
imposição de uma padronização dos alimentos e a perda da soberania dos povos e dos países  
sobre os alimentos, de modo que muitos países hoje não conseguemproduzir seus próprios  
alimentos.  
446  
Este tipo de produção vem ampliando o processo de degradação, desmatamento, perda  
de fertilidade da terra e contaminação do solo e das águas, a partir da tecnologia de produção  
da revolução verde baseada no uso intensivo de mecanização e agrotóxicos. Os efeitos  
perversos deste modelo do agronegócio, também deixam suas marcas no campo e nacidade,  
através da crescente desigualdade social, que se expressa na pobreza extrema; no  
analfabetismo, na falta de acesso à educação por parte da juventude rural; no trabalho precário  
e em condições análogas à escravidão; na violência e expulsão de famílias do campo;associando  
à monocultura, o aumento do uso de agrotóxicos e a introdução de cultivos transgênicos.  
O modelo de agricultura capitalista do agronegócio afirma-se, então, como o principal  
responsável pela crise alimentar mundial pois, ao tratar a terra, as sementes e os alimentos  
produzidos como mercadorias vem comprometendo a segurança alimentar, que, além de nãoter  
sido alcançada com a revolução verde, tem sido ameaçada. Podemos dizer que uma dasmaiores  
contradições da revolução verde foi a criação de uma anticomida, produzida pelo agronegócio,  
Libertas, Juiz de Fora, v. 24, n. 2, p. 444-459, jul./dez. 2024. ISSN 1980-8518  
Reforma agrária e alternativas à fome: o Plantio Solidário na Zona da Mata Mineira  
que operou a transformação da agricultura num ramo de negócios, no qual a produção de  
alimentos se torna uma mera mercadoria a ser negociada para obtenção delucros.  
A mercadorização dos alimentos é analisada pelo sociólogo Jean Ziegler (2013), em  
entrevista ao jornalista Márcio Zonta para a Revista Brasil de Fato, como um negócio  
altamente lucrativo. Para ele, o problema da fome está relacionado à questão da especulação  
financeira, ao dumping (concorrência desleal de mercado) agrícola e à destinação das terrasà  
produção de bicombustíveis. Afirma que é a primeira vez na história da humanidade que o  
problema da fome está relacionado não à escassez de alimentos, mas ao excesso. Nesse sentido,  
é fundamental destacarmos as contribuições de Josué de Castro, pioneiro no debate da fome,  
já que “[...] os interesses e preconceitos de ordem moral e de ordem política e econômica de  
nossa chamada civilização ocidental tornaram a fome um tema proibido, ou pelo menos pouco  
aconselhável de ser abordado” (Castro, 1992, p. 29). Em sua mais reconhecida obra “Geografia  
da Fome”, ele desmente a falsa ideia, amplamente aceita em seu tempo, de que fome era  
resultante do aumento do contingente populacional ou da escassez. Josué caracteriza o  
problema da fome como expressão das relações sociais e econômicas historicamente impostas  
e reproduzidas, além da incapacidade (ou desinteresse) do Estado burguês de buscar  
alternativas para enfrentar a questão, já que não vai de encontro aos interesses da classe  
dominante.  
447  
A fome no Brasil (...) é consequência, antes de tudo, de seu passado histórico,  
com os seus grupos humanos, sempre em luta e quase nunca em harmonia com  
os quadros naturais. Luta, em certos casos, provocada e por culpa, portanto,  
da agressividade do meio, que iniciou abertamente hostilidades, mas, quase  
sempre, por inabilidade do elemento colonizador, indiferente a tudo que não  
significasse vantagem direta e imediata para os seus planos de aventura  
mercantil. Aventura desdobrada, em ciclos sucessivos de economia destrutiva  
ou, pelo menos, desequilibrante da saúde econômica da nação: o do pau-brasil,  
o da cana-de-açúcar, o da caça ao índio, o da mineração, o da “lavoura  
nômade”, o do café, o da extração da borracha e, finalmente o de certo tipo de  
industrialização artificial, baseada no ficcionismo das barreiras alfandegárias  
e no regime de inflação. É sempre o mesmo espírito aventureiro se insinuando,  
impulsionando, mas logo a seguir corrompendo os processos de criação de  
riqueza no país (...). É a impaciência nacional do lucro turvando a consciência  
dos empreendedores e elevando-os a matar sempre todas as suas “galinhas de  
ovos de ouro”. Todas as possibilidades de riqueza que a terra trazia em seu  
bojo. Em última análise, esta situação de desajustamento econômico e social  
foi consequência da inaptidão do Estado Político para servir de poder  
equilibrante entre os interesses privados e o interesse coletivo (Castro, 1992,  
p. 280-281).  
Dessa forma, o autor caracteriza o subdesenvolvimento e a insegurança alimentar como  
um produto inevitável do próprio desenvolvimento (nos moldes capitalistas), pautado na  
exploração colonial e neocolonial está colocada em diferentes regiões do globo. A fome dá-se  
Monica Grossi; Michelle Capuchinho; Paula Rocha de Souza; Vitória Machado; Maria Eduarda Dias  
como expressão dessa. Portanto, o aumentoda fome não se relaciona a problemas de ordem  
natural, de baixa produtividade e nem mesmoem razão de guerras, pois está diretamente  
vinculado à forma de sociedade erguida sob o imperativo do capital, que nega a alimentação a  
um imenso número de pessoas. Esse quadro de dominação mundial exercido por grandes  
grupos econômicos é apresentado por Ziegler:  
Hoje temos dez transnacionais que potencializam a fome no mundo. Esse  
grupo econômico controla 85% de todos os alimentos negociados no planeta.  
Fixam preços,controlam a distribuição e assim decidem todos os dias quem  
poderá comer, quem vai passar fome e quem vai morrer sem alimentação  
(Ziegler, 2013, p. 13).  
Ademais, Stédile e Carvalho (2010) reiteram essas contradições presentes, uma vez  
que poucas empresas e grandes complexos agroindustriais controlam vastas áreas de terra, mas  
sua produção não satisfaz as necessidades do país. Enquanto isso, a maior parte da população  
em situação de insegurança alimentar reside em áreas rurais e poderia cultivar seus próprios  
alimentos para sua reprodução social. Os autores enfatizam que essa lógica de acumulação  
privada é prejudicial, pois ameaça a soberania dos Estados, a garantia de uma alimentação  
saudável, variada e livre de produtos químicos, além de causar a degradação ambiental,  
frequentemente de maneira irreversível, colocando em risco a sobrevivência humana,  
controlando e padronizando efetivamente os alimentos que são produzidos e comercializados.  
448  
Tudo leva a crer que em nome da competitividade na produção agropecuária  
e florestal nos mercados mundiais, as grandes empresas transnacionais e não  
os governos nacionais é que deverão definir e implementar as macropolíticas  
estratégicas de abastecimento alimentar em todo o mundo. Não apenas  
controlando as cadeias alimentares mais importantes, seja do ponto de vista  
dos volumes negociados, como também dos produtos de interesse da  
agroindustrialização e da padronização dos alimentos em todo mundo, como  
controlando internamente em dezenas de países os principais produtos tanto  
no comércio por atacado como no varejo, através das cadeias multinacionais  
de supermercados (Stédile; Carvalho, 2010, p. 4).  
Assim, fica evidente como o atual modelo hegemônico de agricultura torna-se a  
expressão máxima da destrutividade do capital em relação aos seres humanos e à natureza. Esta  
é a chamada fase da agricultura científica, de precisão ou biotecnológica, que amplia o domínio  
das indústrias multinacionais, em que os agricultores são excluídos, conformando-se uma  
agricultura sem agricultores.  
Segundo Helen Borborema, em reportagem publicada no espaço Articulação Nacional  
de Agroecologia (ANA), intitulado “Agronegócio comemora enquanto fome se agrava”,  
destaca que o agronegócio brasileiro comemora a produção histórica de grãos e crescimento  
de 5,7% do volume produzido nesta safra (2020/21), se comparado à anterior (Borborema,  
2021), de acordo com os dados da expansão do agronegócio, divulgados pela Companhia  
Libertas, Juiz de Fora, v. 24, n. 2, p. 444-459, jul./dez. 2024. ISSN 1980-8518  
Reforma agrária e alternativas à fome: o Plantio Solidário na Zona da Mata Mineira  
Nacional de Abastecimento (Conab). A autora traz ainda, o relato de Sílvio Porto, professor da  
Universidade Federal do Recôncavo Baiano (UFRB) e ex-diretor da Companhia Nacional de  
Abastecimento (Conab), onde o pesquisador aponta que o aumentoda fome e da miséria no  
Brasil, ao mesmo tempo em que o país bate recorde na produção agrícola, é um contrassenso  
e uma aberração (Borborema, 2021).  
O Relatório das Nações Unidas sobre o Estado da Insegurança Alimentar Mundial  
(SOFI, 2024) apresentou uma redução significativa na insegurança alimentar severa de 85%  
no Brasil. Em números absolutos 14,7 milhões de pessoas deixam de passar fome no país, que  
atingia 8% da população, e agora caiu para 1,2%, conforme divulgado pela Secretaria de  
Comunicação Social (Brasil, 2024). No primeiro momento, aos nos depararmos com essa  
notícia, pensamos que ela aparenta apontar um otimista cenário ao enfrentamento da fome.  
Contudo, esse cenário não se expressa plenamente ao analisarmos a totalidade, já queo Brasil  
ainda permanece no Mapa da Fome.  
Adensando a discussão, no que tange à realidade brasileira, é necessário pensar que  
apesar da melhoria em relação aos anos anteriores não é garantida sua estabilidade. Jáque a  
fome já aparentava ter sido superada em 2014, quando o Brasil saiu do Mapa da Fome,porém,  
frente a situação de extrema vulnerabilidade agravada na pandemia de COVID-19, o país  
retorna ao indicativo. Esse cenário é um reflexo do sucateamento das políticas sociais públicas  
de combate à miséria e o desmonte geral das políticas de seguridade, adensada pelos  
governos ultraneoliberais.  
449  
O cenário mundial também não é favorável, o relatório aponta um retrocesso de 15  
anos, com aumento geral da desnutrição, insegurança alimentar, atraso no crescimento infantil,  
dentre outros. Essa estagnação é extremamente preocupante e escancara a desigualdade, já que  
os países de baixa renda, principalmente na África, são os mais atingidos, em que maior parte  
da população não consegue pagar por uma dieta saudável e garantir sua nutrição. Esses  
dados coexistem e contrastam com o aumento acentuado dos níveis de obesidade, desse modo,  
apontando que o debate sobre alimentação é muito mais denso e complexo, exigindo  
intervenções que compreendam a realidade social da população e do território.  
Assim, é essencial destacar que o déficit alimentarapresentado é resultante do modelode  
produção capitalista, que visa a obtenção de valor, sem considerar uma produção que  
contemple uma nutrição adequada aos indivíduos. A inflação dos preços, mudanças  
climáticas, desigualdades sócio-territoriais são intrínsecas e naturalizadas nessa sociabilidade,  
e só podem ser superadas junto dessa. Portanto, apesar das conferências, relatórios e esforços  
Monica Grossi; Michelle Capuchinho; Paula Rocha de Souza; Vitória Machado; Maria Eduarda Dias  
da comunidade e órgãos internacionais, a questão da fome e das mudanças climáticas  
permanecem sem um resultado claro e efetivo.  
A fome, assim como o desemprego, são expressões da Questão Social mantidas pelas  
relações de desigualdade por intermédio da exploração que o modo de produção capitalista  
reproduz na sociedade. É nessa concepção, permeada por contradições, que se organiza a  
política agrícola que produz, tanto para o mercado interno, quanto para exportação. No  
entanto, há um paradoxo na relação do Brasil com a agroexportação. O “agro”, que aponta  
recorde de produção de alimentos, contrasta com o gigantesco crescimento da população que  
passa fome, em consequência da falta de terra e emprego que garanta sua subsistência. Essa  
grande massa de famintos e desempregados é marcada pela cor, gênero e, seu endereço está  
localizado nas periferias das cidades Brasil afora.  
Dessa forma, a classe dominante busca distorcer a importância política dos  
movimentos sociais e da luta pela terra, além de criminalizar, reprimir e matar as lideranças  
dos movimentos, as ocupações e manifestações. Nesse contexto de grande desigualdade  
social sendo o Brasil, um dos países que mais concentra terra no mundo, esta concentraçãoé  
um reflexo do desenvolvimento capitalista, que gera muitas contradições e diversas  
organizações, que lutaram e lutam por terra. Como expressão desse processo temos no Brasil,  
o movimento dos trabalhadores Sem-terra, um dos maiores movimentos sociais do mundo,  
sendo o maior da América Latina. Destacamos a luta do MST pela Reforma Agrária Popular,  
onde a agroecologia e a soberania alimentar têm centralidade.  
450  
A reforma agrária popular do MST: afirmação da agroecologia, dasoberania  
alimentar e da solidariedade de classe.  
O MST, criado a 40 anos, está presente em 23 estados brasileiros, com assentamentos  
e acampamentos em mais de 500 cidades, tem como projeto para o Brasil a reforma agrária  
popular. Busca o desenvolvimento para o campo brasileiro, com bases na agroecologia, para  
a produção de alimentos saudáveis, que atenda às necessidades da população brasileira,  
garantindo a preservação dos bens naturais, assim como o cultivo de relações sociais  
antirracistas, antimachistas, enfrentando os valores colocados pela sociedade capitalista.  
Os assentamentos se organizam de várias formas, através de cooperativas, associações,  
grupos e comunidades camponesas. Além da organização, o MST se destaca pelo  
desenvolvimento da formação política, em conformidade com a pedagogia Freiriana, com  
enfoque na educação popular. Freire salienta que a comunhão com o povo é o momento  
Libertas, Juiz de Fora, v. 24, n. 2, p. 444-459, jul./dez. 2024. ISSN 1980-8518  
Reforma agrária e alternativas à fome: o Plantio Solidário na Zona da Mata Mineira  
decisivo para a transformação. “A consciência é histórica, pois implica que os homens  
assumam o papel de sujeitos que fazem e refazem o mundo” (Freire, 1981, p. 26).  
A crítica do MST e de outros sujeitos coletivos do campo ao capitalismo, expresso pelo  
modelo produtivo do agronegócio, visceralmente dependente do petróleo, se soma a sua  
proposição em torno da agroecologia.  
Vivemos um momento sem precedentes na história da humanidade, com a  
emergência conjugada de três crises: a crise energética, a crise alimentar e a  
crise climática. Estamos no limiar de esgotar a era dos combustíveis fósseis  
(baseados nocarvão mineral e no petróleo) que representou o sustentáculo  
energético do modelo de sociedade capitalista-consumista existente nos  
últimos 200 anos. [...] O modelo produtivo agroecológico, diversificado e  
poupador de insumos, se coloca claramente em oposição a esse modelo  
dominante, controlado pelo agronegócio e que se utiliza fortemente de  
energias fósseis. A agroecologia se baseia no aprendizado com a natureza, de  
forma a debater as relações presentes na tecnologia utilizada, a fim de  
potencializar os efeitos naturais de fertilidade, complexidade e produtividade  
ecossistêmica (MST 2010, p. 12-13).  
A Reforma Agrária Popular (MST, 2013) é uma proposta em construção apresentadaà  
sociedade brasileira e ao conjunto das organizações populares. É antagônico ao sistema de  
exploração e opressão históricas, e visa superar o atual modelo de produção presente na  
agricultura brasileira, contribuir ativamente com as mudanças estruturais necessárias, na  
superação das relações de exploração e opressão do trabalho, da compreensão do alimento  
como mercadoria e não um bem humano. As mudanças estruturais na forma de uso dos bensda  
natureza, que pertencem a toda sociedade, direciona-se para a organização das relaçõesde  
produção e das relações sociais, em que busca contribuir de forma permanente na construção  
de uma sociedade justa, igualitária e solidária.  
451  
Esta proposta defende a vida e a construção de relações verdadeiramente humanas.  
Busca dialogar com as necessidades, sobretudo, de quem vive nos grandes centros, para  
construir ações que influenciem e atuem nos centros urbanos, locais onde a grande maioria da  
classe trabalhadora reside, alimenta-se e trabalha. Logo, para ser cada vez mais popular é  
preciso ter muita gente convencida e defendendo seu papel e a efetiva participação populardo  
conjunto da sociedade. Também se insere na luta da classe trabalhadora pela construçãode  
relações sociais de produção que eliminem a exploração, a concentração da propriedade  
privada, a injustiça e as desigualdades, fundamentando valores de uma nova sociedade.  
Stédile (2014) esclarece que a nova concepção de reforma agrária defendida pelo MST  
ultrapassa a perspectiva de distribuição de terras, definindo os novos rumos do movimento e  
da luta pela terra, na qual a questão ambiental, alicerçada na adoção de outro modelo produtivo  
baseado na agroecologia, passa a ser uma bandeira fundamental do movimento.  
Monica Grossi; Michelle Capuchinho; Paula Rocha de Souza; Vitória Machado; Maria Eduarda Dias  
Os elementos fortalecedores do caráter popular da reforma agrária de novo tipo do  
MST, para serem concretizados, demandam a construção coletiva do conjunto da classe  
trabalhadora do campo e da cidade, iniciando-se com o fortalecimento e ampliação de um arco  
de alianças, indispensável para a luta anticapitalista, nesse momento histórico de crise  
civilizatória em que, sob domínio do capital, todos os bens da natureza e da cultura popular  
são transformados em mercadoria.  
Os parâmetros das mudanças propostas pela reforma agrária popular  
significam reorganizar os bens da natureza e a produção agrícola para, em  
primeiro lugar, produzir alimentos sadios para todo o povo. Produzir com base  
na matriz da agroecologia, em equilíbrio com a natureza e sem o uso de  
venenos agrícolas. Implementar agroindústrias na forma de cooperativas, para  
beneficiar os alimentos e aumentar a renda dos trabalhadores do campo (MST,  
2013, p. 2).  
Na visão do Movimento, a reforma agrária ganha uma perspectiva mais ampla ao  
contemplar as relações entre o ser humano e a natureza, envolvendo diferentes processos que  
representam a reapropriação social da natureza, em contraposição à apropriação privadada  
natureza realizada pelo capitalismo.  
Implica em um novo modelo de produção e desenvolvimento tecnológico que  
se fundamente numa relação de co-produção homem e natureza, na  
diversificação produtiva capaz de revigorar e promover a biodiversidade e em  
uma nova compreensão política do convívio e do aproveitamento social da  
natureza. Os camponeses, trabalhadores/as do campo e povos tradicionais  
(indígenas, extrativistas, quilombolas) têm sido protagonistas de práticas de  
um modo de fazer agricultura que representa um contraponto à agricultura  
capitalista e se constituem naresistência e nas lutas de enfrentamento direto ao  
capital (MST, 2013, p. 46-47).  
452  
A preocupação do MST com a efetivação da luta pela reforma agrária popular com  
base na agroecológica, direciona-se ao necessário preparo técnico, para as experiências  
produtivas, e também ao preparo político para enfrentamentos ao agronegócio, que se  
inscrevem na direção da construção da soberania alimentar e de novas relações  
sociedade/natureza (MST, 2013). Os camponeses, trabalhadores/as do campo e povos  
tradicionais (indígenas, extrativistas, quilombolas) têm sido protagonistas de práticas de um  
modo de fazer agricultura que representa um contraponto à agricultura capitalista e se  
constituem na resistência e nas lutas de enfrentamento direto ao capital (MST, 2013, p. 46-  
47).  
A solidariedade para o MST é um princípio que norteia a ação junto à organização da  
classe trabalhadora, sendo uma questão central para a construção de uma nova sociedade que  
supere o capitalismo. Desde a pandemia, esse valor vem se tornando cada vez mais central,  
assim como o debate a respeito da produção de alimentos e o combate à fome, que alicerçam  
Libertas, Juiz de Fora, v. 24, n. 2, p. 444-459, jul./dez. 2024. ISSN 1980-8518  
Reforma agrária e alternativas à fome: o Plantio Solidário na Zona da Mata Mineira  
o projeto de sociedade que perpassa a Reforma Agrária Popular, assim como a questão da  
disputa pela terra e o modelo de produção desenvolvido. São vários os temas como os bens da  
natureza, meio ambiente, as relações humanas, que são frentes de debateque a questão dos  
alimentos nos traz.  
Diante desses elementos, ainda na pandemia, o Brasil sentiu de forma mais profunda  
a volta da fome, e as organizações populares como sindicatos, movimentos sociais iniciaram  
várias experiências de trabalho nos espaços urbanos. Primeiro o MST colocou sua base em  
movimento através da organização de processos de produção e distribuição de alimentos, a  
partir da doação de comida, com o projeto Periferia Viva. Além da organização de várias outras  
ações como as cozinhas solidárias, as hortas urbanas, agentes populares de saúde, que  
também foram desenvolvidas pelo MST e por diversos movimentos sociais.  
Desde o início da pandemia do coronavírus até 2023, o MST doou mais de 8 mil  
toneladas de alimentos e mais de 2 milhões e meio de marmitas para as famílias através de  
várias ações de solidariedade (Brasil de fato, 2023). Apesar de saber, que a doação decestas  
básicas não irá resolver os grandes problemas estruturais da sociedade capitalista, tem a clareza  
que, quem tem fome tem pressa.  
Outro elemento a ser destacado como fruto do amadurecimento da reforma agrária  
popular foi a criação, em 2000, do plano nacional do MST, “Plantar árvores, produzir alimentos  
saudáveis”, que tem como objetivo plantar 100 milhões de árvores em 10 anos nas escolas do  
campo, cooperativas, centro de formação e nas cidades, fortalecendo a produção de alimentos  
saudáveis em áreas do MST, e denunciando o modelo destrutivo do agronegócio. Os números  
atuais, disponíveis no site do MST, mostram que já foram plantadas 25 milhões de árvores,  
construídos 300 viveiros de mudas e 15 mil hectares já foram recuperados. Comoparte deste  
plano nacional é que situamos a experiência construída pelo MST, na zona da mata de Minas  
Gerais, que analisamos a seguir.  
453  
A experiência do Plantio Solidário na Zona da Mata de Minas Gerais: força  
popular na construção da solidariedade de classe, da agroecologia e da soberania  
alimentar  
Desenvolvido durante a pandemia do COVID-19, a experiência do “Plantio Solidário”  
realizado através de ação coletiva e voluntária no Assentamento Denis Gonçalves, no  
município de Goianá - Zona da Mata Mineira, produziu sobre bases agroecológicas, mais de  
meia tonelada de alimentos para doação às famílias em situação de Insegurança Alimentar.  
Mesmo sendo uma experiência recente, o Plantio Solidário reforça a potência das  
atividades coletivas, ainda que estas tenham sido desenvolvidas em um momento extremo de  
Monica Grossi; Michelle Capuchinho; Paula Rocha de Souza; Vitória Machado; Maria Eduarda Dias  
crise sanitária global. Inserido no programa “Plantar árvores e produzir alimentos saudáveis”,  
o projeto surge na contramão da lógica preponderada pelos interesses empresariais do capital.  
Retomando o contexto de seu surgimento, à medida em que o governo Bolsonaro avançava  
pelo desprezo sobre as camadas populares e suas condições de sobrevivência durante a  
pandemia, o Plantio Solidário se mobilizava para compreender, organizar e receberparte das  
necessidades manifestadas por estas; promovendo estratégias de ação para atender famílias  
atingidas pela insegurança alimentar.  
O assentamento Denis Gonçalves é um dos maiores de Minas Gerais e possui uma área  
de quase 4,6 mil hectares, com 155 famílias assentadas, estando localizada próxima a um  
dos maiores centros urbanos de Minas Gerais, a 40 km de Juiz de Fora. O Plantio Solidário  
vem funcionando desde abril/2022 tendo como objetivo geral organizar uma rede de  
voluntários, que possam nas áreas do assentamento Dênis Gonçalves, desenvolver o plantiode  
alimentos para doação às famílias em situação de insegurança alimentar do meio urbano.A  
proposta do Plantio Solidário é plantar e colher coletivamente, através de mutirões voluntários,  
buscando superar o viés caritativo e imediatista das ações assistencialistas,através de um  
projeto, a longo prazo, de soberania alimentar, formação política eagroecológica. Os  
mutirões são realizados com as famílias em situação de insegurançaalimentar das periferias  
da cidade, através da mediação dos Projetos, Coletivos, Associaçõespresentes nos territórios,  
assim como pelo CRAS (Centro de Referência de Assistência Social).  
454  
Este projeto se inicia em meio à flexibilização dos protocolos de segurança próprios da  
pandemia do COVID 19, aos avanços dos retrocessos do governo Bolsonaro e à acentuaçãodas  
contradições e opressões próprias do Capital. Desenvolve-se na região em um momento muito  
propício para fomentar o reencontro presencial e a organização de uma ampla militância,  
ativistas, ambientalistas, estudantes, professores e indivíduos, que têm vontade decontribuir  
com o MST e com as famílias da periferia urbana, em situação de vulnerabilidade social e  
alimentar.  
O projeto vem unindo coletivos e movimentos urbanos em diálogo e junto ao MST, para  
construir uma proposta de trabalho de base e de solidariedade muito potente, unindo campo e  
cidade, para acumular forças e solidificar a luta tão urgente desses tempos. Podemos afirmar  
que o Plantio Solidário é uma ferramenta de articulação da classe trabalhadora, que para além  
de enfrentar a questão da fome tem o objetivo comum que é a construção de forçasocial  
organizada.  
O primeiro passo proposto, e que talvez seja o grande diferencial na construção do  
presente projeto, é justamente convidar outros coletivos militantes urbanos, para somarem-seà  
Libertas, Juiz de Fora, v. 24, n. 2, p. 444-459, jul./dez. 2024. ISSN 1980-8518  
Reforma agrária e alternativas à fome: o Plantio Solidário na Zona da Mata Mineira  
ideia e de forma coletiva desenvolvê-la, cujo propósito principal está assentado na  
solidariedade de classe. Foram organizadas reuniões semanais online em um primeiro  
momento, para pensar os desdobramentos do projeto e mobilizar a militância para tal. As  
reuniões foram fundamentais como método organizativo, e ao longo de quase 2 meses elas  
ocorreram de forma regular, sempre na busca de ampliar o coletivo construtor. As reuniões  
foram tomando seu próprio formato e forjando um coletivo permanente, e só posteriormente,  
iniciou-se uma discussão com a coordenação do assentamento, assim como com a escola, que  
apontou que o projeto deveria ser desenvolvido nas áreas coletivas do assentamento.  
As áreas indicadas para o Plantio Solidário são espaços de forças vivas do  
assentamento, por onde circulam muitas pessoas, são próximas da escola, tendo o papel de ser  
também uma inspiração e referência para os assentados e assentadas. O fato destas áreas  
comuns seremao lado das escolas do assentamento é estratégico, pois é proposto que a equipe  
que trabalha nas escolas, juntamente com os educandos, faça os cuidados diários com irrigação  
dos cultivos, e outros tratos culturais, sendo um espaço pedagógico. Podemos observar uma  
potencialidade nessa relação entre escola do campo do MST e o projeto Plantio Solidário.  
O projeto se propôs a ter como meta envolver 100 famílias da região, que vivem  
em situação de vulnerabilidade social e insegurança alimentar, no processo de produzir 5,5  
toneladas de alimentos. Uma das metas, e talvez a principal delas, é fortalecer a organização  
popular através do trabalho de base. Para isso, se torna central a elevação da consciência com  
processos de formação política. O potencial de fomento à formação da consciência de classe  
é percebido desde a organização horizontal e colaborativa, perpassando toda vivêncianos  
mutirões, que despertam um olhar crítico sobre a realidade social.  
455  
Cabe destacar também a questão de gênero presente no projeto, pois as mulheres sãoa  
grande maioria, participando e assumindo tarefas de coordenação dos processos. Pensando no  
campo organizativo do projeto, e quando olhamos para as famílias que vem dos territórios,  
também temos uma grande maioria de mulheres negras se somando às atividadesrealizadas.  
Ao longo do desenvolvimento do projeto as organizações construtoras apontam o papel  
formativo que o Plantio Solidário vem tendo junto aos voluntários e às famílias dos bairros  
mobilizados. Orientados pela educação Ambiental crítica o Plantio promove entre os sujeitos  
ações que permeiam o campo, atividades permitem que sejam expostas e dialogadas visões  
de mundo, perspectivas e aprendizados mútuos. Alicerçados sobre os princípios  
anticapitalistas e da Agroecologia, a formação política não ocorre apenas nos momentos  
direcionados para tal, mas também nas experiências correntes, como nos próprios momentos  
Monica Grossi; Michelle Capuchinho; Paula Rocha de Souza; Vitória Machado; Maria Eduarda Dias  
com a terra e nas místicas, onde os valores, a luta e a resistência dos trabalhadores são  
expressas através de variadas expressões artísticas, musicais e culturais.  
Dentro do projeto Plantio Solidário, as místicas são pensadas por um grupo  
que se alterna a cada semana, e permeadas pela discussão acerca da fome, da  
agroecologia, da luta por justiça social e pela reforma agrária popular. Este é  
um momento formativo bastante importante, e também ao final dos mutirões,  
após o trabalho coletivo, também fazemos uma reflexão e avaliação entre o  
grupo, bem como trazemos alguma atividade ou dinâmica intencionalizada  
que aprofunda as questões na mística inicialmente trazidas (Gomes, 2023, p.  
51).  
Por meio de ações direcionadas (como em conteúdos previamente preparados para  
exposição), ou por dinâmicas espontâneas, a formação e construção de base, assim como os  
alimentos, são semeados e contam com a participação dos indivíduos que dele participam.  
Aqueles que tiveram a oportunidade de estar presentes em uma das atividades, levará consigo  
e para sociedade os frutos semeados ali; sejam eles frutos da materialização da natureza física,  
ou não.  
O Plantio alcança lugares que extrapolam os limites do assentamento. Há movimentos  
de exterioridade de suas atividades, que mobilizada a outras organizações/movimentos sociais  
desenvolvendo trabalhos em importantes espaços da sociedade civil. Seja em escolas,  
palestras e organizações, o Plantio se faz presente em debates, rodas de conversa, festividades  
e atividades em que a luta coletiva é protagonista.  
456  
O caráter de formação expressa uma de suas faces políticas, tendo em seu cerne a  
organicidade da construção coletiva popular. Em cada ação semeada, os valores de uma  
sociedade mais justa, livre de opressões, exploração da fome são cultivados. Nota-se que a  
expressão política da agroecologia no Plantio Solidário - MST não se manifesta em ações  
setorizadas ou em apenas determinados aspectos desenvolvidos isoladamente, o grande  
esforço é compreender que a agroecologia é uma matriz produtiva que busca retomar a  
relação dos seres com a natureza que se realiza em um trabalho que nos realize enquanto seres  
sociais.  
Uma das perspectivas de desenvolvimento do projeto perpassa a ampliação do projeto  
junto às escolas estaduais e municipais, e junto à universidade. Temos uma parceria histórica,  
estabelecida há mais de 2 décadas, entre o MST e a UFJF, que tem atuado na formação de  
quadros, e em atividades de ensino, pesquisa e extensão.  
Expresso nas ações, declarações, obras, entre outras construções, o Movimento Sem  
Terra tem suas bases fundamentadas no compromisso político com a população brasileira. O  
campo da luta é permeado por valores e responsabilidades, que se estendem para além dos  
Libertas, Juiz de Fora, v. 24, n. 2, p. 444-459, jul./dez. 2024. ISSN 1980-8518  
Reforma agrária e alternativas à fome: o Plantio Solidário na Zona da Mata Mineira  
assentamentos e se direcionam às necessidades societárias, sejam elas perpassadas no campo  
material ou imaterial. Neste contexto, a luta pela produção de alimentos e cuidados com a  
natureza tem arraigada sobre suas bases a agroecologia, que por meio de seus valorescoletivos  
impulsiona e evidencia as expressões políticas inerentes às suas ações.  
Todo processo organizativo enfrenta diversos desafios, e um dos principais apontados  
pelo coletivo organizativo vem sendo a ampliação de coletivos permanentes de voluntários e  
do aperfeiçoamento de estratégias organizativas e de mobilização. Outro ponto fundamental é  
a ampliação da participação da UFJF junto ao projeto “Plantio Solidário”, através da  
institucionalização de projetos de extensão, tendo professores e bolsistas com tempo de  
trabalho e de formação assegurados para uma participação mais contínua, qualificada e  
comprometida.  
O Plantio Solidário reforça o projeto agroecológico de amplitude política para além da  
produção de alimentos saudáveis. A formação pedagógica das ações, os lugares de escuta, de  
aprendizagem, na construção de uma realidade de coletividade entre os sujeitos, demarcam o  
movimento da busca por uma nova sociabilidade.  
Gaia e Alves (2021) desenvolvem que a transição agroecológica não se trata de uma  
conversão para a agriculturaorgânica, mas em uma dinâmica de produção que, para além dos  
processos de produção, secompromete com a postura dos sujeitos, da concepção de trabalho e  
da produção, e da relação entre ser humano e natureza. O Plantio Solidário avança sobre este  
panorama, construindo estratégias coletivas de liberdade e emancipação humana.  
457  
Considerações finais  
Os vínculos entre reforma agrária popular, agroecologia e soberania alimentar através  
das lutas e resistências, no campo e na cidade, podem possibilitar a construção de uma contra  
hegemonia ao domínio global do capital sobre o sistema agroalimentar, para enfrentamentos  
contra a pobreza, os baixos salários, a fome, a migração rural urbana e a degradação ambiental  
e principalmente contra o modelo predatório do agronegócio. A soberania alimentar é  
indissociável da luta por democracia, e os sujeitos coletivos, através de sua organização  
política e de construção de lutas, vêm materializando estes processos democráticos, na direção  
política de reconstrução de sistemas alimentares desde suas bases, em que as relações de  
trabalho sejam cooperadas e repensadas em uma lógica de enfrentamento a exploração e  
opressão do modo de produção capitalista.  
A agroecologia se constitui num instrumento de reforço aos movimentos sociais, e  
também é potencializada pelas práticas e experiências democráticas dos movimentos e  
Monica Grossi; Michelle Capuchinho; Paula Rocha de Souza; Vitória Machado; Maria Eduarda Dias  
organizações sociais, que lutam por soberania alimentar. Portanto, é também uma luta política  
por democracia na construção de outro modelo produtivo e político, que garanta a soberania  
alimentar. Neste sentido, a experiência do Plantio Solidário vem se afirmando através de ações,  
que desenvolvem o que estamos denominando de solidariedade ativa, em que os voluntários e  
voluntárias passam por um processo de formação, para serem multiplicadores e  
multiplicadoras da agroecologia, da soberania alimentar e na construção de estratégias de  
enfrentamento ao modelo agroexportador, que destrói o meio ambiente e as relações humanas.  
Além disto, fortalece a organização popular, fomenta a conscientização política e impulsiona  
processos que contribuem para a produção de novas sociabilidades.  
Através da participação da sociedade civil, busca-se construir bases para um sistema  
alimentar mais justo, saudável e sustentável e fortalecer a luta do MST em torno da  
agroecologia, da soberania alimentar e da reforma agrária popular. Desta forma, o projeto  
Plantio Solidário vem estabelecendo uma relação estreita com a sociedade e causando um  
impacto social significativo.  
A expressão política da Agroecologia pode ser apreendida sobre o movimento em que o  
todo se manifesta, sendo este presente desde as intencionalidades, até a posterioridade da  
colheita dos alimentos. A agroecologia a partir de sua potencialidade pode ser qualificada como  
estratégia de transição e superação da ordem de produção criminosa, trazendo em sua  
fundamentação, além da dimensão política, valores de solidariedade, democracia e liberdade.  
O Plantio Solidário - MST é um projeto agroecológico que através da centralidade dos  
alimentos constrói mediações que permeiam a mesa e a consciência dos sujeitos, tendo em seu  
núcleo um caráter essencialmente político, sendo ele no campo e na cidade.  
458  
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459  
El “ecologismo popular y campesino” como marco  
para el movimiento por la soberanía alimentaria: el  
caso de “Nos Plantamos” (España)1  
“Popular and peasant environmentalism” as a framework for the food  
sovereignty movement: the case of “Nos Plantamos” (Spain)  
David Gallar Hernández*  
Isabel Vara Sánchez**  
Andrés Muñoz Rico***  
Resumo: La movilización social por la  
soberanía alimentaria en España se enfrenta a  
amenazas estructurales en el ámbito agrario y  
político, acompañadas de un nuevo ciclo de  
movilización agraria que intenta capitalizar la  
extrema derecha como parte de la ola  
reaccionaria global además de un intento de  
cooptación por su parte del propio concepto de  
soberanía alimentaria. En este texto se analiza el  
caso de “Nos Plantamos” (España) y se  
exploran sus retos, demandas y propuestas  
,como una iniciativa de base social que aspira a  
recuperar el protagonismo de los campesinos y  
campesinas en la producción alimentaria,  
defendiendo el territorio y la biodiversidad, y  
rechazando el modelo depredador de la  
agroindustria desde un marco de “ecologismo  
popular y campesino”.  
Abstract: The social mobilization for food  
sovereignty in Spain faces structural threats in  
the agrarian and political spheres, accompanied  
by a new cycle of agrarian mobilization that the  
extreme right is trying to capitalize on as part of  
the global reactionary wave, in addition to an  
attempt to co-opt the very concept of food  
sovereignty. This text analyzes the case of “Nos  
Plantamos” (Spain) and explores its challenges,  
demands and proposals, as a grassroots  
initiative that aims to recover the role of  
peasants in food production, defending the  
territory and biodiversity, and rejecting the  
predatory model of agroindustry from a  
framework of “popular and peasant  
environmentalism.”  
Palavras-chaves:  
Movimientos  
Contrahegemonía; Interseccionalidad.  
Agroecología  
sociales; Campesinado;  
política;  
Keywords: Political agroecology; Social  
movements; Peasantry; Counterhegemony;  
Intersectionality.  
1
Este texto proviene de los borradores extensos de diferentes textos escritos principalmente por David Gallar  
Hernández en torno a “Nos Plantamos” y que han sido publicados en distintos medios y con distintas coautorías.  
*
Doctor en Agroecología – Universidad de Córdoba. Profesor titular – Dpto. Ciencias Sociales, Filosofía,  
Geografía, T. e I. Instituto de Sociología y Estudios Campesinos (ISEC) – Universidad de Córdoba. ORCID:  
https://orcid.org/0000-0003-2273-2555. IP del proyecto “CampesinadoXXI” – PID2022-142218OB-I00,  
financiado por MCIN/AEI/10.13039/501100011033/FEDER, UE.  
** Doctora en Agroecología – Universidad de Córdoba. Profesora – Dpto. Ciencias Sociales, Filosofía, Geografía,  
T. e I. Instituto de Sociología y Estudios Campesinos (ISEC) – Universidad de Córdoba. ORCID:  
*** Responsable de Soberanía Alimentaria de Amigas de la Tierra en España.  
DOI: 10.34019/1980-8518.2024.v24.46519  
Esta obra está licenciada sob os termos  
Recebido em: 11/11/2024  
Aprovado em: 09/12/2024  
El “ecologismo popular y campesino” como marco para el movimiento por la soberanía alimentaria:  
el caso de “Nos Plantamos” (España)  
Introducción  
Los tractores en España salieron a las carreteras en febrero, y antes en otros países  
europeos, y nos enseñaron las múltiples caras de las dificultades a las que se enfrenta el campo  
y nos mostraron también las múltiples posiciones e intereses que hay con respecto a todo lo que  
nos jugamos como sociedad a la hora de darnos una respuesta sobre qué modelo agrario, qué  
mundo rural y qué alimentación queremos. En este sentido, la construcción colectiva de los  
movimientos por la soberanía alimentaria, la denuncia de los impactos territoriales de la  
agricultura y la ganadería industrial, y la propuesta y construcción de alternativas a un modelo  
agroalimentario depredador son clave para avanzar hacia un sistema donde sea la población la  
que construya la alimentación que quiere.  
Los verdaderos problemas del campo  
Ya se ha hecho obvio: este modelo agrario, estas políticas públicas agrarias y la  
estructura del sistema agroalimentario no funcionan. Nada que no se supiese desde hace  
décadas. Y de nuevo ha vuelto a estallar la situación, y después llega la calma tensa de fondo  
en la que la extrema derecha sigue cultivando y apropiándose de iras y frustraciones,  
alimentando un marco ideológico con visos de coherencia interna pero basado en un diagnóstico  
falso y falseador de la realidad que busca desesperadamente, como veremos más adelante, cómo  
encontrar soluciones basadas en el nativismo, la violencia y el autoritarismo. La crisis del  
campo, el despoblamiento rural, los beneficios de la industria y de la gran distribución  
agroalimentaria, de las multinacionales de los fitosanitarios y de la maquinaria agrícola, los  
beneficios de los bancos en torno a la agricultura, el acaparamiento de tierra y la entrada de los  
fondos de inversión en el sector, los tratados de libre comercio y los viejos y nuevos  
transgénicos, entre otros, son elementos que llevan décadas ahí. Y las apuestas políticas de casi  
todo signo, al igual que la de Bruselas, han seguido apostando por un modelo neoliberal que  
nos deja frente al abismo alimentario y en manos de las grandes empresas.  
461  
Mantener este modelo de producción agroindustrial es inviable a la vez que  
irresponsable, se trata de un modelo que todo lo destruye. Esta forma de producir alimentos  
solo beneficia a las grandes superficies y a la industria agroalimentaria, que ganan cada vez más  
dinero. Ni la gente come mejor ni las personas productoras - agricultores, agricultoras,  
ganaderos, ganaderas- viven mejor. Este modelo productivo hegemónico tampoco cuida del  
territorio, ni de su cultura, ni de su biodiversidad, y deteriora la calidad de vida de sus habitantes,  
siendo un obstáculo más para revivir y fijar población rural.  
David Gallar Hernández; Isabel Vara Sánchez; Andrés Muñoz Rico  
Las productoras cada día están peor pagadas en un círculo vicioso donde cada vez deben  
producir más, se endeudan para comprar maquinaria, alquilar o disponer de más tierras, para  
tratar de ser más eficientes y productivas. Un callejón sin salida, en el que sólo las grandes  
explotaciones y los grandes grupos empresariales pueden mantenerse en pie. Aun así, las  
personas productoras siempre están con la espada de Damocles sobre sus cabezas, pendientes  
de cualquier evento externo que suponga la subida de precios en los costes de producción. Sin  
embargo, la cantidad de dinero que reciben por los alimentos producidos está estancada desde  
hace años, a la vez que los precios de los alimentos para las consumidoras aumentan, pero, este  
margen de beneficio de los precios no llega nunca a los bolsillos de las productoras, entonces,  
¿quién se lleva los beneficios?  
El modelo de producción agroindustrial fuerza a quien produce a tener explotaciones  
más grandes; más animales, más fertilizantes, herbicidas, plaguicidas y antibióticos, y más  
problemas de contaminación de aguas, de tierra, de los propios alimentos y de las propias  
personas que trabajan en las explotaciones. Cada vez es más habitual que los pequeños y  
medianos productores tengan que cerrar sus fincas porque no les salen las cuentas.  
Y en este panorama desolador no podemos permitir que la agroindustria y la extrema  
derecha se apropien de los problemas del campo. Lo volvemos a decir: el problema de los  
productores no es la ley de restauración de la naturaleza; ni la demanda ciudadana de alimentos  
ecológicos a un precio razonable; ni que las instituciones digan que hay que comer menos carne.  
El problema del campo no es el ecologismo, no es el animalismo, no es Marruecos, no es el  
“anti-patriotismo”. El problema del campo es Mercadona, es Carrefour, es Danone, es Lactalis,  
es El Pozo, es Fertiberia, es BASF y Bayer, y lo son también los acuerdos de libre comercio  
hechos para la especulación agroalimentaria.  
462  
El malestar y los problemas en el sector agropecuario reventaron en tractoradas  
orquestadas y manipuladas por la extrema derecha y la agroindustria en beneficio propio,  
tratando de mantener el statu quo y generar una desestabilización política de corte reaccionario,  
sin querer, en ningún modo, dar respuesta a los verdaderos problemas del campo. Muchos  
tractores salieron a las calles pidiendo, como rehenes de la agroindustria, más intensificación,  
más químicos y menos ecologismo. Piden lo único que conocen porque están desesperados y  
porque se les ha robado su “identidad” y su “utopía”: ser campesinos, es decir, cuidar de sus  
tierras y hacerlo bien y poder vivir dignamente de ello y estar orgullosos de ello. Al contrario,  
la extrema derecha pretende apropiarse de lo agrario y culpar de todo a los ecologistas, a los  
migrantes, a la Agenda 2030… Esa visión violenta, antiecologista, antifeminista, negacionista  
Libertas, Juiz de Fora, v. 24, n. 2, p. 460-472, jul./dez. 2024. ISSN 1980-8518  
El “ecologismo popular y campesino” como marco para el movimiento por la soberanía alimentaria:  
el caso de “Nos Plantamos” (España)  
climáticamente, xenófoba, autoritaria, neoliberal, no representa al sector agrario ni puede ser el  
futuro del medio rural ni de la agricultura.  
La extrema derecha trata de apropiarse del concepto de soberanía alimentaria:  
Cuando cada vez se hace más difícil para muchas familias hacer la compra con  
productos frescos y no industriales; cuando una parte de la población requiere de los programas  
de ayuda alimentaria y de los bancos de alimentos; cuando cada día cierran unas 20  
explotaciones agrícolas2 de pequeño y mediano tamaño porque el precio que reciben de las  
cadenas de supermercados es inferior al de la producción de alimentos, o cuando una  
trabajadora marroquí es explotada en una plantación de fresas, lo que está en juego es la  
soberanía alimentaria.  
Este concepto tiene su origen en la década de los noventa cuando empezó a utilizarse  
por el movimiento campesino internacional, La Vía Campesina, en la Cumbre de la  
Alimentación de 1996. Surgió como un derecho colectivo en respuesta al capitalismo  
desenfrenado: el derecho de los pueblos a alimentos saludables producidos de forma ecológica  
y sostenible, que sitúa las necesidades de quienes producen, distribuyen y consumen alimentos  
en el centro de las políticas alimentarias.  
Esta filosofía de vida propuesta frente a las grandes multinacionales dueñas y señoras  
de los mercados y la especulación ha empezado a ser utilizada por la extrema derecha con una  
intención completamente diferente, y más intensamente en la campaña para las elecciones  
europeas. Estos partidos desvirtúan la propuesta y la vacían de contenido transformándola en  
una demanda ultranacionalista y retrógrada, ocultando su apoyo a un modelo agrario industrial,  
basado en un extractivismo sin límite, que conduce a los pequeños y medianos productores al  
endeudamiento y a la quiebra, cuando la soberanía alimentaria reivindica una vida digna para  
los productores, unos alimentos de calidad en un territorio sano, la justicia social y la solidaridad  
entre los pueblos.  
463  
Si echamos la vista atrás, vemos que desde hace años en España la derecha y la extrema  
derecha han tratado de agitar el descontento agrario y rural con la movilización de posiciones  
neo-tradicionalistas, la caza y los toros, y con la apropiación de la voz del campo como  
portavoces de las personas agricultoras y ganaderas. Y lo que es más grave, están llevando a  
cabo un ejercicio de ocultación mediante un falso “nacionalismo agrario” (más bien un  
“patrioterismo agrario”, podríamos decir) a través del cual meten en el mismo saco los intereses  
David Gallar Hernández; Isabel Vara Sánchez; Andrés Muñoz Rico  
de la pequeña y mediana agricultura y ganadería, así como de las personas consumidoras, y los  
intereses de la gran industria agroalimentaria, como si fuesen lo mismo, cuando en realidad son  
antagónicos.  
Además, están intentando enfrentar al sector agrario y a la sociedad con el movimiento  
ecologista mediante un falso dilema: si estás a favor de la transición agroecológica que tenga  
en cuenta la justicia social, la conservación del medio ambiente y la lucha contra el cambio  
climático, estás en contra de las personas agricultoras. Sin embargo, esta oposición además de  
ser falsa es claramente interesada y cortoplacista, puesto que toda persona que viva en el medio  
rural y dependa de los recursos naturales sabe muy bien que necesita de su conservación para  
que su actividad y medio de vida no se extinga.  
Lo que estamos viviendo en este momento es una vuelta de tuerca de la lucha por el  
relato de la extrema derecha, cuando pretenden apropiarse del término soberanía alimentaria,  
como ya lo están haciendo con la palabra libertad en otros ámbitos políticos, por ejemplo. En  
el caso del Ministerio de la Agricultura y de la Soberanía Alimentaria del gobierno italiano de  
Meloni3 o al recién creado partido político Soberanía Alimentaria Española4 que se presenta a  
las próximas elecciones europeas.  
Este populismo agrario de derechas vacía el concepto y lo transforma en nacionalismo  
agrario, en lugar de favorecer la acción de agricultores y agricultoras sobre su propia realidad  
productiva y vital, y pretende mantener el statu quo de la industria agroalimentaria y las grandes  
cadenas de supermercados.  
464  
Lo que está en juego en las elecciones europeas no es sólo una cuestión terminológica,  
sino las políticas agroalimentarias europeas de los próximos años, donde es necesario definir  
qué modelo queremos y a quién queremos que represente; es imprescindible que los pequeños  
y medianos productores y sus organizaciones, de la mano del resto de la sociedad, den un paso  
adelante hacia una verdadera apuesta política en este sentido.  
Necesitamos construir un sistema basado en fincas pequeñas y medianas que produzcan  
alimentos de calidad con un modelo agroecológico, basado en la justicia social y el  
entendimiento de la finitud de la naturaleza, que permita la incorporación de jóvenes y  
reconozca el valor social de las mujeres en la producción agraria y en el mantenimiento del  
medio rural; eso sí es soberanía alimentaria. Y por mucho que lo intenten, no van a robarnos su  
significado: no les vamos a dejar.  
Libertas, Juiz de Fora, v. 24, n. 2, p. 460-472, jul./dez. 2024. ISSN 1980-8518  
El “ecologismo popular y campesino” como marco para el movimiento por la soberanía alimentaria:  
el caso de “Nos Plantamos” (España)  
Composiciones del “ecologismo social y campesino”: choque de modelos y  
articulación política  
En este contexto, los productores han tratado de adaptarse a este escenario de asfixia y  
desahucio, pero aun así cientos de miles de productores han cerrado sus explotaciones y viven  
con unos ingresos insuficientes. Mientras tanto la naturaleza sigue siendo violentada  
permanentemente por este modelo agroindustrial, las dinámicas de este sistema agroalimentario  
y este modelo de dieta, que no tienen ninguna capacidad para reponer todo lo que extrae. Y,  
finalmente, el cambio climático es una realidad incontestable para la sociedad. Todo ello fruto  
de un modelo estructural que no puede ser desmontado mediante gestos individuales.  
Muchas organizaciones y colectivos llevamos años luchando por revertir esta situación,  
por apostar por una agroecología campesina, por una política agraria razonable que acoja lo  
plural y no para los grandes propietarios y para la agroindustria. Pero no ha sido suficiente.  
Hace unos meses las personas consumidoras ya protestaron, y mucho, cuando los  
precios de la cesta de la compra subieron de manera escandalosa: los barrios, las calles, las  
redes sociales y los medios de comunicación se llenaron de críticas, lamentos y penurias. Pero  
la agenda política y mediática cambió de foco. Y han tenido que salir los tractores a las  
carreteras y a las calles de las ciudades para que el tema se tome en serio, al menos durante un  
tiempo.  
465  
Mientras tanto, quince científicos y veintitrés activistas climáticos habían sido detenidos  
en los últimos meses acusados de organización terrorista por denunciar, entre otras cosas, que  
este modelo agrario y este sistema agroalimentario son una abominación que engulle y destroza  
a las personas, productoras y consumidoras, a la naturaleza, y que es una de las fuentes  
fundamentales de la amenaza global que supone el cambio climático.  
A su vez, en 2023 ganó las elecciones regionales en Países Bajos un partido que se  
autodeclara “campesino” después de sacar los tractores a las carreteras para defender un modelo  
agrario industrial de altas emisiones de nitrógeno y que reclama la eliminación de la “dictadura  
ambientalista”5. Salieron los tractores alemanes por los recortes de subvenciones al diésel  
agrícola y para protestar contra las medidas ambientales de la Política Agraria Común (PAC).  
En Francia salió la patronal de la agricultura industrial para reclamar más ayudas directas e  
indirectas al modelo agroindustrial y la eliminación de las medidas agroambientales. Y lo  
mismo en el resto de países europeos. Todo ello después de que se prolongase diez años más el  
uso del glifosato en Europa y ahora han conseguido una paralización del objetivo de la  
David Gallar Hernández; Isabel Vara Sánchez; Andrés Muñoz Rico  
reducción de los productos fitosanitarios en 2030. Los tractores han salido y están consiguiendo  
resultados: la perpetuación de la agroindustria.  
Pero en Francia también han salido a las carreteras los tractores de la Confederation  
Paysanne, la organización miembro de la Coordinadora Europea de Vía Campesina (ECVC),  
defensora de los productores de pequeña y mediana escala, y que no conciben las medidas  
agroambientales como la causa de sus problemas. La Confederation Paysanne ha sacado los  
tractores a la vez que los productores de la agroindustria pero para denunciar que los problemas  
de los pequeños y medianos productores no son los mismos que los de la gran agroindustria.  
Ha salido a las carreteras para decir que es el modelo neoliberal y las políticas públicas al  
servicio de la gran industria las que les están asfixiando. La Confederation Paysanne ha hecho  
un enorme esfuerzo por señalar y expulsar a la extrema derecha de sus acciones, por denunciar  
los intentos de cooptación por parte del neofascismo del malestar rural y agrario. Y han ido a  
los supermercados para denunciar que son las grandes empresas las que se benefician, las que  
acumulan beneficios desorbitantes a costa de productoras y consumidoras; aprovechándose de  
los tratados de libre comercio, de los alimentos kilómetros, insustentables, explotando a  
campesinos del Sur y del Norte, explotando los territorios del Norte y del Sur.  
Y después de muchos años de andar juntos y de construir confianzas y comprensiones  
desde la diversidad, la Confederation Paysanne ha contado de manera inmediata con el apoyo  
del resto de las organizaciones ecologistas y del resto de actores del movimiento por la  
Soberanía Alimentaria y la defensa de los territorios. Este movimiento de “habitantes de la  
ciudad y del campo, de ecologistas y de campesinos/as ya establecido/as como tales o en  
proceso de hacerlo”, tal y como se define “Sublevaciones de la tierra”6, ha dado un paso  
adelante y ha vuelto a declarar que rechaza la división artificial e interesada entre productores  
y ecologistas, y que apuesta colectivamente por una agricultura campesina y agroecológica de  
pequeña escala, orientada a los mercados locales para garantizar el derecho a la alimentación  
adecuada, que apuesta por un mundo rural vivo y que cuide del medio ambiente para que el  
medio ambiente cuide de las personas.  
466  
Esta alianza ciudadana, campesina y ecologista, en su defensa por el territorio y la  
agroecología campesina, lleva años de acciones de denuncia, concienciación y acción directa  
no violenta. Y la acogida por parte del Estado francés ha sido el desprecio social, la defensa de  
los intereses de la agroindustria y la represión brutal con todos los mecanismos del aparato  
Libertas, Juiz de Fora, v. 24, n. 2, p. 460-472, jul./dez. 2024. ISSN 1980-8518  
El “ecologismo popular y campesino” como marco para el movimiento por la soberanía alimentaria:  
el caso de “Nos Plantamos” (España)  
estatal, la criminalización política y el intento formal de “ilegalización” de un movimiento  
social, dejando tras de sí varios heridos muy graves y personas encausadas judicialmente. Sin  
embargo, Sublevaciones de la tierra se ha convertido en un referente como movimiento social  
transversal, con capacidad de empezar a romper las distancias y desconfianzas entre actores  
diversos, y construir una propuesta colectiva como habitantes de los territorios, personas  
trabajadoras de la tierra y consumidoras de alimentos.  
Sublevaciones de la tierra y Confederation Paysanne han mostrado la importancia vital  
de construir puentes, de abrir espacios de comunicación, de comprensión, de empatía; de  
encontrar los elementos comunes de distintos sectores ante las grandes amenazas de la  
agroindustria y de las políticas públicas que las sostienen. Y han logrado salir a las calles, a las  
carreteras y a los campos, y a los supermercados, a defender el bien común, escapando del  
corporativismo y de las barreras sociales y culturales.  
El movimiento por la soberanía alimentaria en España y “Nos Plantamos”  
En el Estado español el movimiento por la soberanía alimentaria lleva décadas tratando  
de consolidarse como un sujeto político colectivo relevante. Ha habido momentos de más  
relevancia que otros, pero siempre se ha tenido una visión compartida sobre la necesidad de  
avanzar hacia un modelo agrario, rural y agroalimentario basado en la producción de pequeña  
y mediana escala, de manejo agroecológico, de apostar por la necesidad de dotar de más apoyos  
y recursos para facilitar el desescalamiento de la agriculturas industriales, de apoyar a que los  
pequeños y medianos productores encuentren su acomodo en la transición hacia una agricultura  
agroecológica. Ha sido esta una visión compartida y construida desde la diversidad, desde la  
necesaria complementariedad entre las visiones provenientes del campo, del movimiento  
ecologista, de las consumidoras, de las experiencias agroecológicas, del tejido asociativo rural,  
de la academia afín, de las ONG vinculadas a la Soberanía Alimentaria.  
467  
Este movimiento alimentario por la Soberanía Alimentaria y la Agroecología nos  
estamos refundando, y queremos seguir profundizando y ampliando la construcción cada vez  
más colectiva de esta visión compartida. Sobre la base de todo el movimiento alimentario  
previo, en septiembre del 2023 en Córdoba, con ocasión del encuentro de Ministros de la UE  
de Agricultura, nos constituimos como un nuevo e incipiente espacio social que gritase “Nos  
Plantamos” contra las injusticias y violencias del sistema agroalimentario. Así, es como más de  
50 organizaciones y casi 200 personas definimos “Nos Plantamos” como un “movimiento que  
enreda a quienes defienden la transformación hacia la agroecología y la soberanía  
alimentaria, que quiere ser un actor clave en la transformación del sistema agroalimentario.  
David Gallar Hernández; Isabel Vara Sánchez; Andrés Muñoz Rico  
Un movimiento inclusivo e incluyente con personas campesinas, ecologistas, activistas  
climáticas, científicas, sindicalistas, consumidoras, de movimientos sociales, etc.7. Es decir,  
tratamos de seguir ampliando la base social y organizativa del movimiento alimentario, para  
llegar a más base social, incorporando nuevas visiones, con nuevas y más profundas  
sensibilidades feministas, de clase, climáticas, por edad, etc. Son muchos los aprendizajes de  
estos años de movilización social feminista, climática y juvenil, y así los asumimos.  
Además, “Nos Plantamos” pretende actualizar las formas de acción social colectiva del  
movimiento alimentario y adaptarse a las urgencias que cada parte del movimiento está  
identificando. La agroecología campesina y un modelo agroalimentario agroecológico es  
imprescindible y es urgente para abordar los problemas de los productores y del mundo rural,  
para abordar la crisis climática y de biodiversidad y para garantizar el derecho a la alimentación.  
La ciencia lleva décadas también advirtiendo de los impactos negativos de este modelo  
agroalimentario industrial en personas y medioambiente. Un nuevo movimiento de activismo  
científico y de juventud por el clima han logrado un enorme cambio social, pero aún se  
enfrentan a grandes adversarios. El negacionismo climático y el enfrentamiento entre  
agricultores y ecologistas son obstáculos enormes, y agitados de manera interesada, que tratan  
de evitar la identificación de las causas reales de la situación y, por tanto, desviar la atención de  
cuáles son los focos de presión a los que dirigir nuestras rabias y rebeldías, olvidando el papel  
de la agroindustria, la gran distribución y las multinacionales agrícolas.  
468  
“Nos Plantamos” también incluye entre sus objetivos y ejes estratégicos la resistencia e  
impugnación de los nuevos fascismos y su infiltración en las temáticas agrarias, los intentos de  
cooptación y apropiación por la extrema derecha de las penurias y malestares de los pequeños  
y medianos productores, cuando en realidad solo pretenden capitalizar ese malestar para  
profundizar las desigualdades del modelo agroindustrial. Es imprescindible que haya un  
contrapeso a esas plataformas como SOS Rural, Plataforma 6F y los grupos “antisindicalistas  
y apolíticos” que solo quieren apropiarse y utilizar el dolor de los campesinos. También tenemos  
que hacer autocrítica: el movimiento por la agroecología campesina y la Soberanía Alimentaria  
tenemos que repensarnos mucho para lograr tender puentes con los pequeños y medianos  
productores y con el resto del medio rural, y lograr construir alianzas fuertes que consigan  
recursos y políticas públicas que faciliten la desindustrialización del sector, y que apoyen la  
transición hacia sistemas agroalimentarios verdaderamente sostenibles y justos con enfoque  
agroecológico.  
Libertas, Juiz de Fora, v. 24, n. 2, p. 460-472, jul./dez. 2024. ISSN 1980-8518  
El “ecologismo popular y campesino” como marco para el movimiento por la soberanía alimentaria:  
el caso de “Nos Plantamos” (España)  
“Nos Plantamos” quiere ser un espacio de diálogo y de escucha mutua, de empatía y  
honestidad, orientado a la construcción de un movimiento diverso pero firme en sus  
posicionamientos de soberanía alimentaria y agroecología campesina como herramientas de  
justicia social, de defensa de la naturaleza y frente al cambio climático. Como dice La Vía  
Campesina internacional, “la agricultura campesina alimenta al mundo y enfría el planeta”.  
“Nos Plantamos” es una rebeldía común por la agroecología campesina en todos los territorios,  
con el fin de que los productores organizados (incluyendo a las personas trabajadoras y  
jornaleras del campo) tengan su espacio al igual que el movimiento ecologista y climático, el  
ámbito académico activista, los colectivos de consumidoras, la gastronomía o el ámbito  
sanitario.  
Desde “Nos Plantamos” aspiran a que se cultiven alimentos locales y agroecológicos,  
que se puedan encontrar en los mercados de toda la vida, a que los precios que pagamos las  
consumidoras sirvan para que las agricultoras y ganaderas puedan vivir dignamente. Se define  
como horizonte un sector agrario revitalizado, joven, y con el protagonismo de las mujeres, que  
son las que alimentan al mundo y, como en todos los sectores, las grandes invisibilizadas. La  
demanda de “Nos Plantamos” es un sector agrario y un mundo rural digno de ser vivido.  
Apostamos por un sector agrario campesino para cuidar los territorios, haciendo que la  
agricultura y la alimentación dejen de ser un problema ambiental. Porque sabemos que la  
agricultura campesina alimenta al mundo y enfría el planeta.  
469  
Necesitamos territorios y sociedades que estén orgullosas de su cultura y de sus paisajes,  
territorios que puedan tener una forma de vida digna. Desde “Nos Plantamos” apostamos por  
modelos de agricultura y ganadería agroecológica, mercados locales, necesitamos un cambio  
para que productoras y consumidoras estén en el centro del modelo alimentario.  
Tirando líneas de acción colectiva desde el movimiento campesinista por la  
soberanía alimentaria  
Por eso es importante que las organizaciones agrarias integrantes de La Vía Campesina  
(LVC) internacional y de la Coordinadora Europea de Vía Campesina (ECVC) estén formando  
parte de este movimiento y sean capaces de alzar su voz para desmontar la versión de la  
agroindustria y de la extrema derecha sobre “los problemas del campo”. “Nos Plantamos”  
compartimos radicalmente las reivindicaciones de ECVC y otras organizaciones campesinas y  
agroecológicas sobre precios justos, políticas públicas apropiadas, bloqueo a los tratados de  
libre comercio, una PAC que facilite la transición justa hacia la agroecología campesina y las  
prácticas sostenibles; apoyo a la ganadería extensiva; la paralización de las nuevas técnicas  
David Gallar Hernández; Isabel Vara Sánchez; Andrés Muñoz Rico  
genómicas, la prohibición de macrogranjas; una menor burocracia y más eficiente; el apoyo a  
la incorporación de jóvenes; la protección de las trabajadoras rurales migrantes y no migrantes;  
facilitar el acceso a la tierra e impedir el acaparamiento y especulación de tierras por fondos de  
inversión y empresas del agribussines; consolidar los derechos de las personas campesinas y  
fortalecer el derecho a la alimentación; un enfoque feminista interseccional y transversal; la  
consideración de las diversidades sexuales y de género; la compra pública de alimentos  
agroecológicos; el apoyo a canales de transformación, comercialización y consumo de  
productos locales agroecológicos; un reparto justo y social del agua; la protección de los  
recursos naturales como bienes comunes; la defensa de la biodiversidad cultivada; la lucha  
contra el cambio climático y la defensa de los territorios.  
Allá donde los campesinos se organicen de manera autónoma o a través de  
organizaciones de LVC, defendiendo y practicando la agroecología campesina, defendiendo un  
modelo agrario y un mundo rural vivo; allá donde los territorios y sus habitantes se defiendan  
contra la agroindustria y contra todas las amenazas de desposesión y destrucción de sus  
territorios físicos y sociales; allá donde las consumidoras se organicen para el consumo local y  
agroecológico; allá donde el movimiento ecologista y climático den un paso adelante; allá  
donde haya que pelear por políticas agroalimentarias que apuesten por la Soberanía Alimentaria  
y por el apoyo decidido a la transición real hacia un sistema agroalimentario agroecológico; allá  
donde haya una injusticia y un atentado contra el campesinado y la ecología, allá estará “Nos  
Plantamos”.  
470  
Ante las movilizaciones agrarias y la presión de la agroindustria, “Nos Plantamos”  
seguirá construyendo de fondo un movimiento social que aglutine sensibilidades, que permita  
el diálogo y la comprensión mutua, bajo el paraguas de la agroecología campesina y la  
Soberanía Alimentaria, del ecologismo popular y social. Apelamos, pues, a que los pequeños y  
medianos productores no rechacen el concepto de “campesinado”: es verdad que ha sido un  
término despectivo durante mucho tiempo, símbolo de atraso y desprecio social, pero tratar de  
ser “empresarios agrícolas” de la agroindustria tampoco está siendo una solución. Las palabras  
que se usan son importantes: por eso es tan potente cuando los pequeños y medianos  
productores se enorgullecen de identificarse a sí mismos como campesinos, pageses,  
baserritarras, camperoles, labradores o como jornaleras en tanto que son campesinas sin tierra:  
como personas que trabajan el campo para producir alimentos y cuidar sus pueblos; y cuando  
no tienen miedo, al contrario, de proclamarse como defensores de la tierra: haciendo  
agroecología o dispuestas a hacerlo si consiguen el apoyo suficiente y unos precios dignos para  
dejar de ser peones de la agroindustria.  
Libertas, Juiz de Fora, v. 24, n. 2, p. 460-472, jul./dez. 2024. ISSN 1980-8518  
El “ecologismo popular y campesino” como marco para el movimiento por la soberanía alimentaria:  
el caso de “Nos Plantamos” (España)  
En este sentido, comparte y asume como propias las demandas de la ECVC en el marco  
de estas movilizaciones: precios justos y una necesaria regulación de mercado, como la  
incipiente Ley de la cadena alimentaria; el fin de los tratados de libre comercio basados en la  
desigualdad y la competencia desleal; un presupuesto suficiente y una distribución equitativa  
de las ayudas de la PAC para facilitar una transición justa hacia la agroecología y las prácticas  
ecológicas; la reducción de la carga administrativa para las y los agricultores; y detener la  
desregulación de las nuevas técnicas genómicas.  
Desde “Nos Plantamos” huyen de la “superioridad moral” que se achaca a quienes no  
son productores: no estamos para decirle a nadie qué debe hacer. Por eso desde “Nos  
Plantamos” cuidamos y celebramos los pasos decididos hacia el protagonismo campesino de  
las organizaciones de ECVC, de la pagesia organizada, de las ganaderas extensivas, de las  
experiencias y colectivos agroecológicos. Está siendo emocionante comprobar la vitalidad,  
claridad y potencia del movimiento campesino y agroecológico en todos los rincones del Estado  
español.  
Celebramos y acogemos la honestidad y la empatía colectiva para encontrar puntos de  
diálogo y de resolución de los conflictos entre las distintas sensibilidades de quienes comparten  
de alguna manera el horizonte de la soberanía alimentaria. Celebramos y cultivamos la  
construcción de confianzas mutuas. Y desde la urgencia de la situación, como dirían las  
zapatistas o Sancho Panza, vamos despacio para llegar lejos.  
471  
Y yendo despacio, tenemos que actuar de manera urgente. Construir alianzas para pasar  
a la acción. Las personas campesinas, las ganaderas, el movimiento climático, el movimiento  
ecologista, la ciencia, las colas del hambre en los barrios, la cesta de la compra de las  
consumidoras…, todas vemos que tenemos que plantarnos ya y construir algo distinto en cada  
granja, en cada pueblo, en cada mercado, en cada barrio, en cada ciudad, en cada política, en  
cada escuela y universidad. Es urgente sacar los tractores, salir a las calles, abandonar los  
grandes supermercados, inundar los mercados de productores agroecológicos, señalar a la  
agroindustria y a quienes destrozan los territorios y la vida del medio rural. La acción directa  
no violenta, la creatividad, la solidaridad y el apoyo mutuo deben ser nuestras herramientas  
para avanzar hacia la soberanía alimentaria.  
Referências bibliográficas  
DI PAULA, Martina; GALLAR, David; GARCÍA VILLAVERDE, Xosé María. “Allariz, de la  
destrucción agroindustrial a la solución agroecológica”. El Salto, 9 out. 2024. Disponível  
em:  
solucion-agroecologica. Acesso em: 16 out. 2024.  
David Gallar Hernández; Isabel Vara Sánchez; Andrés Muñoz Rico  
GALLAR, David (2024), La reconfiguración de la arena política agraria: populismos,  
sindicalismo y campesinado, Nuestra Bandera. Revista de debate teórico y político, número  
263-2T, 141-150, ISSN: 1133-567X. Admitido 8 de abril de 2024. Disponível em:  
MUÑOZ, Andrés; GALLAR, David (2024) “La extrema derecha trata de apropiarse del  
concepto de soberanía alimentaria”. Tribuna Agricultura El País. 3 jun. 2024. Disponível  
out. 2024.  
VILALBA, Isabel; CIFRE, Helena; MUÑOZ, Andrés; GALLAR, David; DI PAULA, Martina.  
“Nos Plantamos: por un modelo alimentario centrado en las personas y en la tierra”. Tribuna  
Agricultura El País, 5 de marzo de 2024. Disponível em: https://elpais.com/clima-y-  
personas-y-la-tierra.html. Acesso em: 16 out. 2024.  
472  
Libertas, Juiz de Fora, v. 24, n. 2, p. 460-472, jul./dez. 2024. ISSN 1980-8518  
Uma análise do caso Braskem e da exploração  
da natureza à luz do pensamento de Mészáros  
An analysis of the Braskem case and the exploitation of nature in the light  
of Mészáros' thinkin  
Elida Janaina Barbosa Rodrigues Pimentel*  
Luana Cavalcante Pinho**  
Resumo: O artigo analisa o caso Braskem à luz  
das reflexões de István Mészáros sobre as  
questões ambientais contemporâneas. Este caso  
é um crime socioambiental de impacto que  
aconteceu na região metropolitana de Maceió,  
Alagoas, expondo a cidade a uma situação de  
Abstract: This article analyzes the Braskem  
case in light of István Mészáros' reflections on  
contemporary environmental issues. This case  
is a high-impact socio-environmental crime that  
occurred in the metropolitan region of Maceió,  
Alagoas, exposing the city to a risky situation.  
We use bibliographic and documentary sources  
with the intention of bringing theoretical  
debates and historiographical records to explain  
how the predatory mode of capital relates to  
nature. The conclusion was reached that capital  
imposes the realization of its expanded  
reproduction and that all intervention in the  
risco. Utilizamos fontes bibliográficas  
e
documentais na intenção de trazer debates de  
cunho teórico e registros historiográficos para  
explicar como o modo predatório do capital se  
relaciona com  
a
natureza. Chegou-se  
à
conclusão que o capital impõe a realização de  
sua reprodução ampliada e que toda intervenção  
no meio ambiente obedece a essa lógica  
reprodutiva destrutiva. O estudo concluiu ainda  
que este crime serve de exemplo da lógica  
environment  
obeys  
this  
destructive  
reproductive logic. The study also concluded  
that this crime serves as an example of the self-  
expansionist logic of capital, in which the  
appropriation of soil and water, air pollution and  
the risk to people are merely inevitable and  
functional collateral damage for the self-  
expansion of capital, also contributing to the  
mechanisms of control of its internal  
contradictions.  
autoexpansionista do capital, na qual  
a
apropriação do solo, da água, a poluição do ar e  
o risco para as pessoas são apenas danos  
colaterais inevitáveis e funcionais para a  
autoexpansão do capital, contribuindo também  
com os mecanismos de controle de suas  
contradições internas.  
Palavras-chaves: Crise estrutural do capital;  
Produção destrutiva; Crime socioambiental;  
Maceió; Exploração de sal-gema.  
Keywords:  
Capital's  
structural  
crisis;  
Destructive production; Socio-environmental  
crime; Maceió; Rock salt exploration.  
*
Assistente social. Mestre e doutoranda em Serviço Social (PPGSS/UFAL). Bolsista da Fundação de Amparo à  
Pesquisa do Estado de Alagoas (FAPEAL). Pesquisadora vinculada ao Grupo de Estudos e Pesquisas István  
Mészáros (GEP-MESZ/UFAL), e ao Grupo de Pesquisa Sobre Reprodução Social (GPRS/UFAL). ORCID:  
**  
Assistente social. Especialista em História de Alagoas (IFAL). Mestre e doutoranda em Serviço Social  
(PPGSS/UFAL). Bolsista da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES).  
Pesquisadora vinculada ao Grupo de Pesquisa Sobre Reprodução Social (GPRS/UFAL). ORCID:  
DOI: 10.34019/1980-8518.2024.v24.45816  
Esta obra está licenciada sob os termos  
Recebido em: 30/08/2024  
Aprovado em: 11/12/2024  
Elida Janaina Barbosa Rodrigues Pimentel; Luana Cavalcante Pinho  
Introdução  
A mineração é uma atividade que está relacionada a diversas problemáticas. De modo  
amplo, ela figura como assunto nos debates ecológicos, pois seus impactos se tornam ainda  
mais controversos num contexto em que a crise ambiental tem evidenciado o vínculo entre a  
destruição da natureza e a reprodução capitalista. No atual contexto brasileiro, que contempla  
uma miríade de desventuras, é inegável o quanto a mineração comparece como foco que emana  
desastres, com profundos impactos socioambientais. Basta uma breve reflexão e podemos  
apontar algumas dessas tragédias, sejam elas outorgadas pelo Estado ou não. Como exemplo,  
podemos citar a extração do ferro que arrasou sob a lama as cidades mineiras de Mariana e  
Brumadinho e a lavra ilegal de ouro em terras indígenas: casos que demonstram o quão  
controversa têm sido esta atividade e como os interesses do capital se sobrepõem aos da  
sociedade.  
É necessário destacar, a princípio, uma ressalva quanto ao uso de termos como tragédia,  
desastre, acidente e catástrofe nestes casos. Estes termos, muito embora sirvam para  
dimensionar as grandes perdas e transtornos relacionados a estes acontecimentos, contribuem  
para escamotear a ação ou omissão humana que está em sua base. Por isso, frente à tamanha  
destruição ocasionada pela interferência humana, seria mais adequado nomeá-las como crime.  
Em nosso estudo analisaremos mais um desses crimes. Maceió, capital de Alagoas, tem  
se tornado notícia pelo desenvolvimento daquele que tem sido considerado o maior crime  
socioambiental em área urbana do mundo. A mineração exploratória do sal-gema desencadeou  
a formação de imensas cavernas subterrâneas, o que provocou o afundamento do solo em uma  
área de aproximadamente 274 hectares que precisou ser evacuada, dado o perigo de  
desabamento da superfície que se sustentava sobre um solo oco. Este crime, que já causou uma  
infinidade de danos diretos e indiretos, se assenta na apropriação predatória e destrutiva que o  
capital faz da natureza. Para o capital, não há limites intransponíveis que impeçam sua sanha  
por lucros, por isso, quando necessário, para atingir seus objetivos, faz uso de meios ilícitos. O  
crime sempre compensou para o capital e se constitui enquanto um de seus modi operandi.  
Assim sendo, a problemática ambiental, por esses e outros tantos motivos, é um dos  
maiores desafios de nossa época, demandando que se rompa com a imediaticidade caótica que  
tem deixado a humanidade inerte frente ao colapso da natureza, e se vá à raiz do problema.  
Desse modo, para uma compreensão crítica da problemática do meio ambiente no tempo  
presente, é imprescindível situá-la no contexto geral da sociabilidade capitalista. Neste intento,  
elegeu-se a leitura do filósofo húngaro István Mészáros como veio argumentativo e guia da  
474  
Libertas, Juiz de Fora, v. 24, n. 2, p. 473-496, jul./dez. 2024. ISSN 1980-8518  
Uma análise do caso Braskem e da exploração da natureza à luz do pensamento de Mészáros  
presente discussão, haja vista que este autor teceu contribuições para o entendimento da  
dinâmica contemporânea do capital à luz da teoria social de Marx.  
O trabalho analisa o caso Braskem, evidenciando nele o modo como o capital se  
apropria da natureza para a realização de sua autoexpansão. Para tanto, foi utilizada a pesquisa  
bibliográfica e documental, tanto para explicar o contexto geral da ordem do capital, como para  
apresentar os elementos do desenvolvimento histórico do caso Braskem na cidade de Maceió.  
Nesse quadro, dividimos o trabalho em três seções, sendo a primeira voltada a explicar como o  
crime ambiental aqui relatado deve ser inicialmente entendido como pertencente à lógica mais  
geral da crise estrutural do capital e de sua concomitante ativação dos limites absolutos do  
sistema. A segunda seção volta-se ao entendimento da conexão entre a lógica predatória própria  
do modo de produção capitalista e a problemática ambiental, lógica esta que articula,  
irremediavelmente, progresso e destruição. Na terceira seção voltaremos nosso olhar para a  
particularidade do caso Braskem, pois este caso exemplifica o modo exploratório com que o  
capital se apropria da natureza e a converte seu meio de produção.  
Crise estrutural e ativação dos limites absolutos do capital  
O entendimento crítico da problemática do meio ambiente e dos crimes cometidos em  
nome da reprodução ampliada do capital pressupõe o desvelar do funcionamento do sistema  
sociometabólico do capital como pano de fundo para os desdobramentos nas mais diferentes  
esferas da vida social. Nesse sentido, o capital é mais do que uma simples expressão material  
da riqueza produzida. Em sua natureza reside um poderoso ímpeto totalizador, que faz com que  
todas as áreas da vida humana sejam submetidas às suas necessidades de reprodução em escala  
ascendente. Segundo Mészáros (2011, p. 96),  
475  
Não se pode imaginar um sistema de controle mais inexoravelmente  
abrangente – e, nesse importante sentido, ‘totalitário’ – do que o sistema do  
capital globalmente dominante, que sujeita cegamente aos mesmos  
imperativos a questão da saúde e do comércio, a educação e a agricultura, a  
arte e a indústria manufatureira, que implacavelmente sobrepõe a tudo seus  
próprios critérios de viabilidade, desde as menores unidades de seu  
“microcosmo” até as mais gigantescas empresas transnacionais, desde as mais  
íntimas relações pessoais aos mais complexos processos de tomada de decisão  
dos vastos monopólios industriais, sempre a favor dos fortes e contra os fracos.  
Esta característica totalizadora do sistema do capital está expressa desde a sua origem,  
tornando este modo de produção mais dinâmico que os precedentes. No entanto, as  
consequências dessa dinamicidade recaem na sistemática “perda de controle sobre os processos  
de tomada de decisão” (Mészáros, 2011, p. 97), que atingem igualmente os trabalhadores – de  
forma clara e abertamente e os próprios capitalistas, que também precisam atender aos  
Elida Janaina Barbosa Rodrigues Pimentel; Luana Cavalcante Pinho  
ditames do capital, sob pena de perderem seus investimentos caso não se atentem às regras do  
metabolismo do capital. Dessa maneira, todas as áreas da atividade humana passam a ser  
guiadas por objetivos externos, e que não são necessariamente funcionais à reprodução da vida,  
mas que certamente atendem à dinâmica reprodutiva do capital.  
Ao fim e ao cabo, a razão de ser do sistema do capital é a máxima extração de trabalho  
excedente, justamente porque este “é orientado pela expansão e movido pela acumulação”  
(Mészáros, 2011, p. 100). Atender a esta condição coloca o sistema do capital numa posição  
dual: de um lado, e enquanto puder cumprir a dinâmica de expansão ascendente, torna-se um  
sistema de controle sociometabólico irresistível por conta do salto que proporciona na esfera  
produtiva; de outro lado, ao deparar-se com qualquer obstáculo à plena acumulação,  
desencadeia crises. Ao longo do desenvolvimento do sistema do capital, a expansão das  
operações para novos territórios ajudou a deslocar esta lógica dual e contraditória,  
[...] liberando a pressão dos “gargalos” na expansão do capital com a abertura  
de novas rotas de suprimento de recursos humanos e materiais, além de criar  
as necessidades de consumo determinadas pela continuidade da  
autossustentação, em escala cada vez maior, do sistema de reprodução  
(Mészáros, 2011, p. 257).  
Assim, segundo Mészáros (2011), a globalização tende a deslocar temporariamente as  
contradições imanentes ao sistema do capital. Contudo, este subterfúgio não conseguiu ser  
usado ad eternum. A partir do fim da década de 1960, e início dos anos 1970, tem-se observado  
um processo de decréscimo contínuo das taxas globais de acumulação do capital, o que leva o  
nosso autor a constatar que  
476  
[...] além de certo ponto, de nada adianta um aumento maior dessa escala e a  
usurpação da totalidade dos recursos renováveis e não renováveis que o  
acompanha, mas, ao contrário, ele aprofunda os problemas implícitos e se  
torna contraproducente. É o que se deve entender por ativação do limite  
absoluto do capital com relação à maneira como são tratadas as condições  
elementares de reprodução sociometabólica (Mészáros, 2011, p. 257).  
Este é, segundo o autor, um dos traços mais problemáticos da forma como o capital se  
reproduz, pois apesar de sua capacidade produtiva ampliada quando comparado aos modos de  
produção anteriores e de sua capacidade de a tudo subordinar aos seus interesses, o capital é  
incapaz de dar a devida importância às causas, tratando paliativamente apenas os efeitos dos  
problemas que gera. Nesse sentido, os avanços do sistema do capital deixam um rastro  
destrutivo pelo caminho e, ao serem ativados os seus limites absolutos, apresentam-se  
consequências quase proibitivas à reprodução da vida no planeta, justamente porque estes  
dizem respeito à estrutura causal do capital, cuja superação consiste em derruir toda a forma de  
funcionamento do sistema. Incapaz de superar suas próprias contradições, o sistema do capital  
Libertas, Juiz de Fora, v. 24, n. 2, p. 473-496, jul./dez. 2024. ISSN 1980-8518  
Uma análise do caso Braskem e da exploração da natureza à luz do pensamento de Mészáros  
tende a remediar os seus efeitos mais danosos, aceitando sem questionamentos a sua base  
causal. Este sistema nega sistematicamente os efeitos de seu funcionamento para o futuro,  
atiçando  
[...] o impulso expansionista necessário das empresas isoladas e do sistema em  
geral sem levar em conta as consequências devastadoras, contradiz  
diretamente as ponderações elementares e literalmente vitais da restrição  
racional e correspondente controle racional dos recursos humanos e materiais  
globais (Mészáros, 2011, p. 258).  
O impulso irrefreável do capital em expandir-se, não importando as consequências –  
mesmo que estas sejam a destruição das condições objetivas de vida sob a Terra não pode ser  
considerado uma falha dos capitalistas individuais. Estes últimos atendem ao ritmo de um  
sistema de produção cujas regras são determinadas de fora, por um elemento autônomo e  
incontrolável: o capital. Nesse sentido, “a falha emana da natureza do sistema de reprodução  
estabelecido, de que as empresas são parte integrante” (Mészáros, 2011, p. 259). O capital não  
pode adotar, em escala global, práticas produtivas que atendam unicamente às necessidades  
humanas, levando a efeito uma restrição racional abrangente, sob pena de extinguir-se. Assim,  
ao encontrar bloqueios nos deslocamentos de suas contradições a outros territórios, “ativa os  
limites absolutos e a simultânea crise estrutural do sistema” (Mészáros, 2011, p. 259). Esta crise  
estrutural, ao contrário das anteriores de caráter cíclico, afeta o sistema do capital nos seus mais  
variados aspectos, colocando em perigo a viabilidade do sistema reprodutivo como um todo.  
Tal como caracteriza o autor:  
477  
A novidade histórica da crise de hoje torna-se manifesta em quatro aspectos  
principais: (1) seu caráter é universal, em lugar de restritivo a uma esfera  
particular [...]; (2) seu alcance é verdadeiramente global (no sentido mais  
literal e ameaçador do termo), em lugar de limitado a um conjunto particular  
de países (como foram as principais crises no passado); (3) sua escala de  
tempo é extensa, contínua, se preferir, permanente, em lugar de limitada e  
cíclica [...]; (4) em contraste com as erupções e os colapsos mais espetaculares  
e dramáticos do passado, seu modo de se desdobrar poderia ser chamado de  
rastejante [...] (Mészáros, 2011, p. 795 - 796).  
A síntese destes elementos nos mostra a situação contemporânea de reprodução do  
capital. Com ela, podemos entender que a crise estrutural e a ativação dos limites absolutos do  
capital têm afetado todas as áreas da atividade humana, não se restringindo apenas à esfera  
econômica. No entanto, a destruição do meio ambiente é a única destas esferas que ameaça  
objetivamente a reprodução da vida. Vejamos, no tópico seguinte, como o capital transforma  
os recursos materiais retirados do meio ambiente em meios de produção, funcional à lógica  
destrutiva do capital.  
Elida Janaina Barbosa Rodrigues Pimentel; Luana Cavalcante Pinho  
Meio ambiente e produção destrutiva do capital  
A preocupação com as questões ambientais já aparecia nos escritos marxianos. Em A  
Ideologia Alemã, ao debaterem com Feuerbach a respeito da retórica idealista com a qual este  
estabelecia a relação entre homem e natureza, dizem Marx e Engels (2009, p. 65-66):  
Feuerbach, portanto, nunca fala do mundo dos homens nesses casos, refugia-  
se sempre na natureza exterior e, para mais, na natureza que ainda não foi  
dominada pelos homens. Mas cada nova invenção, cada avanço da indústria,  
separa outro pedaço desse domínio, pelo que diminui continuamente a área  
que produz os exemplos ilustrativos das posições de Feuerbach. A “essência”  
do peixe é o seu “ser”, a água – para ficarmos por essa proposição. A  
“essência” do peixe de água doce é a água de um rio. Mas essa deixa de ser a  
“essência” do peixe, e já não é um meio adequado de existência, assim que o  
rio é posto ao serviço da indústria, assim que é poluído com tintas e outros  
produtos residuais, e navegados por barcos a vapor, ou assim que a sua água  
é conduzida para canais onde bastam os esgotos para privar o peixe de seu  
meio de existência.  
Nesta passagem, Marx e Engels (2009) chamam a atenção para a destrutividade do  
sistema do capital, e como esta atinge objetivamente a todos. Ao colocar em prática o seu  
controle, o sistema capitalista não faz diferenciação entre avanço e destruição, progresso e  
desperdício, ainda que o resultado seja a devastação dos recursos naturais, já que estes devem  
servir apenas como meios de produção do capital. Como corrobora Mészáros (2011, p. 253), “a  
natureza e os seres humanos só poderiam ser considerados ‘fatores de produção’ externos em  
termos da lógica autoexpansionista do capital”. Para este autor, ao longo do desenvolvimento  
do modo de produção capitalista, antes de o sistema atingir seus limites absolutos, período no  
qual a lógica do capital passou a penetrar nas mais diferentes esferas da vida social, foi admitido  
certo grau de “destruição produtiva”. Ou seja, a destruição gerada pelo desenvolvimento do  
sistema do capital poderia ser considerada uma parte inevitável do crescimento que o capital  
tem proporcionado, sob a condição deste crescimento conseguir desviar as contradições  
internas do próprio sistema.  
478  
Entretanto, com a irrupção da crise estrutural do capital, bem como com a concomitante  
ativação dos limites absolutos do sistema, o cenário foi agravado. Uma vez instalada a  
dificuldade em deslocar suas contradições internas, o sistema do capital tornou o fator  
destrutivo da produção um elemento proibitivo à continuação da reprodução do sistema. Assim,  
“Historicamente passamos da prática de ‘destruição produtivada reprodução do capital para  
uma fase em que o aspecto predominante é o da produção destrutiva cada vez maior e mais  
irremediável” (Mészáros, 2011, p. 267). Na contemporaneidade, a tendência à crescente  
produtividade do capital coloca à humanidade um grande problema, pois está diretamente  
ligada à destrutividade. E como o capital é capaz somente de uma racionalidade parcial, não  
Libertas, Juiz de Fora, v. 24, n. 2, p. 473-496, jul./dez. 2024. ISSN 1980-8518  
Uma análise do caso Braskem e da exploração da natureza à luz do pensamento de Mészáros  
existe nada que pare o impulso expansionista inerente ao sistema, e que o faça levar em conta  
as consequências devastadoras da exploração desenfreada dos recursos naturais. Nesse  
contexto, a crescente produtividade do capital, conquistada por meio do incremento da ciência  
e da tecnologia, torna-se um fator preocupante, justamente porque  
[...] como esse progresso teria de ocorrer de forma alienada, sob o domínio de  
uma objetividade reificada – o capital – que determinasse o rumo a seguir e  
os limites a transgredir, o intercâmbio reprodutivo entre a humanidade e a  
natureza teve de se transformar no oposto. O terreno da ciência e da tecnologia  
viável teria de estar rigorosamente subordinado às exigências absolutas da  
expansão e da acumulação do capital. Por essa razão, ciência e tecnologia  
sempre tiveram de ser utilizadas com enorme seletividade, conforme o único  
princípio de seletividade à disposição do capital, até nas formas  
historicamente conhecidas dos sistemas pós-capitalistas. Assim, mesmo as  
formas existentes de conhecimento científico, que até poderiam combater a  
degradação do ambiente natural, não podem se realizar porque interfeririam  
com o imperativo da expansão inconsciente do capital [...] Ciência e  
tecnologia só poderão ser utilizadas a serviço do desenvolvimento produtivo  
se contribuírem diretamente para a expansão do capital e ajudarem a empurrar  
para mais longe os antagonismos internos do sistema (Mészáros, 2011, p. 254-  
255).  
Decorre daí que ciência e tecnologia, aplicadas com a finalidade de aumentar a  
produtividade, são contidas dentro dos objetivos de acúmulo do capital. Elas têm seu uso  
degradado aos imperativos do sistema, uma vez que são impossibilitadas de utilização para  
reverter a piora da situação ambiental. Sob tal lógica, “a interferência irresponsável na  
causalidade da natureza é a norma; a pesquisa de projetos de produção realmente  
emancipadores, a rara exceção” (Mészáros, 2011, p. 255). De fato, inúmeros são os exemplos  
nos quais montantes significativos de recursos são alocados em pesquisas com alto valor de  
mercado, muito embora destrutivas do ponto de vista do consumo de riquezas e diversidade  
naturais, bem como esvaziadoras das políticas de cunho social. Assim, o aumento da  
produtividade do campo não é capaz de erradicar a fome e a desnutrição, por exemplo. Ou  
ainda, a mesma lógica para a realização de cortes nos orçamentos destinados à saúde e educação  
não é aplicada ao investimento no complexo industrial e militar. Conforme explica o autor,  
usando de certa ironia:  
479  
Mais uma vez, isto estaria em contradição com o imperativo da expansão  
“racional” do capital. Não se deve permitir que motivações “sentimentais”  
relativas à saúde – e até à simples sobrevivência – dos seres humanos  
perturbem ou interrompam os “processos de tomada de decisão” orientados  
para os mercados. O ritmo e a recalcitrância espontâneos da natureza já não  
são desculpas convincentes para justificar as condições de vida de milhões e  
milhões de pessoas que sucumbiram à miséria nas últimas décadas e  
continuam a perecer ainda hoje pela mesma causa (Mészáros, 2011, p. 255).  
Elida Janaina Barbosa Rodrigues Pimentel; Luana Cavalcante Pinho  
As consequências socioambientais da produtividade destrutiva do capital não devem ser  
consideradas oriundas de determinações políticas, mas sim como resultados imanentes do  
próprio modus operandi do capital em crise estrutural. Nesse contexto, a devastação ambiental  
criminosa e a crescente capacidade destrutiva do sistema revelam o quão absurda é a lógica do  
capital, na qual se nega a necessidade de muitos em favor da reprodução do capital.  
Mas mesmo o uso perdulário dos recursos naturais na atualidade está “muito longe de  
ser suficiente para permitir ao capital seguir imperturbável o seu caminho” (Mészáros, 2011, p.  
801), evidenciando cada vez mais a profundidade de sua crise estrutural. A crença de que o uso  
da ciência e tecnologia resolveria todos os problemas ecológicos já não pode mais ser levada  
em consideração, dados os inúmeros casos de crimes ambientais que presenciamos. Há algumas  
décadas, a questão ambiental era sistematicamente negligenciada, como se dela não emanasse  
um senso de urgência. Atualmente, ela vem permeando uma série de espaços de discussão, mas  
de forma tal que apenas nubla a questão fundamental, qual seja, a lógica predatória do sistema  
capitalista. Claramente desvirtuada, a questão ambiental nos nossos dias tem sido  
“grotescamente desfigurada e exagerada unilateralmente para que as pessoas – suficientemente  
impressionadas com o tom cataclísmico dos sermões ecológicos possam ser, com sucesso,  
desviadas dos candentes problemas sociais e políticos” (Mészáros, 2011, p. 887). Isto mostra o  
quanto o sistema do capital tornou-se impermeável à correção de seus defeitos estruturais, até  
mesmo em áreas de vital importância. Não é à toa que Mészáros (2011, p. 95) afirma que: “O  
ambientalismo, por sua própria natureza [...] é não integrável”, ou seja, diante dos objetivos de  
autoexpansão do capital, as questões ambientais, se racional e humanamente orientadas, não  
servem à reprodução do capital.  
480  
Diante da possibilidade real de chegarmos a um cenário de destruição irreversível do  
meio ambiente, cabe olharmos para esta questão de outro modo que não desejosos de “extrair  
lucro até mesmo destas questões vitais para a existência humana” (Mészáros, 2011, p. 993).  
Nesse processo, transcender a lógica do capital, concentrando a prioridade nas necessidades  
humanas, é o primeiro passo.  
Os apontamentos de Mészáros (2011) em relação à problemática do meio ambiente  
auxiliam no entendimento das formas procedimentais dos representantes do grande capital  
quando colocados diante de um crime ambiental. Num dos casos mais recentes de negligência  
com a natureza e com a população que dela retira suas condições materiais de existência, a  
cidade de Maceió tem vivenciado a evacuação de bairros inteiros, em consequência da atividade  
predatória da extração de sal-gema. No item a seguir será analisado o Caso Braskem, desde a  
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Uma análise do caso Braskem e da exploração da natureza à luz do pensamento de Mészáros  
sua origem até o saldo devastador que foi, por muitos pesquisadores da área, tristemente  
anunciado.  
A apropriação destrutiva e exploratória da natureza pelo capital: uma análise a  
partir do caso Braskem  
Neste tópico nos deteremos em esquadrinhar a história da indústria química alagoana,  
evidenciando o trato que este ramo do capital deu ao meio ambiente e suas consequências. A  
exploração de sal-gema é o cerne que desencadeia este crime sem precedentes na história  
brasileira. Esse mineral, que também recebe o nome de halita, nada mais é que o sal que  
conhecemos, o cloreto de sódio, cuja fórmula química NaCl aprende-se na escola. Além de  
sua utilização na alimentação, o sal-gema é uma importante matéria-prima da indústria química,  
“sendo a principal fonte de cloro e derivados como ácido clorídrico e demais cloretos,  
hipoclorito (água sanitária), cloratos e percloratos (propriedades germicidas)” (Teixeira et al.,  
2020, p. 31).  
A capital de Alagoas, Maceió, detém 14% da reserva de sal-gema do Brasil (Teixeira et  
al., 2020). Estas reservas jaziam depositadas cerca de um quilômetro da superfície. Os  
evaporitos, também chamados de salmoura, têm sua origem num período deveras distante de  
nossa época, pois se constituíram a partir da separação continental, que resultou na formação  
das placas continentais da América e da África, assim como também do oceano Atlântico  
(Florencio, 2001).  
481  
Apesar de sua longa existência, essas minas permaneceram adormecidas no subsolo por  
um longo tempo: somente em 1943 foram descobertas, de modo não intencional. A constatação  
da existência das minas de sal em Maceió ocorreu quando as sondas do Conselho Nacional do  
Petróleo perfuraram os manguezais do bairro do Mutange, prospectando petróleo. Durante o  
reparo das brocas, o empresário Euvaldo Luz, proprietário da oficina de manutenção do  
maquinário utilizado nos trabalhos, notou nas máquinas fragmentos de sal-gema. Logo o  
empresário buscou autorização para a exploração de sua descoberta, porém essa foi outorgada  
para uma empresa estrangeira por vinte e dois anos. Essa licença expirou sem qualquer avanço  
na atividade. Passado este período, Euvaldo requereu novamente a concessão e, finalmente,  
obteve êxito (Lustoza, 1997).  
O decreto de número 59.356, expedido em 4 de outubro de 1966, autorizava Euvaldo  
Freire de Carvalho Luz a pesquisar sal-gema numa área de 500 hectares, nas proximidades da  
laguna Mundaú (Brasil, 1966). Segundo Lustoza (1997), as reservas de halita presentes no  
subsolo da região aglomeravam cerca de 3 bilhões de toneladas do minério. Contudo, desse  
Elida Janaina Barbosa Rodrigues Pimentel; Luana Cavalcante Pinho  
total apenas 125 milhões de toneladas poderiam ser exploradas, pois os estudos iniciais  
vislumbravam que a mineração poderia ter como consequência o afundamento do solo da  
região.  
Ainda em 1966 é instituído o projeto da Salgema S.A., a indústria química que seria  
responsável pelo beneficiamento do sal-gema retirado do subsolo maceioense. O projeto foi  
aprovado pela Superintendência de Desenvolvimento do Nordeste (SUDENE)1 no ano seguinte,  
mas demoraria ainda uma década para que saísse do papel. A demora entre a aprovação do  
projeto e sua efetivação foi resultado de alguns empasses enfrentados. O primeiro que  
destacamos diz respeito à composição acionária do empreendimento, que naquele momento já  
contava com a participação da empresa americana DuPont de Nemours. O segundo impasse  
estava relacionado à técnica a ser adotada para a exploração das jazidas de sal-gema, pois havia  
um embate entre a adoção de um manejo mais barato e poluente contra o emprego de uma  
técnica mais cara, mas que causava menos impactos ambientais. A solução desses imbróglios  
veio com a participação da Petroquisa no empreendimento. Com a participação da empresa do  
grupo Petrobrás, o projeto, enfim, saiu do papel e a primeira fase da construção da Salgema foi  
finalizada no final de 1976, começando a operar em fevereiro do ano seguinte (Lustoza, 1997).  
A fábrica foi implantada no bairro Pontal da Barra, região sul da capital alagoana. As  
justificativas para alocação de um empreendimento desta magnitude dentro do perímetro  
urbano de Maceió giravam em torno de viabilizar tanto o escoamento quanto o recebimento de  
insumos e a proximidade com as minas de sal. Pela via marítima, a fábrica se beneficiava por  
estar relativamente próxima do Porto de Maceió, localizado há cerca de seis quilômetros, bem  
como do píer construído em frente à empresa. Além disso, a Salgema passaria posteriormente  
a ser atendida por via terrestre, tanto pela rodovia estadual AL 101-Sul, que liga Maceió ao  
município de Marechal Deodoro, que posteriormente receberia as demais empresas que  
reunidas formam a Cadeia Produtiva da Química e do Plástico de Alagoas2, quanto pela avenida  
482  
1
Criada em 1959, pelo então presidente Juscelino Kubitschek, a SUDENE tinha duas missões fundamentais.  
Segundo Ammann (2003, p. 144-145), a primeira missão vai no sentido de “sustar o desenvolvimento das  
potencialidades revolucionárias emergentes na região”, com destaque para provenientes de áreas rurais, como as  
Ligas Camponesas. A segunda era o favorecimento da expansão do capital monopolista na região, consistindo a  
ação desta superintendência “numa ‘intervenção’ planejada do Estado ao consubstanciar uma estratégia de  
distribuição da própria economia regional nordestina, no contexto da estratégia de integração nacional  
implementada pela sociedade política”.  
2 O Polo Cloroquímico de Alagoas (PCA) integra através da Cadeia Produtiva da Química e do Plástico de Alagoas  
diferentes indústrias que trabalham nos mais diversos níveis deste ramo produtivo. As indústrias de 1ª geração  
trabalham a matéria-prima em seu estado mais bruto para a produção de matéria-prima básica. Já as de 2ª geração  
elaboram a partir das matérias-primas básicas um material intermediário que tanto pode ter uma aplicação final  
quanto pode servir como insumo para as indústrias de 3ª geração que trabalham com produtos manufaturados  
(Diodato, 2017).  
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Uma análise do caso Braskem e da exploração da natureza à luz do pensamento de Mészáros  
Dique-Estrada, que se configura como bastante estratégica para a ligação entre as minas e a  
Salgema. Inaugurada em 1982, a construção desta avenida demandou o aterro da margem da  
laguna Mundaú entre os bairros da Levada, Ponta Grossa, Vergel do Lago e Trapiche da Barra,  
o que aumentou sobremaneira a interferência humana no complexo lagunar. Por fim, a  
localização também continha corpos de água no seu entorno, nos quais seriam lançados os  
efluentes líquidos, como o ácido clorídrico que seria diluído e lançado ao mar através de um  
emissário marítimo instalado na frente da empresa (Lustosa, 1997).  
Com relação à implantação da Salgema no Pontal da Barra, gostaríamos de destacar os  
perigos ambientais que a planta industrial trouxe para o seu entorno: um perímetro caracterizado  
por ser ecologicamente sensível, pela proximidade do encontro da laguna Mundaú. Temos ali  
uma área de restinga, em que a vegetação se assenta em solo arenoso e se constitui como  
barreira entre o mar e corpos de água, sendo de suma importância para a preservação da costa3.  
No caso do Pontal da Barra, essa restinga se situava entre o mar e a laguna Mundaú. Assim,  
dado o contexto da região, podemos vislumbrar que a implantação da fábrica traria profundos  
impactos que começaram a ser sentidos já na terraplanagem das dunas que compunham aquela  
paisagem. No episódio Gregos e Alagoanos, do podcast Rádio Novelo Apresenta (2024), o  
ecologista José Geraldo Marques relata o quão rápida foi a destruição das dunas do Tomix,  
derrubadas para dar lugar à Salgema. Naquele momento, Marques estava à frente da Secretaria  
de Controle da Poluição, órgão responsável por questões relativas ao meio ambiente, cargo que  
ocupava por indicação do então governador do Estado de Alagoas, Divaldo Suruagy. De início,  
a secretaria havia negado a autorização para a implantação da Salgema no Pontal da Barra,  
autorização esta que havia sido requerida pela DuPont de Nemours. Dado o contexto do local,  
foi sugerido pelo então secretário que a fábrica fosse implantada em outro sítio, ao que  
responderam que era mais fácil mudar Maceió de lugar do que a Salgema. Assim, o projeto  
seguiu à revelia da secretaria e a terraplanagem executada: o terreno estava pronto para a  
construção da fábrica.  
483  
Outro ponto que merece nossa atenção é o risco de poluição que a presença da fábrica  
impõe ao perímetro que a circunda. Nela são produzidos e estocados produtos químicos com  
propriedades explosivas, altamente inflamáveis, tóxicas e com potencial letal. Com isso, sua  
presença em si acarreta graves problemas, se constituindo como uma ameaça cotidiana para a  
3 A retirada dessa vegetação e a descaracterização de todo perímetro pela urbanização têm afetado sobremaneira a  
região na contemporaneidade. A erosão causada pelo mar tem avançado, o que impôs a necessidade de obras de  
contenção num trecho de mais de um quilômetro de extensão, no qual foram assentados blocos maciços com o fito  
de barrar a invasão do mar. Contudo, não há em vista nenhum projeto que vise recompor a vegetação costeira: uma  
medida comprovadamente barata e eficaz para a contenção do avanço marítimo na costa.  
Elida Janaina Barbosa Rodrigues Pimentel; Luana Cavalcante Pinho  
população que vive em seu entorno, que convive com o perigo real da possibilidade de acidentes  
e vazamento de gases tóxicos, como o eteno, que é altamente inflamável. Há ainda o perigo  
representado pela possibilidade de poluição da laguna Mundaú e do mar por efluentes líquidos  
como os ácidos clorídrico, sulfúrico, e outras substâncias como o cloreto de sódio, cálcio,  
magnésio e o ferro. Além destes há ainda a lama de amianto, refugo da fabricação dos  
diafragmas das células (Vieira, 1997).  
Há também outros perigos que se processam silenciosamente para aqueles que vivem  
nas cercanias da fábrica, perigos estes que se desenvolvem a médio e longo prazo. Vieira (1997)  
destaca que os organoclorados que são ali produzidos e estocados têm propriedades  
ecotoxicológicas, ou seja: são substâncias que têm efeitos biológicos destruidores que se  
manifestam de forma aguda ou crônica. As consequências à exposição vão desde irritação na  
pele até o desenvolvimento de câncer. Segundo a autora, “Sabe-se que a epicloridrina é  
causadora de esterilidade e lesões no fígado, o dicloretano causa deformações nas células  
humanas, o MVC [monômero cloreto de vinila] provoca câncer no cérebro e outros órgãos,  
além de angiosarcoma (sic) do fígado” (Vieira, 1997, p. 26). Portanto, afirmamos que a  
operação da fábrica acarreta um perigo potencial constante, cujos níveis de periculosidade são  
variáveis. A eliminação dos resíduos inerentes ao seu processo produtivo tem a capacidade de  
poluir o ar, o solo e a água, fazendo com que as denúncias acerca de sua operação sejam uma  
constante (Vieira, 1997).  
484  
Diante dos perigos ambientais que a implantação da Salgema no Pontal da Barra traz  
para o ambiente e às pessoas, podemos afirmar que se estabelece no local a primeira zona de  
sacrifício resultante da implementação da indústria química em Alagoas. As chamadas zonas  
de sacrifício se caracterizam por aglomerar populações empobrecidas que são reiteradamente  
expostas a situações de risco ambiental. Segundo Acselrad (2004, p. 12-13), nas zonas de  
sacrifício “[...] a desregulação ambiental favorece os interesses econômicos predatórios, assim  
como as isenções tributárias o fazem nos chamados ‘paraísos fiscais’”. Dessa forma,  
empreendimentos potencialmente danosos se aproveitam da omissão estatal e da ausência de  
regulamentação legal para estabelecer seus negócios, independente do custo social e ambiental  
que possam gerar, contando para isso com o apoio total de agentes políticos e econômicos  
(Acselrad, 2004).  
Após a inauguração da fábrica, a vizinhança passou a conviver cotidianamente com a  
possibilidade eminente de acidentes graves4. Entre os anos de 1984 e 1986 é possível encontrar  
4 É importante destacar que este perigo representado pela fábrica não é algo restrito ao passado. A ameaça latente  
existe e por vezes se manifesta. Como exemplo, podemos citar o ocorrido na manhã do dia 05/07/2023, quando o  
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nos jornais alagoanos reportagens que destacam acontecimentos marcantes e denúncias de  
situações graves. Entre elas, Vieira (1997) destaca a polêmica causada porque a Salgema estava  
depositando lixo industrial no seu entorno. Com o imbróglio criado em torno da situação foi  
efetuada a retirada dos resíduos e proposta de lei para se proibir a instauração de indústrias nas  
margens de lagoas e do mar, projeto este vetado pelo governador Divaldo Suruagy. Outro  
episódio que ganhou repercussão foi um vazamento ocorrido numa tarde de domingo, causando  
pânico para a população do Pontal da Barra e para os frequentadores de um clube situado na  
região. Acontecimentos deste tipo intensificaram na sociedade alagoana os debates sobre a  
pertinência da presença da Salgema naquela região, sobre a carência de informações acerca de  
projetos industriais daquela magnitude e sobre a arbitrariedade de decisões do poder público  
que têm como consequência a exposição de milhares de pessoas ao perigo permanente.  
Por falar em arbítrio, um ponto importante que destacamos é que a implantação da  
Salgema ocorreu durante o período da ditadura civil-militar, regime instaurado pelo golpe de  
1964, quando o grande capital e os latifundiários instrumentalizaram as forças armadas do país  
para a tomada de poder (Netto, 2014). Desse modo, podemos enquadrar o projeto de  
implantação da indústria química alagoana dentro daquilo que se convencionou chamar de  
modernização conservadora, que corresponde à continuidade do padrão de acumulação  
brasileiro, caracterizado pela “[...] continuidade do desenvolvimento dependente e associado,  
acentuando a subalternidade da integração do país no sistema capitalista mundial [...]” (Netto,  
2011, p. 32). Assim sendo, são operadas alterações no plano econômico-social sem que sejam  
eliminados aspectos arcaicos legados do passado. Netto (2011, p. 18) resume a questão ao  
afirmar que “No Brasil, o desenvolvimento capitalista não se operou contra o ‘atraso’, mas  
mediante sua contínua reposição em patamares mais complexos, funcionais e integrados”.  
Cabe destacar ainda que acerca da problemática ambiental, a perspectiva adotada pelo  
governo civil-militar sempre foi bastante problemática. Conforme Melo (2021), a gestão  
ditatorial tem como legado histórico de seus governos a miséria, a desigualdade econômica, o  
arrocho dos salários, a violência manifesta em torturas. Em meio a este lamentável histórico, o  
período ditatorial também pode ser caracterizado pela exaltação do desmatamento da  
Amazônia. Sob a alegação de levar desenvolvimento a uma região tida como um deserto verde,  
se estabeleceu uma das obras mais controversas do período militar: a transamazônica. A obra,  
que ficou inconclusa e envolta em muita corrupção, trouxe a devastação ambiental e o  
485  
alarme da empresa tocou por engano, causando terror aos moradores do Pontal da Barra. Outra ocasião em que  
este perigo latente se manifestou foi na noite do dia 21/05/2021, quando ocorreu um vazamento de gás que  
intoxicou 127 pessoas, entre moradores do entorno e um funcionário da empresa.  
Elida Janaina Barbosa Rodrigues Pimentel; Luana Cavalcante Pinho  
extermínio de indígenas com a abertura da floresta. Foi graças ao incentivo dado pela ditadura  
que a pecuária exploratória alcançou a região amazônica, estabelecendo ali 280 fazendas.  
A alegação do desenvolvimento também estava na base do projeto de implantação da  
Salgema. A busca pelo desenvolvimento era a tônica do momento e, nesse intento, os  
investimentos da SUDENE foram de suma importância para a expansão da industrialização no  
Nordeste, atraindo o capital até então fixado na região Sudeste. De acordo com Lopes (2018),  
a atuação da superintendência se dava por meio de incentivos fiscais e financeiros com o  
discurso de integrar o mercado nacional aos oligopólios internacionais, tendo como alegação a  
necessidade de resolver os problemas econômico e sociais que a região enfrentava. Assim, a  
SUDENE foi essencial para que a estrutura industrial nordestina se ajustasse ao padrão de  
acumulação em vigor, com a preponderância da indústria pesada que caracterizou o período  
pós-golpe de 1964. Isso possibilitou a consolidação da região enquanto “[...] produtora de bens  
intermediários, fornecedora de insumos industriais e mercado consumidor dos bens de  
produção do Sudeste” (Lopes, 2018, p. 88).  
No contexto alagoano, desde meados da década de 1960, havia a busca pela expansão  
do parque industrial do estado e os governantes da época estavam muito empenhados nesse  
sentido, o que se traduz na propaganda que era veiculada em revistas de circulação nacional,  
que anunciava que o verbo do presente em Alagoas era o industrializar. Nesse sentido, a  
implantação da indústria química representou a grande oportunidade para tal objetivo, assim  
como também os incentivos da SUDENE tiveram um papel importante na consolidação deste  
projeto. Alagoas passaria a ter maiores repasses por parte da SUDENE a partir de 1967 e a  
implantação da Salgema absorveu uma parte considerável destes recursos, o que significou uma  
dinamização sem precedentes na história econômica do Estado (Lopes, 2018).  
486  
Até então, a economia alagoana se baseava fundamentalmente no tradicional setor  
sucroalcooleiro, indicando a especialização da estrutura produtiva alagoana em produtos  
primários: o álcool e o açúcar. Nesse contexto, a implantação da indústria química enseja a  
possibilidade de uma maior diversificação para a economia do estado. Além disso, a Salgema  
abria a possibilidade de integração entre a tradicional estrutura produtiva alagoana com a  
chamada nova indústria. Isso se daria com a produção de dicloretano, que empregaria o álcool  
produzido pelas usinas de Alagoas para sua fabricação. Assim, a Salgema representaria a  
articulação entre as tradicionais estruturas produtivas alagoanas, representadas pelo setor  
sucroalcooleiro, com a chamada “nova” indústria, representada pelo setor químico (Lustosa,  
1997).  
Libertas, Juiz de Fora, v. 24, n. 2, p. 473-496, jul./dez. 2024. ISSN 1980-8518  
Uma análise do caso Braskem e da exploração da natureza à luz do pensamento de Mészáros  
A instalação da indústria química alagoana visava, a princípio, o abastecimento de  
outras regiões industriais mais desenvolvidas. O objetivo era fazer com que a produção de cloro  
da Salgema suprisse a demanda de empresas baianas, como a Dow Química e a Companhia  
Petroquímica de Camaçari. Além da Salgema, foram implantadas no tabuleiro de Marechal  
Deodoro outras empresas com a finalidade de processar a matéria-prima produzida pela  
Salgema, estabelecendo o Polo Cloroquímico de Alagoas. Para Lustosa (1997, p. 11-12), a  
implantação deste parque integrado visava contribuir com a complementação da equação  
química do país, seguindo o que havia sido disposto no II Plano Nacional de Desenvolvimento,  
cujo princípio básico era “[...] a integração e complementaridade da indústria química nacional,  
segundo a disponibilidade de matérias-primas regionais”. A autora também aponta que o  
Instituto Brasileiro de Petróleo constatou a insuficiência na produção de petroquímicos e de  
produtos clorados no país naquele período. Desse modo, as matérias-primas alagoanas (cana-  
de-açúcar, sal-gema e gás natural) possibilitaram a inserção do Estado no eixo petroquímico do  
Nordeste, integrando o quadro nacional deste setor.  
Diante do exposto, é inegável que a instalação da Salgema e das demais empresas que  
formaram o Polo Cloroquímico se colocam como um vetor dinâmico na economia, mas as  
novas dinâmicas que este parque industrial instituiu não foram suficientes para sobrepujar as  
tradicionais estruturas socioeconômicas de Alagoas. Conforme Lustosa (1997), é um fato que  
a indústria química contribuiu para um maior volume de acumulação para o capital. Contudo,  
esse maior volume de acumulação não se traduziu em desenvolvimento econômico e social para  
a população local, que não viu melhora em suas condições de vida. Ao contrário, é possível  
afirmar que as condições de vida da população que vive no entorno da fábrica pioraram, dado  
os perigos latentes que sua presença impôs.  
487  
Cumpre explicar porque a Salgema S/A mudou de nome algumas vezes até vir a se  
chamar Braskem, nome pelo qual a conhecemos na contemporaneidade. As mudanças de nome  
são decorrentes dos processos de venda que a empresa passou no transcorrer de sua história,  
principalmente a partir da década de 1990, quando os processos de privatização se tornaram  
corriqueiros no Brasil. A primeira alteração de nome ocorreu em 1996, quando passou a se  
chamar Trikem S/A, um ano após sua aquisição pela Odebrecht, grupo empresarial que  
atualmente se chama Novonor. A última mudança de nome ocorreu em 2002, pela fusão de seis  
empresas do setor: Copene, OPP, Trikem, Nitrocarbono, Proppet e Polialdem. A partir de então,  
a empresa se chamaria Braskem S/A, que em Alagoas sedia a unidade Braskem Cloro Soda. A  
Braskem ocupa um lugar de destaque no setor químico, pois sua planta de processamento de  
Elida Janaina Barbosa Rodrigues Pimentel; Luana Cavalcante Pinho  
cloro-soda e Policloreto de Vinila (PVC) é a maior de toda a América Latina (Diodato, 2017) e  
figura como a sexta maior empresa do ramo petroquímico do mundo (Braskem, 2024).  
As atividades da indústria química alagoana, ao longo de mais de quarenta anos, se  
basearam no beneficiamento do sal-gema retirado do bairro do Mutange e de sua  
circunvizinhança para a produção de produtos clorados. A extração do sal é feita através da  
perfuração de poços, nos quais são introduzidos três tubos: o primeiro serve para a injeção da  
água com o intuito de dissolver a salmoura, possibilitando sua retirada por outro tubo. O tubo  
que sobra serve para o controle técnico da operação (Teixeira et al., 2020). Quando uma mina  
esgotava sua capacidade, era desativada e o espaço que outrora era ocupado pelo mineral foi se  
esvaziando, formando extensas cavernas. Uma dessas minas, a de número 18, nos permite ter  
um parâmetro do tamanho desses vazios existentes no subsolo maceioense: seu volume, de  
acordo com dados de sonar, é de 116.000 m³ (Mina 18 [], 2023). Além disso, é importante  
destacar que estas minas foram exploradas ao máximo de suas capacidades, o que fez com que  
ficassem cada vez mais próximas e algumas até acabaram se encontrando, formando assim uma  
só cavidade, o que contraria boas práticas para este tipo de atividade5 (Brasil, 2024a).  
A gravidade da situação era quase que completamente desconhecida, muito embora se  
manifestasse desde 2010, quando já havia notícias de súbitas rachaduras nas ruas e edificações  
da região. Além de uma rachadura de cerca de 50 metros de extensão que comprometeu a  
estrutura de dois blocos do Residencial Jardim Acácia, localizado no bairro Pinheiro, uma  
reportagem da época destaca ainda o aparecimento de uma cratera na calçada deste mesmo  
conjunto residencial e outra na Ladeira Ulisses Bandeira que se constituía numa importante via  
de ligação entre a parte alta e a parte baixa da cidade (Galvão, 2010).  
488  
De todo modo, o problema se desenvolveu sem maiores impactos até o início de 2018,  
pois no início daquele ano a situação começa a se agravar, com o aumento do número de  
rachaduras e de tremores de terra. O primeiro tremor de terra de maior relevo ocorreu na tarde  
do dia 03 de março de 2018 e marcou 2.4 na escala Richter, sacudindo a região do bairro do  
Pinheiro e adjacências: área que concentrava a exploração de sal-gema. Segundo o Centro de  
Sismologia da Universidade de São Paulo (USP), sismos como este são considerados de  
pequeno porte e, normalmente, não causam danos: seu impacto não costuma ir além do susto  
para quem os vivencia (Tremor de terra…, 2018). Contudo, este tremor não era um fato isolado  
que passaria sem maiores danos. Na realidade, este evento era a expressão dos vazios formados  
5
Segundo recomendações técnicas, minas como as que eram exploradas em Maceió não devem ultrapassar o  
diâmetro de 60 metros, quando as cavidades oriundas da extração de sal-gema na cidade tinham mais que o dobro  
da recomendação: 140 metros (Brasil, 2024b).  
Libertas, Juiz de Fora, v. 24, n. 2, p. 473-496, jul./dez. 2024. ISSN 1980-8518  
Uma análise do caso Braskem e da exploração da natureza à luz do pensamento de Mészáros  
pelas 35 minas exploradas para retirada de sal-gema do subsolo da capital alagoana, o que  
comprometeu a sustentação da superfície.  
Frente a esta situação, a Companhia de Pesquisa de Recursos Minerais (CPRM), órgão  
ligado ao Serviço Geológico do Brasil, integrante do Ministério de Minas e Energia, passou a  
investigar a situação. A princípio, os trabalhos da CPRM se iniciaram em junho de 2018,  
momento em que foi elaborado o primeiro mapa que indicava os locais onde havia instabilidade.  
Na investigação dos fenômenos em curso na cidade de Maceió foram levados em consideração  
aspectos físicos da área, como as características geomorfológicas da região, e seus aspectos  
sociais, como a exploração de sal-gema em área urbana e a ocupação desordenada dos bairros  
aos arredores das minas. Com base em seus levantamentos, a CPRM estabeleceu quatro  
hipóteses para explicar o que estava motivando os tremores de terra, o aparecimento de crateras  
e as rachaduras que partiam casas e ruas. São elas:  
Hipótese 1: Características geotécnicas dos solos da região e forma de  
ocupação do bairro;  
Hipótese 2: Presença de vazios (cavidades, cavernas) no solo e subsolo da  
região decorrente de causas naturais ou de ações antrópicas;  
Hipótese 3: Estruturas/feições tectônicas ativas na região (falhas,  
descontinuidades, por exemplo);  
Hipótese 4: Explotação de água subterrânea (Brasil, 2019, p. 12).  
A primeira hipótese buscava identificar se a problemática em andamento teria sido  
desencadeada pela existência de solos colapsáveis na região que, somados à forma de ocupação  
desordenada do bairro, teriam causado os problemas estruturais nas construções. A CPRM  
acabou descartando esta hipótese, pois “Os ensaios de geotécnica não demonstraram  
características que explicassem os danos”, uma vez que “O surgimento de rachaduras em  
imóveis de diversas idades não pode ser explicado por problemas construtivos” (Brasil, 2019,  
p. 36).  
489  
A segunda hipótese teria como foco investigativo a existência de áreas vazias no subsolo  
da região estudada, o que poderia ocorrer pela dissolução de rochas existentes ou pelo  
desabamento das minas oriundas da exploração de sal-gema. Sobre esta hipótese, o relatório  
explica que  
[...] a sismologia mostrou sismos coincidentes com minas de extração. A  
gravimetria demonstrou a existência de anomalias negativas de massa  
associadas com as cavernas produzidas pela extração do sal. O método  
geofísico audiomagnetotelúrico mostrou a existência de anomalias resistivas  
em profundidade que seriam geradas por cavidades de mineração em  
desabamento. A interferometria indicou deformação compatível com  
subsidência por deformação dúctil da camada de sal e concêntrica na região  
de poços de mineração. As observações de campo apontam deformações  
compatíveis com subsidência. A análise integrada dos dados dos oito sonares  
em ambiente 3D permite afirmar que as atividades de extração de sal-gema,  
Elida Janaina Barbosa Rodrigues Pimentel; Luana Cavalcante Pinho  
alterou o estado de tensões resultando no colapso de minas e causando os  
processos de subsidência no bairro do Pinheiro (Brasil, 2019, p. 36-37).  
Com base no exposto, conclui-se que todos os métodos utilizados atestam que a  
mineração de sal-gema foi o fator determinante para a desencadear a problemática em Maceió:  
é um perigo que ronda a exploração de sal-gema desde o princípio. Se os estudos iniciais  
indicavam que parte da reserva não era recuperável, dado o perigo de afundamento da região,  
podemos concluir que estes limites não foram respeitados e que a exploração de sal-gema em  
área urbana não era viável. Também nos questionamos acerca da ausência de fiscalização por  
parte das agências reguladoras estatais durante as quatro décadas de atividade das minas e sobre  
o porquê o problema só veio à tona quando sua gravidade não pode mais ser escamoteada. Essas  
são algumas das inquietações que levantamos diante destas constatações, mas devemos seguir  
na análise das conclusões do relatório.  
Chegamos, então, nas conclusões acerca da terceira hipótese, que visava investigar se  
a área apresentava alguma falha geológica que apresentasse movimentações na  
contemporaneidade. Os estudos da CPRM (Brasil, 2019) identificaram que os abalos ali  
registrados não são compatíveis com os movimentos tectônicos típicos da região. No entanto,  
as falhas geológicas preexistentes sofreram interferências a partir da exploração do sal-gema, o  
que desencadeou a reativação dessas estruturas e colaborou para o afundamento do solo. Desse  
modo, podemos estabelecer a correlação de dois fatores para toda a problemática que atingiu  
Maceió: a lavra de sal, motivo original da problemática, ativou as falhas geológicas que ali  
existiam e estes dois fatores em conjunto desencadearam o afundamento do solo da região e a  
possibilidade do colapso da superfície.  
490  
Por fim, temos a última hipótese que investigou se a exploração das águas subterrâneas  
seria a causa dos eventos em questão. A hipótese foi descartada, pois os estudos comprovaram  
que os aquíferos da região não haviam sido superexplotados (Brasil, 2019). Contudo, é  
importante destacar que a hipótese surgiu porque a mineradora explotava um grande volume de  
água que utilizava para dissolver o sal e possibilitar a sua retirada das minas. Essa informação  
veio a público com o depoimento de Thales Sampaio para a Comissão Parlamentar de Inquérito  
(CPI), que investigou o caso Braskem. O servidor aposentado, responsável técnico do estudo  
da CPRM, revelou ainda que a empresa não tinha outorga para a exploração dessa água (Brasil,  
2024), revelando, assim, que a exploração de sal-gema consumiu por mais de quatro décadas,  
sem autorização estatal e sem qualquer ônus, uma enorme porção dos mananciais da região.  
Para termos uma ideia do quantitativo de água espoliada dos aquíferos de Maceió, podemos  
fazer um exercício de imaginar quanta água seria necessária para dissolver 10 milhões de metros  
Libertas, Juiz de Fora, v. 24, n. 2, p. 473-496, jul./dez. 2024. ISSN 1980-8518  
Uma análise do caso Braskem e da exploração da natureza à luz do pensamento de Mészáros  
cúbicos de sal, pois esse é o quantitativo que o depoente estima ter sido retirado das minas de  
Maceió. São números difíceis de estimar e dão a tônica do quão predatória era a atividade.  
Em consequência do que foi exposto, não há dúvidas de que a exploração de sal-gema  
desencadeou toda a problemática que atingiu a capital Alagoana. A mineração exploratória  
acarretou problemas estruturais que atingiram direta e indiretamente toda a cidade, se  
constituindo numa ação criminosa, quer seja por ação, quer seja por omissão. Cinco bairros  
tiveram que ser total ou parcialmente desocupados dado o perigo de colapso da superfície. São  
eles: Mutange, Pinheiro, Bebedouro, Bom Parto e Farol. Esta região se estende por uma área  
de aproximadamente 274 hectares e abrange cerca de 14.500 imóveis que precisaram ser  
desocupados, o que redundou no deslocamento de cerca de 60 mil pessoas que ali habitavam.  
Na região que precisou ser desocupada se estabeleceu, em conjunto com a Defesa Civil de  
Maceió, uma área de resguardo que restringiu o acesso à maior parte do local sob a alegação de  
prevenir maiores estragos acarretados pelo possível desabamento da superfície.  
É preciso problematizar o Programa de Compensação Financeira, iniciativa decorrente  
do Termo de Acordo Socioambiental firmado entre a justiça federal, a justiça estadual e a  
Braskem. Um primeiro ponto que destacamos é que tal acordo excluiu a participação da  
população atingida que, no geral, teve poucas alternativas e foram obrigadas a acatar o acordo.  
Outro ponto problemático que destacamos é que, no acordo, a empresa comparece como uma  
colaboradora para a solução da problemática, se comprometendo a aplicar seus melhores  
esforços para a desocupação das áreas onde foi constatado risco. Não é sequer mencionado que  
o acordo surge em função de mitigar as consequências da mineração exploratória de sal-gema  
em Maceió. Isso nos permite afirmar que o acordo trata a problemática de forma abstrata e  
desconectada de suas causas. Dessa forma, a Braskem não é acusada pelo dano que sua  
atividade causou à cidade de Maceió e a empresa se coloca como uma colaboradora da cidade,  
cooperando para a segurança dos que viviam na região atingida. Isso faz com que o caso  
Braskem seja mais um em que empresas e suas práticas exploratórias saem ilesas após terem  
causado danos irreparáveis à natureza e a comunidades inteiras.  
491  
Além daqueles que viviam no perímetro da área de resguardo e, por isso, inclusos nos  
termos do Acordo Socioambiental, é importante destacar que há uma população diretamente  
atingida e que ficou excluída dos acordos firmados entre a Braskem e o poder público. São os  
moradores dos bairros Flexal de Baixo, Flexal de Cima e parte dos moradores do bairro de Bom  
Parto que não foi incluída na zona considerada de perigo. As populações destas localidades,  
bairros que podem ser enquadradas como empobrecidos, reclamam sua inclusão nos acordos,  
visto que nas suas residências podem ser identificados padrões de deterioração análogos aos  
Elida Janaina Barbosa Rodrigues Pimentel; Luana Cavalcante Pinho  
das casas incluídas na área de resguardo. Além de conviver entre rachaduras e tremores de terra,  
essas populações acabaram sendo condenadas a conviver numa área abandonada, onde os  
serviços públicos são ausentes e o isolamento social é uma constante. Por isso, compreendemos  
que no perímetro que compreende a área de resguardo e seu entorno se constitui a segunda zona  
de sacrifício em consequência da exploração de sal-gema, visto que as populações que ali  
residiam foram expostas a um risco ambiental sem precedentes históricos.  
Considerações finais  
O sistema do capital funciona a partir de uma lógica predatória. Ao colocar a sua  
engrenagem em funcionamento, explora homens e recursos naturais em nome da sua  
reprodução em escala sempre ampliada. Nesse sentido, é um modo de produção que a tudo  
domina e subordina aos seus próprios interesses. No entanto, esta particularidade do modo de  
produção capitalista, que o diferencia em produtividade quando comparado aos modos de  
produção anteriores, também promove contradições internas insanáveis. Como o sistema tem a  
necessidade de escoar a produção realizada a fim de garantir taxas de lucratividade sempre  
maiores, qualquer entrave neste processo gera crises, que o sistema precisa burlar. A tendência  
ao mercado mundial, bem como o incremento produtivo via aplicação da ciência e tecnologia  
fazem parte das estratégias das quais o capital se vale para deslocar essas contradições, uma  
vez que não podem ser completamente sanadas, sob pena de extinguir o próprio domínio do  
capital. É nesta contradição do sistema do capital que reside a sua racionalidade parcial, presa  
ao presente e incapaz de vislumbrar as consequências de sua lógica predatória.  
492  
Este quadro se agrava ao chegarmos aos fins da década de 1960 e início dos anos 1970.  
Conforme apontam estudos do filósofo húngaro István Mészáros (2011), é nesse período que o  
capital atravessa um limiar importante: sai da precipitação de crises cíclicas locais, reduzidas  
a setores específicos da produção para adentrar num contexto de crise estrutural do sistema.  
Desde então, observa-se a queda tendencial das taxas de lucratividade do capital, que acaba  
afetando todo o globo, e espraiando-se para todos os setores da vida social. Nesse cenário, até  
mesmo os antigos métodos de deslocamento das contradições do capital perdem eficácia,  
fazendo o capital atingir seus limites absolutos, e obrigando o sistema a levar ao extremo suas  
estratégias de sobrevivência, mesmo que à custa da maioria da humanidade e da própria  
manutenção sadia do meio ambiente.  
Aliás, o capital faz dos recursos naturais disponíveis no meio ambiente meros meios de  
produção destrutiva do capital. O uso perdulário dos recursos naturais torna-se a pedra de toque  
do sistema, que já não distingue produtividade de destrutividade. Sob esta lógica, toda  
Libertas, Juiz de Fora, v. 24, n. 2, p. 473-496, jul./dez. 2024. ISSN 1980-8518  
Uma análise do caso Braskem e da exploração da natureza à luz do pensamento de Mészáros  
intervenção no meio ambiente deve estar a serviço da reprodução do capital, não importando  
que esta se faça de modo predatório ou não. Ciência e tecnologia aplicadas à maior  
produtividade do sistema do capital são desvirtuadas, não podendo realizar a sua possível  
potência para preservação dos recursos naturais. Crimes ambientais tornam-se comuns, e todo  
o aparato da sociedade do capital verte suas forças para que tais crimes fiquem impunes. Reside  
aí o elo entre a lúcida visão de Mészáros (2011) a respeito das questões ambientais e um dos  
casos mais recentes de crime ambiental promovido em nome da manutenção das elevadas taxas  
de acumulação do capital: o caso Braskem, que atingiu diversos bairros da região metropolitana  
da cidade de Maceió.  
A análise do histórico da indústria química alagoana que desencadeou o crime  
socioambiental pela exploração de sal-gema nos permite ver manifesta a lógica  
autoexpansionista do capital. No transcorrer dessa história evidencia-se um processo de quatro  
décadas de negligência com o meio ambiente, nas quais a natureza foi explorada ao máximo de  
suas capacidades para garantir a reprodução ampliada do capital. Vimos que desde o princípio,  
ainda nos estudos prospectivos, havia a possibilidade de subsidência do solo e esta foi  
completamente ignorada. Do mesmo modo, desde o princípio foi apontado que a presença da  
planta industrial para o processamento de cloro e soda no Pontal da Barra era extremamente  
problemática, e estes apontamentos também foram completamente ignorados. Nos dois casos,  
os danos que sabidamente seriam causados são tidos como a destruição produtiva inerente ao  
processo e, por isso, inevitáveis. Dentro dessa lógica, a apropriação do solo, da água, a poluição  
do ar e o risco permanente para as pessoas são danos colaterais inevitáveis e justificáveis na  
medida que são funcionais para a lógica reprodutiva do capital, assim como também contribuem  
com os mecanismos de controle das suas contradições internas.  
493  
Com base no exposto, cabe também inserir a implantação da indústria química em  
Alagoas, assim como todo o processo de expansão industrial nordestina que ocorreu à época,  
como parte do projeto global do capital. Esta implantação coincide com o período que Mészáros  
(2011) aponta como o início da crise estrutural do capital e da ativação dos limites absolutos do  
sistema, qual seja, final da década de 1960, e início dos anos 1970. Nesse período, indústrias  
que geravam riscos ao meio ambiente foram deslocadas para regiões menos desenvolvidas,  
onde receberam, por parte do Estado, todo tipo de facilidades que contribuíssem para sua  
efetivação, seguindo a lógica global do desenvolvimento do capital em crise estrutural. Nisso  
reside a impossibilidade de tais projetos consolidar o desenvolvimentismo que defendiam, visto  
que o fundamento dessas atividades extrativistas é, ao fim e ao cabo, alimentar a expansão do  
capital em locais distantes daqueles em que esse tipo de atividade é instalada.  
Elida Janaina Barbosa Rodrigues Pimentel; Luana Cavalcante Pinho  
Outro ponto que merece destaque é quanto ao uso da tecnologia em casos como este.  
Vimos que durante os processos investigativos que comprovaram que a mineração estava na  
base dos problemas em Maceió foi utilizada uma série de saberes tecnológicos capazes de fazer  
a devida leitura da situação e atestar suas causas. É evidente que esta mesma tecnologia poderia  
ser empregada para evitar que situações como estas ocorram. No entanto, essa capacidade está  
subsumida às demandas do capital que as utiliza como ferramentas para o aumento de  
produtividade, o que acaba restringindo a potencialidade da ciência e da tecnologia de serem  
empregadas na contenção dos problemas ambientais.  
Diante do exposto, verifica-se que mesmo a atividade predatória à natureza e à  
população atingida pelo crime ambiental da Braskem não foi suficiente para livrar o sistema do  
capital de suas contradições internas. Sob o peso da crise estrutural do capital, e da ativação dos  
seus limites absolutos, o sistema urge por padrões de destrutividade como os que observamos  
no caso Braskem, mesmo que este quadro não seja mais capaz de deslocar as suas contradições  
internas, mas apenas prolongar o seu modus operandi cada vez mais contraditório. Assim sendo,  
a tendência destrutiva, que se tornou a regra da reprodução do capital, tem se acelerado na justa  
medida em que o deslocamento de suas contradições internas se mostra incapaz de realização.  
Reverter este quadro não é uma tarefa fácil, e nem possível de acontecer por dentro do sistema  
do capital. Quebrar o padrão de reprodução do capital como o momento predominante da  
tomada de decisão é o primeiro passo rumo à concretização da sustentabilidade do meio  
ambiente, se a história e a natureza nos conceder tempo para isso.  
494  
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A perspectiva autogestionária no Minha Casa  
Minha Vida Entidades e a participação popular  
The self-management perspective in Minha Casa Minha Vida Entidades  
and popular participation  
Geisa Elmokdisi Pedrosa Bordenave*  
Resumo: O presente artigo busca refletir sobre  
as lutas por moradia e autogestão no Rio de  
Janeiro, a partir do programa Minha Casa  
Minha Vida Entidades (MCMV-Entidades). O  
objetivo é, partindo das perspectivas do direito  
à cidade e moradia sob a lógica autogestionária,  
refletir sobre as possibilidades de participação  
popular a partir desta vertente do programa  
federal. Neste sentido, considerando a crise do  
capital e os compromissos ético-políticos do  
Serviço Social, está proposta uma análise sobre  
seus limites e possibilidades de contribuições  
para a construção de cidades mais justas e  
democráticas. O artigo foi construído a partir de  
dados e reflexões oriundos de pesquisas  
bibliográficas e de campo – qualitativas –  
realizadas pela autora em âmbito de doutorado  
e pós-doutorado.  
Abstract: This article seeks to reflect on the  
struggles for housing and self-management in  
Rio de Janeiro, based on the Minha Casa Minha  
Vida Entidades (MCMV-Entities) program. The  
aim is, from the perspective of the right to the  
city and housing under the self-management  
logic, to reflect on the possibilities of popular  
participation from this aspect of the federal  
program. In this sense, considering the crisis of  
capital and the ethical-political commitments of  
Social Work, an analysis is proposed of its limits  
and possibilities for contributing to the  
construction of fairer and more democratic  
cities. The article is based on data and  
reflections from qualitative bibliographical and  
field research carried out by the author during  
her doctoral and post-doctoral studies.  
Palavras-chaves: Lutas por moradia; MCMV  
Entidades; Autogestão; Política de habitação;  
Serviço Social.  
Keywords: Housing struggles; MCMV  
Entities; Self-management; Housing policy;  
Social work.  
Introdução  
Desde a década de 1970 o modo de produção capitalista adentra um período de profunda  
crise — compreendida, nos termos de Mandel (1994), como uma crise estrutural. Os anos de  
2008 e 2009 aprofundam este contexto de crise, a partir de um colapso que se origina no  
* Graduada em Serviço Social (UFRJ). Doutora e mestre em Ciências Sociais (UERJ). Possui pós-doutorado em  
Serviço Social (PUC-Rio) e Arquitetura e Urbanismo (USP e PUC-Rio). Professora Adjunta do Departamento de  
Política Social da UERJ. ORCID: https://orcid.org/0000-0001-8607-9685  
DOI: 10.34019/1980-8518.2024.v24.45787  
Esta obra está licenciada sob os termos  
Recebido em: 29/08/2024  
Aprovado em: 09/12/2024  
Geisa Elmokdisi Pedrosa Bordenave  
“estouro da bolha imobiliária nos Estados Unidos em 2007” (Rolnik, 2015, p. 15), assim como  
a posterior pandemia de covid-19, em 2020. A crise do capitalismo, considerando seu caráter  
destrutivo (Mészaros, 2002), tem consequências desastrosas para as políticas sociais, e ocasiona  
uma severa agudização das expressões da questão social, em um contexto de  
ultraneoliberalismo que se instala no Brasil (Behring, 2021).  
O contexto de crise e decadência do capitalismo, no Brasil, neste sentido, acentua uma  
dinâmica de negação de direitos e políticas sociais, o que não significa o desaparecimento das  
lutas e disputas. Os movimentos de luta por moradia se consolidaram no Brasil no contexto do  
processo de democratização — coincidindo com a instalação de um ideário neoliberal que  
impediu a efetivação dos direitos sociais elencados na Constituição Federal de 1988. Foi  
durante a elaboração da Constituinte, que setores ligados ao ideário da reforma urbana  
conseguiram rearticular suas forças políticas, consolidando o Movimento Nacional pela  
Reforma Urbana (MNRU) (Grazia, 2003). O MNRU envolveu movimentos populares de  
moradia, transporte, saneamento, associações e entidades profissionais preocupadas com a  
questão urbana, assim como entidades sindicais e acadêmicas (Trindade, 2012; Maricato,  
2015). É neste momento, portanto, que ocorrem as primeiras ocupações organizadas de terra e  
tem início a organização dos movimentos de luta pela urbanização e acesso à terra e moradia  
(Gohn, 1991).  
498  
O MNRU elabora três princípios para referenciar sua prática: o “direito à cidade e à  
cidadania”, compreendido como uma universalização do acesso aos equipamentos e serviços  
urbanos; a “gestão democrática da cidade”, entendida como uma forma de pensar e operar as  
cidades a partir do controle e participação popular; e a “função social da propriedade e da  
cidade”, implicando na prevalência do interesse comum sobre o direito individual (Grazia,  
1990; 2003). Tais princípios estão imbuídos, portanto, por um profundo questionamento da  
ordem capitalista, afirmar uma perspectiva coletiva do “direito à cidade” — termo cunhado  
primeiramente por Henri Lefebvre, na década de 1960 — e apropriado por Harvey na  
compreensão de que tal direito “depende inevitavelmente do exercício de um poder coletivo de  
moldar o processo de urbanização” (Harvey, 2012, p. 74). No âmbito legal, algumas conquistas  
se colocam: o capítulo que trata da política urbana na Constituição Federal de 1988, e mais  
tarde, em 2001, a aprovação do Estatuto da Cidade. É neste contexto político e social que surge  
— dentre diversos outros movimentos sociais urbanos — a União Nacional por Moradia  
Popular (UNMP), e no Rio de Janeiro, a União por Moradia Popular (UMP-RJ), que tem, desde  
os anos de 1990, a autogestão habitacional, apoiada nos princípios do MNRU, como uma de  
suas bandeiras de luta. A questão da participação social — compreendida aqui como algo  
Libertas, Juiz de Fora, v. 24, n. 2, p. 497-509, jul./dez. 2024. ISSN 1980-8518  
A perspectiva autogestionária no Minha Casa Minha Vida Entidades e a participação popular  
essencial à democracia, e que “tem como princípio uma redistribuição de poder e a ampliação  
do debate público em decisões que afetam uma sociedade” (Pinheiro e Almeida, 2023) — e das  
reivindicações em torno do exercício deste poder coletivo coadunam com o projeto ético-  
político do Serviço Social, na medida em que defende como princípios fundamentais o  
aprofundamento da democracia e a construção de uma ordem societária livre de opressões e  
explorações de qualquer ordem (CFESS, 1993).  
O presente trabalho tem como objetivo refletir sobre as lutas por moradia e autogestão  
no Rio de Janeiro a partir do Minha Casa Vida Entidades (MCMV-Entidades) — programa  
federal considerado pelos movimentos de moradia como uma conquista da luta por autogestão  
— criado em 2009, interrompido entre 2016 e 2022, e retomado em 2023. Neste sentido, o  
artigo se organiza em três tópicos: no primeiro, será realizada uma breve contextualização das  
lutas por moradia e as reivindicações por autogestão habitacional a partir da luta pela reforma  
urbana — que conjuga o debate sobre o direito à moradia e à cidade. No segundo as reflexões  
se concentram no programa habitacional Minha Casa Minha Vida Entidades, a fim de refletir  
sobre as experiências da cidade do Rio de Janeiro, com destaque para a experiência da  
cooperativa habitacional Esperança, situada em Jacarepaguá-RJ. No terceiro tópico são  
suscitadas reflexões sobre a lógica autogestionária na habitação e a participação popular a partir  
do programa MCMV Entidades, refletindo sobre seus limites e potencialidades para a  
construção de cidades mais justas e democráticas.  
499  
O artigo parte de resultados da tese de doutorado da autora, concluída em 20191 —  
realizada a partir de uma pesquisa qualitativa e etnográfica junto à UMP-RJ — e de pesquisa  
de pós-doutorado, concluída em 20212, que se concentrou em um aprofundamento da análise  
de uma das cooperativas habitacionais construídas com participação do movimento e suas  
dificuldades de regularização, após finalização do processo de construção: Esperança.  
Lutas por moradia e as reivindicações por autogestão habitacional  
AUnião Nacional por Moradia Popular (UNMP) — que se constitui como um dos atores  
que formam a rede ampla e heterogênea dos movimentos de moradia no Brasil (Tatagiba, 2011)  
1 A referida tese foi defendida no ano de 20219 no Programa de Pós-graduação em Ciências Sociais da UERJ:  
BORDENAVE, Geisa. Histórias em três tempos: lutas por moradia em um contexto político-religioso na Zona  
Oeste do Rio de Janeiro. Tese de Doutorado. Universidade do Estado do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro, 2019. A  
pesquisa contou com bolsa de doutorado da Fundação Carlos Chagas Filho de Amparo à Pesquisa do Estado do  
Rio de Janeiro (FAPERJ).  
2
Resultados e dados desta pesquisa de pós-doutoramento foram publicados neste artigo: BORDENAVE, Geisa.  
Autogestão na habitação e propriedade coletiva da terra: a experiência de uma cooperativa habitacional em  
Jacarepaguá-RJ. O Social em Questão, vol. 1, núm. 53, pp. 233-254, 2022.  
Geisa Elmokdisi Pedrosa Bordenave  
— surge entre a segunda metade da década de 1980 e o início dos anos 1990. São os anos de  
1990, que segundo Dagnino (2002), serão caracterizados por uma “revitalização da sociedade  
civil”, e é neste momento que a UNMP se consolida e se expande aos poucos e em diferentes  
momentos em dezenove estados do Brasil, sendo os primeiros São Paulo, Minas Gerais e  
Paraná. De acordo com a narrativa da própria UNMP, o movimento se consolidou “a partir do  
processo de coletas de assinaturas para o primeiro Projeto de Lei de Iniciativa Popular que criou  
o Sistema, o Fundo e o Conselho Nacional por Moradia Popular no Brasil (Lei 11.124/05).”  
No Rio de Janeiro, a UNMP se consolida na década de 1990, a partir da criação da União  
por Moradia do Rio de Janeiro (UMP-RJ), e a construção da primeira cooperativa habitacional  
— compreendido aqui como modelo que possibilita a organização popular no âmbito da  
habitação — no Rio de Janeiro com participação da União: Shangri-lá, localizada em  
Jacarepaguá3.  
O cooperativismo, enquanto uma experiência mais contemporânea de  
autogestão é um dos modelos que melhor representa valores como a ajuda  
mútua, democracia, igualdade e solidariedade, o que levou a Organização das  
Nações Unidas (ONU) lançar em 31 de outubro de 2011 o Ano Internacional  
das Cooperativas e, em 2012, realizar esforços para expandir a consciência  
pública sobre o papel das cooperativas no cumprimento de Metas de  
Desenvolvimento do Milénio (ODM) como a redução da pobreza e o  
desenvolvimento socioeconômico (Antão e Ribeiro, 2020, p. 3).  
A UNMP surge como um movimento que dialoga com o poder público, ocupando  
espaços institucionais, em uma dinâmica que alguns pesquisadores vêm compreendendo como  
uma “luta por dentro do Estado” (Tatagiba, 2011, p. 234). Há o privilegiamento, portanto, de  
uma atuação no campo legislativo — estão atualmente, inclusive, engajados na discussão de  
um projeto de lei da Autogestão em Habitação4 —, visando formulação de políticas públicas,  
através da participação em espaços institucionais, como o Conselho das Cidades. Além disso,  
a pressão direta é uma estratégia utilizada pela União: ocupações breves (geralmente em prédios  
das instâncias do Estado com as quais se quer negociar, como a Caixa Econômica Federal e  
Secretaria de Patrimônio da União), atos e manifestações.  
500  
De acordo com os dados de pesquisa coletados5 entre 2019 e 2021, a perspectiva de  
autogestão defendida pela União por Moradia Popular se baseia no modelo uruguaio de  
3 Cabe pontuar que a construção de Shangri-lá, de forma autogestionária e através de mutirão, não contou com financiamento  
público — os atores envolvidos foram uma Comunidade Eclesial de Base (CEB), Pastoral de Favelas e a Fundação Bento  
Rubião (que à época contava com financiamento oriundo de parcerias com organizações estrangeiras). Para mais informações  
sobre Shangri-lá ver: Bordenave (2023).  
4 Mais informações no site da UNMP: https://unmp.org.br/category/pl-autogestao/  
5 Os dados aqui mencionados dizem respeito à pesquisa de doutorado anteriormente citada, e desenvolvida entre  
os anos de 2019 e 2021.  
Libertas, Juiz de Fora, v. 24, n. 2, p. 497-509, jul./dez. 2024. ISSN 1980-8518  
A perspectiva autogestionária no Minha Casa Minha Vida Entidades e a participação popular  
cooperativismo habitacional6 — tendo havido, inclusive, um “intercâmbio” promovido pela  
Fundação Bento Rubião e a Pastoral de Favelas junto à Federação Uruguaia de Cooperativas  
de Habitação por Ajuda Mútua (FUCVAM) (Bordenave, 2022). Areivindicação pela autogestão  
na habitação é destacada pelos movimentos como uma “bandeira histórica”, atrelada à “defesa  
da participação popular nas políticas públicas”:  
A UNMP defende a autogestão como uma maneira não só de construir casas,  
bairros ou equipamentos sociais, mas como uma forma de construção de poder  
popular. Ao controlar recursos públicos e processos, lutamos contra o  
clientelismo e a manipulação do poder público sobre a população e as  
organizações sociais. Construímos alternativas de gestão onde somos sujeitos  
de nossa história7.  
Conforme aponta Ferreira (2014): “a autogestão não está associada à forma de  
construção, mas à autonomia dada a um grupo organizado por uma associação comunitária ou  
cooperativa que tomará as decisões referentes ao empreendimento”. Assim, o que se destaca  
aqui é que a autogestão é entendida como um processo no qual a população é protagonista, e,  
portanto, responsável pelo projeto, localização, forma de construção, organização do grupo,  
dentre outros elementos.  
Cabe pontuar que muitas cooperativas construídas por autogestão contam com a  
contratação de construtoras e grandes escritórios, e isto é percebido como algo contraditório  
por lideranças de movimentos de moradia (Bordenave, 2019). Conforme destacam Rizek,  
Bergamin e Barros (2003), existem processos, pretensamente autogestionários, em que a  
população possui menos controle e acesso à gestão dos recursos envolvidos, e há casos que  
privilegiam o envolvimento das pessoas durante todo o processo, e são, portanto, considerados  
como “virtuosos”. Assim, a autogestão como reivindicação dos movimentos traz o horizonte de  
que a demanda está para além do direito à moradia, e se apresenta como uma reivindicação pelo  
direito à cidade, sob uma perspectiva coletiva do direito. No tópico seguinte, ao tratar do  
MCMV Entidades e a construção de Esperança, trataremos de um caso considerado como  
“virtuoso”: um exemplo de autogestão habitacional onde o processo foi conduzido com  
protagonismo da população envolvida.  
501  
6 O cooperativismo habitacional no Uruguai reconhece legalmente a propriedade coletiva – diferente do Brasil. As  
primeiras experiências de cooperativas habitacionais autogestionárias no Uruguai datam da década de 1960, sob  
iniciativa do Centro Cooperativista Uruguayo (CCU). No entanto, somente com a aprovação da Lei Nacional de  
Moradia, nos anos de 1970, o sistema cooperativo é instituído e a produção habitacional sob essa modalidade  
cresce de forma expressiva (Ghilardi, 2017).  
7 “UNMP, Ofício ao Ministério das Cidades, abril de 2003”. A citação encontra-se no artigo “Do Crédito Solidário  
ao MCMV Entidades: uma história em construção” dos autores Edilson Mineiro e Evaniza Rodrigues.  
Geisa Elmokdisi Pedrosa Bordenave  
O Programa Minha Casa Minha Vida - Entidades no Rio de Janeiro e a construção  
de esperança  
O Minha Casa Minha Vida foi criado no ano de 2009 como um programa econômico.  
Foi concebido pelos ministérios da Casa Civil e Fazenda em diálogo com o setor imobiliário e  
da construção civil, buscando de forma declarada o “enfrentamento da chamada crise dos  
suprimes americanos que recentemente tinha provocado a quebra de bancos e impactado a  
economia financeira mundial” (Santo Amore, Rufino e Shimbo, 2015). É em torno disto que  
giram as principais críticas ao programa, desde o seu surgimento: ele não foi concebido para  
ser uma política pública de habitação, mas sim com objetivos econômicos. Isto ocorre em um  
contexto de crescente “financeirização” da habitação, onde vivemos a desconstrução da noção  
de habitação como um bem social, associada à sua transformação em mercadoria e ativo  
financeiro (Rolnik, 2015). Além disso, no período de sua formulação diversos analistas já  
apontavam os riscos de que o MCMV repetisse os mesmos erros do BNH em relação à produção  
habitacional localizada em áreas com precária infraestrutura urbana, considerando a completa  
desarticulação em relação às matérias urbanísticas e às ações municipais de uso e regulação do  
solo, contribuindo, assim, para o aprofundamento da segregação territorial (Santo Amore,  
2015).  
A vertente denominada como Minha Casa Minha Vida Entidades (MCMV-Entidades),  
foi criada também em 2009, como “resposta” às reivindicações dos movimentos de moradia:  
representa uma importante conquista dos movimentos que lutaram e lutam por autogestão na  
habitação. A UNMP se tornou um dos movimentos populares de luta por moradia que mais  
contratou projetos por meio do programa MCMV Entidades em todo o país, provavelmente por  
conta de sua inserção em relevantes espaços como o Conselho Nacional das Cidades  
(ConCidades) e o Conselho Gestor do Fundo de Habitação de Interesse Social (Pandolfi e  
Santo, 2014). O MCMV Entidades, diferentemente do MCMV tradicional, possibilita que  
grupos organizados acessem o financiamento das moradias e realizem as construções através  
de autogestão e mutirão, caso assim decidam. Esta possível “resposta” às reivindicações dos  
movimentos de moradia, no entanto, aparece com um explícito caráter de excepcionalidade:  
apenas 3% do financiamento destinado ao MCMV corresponde à modalidade Entidades.  
Uma série de vantagens do Entidades com relação ao modelo tradicional do programa  
são apontadas pelos movimentos, e duas delas merecem destaque: com a autogestão, os grupos  
têm a possibilidade de escolher o terreno onde as moradias serão construídas, assim como cabe  
a eles a definição do projeto e do material utilizado, resultando em moradias com qualidade  
superior. Estes dois elementos, utilizados para valorizar a modalidade Entidades, são os mais  
502  
Libertas, Juiz de Fora, v. 24, n. 2, p. 497-509, jul./dez. 2024. ISSN 1980-8518  
A perspectiva autogestionária no Minha Casa Minha Vida Entidades e a participação popular  
enfatizados pelas lideranças dos movimentos de moradia, conforme demonstram dados de  
pesquisa (Bordenave, 2019), e tem profunda conexão com a dimensão da participação da  
população no processo. A possibilidade de escolher onde morar, ainda que com limitações  
impostas pelas dificuldades do acesso à terra no Brasil, possibilita algum enfrentamento à  
histórica lógica de segregação territorial na política habitacional brasileira, reafirmada pelo  
MCMV tradicional (Santo Amore, 2013; Bordenave, 2019).  
A cooperativa Esperança — localizada no bairro Colônia8, em Jacarepaguá, em um  
terreno cedido pela União — é composta por 70 famílias, foi “contratada” na primeira fase do  
MCMV Entidades, no ano de 2009, e teve suas obras concluídas em 2015, quando ocorreu a  
inauguração. Cabe pontuar que o grupo já se encontrava em fase de organização anteriormente  
— chegando mesmo a “assinar contrato” com o Crédito Solidário9, sem conseguir de fato  
acesso ao financiamento que possibilitasse o início das obras. Do início da organização de  
Esperança até sua inauguração se somaram mais de uma década: “16 anos de muita luta”  
(Bordenave, 2019).  
Cabe destacar que Esperança segue sendo o único projeto de construção — houve  
também a experiência da ocupação Manoel Congo10, porém, como reforma de prédio —  
concretizada no âmbito do Minha Casa Minha Vida Entidades na cidade do Rio de Janeiro, e  
não teve seu processo de regularização concluído. Este é um dos pontos que merece destaque:  
Esperança se concretiza como um caso emblemático e de sucesso, tendo recebido o Prêmio de  
Melhores Práticas da Caixa11 em 2017, no entanto, ainda em 2024, busca estratégias para  
concluir a regularização das casas e garantir suas propriedades (Bordenave, 2022). Após a  
retomada do programa em 2024, com a eleição de Luiz Inácio Lula da Silva, outros projetos  
foram contratados encontram-se em andamento, como é o caso do Quilombo da Gamboa e da  
ocupação Vito Giannotti, no bairro do Santo Cristo — ambos na região portuária da cidade.  
503  
8 O terreno está localizado na área da antiga Colônia Juliano Moreira. O reconhecimento como bairro ocorreu no  
ano de 2011.  
9 Através do programa Crédito Solidário – criado em 2005 e substituído pelo MCMV Entidades em 2009 - a  
autogestão habitacional foi bastante impulsionada no Brasil, conforme analisa Lago (2015). No entanto, no Rio de  
Janeiro, apesar de contratações, nenhuma experiência foi concretizada.  
10  
A ocupação Manoel Congo, localizada no centro do Rio de Janeiro, contou com um projeto de reforma  
financiado pelo MCMV Entidades, e segue com uma trajetória de 16 anos. Há expectativa de que a regularização  
da ocupação seja concluída em 2024. Para mais informações: https://agenciabrasil.ebc.com.br/geral/noticia/2024-  
11 O prêmio “Melhores Práticas em Gestão Local” promovido pela Caixa Econômica Federal ocorre a cada dois  
anos e reconhece 20 práticas com os temas: Habitação, Gestão Ambiental e Saneamento, Gestão Municipal,  
Desenvolvimento Local e Inclusão Social e Trabalho Social. O prêmio em questão tem o objetivo de dar  
“visibilidade” a estes projetos, e não consiste num prêmio em dinheiro. Mais informações em:  
Geisa Elmokdisi Pedrosa Bordenave  
A perspectiva autogestionária do MCMV-Entidades e a participação popular  
A partir de elementos trazidos sobre as perspectivas de autogestão na habitação, do  
MCMV Entidades e da construção de Esperança, trago algumas reflexões a partir de tensões e  
contradições. A primeira diz respeito ao processo através do qual Esperança foi construído: o  
longo tempo de organização e construção. Os empecilhos burocráticos e as dificuldades na  
relação estabelecida com a Caixa Econômica Federal aparecem com muita frequência nos  
relatos na pesquisa (Bordenave, 2019). Mineiro e Rodrigues (2012) analisam estes empecilhos  
burocráticos que muitas vezes impedem a contratação através de grupos organizados para a  
autogestão como uma postura do Estado de “arbitrariedade e preconceito”: de acordo com os  
autores os movimentos populares são frequentemente obrigados a provar sua “capacidade e  
integridade moral” para acessar os recursos, que na maior parte das vezes não conseguem passar  
da etapa de projetos piloto. Assim, os movimentos compreendem esta postura do Estado como  
uma estratégia para “vencer pelo cansaço”.  
Nos dados de pesquisa trazidos na tese (Bordenave, 2019) há ainda a questão das  
frequentes “danças das cadeiras” no âmbito da Caixa Econômica Federal: os técnicos  
envolvidos no processo seriam frequentemente trocados de setor quando se iniciava uma maior  
proximidade com as lideranças dos movimentos. Há nesta estratégia, uma postura por parte da  
Caixa — como agente do Estado — que busca dificultar e tornar o processo mais lento e difícil.  
Estes dois elementos evidenciam a contradição de uma vertente do MCMV que tem como  
proposta central possibilitar a autogestão, portanto, uma perspectiva mais democrática e  
participativa da política de habitação, mas também constrói uma lógica de empecilhos e  
dificuldades neste processo, que, quando não impossibilitam o acesso, tornam exceções os  
casos exitosos (Bordenave, 2019).  
504  
Um elemento bastante presente durante a pesquisa diz respeito à própria formalização  
da cooperativa habitacional enquanto tal. Apesar de a modalidade MCMV Entidades prever a  
construção e organização de forma autogestionária pelas entidades – sejam organizações não  
governamentais ou movimentos sociais – não havia legalmente a possibilidade de  
reconhecimento formal da cooperativa como uma propriedade coletiva. Esta limitação fez com  
que Esperança fosse registrada junto à Caixa como um condomínio, operando pela lógica da  
propriedade individual do MCMV tradicional, ainda que o movimento e os moradores não  
concordassem com isto (Bordenave, 2019).  
Conforme mencionado no tópico anterior, a regularização das casas construídas em  
Esperança não foi concluída. A inauguração ocorreu em 2015, e logo em seguida o  
desmantelamento do MCMV Entidades, associada à falta de diálogo com os movimentos  
Libertas, Juiz de Fora, v. 24, n. 2, p. 497-509, jul./dez. 2024. ISSN 1980-8518  
A perspectiva autogestionária no Minha Casa Minha Vida Entidades e a participação popular  
populares após o golpe de 2016, trouxe um período de grande incerteza e tensão para o  
movimento e moradores da cooperativa. As questões jurídicas com frequência são citadas como  
as de mais difícil solução, uma vez que se faz necessário conhecimento técnico para que se  
possa estabelecer diálogo e compreender as pendências — o que fez com que o grupo  
Esperança, no ano de 2020, buscasse apoio de uma assessoria jurídica, diante da  
impossibilidade de a Fundação Bento Rubião continuar oferecendo este serviço ao grupo.  
O que se percebe neste contexto, é uma lógica por parte do Estado de desqualificação  
das demandas da população — o que vem sendo constatado por outros pesquisadores que  
pensam as relações de movimentos populares com os diversos agentes do Estado. Conforme  
analisam Birman, Fernandes e Pierobon (2014) estaria em jogo uma ilegibilidade ordinária que  
é engendrada por um certo grau de opacidade nos planos e nas práticas governamentais. As  
dificuldades para acessar informações referentes ao processo de construção da cooperativa e os  
diversos empecilhos burocráticos, portanto, podem ser compreendidos como um modo de  
operar das instâncias do Estado com relação às populações pobres e movimentos populares.  
Avançando nesta análise, seria possível pensar que este modo de operar limita e põe severas  
restrições à autogestão, criando um distanciamento entre aquilo que os movimentos populares  
têm demandado, na busca pela efetiva participação na construção da cidade — e de suas  
moradias — e os moldes colocados a partir do MCMV Entidades.  
505  
No caso de Esperança, estas limitações se desdobram na perpetuação dessa ilegibilidade  
que aparece na negação da regularização das casas. Diante dos empecilhos burocráticos e das  
imensas barreiras impostas no diálogo com o movimento e a população envolvida, se  
concretiza, na prática, uma negação ao direito de serem reconhecidos com legítimos  
proprietários de suas casas.  
As reivindicações por autogestão habitacional pela UNMP atualmente têm apontado  
para a tentativa de aprovação do Projeto de Lei Federal da Autogestão da Habitação (PL  
4216/2021).  
A proposta do Projeto ainda busca criar mecanismos que possam fazer da  
habitação uma política pública, assim como, a política de educação, saúde e  
assistência social que mesmo com os avanços e reprocessados possuem  
sistemas que são permanentes”, conta o assessor técnico da UNMP, Edison  
Mineiro12.  
A defesa do mencionado projeto de lei se sustenta no argumento de que a autogestão se  
configura como uma alternativa mais democrática e menos custosa, além de se configurar como  
12 Trecho oriundo de matéria sobre audiência pública: https://unmp.org.br/uniao-debate-aprovacao-do-projeto-de-  
Geisa Elmokdisi Pedrosa Bordenave  
ao cooperativismo habitacional no país — o que atualmente não tem sido possível mesmo  
através da modalidade Entidades. Torna-se evidente pelas experiências do MCMV Entidades  
que a qualidade das construções é bastante superior em comparação ao MCMV tradicional, e  
que aponta para um caminho de construção mais democrática das cidades, ainda que com  
limitações.  
Considerações finais  
O programa Minha Casa Minha Vida Entidades surgiu, conforme mencionado, como  
uma resposta às reivindicações dos movimentos de luta por moradia, e é, nesta medida,  
compreendido por estes movimentos como uma relevante conquista. A sua retomada, no ano de  
2024, ainda não pode ser avaliada, no entanto, a partir do que foi exposto, percebe-se que as  
contradições presentes na operacionalização do programa colocam em xeque suas reais  
possibilidade de dar conta de uma demanda por autogestão. Não apenas por conta do nítido  
caráter de excepcionalidade atribuído à vertente do programa, mas também pelas significativas  
limitações e “engessamentos” que se apresentam.  
O caso específico da cooperativa Esperança, conforme analisado, é bastante  
emblemático para a reflexão sobre o programa: o único “empreendimento” construído a partir  
da modalidade Entidades na cidade do Rio de Janeiro. Apontado como um exemplo exitoso,  
além de não ter sido reconhecido como uma propriedade coletiva, — tal como buscavam  
moradores e movimento — carece de regularização. Os moradores, que, através de mutirão e  
autogestão, construíram as 70 casas que compõem a cooperativa, receberam e recebem o  
“reconhecimento” pelo trabalho concluído — através do Prêmio de Melhores Práticas da Caixa  
— mas não os títulos de propriedade até o presente momento. Desde 2020, os moradores e  
lideranças de Esperança tem dialogado com a organização não-governamental Comunidades  
Catalisadoras (ComCat), na busca por transformar Esperança em um projeto piloto de Termo  
Territorial Coletivo no Brasil (TTC). Ou seja, as estratégias para regularização adotadas pelo  
grupo, que teve sua cooperativa organizada e construída em terreno público cedido pela União  
e financiada por um programa federal, tem transitado em outras esferas, ao compreender que o  
Estado não resolverá estas pendências (Bordenave, 2022).  
506  
É relevante reconhecer a potencialidade da autogestão habitacional, na medida em que  
torna possível que as pessoas envolvidas se constituam como sujeitos ativos no processo, em  
oposição ao MCMV tradicional, que coloca as empreiteiras/grandes construtoras no centro do  
processo decisório. Ao deslocar este eixo decisório do mercado imobiliário para as pessoas  
estamos diante de uma possibilidade de profunda transformação, e por isso mesmo ao MCMV  
Libertas, Juiz de Fora, v. 24, n. 2, p. 497-509, jul./dez. 2024. ISSN 1980-8518  
A perspectiva autogestionária no Minha Casa Minha Vida Entidades e a participação popular  
Entidades tem sido destinada uma parcela ínfima do financiamento do programa: para garantir  
que a lógica mercadológica permaneça predominante. Cabe pontuar a necessidade de que se  
aponte na direção da construção de uma política de habitação comprometida com o  
aprofundamento de uma perspectiva democrática, que opere no sentido da universalidade e não  
da excepcionalidade.  
É preciso, neste sentido, que a própria concepção da política de habitação seja afastada  
da lógica historicamente atrelada ao mercado — o que se coloca como um desafio bastante  
complexo no âmbito do modo de produção capitalista e no contexto de uma lógica  
ultraneoliberal vigente — e que é perpetuada em programas como o MCMV tradicional, que  
privilegiam o mercado em detrimento da compreensão da moradia como direito. Ao  
compreender que o MCMV tradicional contribuiu enormemente para o aprofundamento da  
segregação urbana e para a construção de moradias que não garantem minimamente a dignidade  
da população, aponta-se a necessidade de que o MCMV Entidades, se constitua como um  
programa amplo e que promova efetivamente a participação da população, em um processo  
autogestionário que atenda às demandas dos movimentos de moradia. Assim, avançar na  
compreensão da função social da cidade e da propriedade é imprescindível. Para que as  
experiências autogestionárias deixem de ser experiências virtuosas isoladas — o que reforça  
uma lógica focalizada e residual da política social — é fundamental que haja uma real  
participação social, e neste sentido, os caminhos de construção da política precisam ter este  
horizonte.  
507  
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509  
O familismo na assistência social como resposta  
do capital à crise estrutural  
Familism in social assistance as capital’s response to the structural crisis  
Raíssa Cristina Arantes*  
Daniella Borges Ribeiro**  
Resumo: Este artigo tem como objetivo estudar  
o familismo presente na Política Nacional de  
Assistência Social (PNAS), com enfoque nos  
cuidadores de usuários do Benefício de  
Prestação Continuada (BPC), e a sua relação  
com a crise estrutural do capital, apontando os  
limites e as alternativas dessa relação sobre as  
famílias. Observa-se no Brasil um desmonte das  
Abstract: This article aims to study the  
familism present in the National Social  
Assistance Policy (PNAS), focusing on  
caregivers of users of the Continuous Payment  
Benefit (BPC), and its relationship with the  
structural crisis of capital, pointing out the  
limits and alternatives of this relationship on  
families. In Brazil, there is a dismantling of  
public policies and the transfer of  
responsibilities from the State to families in  
terms of the desire for social protection. The  
research presents, through 20 interviews carried  
out in 04 municipalities in the Zona da Mata  
Mineira, how the Social Assistance Policy  
promotes family responsibility for the care of  
users of the said benefit. The data point to the  
intensification of family responsibility in the  
face of the structural crisis of capital, which is  
hidden by the rhetoric of family failure, leading  
to a conservative stance, incorporated in social  
work with families. This highlights the  
contributions of Social Service aimed at  
defending universal social rights and the  
emancipation of subjects.  
políticas públicas  
e
a
transferência de  
responsabilidades do Estado para as famílias no  
que tange ao anseio pela proteção social. A  
pesquisa apresenta, por meio de 20 entrevistas  
realizadas em 04 municípios da Zona da Mata  
Mineira, como a Política de Assistência Social  
impulsiona a responsabilização familiar pelos  
cuidados dos usuários do referido benefício. Os  
dados  
apontam  
a
intensificação  
da  
responsabilização familiar frente  
à
crise  
estrutural do capital, que são escamoteadas pela  
retórica do fracasso familiar, levando a uma  
postura conservadora, incorporada no trabalho  
social com as famílias. Aponta-se, assim, as  
contribuições do Serviço Social visando a  
defesa dos direitos sociais universais e a  
emancipação dos sujeitos.  
Palavras-chaves: Familismo; Assistência  
Keywords: Familism; Social Assistance;  
social; Cuidadores; Crise estrutural do capital.  
Caregivers; Structural crisis of capital.  
* Assistente Social. Mestre em Serviço Social pela Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF). Doutora em  
Economia Doméstica pela Universidade Federal de Viçosa (UFV). Assistente Social na Política de Assistência  
Social na Prefeitura Municipal de Ervália. ORCID: https://orcid.org/0009-0005-9645-0624  
** Docente do curso de graduação em Serviço Social e da Pós-Graduação em Economia Doméstica da Universidade  
Federal de Viçosa (UFV). Mestre e doutora em Política Social pela Universidade Federal do Espírito Santo  
(UFES). Membro do grupo de Pesquisas Fênix/UFES e Líder do Grupo de Estudos, Pesquisa e Extensão em  
Política Social, Saúde Mental e Drogas (GEPEPSS/UFV). ORCID: https://orcid.org/0000-0001-9264-7618  
DOI: 10.34019/1980-8518.2024.v24.45834  
Esta obra está licenciada sob os termos  
Recebido em: 31/08/2024  
Aprovado em: 05/12/2024  
O familismo na assistência social como resposta do capital à crise estrutural  
Introdução  
O artigo que aqui se apresenta é fruto de pesquisa de doutorado financiada pela  
Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de Minas Gerais (FAPEMIG), tendo como objetivo  
estudar o familismo presente na Política Nacional de Assistência Social (PNAS), com enfoque  
nos cuidadores de usuários do Benefício de Prestação Continuada (BPC), e a sua relação com  
a crise estrutural do capital, apontando os limites e as alternativas dessa relação sobre as  
famílias. Parte, assim, de uma pesquisa de abordagem qualitativa, do tipo estudo de caso,  
apoiada na perspectiva materialista histórico-dialética (Minayo, 2004).  
Para a coleta de dados utilizamos bibliografias e documentos da área, bem como 20  
entrevistas semi-estruturadas com cuidadores de beneficiários do BPC em quatro municípios  
sorteados da Zona da Mata Mineira, sendo um município para cada porte: Tombos enquanto  
município de Pequeno Porte I; Espera Feliz, Pequeno Porte II; Viçosa, Médio Porte; e Muriaé  
como município de Grande Porte. Após o sorteio dos municípios e acesso aos Centros de  
Referência de Assistência Social (CRAS), solicitamos aos técnicos de nível superior que nos  
indicassem usuários dos serviços beneficiários do BPC que tinham seus cuidados providos por  
algum familiar. Estes foram convidados a participar da pesquisa, sendo entrevistados 05  
familiares cuidadores em cada município. Esta pesquisa obteve aprovação do Comitê de Ética  
em Pesquisa e contou com todos os procedimentos éticos necessários para a sua realização. As  
20 entrevistas foram analisadas por meio da técnica de análise de conteúdo proposta por Bardin  
(1977).  
511  
Compreende-se que a Política Nacional de Assistência Social (PNAS) foi implementada  
no Brasil em um contexto neoliberal, enquanto uma política de Seguridade Social focalizada,  
tendo como base uma maior responsabilização da família na condução da proteção social –  
situação preocupante, em especial quando se fala dos usuários do Benefício de Prestação  
Continuada (BPC), especialmente os que se encontram em situação de dependência, uma vez  
que esses são idosos/as e/ou pessoas com deficiência.  
Conforme apontado por Horst e Mioto (2021), propaga-se que a saída para a crise  
estrutural do capital seja provida de um desmonte de políticas públicas e direitos sociais, que  
afetam sobremaneira as famílias, na mesma medida em que as colocam como principal  
mecanismo de proteção social, fato este corroborado pela matricialidade sócio-familiar  
apresentada pela Política de Assistência Social, bem como pelo Estatuto da Criança e do  
Adolescente, da Política Nacional da Pessoa Idosa, dentre outros, que colocam a família como  
primeira instância à garantir os direitos e a proteção de seus entes.  
Raíssa Cristina Arantes; Daniella Borges Ribeiro  
Assiste-se assim, a uma intensificação de transferência da responsabilidade estatal para  
a família no que tange à responsabilidade pela proteção social. Segundo Moraes et.al. (2020),  
no Brasil, a proteção social foi construída mediante o compartilhamento de responsabilidades  
do Estado com a sociedade civil, especialmente na condução da proteção social associada à  
responsabilização familiar. Sobre esta esfera, destaca-se o papel do cuidado1 não remunerado,  
realizado preponderantemente pelas mulheres (majoritariamente negras), conforme  
apresentado por diversos autores, dentre eles Minayo (2021), Cisne e Santos (2020). Este  
cenário, inclusive, pode ser observado no que se refere aos cuidadores de beneficiários do BPC,  
programa oriundo da PNAS. O BPC é a garantia de um salário mínimo mensal à pessoa com  
deficiência e ao idoso, com idade de sessenta e cinco anos ou mais, que comprovem não possuir  
meios para prover a própria manutenção e nem tê-la provida por sua família. A própria  
legislação defende que o direito individual é condicionado à hipossuficiência financeira da  
família. Tem-se, então, desde o corpo legislativo da PNAS, bem como do próprio BPC, a  
intensificação da responsabilização familiar.  
Desse modo, visualiza-se um panorama onde os cuidadores se encontram desprotegidos  
e cada vez mais responsabilizados pelo cuidado aos seus familiares beneficiários do BPC,  
observando-se, assim, não só o desmonte das políticas sociais públicas, como também a  
intensificação do familismo como respostas do capital frente à sua crise estrutural.  
512  
Política de assistência social: o familismo em debate  
O capitalismo, ao longo do seu desenvolvimento, encontra momentos de prosperidade  
e recessão. Como assinala Netto e Bráz (2021), isso aponta para um caráter ineliminável de  
crises próprias do modo de produção capitalista. À vista disso, Mészáros (2002, p. 795) afirma  
que “não há nada de especial em associar-se capital a crise”, contudo, elas possuem duração e  
intensidades diferentes. São das crises que surgem as variadas maneiras de progredir e “estender  
com dinamismo cruel sua esfera de operação e dominação”. Assim, as crises cíclicas do capital  
são benéficas aos capitalistas, e os mesmos não desejam a sua superação.  
Mészáros (2002) aponta que, diferente das crises cíclicas do capital, estende-se desde a  
década de 1970, com a crise do modelo de produção fordista/keynesiano, uma crise estrutural  
1
Compreende-se para fins dessa pesquisa o cuidado enquanto um caráter ontológico do ser social, que segundo  
Passos (2018) em algum momento na vida, carece de cuidados para sua própria sobrevivência. Contudo, ao longo  
do desenvolvimento do modo de produção capitalista, esse cuidado passou por transformações, sendo canalizado  
enquanto um trabalho, que se intensifica ou não diante das desigualdades sociais. Segundo Hirata (2022, p. 30) o  
cuidado é definido como um trabalho “material, técnico e emocional, moldado por relações sociais de sexo, de  
classe, de raça/etnia, entre diferentes protagonistas [...]; não é apenas uma atitude atenciosa, ele abrange um  
conjunto de atividades materiais e de relações que consistem em trazer resposta concreta à necessidade dos outros”.  
Libertas, Juiz de Fora, v. 24, n. 2, p. 510-533, jul./dez. 2024. ISSN 1980-8518  
O familismo na assistência social como resposta do capital à crise estrutural  
do modo de produção capitalista. Uma crise que se prolonga até os dias atuais, mas que  
ultrapassa uma crise cíclica, tendo em vista que ela possui novidades expressas em quatro  
aspectos principais.  
Ainda segundo Mészáros (2002, p. 796), o primeiro aspecto é que essa crise possui um  
caráter universal, “em lugar restrito a uma esfera particular”, como por exemplo, uma crise  
financeira ou comercial. Seu segundo aspecto se refere ao seu alcance ser global, e não “a um  
conjunto particular de países” como havia sido as demais crises cíclicas. A crise estrutural,  
também segundo o autor, possui enquanto terceiro aspecto, uma escala de tempo permanente,  
ao contrário da crise cíclica que possuía tempo limitado. E, por fim, enquanto quarto aspecto,  
“em contraste com as erupções e os colapsos mais espetaculares e dramáticos do passado, seu  
modo de se desdobrar poderia ser chamado de rastejante”. Ou seja, a crise que se instaura a  
partir dos anos de 1970 é diversa das crises cíclicas anteriormente experimentadas no modo de  
produção capitalista, bem como as respostas apontadas para a referida crise.  
Conforme apontado por Netto e Bráz (2021) e Mészáros (2002), o sistema capitalista,  
frente às suas próprias crises, se reformula para dar continuidade ao processo de reprodução  
ampliada ou alargada do capital. O desmonte dos direitos sociais, e consequentemente das  
políticas sociais públicas que os materializam, são uma das respostas do capital à crise,  
impactando diretamente nas condições de vida das famílias, trazendo profundas repercussões  
para as famílias mais pobres e sugerindo o “fracasso” das famílias que não cumprem os papéis  
ideologicamente postos de prover os recursos financeiros e de cuidado suficientes para seus  
entes (Horst e Mioto, 2021). Neste processo, há de se destacar que a família não é apenas  
responsabilizada por prover a proteção social aos seus membros, mas passa também a ser  
responsabilizada pela crise estrutural do capital.  
513  
Mészáros (2002), ao analisar a família e a crise estrutural do capital, destaca o papel da  
mesma dentro do próprio sistema capitalista. Segundo o autor, o capital se reproduz dentro de  
uma estrutura contraditória, ou seja, da capacidade de produção e reprodução social, gerando a  
riqueza social, mas sobre a contrapartida dessa riqueza ser produzida pelos trabalhadores e  
apropriada pela burguesia. Neste sentido, pontua-se a família enquanto objeto de reprodução  
do capital, na medida em que esta assegura a continuidade do sistema capitalista e fortalece a  
ideologia dominante do próprio modo de produção capitalista.  
Uma vez que a família é o verdadeiro microcosmo da sociedade - cumprindo,  
além das suas funções imediatas, a necessidade de assegurar a continuidade  
da propriedade, à qual se acrescenta o seu papel como a unidade básica de  
distribuição e sua capacidade de agir como a “correia de transmissão” da  
estrutura e do valor predominante na sociedade - a causa da liberação das  
mulheres afeta direta ou indiretamente a totalidade das relações sociais em  
Raíssa Cristina Arantes; Daniella Borges Ribeiro  
toda a sua fragilidade (Mészáros, 2002, p. 803).  
Portanto, conforme o autor, a família se torna “altamente benéfica para a expansão da  
economia de consumo”. Ou seja, além de ser a família a base de sustentação para o  
fornecimento da mão de obra para a continuidade do processo de produção e reprodução do  
sistema capitalista, também passa a ser a base da economia de consumo. Por isso, a importância  
da ideologia dominante sustentada e propagada pela e sobre a família.  
Entretanto, como já exposto, a solução posta pelos conservadores para a saída da crise  
consiste na diminuição dos direitos sociais, no chamamento da sociedade civil e da família para  
prover a proteção social, e na intervenção mínima do Estado frente às sequelas da questão  
social.  
A crise internacional do capital, expressa na década de 1970, e os rebatimentos da  
mesma no Brasil, ocasionaram o que Yazbek (2008, p. 13) aponta como uma vulnerabilização  
do trabalho e novas manifestações da velha questão social brasileira que, somatizada com os  
movimentos de redemocratização do país, permitiu, “na contramão das transformações que  
ocorrem na ordem econômica internacional mundializada”, a legalização do Sistema de  
Seguridade Social no Brasil em 1988 através da Carta Constitucional.  
A Seguridade Social no Brasil foi instituída sobre o tripé da Assistência Social, Saúde e  
Previdência, sendo que, a política de Previdência ainda manteve o caráter contributivo, a Saúde  
ganha o estatuto da universalidade e a Assistência Social “para quem dela necessitar”, segundo  
preconizado na Constituição Federal de 1988 (artigo 203) e demais legislações, bem como na  
Política Nacional de Assistência Social (PNAS).  
514  
A Seguridade Social, fundada nas diretrizes postas pela Constituição Federal de 1988,  
logo começa a enfrentar seus primeiros desafios diante de um cenário político e econômico que  
preconizava a intervenção mínima do Estado nas expressões da questão social. Sobre a égide  
desse processo, encontra-se a difusão ideológica da solidariedade, do voluntariado, e do terceiro  
setor na condução dos direitos sociais. Os anos de 1990 marcam então o início do desafio na  
efetivação dos direitos registrados na Constituição Federal de 1988.  
Sobre este cenário, Yazbek (2008) pontua que houve no país uma retração dos  
investimentos públicos na esfera social, que ocorre desde a década de 1990, enquanto uma  
resposta à crise do sistema capitalista. Tem-se assim a propagação da ideia da ineficiência do  
Estado e a transferência das responsabilidades estatais para o terceiro setor, mercado e família.  
Ou seja, por mais que a política de assistência social tenha alcançado o patamar de direito, ela  
ainda é permeada pela benemerência e solidariedade.  
Yazbek (2008) analisa a política de assistência social no período pós Constituição  
Libertas, Juiz de Fora, v. 24, n. 2, p. 510-533, jul./dez. 2024. ISSN 1980-8518  
O familismo na assistência social como resposta do capital à crise estrutural  
Federal de 1988 enquanto lugar de não direitos e da não cidadania, pois, os sujeitos só  
conseguem acesso à política de assistência social se antes tiverem sido excluídos do próprio  
processo de cidadania, uma vez que “revela sua direção compensatória e seletiva, centrada em  
situações limites em termos de sobrevivência e seu direcionamento aos mais pobres dos pobres,  
incapazes de competir no mercado” (Yazbek, 2008, p. 13).  
Cabe destacar que, neste artigo, defende-se que a assistência social no Brasil não possui  
condições concretas e efetivas para a erradicação da pobreza ou superação das desigualdades  
sociais. Todavia, não podemos negar a sua importância para suprir necessidades imediatas de  
vida, bem como não podemos negar a necessidade da sua expansão e redirecionamento para  
atender de forma ampliada as necessidades da classe trabalhadora. É possível, porém, notar a  
direção oposta, pois, mesmo diante dos avanços significativos em termos de direitos sociais  
com a Constituição Federal de 1988, o Estado capitalista, ao longo dos anos, vem  
potencializando cortes de gastos nos setores sociais e um amplo desmonte das políticas sociais  
públicas. Essa retração do Estado implica em uma maior responsabilização das famílias pelos  
cuidados de seus membros, processo este denominado por Esping-Andersen (1991) e Saraceno  
e De Azevedo (1995) como familismo. Teixeira (2015) conceitua o familismo como um reforço  
da família “como a principal provedora de bem-estar, o que se dá pela escassez de serviços e  
benefícios, pelo seu caráter seletivo e focalizado, pelas condicionalidades que enfatizam os  
cuidados no âmbito doméstico, numa reafirmação dos papéis tradicionais que sobrecarregam  
as mulheres” (Teixeira, 2015, p. 219).  
515  
É preciso considerar que, segundo Moraes et. al. (2020), o familismo no Brasil é parte  
constituinte da formação da proteção social brasileira. Dessa forma, ultrapassa o conceito de  
familismo proposto por Esping-Andersen (1991), se alargando como um padrão cultural e  
político que tem se expressado nas legislações que concernem à família espaço privilegiado na  
configuração da política social. Ou seja, o compartilhamento de responsabilidades com a  
família, além de ser parte constituinte da proteção social no país, é previsto na legislação  
brasileira com o amplo amparo da formação cultural e ideológica acerca dos cuidados, exemplo  
expresso, segundo Castilho e Carloto (2010), através da matricialidade sociofamiliar na Política  
de Assistência Social.  
Ainda segundo Castilho e Carloto (2010), ao analisar o familismo presente na PNAS, o  
histórico da referida política que possui suas raízes sobre a influência da filantropia, e apenas  
atinge o patamar de direito social após a Constituição Federal de 1988 enquanto uma política  
social não contributiva, visando romper com a visão da assistência enquanto benemerência,  
prevalecendo a lógica do direito do cidadão e dever do Estado. Apesar disso, a política de  
Raíssa Cristina Arantes; Daniella Borges Ribeiro  
assistência elege a família para a centralidade de suas ações, denominando-se matricialidade  
sociofamiliar, reforçando a participação da família enquanto mais que parceira do Estado para  
prover a proteção social. Dentre estes aportes dentro da centralidade na família, encontram-se  
os serviços do Serviço de Proteção e Atendimento Integral à Família (PAIF) e o Serviço de  
Convivência e Fortalecimento de Vínculos (SCFV), em que as famílias são preparadas para  
exercerem o seu caráter protetivo, sobre a insígnia da autonomia.  
Dentre uma das principais características que a PNAS vem assumindo como parte do  
projeto neoliberal, há um estímulo aos programas de transferência condicional de renda que,  
segundo Martino (2015, p. 96), “desempenham um papel central nas ressignificadas matrizes  
da proteção social. Tais programas colocam na família uma responsabilidade fundamental: a  
ruptura da reprodução intergeracional da pobreza”. Ou seja, segundo a autora, há um discurso  
nas agendas governamentais de que a família seria uma entidade privilegiada para quebrar o  
ciclo da pobreza e, para tal, incentiva-se as políticas de transferência condicional de renda.  
Ocorre que, estas políticas são insuficientes para a proteção das famílias, dado o seu baixo valor;  
a não articulação com outros serviços públicos que funcionem adequadamente; dentre outros  
motivos. Castilho e Carloto (2010) afirmam, que o BPC é um programa de transferência de  
renda tipicamente baseado na solidariedade familiar, ou seja, um programa familista. É preciso  
ressaltar que  
516  
[...] um projeto político comprometido com a justiça social, a cidadania e a  
redistributividade dos recursos sociais é antagônico ao pluralismo de bem-  
estar social, às ações focalizadas e ao retorno da família como agente principal  
de bem-estar social. Defendemos que quanto mais sobrecarregada é a família,  
quanto mais se aposta no fortalecimento e valorização de papéis clássicos e  
ideais, menos equidade de gênero se promove e mais se geram sofrimentos,  
culpabilizações, sentimentos de impotência, conflitos e até rupturas, o que  
ocorre pela incapacidade de cumpri-los e pela menos capacidade de lidar com  
as transformações familiares, em suas novas configurações (Teixeira, 2015, p.  
220).  
A Assistência Social foi regulamentada pela Lei Orgânica da Assistência Social (LOAS)  
de 1993, legislação esta que organiza a assistência social em todo o país. Preconiza-se em seu  
artigo 1º:  
A assistência social, direito do cidadão e dever do Estado, é Política de  
Seguridade Social não contributiva, que provê os mínimos sociais, realizada  
através de um conjunto integrado de ações de iniciativa pública e da  
sociedade, para garantir o atendimento às necessidades básicas (Brasil, 1993,  
p. 10).  
A referida legislação promulga os programas, serviços e benefícios visando a garantia  
da assistência social, principalmente daqueles em situação de risco social (Brasil, 1993). Na  
LOAS o BPC aparece como um benefício destinado à pessoa idosa e pessoa com deficiência  
Libertas, Juiz de Fora, v. 24, n. 2, p. 510-533, jul./dez. 2024. ISSN 1980-8518  
O familismo na assistência social como resposta do capital à crise estrutural  
em situação de vulnerabilidade social2. O benefício em questão é a garantia de um salário-  
mínimo à pessoa idosa acima de 65 anos, ou à pessoa com deficiência de longo prazo, que  
comprovem não possuir meios de prover a própria subsistência, ou tê-la provida por sua família.  
O referido benefício, ao longo dos anos, além de distintas mudanças normativas,  
também é permeado por reduções e congelamento de recursos, com especial destaque para a  
Emenda Constitucional nº 95 de 15 de dezembro de 2016 que institui o Novo Regime Fiscal no  
âmbito do orçamento Fiscal e da Seguridade Social da União, congelando os gastos públicos  
pelo período de 20 (vinte) anos, corroborando com o desmonte das políticas sociais públicas de  
acordo com o ideário neoliberal.  
O BPC, diante de sua formação e constituição, não abarca parte da população,  
principalmente por seu critério de corte de renda per capita, atingindo então somente aqueles  
que se encontram em situação de extrema pobreza. Por não se caracterizar enquanto um direito  
universal de proteção social pública estatal, acaba por transferir a responsabilidade dos cuidados  
para as famílias. Diante dessa responsabilização familiar, destaca-se o cuidado que se realiza  
através do trabalho não remunerado, historicamente e socialmente definido pela perspectiva do  
heteropatriarcado e dos papéis de gênero.  
A inexistência de uma política pública de caráter universal no país, onde o Estado  
efetivamente se responsabilize pelos cuidados com as pessoas idosas e pessoas com deficiência,  
segundo Minayo (2021), onera sobremaneira a família - particularmente, para as famílias em  
situação de pobreza e extrema pobreza. Frente à insuficiência de recursos financeiros e o  
desmonte das políticas sociais públicas, a solução encontrada para que os indivíduos recebam  
os devidos cuidados, especialmente àqueles que se encontram em situação de dependência, é  
que um ente familiar, majoritariamente as mulheres, abdique de suas vidas e trabalho, para a  
realização desse cuidado.  
517  
Assim, na PNAS, assiste-se a um duplo movimento. Por um lado, uma procura cada vez  
mais extensa de benefícios de cunho eventual para suprir as demandas dos cuidadores e pessoas  
em situação de dependência. Ao mesmo modo, diversos profissionais que atuam na referida  
política acabam por cobrar dos familiares os cuidados com as pessoas idosas e com deficiência,  
sobre a prerrogativa da negligência familiar. Ou seja, tem-se uma intensificação da cobrança  
2 O termo de vulnerabilidade social é uma proposta ideológica, utilizada pelos organismos internacionais com face  
à ocultar as expressões da questão social. É muito utilizado nas Políticas de Seguridade Social dos países da  
América Latina como estratégias de ações fragmentadas e que transferem para as famílias a responsabilidade e a  
solução para a crise estrutural do capital, e seu pilar de exploração da classe trabalhadora. “A vulnerabilidade  
enquanto um estado, status ou título nada mais é do que a manutenção da pobreza da classe trabalhadora que a  
partir do movimento conjuntural vai sofrendo as consequências do não acesso a bens e serviços, trabalho e a  
riqueza socialmente produzida” (Arregui et al., 2023, p. 159).  
Raíssa Cristina Arantes; Daniella Borges Ribeiro  
dos técnicos de nível superior, potencializando a perspectiva familista, exigindo uma maior  
responsabilização das famílias que estão completamente desprotegidas (Moraes et al., 2020).  
Assim,  
O enfrentamento da desigualdade passa a ser tarefa da sociedade ou de uma  
ação estatal errática e tímida, caracterizada pela defesa de alternativas  
privatistas, que envolvem a família, as organizações sociais e a comunidade  
em geral. O ideário da “sociedade solidária” como base do setor privado e não  
mercantil de provisão social parece revelar a edificação de um sistema misto  
de proteção social que concilia iniciativas do Estado e do terceiro setor  
(Yazbek, 2008, p. 13).  
Segundo a Constituição Federal de 1988, em seu artigo 203º, a Assistência Social será  
prestada a quem dela necessitar, ou seja, não é uma política universal, mas que será destinada  
independente de contribuição previdenciária. Ainda segundo a Carta Constitucional, a  
assistência social tem por objetivos a proteção à família, à maternidade, à infância e à velhice;  
o amparo às crianças e adolescentes carentes; a promoção da integralidade ao mercado de  
trabalho; a habilitação e reabilitação das pessoas portadoras de deficiência e a promoção de sua  
integração à vida comunitária; e a garantia de um salário mínimo de benefício mensal à pessoa  
portadora de deficiência e ao idoso que comprovem não possuir meios de prover à própria  
manutenção ou de tê-la provida por sua família, conforme disposto a lei. Também no artigo  
204º, as ações governamentais na área da assistência social serão realizadas com recursos da  
Seguridade Social, além de outras fontes.  
518  
Neste momento já se pode encontrar uma contradição, na medida em que a Carta  
Constitucional coloca enquanto objetivo a proteção à família e à velhice, por exemplo, mas  
coloca também que é pela via da família que a pessoa idosa ou pessoa com deficiência, que não  
tenha a contribuição junto à Previdência Social, terá o direito a uma renda mensal de um salário-  
mínimo - demonstrando já na constituição o caráter familista da referida política.  
Sposati (2005) aponta que romper com a perspectiva conservadora, ainda fruto do  
processo da ditadura militar e da proposta política e econômica neoliberal, se tornou um entrave  
aos avanços instituídos em termos de direitos sociais. As correlações de força em torno do  
entendimento da assistência social como um direito é antiga no Brasil, sendo explicitada, por  
exemplo, quando do impedimento de promulgação da LOAS no governo Collor. “A velha  
regra conservadora brasileira persiste. Tudo é bem-posto no papel, mas as forças sociais  
conservadoras permanecem analfabetas para tais ideias e compromissos” (Sposati, 2005, p. 43).  
De acordo com a autora, dadas as correlações de força, no texto da assistência social “alguns  
significativos anéis se foram”, tais como a universalidade do BPC, e, em 07 de dezembro de  
1993, a LOAS se consolida enquanto uma lei. Mas, é somente em 1995, que se começa a gestar  
Libertas, Juiz de Fora, v. 24, n. 2, p. 510-533, jul./dez. 2024. ISSN 1980-8518  
O familismo na assistência social como resposta do capital à crise estrutural  
os primeiros passos da LOAS, no governo de Fernando Henrique Cardoso (Sposati, 2005, p.  
63). Segundo Yazbek (2008, p. 15)  
A LOAS inova ao afirmar para a Assistência Social seu caráter de direito não  
contributivo, (independentemente de contribuição à Seguridade e para além  
dos interesses do mercado), ao apontar a necessária integração entre o  
econômico e o social e ao apresentar novo desenho institucional para a  
assistência social. Como política de Estado passa a ser um espaço para a defesa  
e atenção dos interesses e necessidades sociais dos segmentos mais  
empobrecidos da sociedade, configurando-se também, como estratégia  
fundamental no combate à pobreza, à discriminação e à subalternidade  
econômica, cultural e política em que vive grande parte da população  
brasileira (Yazbek, 2008, p. 15).  
A LOAS possui em seus objetivos a Proteção Social, que visa a garantia da vida, à  
redução de danos e à prevenção da incidência de riscos; a Vigilância Socioassistencial com vias  
de analisar os territórios e a capacidade protetiva das famílias (novamente colocando a  
responsabilidade pela proteção para a família); e a defesa de direitos, visando a garantia de  
pleno acesso aos direitos no conjunto das provisões socioassistenciais. Dentre as proteções  
existe a proteção à renda, na qual estão inseridos os Programas Condicionais de Renda, que  
aqui se destaca o Benefício de Prestação Continuada.  
Todavia, junto à política econômica, a LOAS e a PNAS (publicada em 2004) enfrentam  
dificuldades para ser reconhecida na perspectiva do direito. As contradições da Seguridade  
Social no Brasil, e consequentemente da Política de Assistência Social, se apresentam diante  
de um Estado que garante constitucionalmente o reconhecimento dos direitos sociais, mas que  
os insere “num contexto de ajustamento a essa nova ordem capitalista internacional” (Yazbek,  
2008, p. 13).  
519  
Segundo Campos e Mioto (2003, p. 182), o discurso da capacidade protetiva das  
famílias, propagado pelos organismos internacionais, não corresponde à realidade das mesmas  
por serem “impossibilitadas de atender a tamanhas expectativas”. Esse discurso conservador  
acerca da habilidade protetiva das famílias obscurece os limites destas, em especial nas crises  
do capitalismo, das condições das mesmas serem, por vezes, a única estratégia de sobrevivência  
Dessa forma, a família se encontra muito mais na posição de um sujeito  
ameaçado do que de instituição provedora esperada. E considerando a sua  
diversidade, tanto em termos de classes sociais como de diferenças entre os  
membros que a compõem e de suas relações, o que temos é uma instância  
sobrecarregada, fragilizada e que se enfraquece ainda mais quando lhe  
atribuímos tarefas maiores que a sua capacidade de realizá-las (Campos;  
Mioto, 2003, p. 183).  
Ainda segundo as autoras, na medida em que se amplia a ideologia e a expectativa da  
capacidade protetiva das famílias, do discurso da solidariedade da sociedade, há uma tendência  
Raíssa Cristina Arantes; Daniella Borges Ribeiro  
a centralizar a proteção social sobre a responsabilidade familiar em detrimento da  
responsabilidade estatal pela mesma.  
Sobre a particularidade do BPC, Campos e Mioto (2003) também o afirmam enquanto  
uma política altamente familista, apontando a transferência do direito individual para as  
condições da família. Nas palavras das autoras, a Política de Assistência Social é posta como  
“direito do cidadão e dever do Estado”, então, se o direito individual do BPC leva como  
condição a hipossuficiência financeira da família, perde-se a perspectiva do direito individual.  
Os cuidadores da Zona da Mata mineira: desproteção social e responsabilização  
familiar  
Dos 20 entrevistados, apenas 01 era do sexo masculino. Esse dado dialoga com diversos  
autores, tais como Cisne e Santos (2020); Minayo (2021); Horst e Mioto (2021), que afirmam  
que os cuidados são exercidos em sua maioria pelas mulheres da família.  
Para além dos cuidados serem exercidos majoritariamente pelas mulheres, também há  
destaque para o papel das mães no cuidado. Dos 20 entrevistados, 14 são mães que cuidam de  
seus filhos com deficiência, beneficiários do BPC. Assim, as mães representam 70% dos  
cuidadores entrevistados. Das demais entrevistadas, ainda recai sobre as mulheres o cuidado,  
em que as filhas assumem os cuidados de suas mães. Dentre as mulheres entrevistadas, 03  
cuidam de suas mães idosas, 01 cuida do pai; 01 cuida da tia e 01 cuida da irmã, pessoas estas  
beneficiárias do BPC.  
520  
Esses dados convergem com as análises de Horst e Mioto (2021), Saffioti (2004) e  
Fraser (2023) ao apresentarem o papel historicamente e ideologicamente posto às mulheres,  
com base no modelo de família nuclear burguesa, em que às mulheres cabe o papel de  
reprodução biológica para a garantia da força de trabalho no processo de produção e reprodução  
social, bem como o cuidado com o marido provedor, os filhos e pais idosos. Os valores postos  
pela sociedade capitalista colocam papéis pré-estabelecidos, e o papel da mulher, segundo a  
ideologia burguesa, é de cuidar e se responsabilizar pelos filhos ou demais entes familiares.  
Outro dado importante refere-se à raça. Dos 20 entrevistados, 11 se consideram pardos;  
05 brancos e 04 pretas, ou seja, verifica-se que no total 15 são negros3, tal qual como  
problematizam autoras como Cisne e Santos (2020). Dos entrevistados, tem-se 75% de pessoas  
que se consideram negras (pretas e pardas).  
3 Consideramos negro o conjunto de pessoas pretas e pardas, segundo o IBGE.  
Libertas, Juiz de Fora, v. 24, n. 2, p. 510-533, jul./dez. 2024. ISSN 1980-8518  
O familismo na assistência social como resposta do capital à crise estrutural  
A partir da realização das entrevistas foram observadas as seguintes composições  
familiares: 45% são famílias monoparentais chefiadas por mulheres, 35% são famílias  
nucleares; 15% são famílias reconstruídas (01 consiste em uma tia que assumiu os cuidados dos  
sobrinhos após o falecimento dos genitores; 01 irmã que passou a cuidar da irmã após o  
falecimento de sua mãe; 01 filha que levou a mãe para residir com a sua família); e 5%  
representado por uma família monoparental chefiada por um homem.  
Cabe destacar que foi encontrada, entre as cuidadoras entrevistadas, a prevalência dos  
cuidados sendo amparados pelas avós com as crianças beneficiárias do BPC. Diante do  
afastamento ou impossibilidade dos cuidados serem realizados pelas genitoras, quem assume a  
responsabilidade pelos mesmos são as avós - fato esse que pode ser destacado pela fala da  
entrevistada 19: “A minha mãe que é a guerreira, depois de mim é sempre ela”.  
Como se pode perceber, o cuidado é realizado preponderantemente pelas mulheres, bem  
como o apoio encontrado por elas para sua realização. Tal fato tem consonância com os dados  
publicados pelo DIEESE (2023) em que 38,9% das mulheres relataram realizar atividades  
voltadas ao cuidado, em comparação com 27,3% dos homens (Boletim Especial de 8 de março  
- DIEESE, 2023).  
Duas exceções são encontradas nos casos das entrevistadas 1 e 2, que apontam que  
recebem, embora não de maneira contínua, o apoio do pai das crianças. No entanto, esse apoio  
é possibilitado devido ao fato de o cônjuge trabalhar no mercado informal, dispondo, dessa  
forma, de maior flexibilidade de horário para exercer algumas atividades. Assim, pode-se  
observar, novamente, o conflito entre as demandas do cuidado, que acabam exigindo a maior  
parte do tempo de quem as exerce, com a possibilidade de trabalho formal. As mulheres que  
exercem tais atividades não conseguem conciliá-las com a jornada de trabalho e demais  
requisitos que o trabalho formal exige.  
521  
Ainda no que tange aos cuidados exercidos preponderantemente por pessoas do sexo  
feminino, cabe salientar que, das 09 famílias monoparentais chefiadas por mulheres, somente  
02 apontam que recebem o “apoio” do pai para a realização do cuidado, mas que é necessário  
solicitar esse apoio, como se o cuidado não fosse uma responsabilidade paterna. Das demais 07  
mulheres chefes de família, 03 apontam que mesmo solicitando e requerendo pela via judicial  
a pensão e a visita paterna, isso não se realiza. As demais não citam acerca dos genitores ao  
longo das entrevistas.  
No que se refere aos cuidados, dos 20 entrevistados, 16 afirmam que os cuidados são  
para tudo, pois os familiares que recebem o BPC são totalmente/parcialmente dependentes.  
Esses cuidados incluem o preparo da alimentação, ministrar as medicações, os cuidados com a  
Raíssa Cristina Arantes; Daniella Borges Ribeiro  
higiene pessoal, lavar e passar as roupas e a limpeza da casa. Também se destaca que todos os  
20 entrevistados afirmam que tem a necessidade de levar os usuários em consultas médicas,  
terapias e nas escolas (no caso dos usuários que são pessoas com deficiência). Ressalta-se que  
somente 04 das entrevistadas apontam certa independência dos beneficiários do BPC. “[...] ele  
é independente. Ele toma banho, ele almoça sozinho” (Entrevistada 17); “E vou na casa dela,  
limpo a casa. Mas no resto ela é totalmente capaz” (Entrevistada 14). Acerca dos beneficiários  
que possuem independência e/ou autonomia, os cuidados são mais direcionados ao lar, no  
preparo da alimentação e das vestimentas. Têm-se, assim, que, dos 20 entrevistados, 16 afirmam  
um alto índice de dependência dos beneficiários do BPC. A frase mais presente nas entrevistas  
é: “eles são cem por cento dependentes”, ou seja, os cuidadores precisam exercer todas as  
atividades e responsabilidades pelo bem-estar dos usuários do BPC, independente se são  
pessoas idosas, ou pessoas com deficiência.  
Pereira (2016) aponta que o cuidado se constitui como uma esfera do trabalho, sendo  
ela remunerada ou não, pois implica custo de tempo e energia daqueles que a promovem.  
Dialogando com a autora acerca das horas em que os cuidadores se dedicam diariamente na  
execução dos cuidados dos usuários do BPC, 12 afirmam que se dedicam vinte e quatro horas  
por dia - “Desde o amanhecer ao anoitecer, o dia inteiro” (Entrevistada 16). “A minha filha, é  
o dia inteiro, é vinte e quatro horas (risos). Porque a noite também que ela não dorme, aí fica  
agitada, quer andar pela casa afora, quer que liga um desenho. Aí eu vou fazendo as coisas  
assim, mais pra acalmar mesmo” (Entrevistada 5).  
522  
Seis (06) entrevistadas apontam que somente deixam de estar prestando os cuidados de  
maneira integral quando os beneficiários se encontram presentes dentro dos equipamentos  
educacionais. Cabe destacar que algumas mães informam que ainda acompanham os filhos no  
trajeto para a referida instituição:  
Praticamente, são vinte e quatro horas. Sendo ele não estando na APAE, tipo  
assim, em feriado. É vinte e quatro horas, né? Tirando aAPAE, é só eu mesmo.  
E mesmo na APAE, se ele passar mal, eles vão vir aqui em casa atrás de quem?  
Atrás de mim né? Eu que tenho que ir para lá (Entrevistada 17).  
Contudo, é necessário salientar que mesmo quando os usuários se encontram dentro dos  
equipamentos educacionais, as cuidadoras não deixam de estar realizando os cuidados. Como  
bem colocado pela Entrevistada 13 que, ao ser questionada sobre quantas horas se dedica aos  
cuidados apontou: “Praticamente o dia todo. Por que quando ele está na escola, eu me dedico  
para arrumar a casa, lavar a roupa, faço comida” (Entrevistada 13).  
Esse dado aponta que, mesmo quando o Estado assume alguma responsabilidade pela  
inclusão educacional das pessoas com deficiência (embora no caso das entrevistas aqui  
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O familismo na assistência social como resposta do capital à crise estrutural  
apresentadas muitos frequentam a APAE), ainda assim, o familismo se encontra presente, pois  
as famílias continuam assumindo os demais cuidados. Sabe-se que muitas mulheres acabam  
por exercer trabalho de meio período na esfera da produção para conseguir manter a reprodução  
da força de trabalho e o cuidado, ou seja, o cuidado é parte constituinte na intrínseca relação de  
produção e reprodução do capital, embora nestes casos as mulheres não consigam exercer  
nenhuma atividade na esfera formal da produção social.  
Por mais que os entrevistados careçam de apoio para a realização dos cuidados, muitos  
afirmam não os receber. Tal como o relato do Entrevistado 17: “Eu preciso de apoio, mas eu  
não tenho, ué. Não tem como pagar, vou pagar como uai? Se pagar seria bom, né?” Assim como  
a Entrevistada 18, que afirma que mesmo tendo uma família nuclear, o apoio proveniente de  
seu esposo ainda é insuficiente. “Não, só eu. Meu esposo trabalha, né? Quando ele chega, ele  
até ajuda, né? Mas aí já é tarde, nem tem do que precisa, né? Mas é sempre comigo”.  
Cinco (05) entrevistadas pontuam que o apoio advém dos serviços da Seguridade Social;  
04 apontam que uma das principais redes de apoio que encontram, se efetiva através da Política  
de Assistência Social, especialmente pelas técnicas do Programa Criança Feliz, tal como  
expresso na seguinte frase: “tem o pessoal do Criança Feliz também que ajuda muito. Tem dias  
que elas ficam aqui três horas com a gente conversando, orientando, ajudando mesmo, sabe?”  
(Entrevistada 19).  
523  
Há um destaque amplo para a rede de apoio formada pelas mulheres das famílias das  
próprias cuidadoras. Dos 20 entrevistados, 09 afirmam que o apoio advém das mães, irmãs,  
filhas mais velhas ou tias dos beneficiários do BPC. Tal como relatado ao longo de toda a  
conversa com a Entrevistada 5: “Eu tenho a minha menina mais velha que me ajuda muito. [...]  
Para mim fazer faxina é a minha mãe [...]. A minha mãe que me ajuda, aquela ali é meu suporte  
de tudo. Me ajuda em tudo” (Entrevistada 5).  
Há também relatos de entrevistadas que diante da ausência de apoio, tanto da família  
quanto da Seguridade Social, acabam por ter que buscar o mesmo na Sociedade Civil. Uma das  
entrevistadas aponta que o maior apoio advém da Igreja:  
A sociedade me ajuda muito. Ontem eu comecei uma campanha para comprar  
uma bota ortopédica para ela. Aí eu já comecei a falar com alguns amigos  
meus, já consegui um pouco de dinheiro com a venda que eu faço de tempero,  
de dinheiro com doação. E ainda agora mesmo, o pastor da minha Igreja ligou  
falando que vai pagar sozinho a bota. Que é o valor de dois mil, trezentos e  
cinquenta. Tem um anjo da guarda aqui que é Uber, que todo mês vem aqui  
na minha porta e me ajuda com alguma coisa para mim. E minha família que  
me ajuda com o tanto que pode. Mas aqui ninguém vem, nem para pentear um  
cabelo, nem pra dar um banho. É tudo eu, mais eu (risos) (Entrevistada 11).  
Raíssa Cristina Arantes; Daniella Borges Ribeiro  
Tal questão corrobora com as análises de Saraceno e De Azevedo (1995) e Esping-  
Andersen (1991) acerca das transferências de responsabilidades do Estado para a sociedade  
civil nas medidas de proteção social. Ou seja, o Estado não garante proteção e propaga  
ideologicamente o chamado à solidariedade para a sociedade civil. Esse fato também é apontado  
por Silva e Teixeira (2020) ao afirmarem que, segundo as diretrizes dos órgãos internacionais  
para os países periféricos, a intervenção estatal deve ser direcionada aos mais pobres  
(miseráveis) e em parceria com a sociedade civil.  
No decorrer das entrevistas foi perguntado se acreditavam que existiria algo que pudesse  
contribuir com os cuidados prestados. Onze (11) dos entrevistados apontaram que a  
contribuição seria a financeira, mediante o pagamento do trabalho exercido pelo cuidado, bem  
como garantia de tempo para que pudessem exercer o trabalho remunerado fora da esfera do  
cuidado. Cinco (05) entrevistadas salientaram a geração de condições para que pudessem  
exercer um trabalho, tendo em vista que a renda proveniente do BPC é insuficiente para a  
manutenção das despesas do grupo familiar, tal como apontado pela Entrevistada 16: “Se eu  
pudesse trabalhar seria ótimo. Ah, se eu pudesse trabalhar né? Mas eu não posso”. Essa temática  
foi muito abordada pois eles apontam a insuficiência do benefício para arcar com as despesas  
do núcleo familiar, ou mesmo somente do próprio beneficiário: “E financeiro também, porque  
a gente fala do BPC, mas sobreviver só com ele é difícil. Está difícil, entendeu? Mas, é o que  
tem no momento, e a gente vai empurrando né?” (Entrevistada 20).  
524  
Três (03) entrevistadas acreditam que o que poderia contribuir seria o apoio familiar, tal  
como apresentado pela Entrevistada 1. Esse dado reforça o quanto a população assume o  
aspecto familista, o quanto a família passa a ter papel preponderante nas relações sociais:  
Esse acolhimento da gente, da família. Seria entender. Eu digo até familiar,  
sabe? Se eu falar que a minha família me acolhe, eu vou estar mentindo. Eu  
me divorciei há um ano. Se eu falar que alguém veio, que alguém me  
procurou. E a gente sabe, que o pai é participativo, quando ele está no  
relacionamento. A partir do momento que não está, você tem que pedir. Vem  
buscar, vem fazer. Você viu aqui né? Tem que pedir. Afamília, eu poderia estar  
em uma situação muito pior, se fosse, se eu não tivesse conhecimento, e  
entendesse até onde eu posso ir, eu estaria em uma situação muito pior. Mas  
eu não tenho um apoio familiar (Entrevistada 1).  
Mas também há o entendimento de que as Políticas de Seguridade Social deveriam ser  
o apoio que os entrevistados carecem. “Eu acho que a gente deveria ter políticas públicas que  
realmente funcionem” (Entrevistada 1). Doze (12) entrevistados relatam que o apoio deveria  
advir da Política de Saúde: “No caso da saúde para ele” (Entrevistada 3); “Pra me ajudar, só  
com esses remédios mais caros né? Isso ia ajudar né?” (Entrevistada 8).  
Libertas, Juiz de Fora, v. 24, n. 2, p. 510-533, jul./dez. 2024. ISSN 1980-8518  
O familismo na assistência social como resposta do capital à crise estrutural  
Cabe destacar que 03 entrevistados apontaram que se os usuários ficassem durante o dia  
no CAPS, através do CAPS-dia, eles teriam tempo para exercer atividades laborativas.  
Ah menina, tem assim, se ele pudesse ficar no CAPS né? Por que agora ele  
vai fazer é avaliação né, mas se ele pudesse ficar lá, seria uma boa né? Por que  
se ele ficasse, eu conseguia fazer alguma coisa por fora né? Ganhar um extra.  
Ganhar mais né, por que o remédio dele né? Tem que pagar né? E comida,  
roupa né? Por que o salário dele não dá pra muita coisa né? (Entrevistado 6).  
Também há um relato de que o apoio poderia ser proveniente da Política Nacional de  
Assistência Social, tal como apresentado pela Entrevistada 13.  
Contribuir. A, talvez uma assistência, se eu tivesse recebendo o valor do Bolsa  
Família, seria melhor a situação. Talvez uma ajuda extra já ia né? Porque é  
muito gasto com o remédio, e aí já vai o salário. Então assim, você vai  
espremendo para fazer as outras coisas né? Por que o dele não pode deixar  
sem fazer. O dele vem em primeiro lugar, entendeu? Então um auxílio talvez  
né? Um auxílio assim, uma ajuda mesmo, até uma própria cesta que a gente  
tivesse direito de pegar no CRAS né? Por que a gente é impedido às vezes de  
pegar um vale gás né? (Entrevistada 13).  
Frazer (2023) e Pereira (2016) apontam que o cuidado está interligado às relações de  
produção e reprodução social, e, portanto, integra o sistema econômico, constituindo-se como  
uma pré-condição para a sua existência, mesmo sendo esse trabalho, majoritariamente, um  
trabalho não-remunerado. Dialogando com esses dados, dos 20 entrevistados, 16 afirmaram que  
nunca receberam nenhuma contrapartida financeira para o cuidado com os beneficiários do  
BPC. Contudo, 04 compreendem que a contrapartida financeira era o próprio benefício do  
usuário, mas que tirando o benefício, não possuía nenhum retorno financeiro para exercerem os  
cuidados.  
525  
Ao serem indagados sobre o sustento, dos 20 entrevistados, 08 afirmam que só possuem,  
enquanto renda familiar, o valor mensal de um salário mínimo proveniente do BPC. Cinco (05)  
apontam que o sustento da família consiste no referido benefício, bem como no trabalho de seus  
respectivos maridos/companheiros - cabe destacar que somente um se encontra dentro do  
mercado formal de trabalho. Quatro (04) entrevistadas apontam que conseguem, de maneira  
muito restrita, realizar faxinas. “Hoje eu faço faxina uma vez por semana e temos o auxílio do  
governo, né?” (Entrevistada 5). Duas (02) entrevistadas, que no momento exercem o cuidado  
de membros do BPC que se encontram com o benefício suspenso, afirmam que  
temporariamente estão recebendo o recurso do Programa Bolsa Família (PBF).  
Ressalta-se a Entrevistada 7 que, além de exercer o cuidado do filho, usuário do BPC,  
também cuida dos netos para que a filha possa trabalhar. Em troca do cuidado com os netos, a  
entrevistada recebe comida. Em suas palavras  
O meu sustento vem desse Bolsa Família que eu tenho, e dos biquinhos de  
Raíssa Cristina Arantes; Daniella Borges Ribeiro  
faxina que eu faço sábado. E na minha menina. Que eu ajudo um pouquinho,  
aí quando ela vai no mercado ela compra alguma coisinha e me dá, já está bom  
demais. Não me dá dinheiro não, mas me fala: mãe eu vou comprar pra mim  
e pra você. Aí pra mim, eu já vou levando a minha vida assim (Entrevistada  
7).  
Das 20 pessoas entrevistadas, 18 deixaram de exercer trabalho remunerado em  
decorrência do cuidado. A entrevistada 11 relatou não trabalhar anteriormente por questões de  
saúde e a entrevistada 14 já não trabalhava anteriormente. Ou seja, tem-se 90% dos  
entrevistados que deixaram de exercer o trabalho fora da esfera restrita do cuidado.  
Das 18 entrevistadas que atualmente não exercem trabalho remunerado, 02 eram  
empregadas domésticas, 07 realizavam faxinas sem carteira assinada e 01 era auxiliar de  
limpeza com carteira assinada, com a garantia dos direitos trabalhistas resguardados. Uma (01)  
entrevistada relatou que exercia o trabalho enquanto trabalhadora rural e que também possuía  
o contrato de trabalho, bem como o vínculo com o Sindicato dos Trabalhadores Rurais do seu  
respectivo município. No mais, constata-se 01 entrevistada que exercia a função de babá, 01  
cuidadora de idosos, 01 costureira, 01 cabeleireira, 01 caixa e 01 repositor. Havia também 01  
entrevistada com curso superior que deixou o trabalho em sua área de atuação para a realização  
do cuidado em tempo integral do seu filho.  
Em decorrência dessa grande demanda de cuidados, percebe-se que, aqueles que  
conseguem exercer algum trabalho remunerado, só fazem de forma informal e esporádica, como  
é o caso dos relatos feitos pela Entrevistada 1. Ela informou que exerce, quando possível,  
trabalhos informais diversos, como forma de complementação da renda, uma vez que, com a  
rotina de cuidados de uma pessoa totalmente dependente, ela tem disponibilidade de trabalho  
apenas em pequenos intervalos, ou quando ela consegue levar o usuário do BPC para o local  
em que a atividade será realizada.  
526  
(...) eu faço tudo que me chamarem. Eu costumo dizer que eu só não roubo e  
mato, mas o resto… se me chamar para pintar parede eu vou pintar, uma  
faxina, faço cabelo, unha. (...) já fiz aqui nessas atividades extras da prefeitura,  
recreações, tudo eu tento participar. Se não atrapalhar os horários do (nome  
do usuário do BPC) e se tiver alguém para ficar com o (nome do usuário do  
BPC) eu faço, esses trabalhos domiciliares que é, já cuidei de criança, faxina,  
passar uma roupa, se eu puder levar o (nome do usuário do BPC) melhor. é  
esse o acordo com as pessoas que me chamam (Entrevistada 1).  
Os fatos apresentados acima estão em sincronia com os dados acerca da relação de  
trabalho entre mulheres chefes de família. Conforme levantamento realizado pelo DIEESE  
(2023), entre as mulheres chefes de família negras, 25,3% trabalhavam como empregadas  
domésticas, já entre as não negras, 15,8% em serviços domésticos. No total das chefes de  
família negras, 20,6% eram trabalhadoras domésticas sem carteira, 15,1% trabalhavam sem  
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O familismo na assistência social como resposta do capital à crise estrutural  
carteira no setor público ou privado, ou seja, mais da metade dessas mulheres não tinha acesso  
a nenhum benefício trabalhista (53,3%). Entre as não negras essa proporção era menor, 41,0%.  
Destas, 11,9% eram domésticas sem carteira (Boletim Especial de 8 de março - DIEESE,  
2023).  
Esses dados também dialogam com as autoras Cisne e Santos (2020) ao apontarem que  
as mulheres negras são majoritariamente as responsáveis pelos cuidados de suas famílias e das  
famílias dos outros, atuando como empregadas domésticas, cuidadoras de idosos, cuidadoras  
sociais, dentre outros. Das 03 entrevistadas que se consideram negras, 02 já exerciam trabalhos  
remunerados relacionados aos cuidados, e 06 que se consideram pardas, também exerciam  
trabalhos domésticos.  
Ainda acerca deste ponto, podemos ver o relato do caso da Entrevistada 7, que realiza  
serviços de faxina aos sábados e trabalhos domésticos para a filha em troca de alimentos. Cabe  
destacar que ela afirma que só consegue realizar os trabalhos aos sábados pois a família que  
contrata os seus serviços permite que a mesma leve o seu filho, beneficiário do BPC.  
O meu sustento vem desse Bolsa Família que eu tenho e dos biquinhos de  
faxina que eu faço sábado. E na minha menina que eu ajudo um pouquinho,  
aí quando ela vai no mercado ela compra alguma coisinha e me dá, já está bom  
demais. Não me dá dinheiro não, mas me fala: mãe, vou comprar para mim e  
para você (Entrevistada 7).  
527  
A partir dos relatos observa-se que as demandas com os cuidados, principalmente em  
relação às necessidades médicas, como os agendamentos de consultas, fisioterapias,  
acompanhamentos e afins, acabam impossibilitando a conciliação dos trabalhos do cuidado  
com o trabalho remunerado. Este é o caso, por exemplo, da Entrevistada 2:  
Porque eu não posso trabalhar para poder cuidar dela. Eu trabalhava de babá,  
e, aí eu deixei para cuidar dela, porque tem que levar no médico, é SUS né, às  
vezes é no SUS, então o horário é o horário que eles escolhem lá. Aí tive  
muitas vezes que sair do trabalho para levar ao médico. Então, não tem  
ninguém para fazer isso para ela. E eu tenho o meu pai também, que cuido  
dele também [...] Sou eu que levo ele ao médico, eu que arrumo os remédios  
dos dois. É eu que respondo para o médico o que eles têm, sabe? Tudo. Então,  
ele não tem esses problemas, mas tem outros, problemas de saúde, tem  
arritmia, diabético, toma insulina. Então tudo é eu que busco remédio, compro  
remédio, pego receita, levo no médico, tudo é eu. Faço compra, tudo é eu  
(Entrevistada 2).  
Também sobre as análises de Fraser (2023) e Pereira (2016) acerca dos cuidados terem  
correlação direta com a economia, aponta-se pelas entrevistas que somente 04 dos cuidadores  
entrevistados contribuem com o INSS. Destes, 02 contribuem como autônomos, 01 como  
trabalhadora rural e 01 através do MEI. Esse dado comprova que os demais 15 cuidadores  
(exceto a cuidadora que recebe também o BPC), ou seja 75%, se encontram desprotegidos da  
Raíssa Cristina Arantes; Daniella Borges Ribeiro  
Previdência Social, o que potencializa uma futura necessidade de ingresso ao BPC, podendo  
acarretar um Ciclo Intergeracional de Dependência da Política de Assistência Social4 (Gomes,  
2020).  
No que tange às políticas públicas ofertadas pelos respectivos municípios,  
majoritariamente os entrevistados relataram sobre as políticas de Saúde, Assistência e  
Educação. Tendo em vista que somente 04 entrevistados contribuem com a Previdência, os  
demais não apresentaram acesso à Seguridade Social de cunho contributivo.  
Dos 20 entrevistados, 16 informaram que possuem acesso e suporte da Política de  
Assistência Social de seus municípios, destacando o CRAS como o principal equipamento de  
referência. 04 cuidadores afirmaram que não possuem acesso junto à referida política, mas que  
deram entrada na solicitação do BPC através do CRAS, contudo, não houve uma continuidade  
ou um acompanhamento da família por parte da equipe técnica.  
Dentre os 16 que afirmam possuir acesso à Política de Assistência Social, há relatos de  
06 entrevistados que acessam os benefícios eventuais de seus respectivos municípios. Contudo,  
também houve queixas, de benefícios eventuais sendo negados exatamente pelos cuidadores  
estarem inseridos em famílias que já recebem um benefício da referida política, no caso o BPC.  
Como exposto pela Entrevistada 13:  
AAssistente Social, quando eu preciso, eu vou lá, converso com ela. Elas me  
dão um apoio. Igual uma vez, eu fui lá, pedi uma cesta básica. Mas só que por  
conta da gente receber o BPC LOAS, fica meio difícil. Porque às vezes elas  
acham que a gente por receber esse salário a gente consiga fazer tudo. Só que  
hoje as coisas no mercado estão um absurdo, entendeu? Eu pago farmácia,  
tem que pagar aluguel, luz; então assim, quando chega para ir no mercado, eu  
já não tenho tanto, né? Então assim, o que que acontece, quando a gente vai  
assim, pedir uma cesta lá, aí tipo assim, a gente é questionada, entendeu? Essa  
situação, por conta do salário, como se a gente está recebendo o salário e então  
não precisa da cesta né? Mas só quem sabe somos nós mesmos (Entrevistada  
13).  
528  
Também houve relatos de acompanhamento por parte da equipe técnica de nível  
superior do CRAS no sentido de impulsionar maior responsabilização familiar pelos cuidados  
aos beneficiários do BPC, com relatos de visitas domiciliares constantes, alegando  
acompanhamento familiar. Tal como exposto pela Entrevistada 12:  
Eu não posso trabalhar. De primeira ela morava com a minha mãe, ai minha  
mãe faleceu e eu passei a cuidar dela. Eu trabalhava na roça, quando eu vim  
para a rua. Até as meninas falaram que quando aparecer um serviço para fazer,  
mas a Assistente Social falou que eu não posso deixar ela sozinha. [...] as  
meninas do CRAS que passam para fazer visita. É só acompanhamento  
4
Famílias que possuem por mais de uma geração a dependência da Política Nacional de Assistência  
Social.  
Libertas, Juiz de Fora, v. 24, n. 2, p. 510-533, jul./dez. 2024. ISSN 1980-8518  
O familismo na assistência social como resposta do capital à crise estrutural  
(Entrevistada 12).  
No que se refere à Política de Saúde, 14 informaram que possuem acesso aos  
equipamentos existentes em seus respectivos municípios, destacando sempre a atuação das  
UBS do bairro, embora conste reclamação de ausência de visita dos Agentes Comunitários de  
Saúde. Mas, no que tange à atendimentos médicos, veículos quando necessário,  
acompanhamentos necessários e específicos para as pessoas com deficiência, estes  
entrevistados afirmaram conseguir o acesso. Contudo, 06 afirmaram que não possuem acesso à  
política pública municipal do seu município.  
Diante de uma expressiva quantidade de entrevistados cujos beneficiários do BPC  
possuem autismo, há a necessidade de diversas terapias. Porém, os municípios não ofertam os  
serviços necessários, como exposto pela Entrevistada 13: “Porque no momento ele está  
precisando de fono, porque não tem profissional aqui desde o início do ano, ele inclusive  
regrediu muito. Então assim, já me quebrou aí, porque é o que ele precisa mais”. Bem como  
também há relatos da existência das terapias, contudo, ainda insuficientes. “E psicólogo, não  
está tendo. Ele teve terapia na semana retrasada, e agora vai ter só em novembro de novo. E  
fono, ele tem de quinze em quinze dias. E eu que levo” (Entrevistada 3).  
Há também muitos relatos da necessidade de recorrer ao mercado, diante de uma  
inexistência de serviços básicos ofertados pela saúde pública, com especial destaque para  
ausência de médicos e medicamentos no SUS. Há relatos de além da ausência de tratamento  
pelo SUS, ainda de gastos com itens básicos que, pelo SUS, seriam ofertados na rede de saúde  
pública. “E na ASSED não tem a fonoaudióloga, aí no caso eu teria que pagar. Mas é muito  
caro, e eu não tenho condições de pagar. E tem também a questão das fraldas, que todo mês  
aperta” (Entrevistada 15).  
529  
Há vários relatos de gastos com medicamentos em farmácias devido à ausência de  
remédios e fraldas ofertados em farmácias populares e que comprometem a renda familiar. “O  
médico dele é particular, só o remédio, e só agora, deve ter um mês que eu consegui o remédio  
pelo SUS. Por que antes era tudo no particular” (Entrevistada 5); “Os remédios são comprados,  
mas o médico é pela saúde” (Entrevistada 10); “Porque gasto muito com farmácia e fraldas”  
(Entrevistada 11); “Ele toma um remédio de convulsão, e quando a médica passou, ela passou  
três frascos. E isso dava quinhentos reais. Aí a gente fez uma vaquinha, um pix solidário, e a  
gente conseguiu comprar umas caixas de remédio” (Entrevistada 9).  
Esses dados apontam o quão familista é o Estado brasileiro. O Estado neoliberal prima  
cada vez mais pelo desmonte das políticas sociais, as quais destacamos aqui as de Seguridade  
Social. Diante de uma ausência na oferta dos serviços de Saúde pelo Estado, a população não  
Raíssa Cristina Arantes; Daniella Borges Ribeiro  
vê outra saída senão recorrer ao mercado e à sociedade civil, tal como apontado por Moraes et.  
al. (2020) ao afirmar que a proteção social foi construída mediante o compartilhamento de  
responsabilidades do Estado com a sociedade civil, especialmente na condução da proteção  
social associada à responsabilização familiar.  
Ainda na precariedade dos serviços de saúde pública e de responsabilização da  
sociedade civil, destaca-se o aparecimento, nas entrevistas, das chamadas “vaquinhas  
solidárias” ou “pix solidários”. Esses são mecanismos em que a sociedade é chamada através  
das redes sociais para contribuir financeiramente através de doações em depósitos bancários ou  
“pix” para que o recebedor consiga arcar com os gastos de saúde.  
Considerações Finais  
Aponta-se nesta pesquisa que a família, cada vez mais, é chamada na garantia da  
proteção social, diante de um retrocesso do Estado, conforme preconizado pela proposta  
Neoliberal. Esse “chamamento” é uma resposta conservadora cada vez mais acentuada frente à  
crise do capital, recolocando a família como instância privilegiada responsável pela proteção  
social de seus entes, evidenciando-se o desmonte das políticas públicas e dos direitos sociais, o  
que aprofunda as desigualdades sociais e coloca as famílias em situações de desproteção e não  
de proteção. Assim, as famílias são desapropriadas de condições dignas de vida pelo próprio  
Estado e, ao mesmo tempo, são chamadas à responsabilidade de proverem uma proteção que  
seria de responsabilidade do Estado, para além da esfera privada. Ao “falharem”, estas passam  
a ser consideradas culpadas pelos males advindos desta relação.  
530  
A Política de Assistência Social, embora avance enquanto um direito social de caráter  
não contributivo, ainda permanece altamente excludente e focalizada, na medida em que não  
consiste em uma política de caráter universal, e que constantemente recebe ataques  
governamentais com cortes orçamentários. O desmonte da referida política ataca a família, que  
já é posta como uma “instância” de garantia da proteção social através dos serviços e programas  
instituídos na referida política.  
Dentro desta esfera, encontra-se o BPC, enquanto um benefício, que perde a perspectiva  
do direito individual para o direito julgado pela “incapacidade” familiar. Caso ainda mais  
intenso ao se tratar de beneficiários em situação de dependência, em que familiares,  
majoritariamente mulheres negras, se responsabilizam pelos cuidados e proteção aos seus  
membros, na mesma medida em que ficam desprotegidas.  
O desmonte das políticas de Seguridade Social afetam sobremaneira as famílias,  
comprometendo a renda proveniente do BPC quando, cada vez mais, precisam recorrer ao  
Libertas, Juiz de Fora, v. 24, n. 2, p. 510-533, jul./dez. 2024. ISSN 1980-8518  
O familismo na assistência social como resposta do capital à crise estrutural  
mercado para suprir suas necessidades elementares. Por sua vez, este fato intenciona as famílias  
a recorrerem, ora à Política de Assistência Social pela via dos Benefícios Eventuais, ora à  
Sociedade Civil, através, por exemplo, das chamadas “vaquinhas solidárias”.  
Os cuidadores, na medida em que minimamente conseguem proteger os beneficiários  
do BPC, se desprotegem, por exemplo, em relação à Previdência Social, o que futuramente  
pode ocasionar em mais uma dependência da Política de Assistência Social e piora das  
condições de vida. Ou seja, o Estado, na mesma medida em que chama a família para garantir  
a proteção social, não cria condições para que a família a exerça.  
Os dados da pesquisa apontam para a intensificação da responsabilização familiar frente  
a crise estrutural do capital, escamoteadas pela retórica do fracasso familiar, que encontra como  
limite, a própria política social que culpabiliza a família frente às expressões da questão social.  
Tal situação, também tenciona o trabalho social com as famílias baseados em concepções  
estereotipadas de famílias e papéis familiares, com prevalência de papéis residuais e  
fragmentados da totalidade social e na focalização do trabalho com famílias em “situações-  
limite”, as chamadas “incapazes” e “fracassadas” (Teixeira, 2015). O ultraconservadorismo no  
Brasil, e o conservadorismo moral, segundo Bonfim (2015), atingem intensivamente os  
profissionais que atuam diretamente com as famílias nas políticas públicas, dentre eles os  
Assistentes Sociais.  
531  
No que concerne ao Serviço Social, nas entrevistas foi possível identificar o caráter  
conservador de alguns profissionais que reforçam a responsabilização familiar pelos cuidados  
aos beneficiários do BPC, imprimindo na atuação um caráter policialesco através das visitas  
domiciliares para fins de “acompanhamento”, demonstrando um caráter conservador na prática  
profissional.  
Contudo, Teixeira (2015) aponta para as possibilidades e alternativas, mesmo diante de  
uma conjuntura tão adversa. No que tange ao trabalho com as famílias na PNAS, que os  
profissionais tenham a noção que a autonomia dos sujeitos e a capacidade para os cuidados  
estão atrelados à perspectiva dos sujeitos de direitos na busca por direitos universais enquanto  
dever do Estado na garantia de vida digna a todo cidadão.  
Neste sentido, potencializa-se o reconhecimento da força do coletivo, na organização  
para que a efetivação e viabilização dos direitos sejam efetivas, e que novas conquistas sejam  
inseridas nas políticas públicas, especialmente no que tange aos cuidadores, para que possam  
exercer o direito de cuidar e terem também uma vida digna (Teixeira, 2015).  
Raíssa Cristina Arantes; Daniella Borges Ribeiro  
Enquanto contribuições do Serviço Social evidencia-se o compromisso ético-político  
com a classe trabalhadora na luta pela emancipação e liberdade, contra o conservadorismo e à  
responsabilização da família diante de um quadro de crise estrutural do capital.  
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533  
Os efeitos da violência interparental nas  
crianças: o olhar de uma comissão de proteção  
de crianças e jovens (CPCJ) em Portugal  
The effects of interparental violence on children: a look at the child  
protective services in Portugal  
Ana Sofia Carvalho Pinto*  
Eva Raquel Xavier de Melo Gil Chaves**  
Cristiana Dias de Almeida***  
Mónica Alexandra Vidal Teixeira****  
Resumo: A violência interparental é uma das  
situações mais evidentes de violência indireta  
que tem vindo a merecer uma maior atenção no  
panorama nacional. Com o presente artigo,  
pretende-se promover a discussão do fenómeno  
da criança exposta à violência, com o objetivo  
central de perceber os efeitos da violência  
interparental nas crianças acompanhadas na  
CPCJ. Para a concretização deste estudo  
exploratório foi utilizada a metodologia mista.  
Como técnica de recolha de dados realizaram-  
se cinco entrevistas entre 4 e 19 de abril de  
2023. Utilizou-se para análise dos dados: a  
Abstract: Interparental violence has been the  
focus of attention on a national level as one of  
the most glaring forms of indirect violence. This  
article aims to promote the discussion of the  
problem of the child exposed to violence with  
the main objective of understanding the effects  
of interparental violence on the children  
monitored by child protective services. To carry  
out this study exploratory,  
a
mixed  
methodology was used. As a data collection  
technique, five interviews were carried out  
between April 4th 2023 and April 19th 2023.  
For data analysis the following were used:  
*
Licenciada em Serviço Social pela Universidade Lusófona – Centro Universitário do Porto. ORCID:  
**  
Doutora em Serviço Social pela Universidade Católica Portuguesa & Universidade de Coimbra. Doutora em  
Ciências Sociais - Psicologia da Justiça pela Universidade Fernando Pessoa do Porto. Mestre em Psicologia da  
Justiça e do Comportamento Desviantes pela Universidade Católica do Porto. Licenciada em Serviço Social pela  
Universidade Católica de Braga. Professora Auxiliar de Serviço Social na Universidade Lusófona – Centro  
Universitário do Porto (FCESE). Lusófona University, Intrepid Lab, Porto, Portugal. ORCID:  
***  
Doutora em Serviço Social pela Universidade Católica Portuguesa & Universidade de Coimbra. Mestre e  
licenciada em Sociologia pela Universidade de Coimbra. Professora Auxiliar e Diretora da Licenciatura em  
Serviço Social na Universidade Lusófona - Centro Universitário do Porto. Lusófona University, Intrepid Lab,  
**** Doutora em Gerontologia UA/ICBAS. Mestrado em Gerontologia na UA. Licenciatura em Serviço Social pelo  
ISMT. Doutoranda do Programa Interuniversitário de Doutoramento em Serviço Social (Universidade Coimbra-  
FPCE e Universidade Católica Portuguesa-FCH). Professora Auxiliar da Universidade Lusófona (FCESE).  
Lusófona University, Intrepid Lab, Porto, Portugal. Centro Lusíada de Investigação em Serviço Social e  
DOI: 10.34019/1980-8518.2024.v24.44601  
Esta obra está licenciada sob os termos  
Recebido em: 20/05/2024  
Aprovado em: 05/08/2024  
Os efeitos da violência interparental nas crianças:  
o olhar de uma comissão de proteção de crianças e jovens (CPCJ) em Portugal  
análise de conteúdo e a análise estatística de  
dados. Os resultados demonstram que as  
crianças expostas à violência interparental  
desenvolvem inúmeros efeitos negativos que  
consequentemente terão repercursões imediatas  
e implicações ao longo da vida. Apesar da  
crescente visibilidade do fenómeno, a violência  
interparental continua a ser um problema social  
grave, pois, muitas vezes, não é reconhecido no  
seio da própria família.  
content analysis and statistical data analysis.  
The results show that children exposed to  
interparental violence develop numerous  
negative effects that will consequently have  
repercussions throughout their lives. Despite  
the growing visibility of the problem,  
interparental violence continues to be a grave  
social problem, as it is often not recognized  
within the family itself.  
Palavras-chaves: Violência interparental;  
Violência doméstica; Crianças; CPCJ.  
Keywords: Interparental violence; Domestic  
violence; Child; A look at the child protective  
services.  
Introdução  
A exposição à violência interparental tem vindo a merecer alguma atenção por parte de  
profissionais de diversas áreas das ciências sociais. Se por um lado emergiu um olhar mais  
atento da violência conjugal como um problema social, por outro ressaltou uma maior  
preocupação com os diversos efeitos da exposição da criança à violência.  
A violência entre casais tem-se evidenciado atualmente, devido não só à emergência de  
novas e maior número de denúncias e sinalizações, resultado de um elevado número de  
informação e campanhas de prevenção/sensibilização acerca da problemática, bem como do  
aparecimento de novos e diversos estudos sobre o fenómeno em questão (Rocha, 2007).  
A revisão da literatura evidencia que as crianças expostas à violência interparental  
surgem grande parte das vezes como vítimas diretas de violência (e.g., coocorrência de  
violência). Por outro lado, em termos de impacto não é necessário a criança experienciar de  
forma direta a violência, para ser afetada (Sani, 1999) e revelar uma série de sintomas  
desadaptativos. Na mesma linha de pensamento seguem outros estudos (e.g., Coutinho; Sani,  
2008; Sani, 2007) ao reconhecer que a violência concorre para um desajustamento global e  
reflete-se em acrescidas dificuldades de adaptação nos diferentes contextos da criança.  
Tendo em vista os inúmeros casos e os efeitos evidenciados pelas crianças expostas a  
violência interparental, partiu-se da formulação do objetivo geral do presente trabalho, perceber  
efeitos da violência interparental nas crianças acompanhadas numa Comissão de Proteção de  
Crianças e Jovens (CPCJ) da zona Norte de Portugal. Mais concretamente procurou-se (i)  
Identificar os efeitos da violência interparental nas crianças; (ii) Caracterizar os efeitos da  
violência interparental nas crianças; (iii) Perceber a influência da violência interparental nas  
crianças; e (iv) Analisar a experiência profissional dos/as técnicos/as da CPCJ em casos de  
exposição das crianças à violência interparental.  
535  
Ana Pinto; Eva Chaves; Cristiana Almeida; Mónica Teixeira  
Comissão de Proteção de Crianças e Jovens (CPCJ)  
No âmbito do sistema jurídico português, as ações do Estado em relação à proteção de  
crianças e jovens são restritas apenas aos casos em que exista um perigo iminente para a  
segurança e bem-estar da criança (Poeiras; Calheiros, 2019). A proteção das crianças e jovens  
por parte do Estado é um valor estabelecido pela Constituição (artº. 69, nº1 da Constituição da  
República Portuguesa). De acordo com o estabelecido na Convenção Internacional sobre os  
Direitos da Criança (assinada em Portugal em 26/1/1990), que exigem dos Estados aderentes  
a implementação de ações de proteção das crianças contra todo o tipo de violência, seja ela  
dentro ou fora do ambiente familiar (Poeiras; Calheiros, 2019).  
É da competência da CPCJ avaliar e investigar as condições de risco e vulnerabilidade  
das crianças e jovens, além de coordenar as ações de proteção e apoio necessárias, em  
colaboração com outras instituições. Desempenham um papel crucial na prevenção e  
intervenção em casos de maus-tratos, abusos, negligência, abandono e outras circunstâncias  
que possam ameaçar o bem-estar e o desenvolvimento das crianças e jovens (Poeiras;  
Calheiros, 2019; Guerra, 2021).  
As CPCJ são entidades oficiais independentes, com uma composição diversificada de  
profissionais de diferentes áreas, responsáveis por tomar decisões imparciais e autónomas em  
relação às situações de proteção de crianças (Guerra, 2021). Esta equipa multidisciplinar é  
composta por representantes de várias entidades, como Autarquias, Instituições de  
Solidariedade Social, Ministério Público, Forças de Segurança e atua a nível local, em cada  
município do país.  
536  
A intervenção da CPCJ depende do consentimento de ambos os progenitores, do  
representante legal ou da pessoa que tenha guarda de facto. Nos casos cuja gravidade e urgência  
justifiquem uma intervenção imediata, ainda que exista uma oposição por parte dos  
progenitores, existe um “procedimento judicial urgente”, tal como prevê o artigo 91.º da Lei  
de Proteção de Crianças e Jovens em Perigo. Assim, quando existe perigo atual ou iminente  
que comprometa a integridade física ou psíquica da criança ou jovem, são adotadas medidas  
apropriadas para garantir a segurança imediata da criança ou jovem, como por exemplo, a  
remoção da família e é solicitada a intervenção das autoridades policiais ou do tribunal  
(Guerra, 2021, p. 13).  
A salientar que, as decisões tomadas pela CPCJ são sempre em benefício da criança e  
devem ser acompanhadas de medidas que promovam o seu bem-estar e desenvolvimento  
saudável.  
Libertas, Juiz de Fora, v. 24, n. 2, p. 534-552, jul./dez. 2024. ISSN 1980-8518  
Os efeitos da violência interparental nas crianças:  
o olhar de uma comissão de proteção de crianças e jovens (CPCJ) em Portugal  
Violência interparental  
No campo da terminologia, revela-se importante discutir algumas considerações  
alusivas à forma de violência que pretendemos abordar.  
Os conceitos violência interparental, violência conjugal e marital usam-se de forma  
indiscriminada, não que não mereçam as adequadas distinções, mas sim porque nos queremos  
referir a um tipo de “vitimação, em que a criança está exposta à violência entre duas pessoas  
próximas afetivamente e com quem partilha o mesmo espaço” (Sani, 2003, p. 15).  
Sani (2003) afirma que existem limitações ao utilizar o conceito de violência doméstica  
para definir o conceito de violência interparental, uma vez que sendo esta definição mais  
abrangente, pode englobar outras formas de violência como por exemplo os maus-tratos a  
crianças ou a pessoas idosas; violência sobre a/o companheira/o. Nesta última situação, faz-se  
a referência a ambos os géneros, visto que, e sendo estatisticamente menos recorrente, pode  
acontecer violência sobre o género masculino.  
No que respeita ao conceito de violência interparental, esta é caracterizada como uma  
disputa violenta que acontece entre os pais ou responsáveis da criança, sejam eles casados ou  
não (Sani, 2003) e que pode manifestar-se de diversas formas, nomeadamente: violência física,  
emocional, verbal e psicológica, sendo que essa dinâmica pode ter impactos significativos não  
apenas nos envolvidos, mas também nos filhos, que podem ser testemunhas dessas situações.  
Além de afetar o bem-estar emocional e psicológico das crianças, a violência interparental pode  
comprometer o desenvolvimento saudável e a segurança, levando a efeitos colaterais, como  
problemas de comportamento, dificuldades de aprendizagem e transtornos emocionais. É um  
tema essencial no âmbito da investigação sobre violência familiar e suas repercussões na  
dinâmica familiar e na sociedade.  
537  
As diversas formas pelas quais as crianças podem ser vítimas de abuso têm se tornado  
um dos maiores desafios para os/as profissionais da área social e da saúde, que constatam a  
sobreposição entre estar exposto à violência e ser vítima de violência. A ideia equivocada de  
que a violência entre parceiros/as é um problema exclusivo dos adultos desconsidera de maneira  
egoísta e irresponsável as situações de vitimação de crianças (Sani; Cardoso, 2013).  
Impacto da violência interparental nas crianças  
A experiência que uma criança vivencia quando é exposta ao conflito entre os pais torna-  
se um facto marcante para a mesma, perturbando as suas emoções independentemente da idade  
apresentada (Sani, 2004). Contudo, a tipologia da violência pode agravar ou atenuar o impacto  
da violência (APAV, 2021).  
Ana Pinto; Eva Chaves; Cristiana Almeida; Mónica Teixeira  
Pode-se concluir através da reflexão de estudos alusivos à violência interparental que  
estas crianças presenciam um elevado risco no que toca ao desenvolvimento de problemas ao  
nível comportamental e emocional, originando consequências para o próprio desenvolvimento  
(Martins, 2018; Menard, 2002). Os efeitos que as crianças experienciam podem revelar-se tanto  
a curto como a médio ou a longo prazo, sendo que a inexistência dos mesmos não demostra que  
a criança não foi alvo deste impacto (Coutinho; Sani, 2008). Este tipo de violência tende a ser  
continuada e desenvolve-se em escalada de frequência e intensidade, apresentando por isso  
repercussões nefastas a nível físico e psicológico para a vítima e para os que residem nesse  
contexto (Chaves; Sani, 2014). Neste sentido, surge o conceito de criança exposta a violência  
conjugal, sendo uma forma de legitimar estas crianças como vítimas e de reconhecer o  
sofrimento que muitas vezes é esquecido e de igual peso dar-lhes visibilidade (Martins, 2018).  
As crianças apresentam diferentes formas de resposta à violência, por outro lado, a  
vitimação pode funcionar como um mecanismo para desenvolver a capacidade da mesma na  
resolução de futuros conflitos (Benetti, 2006). Tais reações são sinónimo do esforço praticado  
por parte das crianças para encarar situações aterradoras e imprevisíveis, não existindo, tal  
como defende a autora “reações típicas” à violência no seio familiar (Sani, 2004).  
Margolin (1998 apud Sani, 2002), expõe que se devem ter em consideração os fatores  
desenvolvimentais (e.g., a idade, o género) e situacionais, referindo-se à proximidade física do  
conflito e emocional à vítima, à gravidade da exposição, quando se aborda a variedade de  
reações que a criança pode despoletar nos momentos seguintes à exposição recorrente à  
violência interparental. Para além disso, a ocorrência de conflitos num espaço em que a criança  
considera ser um local seguro, são elementos que se devem ter igualmente em conta.  
As crianças que sofrem abuso físico e/ou que testemunham repetidamente a violência  
conjugal podem desenvolver disrupções nos padrões normais de desenvolvimento, levando a  
problemas cognitivos, emocionais e comportamentais (Emery, 1989; Jaffe et al., 1990). Estes  
efeitos decorrem não só da prática de atos de violência contra a criança, ao que Sani (2004)  
conceitua de efeitos diretos, mas também de um conjunto de condições, que rompidas por essa  
violência, geram efeitos indiretos no ajustamento da criança. A autora, evidencia que as crianças  
expostas a estes conflitos apresentavam problemas de internalização (desenvolvimento de  
ansiedade, depressão, medos), assim como de externalização (níveis elevados de agressividade,  
raiva, fugas da própria casa). Por conseguinte, este tipo de comportamentos danificam a  
capacidade de empatia, o estabelecimento de relações interpessoais, a realização ao nível  
académico, a interpretação de situações sociais, a resolução de situações adversas, como ainda  
a competência e a integração social (Sani, 2004).  
538  
Libertas, Juiz de Fora, v. 24, n. 2, p. 534-552, jul./dez. 2024. ISSN 1980-8518  
Os efeitos da violência interparental nas crianças:  
o olhar de uma comissão de proteção de crianças e jovens (CPCJ) em Portugal  
Ademais, as crianças que se desenvolvem em contexto de conflito interparental  
interiorizaram que para resolver os conflitos surgidos ao nível das relações íntimas precisam de  
recorrer à violência, estratégia esta apreendida aquando expostas aos conflitos entre os pais.  
Deste modo, este tipo de comportamentos apresenta-se como uma maneira eficaz de que a  
criança perceciona ter o controlo e poder sobre o outro (Sani, 2004). Outro dos efeitos  
observados é o facto de a criança aceitar excessivamente que dispõe de um sentimento de  
responsabilidade pela violência que acontece na família, acreditando que ela própria e os seus  
comportamentos, originam a violência interparental ou achando que têm o dever de proteger a  
vítima, distraindo o agressor (Sani, 2004).  
Paralelamente, Magalhães (2002) expõe algumas das que considera serem  
consequências diretas da exposição a conflitos interparentais: ao nível cognitivo, que  
ocasionam défices de linguagem, intelectual, baixo rendimento profissional ou académico; ao  
nível afetivo, com o surgimento de sensações de medo, raiva, disfunção sexual e baixos níveis  
de autoestima, assim como ideação suicida; ao nível comportamental, com interferências nos  
relacionamentos interpessoais, propensão para o isolamento, raro reconhecimento das emoções,  
sentimentos de culpabilidade, violência e maltrato com os próprios filhos, toxicodependência e  
condutas e comportamentos delinquentes; e ao nível psiquiátrico, podendo surgir neuroses,  
depressões e psicoses e diversos transtornos de personalidade. No que diz respeito a crianças  
em idade primária reconhecem-se complicações ao nível escolar, despoletando problemas de  
concentração e atenção somando à probabilidade de terem até 40% menos de capacidades nas  
tarefas escolares, como por exemplo ao nível da leitura relativamente às outras crianças com  
idades idênticas (Martins, 2018).  
539  
Relativamente aos efeitos indiretos, Holden et al. (1998) reiteram que o conflito  
conjugal afeta diretamente o suporte, a disciplina e controlo, tal como a consistência e  
monitorização parental. Com isto, os mesmos autores afirmam que habitar em contexto hostil  
e violento pode ser profundamente debilitante, particularmente para a vítima. Neste tipo de  
ambientes, dá-se mais foco à monitorização e avaliação afetiva do agressor e a sua  
predisposição para a violência, da mesma maneira que a vítima tenta defender-se a si própria e  
às crianças dos constantes ataques físicos e verbais que sofrem. Por outro lado, a inconsistência  
que existe particularmente nestes seios familiares pode ser um fator agravante dos conflitos,  
quer porque os progenitores divergem no que se relaciona com a educação das crianças, quer  
porque existe uma mudança de tom e palavras por parte da progenitora quando o progenitor  
está presente (Sani, 2004).  
Ana Pinto; Eva Chaves; Cristiana Almeida; Mónica Teixeira  
A exposição à violência em contexto familiar pode resultar, ainda, em absentismo  
escolar, violência entre pares bullying, violência nas relações de namoro e nos  
relacionamentos em geral, abandono escolar ou até mesmo conflito com a lei (XXII Governo  
Constitucional, 2020).  
Sendo uma problemática cada vez mais atual, deve-se conferir mais atenção aos sinais  
que a criança apresenta a fim de prestar o auxílio de forma a garantir que os efeitos sejam  
minimizados. Por outro lado, as entidades governamentais possuem a responsabilidade de criar  
medidas de modo a salvaguardar o bem-estar das crianças.  
Metodologia e técnicas de recolha de dados  
O presente estudo é uma pesquisa exploratória que pretende ser uma primeira  
aproximação ao tema, de modo a testar a adequabilidade das questões em causa. Pretende-se  
futuramente alargar o estudo para um número amplo de CPCJ, que represente a realidade  
portuguesa. Para a concretização da investigação, foram apresentados e assinados os  
consentimentos informados de forma a garantir que os/as participantes tinham o conhecimento  
sobre o estudo empírico do presente trabalho, bem como a confidencialidade e anonimato das  
informações partilhadas. Para além disso, também foi garantido o consentimento para utilização  
da informação da Base de Dados da CPCJ, devidamente assinado pela Presidente da Comissão.  
Para a realização do presente estudo foi utilizada a metodologia mista. O recurso às  
vertentes qualitativa e quantitativa não só melhora significativamente a compreensão do  
fenómeno, como também procura dar retorno às questões inicialmente formuladas, sugerindo  
alterações em questões específicas ou até mesmo um novo design (Teddlie; Tashakkori, 2009).  
Como técnica de recolha de dados privilegiou-se a entrevista semiestruturada. Foram  
realizadas, entre 4 e 19 de abril de 2023, a 5 profissionais de uma CPCJ da região norte de  
Portugal. Estes/as profissionais são de diferentes áreas científicas, nomeadamente Serviço  
Social, Psicologia, Enfermagem e representam diferentes instituições do município: Câmara  
Municipal, Segurança Social e o Ministério da Saúde. Foram escolhidos/as pelas funções  
desempenhadas na CPCJ ao nível da “promoção dos direitos e a proteção das crianças e dos  
jovens em perigo, por forma a garantir o seu bem-estar e desenvolvimento integral” (Art.º 1 do  
Cap. I da Lei 147/99, de 1 de setembro), segundo a sua disponibilidade e respeitando a sua  
agenda de trabalho para não afetar nas dinâmicas da instituição.  
540  
Como técnica de análise de dados foi utilizada a análise de conteúdo e a análise  
estatística de dados. No que se refere à análise de conteúdo foi sinalizado o conteúdo mais  
relevante de cada entrevista e agrupado em categorias com base num cruzamento entre  
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Os efeitos da violência interparental nas crianças:  
o olhar de uma comissão de proteção de crianças e jovens (CPCJ) em Portugal  
categorias já previamente delimitadas de acordo com a literatura. Atendendo a que, na  
investigação “os dados obtidos necessitam de ser organizados e analisados e, como a maioria  
das vezes tomam uma forma numérica procede-se à sua análise estatística” (Coutinho, 2015, p.  
151), recorreu-se à análise estatística de dados quantitativos com incidência sobre o tipo de  
problemática mais presente em 2022 nas CPCJ’s.  
Apresentação dos resultados  
A apresentação dos resultados emerge da análise dos dados resultantes das entrevistas  
realizadas a profissionais de uma CPCJ da zona norte do país, bem como da análise de dados  
estatísticos nacionais referentes às CPCJ. Os dados que daqui resultaram, deram resposta ao  
objetivo central desta investigação: Perceber os efeitos da violência interparental nas crianças  
acompanhadas na CPCJ. Objetivo central integra quatro objetivos específicos (dados parciais  
desta investigação) que se consubstanciam-se nos seguintes:  
i) Identificar os efeitos da violência interparental nas crianças: A maioria das profissionais  
considera que os efeitos nas crianças são negativos e muito graves para o seu desenvolvimento,  
no entanto, referem que o surgimento e o progresso destes depende da gravidade da violência  
interparental a que são expostas. Para além disso, algumas entrevistadas relatam que os efeitos  
desta exposição recaem principalmente nos efeitos a nível psicológico ou emocional,  
provocando consequentemente elevados níveis de ansiedade, de stress e de insegurança, seja  
em contexto de relação com outras pessoas, seja no mundo ao redor delas. “(…) acabo por estar  
atenta mais a alguns sintomas mais psicológicos ou emocionais diria, mas quase sempre se vê  
um aumento da ansiedade destas crianças, não é?” (Ent5).  
541  
A literatura evidencia que a nível emocional, a criança pode revelar sintomas como,  
choro, preocupação, vergonha, menor capacidade de empatia, dificuldade em reconhecer  
emoções, tristeza, raiva, culpa e medo (Cunningham; Baker, 2007). E ainda, sentimentos muito  
ambivalentes relativamente aos cuidadores (Graham-Bermann, 1998). A tristeza e raiva são  
sentimentos experienciados por algumas crianças, que segundo Renee et al., (2011) são mais  
frequentes do que a ansiedade. As crianças com histórias na infância marcadas pela violência  
familiar têm uma maior predisposição para ter uma baixa autoestima (Shein, 2009). Tal como  
salientado anteriormente, Sani (2004) afirma que as crianças expostas a estes conflitos  
desenvolvem problemas quer de internalização, ou seja, desenvolvimento de ansiedade, quer  
de externalização (surgimento de sentimentos de raiva, agressividade, etc.).  
Segundo algumas entrevistadas, outro dos efeitos experienciados e vividos pelas crianças  
expostas a conflitos violentos entre os progenitores passam pela insegurança que surge, tanto  
Ana Pinto; Eva Chaves; Cristiana Almeida; Mónica Teixeira  
ao nível da instabilidade de humor de ambos os pais ao longo dos conflitos, como também a  
insegurança perante o mundo sobre o olhar da criança. “(…) é o facto a… da insegurança em  
que a criança vive, de nunca saber como é que vai ser o dia (...) Isto leva a um estado permanente  
de ansiedade que este é o que se traduz em… em prejuízo maior” (Ent3).  
Nos casos de violência doméstica mais graves, surgem sentimentos de stress emocional  
e ansiedade, uma vez que a própria criança consegue aperceber-se do que a vítima está a sentir,  
sendo habitual vivenciar sentimentos negativos. “(…) quando existe uma violência doméstica  
muito grave, em que existe um terror associado, não é?… àquela figura, a criança está  
constantemente em situação de stress emocional” (Ent3).  
Neste sentido, Margolin e John mencionam que “A envolvência em situações de  
violência de figuras apego faz emergir na criança sintomas de evitamento, ansiedade, novos  
medos, agressividade” (1997, p. 42). Cummings acrescenta que, esta violência a que a criança  
é constantemente exposta constitui-se como uma ameaça para esta, no sentido em que “mina o  
seu sentido de predição e o seu sentimento de acolhimento na família, preocupando-a e fazendo  
sentir-se emocionalmente stressada” (1998 apud Sani, 2002, p. 43).  
Ao longo das entrevistas, foi referido igualmente que alguns dos efeitos nas crianças por  
exposição emergem no constante estado de alerta que passam vivenciar. “Os efeitos negativos  
da violência doméstica em termos emocionais, ela vem muito associada a isto, a estes casos  
mais graves em [que] há um estado de alerta constante em que há um estado de stress constante  
no organismo (…)” (Ent3).  
542  
A par do que foi exposto anteriormente, é referido que os efeitos que as crianças  
vivenciam por conta da exposição acarretam problemas no desempenho académico, isto é, as  
próprias revelam um baixo rendimento escolar e consequentemente um decréscimo das  
avaliações. “(…) mais dificuldade de concentração na escola (…)” (Ent3).  
Em consonância com Martins (2018), a autora afirma que a crianças em idade primária  
submetidas a esta exposição revelam problemas ao nível escolar e demostram menor capacidade  
para a realização de tarefas propostas em contexto escolar.  
Em virtude do sofrimento emocional/psicológico, foi percetível pelo relato das  
profissionais que algumas crianças desenvolveram baixa autoestima, bem como sintomas  
depressivos. “(…) às vezes há uma mãe ou um pai que diz «não contes a ninguém que viste  
isto» e, portanto, eles guardam muito pra eles e acho que sintomas depressivos também é uma  
coisa que pode acontecer mais… frequentemente” (Ent5).  
Libertas, Juiz de Fora, v. 24, n. 2, p. 534-552, jul./dez. 2024. ISSN 1980-8518  
Os efeitos da violência interparental nas crianças:  
o olhar de uma comissão de proteção de crianças e jovens (CPCJ) em Portugal  
De modo similar, Magalhães (2002) cita que as consequências diretas desta exposição  
ao nível efetivo abrangem não só o surgimento de sensações de medo e raiva, como também é  
percetível um baixo nível de autoestima nas crianças.  
Tendo em consideração os efeitos despoletados nestas crianças, percebeu-se que os  
progenitores não detêm a consciência sobre como os efeitos repercutem no desenvolvimento  
das mesmas, no qual mencionam como exemplo o próprio percurso de vida. Trajetórias de vida  
marcadas pela exposição a violência interparental, utilizada como justificativa para a situação  
atual de violência e banalizando os efeitos que acabam por surgir.  
(…) penso que não só pela própria, por estarem na Comissão, mas pela própria  
educação que tiveram, que um berro, que uma palmada [suspiro profundo] não  
tem efeitos numa criança a… Muitas vezes referem que “ó, ó Doutora, se o  
meu pai bateu-me, eu estou aqui, e foi graças a algumas palmadas que eu sou  
o que sou hoje” (Ent1).  
Compreendeu-se também que existe uma normalização e banalização do padrão de  
violência, ou seja, a criança interioriza os valores típicos dos conflitos violentos que observa e  
vivencia. “(…) a reprodução dos modelos no futuro, não é?… a interiorização de valores e de  
banalização da violência doméstica (…)” (Ent3).  
Ao longo da análise de conteúdo das entrevistas, constatou-se que a normalização dos  
padrões de violência por estas crianças é um processo normal, uma vez que estas cresceram e  
desenvolveram-se num ambiente em que ouviam e presenciavam o agressor a agredir a vítima  
e a vítima a ser agredida, interiorizando que estes comportamentos fazem parte de um  
relacionamento, seja ele amoroso, afetivo ou entre membros da família.  
543  
E efetivamente há aqui uma série de crianças que já são educ[adas]- e uma  
série da população que é educada desta forma, que isto é uma forma normal  
de comunicação e o valor e a importância que atribuem a isto, muitas vezes, é  
diferente e a gravidade que tem muitas vezes é diferente também consoante a  
forma como culturalmente isto é visto, porque por vezes é banalizado (Ent3).  
A literatura indica que os progenitores com historial de vitimação na infância,  
apresentam uma maior dificuldade em lidar com situações de maior stress, podendo incutir o  
seu padrão de comportamentos aos seus filhos (Michel et al., 2011).  
Os pais assumem um papel essencial na aprendizagem de comportamentos, servindo de  
modelo para as crianças, principalmente quando são ainda muito jovens. Segundo Cunningham  
e Baker (2007), com a exposição à violência, a criança pode identificar-se com o progenitor do  
mesmo género, o que pressupõem uma aprendizagem distorcida do papel do homem e mulher  
na sociedade. No entanto, este parecer não é assim tão linear já que outros estudos atribuem  
uma conotação positiva ao facto da criança não se identificar com o agressor, para que também  
não aprove os seus comportamentos e não venha a reproduzi-los no futuro (Renner et al., 2011).  
Ana Pinto; Eva Chaves; Cristiana Almeida; Mónica Teixeira  
Para além disso, a autora Moretti (2006), explica que existe uma maior propensão, por  
parte destas crianças, para a reprodução de estratégias de resolução violentas, utilizando a  
violência física ou psicológica, aquando à presença das mesmas a exposição a violência  
interparental.  
Tendo em conta o que foi mencionado anteriormente, vale ressaltar que muitas destas  
crianças não conseguem quebrar este ciclo de violência, que se perpetuou ao longo do tempo,  
em relações futuras, procurando parceiros que exerçam violência para com as próprias. Este  
efeito tende a ser explicado pela dificuldade em quebrar o próprio ciclo violento dentro da  
relação com o agressor, convertendo-se numa espiral de violência. “(…) e depois, muitas vezes,  
se calhar elas próprias a… não conseguem quebrar o ciclo de violência e elas próprias vão  
procurar pessoas que… que também vão exercer algum tipo de violência para consigo, não  
é?…” (Ent2).  
Por outro lado, existem casos em que os próprios progenitores compreendem e têm  
noção dos efeitos que desenvolveram por conta da exposição à violência interparental na sua  
infância e, por esse motivo, mostram preocupação em não repercutir os mesmos modelos e  
comportamentos violentos para com os seus descendentes.  
E depois também há um risco da reprodução dos comportamentos a que se  
assiste. Existem os dois casos [ruído da cadeira a mexer-se]. Existem tanto as  
pessoas que dizem “Ai, eu vivi isto e não quero que o meu filho viva, porque  
eu quando era criança [ruído da porta a bater] vivia… o meu pai batia na minha  
mãe”; como existem as pessoas porque viram reproduzem, ou seja, um dos  
problemas também é a assunção deste valor e reprodução deste  
comportamento (Ent3).  
544  
ii) Caracterizar os efeitos da violência interparental nas crianças: As consequências mais  
presentes nas respostas passam por: afetar a saúde: “Quando são crianças muito pequenas a…  
vai ter efeitos na saúde” (Ent1); o desenvolvimento emocional: “Quais são as consequências?  
Negativas? A… pronto… as consequências… era aquilo que eu estava a falar, é a nível de  
desenvolvimento emocional” (…) (Ent 1); o estabelecimento de relacionamentos tanto na  
adolescência, como no futuro: “(…) a dificuldade de estabelecer relacionamentos saudáveis na  
sua vida adulta, na sua vida, na sua adolescência, na vida adulta (Ent2)” e o surgimento de  
sentimentos depressivos e ansiedade: “(…) tentar perceber se isto vai acabar por despoletar uma  
depressão, uma ansiedade que precise de ser consultado (…)” (Ent5), bem como insegurança e  
pensamentos de insuficiência enquanto indivíduos: “Enquanto eles constroem como pessoa a…  
perceber se não há aqui alguma insegurança, se eles próprios em termos de autoestima também  
não se constroem como pessoas incapazes” (Ent5).  
Libertas, Juiz de Fora, v. 24, n. 2, p. 534-552, jul./dez. 2024. ISSN 1980-8518  
Os efeitos da violência interparental nas crianças:  
o olhar de uma comissão de proteção de crianças e jovens (CPCJ) em Portugal  
iii) Perceber a influência da violência interparental nas crianças: Foi percetível através das  
entrevistas que esta exposição influencia as crianças ao nível da capacidade, da concentração e  
no seu desenvolvimento intelectual. “(…) estão mais do que explicados, mais do que estudados  
os efeitos ao nível da capacidade de concentração, capacidade de desenvolvimento intelectual  
das crianças, da aprendizagem, não é?” (Ent1).  
Paralelamente, Martins (2018) revela que esta exposição frequente nas crianças  
influenciam os seus níveis de concentração em vários contextos da sua vida, como por exemplo  
em contexto escolar, na qual estas registam um baixo nível de concentração na realização das  
tarefas escolares.  
Contudo, estes efeitos não só influenciam o desenvolvimento intelectual, como também  
interferem na saúde mental da mesma, podendo despoletar outras problemáticas associadas.  
“(…) quando são expostas a estas situações ao nível da própria saúde, cada vez vemos mais ou  
constatamos que há crianças com muitas problemáticas ao nível de saúde mental (…)” (Ent1).  
No mesmo sentido, esta exposição afeta igualmente o estabelecimento de relações no  
presente e no futuro, sejam estas afetivas ou de outra natureza, somando à insegurança que daí  
podem sentir, uma vez que interiorizaram a partir da observação que nos relacionamentos o que  
permanece é a insegurança. “Acho que vivenciar uma situação destas em fases anteriores à  
adolescência pode muitas vezes condicionar o tipo de relações de namoro que temos (…)”  
(Ent5).  
545  
Um dos exemplos mais concretos referentes à influência que os efeitos detêm na vida  
dos progenitores destas crianças, é um caso mencionado em que é percetível que os efeitos  
experienciados condicionaram a vida destes e que no presente sentem as situações de violência  
como se fossem ocorridas nos dias de hoje.  
(…) e eu posso dizer já tive aqui a… processos de crianças que os próprios  
pais me contaram que eles próprios foram vítimas de violência, de exposição  
a violência doméstica entre os seus pais, portanto avós das crianças que eu já  
tenho e que… aquilo que me dizem é… é assustador (Ent2).  
iv) Analisar a experiência profissional dos/as técnicos/as da CPCJ em casos de exposição  
das crianças à violência interparental: de forma geral as comissárias afirmaram terem  
experiência em casos com esta problemática. “Sim. Ao longo… da minha atividade profissional  
já tive variadíssimos processos que envolviam crianças que tinham sido expostas a violência  
interparental” (Ent3).  
Considerando a experiência das profissionais entrevistadas, bem como a análise dos  
processos da CPCJ em estudo, poderá concluir-se que a violência interparental é uma  
problemática muito presente. Esta não ganha expressividade apenas na Comissão, como  
Ana Pinto; Eva Chaves; Cristiana Almeida; Mónica Teixeira  
também na comunidade em geral, fazendo com que os casos tenham mais visibilidade. “(…) eu  
quase, quase poderia dizer que é quase 100%, que é quase tudo, não é?… envolve violência  
doméstica, violência interparental aliás (…)” (Ent2).  
Os resultados expostos vão ao encontro das estatísticas do ano de 2022 patentes na Base  
de Dados da CPCJ em estudo, em que consta que a problemática diagnosticada mais presente  
nesta Comissão recai sobre a violência doméstica em praticamente todos os escalões etários  
(compreendidos entre os intervalos de tempo [0-2], [3-5], [6-8], [9-10], [11-14], [15-17] e [18-  
21]). Contudo no escalão etário dos 11-14 anos (vide Gráfico 1) verifica-se que a problemática  
violência doméstica se encontra como a segunda problemática diagnosticada mais presente em  
2022 (com 21 processos instaurados), seguida da problemática comportamentos graves  
antissociais (com 23 processos instaurados), num total de 639 processos instaurados na  
Comissão em questão.  
Gráfico 1: Problemática diagnosticada mais presente em 2022 no escalão etário dos 11-14 anos.  
546  
Fonte: Base de Dados da CPCJ em estudo.  
Comparando os dados apresentados com outras CPCJ’s situadas nos distritos mais a  
norte de Portugal (CPCJ de Braga, CPCJ de Bragança, CPCJ do Porto, CPCJ de Viana do  
Castelo e CPCJ de Vila Real), segundo o Relatório Anual de Avaliação da Atividade das CPCJ  
2022, constata-se que a CPCJ do Porto, apresenta o maior número de processos instaurados  
com a problemática violência doméstica (733 processos instaurados), num total 4 299 processos  
instaurados nas CPCJ’s dos distritos mais a norte do país (Gráfico 2).  
Libertas, Juiz de Fora, v. 24, n. 2, p. 534-552, jul./dez. 2024. ISSN 1980-8518  
Os efeitos da violência interparental nas crianças:  
o olhar de uma comissão de proteção de crianças e jovens (CPCJ) em Portugal  
Gráfico 2: Problemática violência doméstica diagnosticada nas CPCJ's dos distritos da Zona Norte de Portugal em 2022.  
Fonte: Relatório Anual de Avaliação da Atividade das CPCJ 2022.  
No que concerne aos dados registados nas CPCJ’s dos distritos mais a centro do  
território nacional (Gráfico 3) em comparação com as CPCJ’s situadas no distrito do Porto  
(Gráfico 2), conforme o Relatório Anual de Avaliação da Atividade das CPCJ 2022, percebe-  
se que as CPCJ’s no distrito do Porto assinalam um maior número de processos instaurados  
com a problemática violência doméstica do que qualquer CPCJ situada nos distritos mais a  
centro de Portugal em 2022, com um total de 3031 processos instaurados com esta  
problemática.  
Gráfico 3: Problemática violência doméstica diagnosticada nas CPCJ's dos distritos da Zona Centro de Portugal  
em 2022.  
547  
Fonte: Relatório Anual de Avaliação da Atividade das CPCJ 2022.  
Confrontando os dados obtidos das CPCJ’s situadas nos distritos mais a sul do país  
(Gráfico 4) com os dados registados das CPCJ’s localizadas no distrito do Porto (Gráfico 2),  
segundo o Relatório Anual de Avaliação da Atividade das CPCJ 2022, constata-se que as  
CPCJ’s fixadas em Lisboa registam um maior número de processos instaurados com a  
Ana Pinto; Eva Chaves; Cristiana Almeida; Mónica Teixeira  
problemática violência doméstica, num total de 6784 processos instaurados com esta  
problemática, do que qualquer CPCJ instalada no distrito do Porto em 2022.  
Gráfico 4: Problemática violência doméstica diagnosticada nas CPCJ's dos distritos da Zona Sul de Portugal em  
2022.  
Fonte: Relatório Anual de Avaliação da Atividade das CPCJ 2022.  
Assim sendo, a percentagem de processos com a problemática que se encontra a ser  
estudada na CPCJ em análise, varia entre o intervalo de valores 40-70%, segundo as  
entrevistadas. Os valores das estatísticas nacionais apresentados nas figuras acima corroboram  
com a perceção das profissionais entrevistadas, e neste sentido, poder-se-á concluir que de  
facto, a violência doméstica e a violência interparental são uma problemática cada vez mais  
presente.  
548  
Considerações finais  
A questão do impacto da violência interparental tem vindo a merecer uma maior atenção  
pela constatação da presença de elevados níveis e stress em crianças expostas à violência  
interparental (Benetti, 2006). Os estudos nesta área comprovam que a vitimiação direta pode  
ser tão prejudicial quanto a vitimação indireta (e.g., Sani, 1999, 2000, 2002) refletindo-se em  
consequências a curto e/ou longo prazo em várias áreas do desenvolvimento da criança (e.g.,  
Canha, 2002; Kuhlman et al., 2012; Sani; Caprichoso, 2013). Há ainda a crença de que as  
crianças mais novas não são afetadas pela violência (e.g., Davies et al., 2009).  
Através da análise dos dados resultantes das entrevistas realizadas às técnicas  
integrantes na CPCJ em estudo, bem como da análise de dados estatísticos, percebeu-se que a  
violência interparental tem efeitos nefastos para as crianças que experienciam a violência. Os  
resultados deste estudo demonstram que, os principais efeitos são: ao nível psicológico e  
emocional, provocando nas crianças, sentimentos de insegurança e baixa autoestima,  
Libertas, Juiz de Fora, v. 24, n. 2, p. 534-552, jul./dez. 2024. ISSN 1980-8518  
Os efeitos da violência interparental nas crianças:  
o olhar de uma comissão de proteção de crianças e jovens (CPCJ) em Portugal  
interferindo também no seu rendimento escolar. Conclui-se igualmente que existe uma  
“desorganização” das emoções e dificuldades nas relações interpessoais no futuro. Por outro  
lado, constatou-se que os progenitores, atualmente, têm mais consciência sobre os efeitos que  
as situações de violência acarretam, dada a crescente visibilidade do fenómeno pelos órgãos de  
comunicação social. No entanto, as crianças que experienciam a violência tendem a normalizar  
estes padrões, devido à sua proximidade ao paradigma.  
O presente estudo exploratório pretende contribuir para a investigação deste fenómeno,  
atribuindo uma maior visibilidade às consequências da violência interparental, lançando um  
alerta para a comunidade em geral e para os profissionais que trabalham na área.  
Por fim, a violência interparental continua a ser um problema social grave, no entanto,  
com mais visilidade. Considera-se que o crescente interesse científíco no âmbito da violência  
interparental contribui para uma intervenção mais eficaz, que garanta o bem-estar destas  
crianças, ainda assim, importa refletir sobre a adequação dos modelos de intervenção social  
utilizados.  
O estudo aqui apresentado foi encarado, como já foi referido, como um estudo  
exploratório sobre o tema. Apresentou um conjunto de limitações como sejam a análise de  
apenas uma CPCJ da região norte, que se traduziu no envolvimento de um pequeno número de  
participantes. Não obstante, atendendo aos resultados obtidos, reconhece-se a necessidade de  
alargar o campo de análise. Neste sentido, sugere-se que investigações futuras deem  
continuidade a este trabalho, com a recolha de dados junto de CPCJ das restantes NUT’s, que  
possam contribuir para a atualização dos dados disponíveis, para a (re)construção teórica da  
problemática e para a reflexão sobre a mesma na realidade portuguesa.  
549  
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Libertas, Juiz de Fora, v. 24, n. 2, p. 534-552, jul./dez. 2024. ISSN 1980-8518  
Racismo estrutural e encarceramento em massa  
no Brasil  
Structural racism and mass incarceration in Brazil  
Ingrid Medeiros Lustosa Diniz Ribeiro*  
Rosilene Marques Sobrinho de França**  
Resumo: O artigo analisa o papel exercido pelo  
racismo estrutural nos processos de  
encarceramento em massa no Brasil,  
discutindo-se a realidade do sistema prisional,  
tendo como base os relatórios emitidos pelo  
Departamento Penitenciário Nacional, os quais  
demonstram que significativa parcela da  
população carcerária é constituída por pessoas  
pobres, negras e moradoras das periferias  
urbanas. Trata-se de pesquisa quanti-qualitativa,  
tendo como base estudo bibliográfico e  
documental, cujas análises geraram gráficos  
elucidativos acerca do tema. Os resultados do  
trabalho mostraram que a alteração dessa  
realidade requer esforço e mudança com a  
adoção de medidas de desencarceramento e o  
fortalecimento das políticas públicas de saúde,  
educação, previdência social, assistência social,  
moradia e emprego e renda, com a garantia de  
direitos dos diversos segmentos e grupos  
sociais, e o desenvolvimento de ações que  
contribuam para o enfrentamento do racismo  
estrutural, como forma de defesa da democracia  
e da cidadania.  
Abstract: The article analyzes the role played  
by structural racism in the processes of mass  
incarceration in Brazil, discussing the reality of  
the prison system, based on reports issued by  
the National Penitentiary Department, which  
demonstrate that a significant portion of the  
prison population is made up of poor, black  
people and residents of urban peripheries. This  
is quantitative-qualitative research, based on  
bibliographic and documentary studies, whose  
analyzes generated enlightening graphics on the  
topic. The results of the work showed that  
changing this reality requires effort and change  
with the adoption of extrication measures and  
the strengthening of public health, education,  
social security, social assistance, housing and  
employment and income policies, with the  
guarantee of the rights of various social  
segments and groups, and the development of  
actions that contribute to confronting structural  
racism, as a way of defending democracy and  
citizenship.  
Palavras-chaves:  
Racismo  
estrutural;  
Keywords:  
Structural  
racism;  
Mass  
Encarceramento em massa; Cidadania.  
incarceration; Citizenship.  
*
Advogada. Graduação em Direito pela Universidade Federal do Piauí (UFPI). Especialista em Direito Tributário  
pelo Instituto Brasileiro de Estudos Tributários. Mestre em Direito pela Universidade Federal do Maranhão  
(UFMA); Doutoranda em Políticas Públicas na UFPI. Professora Efetiva do Curso de Bacharelado em Direito da  
Universidade Estadual do Piauí (UESPI). ORCID: https://orcid.org/0000-0002-9216-4867  
** Assistente Social. Pós-doutora em Serviço Social pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul  
(PUCRS). Mestre e Doutora em Políticas Públicas (UFPI). Professora Adjunta II do Departamento de Serviço  
Social da Universidade Federal do Piauí (UFPI) e do Programa de Pós-Graduação em Políticas Públicas (UFPI).  
Graduação em Serviço Social; Bacharel em Direito; Licenciatura Plena em História. ORCID:  
DOI: 10.34019/1980-8518.2024.v24.45204  
Esta obra está licenciada sob os termos  
Recebido em: 10/07/2024  
Aprovado em: 21/11/2024  
Ingrid Medeiros Lustosa Diniz Ribeiro; Rosilene Marques Sobrinho de França  
Introdução  
A história da formação social e econômica do Brasil carrega consigo a dependência,  
fruto da constituição inicialmente de colônia vinculada a uma metrópole que já seguia as  
diretrizes mundiais instauradas pelo mercantilismo, e que permaneceu com a mesma  
dependência, com a alteração das relações de produção para os moldes do capitalismo, esta  
estrutura de sociedade tem por alicerce fundante ainda o escravismo e a superexploração do  
trabalho já à época de uma população pobre, negra e periférica.  
Nesse contexto, o “[...] Estado burguês instaurado no Brasil historicamente teve um  
caráter autoritário, com a permanência de estruturas de desigualdades que articulam  
explorações e opressões” (França, 2023, p. 2), com a constituição de um arcabouço institucional  
“que ganha uma relevante instrumentalidade, como forma de controle social de segmentos e  
grupos sociais” (França, 2022, p. 3).  
Ao analisar o contexto sócio-histórico é importante destacar que “as senzalas do período  
escravocrata e os trabalhos forçados e sem quaisquer remunerações foram os mecanismos de  
dominação e controle da população negra utilizados à época”, sendo que, na atualidade,  
“guardadas as devidas proporções e particularidades, as unidades prisionais cumprem essa  
terrível função” (Vila Nova, 2019, p. 25).  
Atualmente o Brasil ocupa a terceira posição a nível global em relação ao número de  
pessoas encarceradas, constituindo uma população carcerária formada majoritariamente por  
pessoas negras, pardas, jovens e pobres, conforme mostram os relatórios emitidos pelo  
Departamento Penitenciário Nacional entre os anos de 2018 a 2022. Discutir o fim das prisões  
e as políticas de desencarceramento para grande parcela da população é algo ilusório, e os que  
o fazem são considerados com “[...] hipóteses pouco realistas e impraticáveis, e na pior delas,  
ilusórias e tolas” (Davis, 2018, p. 10).  
554  
A construção mental, cultural e histórica de constituição das prisões como instrumentos  
eficientes de repressão e prevenção ao crime permitiu a justificação e utilização do sistema  
prisional como um disciplinador de uma sociedade meritocrática que “[...] estabelece o controle  
carcerário da pobreza e estigmatizando jovens negros, cuja inserção em esquemas de trabalho  
altamente precarizados e até mesmo a eliminação física serão visto com “normalidade” por  
parte significativa da sociedade” (Almeida, 2016, p. 758).  
Nesse cenário, se faz determinante analisar a formação social, política e econômica  
brasileira à luz do papel exercido pelo racismo, como arcabouço e modo de manutenção dos  
sistemas de opressão e controle neste país, que pode deve ser definido como estrutural, cuja  
construção “atravessa o tempo e acompanha o desenvolvimento e as transformações históricas  
Libertas, Juiz de Fora, v. 24, n. 2, p. 553-569, jul./dez. 2024. ISSN 1980-8518  
Racismo estrutural e encarceramento em massa no Brasil  
da sociedade brasileira” (Borges, 2019, p. 41). Considerando os aspectos políticos, econômicos  
e sociais que contribuem para a instauração de uma racionalidade que se replica nas relações  
sociais e institucionais, o racismo apresenta-se a partir de uma perspectiva estrutural e  
estruturante das relações sociais. Tais reflexões são necessárias, pois permitem “[...] afastar  
análises superficiais ou reducionistas sobre a questão racial, que além de não contribuírem para  
o entendimento do problema, dificultam em muito o combate ao racismo” (Almeida, 2018, p.  
39).  
As medidas regressivas e repressivas adotadas sob o viés econômico do capitalismo  
neoliberal têm proporcionado uma ênfase nos processos de encarceramento como instrumento  
de repressão do Estado e como mecanismo de promoção de seletividade penal, que tem como  
objetivos, além de segregar uma parcela significativa da população brasileira, realizar a  
marginalização da pobreza e o controle dos/as trabalhadores/as neste país, contribuindo ainda  
para a manutenção das bases do neoliberalismo no Brasil, e a manutenção das estruturas de  
desigualdades vivenciadas desde o colonialismo.  
Ressalta-se ainda a necessidade de desconstrução das estruturas de dominação e de  
opressão, considerando que as “[...] formas de contenção e de controle do Estado sobre a  
população negra foram se metamorfoseando e se aperfeiçoando ao longo dos tempos, tendo  
sempre ao seu lado grandes aliados intelectuais que construíram narrativas de uma suposta  
democracia racial entre brancos, índios e negros [...] (Vila Nova, 2019, p. 16), quando se sabe  
pelas análises dos dados de relatórios do sistema prisional do Brasil que este tipo de democracia  
inexiste.  
555  
O presente artigo tem como base o estudo bibliográfico e documental, seguindo uma  
metodologia quanti-qualitativa, cujas análises geraram gráficos elucidativos acerca do tema.  
Tem por objetivo principal a análise da formação social brasileira, com um recorte  
metodológico acerca da configuração do racismo no Brasil e os seus impactos nas políticas de  
encarceramento em massa no país.  
Para atingir tal finalidade, o trabalho está dividido em duas seções. A primeira tem por  
foco analisar o racismo estrutural que se expressa nas relações sociais e institucionais no Brasil.  
Para isto, examina o percurso histórico da construção do mesmo desde a formação social  
escravocrata e as bases do sistema hetero-patriarcal-racista-capitalista e seus impactos nas  
desigualdades sociais existentes no país. A segunda e última seção se propõe a uma análise  
acerca do encarceramento no Brasil, com discussões sobre o racismo e seus desdobramentos  
junto à população negra, pobre e periférica, tendo como base a história do cárcere como  
instrumento de opressão e controle por parte do Estado.  
Ingrid Medeiros Lustosa Diniz Ribeiro; Rosilene Marques Sobrinho de França  
O racismo como estruturante das desigualdades sociais no Brasil  
Abordar a temática do racismo articulada à desigualdade social demanda uma análise  
sócio-histórica com ênfase nos aspectos que contribuíram para a formação das bases do  
colonialismo e do escravismo, e como estas se fazem presentes a partir das desigualdades que  
são reafirmadas na ordem societária do capital. Tal perspectiva se faz ainda pertinente partindo-  
se do pensamento de Silvio Almeida (2018, p. 15) quando este afirma que “[...] o racismo é  
sempre estrutural, ou seja, de que ele é um elemento que integra a organização econômica e  
política da sociedade”.  
O Brasil é um país de economia dependente e periférica, que tem como base um projeto  
de nação classista e racista, cujos paradigmas ensejaram a formação do racismo e de outras  
estruturas de desigualdades que se coadunam com o “[...] sentido, a lógica e a tecnologia para  
as formas de desigualdade e violência que moldam a vida social contemporânea” (Almeida,  
2018, p. 16).  
Tal configuração tem uma trajetória sócio-histórica desde o nascimento e da criação  
geográfica da atual América Latina “forjada no calor da expansão comercial promovida no  
século 16 pelo capitalismo nascente, a América Latina se desenvolve em estreita consonância  
com a dinâmica do capitalismo internacional” (Traspadini, 2005, p. 140).  
O colonialismo e o escravismo implantados na América Latina e no Brasil têm sua  
origem vinculada à política mercantilista e foram utilizados como mecanismos para a  
acumulação de capitais na Europa. Nesse sentido, Octavio Ianni afirma que:  
556  
Foi o capital comercial que comandou a consolidação e a generalização do  
trabalho compulsório no Novo Mundo. Toda formação social escravista dessa  
área estava vinculada, de maneira determinante, ao comércio de prata, ouro,  
fumo, açúcar, algodão e outros produtos coloniais. Esses fenômenos,  
protegidos pela ação do Estado e combinados com os progressos da divisão  
do trabalho social e da tecnologia, constituíram, em conjunto, as condições da  
transição para o modo capitalista de produção. Assim, para compreender em  
que medida o mercantilismo “prepara” o capitalismo, é necessário que a  
análise se detenha nos desenvolvimentos das forças produtivas e das relações  
de produção (Ianni, 1978, p. 6).  
Ianni (1978) assevera ainda que articuladas a estas relações de produção em relação a  
construção social do trabalho forçado ou compulsório, mesmo que em conjunturas e condições  
particulares variáveis a cada colônia e metrópole dominante, foram determinantes na realização  
do mercantilismo, e posteriormente, na efetivação do modo de produção capitalista.  
É nesta linha de entendimento que Marini (Traspadini, 2005) confirma o papel de  
dependência da América Latina no cenário internacional, que é entendida como uma “relação  
de subordinação entre nações formalmente dependentes, em cujo marco as relações de produção  
Libertas, Juiz de Fora, v. 24, n. 2, p. 553-569, jul./dez. 2024. ISSN 1980-8518  
Racismo estrutural e encarceramento em massa no Brasil  
das nações independentes são modificadas ou recriadas para assegurar a reprodução ampliada  
da dependência” (Traspadini, 2005, p. 141).  
Tal dependência traz a gênese da história colonial brasileira, conhecido como o país  
fornecedor de “[...] açúcar, tabaco, alguns outros gêneros, mais tarde ouro e diamantes; depois  
algodão e em seguida café, para o comércio europeu.” (Prado Junior, 1981, p. 25-26), a  
prioridade é a manutenção do comércio e da sua estrutura social, econômica e política da  
Europa, ingressando o Brasil assim na lógica de país dependente. Esta estrutura social, política  
e principalmente econômica fundada na negociação exclusiva entre colônia e metrópole era  
considerada como um instrumento essencial “[...] através do qual se processava o ajustamento  
da expansão colonizadora aos processos de economia e da sociedade europeias em transição  
para o capitalismo integral.” (Novais, 1989, p. 72).  
Necessário ponderar que a relação entre colônia subordinada e metrópole dominante, e  
entre excedente de exportação de produtos da colônia e importação de produtos da metrópole,  
possuía como ponto de sustentação o escravismo e o trabalho compulsório. Nesse contexto, “as  
formações sociais escravistas tornaram-se organizações político econômicas altamente  
articuladas, com os seus centros de poder, princípios e procedimentos de mando e execução,  
técnicas de controle e repressão” (Ianni, 1978, p.13). A compreensão desta estrutura de ordem  
social, se faz pertinente para entender o processo de formação e evolução das várias fases do  
capitalismo, que transpassou o mercantilismo, utilizando-se do colonialismo como impulso  
propulsor, até culminar com o capitalismo moderno, como assevera Fernando Novais:  
557  
Ocupação, povoamento e valorização econômica das novas áreas se  
desenvolve nos quadros do capitalismo comercial do Antigo Regime, em  
função dos mecanismos e ajustamentos dessa fase de formação do capitalismo  
moderno; no fundo e no essencial, a expansão europeia, mercantil e colonial,  
processava-se segundo um impulso fundamental, gerado nas tensões oriundas  
na transição para o capitalismo industrial: acelerar a primitiva acumulação  
capitalista é pois o sentido do movimento, não presente em todas as suas  
manifestações, mas imanente em todo o processo (Novais, 1989, p. 92).  
Assim, a situação dos países daAmérica Latina, com ênfase no Brasil colônia era apenas  
uma fase no intenso processo de formação da sociedade capitalista, tendo por objeto a formação  
da sociedade burguesa europeia, e que para “[...] isto obrigava as economias coloniais a se  
organizarem de modo a permitir o funcionamento do sistema de exploração colonial, o que  
impunha a adoção de formas de trabalho compulsório ou na sua forma limite, o escravismo”  
(Novais, 1989, p. 97).  
Cientes da importância do escravismo no contexto de formação da conjuntura social e  
econômica no Brasil, é necessário que se entenda os estágios deste modelo, que impactam em  
Ingrid Medeiros Lustosa Diniz Ribeiro; Rosilene Marques Sobrinho de França  
toda a história de desigualdades no país. Neste sentido Clóvis Moura (1994) define tais estágios  
para a análise do escravismo no Brasil, subdividindo-o em escravismo pleno, que se estende  
desde a criação da Colônia até 1850, e o escravismo tardio, que se mescla com o primeiro e tem  
sua extensão de 1551 a 1888. Esta conjuntura permite uma análise da evolução da formação  
social brasileira, mais precisamente, do desenvolvimento do modo de produção escravista que,  
como “[...] unidade produtora, tinha de estabelecer mecanismos de funcionamento e defesa  
capazes de fazê-la justificável econômica, social e politicamente. Isto exigia uma racionalidade  
interna do escravismo” (Moura, 1994, p. 22).  
A definição dos estágios do escravismo apresentada por Moura (1994) traz consigo a  
raiz da estruturação da hierarquização social e racial no país, tendo como base a primeira fase,  
do escravismo pleno, com a fixação dos principais grupos sociais dominantes no país,  
constituídos pelos proprietários de terras, tendo em vista ainda que “[...] os demais segmentos,  
grupos, instituições, autoridades e mesmo parcelas de trabalhadores livres estavam, direta ou  
indiretamente a ele subordinados” (Moura, 1994, p. 34).  
Nesse contexto, o modo de produção escravista era “[...] uma unidade econômica que  
somente poderia sobreviver com e para o mercado mundial, mas, por outro lado, esse mercado  
somente podia dinamizar o seu papel de comprador e acumulador de capitais se aqui existisse,  
como condição indispensável, o modo de produção escravista” (Moura, 1994, p. 38). Assim,  
consolidava-se a racionalidade do sistema, e com ele a efetivação das diversas formas de  
coerção dos segmentos sociais subordinados no país. Neste sentido afirma Clóvis Moura:  
558  
Dissemos que somente a escravidão era a forma de trabalho adequada ao  
sistema colonial porque somente ela, através da exploração econômica e  
extraeconômica do trabalhador, com um nível de coerção social despótico e  
constante, poderia extrair o volume de produção que fizesse com que esse  
empreendimento fosse compensador. O montante de investimentos e a  
sustentação de uma camada improdutiva (inclusive escrava) levada a que  
somente com o trabalho escravo houvesse a possibilidade de lucros  
compensadores, quer para o vendedor, quer para o comprador (Moura, 1994,  
p. 39).  
A última fase exposta pelo autor no que tange ao escravismo no Brasil refere-se à  
existência de um escravismo tardio, contexto em que são produzidas as bases do capitalismo,  
ou seja, há neste lapso temporal uma atualização do modo de produção e com ele a  
modernização das estruturas.  
Nesse contexto, tem-se um processo de modernização do país, tendo como base uma  
perspectiva higienista e eugenista a partir do final do século XIX “quando um avanço  
tecnológico, científico e econômico revolucionava as relações sociais nos principais países da  
Libertas, Juiz de Fora, v. 24, n. 2, p. 553-569, jul./dez. 2024. ISSN 1980-8518  
Racismo estrutural e encarceramento em massa no Brasil  
Europa e Estados Unidos, com repercussão da área periférica, esses novos recursos  
tecnológicos e científicos eram aplicados em um país ainda escravista” (Moura, 1994, p. 53).  
No entanto, tal antagonismo já se encontra instalado na formação social e econômica  
brasileira desde o século XVIII, porém, não se deve perder de vista que “[...] desde o século  
XVI ao XIX os movimentos, as articulações e as rearticulações, internos e externos, das  
formações sociais escravistas nas Américas e Antilhas são influenciados e mesmo determinados  
[...] pelas exigências da reprodução do capital europeu; [...]” (Ianni, 1978, p.17), inicialmente  
vinculado a uma realidade mercantilista e, posteriormente, ao capitalismo, tendo como base a  
Revolução Industrial iniciada na Inglaterra, com importantes desdobramentos nas colônias  
existentes na América Latina.  
Ressalta-se que cada realidade possuía um contexto próprio, mas que se encontravam  
impactados pelo mesmo objetivo, qual seja os desejos e anseios do mercado mundial. Assim,  
assevera Ianni (1978):  
Apesar dessas peculiaridades, é inegável que em todos os casos o capitalismo  
inglês desempenhou um papel importante no conjunto do processo da abolição  
das formas de trabalho compulsório. Nas Américas e Antilhas, a escravidão  
sofreu o bloqueio combinado das seguintes condições: o monopólio colonial  
se tornara inconveniente para o desenvolvimento do comércio inglês, agora  
comandado pela produção industrial. O capitalismo inglês exigia a quebra das  
prerrogativas e exclusivismos coloniais herdados do mercantilismo. Quando  
a produção industrial se tornou o núcleo do processo de acumulação, a esfera  
da comercialização precisou subordinar-se às exigências da produção. Isto é,  
o comércio de matérias-primas e manufaturas passou a ser comandado pelas  
exigências da reprodução do capital na esfera da produção. Daí porque a  
Inglaterra passou a combater a escravidão em suas próprias colônias (Ianni,  
1978, p. 22-23).  
559  
As demandas advindas da Revolução Industrial inglesa e o desenvolvimento do  
capitalismo na Europa apresentaram como desdobramentos políticas que progressivamente  
forçaram o fim do tráfico de africanos/as escravizados/as para a América Latina e o Brasil.  
Assim, “pouco a pouco, a partir dos anos de 1850, foram-se delineando os contornos das duas  
formações sociais diversas e progressivamente antagônicas: a escravista, cada vez menos  
dinâmica e a capitalista, ganhando dinamismo crescente” (Ianni, 1978, p. 25), o que levou a  
duas alterações conjuntas: a Abolição formal da Escravatura em 1888 e a Proclamação da  
República em 1889.  
Por outro lado, a difusão das ideias liberais e o modelo de nação branca, elitista e racista  
adotado pelo Estado brasileiro, ensejaram o desenvolvimento de políticas higienistas, eugênicas  
e repressivas nos processos de modernização, com incentivo a imigração de mão de obra de  
pessoas brancas para ocupação dos postos de trabalho.  
Ingrid Medeiros Lustosa Diniz Ribeiro; Rosilene Marques Sobrinho de França  
Em conformidade com Sílvio Almeida (2018), a ideia de raça se opera a partir de dois  
registros básicos: “como característica biológica, em que a identidade racial será atribuída por  
algum traço físico, como a cor da pele”; e como “característica étnico-cultural, em que a  
identidade será associada à origem geográfica, à religião, à língua ou outros costumes, ‘a uma  
certa forma de existir’” [...] (Almeida, 2018, p. 24). Os referidos contextos políticos,  
econômicos e sociais forjaram as desigualdades que se ancoram no sistema hetero-patriarcal-  
racista-capitalista histórica e socialmente construído na realidade brasileira. É neste sentido  
que foram instituídas, desde os primórdios na formação social brasileira, as diferenças entre  
brancos, negros e mulatos, estes últimos como subordinados aos primeiros.  
É no contexto da definição de raça que se baseia o racismo no Brasil, “que se materializa  
como discriminação racial – é definido pelo seu caráter sistêmico [...] de um processo de  
condições de subalternidade e de privilégio que se distribuem entre grupos raciais e se  
reproduzem nos âmbitos da política, da economia e das relações cotidianas” (Almeida, 2018,  
p. 27). Em outras palavras, houve uma construção sociológica, moral e empírica de que “[...] o  
negro aparece como um problema para o branco [...]” (Ianni, 1978, p. 52).  
Toda a construção e formação da sociedade brasileira e das várias fases que passou em  
seu viés econômico relaciona diretamente o capitalismo e o escravismo, ao racismo e suas  
práticas de exclusão a nível mundial, com a existência inicialmente do escravismo mesmo em  
países “[...] ditos desenvolvidos e civilizados onde predomina o trabalho assalariado” (Almeida,  
2016, p. 761), mas principalmente no contexto brasileiro está relação é ainda mais perene, em  
que a categorização e uso da mão de obra pelo capitalismo é ainda mais visível, e que a lógica  
capitalista “[...] mescla uso da força e a reprodução da ideologia a fim de realizar a domesticação  
dos corpos entregues indistintamente ao trabalho abstrato” (Almeida, 2016, p. 761), sendo o  
racismo um dos mecanismos e elemento de normalização das ações e atividades do modo de  
produção capitalista, “[...] assim é que o racismo se conecta à subsunção real do trabalho ao  
capital, uma vez que a identidade será definida segundo os padrões de funcionamento da  
produção capitalista” (Almeida, 2016, p. 761).  
560  
Na realidade concreta, essa construção fundamenta e legitima as inúmeras práticas  
racistas na ordem social, considerando que o racismo é estrutural e estruturante das relações  
sociais e institucionais.  
Em resumo: o racismo é uma decorrência da própria estrutura social, ou seja,  
do modo “normal” com que se constituem as relações políticas, econômicas,  
jurídicas e até familiares, não sendo uma patologia social e nem um desarranjo  
institucional. O racismo é estrutural. Comportamentos individuais e processos  
institucionais são derivados de uma sociedade cujo racismo é regra e não  
exceção. O racismo é parte de um processo social que “ocorre pelas costas dos  
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Racismo estrutural e encarceramento em massa no Brasil  
indivíduos e lhes parece legado pela tradição”. Nesse caso, além de medidas  
que coíbam o racismo individual e institucional, torna-se imperativo refletir  
sobre mudanças profundas nas relações sociais, políticas e econômicas. [...] O  
racismo se expressa concretamente como desigualdade política, econômica e  
jurídica (Almeida, 2018, p. 38-39).  
Nesta conjuntura, o racismo estrutural reafirma e reproduz as desigualdades  
historicamente construídas, que podem ser constatadas em “dados estatísticos e quantificada  
matematicamente, mas sua explicação está na compreensão da sociedade e de seus inúmeros  
conflitos” (Almeida, 2018, p. 121). Nesse contexto, a “[...] a raça é um marcador determinante  
da desigualdade econômica”, e os “direitos sociais e políticas universais de combate à pobreza  
e distribuição de renda que não levem em conta o fator raça/cor mostram-se pouco efetivas”  
(Almeida, 2018, p. 122).  
[...] o fato de atribuírem a desigualdade racial e de gênero das relações de  
trabalho a falhas de mercado, ou seja, à insuficiência de informações  
disponíveis aos agentes econômicos ou à existência de obstáculos políticos ou  
jurídicos que impedem a tomada de decisões racionais destes mesmos agentes.  
O excesso de intervenção do Estado, leis limitadoras da liberdade contratual e  
educação insuficiente seriam os reais motivos da ignorância que levaria a  
práticas discriminatórias (Almeida, 2018, p. 128-129).  
Cabe destacar que o racismo é estrutural e não deve ser abordado como um aspecto  
comportamental (Almeida, 2018, p. 129). No capitalismo neoliberal as práticas racistas têm  
reafirmado e aprofundado as desigualdades histórica e socialmente construídas, notadamente  
diante da retração do Estado na oferta de políticas públicas. “Portanto, não é o racismo estranho  
à formação social de qualquer Estado capitalista, mas um fato estrutural, que organiza as  
relações políticas e econômicas” (Almeida, 2016, p. 763).  
561  
Como exemplo das multifaces do racismo, pode-se citar o fato da “[...] maioria das  
pessoas negras ganharem salários menores, submeterem-se aos trabalhos mais degradantes, não  
estarem nas universidades importantes, não ocuparem cargos de direção, residirem nas áreas  
periféricas nas cidades e serem com frequência assassinadas pelas forças do Estado” (Almeida,  
2018, p. 142), acrescentando-se a estes, cabe destacar que a maioria da população carcerária é  
formada por pessoas negras, pobres e periféricas.  
Seletividade penal e encarceramento em massa no Brasil  
A construção do racismo efetivou-se no bojo do capitalismo a partir do projeto de  
nação branca, classista, racista, machista e sexista instaurado no Brasil, cujas expressões  
apresentam-se na atualidade nas relações sociais e institucionais, a partir de processos de  
seletividade que afetam, sobretudo, pessoas negras, jovens, pobres e periféricas.  
Ingrid Medeiros Lustosa Diniz Ribeiro; Rosilene Marques Sobrinho de França  
Nesse contexto, o cárcere se constitui em “uma aparelhagem para tornar os indivíduos  
dóceis e úteis, através de um trabalho preciso sobre seu corpo[...] (Foucault, 1987, p. 132), ou  
seja, desde a sua constituição o cárcere foi posto como um efetivo meio de exercício do controle,  
de flagelação, mas principalmente de disciplinamento da mão de obra, inicialmente  
escravizada, e, posteriormente livre.  
A história do cárcere no Brasil está articulada à situação política da colônia, na qual as  
legislações penais eram as mesmas de sua metrópole, sendo que as “Ordenações Filipinas foram  
introduzidas em 1604 e vigoraram até 1830” (Almeida, 2014, p. 1). Foram tais ordenações que  
regeram “a racionalidade punitiva no Brasil durante todo o período colonial” (Motta, 2011, p.  
13), estendendo-se até o fim do Primeiro Reinando, visto que o Código Criminal do Império  
foi criado em 1830.  
O Código Imperial era marcado por penas duras, aflitivas e que tinha o corpo e sua  
flagelação como centro e objeto, porque “trata-se de uma sociedade que ao mesmo tempo  
castiga o corpo e exila” (Motta, 2011, p. 14). No referido contexto, as unidades prisionais  
“buscavam a reprodução integral ou parcial do modelo arquitetônico panóptico e o sistema  
adotado era uma forma híbrida dos sistemas de Filadélfia e Albor [...]” (Almeida, 2014, p. 2),  
considerando que se tratava de uma legislação que se ancorava na concepção dos códigos  
modernos, que tinham como base “a pena de prisão com trabalho, destacando o duplo objetivo  
de reprimir e reabilitar” (Almeida, 2014, p. 2).  
562  
Foi a partir do Código Imperial que se iniciou efetivamente a construção de uma “Casa  
de Correção”, vista como uma “obra de tanta importância e que representou a implantação do  
moderno sistema penitenciário no Brasil” (Almeida, 2014, p. 5). Nesse sentido, a “instauração  
de uma nova ordem carcerária, consagrada no Código Penal”, estabeleceu a prisão “como sua  
pena principal” (Motta, 2011, p. 104).  
O objetivo da iniciativa era “tornar o império civilizado, manter a ordem pública,  
reprimir a mendicidade e, principalmente, erradicar o ‘vício’ da vadiagem transformando os  
detentos em ‘pobres de bons costumes’” (Almeida, 2014, p. 6). Nesse sentido, visualiza-se nos  
objetivos centrais das primeiras prisões no Brasil o que se verificaria a longo prazo na sociedade  
moderna e no capitalismo neoliberal: a utilização do encarceramento como mecanismo de  
controle da pobreza e marginalização das classes menos favorecidas.  
A construção do cárcere no Império brasileiro enfrentou muitas dificuldades quanto à  
uniformização dos procedimentos e à manutenção das prisões (Almeida, 2014). Tais  
conjunturas se mantiveram mesmo após a proclamação da República em 1889, o que levou à  
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Racismo estrutural e encarceramento em massa no Brasil  
situação de extrema precariedade do sistema prisional no país, tendo em vista a superlotação  
do mesmo, culminando em uma reforma do sistema penitenciário no final do século XIX.  
Alinhados a estas condutas do Estado para contenção e disciplinamento da população  
subalternizada e explorada encontravam-se discursos científicos, cujo conteúdo referiam-se a  
“[...] uma suposta inferioridade do negro brasileiro e sua inclinação para o crime, que tiveram  
eco nas instâncias de poder e, especialmente, nas de ‘segurança’ e ‘manutenção da ordem’”,  
remetendo ao “estabelecimento de normas e regulamentos que tinham como foco principal a  
disciplina, a contenção e o controle da população negra recém ‘liberta’” (Vila Nova, 2019, p.  
17).  
Esta tendência de marginalização da população negra a partir de processos de  
seletividade estendeu-se ao contexto político do ano de 1933, que influenciou, sobremaneira, o  
aumento do número de pessoas encarceradas, contexto em que “a polícia agia como braço  
político repressivo” (Almeida, 2014, p. 16), e o número de presos nas casas de detenção  
aumentava de forma desordenada, haja vista que “a superlotação das prisões e as péssimas  
condições de habitação eram comuns, bem como também a perda das referências de civilidade  
entre os presos” (Almeida, 2014, p. 17).  
Durante o Estado Novo tem-se a formalização de um Plano Penitenciário Nacional que,  
segundo Almeida (2014), permitiu a realização de grandes obras e construção de novas  
unidades prisionais, além de reforma nas existentes.  
563  
Os anos subsequentes não mudaram a realidade do sistema penitenciário brasileiro,  
comprovando-se “a tese de que o sistema penal deve curar e reformar a prisão no Brasil, com  
presídios supersaturados, rebeliões, massacres, local de redes e planos urdidos por bandos e  
quadrilhas, tem um uso social mais do que se encontra em crise” (Motta, 2011, p. 352).  
As desigualdades supracitadas têm a suas bases no racismo estrutural, que teve sua  
racionalidade inserida na vida cotidiana, nas tratativas econômicas, políticas e na criação de  
legislações utilizadas para legitimar os processos de encarceramento de pessoas pobres, negras  
e moradoras das periferias urbanas, mudando-se então a concepção de senzalas para unidades  
prisionais, em uma atualização do modo de discriminação e disciplinamento da pessoa negra.  
Assim, assevera Vila Nova (2019):  
Se atualizarmos essas discussões, poderíamos comparar as senzalas com as  
unidades prisionais da contemporaneidade e o arcabouço legal que fora  
instituído desde o pós-abolição, e mesmo as de antes, até a atualidade, como  
mecanismos para manutenção desse grupo populacional sob controle. Já que  
não era possível mais o controle por meio da escravização e suas diversas  
configurações, então foram utilizados instrumentos legais que pudessem dar  
conta dessa dominação, dentro da “legalidade” (Vila Nova, 2019, p. 26).  
Ingrid Medeiros Lustosa Diniz Ribeiro; Rosilene Marques Sobrinho de França  
Coexistem na sociedade brasileira “[...] o discurso e políticas de que negros são  
indivíduos pelos quais deve se nutrir medo e, portanto, sujeitos à repressão. A sociedade,  
imbuída de medo por esse discurso e pano de fundo ideológico, corrobora e incentiva a  
violência, a tortura, as prisões e o genocídio” (Borges, 2019, p. 41). É a partir destes  
argumentos, defendidos, verbalizados e replicados que se materializa a punição e se define o  
perfil da pessoa encarcerada no Brasil, tendo como base a seletividade penal e a repressão  
exacerbada aos segmentos e grupos sociais historicamente subalternizados.  
A tendência a penalização, pode ser vista e considerada como parte de uma cultura do  
medo, algo que passou a ser natural, mas também uma questão em que “[...] há relutância em  
enfrentar a realidade que se esconde nas prisões, medo de pensar no que acontece dentro delas.  
Dessa maneira o cárcere está presente em nossa vida, e ao mesmo tempo, está ausente de nossa  
vida” (Davis, 2018, p. 14). Ocorre que, com o aumento exacerbado de pessoas encarceradas  
iniciou-se discussões acerca das condições prisionais e do número cada vez mais crescente de  
pessoas presas. No entanto, “[...] a maior flexibilidade que permitiu a discussão crítica dos  
problemas associados à expansão das prisões também restringe essa discussão à questão da  
reforma prisional” (Davis, 2018, p. 18), são tendências neste sentido que precisam ser  
combatidas em favor de estratégias e debates sobre o desencarceramento.  
O desencarceramento para atender aos fins que almeja precisa ser uma tendência global  
de atuação, pois a adoção desta medida precisa seguir estratégias que abranjam a educação,  
saúde e a completude do indivíduo, dentre estas com a realização da “[...] desmilitarização das  
escolas, a revitalização da educação em todos os níveis, um sistema de saúde que ofereça  
atendimento físico e mental gratuito para todos e um sistema de justiça baseado na reparação e  
na reconciliação em vez de na punição e na retaliação” (Davis, 2018, p. 88).  
564  
Necessário até mesmo para compreensão das possibilidades de desencarceramento se  
entender o ponto de partida da atual conjuntura prisional brasileira e do processo de  
encarceramento que vivência o país, que ao analisar os dados estatísticos dos relatórios emitidos  
pelo Departamento Penitenciário Nacional (DEPEN), a partir dos sistemas de acompanhamento  
da execução das penas, da prisão cautelar e da medida de segurança entre os anos de 2018 a  
2022, percebe-se a efetivação das políticas seletivas de encarceramento. Nesta perspectiva,  
leva-se em consideração os dados que demonstram os números absolutos de pessoas  
encarceradas, comparando-os com recortes trazidos pelos relatórios, no que se refere às  
informações sobre faixa etária da pessoa encarcerada, bem como de cor/raça/etnia, e, por fim,  
o grau de instrução delas.  
Libertas, Juiz de Fora, v. 24, n. 2, p. 553-569, jul./dez. 2024. ISSN 1980-8518  
Racismo estrutural e encarceramento em massa no Brasil  
Assim, verifica-se que, no ano de 2018 a população carcerária era de 744.216 (Brasil,  
2018); em 2019 de 755.274 (Brasil, 2019); no ano de 2020 de 811.707 (Brasil, 2020); em 2021  
833.176 (Brasil, 2021) e, por fim, de 832.295 pessoas no ano de 2022 (Brasil, 2022). Ao se  
analisar os dados expostos em números absolutos, percebe-se o aumento ano a ano no número  
de pessoas encarceradas, existindo um aumento exponencial no ano de 2020, e uma redução,  
em um ritmo menor de crescimento, nos anos de 2021 e 2022, anos estes correspondentes ao  
período da pandemia Covid-19.  
Gráfico 1 - Comparativo da população carcerária jovem (18 a 29 anos) em relação ao total geral de pessoas  
encarceradas.  
44,32%  
44,36%  
39,55%  
37,71%  
36,54%  
565  
2018  
2019  
2020  
2021  
2022  
Fonte: Autoria própria (2024), com base nos dados do Departamento Penitenciário Nacional (Brasil, 2018-2022).  
O gráfico 1 mostra que no que se refere à faixa etária de pessoas encarceradas, a maioria  
é constituída por jovens com idade entre 18 a 24 anos e com 25 a 29 anos. Por outro lado,  
verifica-se que em todos os anos o percentual de jovens é sempre superior a 35% se comparado  
a todas as faixas etárias de pessoas encarceradas; ao se realizar uma média simples entre os  
anos de 2018 a 2022, esta média torna-se superior a 40% de pessoas jovens encarceradas.  
Ingrid Medeiros Lustosa Diniz Ribeiro; Rosilene Marques Sobrinho de França  
Gráfico 2 Percentual de pessoas brancas e negras em privação de liberdade em relação ao total da população  
encarcerada – período 2018-2022.  
70%  
60%  
58,09%  
50%  
40%  
30%  
20%  
10%  
0%  
53,70%  
53,11%  
52,41%  
51,99%  
28,13%  
26,71%  
24,80%  
23,89%  
23,68%  
2018  
% DA POPULAÇÃO CARCERÁRIA BRANCA EM RELAÇÃO AO TOTAL GERAL  
% DA POPULAÇÃO CARCERÁRIA NEGRA OU PARDA EM RELAÇÃO AO TOTAL GERAL  
2019  
2020  
2021  
2022  
Fonte: Autoria própria (2024), com base nos dados do Departamento Penitenciário Nacional (Brasil, 2018-2022).  
O gráfico 2 mostra que quanto à raça/etnia, realizando uma comparação entre o número  
de pessoas brancas em relação ao de pessoas pretas e pardas, verifica-se a total discrepância  
entre eles, visto que em todos os anos o número de negros e pardos é superior ao número de  
brancos, sendo que em alguns anos o número de pessoas pretas e pardas corresponde ao dobro,  
se comparado ao número de pessoas brancas. Ao realizar a análise em relação ao número total  
de pessoas encarceradas, a situação é ainda mais alarmante, tendo em vista que em todos os  
anos estudados o percentual de pessoas negras e pardas é superior a 50% em relação ao total  
geral de pessoas encarceradas.  
566  
Gráfico 3 - Número de pessoas encarceradas analfabetas e com ensino fundamental incompleto em relação ao  
total geral - período 2018-2022.  
43,40%  
42,54%  
40,67%  
40,19%  
39,76%  
2018  
2019  
2020  
2021  
2022  
Fonte: Autoria própria (2024), com base nos dados do Departamento Penitenciário Nacional (Brasil, 2018-2022).  
O quadro 3 mostra que quanto ao grau de instrução da população privada de liberdade  
o número de pessoas analfabetas e/ou com ensino fundamental incompleto apresentou-se  
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Racismo estrutural e encarceramento em massa no Brasil  
superior, correspondendo em média a 40% da população carcerária total, demonstrando que há  
um percentual significativo de pessoas inseridas no sistema carcerário brasileiro com  
escolaridade extremamente reduzida.  
Resta evidente que o perfil da pessoa encarcerada é perpassado pela ausência de um  
processo educacional adequado, constituindo-se em segmentos sociais com mão de obra  
explorada e marginalizada, o que evidencia a seletividade no processo de encarceramento no  
Brasil e a presença das práticas racistas e excludentes. Nesse sentido, ao tempo em que se fazem  
urgentes as medidas de desencarceramento, também é fundamental o combate ao racismo como  
forma de defesa da democracia e da cidadania.  
Considerações finais  
Percebe-se que a história do cárcere no Brasil se articula, principalmente, com os usos  
da violência e, como consequência, da seletividade penal para o exercício do controle social  
pelo Estado, desde os primórdios de sua formação até a contemporaneidade, com as diretrizes  
neoliberais na condução das agendas sociais, políticas e econômicas no país na atualidade.  
Aformação social brasileira é marcada por desigualdades que se articulam com os traços  
do colonialismo do escravismo, bem como com a bases em que se ancoram o sistema hetero-  
patriarcal-racista-capitalista instaurado no Brasil, com um liame entre a senzala e o cárcere,  
visando o exercício do controle social das pessoas pobres, negras e periféricas.  
A alteração dessa realidade requer esforço e mudança com a adoção de medidas de  
desencarceramento e o fortalecimento das políticas públicas de saúde, educação, previdência  
social, assistência social, moradia, emprego e renda, com a garantia de direitos dos diversos  
segmentos e grupos sociais, e com o desenvolvimento de ações que contribuam para o  
enfrentamento do racismo estrutural como forma de defesa da democracia e da cidadania.  
567  
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569  
Determinação social da saúde e Sífilis  
gestacional em Campos, RJ: particularidades de  
classe, raça, gênero e território1  
Social determination of health and gestational syphilis in Campos, RJ:  
particularities of class, race, gender and territory  
Nilene dos Santos Souza*  
Carlos Antonio de Souza Moraes**  
Resumo:  
A
partir da perspectiva da  
Abstract: From the perspective of the social  
determination of health, supported by Latin  
American Epidemiology, this article aims to  
verify the incidence of syphilis in pregnant  
women diagnosed at the Testing and Counseling  
Center (CTA), in Campos dos Goytacazes, RJ,  
between 2018 and 2021. The article is based on  
historical-dialectical materialism, exploratory  
determinação social da saúde, sustentada pela  
Epidemiologia Latino-Americana, este artigo  
objetiva verificar a incidência da sífilis em  
gestantes diagnosticadas no Centro de Testagem  
e Aconselhamento (CTA), em Campos dos  
Goytacazes, RJ, entre 2018 e 2021. O artigo está  
sustentado no materialismo histórico-dialético,  
na pesquisa de tipo exploratória, de abordagem  
quali-quantitativa, por meio de estudo  
research, with  
a
qualitative-quantitative  
approach, through bibliographical study and  
research carried out on the medical records of  
pregnant women diagnosed with syphilis.  
Approved by the Research Ethics Committee,  
the study analyzed 166 medical records of  
pregnant women with syphilis treated at the  
institution. The results indicate that black, low-  
income women living predominantly in the  
district of Guarus were more susceptible to  
contracting syphilis during pregnancy.  
However, 60.2% of the medical records  
investigated at the CTA in Campos also pointed  
to the invisibility of black women, which  
underreport the racial dimension, a factor that  
has a negative and direct impact on the severity  
of the syphilis epidemic in pregnant women in  
bibliográfico  
e
pesquisa realizada nos  
prontuários de gestantes diagnosticadas com  
sífilis. Aprovado pelo Comitê de Ética em  
Pesquisa, o estudo analisou 166 prontuários de  
gestantes com sífilis atendidas na instituição. Os  
resultados apontam que mulheres negras, de  
baixa renda e residentes predominantemente no  
distrito de Guarus apresentaram maior  
suscetibilidade à contração de sífilis durante a  
gestação. Contudo, também apontaram para a  
invisibilidade das mulheres negras em 60,2%  
dos prontuários investigados no CTA, em  
Campos, que subnotificam a dimensão racial,  
fator que impacta negativa e diretamente na  
gravidade da epidemia de sífilis em gestantes na  
1 Este artigo é produto de dissertação de mestrado defendida em 2023, no Programa de Estudos Pós-graduados em  
Política Social/Universidade Federal Fluminense.  
* Assistente Social (UFF). Mestre em Política Social (PPGPS/UFF). Doutoranda em Política Social, (PPGPS/UFF).  
Pesquisadora do Grupo Interdisciplinar de Estudo e Pesquisa em Cotidiano e Saúde (GRIPES - CNPQ). ORCID:  
** Doutor em Serviço Social pela PUCSP. ProfessorAssociado na Universidade Federal Fluminense, Departamento  
de Serviço Social de Campos e Professor permanente do Programa de Estudos Pós-Graduados em Política Social  
(UFF/Niterói). Líder do Grupo Interdisciplinar de Estudo e Pesquisa em Cotidiano e Saúde (GRIPES - CNPQ).  
Bolsista de Produtividade em Pesquisa (CNPq, 2). ORCID: https://orcid.org/0000-0002-1070-3186.  
DOI: 10.34019/1980-8518.2024.v24.43474  
Esta obra está licenciada sob os termos  
Recebido em: 02/02/2024  
Aprovado em: 27/05/2024  
Determinação social da saúde e Sífilis gestacional em Campos, RJ:  
particularidades de classe, raça, gênero e território  
cidade de Campos dos Goytacazes, RJ.  
the city from Campos dos Goytacazes, RJ.  
Palavras-chaves: Sífilis gestacional; Raça;  
Keywords: Gestational Syphilis; Race; Class;  
Classe; Gênero e Território.  
Gender and Territory.  
Introdução  
A sífilis, causada pela bactéria Treponema pallidum, é uma Infecção Sexuamente  
Transmissível (IST) que ocorre, principalmente através de relações sexuais desprotegidas e  
compartilhamento de agulhas contaminadas. A infecção se desdobra em quatro estágios  
distintos (Sífilis primária, secundária, latente e terciária), cada um apresentando sintomas  
específicos, que vão desde o aparecimento de uma ferida (úlcera) indolor na região genital, ânus  
ou boca, no caso da sífilis primária até a neurossífilis, quando a infecção afeta o cérebro ou a  
medula espinhal. A infecção por sífilis em gestantes é especialmente preocupante devido aos  
potenciais desfechos adversos, tal como aborto, morte fetal, baixo peso ao nascer e  
prematuridade. Além disso, a sífilis congênita, transmitida da mãe para o bebê durante a  
gestação, pode ocasionar uma variedade de alterações clínicas, desde irritabilidade inicial até  
complicações ósseas, auditivas e de desenvolvimento.  
A sífilis representa um desafio relevante para a saúde pública em termos globais,  
especialmente no Brasil, onde as taxas de infecção têm apresentado um crescimento acentuado.  
Segundo os dados epidemiológicos relativos à sífilis no país, em 2018, foram notificados no  
SINAN (Sistema de Informação de Agravos de Notificação) 158.051 casos de sífilis adquirida,  
62.599 casos de sífilis gestacional (SG), 26.219 casos de sífilis congênita e 241 óbitos por sífilis  
congênita. No ano subsequente, houve notificação de 152.915 casos de sífilis adquirida, 61.127  
casos de SG, 24.130 casos de sífilis congênita e 173 óbitos por sífilis congênita. O ano de 2020  
apresentou menos casos notificados, com 115.371 de sífilis adquirida, 61.441 de SG, 22.065 de  
sífilis congênita e 186 óbitos por sífilis congênita. No entanto, em 2021, houve um novo  
aumento nas notificações de sífilis, com 167.523 casos de sífilis adquirida, 74.095 casos de SG,  
27.019 casos de sífilis congênita e 192 óbitos por sífilis congênita. A sífilis congênita é  
particularmente preocupante, pois pode resultar em sequelas graves e mortalidade neonatal,  
sendo necessário implementar medidas para o seu controle e prevenção (Brasil, 2022).  
A implementação de políticas de prevenção e controle se torna urgente, apesar da  
possível falta de interesse da indústria farmacêutica devido ao baixo custo do tratamento. Em  
um contexto de globalização, questões de saúde emergem como temáticas recorrentes na  
agenda da política externa, demandando estratégias amplas e sustentadas para lidar com  
571  
Nilene dos Santos Souza; Carlos Antonio de Souza Moraes  
infecções e doenças tidas como negligenciadas, sobretudo aquelas que afetam populações com  
reduzido acesso aos serviços de saúde.  
Reconhecer a sífilis como uma infecção negligenciada implica admitir que abordagens  
abrangentes e duradouras são necessárias para prevenção e tratamento em populações  
socialmente vulneráveis e com acesso limitado aos serviços de saúde, tendo em vista que apesar  
da infecção não escolher classe social, gênero, raça ou idade, os estratos sociais mais  
marginalizados são os mais afetados por ela (Souza, 2023).  
Partindo desse ponto de vista, Laurell (1983) argumenta que a natureza social da saúde  
não está explícita nos casos clínicos, mas sim nas formas características pelas quais as pessoas  
adoecem e morrem. Em uma sociedade marcada pela desigualdade, como a brasileira, certas  
doenças, embora afetem cidadãos de todas as classes, gêneros e raças, impactam  
predominantemente grupos específicos, de acordo com sua posição na estrutura social. Assim,  
compreendemos que essas características distintas nas formas como os indivíduos adoecem e  
morrem derivam do modelo de produção e reprodução de padrões estruturais de dominação,  
exploração e marginalização, moldando estilos de vida que se refletem no processo saúde-  
doença.  
À luz desse contexto, Souza (2021) reconhece que as condições de saúde e doença são  
determinadas por elementos estruturais e superestruturais que permeiam a sociedade capitalista,  
moldando, assim, o acesso aos serviços de saúde, as informações, os cuidados, as subjetividades  
e as condições objetivas para o enfrentamento destas questões. Com base nesses pressupostos,  
o principal objetivo desta pesquisa é verificar a incidência da sífilis gestacional diagnosticada  
no Centro de Testagem e Aconselhamento2 (CTA), em Campos dos Goytacazes, RJ, durante o  
período de 2018 a 2021. Esta análise será embasada na perspectiva teórica da determinação  
Social da Saúde vinculada a Epidemiologia Latino-americana (ELA) e sustentada por análises  
marxistas, com especial ênfase nas categorias de classe, raça, gênero e território.  
A relevância deste estudo refere-se a sua aproximação com o debate da determinação  
social da saúde, associando tais análises à incidência da sífilis em gestantes, o que promove  
contribuições para o campo das Ciências Sociais e, mais particularmente, o Serviço Social, visto  
que os estudos que tratam do tema são, predominantemente associados a dimensão biomédica,  
572  
2 Os Centros de Testagem e Aconselhamento (CTA) surgiram no final da década de 1980 como importante ponto  
de referência para acesso à testagem e aconselhamento em HIV/Aids. Desempenham papel crucial na prevenção  
e diagnóstico de DSTs eAIDS, regidos pelos princípios de voluntariedade, confidencialidade, anonimato, agilidade  
e resolubilidade no diagnóstico do HIV. O CTA de Campos dos Goytacazes foi criado em 1996, passando a ser  
denominado CTA a partir de 1997, vinculado ao Programa Municipal IST/Aids/Hepatites Virais da Secretaria  
Municipal de Saúde, com atendimentos ambulatoriais e assistência social. Está localizado na área central da cidade,  
próximo à rodoviária, funcionando das 07:00 às 19:00 horas, de segunda a sexta-feira.  
Libertas, Juiz de Fora, v. 24, n. 2, p. 570-589, jul./dez. 2024. ISSN 1980-8518  
Determinação social da saúde e Sífilis gestacional em Campos, RJ:  
particularidades de classe, raça, gênero e território  
mas, ainda assim, parte destas pesquisas, reconhecem limitadamente, que os aspectos sociais  
tiveram forte impacto na saúde das gestantes diagnosticadas com sífilis.  
Neste sentido, o artigo defende que o aumento global da incidência de sífilis ultrapassa  
a compreensão tradicional e conservadora da relação entre saúde e doença, uma vez que está  
intrinsecamente relacionado às condições sociais que determinam o processo de adoecimento.  
Embora as gestantes em situação de pobreza não sejam as únicas afetadas pela doença, é  
plausível afirmar que há no CTA, em Campos dos Goytacazes, a predominância de mulheres  
pertencentes à classe trabalhadora, especialmente as de origem negra, com baixa escolaridade  
e que vivem em condições de pobreza. Estas mulheres têm maior probabilidade de iniciar  
tardiamente o acompanhamento pré-natal, o que contribui para a contração da sífilis durante a  
gestação (Souza; Moraes, 2021).  
Com base nessas considerações, optou-se por dividir este artigo em seções: após a  
introdução, abordamos a metodologia adotada na pesquisa. Posteriormente, recorremos ao  
debate relativo à determinação social da saúde, difundido amplamente pela epidemiologia  
latino-americana (ELA); na terceira seção, o artigo aborda a relação entre o território campista  
e a sífilis gestacional, considerando as particularidades do ambiente em que essas mulheres  
residem, bem como as condições socioeconômicas reveladoras de parte das desigualdades  
territoriais, impactando a saúde das gestantes e contribuindo para a disseminação da sífilis.  
Posteriormente, recorremos a outras variáveis do perfil sociodemográfico das gestantes com  
sífilis no CTA, em Campos dos Goytacazes, RJ, tais como: raça/cor, idade e escolaridade. Por  
fim, são apontadas algumas conclusões.  
573  
Metodologia  
Este artigo, fundamentado no materialismo histórico-dialético (MHD), recorre a  
pesquisa de dimensão quali-quantitativa e de natureza exploratória.  
O estudo qualitativo visa compreender a sífilis como um fenômeno social e as  
características das gestantes, a fim de promover visibilidade e compreender as particularidades  
deste grupo. Por sua vez, a pesquisa quantitativa se concentra na coleta e tratamento estatístico  
dos prontuários de gestantes com sífilis. Esta análise é fundamentada nas categorias de raça,  
classe, gênero e território.  
Para o desenvolvimento da pesquisa, recorremos a análise bibliográfica e a pesquisa de  
campo. Para análise bibliográfica dedicamos especial atenção às produções de natureza  
interdisciplinar publicadas no Brasil e em países latino-americanos que discutem a  
determinação social da saúde, particularmente em relação às categorias mencionadas.  
Nilene dos Santos Souza; Carlos Antonio de Souza Moraes  
A pesquisa de campo foi realizada após aprovação da proposta de pesquisa pelo Comitê  
de Ética em Pesquisa (CEP), conforme parecer nº 6.122.091, emitido pela Plataforma Brasil.  
Além disso, a pesquisa também foi autorizada pela coordenação do Programa Municipal  
IST/Aids/Hepatites Virais de Campos dos Goytacazes, RJ.  
A pesquisa de campo, realizada no CTA, objetivou selecionar todos os prontuários de  
gestantes inseridas no Programa entre os anos de 2018 a 2021, separando por trimestres aqueles  
pertencentes as gestantes com sífilis. Os dados verificados, através da lista em Excel  
disponibilizados pela instituição foram: número dos prontuários (para busca posterior, em casos  
positivos de sífilis), tipo (Qual infecção), raça (preta/parda/branca), nascimento (mês/ano), data  
de abertura do prontuário e município (cidade de residência ou bairro).  
Por meio do mapeamento, identificamos 548 prontuários pertencentes a gestantes.  
Através da análise dos 548 prontuários foi possível conferir que entre os anos de 2018 e 2021,  
foram registrados 222 casos de sífilis adquirida, 166 casos de sífilis gestacional e 145 casos de  
Infecções sexualmente transmissíveis (IST’s), tais como: HIV, HPV, Gonorreia, clamídia, entre  
outras, conforme apresentado no quadro 1. A partir de investigação relativa a sífilis gestacional,  
verificamos que, em 2018, foram registrados 49 casos, em 2019 foram 46 casos, em 2020 foram  
14 casos e, em 2021, 57 casos.  
Tabela 1: Condições encontradas após a busca documental.  
574  
Condição  
Total  
Sífilis Gestacional  
166  
Sífilis Adquirida  
IST´S Geral (HIV,  
Gonorréia, HPV,  
Clamídia, etc.)  
Não mulheres  
Outras infecções  
Não encontrados  
TOTAL  
222  
145  
6
1
9
548  
Fonte: Elaboração própria (2023).  
Os dados foram organizados e registrados, destacando a seguintes informações  
relacionadas às gestantes: número dos prontuários para esclarecimento de dúvidas; local de  
encaminhamento da gestante (hospital, clínica ou estabelecimento); período gestacional do  
diagnóstico (durante o pré-natal, no parto - antes ou depois -, após um aborto ou no pós-parto);  
mês e ano de abertura do prontuário; raça; mês e ano de nascimento; nível de escolaridade;  
Libertas, Juiz de Fora, v. 24, n. 2, p. 570-589, jul./dez. 2024. ISSN 1980-8518  
Determinação social da saúde e Sífilis gestacional em Campos, RJ:  
particularidades de classe, raça, gênero e território  
bairro/município em que reside; autorização para contato institucional - se houver, com quem  
(a própria gestante, parentes ou amigos); e se o tratamento foi concluído ou não.  
A análise dessas informações foi construída através da técnica de análise de conteúdo,  
baseada em Bardin (1997)3.  
Aproximação conceitual à determinação social da saúde  
No final da década de 1970, o paradigma biomédico da doença foi amplamente  
contestado, desencadeando uma investigação teórica na América Latina. Esse movimento  
crítico em relação ao modelo hegemônico surgiu em um contexto social marcado pela  
incapacidade da medicina em gerar novos conhecimentos capazes de compreender e explicar  
as relações sociais, enfatizando os aspectos estruturais da saúde nos países latino-americanos  
por meio do discurso político relacionado ao direito à saúde (Arellano; Escudero; Carmona,  
2008). Segundo Souza (2021), a perspectiva da determinação social da saúde, uma das bases  
do pensamento crítico da Medicina Social e da Saúde Coletiva na América Latina, fortemente  
influenciada pelo Movimento Operário Italiano, preencheu as lacunas deixadas pelo paradigma  
hegemônico existente.  
A determinação social da saúde, em linhas gerais, emergiu como uma forma de  
compreender a saúde para além da dimensão biológica, considerando o caráter dialético desta  
questão. A saúde humana é definida pela relação indissociável entre aspectos biológicos e  
sociais, incluindo aspectos culturais, políticos, entre outros, e transita em diferentes níveis e  
formas, dependendo das diversas relações sociais estabelecidas, especialmente, as relações  
sociais de produção (Souza, 2021).  
575  
Nesse sentido, a perspectiva adotada pela medicina social latino-americana trouxe  
contribuições significativas para o debate teórico, oferecendo soluções para melhorar a saúde  
da comunidade e delineando um pensamento social no campo da saúde por meio de uma nova  
interpretação da saúde pública. Entre os autores pioneiros que dissertaram sobre essa  
perspectiva, destacam-se "Jaime Breilh e Edmundo Granda, no Equador; Asa Cristina Laurell,  
no México, e Cecília Donnangelo e Sérgio Arouca, no Brasil" (Moreira, 2013, p. 70).  
A abordagem da determinação social da saúde, ancorada no campo teórico e político  
marxista, estrutura-se em torno de uma nova proposta de estudos em saúde, utilizando o rigor  
do método científico de análise do materialismo histórico-dialético como ferramenta eficaz para  
3 Aanálise de conteúdo, conforme definida por Bardin (1977, p. 38), compreende um conjunto de técnicas voltadas  
à análise sistemática e objetiva das comunicações, visando a descrição do conteúdo das mensagens. Essa análise  
é conduzida em três fases distintas: pré-análise, análise do material e interpretação dos dados, considerando o  
método definido, conceitos, autores e documentos.  
Nilene dos Santos Souza; Carlos Antonio de Souza Moraes  
a transformação política, focalizando na categoria do trabalho (a ontologia do ser social). Busca  
compreender a relação entre sujeito e objeto, entre pessoas e coisas, a natureza e a vida,  
identificando o biológico e o social como uma subsunção, conectados à perspectiva de alteração  
da realidade (Moreira, 2013; Garbois; Sodre; Dalbello-Araujo, 2017).  
Do ponto de vista da determinação social da saúde, a garantia do direito à saúde implica  
mudanças na sociedade para reduzir as desigualdades sociais. Para isso, os movimentos sociais  
e a sociedade civil, como atores centrais da mudança, precisam se organizar em prol de um  
objetivo comum, diante do esgotamento de recursos pelo capital e das crises resultantes,  
exigindo novas práticas, políticas e ações. Carvalho (2019, p. 16) destaca que a perspectiva da  
determinação social da saúde consiste em compreender que as necessidades em saúde estão  
vinculadas à satisfação das necessidades sociais mais amplas da população, onde a dimensão  
histórico-social implica na construção de necessidades coletivas, dadas pelo desenvolvimento  
das forças produtivas, que estruturam padrões de reprodução social, determinando a inserção  
social dos sujeitos nesta sociabilidade, suas formas de viver e adoecer.  
Em várias ocasiões, a determinação social da saúde tem sido abordada como sinônimo  
da concepção dos determinantes sociais da saúde, devido a semelhanças na terminologia. Além  
disso, autores como Minayo (2021) recentemente expressaram críticas à determinação social  
da saúde, argumentando que esta carece de um arcabouço metodológico capaz de capturar a  
complexidade inerente ao tema. Em sua obra "Determinação social, não! Por quê?" a autora  
(2021), contesta a denominação de determinação social da saúde, alegando que é uma expressão  
limitada para representar a dialética entre permanência e mudança na sociedade, indivíduo e  
natureza, tanto por ação humana, acaso ou deslocamentos. Utilizando referências teóricas  
europeias, Minayo (2021), argumenta que as mudanças incontáveis da atualidade demandam  
novas teorias interpretativas da sociedade e da Saúde Pública, criticando a definição atual do  
conceito compartilhada por autores como Breilh e Naomar, por excluírem a historicidade e suas  
múltiplas possibilidades.  
576  
Ao defender sua obra e de Naomar, Breilh (2021) reconhece que a determinação social  
da saúde é um movimento complexo com diferentes perspectivas, e ressalta a importância de  
estudar o avanço das novas tecnologias no contexto do hipercapitalismo do século XXI, sem  
negligenciar seus impactos nos processos que determinam a saúde. Já Naomar (2021), destaca  
a impropriedade das alegações de Minayo (2021) sobre a ideia de determinação social da saúde  
e sugere que a categoria de "sobredeterminação" tem sido tratada de forma adequada a partir  
do referencial do materialismo histórico-dialético. Naomar sinaliza que, para uma compreensão  
Libertas, Juiz de Fora, v. 24, n. 2, p. 570-589, jul./dez. 2024. ISSN 1980-8518  
Determinação social da saúde e Sífilis gestacional em Campos, RJ:  
particularidades de classe, raça, gênero e território  
sistemática e profunda da realidade, devemos considerar todas as formas de determinação,  
incluindo a determinação social, para uma perspectiva além e ampla, a da sobredeterminação.  
Diante disso, a análise proposta em relação à saúde das gestantes com sífilis campistas  
está em conformidade com a epidemiologia latino-americana, a respeito da determinação social  
da saúde, pois apreende a relação saúde-doença como um processo contraditório, de  
mobilização dos interesses da classe trabalhadora. Deste modo, assumimos que a determinação  
social da saúde possibilita interpretações históricas e sociais mais próximas e completas da  
realidade do processo saúde-doença e suas mediações.  
Outrossim, é imprescindível analisar a determinação social da saúde a partir das  
interseções de classe, raça, gênero e território, a fim de compreender de forma mais abrangente  
as desigualdades presentes na ocorrência de doenças e infecções, como a sífilis gestacional. A  
ELA ressalta a importância de considerar as diversas formas de opressão e exclusão que  
impactam diretamente na saúde das populações. Nesse sentido, a análise crítica da saúde deve  
contemplar a dimensão estrutural das desigualdades de poder e acesso a recursos, enfatizando  
a necessidade de ações e políticas que reconheçam e enfrentem as dinâmicas sociais complexas.  
Sífilis gestacional e território: a prevalência de dados em Guarus, em Campos dos  
Goytavazes, RJ  
577  
A cidade de Campos dos Goytacazes no estado do Rio de Janeiro, destaca-se como um  
polo econômico relevante para o país, sobretudo na produção de petróleo e gás. No entanto, a  
cidade apresenta desigualdades socioespaciais decorrentes do desenvolvimento urbano não  
acompanhado pela manutenção de condições socioambientais adequadas, resultado do processo  
histórico de modernização conservadora e da forte relação com seu passado escravocrata. Essas  
desigualdades são agravadas pela discriminação racial, o que reforça a concentração de  
vulnerabilidades socioambientais em áreas periféricas e o fenômeno do "apartheid social".  
Assim, é fundamental compreender a realidade específica dessa cidade para pensar a saúde e a  
doença, enquanto processos sociais e políticos. Além disso, é pertinente discutir a relação  
histórica entre o desenvolvimento socioeconômico da cidade e a exploração do trabalho  
escravizado.  
A violência do racismo se manifesta na desumanização de negros e negras, que  
enfrentam dificuldades de acesso ao mercado de trabalho, salários justos, moradia, educação e  
saúde. A mulher negra, por sua vez, encara desafios adicionais pela interseção das opressões de  
gênero e de raça, considerando que há uma estratificação social que define a posição social dos  
indivíduos, limitando o acesso à educação, ocupação, renda e saúde. Não obstante à riqueza da  
Nilene dos Santos Souza; Carlos Antonio de Souza Moraes  
cidade, a desigualdade social não foi reduzida, mas sim ampliada, com impactos sobre os  
sujeitos afetados pelas relações entre raça, gênero, classe e território.  
Embora o conceito de território seja mais comumente associado à dimensão física, na  
geografia, sua polissemia permite diferentes interpretações e definições, não se restringindo  
apenas à perspectiva geopolítica, mas também sendo utilizado para analisar relações sociais.  
Contudo, diante das limitações do presente artigo, é importante ressaltar que não será possível  
aprofundar as diferentes concepções de território. No entanto, é válido ressaltar a concepção  
adotada por este trabalho, a fim de fornecer uma visão mais ampla e aprofundada da realidade  
em questão.  
Desta forma, a nossa compreensão, baseada na perspectiva crítica de Marx, considera o  
território como uma construção histórica e materialmente determinada, sujeita a disputas  
políticas e socioeconômicas. O território é concebido em suas múltiplas interações com os  
modos de produção, as relações sociais, culturais e políticas, evidenciando a sua relevância nas  
dinâmicas da vida cotidiana. Nesse sentido, a análise crítica do território possibilita a  
compreensão da sua complexidade, ao evidenciar os conflitos, contradições e desigualdades  
presentes em suas diversas dimensões, constituindo um importante instrumento para repensar  
tanto as relações sociais quanto as políticas públicas que envolvem os processos de  
territorialização (Silva et al., 2022).  
578  
Em consonância, Sposati (2013) salienta que a concepção de território, seja no singular  
ou no plural, possui uma abordagem dinâmica que envolve aspectos geográficos, históricos,  
políticos e sócio relacionais. A autora compreende que sua construção é resultado de uma  
dinâmica de relações, reflexo de trajetórias de diferentes atores, que, por sua vez, são  
influenciados pelos processos e eventos históricos. Deste modo, o território ultrapassa a ideia  
de ser um local fixo e imutável, visto que sua essência se constrói a partir das vivências,  
significados e relações interpessoais que formam as identidades individuais e coletivas dos  
grupos que fazem parte dele. Portanto, é importante entender que o território é uma variável em  
movimento, que se transforma com o passar do tempo, podendo apresentar características  
distintas em cada momento histórico.  
Ao investigar as particularidades do território de Guarus, em Campos dos Goytacazes,  
verificamos de acordo com o Censo de 20104, que este subdistrito agrega 25 bairros oficiais e  
é caracterizado por uma densidade populacional considerável, em grande medida, consequência  
do êxodo rural promovido pela falência do setor sucroalcooleiro no início dos anos 1970.  
Libertas, Juiz de Fora, v. 24, n. 2, p. 570-589, jul./dez. 2024. ISSN 1980-8518  
Determinação social da saúde e Sífilis gestacional em Campos, RJ:  
particularidades de classe, raça, gênero e território  
Representando 36,17% da população da cidade de Campos dos Goytacazes, a população de  
Guarus compreende, majoritariamente trabalhadores de baixa renda que vivem em territórios  
com índices socioeconômicos inferiores comparativamente aos distritos próximos. Além desse  
fato, a região sofre com estereótipos e desigualdades reforçados pela mídia (Alvarenga, 2020).  
A despeito de ter sido incorporado ao distrito-sede, as características socioespaciais de  
Guarus são distintas, quando comparadas às outras áreas da cidade. Segundo Assis (2016), tal  
diferenciação é evidenciada pelos dispêndios públicos dirigidos às duas áreas, pelos fracassos  
das políticas públicas e pela precarização dos bairros que constituem Guarus. Isso prejudica a  
população, dificultando o seu acesso à infraestrutura urbana, transporte, educação, trabalho e  
saúde.  
A fim de observar a divisão territorial por bairros, foram recentemente realizados  
estudos municipais (2018), com o intuito de analisar alguns aspectos sociais e econômicos da  
distribuição populacional. O estudo pesquisou dados sobre renda, cor/raça e acesso a serviços  
públicos, considerando a variável acesso à rede de esgoto ou fossa séptica e acessibilidade à  
rede geral de água, bem como a coleta de lixo pelo serviço público. Os resultados evidenciaram  
uma alta concentração de famílias com renda per capita inferior a ½ salário-mínimo. No total  
de 25 bairros analisados no referente subdistrito, 56% possuíam mais de 40% das famílias em  
situação de pobreza ou extrema pobreza (Prefeitura Municipal de Campos dos Goytacazes,  
2018).  
579  
De acordo com Nascimento, Barbosa e Medrado (2005), as pessoas com maior poder  
aquisitivo possuem maior capacidade de se deslocar para regiões urbanas ou para locais que  
oferecem produtos e serviços de maior qualidade, em contrapartida, pessoas em situação de  
pobreza, devido à limitação de mobilidade, recorrem a serviços locais para satisfazer as suas  
necessidades. Contudo, a residual oferta de serviços públicos no subdistrito de Guarus,  
juntamente com a violência local e a baixa condição socioeconômica da população, afetam o  
acompanhamento das gestantes durante toda a gravidez ou no pós-parto. Isso acontece porque  
as mães empobrecidas enfrentam dificuldades ao acessar esses serviços, o que as coloca em  
maior risco de ter um desfecho desfavorável da gravidez, já que têm menos mobilidade para se  
locomover. A situação é semelhante, em geral, para os moradores do subdistrito que necessitam  
do atendimento do Sistema Único de Saúde SUS. Isso os obriga a se deslocar para outras  
áreas, embora enfrentem a falta de recursos para se locomover. Ademais, esses sujeitos são  
culpabilizados pelos problemas urbanos que existem, tais como ocupações irregulares,  
violência urbana e degradação do meio ambiente (Medeiros; Silva, 2017).  
Nilene dos Santos Souza; Carlos Antonio de Souza Moraes  
Em relação às gestantes residentes em Campos dos Goytacazes, um estudo anterior  
realizado entre 2016 e 2017 apontou que a região de Guarus apresentou uma concentração de  
40% dos casos de sífilis gestacional em mulheres atendidas pelo Programa Municipal  
IST/AIDS, localizado no centro da cidade (Souza, 2021). Uma análise recente dos dados, revela  
que essa concentração de casos persiste nesse território, com um aumento de ocorrências para  
43,37%. De acordo com o Censo de 2010, o subdistrito de Guarus agrega 25 bairros oficiais e  
é caracterizado por uma densidade populacional considerável, em grande medida, consequência  
do êxodo rural promovido pela falência do setor sucroalcooleiro, no início dos anos 1970  
(Alvarenga, 2020).  
As mulheres que vivem em bairros periféricos, em muitos casos, têm menos acesso a  
serviços públicos de saúde e informações sobre saúde sexual e reprodutiva, além de sofrerem  
preconceito e discriminação. Esse cenário se agrava ainda mais em uma família monoparental  
chefiada por mulheres, em que a responsabilidade de cuidar da saúde reprodutiva da mulher e  
dos filhos é geralmente atribuída à própria mãe, que muitas vezes luta para equilibrar essa  
responsabilidade com o trabalho e com outras tarefas domésticas.  
Essa situação pode levar a uma falta de acesso ou cuidado inadequado à saúde  
reprodutiva, incluindo a falta de diagnóstico e tratamento IST’s, como a sífilis. Além disso, a  
segregação espacial pode criar barreiras para o acesso a serviços de saúde, pois, muitas vezes,  
os serviços não estão perto ou são difíceis de serem acessados para quem mora em bairros  
periféricos.  
580  
Observamos que a segregação socioespacial presente na cidade em análise, se configura  
como uma consequência de um histórico processo socioeconômico no qual houve a  
concentração de recursos e riquezas nas mãos de uma pequena parcela da população, resultando  
em grandes desigualdades sociais. Em vista disso, Alvarenga e Siqueira (2019) evidenciam que  
a distribuição desigual das moradias é resultado do poder político das classes dominantes, da  
variação de renda e das características culturais de cada grupo, elementos que atuam na  
definição do acesso aos serviços públicos e às oportunidades de trabalho. Neste contexto, a  
segregação é vista como uma manifestação das lutas de classes sociais, que perpetuam a  
exclusão e a marginalização socioeconômica de parte significativa da população. Ela não é um  
fenômeno dicotômico de presença ou ausência, mas sim uma questão gradual, o que significa  
dizer que existe em diferentes níveis e pode tomar diversas formas, incluindo a segregação  
racial, geográfica e urbana (Ratcliffe, 2000).  
A dimensão racial da segregação resulta na privação dos direitos universais e na  
instituição de leis que perpetuam sua divisão. Já a segregação urbana frequentemente resulta na  
Libertas, Juiz de Fora, v. 24, n. 2, p. 570-589, jul./dez. 2024. ISSN 1980-8518  
Determinação social da saúde e Sífilis gestacional em Campos, RJ:  
particularidades de classe, raça, gênero e território  
separação das classes menos favorecidas, como é evidenciado nas periferias urbanas, onde se  
concentram pessoas de baixa renda e subempregos. No contexto brasileiro, a segregação está  
intrinsecamente ligada às desigualdades entre as classes sociais, sendo a cor da pele, em especial  
para a população negra e indígena, um fator agravante.  
Sífilis gestacional e dimensão racial  
Ao considerar a raça como um indicador, também podemos reconhecer e abordar  
questões mais amplas de desigualdade sócio racial, que afetam muitos aspectos da vida,  
incluindo saúde, educação, emprego e moradia.  
Pesquisas recentes (Souza, 2021; Tomasi et al, 2017), apontam que mulheres negras  
têm maior probabilidade de contrair sífilis durante a gestação em comparação com mulheres  
brancas. Além disso, a sífilis em mulheres negras tende a resultar em complicações mais graves,  
como aborto espontâneo, parto prematuro, baixo peso ao nascer e neonatos infectados (Souza,  
2021), não pela cor de suas peles, mas pela sua determinação social.  
Em suas análises, Barbosa (2021) reflete sobre a naturalização do adoecimento de  
pessoas negras no Brasil, sob o ímpeto racista. Discutindo sobre as implicações sociais na saúde  
dessa população, a autora dá especial destaque às doenças infecciosas e parasitárias que mais a  
afeta. Barbosa (2021), destaca que, mesmo que haja falhas no preenchimento da variável  
raça/cor nos prontuários dos serviços de saúde e evidências de sua relação com o processo  
saúde-doença, para ela “[...] a dinâmica da carga dessas doenças no povo negro está  
intimamente implicada às características peculiares dos processos de transição demográfica e  
epidemiológica brasileira, atreladas à complexidade do racismo” (Barbosa, 2021, p. 103).  
Em 2005, a inclusão da variável raça/cor ao Programa Nacional de DST/AIDS foi um  
marco importante para a compreensão dos desafios enfrentados por diferentes grupos étnicos e  
raciais no acesso aos serviços de saúde e na incidência de ISTs. Em 2017, o Ministério da Saúde  
promulgou a Portaria n.º 344/2017 que, por meio de seus cinco artigos, impõe a obrigatoriedade  
do preenchimento do campo identitário raça/cor nos formulários que permeiam os sistemas de  
saúde e, ainda, verticaliza as atribuições e responsabilidades dos organismos federativos  
(Brasil, 2017)  
581  
Santos, Coelho e Araújo (2013) revelam que a questão racial e as discriminações e  
desigualdades históricas a ela inerentes acompanham homens negros e mulheres negras ao  
longo da vida. As autoras recorrem a um estudo realizado pelo Instituto Médico Legal que  
demonstrou que a categoria raça/etnia é frequentemente preenchida de forma imprecisa,  
evidenciando, por exemplo, que indivíduos negros eram identificados como "pele morena".  
Nilene dos Santos Souza; Carlos Antonio de Souza Moraes  
Além disso, as causas de morte relativas a sujeitos brancos foram registradas como acidentais,  
enquanto uma grande proporção de pessoas negras foi identificada como homicídios, sugerindo  
um contexto de marginalização como possível tentativa de justificar a morte violenta e a  
discriminação.  
Em relação à raça/cor, na pesquisa realizada no CTA, em Campos dos Goyracazes, foi  
possível identificar o seguinte: 17 gestantes se declararam brancas, 29 pardas, 20 negras e em  
100 prontuários, que correspondem a 60,2% do total, este indicador foi ignorado. Inúmeras  
vezes as informações preenchidas nesses documentos estavam diferentes da ficha do SINAN.  
Em alguns prontuários o quesito raça/cor não foi preenchido, mas a mesma usuária estava  
descrita como preta ou parda5 na ficha enviada ao SINAN. Essa divergência foi menos  
percebida no caso de usuárias autodeclaradas brancas. Duas questões emergem e podem ser  
determinantes para essa discrepância dos números: a primeira, é se os(as) profissionais de saúde  
perguntam a raça/cor das usuárias do Programa na abertura do prontuário? A segunda questão  
é: nos casos positivos, como tem sido tratada a autodeclaração das usuárias?  
A não inclusão da variável raça/cor nos registros de saúde pode ter consequências  
graves para a compreensão das desigualdades entre grupos étnicos e raciais no acesso aos  
serviços de saúde, além de dificultar a elaboração de políticas públicas mais adequadas às  
necessidades de cada grupo, evidenciando o quanto a raça é uma determinação social estrutural  
e institucional do processo de adoecimento. Isso porque a falta desses dados impede a  
identificação de problemas específicos que afetam determinados grupos, o que pode perpetuar  
a exclusão desses indivíduos nos serviços públicos de saúde.  
582  
A questão da raça é frequentemente ignorada ou negada. Notadamente, há falta de  
disposição para discutir desigualdades raciais na saúde ou falta de conhecimento sobre esse  
assunto, tonando-se evidente que qualquer menção à raça, por vezes, é interpretada como algo  
racista, refletindo um comportamento antirracista, típico de uma ideologia neoliberal  
contemporânea que defende que evitar falar sobre o racismo é a melhor estratégia para evitar  
desigualdades raciais (Reinehr, 2019).  
A primeira autora deste artigo também trabalhou como recenseadora do IBGE no  
CENSO de 2020, realizado no ano de 2022, no território de Guarus e observou que a pergunta  
sobre a cor ou raça dos entrevistados era a que gerava mais dúvidas e insegurança nas respostas  
5
Compreendemos que a categoria racial "raça negra" inclui tanto as pessoas que se autodeclaram como pretas  
quanto as que se autodeclaram como pardas, contudo, por haver essa diferenciação no preenchimento desse quesito  
apontamos essa diferenciação.  
Libertas, Juiz de Fora, v. 24, n. 2, p. 570-589, jul./dez. 2024. ISSN 1980-8518  
Determinação social da saúde e Sífilis gestacional em Campos, RJ:  
particularidades de classe, raça, gênero e território  
e estas, como apercebemos a partir da formação social brasileira, derivam da complexidade e  
ambiguidade da identidade racial.  
A articulação do quesito de raça/cor com o indicador de bairro/localidade tem se  
mostrado uma ferramenta importante para a análise da saúde pública, pois permite compreender  
as particularidades do território em relação aos impactos na saúde da população. Isso ocorre  
devido à forte influência que os contextos locais possuem na saúde, visto que variáveis  
socioculturais, econômicas e ambientais desse espaço podem influenciar negativamente na  
condição de saúde da população.  
Assim, a abordagem dos indicadores de raça/cor e bairro/localidade para a análise da  
sífilis gestacional em Campos dos Goytacazes, RJ é relevante, pois, ao considerar a influência  
direta desses fatores no perfil epidemiológico dessas mulheres, é possível identificar limitações  
e desigualdades no acesso aos serviços de saúde e uma possível relação direta com a  
determinação social da saúde, fatores que, possivelmente, não se restringem a realidade local.  
Sífilis gestacional, faixa etária e escolaridade  
Dados do Ministério da Saúde (2022), revelam que a ocorrência de casos de sífilis  
gestacional em mães jovens aumentou consideravelmente nos últimos anos (Brasil, 2022). Isso  
se deve, em grande parte, à falta de informação e conscientização sobre a importância do uso  
de preservativos durante a relação sexual, além da dificuldade de acesso ao sistema de saúde.  
No caso do CTA de Campos dos Goytacazes, houve grande incidência de casos de SG na faixa  
etária de 21 a 30 anos, contabilizando 77 casos. Mas, se somarmos as gestantes de 16 a 30 anos,  
corresponderá a 83,1%.  
583  
Estima-se que a incidência de sífilis em gestantes seja alta em todo o mundo,  
especialmente em países em desenvolvimento. As mulheres jovens, com idades entre 16 e 30  
anos, apresentam maior comportamento de risco em relação à infecção devido a elementos  
sociais e culturais relacionadas à sua faixa etária. Há uma variedade de fatores interligados que  
apontam os jovens como os que possuem maior comportamento de risco para as IST’s,  
incluindo o início precoce da atividade sexual, o uso irregular e pouco frequente de  
preservativos, a multiplicidade de parceiros sexuais, a sensação de onipotência e a falta de  
envolvimento com padrões preventivos (Caldana et al., 2021).  
Além da faixa etária, a literatura a respeito do tema (Souza, 2021; Macedo et al, 2017),  
tem apontado que pessoas com menor escolaridade apresentam maior vulnerabilidade à  
infecção, muitas vezes por falta de informação sobre saúde sexual e reprodutiva, dificuldade de  
Nilene dos Santos Souza; Carlos Antonio de Souza Moraes  
acesso a serviços de saúde e maior exposição a comportamentos de risco, como o uso de drogas  
e a prática de relações sexuais sem proteção.  
No tocante a escolaridade das gestantes com sífilis diagnosticadas CTA em Campos,  
verifica-se que há prevalência de escolaridades reduzidas, semelhante ao observado no estudo  
comparativo anterior (Souza, 2021) e em outras pesquisas desenvolvidas no país (Conceição;  
Câmara; Pereira, 2019; Caldana et al 2021). No caso campista, 65,6% das gestantes atendidas  
na instituição não possuíam ensino fundamental ou médio completo e apenas 01 gestante  
possuía o ensino superior. Em estudo semelhante, Cavalcante (2021) também verificou que a  
maioria das gestantes com sífilis apresentava baixa escolaridade, com grande proporção tendo  
apenas o ensino fundamental incompleto.  
Por essas razões, é fundamental que a educação sexual e a prevenção de infecções  
sexualmente transmissíveis sejam incluídas nos programas de educação em todos os níveis de  
escolaridade, desde a pré-escola até o ensino superior. Torna-se necessário o acesso universal  
a serviços de saúde adequados para prevenção, diagnóstico e tratamento da sífilis e outras IST’s,  
sem qualquer tipo de discriminação. Outrossim, deve-se levar em conta as demandas e  
características de classe, raça, gênero, geração, escolaridade e outras variáveis que corroboram  
para ampliação ou redução dessa problemática e que evidenciam a desigualdade estrutural e a  
determinação social da saúde.  
584  
Considerações finais  
A Epidemiologia Latino-americana (ELA), sustentada na tradição marxista,  
compreende que as relações sociais de produção e reprodução social, dentro do contexto  
capitalista, geram desigualdades que afetam as necessidades em saúde e a forma como as  
pessoas vivem e adoecem. A abordagem da ELA é fundamental para analisar e compreender a  
determinação social da saúde, especialmente em relação às categorias raça, classe, gênero e  
território, e suas implicações na saúde das populações.  
Nesse contexto, é inegável que a classe social desempenha um papel significativo como  
fator de risco para uma variedade de condições de saúde. Afirmamos que a saúde das  
populações é influenciada pelas condições sociais, econômicas e políticas em que estão  
inseridas, e a sífilis gestacional evidencia essa premissa, uma vez que a sua incidência está  
intimamente ligada às condições de vulnerabilidade social e à falta de acesso a serviços de  
saúde adequados.  
Embora reconheçamos que as gestantes de baixa renda não sejam exclusivamente  
afetadas pela sífilis, é plausível afirmar que, entre os principais fatores de risco da doença e  
Libertas, Juiz de Fora, v. 24, n. 2, p. 570-589, jul./dez. 2024. ISSN 1980-8518  
Determinação social da saúde e Sífilis gestacional em Campos, RJ:  
particularidades de classe, raça, gênero e território  
suas consequências, a classe trabalhadora e em situação de pobreza se torna a mais vulnerável  
à sua propagação. Esse fato foi observado em Campos dos Goytacazes, a partir da análise dos  
níveis de escolaridade, raça, além da relação entre raça e território.  
No que tange ao território como expressão da determinação social do processo saúde-  
doença, destaca-se as condições materiais e sociais presentes em um determinado espaço  
geográfico. No contexto da sífilis gestacional, sua abordagem ressalta como as condições de  
vida e trabalho das populações mais pobres, residentes em determinadas localidades, estão  
diretamente relacionadas à prevalência e gravidade da doença. A partir dos dados primários e  
secundários da pesquisa analisados ao longo deste artigo, compreendemos que a falta de acesso  
aos serviços de saúde, a precariedade das condições de habitação, o desemprego e a falta de  
acesso à educação, são fatores que contribuem para a disseminação da sífilis gestacional em  
determinadas regiões do país e do mundo.  
A consideração da dimensão racial na determinação social da saúde é crucial para  
compreender as bases sociais das desigualdades. A falta de acesso aos cuidados de saúde e as  
condições precárias de vida das populações mais desfavorecidas, associadas à herança histórica  
da escravização e ao descaso político e social, explicam a alta prevalência de sífilis gestacional  
em Campos dos Goytacazes, RJ, evidenciando a iniquidade das condições de vida que  
influenciam o adoecimento da população. As análises de tais condições a partir da perspectiva  
da determinação social da saúde, ainda reconhece que as desigualdades de gênero, incluindo a  
discriminação e a opressão enfrentadas pelas mulheres, contribuem de forma significativa para  
várias doenças e problemas de saúde.  
585  
A subordinação de gênero resulta na perda de poder e autonomia, tornando as mulheres  
mais vulneráveis à violência e dificultando o acesso a serviços essenciais de saúde. Além disso,  
a interseccionalidade do gênero com raça/etnia, classe social e orientação sexual intensifica a  
desigualdade de gênero para grupos mais desfavorecidos. O impacto do racismo na saúde da  
população afrodescendente, especialmente na experiência de gestantes, é evidente; no entanto,  
o silêncio e a invisibilidade das experiências negras dificultam a percepção e redução da sífilis  
gestacional, o que pudemos verificar no caso campista.  
A inclusão da variável raça/cor nos registros de saúde é complexa devido a resistências  
e dificuldades culturais e operacionais, requerendo sensibilização e capacitação contínuas dos  
profissionais de saúde. Neste contexto, a implementação de cursos de formação para os  
profissionais de saúde sobre a dimensão racial pode contribuir para a melhoria da qualidade da  
assistência prestada à população, especialmente em áreas com alta incidência de sífilis  
gestacional.  
Nilene dos Santos Souza; Carlos Antonio de Souza Moraes  
É importante ainda destacar a educação em saúde, no sentido de mobilizar a consciência  
da população sobre os riscos da sífilis e a importância do pré-natal para a saúde da gestante e  
do bebê.  
À luz dessas reflexões, constatamos que se torna fundamental que o SUS aprimore seus  
processos de trabalho, considerando as diferentes esferas de cobertura assistencial e os  
cuidados contingentes, ainda que reconheça que essas questões ultrapassam a realidade dos  
serviços de saúde e expressem elementos históricos e estruturais da sociedade do capital.  
Tendo em vista este contexto, complexo e multifacetado, é fundamental que as estratégias para  
a promoção da equidade em saúde sejam pautadas por uma análise crítica e contextualizada  
da questão racial, levando em conta não apenas os aspectos técnicos e normativos, mas  
também os elementos culturais, sociais e históricos que influenciam a dinâmica das relações  
raciais e a construção das desigualdades em saúde. Elementos que, analisados de forma crítica,  
são expressões da determinação social da saúde, de natureza estrutural e conjuntural, vinculada  
à sociedade do capital e as relações capitalistas.  
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Assistência multiprofissional em saúde e  
prontuário hospitalar: elementos para a  
reflexão no Serviço Social  
Multiprofessionality Health care and hospital records:  
elements for reflection in Social Work  
Marcela Gonçalves de Araújo*  
Marina Monteiro de Castro e Castro**  
Resumo: O prontuário hospitalar é um  
documento importante para a assistência à  
saúde, por conter o histórico de saúde dos  
usuários, por seu caráter legal e por ser um  
instrumento de comunicação entre a equipe  
multiprofissional. Com base na Residência  
Multiprofissional Hospitalar, este artigo  
apresenta reflexões para o Serviço Social a  
partir de uma perspectiva multiprofissional,  
discorrendo sobre a categoria da linguagem e a  
questão do sigilo profissional, além de fazer  
apontamentos sobre a sociabilidade capitalista e  
o impacto da pandemia de covid-19 na  
digitalização dos prontuários. Para tal, foi  
realizada revisão bibliográfica, análise  
documental da legislação e de normativas  
profissionais sobre o tema proposto. Com base  
neste estudo, constata-se a linguagem como  
categoria fundamental para o valor documental  
e instrumental do prontuário hospitalar, cujo  
formato eletrônico apresenta benefícios, mas  
reforça a necessidade de ampliação do debate  
sobre o sigilo profissional.  
Abstract: Hospital records are important  
documents for healthcare, as they contain the  
health history of users, are legally binding, and  
are a communication tool for multidisciplinary  
teams. Based on the Hospital Multidisciplinary  
Residency, this article presents reflections for  
Social Work from  
a
multidisciplinary  
perspective, discussing the category of  
language and the issue of professional secrecy,  
in addition to making notes on capitalist  
sociability and the impact of the COVID-19  
pandemic on the digitalization of medical  
records. To this end, a bibliographic review and  
documentary analysis of legislation and  
professional regulations on the proposed topic  
were carried out. Based on this study, language  
is seen as a fundamental category for the  
documentary and instrumental value of hospital  
records, whose electronic format presents  
benefits, but reinforces the need to expand the  
debate on professional secrecy.  
Palavras-chaves: Prontuário hospitalar; Saúde;  
Keywords:  
Hospital  
records;  
Multiprofissionalidade, Serviço Social.  
Multiprofessionality; Health; Social Work.  
* Assistente social. Especialista em Residência Multiprofissional em Atenção Hospitalar. Residente do Programa  
de Residência Multiprofissional em Saúde da Família. ORCID: https://orcid.org/0000-0002-6360-8692  
** Assistente Social. Doutora em Serviço Social pela Escola de Serviço Social da Universidade Federal do Rio de  
Janeiro (ESS/UFRJ). Professora associada da Faculdade de Serviço Social/Universidade Federal de Juiz de Fora  
(FSS/UFJF). Tutora do Programa de Residência Multiprofissional em Saúde do Adulto (HU/UFJF). Membro do  
Grupo de Estudos, Pesquisas e extensão dos Fundamentos do Serviço Social (GEPEFSS – FSS/UFJF). ORCID:  
DOI: 10.34019/1980-8518.2024.v24..44579  
Esta obra está licenciada sob os termos  
Recebido em: 18/05/2024  
Aprovado em: 18/09/2024  
Assistência multiprofissional em saúde e prontuário hospitalar:  
elementos para a reflexão no Serviço Social  
Introdução  
O prontuário hospitalar é um importante objeto de estudo de pesquisadores da área da  
saúde, especialmente no âmbito da saúde coletiva. Entre os aspectos deste objeto que geram  
debates, destacam-se a sua importância enquanto instrumento de registro do trabalho da equipe  
de assistência multiprofissional à saúde e de afirmação da integralidade do cuidado (Mesquita;  
Deslandes, 2010; Fujimori; Prado, 2006; Vasconcelos et al., 2008), a importância do registro  
adequado e a qualidade do atendimento ao usuário (Pavão et al., 2011) e a questão do sigilo  
profissional (Mesquita; Deslandes, 2010; Rodrigues; Sampaio, 2014).  
A caracterização do prontuário hospitalar enquanto documento valioso para os usuários,  
a questão da linguagem e o cuidado com sua utilização são também pontos importantes na  
discussão do tema. Além disso, chama atenção o avanço tecnológico que possibilitou a  
implementação do prontuário hospitalar no formato eletrônico, especialmente o rápido  
crescimento de recursos digitais durante a pandemia do novo coronavírus (Celuppi et al., 2021).  
O prontuário hospitalar é redigido com os registros dos profissionais, que descrevem as  
intervenções realizadas (seja no contato direto ou indireto com o usuário). Portanto, as  
informações constantes no prontuário não são meras anotações ou relatos, mas registros  
documentais. Isso significa que, para redigir o prontuário hospitalar de um usuário, seja  
impresso ou eletrônico, o profissional precisa dedicar um momento para essa ação dentro de  
sua jornada de trabalho, pois é, de fato, parte do trabalho.  
591  
Assim, o manuseio e o registro no prontuário do usuário não é um mero trabalho  
burocrático, não é apenas a obrigação institucional de registrar o que foi feito, mas é a obrigação  
ética de zelar, registrar, refletir sobre o que foi e poderá ser feito pelo usuário, acompanhado da  
ciência de que todas as categorias que prestam cuidados podem e devem acessar o que  
está escrito. Por isso, tomando a saúde em sua dimensão mais ampla, não se deve perder de  
vista que o prontuário é um instrumento do trabalho multiprofissional em saúde, constituindo-  
se como uma forma de comunicação interprofissional em que a linguagem aparece como  
categoria fundamental e insuprimível das relações sociais.  
No âmbito do Serviço Social entendemos, a partir de Matos (2013), que o prontuário é  
um documento de registro do trabalho profissional que contribui com o trabalho de outros  
profissionais, e a redação textual ali contida é formada por uma opinião técnica do assistente  
social sobre o acompanhamento junto aos usuários e/ou familiares. No entanto, Matos (2013)  
afirma que há fragilidades dos registros profissionais do Serviço Social, seja pela não clareza  
da redação ou pelo esvaziamento de seu conteúdo.  
Marcela Gonçalves de Araújo; Marina Monteiro de Castro e Castro  
Desta forma, com o intuito de avançar com este debate na profissão, o presente artigo  
parte de uma análise multiprofissional sobre o prontuário e indica, a partir destes elementos,  
reflexões para o trato deste documento.  
Para debater os elementos expostos acima, foi realizada revisão bibliográfica, buscando  
obras e artigos relativos ao tema e pertinentes ao objeto de estudo, assim como análise  
documental, recorrendo a leis, normas e resoluções de conselhos profissionais que contemplem  
a temática.  
Para que o prontuário eletrônico, que proporciona maior facilidade de acesso aos  
profissionais, cumpra uma de suas funções, que é a de “atuar como mediador da comunicação  
intraequipe de saúde e da comunicação dessa equipe com o usuário [...]” (Mesquita; Deslandes,  
2010, p. 664), um dos desafios que se apresenta é o do uso adequado da linguagem - que  
preserve a terminologia técnica específica de cada categoria, mas que mantenha também um  
enunciado dotado de significado para as demais categorias e também para os usuários. Outras  
questões que se colocam é a do sigilo e a de como as categorias profissionais compreendem os  
registros e o prontuário hospitalar, sendo esse um documento insuprimível dos atendimentos  
em saúde.  
É importante destacar ainda que este artigo é produto de experiência em residência  
multiprofissional em atenção hospitalar e busca contribuir com o trabalho profissional em  
hospitais.  
592  
Prontuário hospitalar: documento central da assistência à saúde  
O prontuário hospitalar é um documento. Portanto, para analisar os aspectos que  
envolvem o debate sobre o prontuário é imprescindível a compreensão do que seja um  
documento. Outro elemento fundamental a ser apreendido é a categoria linguagem, pois a  
linguagem, em suas mais variadas formas de expressão, é elemento constitutivo de qualquer  
documento.  
Sendo o prontuário hospitalar o objeto deste artigo, trataremos aqui de uma das formas  
de documento e uma das formas da expressão da linguagem: o documento textual:  
Um documento, portanto, é material, possui uma intenção em evidência,  
sendo passível de ser organizado e tratado para ser disseminado, cujo conteúdo  
apresenta uma tematicidade específica e delimitada, expressa, textualmente,  
com coesão, coerência, que se consubstanciam em informação, aceita  
(reconhecida) em um dado contexto (situacionalidade) (Fujita et al., 2012, p.  
139).  
Libertas, Juiz de Fora, v. 24, n. 2, p. 590-607, jul./dez. 2024. ISSN 1980-8518  
Assistência multiprofissional em saúde e prontuário hospitalar:  
elementos para a reflexão no Serviço Social  
Conforme a definição acima, o documento textual, necessariamente, deve ser coeso e  
coerente e, portanto, bem estruturado no tocante às palavras que o compõem e nas ideias que o  
permeiam.  
Esta análise segue ainda a perspectiva de que a linguagem é uma categoria central para  
as relações sociais e que expressa de diversas formas a realidade dos sujeitos. Na esteira do  
pensamento marxiano, a linguagem é insuprimível na constituição do homem enquanto ser  
social, sendo a capacidade de comunicar-se por meio da linguagem fruto da consciência, assim  
como o trabalho planejado, o que distingue os homens dos animais:  
[...] tão antiga quanto a consciência — a linguagem é a consciência real,  
prática, que existe para os outros homens e que, portanto, também existe para  
mim mesmo; e a linguagem nasce, tal como a consciência, do carecimento, da  
necessidade de intercâmbio com outros homens (Marx e Engels, 2007, p. 34-  
35).  
Ao dominar a natureza, pensar sobre as ações e planejar o trabalho, o homem passa a  
precisar se comunicar, criando cada vez mais elaboradas formas de troca de informações. Sobre  
isso, Engels (1876, p. 3) propunha que  
[...] o desenvolvimento do trabalho, ao multiplicar os casos de ajuda mútua e  
de atividade conjunta, e ao mostrar assim as vantagens dessa atividade  
conjunta para cada indivíduo, tinha que contribuir forçosamente para agrupar  
ainda mais os membros da sociedade. Em resumo, os homens em formação  
chegaram a um ponto em que tiveram necessidade de dizer algo uns aos  
outros. A necessidade criou o órgão: a laringe pouco desenvolvida do macaco  
foi-se transformando, lenta mas firmemente, mediante modulações que  
produziam por sua vez modulações mais perfeitas, enquanto os órgãos da boca  
aprendiam pouco a pouco a pronunciar um som articulado após outro.  
593  
Depreende-se, portanto, que “a comparação com os animais mostra-nos que essa  
explicação da origem da linguagem a partir do trabalho e pelo trabalho é a única acertada”  
(Engels, 1876, p. 3).  
Prosseguindo a análise à luz da teoria marxiana, vemos que o desenvolvimento do  
sistema capitalista gerou, além do enriquecimento exponencial da classe burguesa, o  
empobrecimento igualmente exponencial da classe trabalhadora. À medida que a sociedade se  
transforma e as relações se complexificam, o domínio da burguesia avança para os campos mais  
particulares da vida humana, sendo possível, inclusive, a criação de necessidades de consumo  
e de formas de comunicação antes sequer imaginadas. Assim, o domínio dos padrões e dos  
valores do que é tido como certo ou errado, os padrões morais, tendem a ser impostos pela  
dinâmica da sociabilidade capitalista.  
A linguagem, dessa forma, constitui-se como uma categoria, um conjunto de signos que  
homens e mulheres utilizam para estabelecer comunicação entre si e que perpassa todas as  
Marcela Gonçalves de Araújo; Marina Monteiro de Castro e Castro  
esferas da vida humana. Além das características cognitivas de codificação e decodificação  
das informações a linguagem, como categoria intrínseca à relação entre os seres humanos,  
também é atravessada pela correlação de forças presente em uma determinada sociabilidade, de  
modo que os valores dela decorrentes são expressos nas formas de linguagem e nos padrões  
ético-morais estabelecidos.  
Assim, o documento, enquanto objeto dotado da potencialidade de interferir na vida das  
pessoas, possui um significado social, cuja linguagem ainda que técnica e pautada pela  
objetividade acaba por refletir o contexto em que é criado, bem como a intencionalidade, a  
orientação ético-política e a posição social de quem o produz, além das relações de poder nas  
quais se encontram inseridos seu autor e a instituição à qual este se vincula.  
Nestas circunstâncias, o prontuário hospitalar é um documento que possui uma série de  
leis e normas que o regulamentam, além de ser indispensável para os atendimentos aos usuários  
da saúde. Em suma, os prontuários guardam a história e as condutas do atendimento, registrando  
a circulação do usuário pelos serviços e as intervenções das diversas categorias profissionais  
que lhe prestam assistência. Cada categoria faz uso do próprio discurso técnico, típico de sua  
profissão. Os profissionais devem fazer os seus registros sob o domínio da norma culta e  
denotativa da linguagem, do modo mais cuidadoso e fidedigno possível, pois o documento-  
prontuário pode vir a subsidiar outros documentos ou ser ele mesmo apresentado pelo próprio  
usuário na defesa de algum interesse. Assim,  
594  
[...] tratado aqui como registro em saúde, prontuário é definido como  
documento único, constituído de um conjunto de informações, sinais e  
imagens registradas, geradas com base em fatos, acontecimentos e situações  
sobre a saúde do paciente e a assistência a ele prestada, de caráter legal,  
sigiloso e científico, que possibilita a comunicação entre membros da equipe  
multiprofissional e a continuidade da assistência prestada ao indivíduo  
(Vasconcelos et al., 2008, p. 173-174).  
É importante destacar que, sendo o prontuário um documento composto por  
informações relativas ao paciente, é seu direito acessá-las em sua integralidade. O subsídio legal  
desta matéria encontra-se, primeiramente, na Constituição Federal de 1988, em seu Artigo 5º,  
em que “é assegurado a todos o acesso à informação [...]” (Brasil, 1988). O artigo 5º, estabelece  
também que “são invioláveis a intimidade, a vida privada, a honra e a imagem das pessoas,  
assegurado o direito a indenização pelo dano material ou moral decorrente de sua violação[...]”  
(Brasil, 1988).  
A partir da Carta Magna de 1988, uma série de leis que dispõem sobre a privacidade e  
a proteção de dados vem entrando em vigor, robustecendo o arcabouço jurídico para resguardar  
Libertas, Juiz de Fora, v. 24, n. 2, p. 590-607, jul./dez. 2024. ISSN 1980-8518  
Assistência multiprofissional em saúde e prontuário hospitalar:  
elementos para a reflexão no Serviço Social  
o direito à privacidade e ao sigilo aplicado ao prontuário e às demais informações de saúde dos  
indivíduos.  
Destacamos que este debate compõem as lutas em torno do direito à saúde e da  
humanização do acesso e assistência nos serviços de saúde. Ou seja, o entendimento do  
prontuário enquanto do usuário, o acesso a informação, a garantia do registro do tratamento de  
saúde, são componentes intrínsecos a conformação do direito à saúde enquanto parte do  
movimento e da luta coletiva da população brasileira em torno do cuidado integral e de uma  
assistência em saúde pública, estatal e de qualidade.  
Em tempos mais recentes, a Lei Geral de Proteção de Dados (LGPD), por exemplo, nos  
termos dos artigos 17 e 18, determina que “toda pessoa natural tem assegurada a titularidade de  
seus dados pessoais e garantidos os direitos fundamentais de liberdade, de intimidade e de  
privacidade” (Brasil, 2018a); bem como, nos termos de seu Artigo 5º, estabelece que o  
tratamento de dados pessoais envolve qualquer operação realizada com esses dados, tais como:  
[...] a coleta, produção, recepção, classificação, utilização, acesso, reprodução,  
transmissão, distribuição, processamento, arquivamento, armazenamento,  
eliminação, avaliação ou controle da informação, modificação, comunicação,  
transferência, difusão ou extração [...] (Brasil, 2018a).  
Sobre esse tema, pode-se obter respaldo ainda no Código de Defesa do Consumidor,  
que, em seu artigo nº 72, estipula que constitui crime “impedir ou dificultar o acesso do  
consumidor às informações que sobre ele constem em cadastros, banco de dados, fichas e  
registros” (Brasil, 1990).  
595  
A preocupação com os cuidados, o manuseio, o armazenamento e o registro das  
informações dos usuários da saúde ampliou-se ainda mais a partir da informatização dos dados  
e do avanço da tecnologia da comunicação e da internet, momento em que elucidou-se a  
possibilidade de substituir o prontuário físico de papel pelo eletrônico.  
Fazendo um resgate dos precedentes históricos desse processo, constata-se que o  
primeiro sistema de informação de saúde no Brasil foi desenvolvido na década de 1970 e dizia  
respeito aos registros de óbitos. Nos anos de 1990, já no âmbito do Sistema Único de Saúde  
(SUS) e com o avanço da informatização, foram incorporadas as novas possibilidades de  
armazenamento e acesso das informações de saúde por meio da internet (Cunha et al., 2017).  
No Brasil, a digitalização do prontuário hospitalar foi regulamentada no início dos anos  
2.000 a partir da Resolução nº 1.639 de julho de 2002, do Conselho Federal de Medicina (CFM).  
Com o aprimoramento das tecnologias e a difusão dos sistemas de digitalização, tratamento e  
armazenamento de dados dos cidadãos, foi criada a referida LGPD em 2018. Ainda nesse  
mesmo ano, foi promulgada a Lei nº 13.787, de 27 de dezembro, que dispõe sobre a  
Marcela Gonçalves de Araújo; Marina Monteiro de Castro e Castro  
“digitalização e a utilização de sistemas informatizados para a guarda, o armazenamento e o  
manuseio de prontuário de paciente”, determinando que “no processo de digitalização será  
utilizado certificado digital emitido no âmbito da Infraestrutura de Chaves Públicas Brasileira  
(ICP-Brasil) ou outro padrão legalmente aceito” (Brasil, 2018b).  
Sumariamente, o prontuário eletrônico vem sendo implantado nas unidades  
hospitalares, “não só para substituir o prontuário em papel, mas também para elevar a qualidade  
da assistência à saúde por meio de novos recursos e aplicações” (Silva, 2021, p. 4).  
Como já posto, o acesso à informação é um direito do próprio usuário da saúde, do  
responsável ou de seu representante legal. No âmbito do SUS, pensando-se em prontuário  
hospitalar, aplica-se o exposto na Lei de Acesso à Informação (LAI), de novembro de 2011,  
que determina, no artigo 5º, que “é dever do Estado garantir o direito de acesso à informação,  
que será franqueada, mediante procedimentos objetivos e ágeis, de forma transparente, clara e  
em linguagem de fácil compreensão” (Brasil, 2011, s/p). Além disso, em seu artigo nº 31, esta  
lei dispõe que “o tratamento das informações pessoais deve ser feito de forma transparente e  
com respeito à intimidade, vida privada, honra e imagem das pessoas, bem como às liberdades  
e garantias individuais” (Brasil, 2011, s/p).  
É pertinente destacar que a pandemia do coronavírus decretada em 2020, conforme  
apresentado por Celuppi et al. (2021, p. 2), “forçou uma mudança no modelo tradicional de  
atendimento”, provocando um rápido desenvolvimento tecnológico não só no Brasil, mas no  
mundo. Observou-se o aumento do uso de dados, aplicativos e recursos como o teleatendimento  
e a telemedicina, em decorrência das necessidades de mitigação do vírus da covid e  
distanciamento social desencadeada pela pandemia.  
596  
Nessa mesma perspectiva, discorrendo acerca da digitalização do trabalho no  
capitalismo em crise, Raichelis (2022) esclarece que  
A expansão da digitalização do trabalho e de modalidades de trabalho on-line,  
como o home office, e as distintas formas de trabalho remoto — teletrabalho,  
teleatendimento, tele-educação, teleconsultas médicas, teleterapias etc.,  
existentes até então de modo residual —, com a pandemia do novo  
coronavírus passaram a ser adotadas em larga escala, em todas as áreas e  
setores do mercado de trabalho público e privado [...] (Raichelis, 2022, p. 10).  
Identifica-se, assim, que as práticas tecnológicas fomentadas pela pandemia da covid-  
19 se mantiveram e ampliaram, à medida que a digitalização e a informatização, inclusive pelo  
aumento de dispositivos como smartphones, tablets e computadores em uso, deixou de ser uma  
tendência, no caso brasileiro, para tornar-se a realidade imposta pelo coronavírus (Souza, 2020).  
Tal condição impactou diversas dimensões da vida e das relações sociais, inclusive em  
vista da característica exploratória do capitalismo, que sempre assume novas estratégias em  
Libertas, Juiz de Fora, v. 24, n. 2, p. 590-607, jul./dez. 2024. ISSN 1980-8518  
Assistência multiprofissional em saúde e prontuário hospitalar:  
elementos para a reflexão no Serviço Social  
seus momentos de crise. Em outras palavras, a difusão da tecnologia cria novas possibilidades  
e facilidades, mas, sobretudo, cria novas formas de exploração. Portanto, a pandemia da covid-  
19, inscrita nas dinâmicas das relações sociais capitalistas, desencadeou e acelerou a  
necessidade da utilização de recursos digitais, diminuindo o contato físico e ampliando a rede  
de contatos virtuais.  
Localizam-se, neste contexto, os atendimentos e registros virtuais em saúde, como o  
prontuário hospitalar, que acelerou a comunicação e a troca de informações entre profissionais,  
instituições, redes e serviços de saúde.  
Prontuário hospitalar e equipe de saúde: apontamentos para o Serviço Social  
É indiscutível que, quando se pensa em prontuário hospitalar, a associação desse  
documento à imagem do médico ocorre automaticamente, como se essa categoria fosse a única  
responsável pela estruturação de registros e prontuários. De fato, a gênese da elaboração de  
documentos em saúde é médico-centrada, com normas e regulamentações focadas nessa  
categoria, como as resoluções do Conselho Federal de Medicina (CFM) sobre o tema. É  
comum, aliás, o uso do termo “prontuário médico”, apesar deste vir sendo gradualmente  
substituído por “prontuário do paciente” - em decorrência do espraiamento da concepção  
ampliada de saúde, desde o Movimento da Reforma Sanitária dos anos 1970 no Brasil, e as  
“transformações na relação médico-paciente” (Patrício et al., 2011).  
597  
Desta forma, não se trata, assim, de desconsiderar a importância das resoluções do  
CFM.1 Afinal, por se tratar de um documento acessado por vários profissionais dentro de uma  
equipe multiprofissional, o prontuário hospitalar precisa estar respaldado e regulamentado por  
leis. Além disso, é importante ressaltar que o objetivo da legislação vigente é, acima de tudo,  
proteger e garantir o direito ao sigilo das informações pessoais dos usuários dos serviços de  
saúde.  
O uso do termo “prontuário médico” é decorrente da centralidade médica na própria  
história da saúde, que em sua trajetória foi vista eminentemente como ausência de doença e  
atrelada a figura do médico - sujeito responsável pela reversão do adoecimento do corpo, ou  
seja, centrado nos aspectos biológicos da doença. Na perspectiva biomédica, não são  
consideradas as desigualdades produzidas pelo sistema capitalista, o qual, conforme já  
mencionado no ponto anterior, implica no empobrecimento exponencial da classe que necessita  
de sua força de trabalho para sobreviver. A partir desta premissa, este trabalho segue a linha de  
1 Cf. Resolução CFM nº 1.931/2009, Resolução CFM nº 1.605/2000, Resolução CFM nº 1.638/2002, Resolução  
CFM Nº 1.821/2007, Recomendação CFM nº 3/2014 e Resolução CNS 466/12.  
Marcela Gonçalves de Araújo; Marina Monteiro de Castro e Castro  
que a saúde deve ser entendida de modo indissociável das relações de poder e de exploração na  
sociabilidade capitalista e, portanto, indissociável do fenômeno da “questão social”.  
Compreender a posição do sujeito na dinâmica das forças produtivas e os rebatimentos  
que essa posição implica para a saúde é tão importante quanto o exame biológico do corpo. Não  
se trata de dizer que as expressões da “questão social” são mais ou menos importantes a serem  
consideradas do que o fator biológico no debate sobre saúde. Trata-se de afirmar que o fator  
biológico e a determinação social do processo saúde-doença, em suas diversas expressões,  
devem ser inseparáveis nessas análises. A relação entre as expressões da “questão social” e o  
processo saúde-doença nos mostra que certa parcela da população carece de meios para realizar  
a sua reprodução social de forma a atender satisfatoriamente suas necessidades físicas,  
emocionais e materiais, o que incide em condições de vida e trabalho que propiciam o  
adoecimento (Castro; Leal, 2021, p. 86).  
Tendo em vista as transformações de concepção de saúde, a defesa da  
multiprofissionalidade e da determinação social do processo saúde-doença, entendemos que os  
termos mais adequados seriam “prontuário do usuário dos serviços de saúde” ou, ao se tratar  
especificamente do âmbito hospitalar, “prontuário hospitalar”.  
Prosseguindo com a análise, para que um texto escrito por um profissional da saúde se  
torne um documento, é necessário que tenha significado e valor, conforme apresentado no  
tópico anterior. Ou seja, precisa de uma intencionalidade de quem o escreve e precisa fazer  
sentido para quem o lê ou o recebe.  
598  
Ademais, um documento como o prontuário hospitalar, conforme a legislação e as  
normas estabelecidas,2 só possui validade jurídica se nele estiver explícita a autoria de quem o  
escreveu, por um meio que permita a comprovação de sua autenticidade. Portanto, o prontuário  
hospitalar deve conter informações que tenham a clara identificação não só do usuário, mas  
também dos profissionais que as redigiram, sendo estes responsáveis por tais informações.  
A identificação desses profissionais é realizada, geralmente, por meio de assinatura e  
carimbo que contém o número de registro estabelecidas por seus Conselhos profissionais.  
Assim, ao solicitar uma cópia do prontuário (usufruindo de um direito previsto por lei), o  
usuário, o seu representante legal ou autoridade competente, consegue identificar o profissional,  
a competência técnica de quem escreveu a informação e a autenticidade das informações.  
A possibilidade de substituir o prontuário de papel pelo eletrônico apresenta uma série  
de vantagens, como a facilidade de acesso e manuseio pelos profissionais, além de maior  
2 Vide a Resolução CFM nº 1.821/2007 e o Decreto nº 10.278, de 18 de março de 2020 (Brasil, 2020).  
Libertas, Juiz de Fora, v. 24, n. 2, p. 590-607, jul./dez. 2024. ISSN 1980-8518  
Assistência multiprofissional em saúde e prontuário hospitalar:  
elementos para a reflexão no Serviço Social  
dificuldade de extravio, já que o papel pode ser perdido ou danificado. Além disso, considera-  
se que a digitalização das informações contribui para o fim do excessivo consumo de papel nas  
instituições de saúde. No entanto, para que o prontuário de papel seja substituído pelo  
prontuário eletrônico, é necessária a implantação, de forma total, da tecnologia de assinatura ou  
certificação eletrônica que atenda a padrões de segurança validados.  
Outro elemento de destaque é que a digitalização dos registros dos atendimentos é  
realizada por variadas categorias e profissionais, ampliando a facilidade de acesso às  
informações do usuário. Desta forma, tal fato requer posturas profissionais qualificadas e um  
arcabouço legal do Estado e dos Conselhos Profissionais que vise a proteção do sigilo, a  
preservação da imagem e o cuidado ético com as informações dos usuários, especialmente, na  
relação intraequipe.  
No âmbito das regulamentações profissionais, o Código de Ética Médica determina  
claramente que o profissional da medicina não pode se negar a disponibilizar as informações  
para os seus pacientes, salvo em circunstâncias extraordinárias (Conselho Federal de Medicina,  
2019). No entanto, é importante destacar que não cabe apenas ao profissional da medicina  
saber que as informações contidas no prontuário hospitalar podem ser requeridas e acessadas  
pelo usuário. Todos os profissionais envolvidos na assistência precisam estar cientes, com base  
nos princípios fundamentais estabelecidos na Constituição Federal e nas demais legislações  
congêneres, que o acesso à informação sobre o que lhe diz respeito é direito do cidadão.  
Além de conhecer o conteúdo, compreender o histórico de seu acompanhamento de  
saúde e ter acesso ao relato das intervenções realizadas, o usuário pode solicitar uma cópia de  
seu prontuário, por exemplo, para fins judiciais e para apresentá-la como prova em uma ação  
na qual pese a seu favor elementos contidos no prontuário hospitalar; assim como alguma  
autoridade jurídica pode solicitá-la para embasar a defesa ou acusação imputada a usuários dos  
serviços de saúde. Dessa forma,  
599  
Ressalta-se que o prontuário é um instrumento do paciente, integrando um  
sistema de registro que deve conter dados de identificação e relativos à história  
do indivíduo na interface entre processo de adoecimento e situação social de  
forma compreensível. Para a equipe de saúde, o registro é material sigiloso,  
cujo acesso é facultado apenas aos profissionais envolvidos no atendimento e  
aos usuários a que se referem (Mesquita; Deslandes, 2010, p. 666).  
O prontuário é, portanto, um documento extremamente valioso não só para os  
profissionais e para a instituição de saúde, mas também para o usuário.  
Mesquita e Deslandes (2010) realizaram uma análise documental de prontuários em dois  
serviços de saúde especializados em pré-natal de adolescentes de determinada localidade. No  
estudo, as autoras identificaram que, em um desses serviços, onde predominava a lógica do  
Marcela Gonçalves de Araújo; Marina Monteiro de Castro e Castro  
prontuário único para ambulatório e internação, faltavam nesses documentos registros de  
profissionais de Psicologia e Serviço Social. No entanto, as autoras relatam que essas mesmas  
categorias mantinham cadernos e agendas separados, guardados em suas salas, com anotações  
sobre os atendimentos às usuárias do serviço, buscando a manutenção do sigilo. As  
pesquisadoras concluíram, então, que nessa unidade de saúde, “a equipe não se comunicava  
através de prontuários, fruto de uma prática que, particularmente, não contribui para o  
desenvolvimento de ações interdisciplinares” (Mesquita; Deslandes, 2010, p. 669).  
É incontestável que o registro adequado no prontuário das intervenções realizadas pelos  
profissionais dos serviços de saúde é fundamental para a qualidade assistencial (Bombarda e  
Joaquim, 2022) e que a manutenção do sigilo sobre as informações dos usuários, resguardadas  
por legislação, é responsabilidade tanto desses profissionais quanto das instituições que  
realizam os atendimentos. Contudo, uma preocupação recorrente trazida pelo Serviço Social na  
relação com a equipe profissional no âmbito da experiência de Residência que subsidiou este  
artigo é: quais são os “limites do sigilo” para que a falta de registro no prontuário não acabe  
incorrendo em omissão de informações e colocação de entraves à comunicação entre a equipe  
multiprofissional, bem como ao acesso dos usuários aos seus direitos?  
A esse respeito, pensando o prontuário no ambiente hospitalar e à luz das constatações  
apresentadas pela pesquisa de Mesquita e Deslandes (2010), apontamos aqui as considerações  
das autoras referentes a algumas categorias profissionais.  
600  
Profissionais como psicólogos e assistentes sociais, inseridos na equipe  
multiprofissional, pela própria natureza da profissão, colocam-se diante das subjetividades das  
pessoas atendidas, acessando campos da história de vida das pessoas e suas famílias que, muitas  
vezes, outros membros da equipe de saúde não acessam. Certamente, a Psicologia e o Serviço  
Social, assim como a Medicina e a Enfermagem, apresentam a questão do sigilo em seus  
respectivos códigos de ética profissional, mas o que difere psicólogos e assistentes sociais dos  
demais profissionais da saúde é que as suas intervenções não são voltadas primordialmente para  
a dimensão biológica do sujeito. Psicólogos tem acesso à dimensão privada da vida do usuário”  
(Mesquita; Deslandes, 2010, p. 668); e os assistentes sociais atuam sob as variadas expressões  
da “questão social”, e como “tais como os indivíduos as experimentam no trabalho, na família,  
na área habitacional, na saúde, na assistência social pública etc.” (Iamamoto, 2000, p. 27-28).  
A resolução nº 001/2009 do Conselho Federal de Psicologia, que dispõe sobre a  
obrigatoriedade do registro dos atendimentos psicológicos, em seu artigo 6º determina que em  
trabalho multiprofissional “o registro deve ser realizado em prontuário único” e “devem ser  
registradas apenas informações necessárias ao cumprimento dos objetivos do trabalho”  
Libertas, Juiz de Fora, v. 24, n. 2, p. 590-607, jul./dez. 2024. ISSN 1980-8518  
Assistência multiprofissional em saúde e prontuário hospitalar:  
elementos para a reflexão no Serviço Social  
(Conselho Federal De Psicologia, 2009).  
Quanto ao Serviço Social, não existe nenhuma resolução que traga matéria específica  
sobre prontuário hospitalar ou prontuário dos usuários da saúde. Nos Parâmetros para Atuação  
do Serviço Social na Saúde há indicações de que uma das funções do Serviço Social é  
formular estratégias de intervenção profissional e subsidiar a equipe de saúde  
quanto às informações sociais dos usuários por meio do registro no prontuário  
único, resguardadas as informações sigilosas que devem ser registradas em  
material de uso exclusivo do Serviço Social (Conselho Federal de Serviço  
Social, 2010, p. 45).  
No entanto, considerando que o prontuário hospitalar é um documento, pode-se buscar  
subsídio para esse tema no próprio Código de Ética profissional, bem como nos Parâmetros de  
Atuação do Assistente Social na Saúde e na Resolução CFESS nº 557/2009, de 15 de setembro  
de 2009, que “dispõe sobre a emissão de pareceres, laudos, opiniões técnicas conjuntos entre o  
assistente social e outros profissionais” (Conselho Federal De Serviço Social, 2009).  
A brochura lançada pelo CFESS em 2022 sobre “Produção de documentos e emissão de  
opinião técnica em Serviço Social” também traz observações e pressupostos éticos ´para  
registro e manuseio dos prontuários.  
Importante destacar também a portaria conjunta dos Conselhos profissionais de Serviço  
Social, Psicologia e Fisioterapia e Terapia Ocupacional de Minas Gerais (2020) acerca dos  
prontuários eletrônicos. No lastro da pandemia, esses conselhos se articularam e estabeleceram  
uma portaria conjunta instituindo diretrizes gerais sobre o sigilo destes prontuários.  
De uma forma geral, os profissionais devem entender que o trabalho em equipe  
multiprofissional requer a comunicação constante entre seus membros e que os registros nos  
prontuários caminham na perspectiva da integralidade do cuidado em saúde, na medida em que  
as informações registradas são relevantes para o atendimento ao usuário em todas as suas  
dimensões. Isso significa dizer que um sistema de registros, que busque a integralidade dos  
cuidados em saúde, precisa considerar o “amplo debate sobre sigilo profissional versus a  
concepção de saúde como construção coletiva, baseada no protagonismo dos sujeitos e na  
transparência da informação” (Mesquita; Deslandes; 2010, p. 672). Nesse sentido, registrar as  
intervenções respeitando o sigilo e qualificando o prontuário hospitalar como um documento  
significativo tanto para o trabalho em equipe e a instituição de saúde quanto para os usuários é  
uma tarefa que demanda um exercício ético e reflexivo constante dos profissionais envolvidos  
nos cuidados.  
601  
Fazer registros em um prontuário hospitalar não é meramente uma parte burocrática do  
trabalho, tampouco é “anotar procedimentos”, mas sim compor tecnicamente um documento  
Marcela Gonçalves de Araújo; Marina Monteiro de Castro e Castro  
de extrema relevância, de forma que “o profissional está se expondo — tornando visível sua  
concepção de trabalho, capacidade de se comunicar, bem como os passos da sua intervenção”  
(Martins, 2017, p. 96).  
Para o Serviço Social, as informações devem ter significado e possuírem um objetivo,  
que é justamente o interesse e os direitos do usuário (Rodrigues; Sampaio, 2014). Obviamente,  
o usuário precisa participar de todo o processo, estando no centro das intervenções, ter  
conhecimento de tudo o que lhe disser respeito e autorizar, diante da explicação de relevância,  
que as informações necessárias sejam compartilhadas com outros profissionais. Dessa forma,  
O sigilo profissional não pode vir separado da reflexão ética, como se fosse  
uma simples questão técnica ou mesmo procedimental. As questões que  
despertam e os dilemas que apresentam ao cotidiano do exercício profissional  
impelem a necessidade de uma postura analítica da realidade, da clareza do  
objetivo profissional, que não se deixe burocratizar ou tecnificar [...]  
(Rodrigues; Sampaio, 2014, p. 92).  
O Código de Ética do assistente social e as orientações referentes ao sigilo evidenciam  
que, no âmbito do atendimento direto aos usuários, cabe ao profissional avaliar o que é  
pertinente ou não ser compartilhado em um prontuário que será acessado por toda a equipe.  
Porém, esse é um exercício complexo que depende do contexto e das demandas apresentadas  
pelo usuário, pois “talvez não se trate de definir esquematicamente o que cabe à instituição e o  
que cabe ao profissional, mas refletir anteriormente qual é o direito que está sendo reclamado  
pelo demandante” (Rodrigues; Sampaio, 2014, p. 87-88). Além disso, o assistente social deve  
ter controle sobre a quantidade e a qualidade das informações solicitadas aos usuários, a fim de  
que a intervenção não se torne invasiva e com procedimentos redundantes (Martins, 2017).  
Pensando a comunicação e o compartilhamento de informações entre os profissionais,  
é pertinente retornar às considerações referentes à categoria linguagem. Sendo a linguagem  
insuprimível da relação dos seres humanos entre si e fundamentalmente constitutiva de um  
documento, o profissional deve permanecer atento às formas e ao uso adequado da linguagem.  
Conforme já sinalizamos, a linguagem é atravessada pela correlação de forças presente em uma  
determinada sociabilidade. Médicos, assistentes sociais e demais profissionais imprimem as  
identidades de suas profissões nos documentos que elaboram, de forma que é possível também  
“perceber os pequenos poderes que perpassam nas interações desses grupos” (Magalhães, 2006,  
p. 23). Assim, a prática dos profissionais inseridos na assistência multiprofissional à saúde tende  
a seguir as regras de cada formação (Mesquita; Deslandes. 2010).  
602  
Para a comunicação clara entre a equipe, os prontuários e os registros dos atendimentos  
aos usuários não podem ser textos espontâneos e a sua construção deve se atentar as regras e  
convenções da gramática normativa (Martins, 2017). A linguagem deve ser técnica e formal,  
Libertas, Juiz de Fora, v. 24, n. 2, p. 590-607, jul./dez. 2024. ISSN 1980-8518  
Assistência multiprofissional em saúde e prontuário hospitalar:  
elementos para a reflexão no Serviço Social  
mas também esclarecedora, evitando-se siglas e termos técnicos difíceis de serem  
compreendidos por outros profissionais ou pelos usuários a menos que sejam explicados.  
Tal prática pode contribuir para desfazer a histórica centralidade da categoria médica no  
cuidado à saúde, que concede a essa profissão um status supostamente superior ou exclusivo.  
Além disso, como já ressaltado, para que tais registros façam sentido, é preciso que sejam claros  
e objetivos para as outras categorias, e não somente para os pares. É necessário, portanto, que  
todos os profissionais envolvidos considerem que o prontuário é uma das formas de  
comunicação entre a equipe e não mero registro burocrático.  
Além disso, a comunicação e a linguagem, em um trabalho multiprofissional, também  
devem se desenvolver “face a face”, de modo que “um contato mais próximo entre locutor e  
interlocutor, facilita o esclarecimento de dúvidas [...] no entendimento do significado da  
mensagem que se quer transmitir” (Magalhães, 2006, p. 3). Dessa forma, se na leitura do  
prontuário ainda persistirem questionamentos sobre determinadas informações dos usuários que  
precisam ser acessadas, o profissional deve procurar o colega de equipe para entender o seu  
significado.  
É necessário ainda qualificar os registros, citando a fala dos usuários, para reforçar a  
centralidade e o protagonismo dos sujeitos no próprio processo saúde-doença (Mesquita;  
Deslandes, 2010), e argumentar com legislação, normativas e resoluções pertinentes, para a  
defesa de algum direito da pessoa atendida.  
603  
No âmbito do Serviço Social, nem toda intervenção demandará um registro mais  
complexo, contudo estes deverão ser sempre bem detalhados e qualificados nas intervenções  
mais sistemáticas, em que “a prática profissional se estabelece para recuperar um direito que já  
foi ferido ou, na maioria das vezes, nunca existiu de fato” (Rodrigues; Sampaio, 2014, p. 87).  
Portanto, ao fazer um registro em prontuário, o profissional deve compreender que está  
compondo um texto para registrar e resguardar as próprias ações, para subsidiar e estabelecer a  
comunicação com os demais profissionais e a pessoa atendida, a fim de que seja também um  
documento para defesa de interesses do usuário.  
Importante salientar que o prontuário compõe parte do exercício profissional na saúde,  
e se localiza no “momento final” de registro da atuação do assistente social. Esta, por sua vez,  
é ampla e se articula através das dimensões ético-político, teórico-metodológica e técnico-  
operativa - que envolvem escolhas profissionais permeadas por “princípios teóricos, éticos,  
políticos e técnicos que abrem ao profissional um leque de possibilidades de construção de uma  
ação profissional pautada em determinados valores” (Paula, 2023, p. 86). Aqui, defendemos  
que estes valores estejam alinhados ao projeto ético-político da categoria de assistentes sociais.  
Marcela Gonçalves de Araújo; Marina Monteiro de Castro e Castro  
Ou seja, o prontuário tem valor documental, ético e comunicativo que expressa posições  
e condutas profissionais alinhadas a um determinado projeto profissional. Expressa ainda a  
relação estabelecida entre profissional/usuários/familiares e os princípios profissionais  
adotados.  
No âmbito da equipe multiprofissional, reforçamos o entendimento do prontuário como  
um documento que contém registros, informações de saúde e dos atendimentos realizados aos  
usuários, que proporciona uma “[...] melhor compreensão do processo saúde- doença, facilita a  
socialização dos dados entre os diferentes profissionais e ainda possibilita um acompanhamento  
ampliado e diferenciado [...]” (Fujimori; Prado, 2006, p. 68). Tais informações, que pertencem  
ao usuário, são fundamentais para a comunicação entre a equipe e para a continuidade do  
cuidado em saúde na perspectiva da integralidade.  
Considerações finais  
O prontuário hospitalar é um documento de extrema importância para os cuidados em  
saúde, pois registra todo o histórico do usuário no serviço, bem como se constitui uma valiosa  
ferramenta de comunicação entre a equipe multiprofissional que realiza os atendimentos. O  
avanço da tecnologia permite a disseminação do registro no prontuário eletrônico em vez do  
físico, desde que sejam respeitadas as regras de autenticidade e segurança das informações. Tal  
avanço, conforme apresentado neste artigo, pode contribuir para o fim do desperdício de papel,  
por exemplo, e tornar mais acessível a comunicação entre os profissionais.  
604  
Não obstante, um dos principais desafios postos para a confecção do prontuário  
hospitalar enquanto documento de extrema relevância, não só para o trabalho em equipe, mas  
também para o usuário, está na questão do sigilo. A facilidade de acesso das informações pelos  
profissionais, sendo o prontuário hospitalar uma forma de comunicação entre a equipe, requer  
o compromisso ético dos profissionais com o sigilo, de modo que, embora existam normativas  
bem estabelecidas a esse respeito, cabe aos profissionais de cada categoria o exercício reflexivo  
sobre o que deverá ser registrado ou não no prontuário multiprofissional. Tal exercício deve ser  
feio a partir de uma reflexão ética, em que o usuário seja o centro das intervenções e os registros  
das ações profissionais visem a garantia ou manutenção de direitos (Rodrigues; Sampaio,  
2014).  
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Disponível  
em:  
Acesso em: 10 jan. 2024.  
A pesquisa sobre o método marxista no Serviço  
Social brasileiro1  
Research on the marxist method in brazilian Social Work  
Michael Gonçalves Cordeiro*  
Resumo: A presente pesquisa tem como  
objetivo realizar apontamentos críticos acerca  
Abstract: This research aims to make notes  
related to the marginalization of studies on  
historical-dialectical materialism in the  
academic sphere of Social Work. For this, a  
research was carried out in the productions of  
the main Postgraduate Programs in the area,  
seeking to identify the works that had as a  
research object the referred method and to  
define the state of the art in the production of  
knowledge in Social Work on the subject.  
da marginalização dos estudos sobre  
o
materialismo histórico-dialético no âmbito  
acadêmico do Serviço Social. Para isso,  
realizou-se uma pesquisa nas produções dos  
principais Programas de Pós-Graduação na  
área, buscando identificar os trabalhos que  
tinham como objeto de pesquisa o referido  
método e definir o estado da arte na produção de  
conhecimento em Serviço Social sobre o tema.  
Palavras-chaves: Serviço Social; Marxismo;  
Keywords: Social Work; Marxism; Method;  
Método; Produção de conhecimento.  
Knowledge production.  
Introdução  
Neste artigo propus um debate sobre o materialismo histórico-dialético2 na produção  
acadêmica do Serviço Social, mais especificamente nas produções nos Programas de Pós-  
Graduação na área. Objetivei, para tanto, expor o “estado da arte” do conhecimento produzido  
em Serviço Social no que se refere ao método desenvolvido por Marx e que constitui um dos  
pilares da tradição marxista, a partir do recorte da produção acadêmica no âmbito da Pós-  
Graduação. Para além de uma revisão da bibliografia – e já indicando prematuramente o “estado  
da arte” acima referido -, tive em vista debater as lacunas teóricas existentes no conjunto da sua  
1 O presente artigo é resultado do Trabalho de Conclusão de Curso em Serviço Social pela Universidade Federal  
do Paraná (UFPR), avaliado e aprovado no ano de 2019, intitulado “Materialismo dialético e Serviço Social: um  
retorno aos fundamentos do método no pensamento de Marx” (Cordeiro, 2019).  
*
Mestre em Desenvolvimento Territorial Sustentável pela Universidade Federal do Paraná (UFPR). Assistente  
Social na Prefeitura Municipal de Garuva, Santa Catarina. ORCID: https://orcid.org/0000-0003-1476-280X  
2 “Materialismo histórico-dialético” e “método marxista”, para fins deste artigo, serão utilizados como sinônimos,  
ambos se referindo ao método desenvolvido por Marx e que constitui um dos núcleos centrais da sua herança  
(Netto, 1989, p. 56).  
DOI: 10.34019/1980-8518.2024.v24.44425  
Esta obra está licenciada sob os termos  
Recebido em: 02/05/2024  
Aprovado em: 09/09/2024  
A pesquisa sobre o método marxista no Serviço Social brasileiro  
produção acadêmica e os rebatimentos tanto para a pesquisa como para a prática profissional,  
estimulando a maturação e o adensamento teórico profissional e indicando alguns caminhos  
possíveis para a pesquisa.  
Parto, portanto, da hipótese de que existe atualmente uma marginalização, ou mesmo  
uma carência, de pesquisas tratando do método marxista, que reverbera em um desnível  
evidente e problemático entre a importância dos fundamentos teórico-metodológicos - tanto no  
processo de formação como de atuação profissional, assim como na própria produção teórica -  
e o estudo do método em Serviço Social. Método esse que é base imprescindível da teoria social  
de Marx e para os fundamentos teórico-metodológicos da profissão.  
Na primeira parte deste artigo busquei caracterizar e analisar o que ficou marcado como  
a dimensão teórico-metodológica do Serviço Social. Os fundamentos teórico-metodológicos,  
como se sabe, propiciam as bases para esta compreensão da realidade, os pressupostos para as  
idas e vindas no processo de pesquisa e o suporte teórico na construção de caminhos para  
intervenção profissional. Com isso, objetivo apontar brevemente a importância destes  
fundamentos e utilizar novamente do recurso da revisão bibliográfica, dimensionando as  
produções acadêmicas sobre o tema.  
Afunilando o campo de pesquisa, na segunda parte do texto adentro ao objeto desta  
pesquisa propriamente. Num primeiro momento me centro na exposição da metodologia  
utilizada, avançando posteriormente para discussão dos resultados da pesquisa, tanto em termos  
quantitativos como na análise dos seus resultados do ponto de vista do conjunto da produção  
teórica do Serviço Social e do peso histórico e teórico da tradição marxista e de Marx para a  
profissão.  
609  
Na última parte deste trabalho, já nas considerações finais, para além de um resgate  
sintético de tudo que foi exposto, me dedico a articulação entre os dois momentos desta  
pesquisa, visando analisá-la em seu conjunto e apontar para as lacunas teóricas existentes na  
produção teórica do Serviço Social, ao mesmo tempo, propondo possíveis caminhos para a  
maturação teórica sobre o tema dos fundamentos teórico-metodológicos e do método marxista.  
Optei por esse caminho, dentre os outros caminhos possíveis, por entender que partindo  
do debate sobre os fundamentos teórico-metodológicos da profissão que dão sustentação à  
pesquisa e à prática profissional, é possível melhor qualificar o debate sobre a importância do  
adensamento teórico sobre o método, o que certamente tem grandes impactos na capacidade de  
desvelamento da realidade social, na prática profissional. Impactos estes que podem ser  
dimensionados exatamente pela produção teórica do Serviço Social sobre o tema, mesmo que  
Michael Gonçalves Cordeiro  
existam mediações a serem realizadas entre a produção de conhecimento no Serviço Social no  
âmbito acadêmico e a prática profissional.  
A produção de conhecimento no Serviço Social sobre os fundamentos teórico-  
metodológicos  
Neste primeiro momento a proposta é de trazer apontamentos sobre a produção do  
conhecimento no âmbito acadêmico do Serviço Social sobre os fundamentos teórico-  
metodológicos, apoiado nas pesquisas existentes sobre o tema, identificando e analisando o  
espaço dedicado à produção sobre o tema. Com esta breve digressão, busco identificar se o  
campo dos fundamentos teórico-metodológicos tem espaço privilegiado na produção de  
conhecimento no âmbito do Serviço Social ou de marginalização, enfim, situá-lo. Este  
momento se liga ao objeto deste artigo a produção de conhecimento sobre o materialismo  
histórico-dialético - na medida em que possibilita a antecipação de possíveis lacunas na  
produção teórica do Serviço Social para além do tema do método. Assim, se este breve  
panorama sobre a produção teórica sobre os fundamentos teórico-metodológicos apontar para  
uma marginalização do tema no Serviço Social, temos um problema que diz respeito ao  
conjunto dos fundamentos teórico-metodológicos, em que o método marxista (se confirmada a  
hipótese desta pesquisa da sua igualmente marginalização) é apenas um dos elementos (apesar  
de central) desta problemática. Ao contrário, se as produções sobre o tema forem profícuas,  
porém seja confirmada a hipótese desta pesquisa sobre o método, o problema ganha outra  
dimensão, pois diz respeito a lacuna no próprio trato dos fundamentos teórico-metodológicos,  
não no seu conjunto, mas no que tem de mais significativo atualmente: a própria teoria social  
de Marx e a tradição marxista, na medida em que o método é parte constitutiva central e  
inalienável desta teoria.  
610  
Entendemos os fundamentos teórico-metodológicos aqui partindo da própria literatura  
do Serviço Social, sem adentrar nas discussões sobre teoria e sobre metodologia e sua relação.  
Assim, para uma breve e reconhecida caracterização, temos a compreensão exposta nas  
diretrizes curriculares da Associação Brasileira de Ensino e Pesquisa em Serviço Social  
(ABEPSS): os fundamentos teórico-metodológicos se referem ao “tratamento do ser social  
enquanto totalidade histórica” e aos “componentes fundamentais da vida social”, assim como  
ao “processo de conhecimento do ser social” por meio das “diferentes filosofias e teorias”,  
tendo “como perspectiva estabelecer uma compreensão de seus fundamentos e da articulação  
de suas categorias” (ABEPSS, 1996, p. 10).  
Em uma caracterização mais rigorosa, Iamamoto (2004a, p. 179) afirma que  
Libertas, Juiz de Fora, v. 24, n. 2, p. 608-625, jul./dez. 2024. ISSN 1980-8518  
A pesquisa sobre o método marxista no Serviço Social brasileiro  
A questão teórico-metodológica diz respeito ao modo de ler, de interpretar, de  
se relacionar com o ser social: uma relação entre o sujeito cognoscente – que  
busca compreender e desvendar essa sociedade – e o objeto investigado.  
Encontra-se estreitamente imbricada à maneira de explicar essa sociedade e  
os fenômenos particulares que a constituem. Para isso, implica uma  
apropriação da teoria – uma capacitação teórica – e um ângulo de visibilidade  
na leitura da sociedade – um ponto de vista político, que, tomado em si, não é  
suficiente para explicar o social.  
Feito este brevíssimo delineamento do como é aqui entendido os fundamentos teórico-  
metodológicos, podemos avançar para a exposição do “estado da arte” sobre o tema no âmbito  
profissional, tendo como limite na regressão histórica o período de aproximação e sobretudo de  
consolidação da tradição marxista na profissão.  
Alba Carvalho (1992), no início da década de 90, discutindo sobre a pesquisa  
contemporânea - naquele momento compreendendo as décadas de 70, 80 e 90 - e o Serviço  
Social, proporciona um panorama da produção de conhecimento daquele momento. Da análise  
feita pela autora, interessa pontuar sua conclusão de que a discussão metodológica possuía  
pouca relevância no debate profissional da época - metodologia aqui entendida pela autora não  
apenas como técnica de pesquisa, mas da própria lógica da pesquisa, do debate epistemológico  
e filosófico, enfim, do método em sentido amplo, incluindo a própria discussão entre os  
paradigmas analíticos das Ciências Sociais e da História (Carvalho, 1992, p. 45).  
Buscando discutir a produção de conhecimento no mesmo período e a sua relação com  
o Serviço Social, Myrian Baptista (1992, p. 95) afirma que um dos desafios que se apresentava  
ao Serviço Social na época era o da análise crítica das propostas teóricas existentes, remetendo  
ao que algum tempo depois seria largamente reconhecido como os fundamentos teórico-  
metodológicos.  
611  
Avançando no tempo, em investigação das dissertações de mestrado e das teses de  
doutorado produzidas entre 1975 e 1997 no âmbito do Serviço Social, Nobuco Kameyama  
(1998, p. 8-9), alinhada às conclusões das autoras anteriores, apresenta a existência de uma  
predominância, já naquele período, de produções sobre a “Prática Profissional”, “Política  
Social” e “Formação Profissional”3, respectivamente, sendo que a “Política Social”, assim  
como as temáticas relacionadas à criança e adolescente, vinha ganhando progressiva  
centralidade nas pesquisas dos últimos anos4.  
3 Eixos delimitados pelo autor.  
4
Nóbrega e Fonseca (2010, p. 181), comentando este trabalho da autora, afirmam ainda que “no contexto  
analisado, a tendência predominante nessa produção, ao que tudo indica, expressou a permanência de resquícios  
de sua base científica europeu-americana, dificuldades no trato com a pesquisa e a sua ainda tímida familiaridade  
com a produção do conhecimento pautada no aporte teórico marxista”.  
Michael Gonçalves Cordeiro  
Se por um lado temos que a literatura sobre as pesquisas em Serviço Social nesta época  
apontam para uma marginalização da discussão teórico-metodológica, sobretudo no que se  
refere ao debate com o conjunto do conhecimento contemporâneo (e especialmente relacionado  
ao método), por outro lado, alguns debates significativos, porém restritos à alguns profissionais,  
podem ser identificados neste momento. Temos algumas discussões na produção teórica de  
Vicente de Paula Faleiros (1997a [1981]5, 1997b [1985] e 1999 [1997]), Marilda Iamamoto  
(2004a [1992] e 2000 [1998]), Consuelo Quiroga (1989), José Paulo Netto (1989) e, mais no  
apagar das luzes do século XX, Carmelita Yazbek (2009 [1999]). Uma discussão  
particularmente interessante sobre o tema foi travada entre diferentes autores(as), dentre  
eles(as) os(as) já citados Kameyama, Netto, Faleiros, (ABESS, 1989, p. 99-188).  
Adentrando o século XXI, Iamamoto (2004b, p. 12-13), em trabalho sobre os caminhos  
da pesquisa em Serviço Social, a partir da análise das linhas e dos projetos de pesquisa nos  
Programas de Pós-Graduação da área dos anos de 2001 a 2003, aponta para uma explícita  
predominância da Política Social e um rebaixamento das pesquisas relativas ao campo da  
“Formação profissional, fundamentos e exercício profissional6, do qual inclui, em seu meio, os  
fundamentos teórico-metodológicos. Silva e Carvalho (2005, p. 97), analisando o mesmo  
período, reforçam a análise de Iamamoto, indicando uma larga prevalência dos projetos  
direcionados às políticas sociais, em detrimento daqueles voltados ao trabalho e a formação  
profissional (que na aglutinação dos eixos, realizado pelas autoras, inclui os fundamentos  
teórico-metodológicos).  
612  
Em outro momento, Iamamoto (2010 [2007], p. 464), mantendo a preocupação com os  
rumos da pesquisa em Serviço Social, reafirma, a partir da análise das linhas e projetos de  
pesquisa na Pós-Graduação em Serviço Social, a predominância das políticas sociais e,  
principalmente, que  
[...] a pesquisa quanto aos fundamentos teórico-metodológicos e históricos do  
Serviço Social, foi deslocada na prioridade da agenda profissional. Na década  
de 80, ela voltou-se tanto à apropriação crítica das matrizes teórico-  
metodológicas e suas expressões na profissão quanto à pesquisa da  
reconstrução histórica do Serviço Social no Brasil. Hoje essas temáticas  
dispõem de pouca representatividade no universo da pesquisa, embora os  
temas estejam longe de ser esgotados.  
Conforme demonstrado inicialmente, é preciso ter cuidado com esta apropriação de que  
fala Iamamoto na década de 80, pois como já alertava Netto (1988, p. 101) na época em relação  
5 Dado que optei por realizar a revisão da bibliografia a partir de uma reconstrução histórica, especialmente neste  
momento consta em colchetes a data original das publicações, antecedida pela data consultada (para aquelas obras  
em que a consulta não foi feita na primeira edição).  
6 Eixo delimitado pela autora.  
Libertas, Juiz de Fora, v. 24, n. 2, p. 608-625, jul./dez. 2024. ISSN 1980-8518  
A pesquisa sobre o método marxista no Serviço Social brasileiro  
à hegemonia do marxismo no interior da profissão, é preciso estar atento para o fato de que esta  
discussão "só tangencialmente sensibiliza e toca o grosso da categoria profissional".  
O que temos até o momento, portanto, é uma marginalização do debate sobre os  
fundamentos teórico-metodológicos, permanecendo restrito a um corpo de profissionais, ao  
menos o debate qualificado e com alcance mais significativo ao restante da categoria. Este  
cenário não se alterou nos últimos 10 anos, ao contrário, conforme veremos, pode ter regredido  
em relação aos fundamentos teórico-metodológicos.  
Yolanda Guerra (2011, p. 147) constata que “não obstante aos avanços, a apreciação da  
produção científica em desenvolvimento mostra fragilidade na formação de pesquisadores”.  
Ainda segundo a autora, em Palestra pronunciada no Colóquio do GTP de Fundamentos do  
Serviço Social: Trabalho e Formação Profissional no Encontro Nacional de Pesquisadores em  
Serviço Social (Enpess), em dezembro de 2010, Iamamoto  
identifica, ainda, certa fragilidade no tratamento dos fundamentos históricos e  
teórico-metodológicos do Serviço Social. Indica a necessidade de aprofundar  
o conhecimento crítico sobre: o Serviço Social clássico, o movimento de  
reconceituação latino-americano, suas particularidades e tendências, o Serviço  
Social internacional e o Serviço Social na contemporaneidade, suas demandas  
e o processamento de seu trabalho (Iamamoto, 2010 apud Guerra, 2011, p.  
147).  
Mendes e Almeida (2014, p. 647), analisando as tendências atuais da pesquisa em  
Serviço Social a partir das informações do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico  
e Tecnológico (CNPq), demonstra a existência de uma predominância da área do “Serviço  
Social Aplicado” em relação aos “Fundamentos em Serviço Social”7 no que se refere às bolsas  
de produtividade.  
613  
Realizando uma pesquisa de fôlego em que analisa os artigos publicados em 11 revistas  
da área de Serviço Social entre 1993 e 2013, totalizando 2031 artigos, Thaisa Closs (2015, p.  
28) afirma que “as produções que possuem o descritor Fundamentos do Serviço Social é  
extremamente reduzida, não chegando a 1% dos artigos”. Posteriormente, em artigo de Prates,  
Closs e Carraro (2016), a partir da constatação desta ínfima produção sobre os fundamentos do  
Serviço Social nos periódicos analisados pela autora supracitada, realizam o seguinte  
questionamento, alinhadas as preocupações de Netto citadas acima:  
Embora a área conte com uma rica literatura sobre esse tema, com  
pesquisadores que formularam teses distintas e fundamentais para a  
compreensão do significado social e da particularidade dessa profissão em sua  
trajetória sócio-histórica [...], questiona-se: Em que medida essas fecundas  
formulações vêm sendo aprofundadas, desdobradas em análises que adensem  
o debate dos Fundamentos, ou ainda, como essas teses vêm se expressando  
7 Os eixos foram delimitados pela autora.  
Michael Gonçalves Cordeiro  
nas produções recentes? (Prates; Closs; Carraro, 2016, p. 15-6).  
Por fim, cito ainda duas importantes e recentes pesquisas. A primeira é de Cantalice et  
al. (2019), que analisando 401 artigos das revistas Serviço Social e Sociedade e Katálysis, tendo  
como período dos anos de 2010 a 2016, chegou aos seguintes resultados: que apenas 8,3% dos  
artigos tinham como temática os fundamentos históricos e teórico-metodológicos; que impera  
uma indistinção entre categorias, conceitos e termos; que em apenas 19,2% dos artigos aparece  
a indicação de adoção do método marxista enquanto pressuposto de análise - o que não  
significa, conforme lembram as autoras, que este não tenha sido adotado, mas apenas que não  
é explicitado no artigo (Cantalice et al., 2019, p. 7). Sobre este último resultado as autoras  
afirmam ainda que “o debate sobre o método na maioria significativa dos artigos não aparece,  
o que não quer dizer que um recorte teórico-metodológico não esteja sendo utilizado, mas, por  
outro lado, apenas uma suposição de existência não assegura o contrário” (Cantalice et al.,  
2019, p. 7).  
A mesma pesquisa ainda analisou 147 teses e dissertações com lapso temporal entre  
2007 e 2016, chegando a resultados parecidos com os da análise acima: apenas 42 trabalhos  
apresentavam indicações dos pressupostos teórico-metodológicos (Cantalice et al., 2019, p. 10).  
As conclusões da pesquisa indicam “uma fragilidade emblemática quanto a não indicação do  
método de análise, o que se pode afirmar, diante dos dados, é que essa dimensão não tem sido  
tratada na maioria significativa das publicações analisadas”, e ainda a existência de “influxos  
pós-modernos e residualmente, a utilização do método positivista, o que revela a persistência  
de traços do conservadorismo e tensões com o direcionamento teórico-político da profissão”  
(Cantalice et al., 2019, p. 12). Estes resultados, portanto, já antecipam os possíveis caminhos  
da hipótese feita no início deste artigo em relação ao materialismo-dialético.  
614  
A segunda pesquisa, de Silva, Souza e Cantalice (2017), a partir do levantamento  
bibliográfico da produção de conhecimento no Serviço Social no âmbito dos principais  
Programas de Pós-Graduação na área, desde o ano de 2006 até 2016, representando um total de  
875 dissertações e 164 artigos, chegaram ao resultado já histórico, conforme demonstrado, de  
uma predominância das temáticas relacionadas à “Política Social, Serviço Social e Trabalho” e  
“Questão Social e Serviço Social”, representando 62% das produções na área. Por outro lado,  
o que mais interessa para o propósito desta pesquisa, apenas 17% dos trabalhos tem como  
temática “Fundamentos, Formação e Trabalho Profissional” (Silva; Souza; Cantalice, 2017, p.  
9)8.  
8 Todos os eixos citados foram delimitados pelas autoras.  
Libertas, Juiz de Fora, v. 24, n. 2, p. 608-625, jul./dez. 2024. ISSN 1980-8518  
A pesquisa sobre o método marxista no Serviço Social brasileiro  
A partir desse breve quadro da produção em Serviço Social sobre os fundamentos  
teórico-metodológicos, a hipótese que se confirma é a de uma marginalização deste debate no  
âmbito profissional, sobretudo a partir do início deste século, em que a predominância dos  
estudos voltados para a política social se amplia à custa da produção sobre os fundamentos  
teórico-metodológicos. Com isso, a hipótese que discuto a seguir, sobre a produção em Serviço  
Social sobre o método marxista, já se insere como parte de um problema mais fundamental, que  
diz respeito exatamente à baixa produção teórica sobre os fundamentos teórico-metodológicos  
em geral.  
A produção de conhecimento no Serviço Social sobre o método marxista  
Este momento é dedicado a pesquisa voltada especificamente para a produção de  
conhecimento no âmbito dos Programas de Pós-Graduação em Serviço Social sobre o  
materialismo histórico-dialético. A exposição se dá em dois momentos: no primeiro apresentou  
a metodologia utilizada na pesquisa e no segundo os resultados desta, seguido do debate sobre  
as implicações para produção teórica do Serviço Social e para a prática profissional. A partir  
deste breve olhar sobre as produções voltadas para o método marxista, espero trazer ao debate  
a importância da discussão sobre o tema, indicando que se trata ainda de um tema pouco  
debatido, apesar da reconhecida hegemonia do marxismo na profissão e da centralidade do  
método na teoria de Marx e para a herança daqueles que tomam as suas ideias como base.  
615  
Metodologia de pesquisa  
No que concerne à metodologia utilizada, realizei uma breve pesquisa quantitativa  
(Minayo, 1994, p. 21-25) no intuito de identificar as dissertações e teses na área de Serviço  
Social que tinham como objeto central da pesquisa o materialismo histórico-dialético e, assim,  
identificar o aprofundamento e a amplitude da discussão neste âmbito.  
Para isso, foi feito o recorte de cinco Programas de Pós-Graduação em Serviço Social,  
tendo como critério o tema em Serviço Social e a existência de programa de doutorado. O  
critério de seleção foi o dos programas com maiores pontuações atribuídas pela Coordenação  
de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES) na data da pesquisa, que tem como  
avaliação conceitos que variam de 3 a 7. Em caso de conceitos iguais, o critério de seleção foi  
por tempo de existência do Programa, selecionando os mais antigos.  
O resultado do recorte foi a seleção do Programa de Pós-Graduação da Pontifícia  
Universidade Católica (PUC) de São Paulo, que possui conceito máximo (7) pela CAPES e da  
PUC do Rio Grande do Sul, Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ) e da  
Michael Gonçalves Cordeiro  
Universidade Federal de Pernambuco (UFPE), todos com conceito 6, totalizando, assim, 4  
programas selecionados. Restando um Programa a ser incorporado, foi necessário o segundo  
critério de seleção, dado que na sequência dos programas mais bem conceituados pela CAPES,  
três possuíam conceito 5, sendo eles o da PUC do Rio de Janeiro, da Universidade Federal do  
Rio de Janeiro (UFRJ) e da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC). Este segundo  
recorte resultou na seleção do programa da UFRJ, dado que ele existe desde 1994, enquanto  
que os da PUC-RIO e UFSC foram criados em 2002 e 2011, respectivamente.  
A pesquisa foi feita na biblioteca digital dos programas selecionados, não tendo recorte  
temporal pré-definido para todos os programas, mas antes a busca se deu de acordo com o  
disponibilizado pelas respectivas bibliotecas digitais. Assim, a PUC-SP teve como recorte  
temporal inicial, 1977, a PUC-RS desde 2000, a UERJ desde 2003 e a UFRJ desde 2007, todos  
até 2018, e, por fim, a UFPE, de 1999 até 2016. O resultado deste recorte temporal foi um  
universo de 1821 trabalhos entre teses e dissertações, dos quais o programa da PUC-SP possui  
590 trabalhos, o da PUC-RS 304, UERJ 200, UFPE 325 e da UFRJ, um total de 402 trabalhos.  
Para identificação dos trabalhos que têm por objetivo central a discussão do método  
marxista, efetuei um primeiro recorte a partir da busca por palavras-chave contidas nos títulos  
das teses e dissertações que remetessem a este método. As palavras-chave foram elencadas com  
base na obra de Netto (2009), texto base e introdutório no debate sobre o tema no âmbito do  
Serviço Social. São as palavras-chave (com flexão): método/metodologia/metodológico;  
616  
materialismo/materialista;  
dialético/dialética;  
totalidade;  
mediação/mediações;  
contradição/contradições/contraditória; teoria/teórica/teórico; estrutura e superestrutura. Incluí  
também “fundamentos”, com o intuito de abarcar os trabalhos que abordam os fundamentos do  
Serviço Social, dos quais inclui o teórico-metodológico.  
Feito o recorte das teses e dissertações com base na busca das palavras-chave  
supracitadas nos títulos, identifiquei 119 trabalhos, sendo 26 no programa da PUC-SP, 27 no  
da PUC-RS, 8 na UERJ, 30 na UFPE e 28 na UFRJ. O recorte final da pesquisa foi a análise  
destes 119 trabalhos a partir do resumo e quando não identificado o objeto da pesquisa nele,  
realizei a leitura do corpo do texto.  
Resultados da pesquisa  
Os resultados obtidos são significativos em demonstrar a marginalização das pesquisas  
sobre o materialismo histórico-dialético nos programas de Pós-Graduação analisados. Eles  
apontam para apenas um trabalho que teve como objetivo central de pesquisa o trato sobre o  
método materialista dialético. Trabalho esse intitulado A categoria de Totalidade e o Serviço  
Libertas, Juiz de Fora, v. 24, n. 2, p. 608-625, jul./dez. 2024. ISSN 1980-8518  
A pesquisa sobre o método marxista no Serviço Social brasileiro  
Social: Subsídios teóricos para uma aproximação ao processo de implementação das  
Diretrizes Curriculares, da autoria de Jamerson Murilo Anunciação de Souza, do Programa da  
UFPE, em que o autor traz uma discussão sobre a categoria de totalidade com base em Marx,  
Lukács e Mészáros.  
Identifiquei outro trabalho que buscava abordar a questão do método como objeto de  
pesquisa, mas não se tratava do materialismo histórico-dialético, mas antes da teoria da  
complexidade, a partir da teoria de Edgar Morin (ver Roberto, 2009). Outro trabalho que se  
aproxima da discussão de método é de Adrianyce Souza, intitulado Pós-modernidade:  
mistificação e ruptura da dimensão de totalidade da vida social no capitalismo contemporâneo,  
tratando, com isso, de uma categoria central no método materialista dialético: a de totalidade.  
No entanto, mesmo o trabalho de Adrianyce Souza não tendo por objetivo discutir  
prioritariamente este método, utiliza enquanto contraponto ao pensamento pós-moderno.  
Isso não significa que não existam outros trabalhos que têm por objeto os fundamentos  
teórico-metodológicos da profissão, estes foram encontrados em certa medida, no entanto, estes  
não têm por objeto de pesquisa abordar o método materialista dialético, mas antes outras  
questões que integram a teoria social de Marx, como revolução, democracia, classe social, etc.  
Em geral, os trabalhos possuem os mais diversos objetos, dos quais o método perpassa  
como possível fio condutor do processo de pesquisa. Abundam-se os trabalhos que evidenciam  
a categoria mediação, sem, no entanto, ter por objetivo tratar desta, mas antes servindo como  
categoria condutora no processo de pesquisa (ver, por exemplo, Lopes, 2014).  
617  
Outros, por sua vez, tiveram como objeto o materialismo histórico-dialético, ou mais  
precisamente os fundamentos teórico-metodológicos em geral, no ensino em Serviço Social  
(como, por exemplo, os trabalhos de Paschoal, 2010 e Zacarias, 2017), ou à questão da  
interlocução entre o método e a prática da(o) assistente social (ver, por exemplo, Torres, 2006;  
Zacarias, 2013).  
Poderia prolongar os detalhes que resultaram da presente (e, insisto, breve) pesquisa.  
No entanto, acredito que com base nas informações coletadas e sem a necessidade, para os fins  
que me propus, me prolongar demasiado nos detalhes, pude chegar a uma importante conclusão:  
há uma irrisória produção em Serviço Social sobre o método marxista - mesmo que a teoria  
social de Marx e da herança marxista possua uma posição hegemônica no interior da profissão  
(Yazbek, 2009, p. 11) -, nos principais Programas de Pós-Graduação em Serviço Social, ao  
menos dentro do período recortado.  
Para citar ainda um trabalho com o mesmo enfoque da discussão sobre o método, porém  
como objeto a formação profissional, temos a pesquisa de Ana Ouriques (2019) que buscou  
Michael Gonçalves Cordeiro  
analisar o debate do método na formação profissional na modalidade presencial no sul do Brasil,  
a partir das ementas, planos de ensino e projetos pedagógicos. A principal conclusão da autora  
é a de que existe uma tendência a privilegiar estudos que:  
enfatizam a aproximação enviesada do Serviço Social com a teoria marxiana  
a partir do Movimento de Reconceituação nas disciplinas de FHTM do  
Serviço Social e, por poucas IES, a oferta de disciplinas que debatam o que é  
o Método e sua significância para as ações profissionais cotidianas, na  
perspectiva de desvelar a realidade social na qual se processa o trabalho  
profissional [...] o fato de apenas uma IES ofertar uma disciplina dedicada  
somente para o estudo do Método ainda demonstra uma necessidade de  
maturação e maior compreensão da importância da teoria social crítica, seja  
na formação, na produção de conhecimento ou na atuação profissional. Isso  
não significa dizer que este debate está ausente nas disciplinas por nós  
analisadas. Ele está presente, contudo, não é possível afirmar que esteja sendo  
feito de maneira mais aprofundada, haja vista que ele aparece no meio de um  
conjunto de conteúdo a ser trabalhado nas diversas disciplinas. Isso pode  
denotar uma abordagem mais periférica do método no processo de formação  
(Ouriques, 2019, p. 70-1, grifo meu).9  
Por fim, o já citado trabalho de Closs (2015), para além das conclusões já expostas,  
aponta ainda que os artigos que possuem o descritor “Teoria/método e Serviço Social e/ou  
Assistente Social” não chegam à 1% em relação à totalidade das produções dos periódicos,  
enquanto que os descritores “Marxismo/dialética e Serviço Social e/ou Assistente Social”  
representam pouco mais de 2% (Closs, 2015, p. 28). A partir destes dados, a autora chega a  
conclusões semelhantes à pesquisa que realizei, qual seja, de que:  
618  
são bastante diminutas as publicações que tratam do método dialético-crítico  
no plano do exercício profissional e mesmo na formação profissional, sendo  
este um debate que precisa ser adensado, pois apesar de ser tematizado em  
algumas produções, frequentemente não constitui tema central das mesmas,  
inclusive nas investigações (Closs, 2015, p. 200).  
De forma a demonstrar que se trata de uma marginalização generalizada, para além da  
pesquisa feita com recorte na Pós-Graduação e das duas pesquisas supracitadas,  
respectivamente com recortes na formação profissional e nos periódicos da área, recorro de  
forma sintética à análise feita por Iamamoto, em sua obra Serviço Social em Tempos de Capital  
Fetiche, em que tece alguns comentários críticos ao livro de Maria Lúcia Martinelli, Identidade  
e Alienação. A crítica feita pela autora que aqui interessa é a seguinte:  
Apesar da ampla referência à história do movimento operário europeu e suas  
lutas, do rico acervo bibliográfico recolhido em fontes da tradição marxista e  
da ambiguidade teórica no discurso, não se trata de uma análise que se  
estruture teórica e metodologicamente nas bases essenciais dessa tradição  
intelectual (Iamamoto, 2007, p. 293, grifo meu).  
9 Para outras referências sobre o mesmo objeto de estudo ver Paschoal (2010) e Zacarias (2017).  
Libertas, Juiz de Fora, v. 24, n. 2, p. 608-625, jul./dez. 2024. ISSN 1980-8518  
A pesquisa sobre o método marxista no Serviço Social brasileiro  
Trata-se, portanto, de uma dura crítica a uma obra consagrada na literatura profissional,  
que como a própria autora admite, é rica na utilização de fontes da tradição marxista e referência  
à luta da classe operária. A crítica feita por Iamamoto leva a constatação - banal, porém que  
assume relevância no quadro desta pesquisa de que afirmar partir do método marxista não é  
o mesmo que efetivamente realizar uma pesquisa ancorada neste método e de que a mobilização  
de referências marxistas ou categorias do método não significa necessariamente uma pesquisa  
com aporte da teoria marxista, nem mesmo que resultará em uma pesquisa sólida  
cientificamente (Netto, 1998, p. 83-84).  
Com base no quadro apresentado até aqui e corroborando a conclusão de Cantalice  
(2019, p. 12) sobre a ausência do debate sobre o método nos artigos científicos em Serviço  
Social, não é leviano levantar a hipótese de que esta ausência, mas principalmente, que  
afirmativas como: “este trabalho parte do método materialista dialético” e derivações, não  
necessariamente significam uma efetiva apropriação e adoção deste método no processo de  
pesquisa, podendo assumir um significado ideológico da afirmação do que propriamente  
teórico, de comprometimento com uma determinada visão de mundo, principalmente ético-  
político, do que a compreensão correta desta visão de mundo e seus desdobramentos teóricos e  
para pesquisa.  
Os resultados desta pesquisa, aliada à bibliografia supracitada sobre o tema,  
demonstram, por um lado, que a capacidade de desvelamento da realidade por parte dos  
profissionais e pesquisadores a partir da teoria social de Marx e da tradição marxista pode  
possuir uma lacuna significativa e mesmo fundamental, pois um dos pilares desta teoria passa  
ao largo na discussão acadêmica na profissão. Assim, toda a discussão sobre o “dever ser” da  
dimensão investigativa do assistente social aqui me refiro mais especificamente ao campo da  
prática profissional - podem ter repercussões muito mais de valor heurístico do que de prática  
concreta propriamente. Por outro lado, se este primeiro aspecto dos resultados requer uma  
pesquisa específica sobre a prática profissional10 e uma pesquisa mais aprofundada da formação  
em Serviço Social11, os resultados da pesquisa indicam para um possível adensamento  
enviesado da teoria social marxista. Se no período do movimento de reconceituação tinha-se  
um marxismo sem Marx, podemos possuir atualmente um marxismo com apropriação  
insuficiente do método. Ou, o que é ainda mais preocupante, um marxismo com um pseudo-  
conhecimento de suas bases teórico-metodológicas, que atribui as principais categorias do  
619  
10 Para pesquisas sobre a capilaridade do método marxista no exercício profissional ver Zacarias (2013) e Torres  
(2006).  
11 Para pesquisa sobre o método na formação profissional, ver Zacarias (2013).  
Michael Gonçalves Cordeiro  
materialismo histórico-dialético o papel de espantalhos, meros pressupostos heurísticos e não  
propriamente teórico-concretos. É plausível levantar a hipótese de que categorias como, por  
exemplo, de totalidade podem estar sendo reduzidas, na consciência dos assistentes sociais, a  
mera concepção de “olhar o todo”, como contraponto ao olhar o sujeito de maneira isolada.  
Precisamos indagar-nos quanto a atualidade da afirmação de Iamamoto feita em 1981, qual seja,  
de que:  
As dificuldades que vêm sendo sentidas no desvelamento da realidade sócio-  
histórica e no uso criador dos conhecimentos acumulados têm sido  
“compensadas” e “substituídas” por um álibi salvador”: o discurso “mágico”  
do compromisso com a classe trabalhadora. Este torna-se o substitutivo  
mágico da exigência de análises teóricas e históricas concretas “de situações  
concretas” (Iamamoto, 2004a, p. 190).  
Não é suficiente a mera reprodução de um discurso pronto, em que em meio a análise  
ou na introdução se fala em “totalidade”, “mediação” ou “dialética” e magicamente o discurso  
se torna aceito como crítico12. Isso faz apenas reproduzir a ilusão de um conhecimento que é  
apenas reprodução de ideias das quais pouco se sabe em verdade. Assim, não basta afirmar que  
a realidade é contraditória, ou que tudo deve ser tomado do ponto de vista da totalidade etc., é  
necessário conhecer as categorias de que se utiliza para que estas não se imponham de forma  
arbitrária à realidade e não tenham ligações somente superficiais e estilísticas uma à outra, como  
as criticadas por Marx em A Sagrada Família, em que Marx critica esta pretensa criticidade,  
que, em verdade, seria apenas para si mesmo e não sobre o objeto estudado. Ou, conforme  
constatou Kameyama em texto citado em outro momento deste artigo:  
620  
Existe uma grande quantidade de pesquisas que elaboram um marco teórico  
na perspectiva marxista, utilizando categorias de contradição, totalidade, mas  
no momento da coleta dos dados ou das informações, caem no empirismo. Isto  
significa que, apesar de utilizar os conceitos e leis gerais do materialismo  
histórico, na investigação social não aparece a relação dialética entre o sujeito  
e o objeto, na construção do saber. Tratam-se de produções que se  
caracterizam como formalistas/empiristas. Manifesta-se ainda o problema de  
substituir o método de exposição pelo método de investigação nas redações  
das dissertações de mestrado (Kameyama, 1998, p. 25).  
Assim, o quadro que aqui apresento é de, por um lado, uma teoria que assumiu  
historicamente um lugar central nas produções e discussões no Serviço Social e, por outro lado,  
uma produção apenas marginal sobre o método, que é reconhecidamente o momento basilar e  
indissociável desta teoria. Consequentemente, no que se refere ao debate sobre o método, as  
produções no interior da profissão parecem fechar os olhos para a guerra travada pela teoria  
12 Sobre a dialética como recurso ao discurso fácil, ver o curso ministrado em 2002 por José Paulo Netto sobre o  
método em Marx, no Programa de Pós-Graduação em Serviço Social da Universidade Federal de Pernambuco,  
Libertas, Juiz de Fora, v. 24, n. 2, p. 608-625, jul./dez. 2024. ISSN 1980-8518  
A pesquisa sobre o método marxista no Serviço Social brasileiro  
marxista com o conjunto do conhecimento contemporâneo, sobretudo em relação à chamada  
crise de paradigma nas Ciências Sociais e Humanas, e o conjunto de críticas feitas ao  
conhecimento herdado da racionalidade iluminista (ver Anderson, 1995; Ianni, 1990; Netto,  
1992), que tem como um dos alvos os pressupostos do método marxista. Ou seja, uma hipótese  
a ser analisada é a da adoção de um método como guia e instrumento de conhecimento da  
realidade, por um lado sem uma abordagem sobre a sua vitalidade e capacidade de análise em  
relação ao conhecimento produzido historicamente e, por outro lado, sem um trato específico  
sobre o próprio método, ao menos não de forma explícita nas pesquisas da área.  
Uma possível explicação para esta marginalização dos estudos sobre o método pode ser  
encontrada na aproximação enviesada da profissão à teoria marxista. Iamamoto, tratando dos  
estudos sobre o método marxista no período de reconceituação, afirma:  
Verifica-se, por exemplo, no trato do materialismo histórico e dialético, uma  
clara separação - que chega ao nível de excludência - entre as dimensões  
lógicas e históricas do método, verificando-se uma "suspensão" da dialética  
do conhecimento, desconectada da história. A categoria do trabalho,  
ontologicamente determinante na obra de Marx, está inteiramente ausente e é  
desconhecida nas análises da prática social e da relação teoria e prática, tão  
em voga naquele momento (Iamamoto, 2000, p. 126).  
Assim como ocorreu com os instrumentais técnico-operativos, que por um tempo  
ficaram esquecidos nos porões da profissão, pelo receio do “renascimento do velho  
tecnicismo”, como diz Iamamoto (2000, p. 191), a abordagem do método ficou sufocada e  
marginalizada, pois um trato específico da questão do método passou a ser considerado mero  
metodologismo.  
621  
Estou alinhado com o pensamento de Closs (2015, p. 200) sobre o tema quando esta  
afirma que  
a superação de uma abordagem formalista do método – que o reduzia à  
metodologia profissional, como “regras” a serem aplicadas, característica da  
aproximação enviesada com o marxismo – não pode significar a ausência de  
uma produção mais direta, que apreenda e sistematize possibilidades de sua  
mediação no exercício profissional, visando subsidiar as ações dos assistentes  
sociais.  
Conforme Forti e Guerra (2009, p. 3) o nível de complexidade que marca o atual  
momento do Serviço Social tem como consequência a necessidade de competência dos seus  
profissionais para enfrentá-la, requerendo “ações abalizadas, intelectualmente responsáveis e  
fecundas, analíticas e críticas, capazes de lhe proporcionar compreensão suficiente para uma  
ação efetiva e qualificada na realidade social”. Continuando, as autoras pontuam o desafio de  
“formar profissionais capazes de atuar na realidade, por meio da identificação e da apropriação  
crítica de suas demandas a eles dirigidas, reconfigurando-as e enfrentando-as de maneira eficaz  
Michael Gonçalves Cordeiro  
e eficiente”, exigindo, assim, “uma sólida formação teórica (ético-política) e metodológica”  
(Forti; Guerra, 2009, p. 4). Não se faz necessário ir além nessa discussão, já histórica na  
profissão (ver, por exemplo, Iamamoto, 2000; Netto, 1989), para chegar à seguinte conclusão:  
a apreensão e a pesquisa do método materialista dialético é ainda um desafio ao conjunto da  
categoria profissional, que em uma realidade de tantas controvérsias envolvendo sua validade  
e dos desafios impostos à prática profissional, assume um caráter ainda mais urgente.  
Considerações finais  
Algumas conclusões podem ser feitas a partir do breve percurso histórico da produção  
de conhecimento no Serviço Social sobre os fundamentos teórico-metodológicos e, sobretudo,  
o materialismo histórico-dialético: a primeira, mais óbvia, da baixa produção sobre este método  
e os referidos fundamentos, o primeiro mais que o segundo, porém este restrito a um corpo de  
profissionais; a segunda, não analisada neste artigo, que se refere a densidade teórica das  
produções sobre o método, entendida como a capacidade de alcançar as principais literaturas  
sobre o tema e aprofundar na sua análise, não permanecendo restrito à uns poucos nomes  
clássicos como Karel Kosik ou o próprio Marx, ou mesmo aos manuais e textos introdutórios,  
como o conhecido e pequeno texto introdutório de Netto sobre o tema (seria este um objeto de  
pesquisa de maior interesse, buscando dimensionar essa diversidade na produção teórica do  
Serviço Social); a terceira e talvez mais importante, que diz respeito tanto à produção de  
conhecimento sobre o método como sobre os fundamentos teórico-metodológicos em geral, é  
o da necessidade da ampliação do debate crítico com o conjunto do conhecimento produzido  
nas ciências humanas. Se apropriar do debate histórico feito dentro da História enquanto  
disciplina, que possibilita tanto a ampliação da crítica ao positivismo, a apropriação de outras  
escolas de pensamento que são praticamente inexistentes no debate da categoria como o  
historicismo (para citar apenas um exemplo clássico), além do próprio aprofundamento nos  
estudos sobre Marx, a tradição marxista e o método, bem como do adensamento no  
conhecimento da própria história (enquanto história de fato, objeto de estudo da História  
enquanto disciplina). O mesmo em relação às ciências sociais e as suas particularidades, das  
discussões do século XX e mais recentes sobre método, teoria da ciência, teoria do  
conhecimento, etc. Isso tudo pode ser ampliado para outros campos como o da Psicologia,  
Pedagogia, etc. Enfim, aumentar o diálogo crítico com o conjunto do conhecimento científico.  
Portanto, uma das conclusões que se pode tirar desta pequena exposição sobre os  
fundamentos teórico-metodológicos da profissão e o método marxista é que o seu debate  
necessita ser novamente aquecido, assim como quando do processo de aproximação mais sólida  
622  
Libertas, Juiz de Fora, v. 24, n. 2, p. 608-625, jul./dez. 2024. ISSN 1980-8518  
A pesquisa sobre o método marxista no Serviço Social brasileiro  
à tradição marxista, em que a própria conjuntura profissional exigia o debate teórico-  
metodológico na perspectiva do confronto teórico. A progressiva hegemonização do marxismo  
no seio da categoria profissional não pode significar uma perda na riqueza do debate teórico,  
do qual o resultado é desastroso para a produção teórica do Serviço Social em geral, para o  
adensamento teórico sobre a tradição marxista, como, e sobretudo, para apropriação dos  
fundamentos teórico-metodológicos pelo conjunto da categoria profissional, pois da baixa  
produção teórica sobre estes fundamentos, é possível inferir problemas na própria relação entre  
teoria e prática profissional.  
Um caminho possível para o enfrentamento a esta defasagem pode ser encontrado na  
ampliação do debate sobre os fundamentos teórico-metodológicos por meio do maior contato  
com as vertentes diversas das Ciências Sociais e das Ciências Humanas em geral, pois como  
sustentou certa vez Netto (1989), é por meio do confronto de ideias aberto que tanto marxistas  
como não-marxistas podem estimular-se reciprocamente, assim oxigenando a produção dos  
fundamentos teórico-metodológicos da profissão.  
Assim como Netto, Iamamoto em 1982 já alertava para o fato de que “a construção de  
um projeto de formação profissional deve superar o nível da mera ideologização da profissão,  
da denúncia das correntes tradicionais, para uma compreensão rigorosa do ponto de vista  
teórico-metodológico das correntes de pensamento vigentes na interpretação da profissão”  
(Iamamoto, 2004a, p. 170). A mesma autora, em uma linha de pensamento muito próxima de  
Netto, afirma ainda que o “conhecimento se constrói no contraponto permanente com a  
produção intelectual herdada, incorporando-a criticamente e ultrapassando o conhecimento  
acumulado” (Iamamoto, 2004a, p. 184).  
623  
Portanto, um dos caminhos possíveis para superação desta lacuna na produção teórica é  
a própria abertura ao debate plural no âmbito profissional levado a cabo com rigor teórico.  
Iamamoto considera “fundamental que a polêmica sobre as diferentes concepções teórico-  
metodológicas se solidifique no meio acadêmico-profissional, numa perspectiva pluralista, o  
que não se confunde com o ecletismo” (Iamamoto, 2004a, p. 180). Em outro momento,  
definindo a competência profissional, afirma que esta implica “um diálogo crítico com a  
herança intelectual incorporada no discurso do Serviço Social” e pela construção de um diálogo  
fértil entre a história em geral e a história do pensamento social moderno. O pluralismo é o  
pressuposto para fertilidade do debate teórico-metodológico profissional.  
Os limites deste trabalho não permitem aprofundar o debate sobre o pluralismo, feito  
dentro e fora dos muros da profissão, sendo esta apenas uma das saídas possíveis. Neste trabalho  
não toquei ainda em outras dificuldades relativas à própria produção do conhecimento científico  
Michael Gonçalves Cordeiro  
na atual conjuntura, que certamente devem ter lugar privilegiado quando tratamos da produção  
de conhecimento, assim como outros pontos de relevância. Trata-se, sobretudo, de um artigo  
que busca provocar o debate sobre o tema.  
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Conservadorismo enquanto ideologia-política e  
peleja histórica do Serviço Social  
Conservatism as a political ideology and a historical struggle of Social Work  
Francisco Flavio Eufrazio*  
Resumo:  
O
trabalho reforça que  
o
Abstract: The work highlights that  
conservatism was and remains a historical  
struggle of Social Work, which is expressed  
ideologically and politically in the national  
societal structure. It presents brief analyses of  
the influences of conservatism on the formation  
of social relations and argues that they are  
maintained by the bourgeois sector to prevent  
the disappearance of the class system that has  
been formed in the country. It indicates that  
conservatism, as an ideology-politics, still  
affects Social Work, mainly via socio-  
occupational spaces, and considers, based on a  
literature review, that the rupture with this  
phenomenon, on the part of the professional  
category, will only be possible when the class  
system that was formed.  
conservadorismo foi e permanece sendo uma  
peleja histórica do Serviço Social e que se  
expressa ideológica e politicamente na estrutura  
societária nacional. Apresenta breves análises  
sobre as influências do conservadorismo na  
formação das relações sociais e argumenta que  
elas são mantidas pelo setor burguês para  
impedir o fenecimento do sistema de classes que  
se formou no país. Indica que  
conservadorismo, enquanto ideologia-política,  
ainda incide sobre Serviço Social,  
principalmente via espaços sócio-ocupacionais,  
e considera que o rompimento definitivo com tal  
fenômeno, por parte da categoria profissional,  
será possível quando ocorrer o fenecimento do  
sistema de classes.  
o
o
Palavras-chaves: Conservadorismo; Espaços  
Keywords: Conservatism; Socio-occupational  
sócio-ocupacionais; Serviço Social.  
spaces; Social Work.  
Introdução  
Rasgos axiais sobre o problema. Preliminarmente, segundo Netto (2011), o sincretismo é  
O fio condutor da afirmação e do desenvolvimento do Serviço Social como  
profissão, seu núcleo organizativo e sua norma de atuação. Expressa-se em  
todas as manifestações da prática profissional e revela-se em todas as  
intervenções do agente profissional como tal. O sincretismo foi um princípio  
constitutivo do Serviço Social (Netto, 2011, p. 92).  
Considero que o sincretismo representa a mescla de circunstâncias distintas, como: a  
* Bacharel em Serviço Social pela Universidade Federal de Campina Grande - UFCG. Mestre em Serviço Social  
e Direitos Sociais pela Universidade Estadual do Rio Grande do Norte - UERN. Doutorando em Serviço Social  
pela Universidade Federal de Pernambuco - UFPE. ORCID: https://orcid.org/0000-0002-6835-349X  
DOI: 10.34019/1980-8518.2024.v24.44146  
Esta obra está licenciada sob os termos  
Recebido em: 10/04/2024  
Aprovado em: 14/11/2024  
Conservadorismo enquanto ideologia-política e peleja histórica do Serviço Social  
arcaização do moderno e a modernização do arcaico (Fernandes, 1975). O sincretismo é um  
fenômeno que simboliza uma incompatibilidade de conjunturas desiguais coexistindo. Ele se  
apresenta predominantemente nas relações sociais mediante eventualidades, acontecimentos,  
episódios etc. que se contrapõem à dita sociabilidade moderna ao reviver e revitalizar  
anacronismos incompatíveis com os avanços teleológicos e ontológicos da humanidade no  
tempo presente. Dessa forma, o sincretismo acaba limitando mudanças sócio-estruturais  
profundas e capazes de romper com a ordem societária vigente, por isso, compreendo o  
sincretismo como uma contradição do sistema capitalista.  
O sincretismo que desenvolve o Serviço Social (Netto, 2011) é processado pelo  
desenvolvimento capitalista, tanto ideológica quanto politicamente. Ele se manifesta de forma  
objetiva e subjetiva, também mediante práticas conservadoras que o perpetuam e, ao perpetuá-  
lo, se conservam. Neste caso, e concordando com Souza (2020), reforço: o sincretismo é uma  
expressão do conservadorismo que, somado ao ecletismo, (re)produz agravos no Serviço  
Social, já que “o conservadorismo nunca deixou de permear a formação e o [exercício]  
profissional. Por vezes explícita, por vezes implicitamente” (Boschetti, 2015, p. 639).  
Para Souza (2020), ainda é necessário tratar o conservadorismo, assim como sua  
expressão sincrética e eclética, enquanto problemáticas a serem enfrentadas em suas dimensões  
sócio-históricas, teóricas, culturais, políticas e ideológicas. Ainda segundo o autor, o Serviço  
Social deve compreender o conservadorismo enquanto fenômeno presente na totalidade das  
relações sociais, percebendo-o enquanto determinação estrutural dotada de raiz político-  
ideológica, arraigada e nutrida nas/pelas contradições capitalistas, para efetivar definitivamente  
a tão aspirada ruptura com a estrutura sincrética do Serviço Social de notoriedade conservadora.  
O conservadorismo ainda se apresenta enquanto peleja histórica do Serviço Social  
(Maranhão, 2016), ao incidir precipuamente sobre a profissão via espaços de trabalho, os quais  
carregam consigo tensões de classes e disputas de projetos societários que podem gerar  
complicações na operacionalidade do exercício profissional, seja pela incidência da autonomia  
relativa (Iamamoto, 2012) sobre o profissional inserido tanto dentro, quanto fora dos espaços  
de trabalho das políticas públicas e sociais, seja pela via da regressão ou retirada de direitos  
sociais, mediante a desproteção social do Estado que negligencia e vilipendia a questão social,  
a partir da ideologia-política conservacionista e reacionária capaz de (re)definir o papel e a  
função do Estado diante dela (questão social), o que pode impactar, direta ou indiretamente, nas  
condições e relações de trabalho de assistentes sociais (Moura, 2019).  
627  
Tais possíveis circunstâncias indicam que o Serviço Social, enquanto profissão inserida  
na divisão social e técnica do trabalho, ainda que ancorado numa perspectiva crítica, política e  
Francisco Flavio Eufrazio  
ética, não é alheio às contradições, tampouco às ideologias do sistema capitalista que incidem  
tanto sobre o exercício profissional quanto sobre as suas instituições empregadoras.  
A questão do conservadorismo e suas repercussões tradicionalistas e restauradoras  
também se apresentam como problemáticas cruciais ao Projeto Ético-Político do Serviço Social  
brasileiro, ao repercutirem nos princípios norteadores da profissão, sobretudo naqueles  
referentes1 ao compromisso da categoria profissional com a emancipação humana (Souza,  
2020). Além disso, o conservadorismo presente nas relações sociais tem produzido no interior  
da categoria profissional pensamentos e análises que afirmam haver um hiato entre formação e  
exercício profissional, ao fomentar pensamentos de que há “um fosso entre um projeto de  
formação baseado na teoria crítica marxista e uma prática profissional que não incorporaria  
essas referências teóricas e incorreria em trabalhos profissionais conservadores e reiterados”  
(Boschetti, 2015, p. 638).  
Ocorre que o conservadorismo é politicamente ideológico (Souza, 2020). Ele se fez e se  
faz presente em todas as relações sociais, especialmente no exercício da categoria profissional  
nos espaços sócio-ocupacionais, ainda possivelmente por práticas tradicionais, burocráticas,  
alienadas e reducionistas, destituídas de referencial histórico-crítico, as quais podem ser  
impostas muitas das vezes de maneira compulsória sobre o profissional (Martinelli, 1989).  
Assim, podendo resultar num exercício profissional desassociado da práxis e reverberar em  
práticas policialescas, classistas e de culpabilização do usuário dos serviços, programas,  
projetos e benefícios das políticas públicas e sociais, já que essas possíveis práticas tendem a  
ser influenciadas por perspectivas teóricas pós-modernas, positivistas, funcionais e  
estruturalistas, as quais circunscrevem os possíveis danos das influências ideológicas do  
conservadorismo no “saber-fazer” profissional. Uma vez que, direta ou indiretamente, “são [...]  
decisivas as tendências conservadoras da política institucional do Estado brasileiro, com as  
quais se relacionam mais diretamente as entidades representativas do [Serviço Social e o  
exercício profissional]” (Souza, 2020, p. 37).  
628  
Evidentemente, tais circunstâncias podem impactar porventura o Serviço Social, em  
geral, e o exercício profissional em particular, seja por uma possível “corrosão” do estatuto  
teórico e político da profissão via ecletismo: o qual constitui uma dimensão que tende “a  
reproduzir traços do conservadorismo no Serviço Social, funcionando como uma espécie de  
caixa de ressonância do conservadorismo crescente na sociedade brasileira” (Souza, 2020, p.  
1 Ver em específico o Código de Ética do Serviço Social, principalmente seus princípios fundamentais. Disponível  
08 out. 2023.  
Libertas, Juiz de Fora, v. 24, n. 2, p. 626-646, jul./dez. 2024. ISSN 1980-8518  
Conservadorismo enquanto ideologia-política e peleja histórica do Serviço Social  
64); ou por uma possível “colisão” com estatuto profissional do Serviço Social, ao afetar os  
princípios norteadores da profissão via conservadorismo: o qual tende a manter “sua influência,  
contraditoriamente, no cotidiano do Serviço Social como profissão e como área de  
conhecimento” (Souza, 2020, p. 64).  
Ainda assim, é preciso reconhecer que tais fenômenos (ecletismo e conservadorismo) não  
são requisitados ou mesmo vilipendiados pelo Serviço Social, ao contrário, eles são impostos à  
categoria profissional mediante “um conjunto de determinantes históricos, que fogem ao seu  
controle e impõem limites, socialmente objetivos, à consecução de um projeto profissional”  
(Iamamoto, 2014, p. 424).  
Situado isso, resta ratificar que o objetivo do trabalho é apresentar breves análises sobre  
o conservadorismo enquanto ideologia-política: implementada e mantida como substrato das  
relações sociais pelos setores burgueses na perspectiva de impedir possível fenecimento do  
sistema de classes que se formou e se desenvolve no Brasil. Em seguida, tem em vista indicar  
como o conservadorismo se apresenta no Serviço Social, destacando o espaço sócio-  
ocupacional2 que emprega assistentes sociais como uma das vias para a incidência do  
conservadorismo sobre a profissão. Por fim, argumenta que o conservadorismo enquanto  
ideologia-política ainda repercute negativamente no Serviço Social, e considera que o  
rompimento com tal fenômeno por parte da categoria profissional será possível quando ocorrer  
o fenecimento do sistema de classes.  
629  
As reflexões aqui apresentadas são resultadas de revisões bibliográficas. Em especial,  
recorreu-se à tese de doutorado de Jamerson Murillo Anunciação de Souza — “Tendências  
ideológicas do conservadorismo” —, na perspectiva de compreender o conservadorismo  
enquanto ideologia-política. Artigos e livros também foram utilizados na construção da análise,  
tais como Iamamoto (2014; 2009), Netto (2011), Mota (2012), Boschetti (2015), etc. Quanto à  
bibliografia referente às influências do conservadorismo nas relações sociais no Brasil, uma  
obra em particular se destaca: “Sociedade de classes e subdesenvolvimento”, de autoria do  
sociólogo Florestan Fernandes (2008). Ao priorizar tais bibliografias, visei compreender as  
influências da ideologia-política do conservadorismo no Brasil e no Serviço Social, na  
perspectiva de contribuir ao debate e no combate ao conservadorismo.  
2
Não há destaque em especial de nenhum espaço sócio-ocupacional. Elaboro minha análise a partir do  
entendimento de que todos os espaços sócio-ocupacionais que empregam assistentes sociais, em alguma medida,  
são campos de disputas de interesses de classes antagônicas, bem como são espaços receptores e propagadores do  
conservadorismo, devido à sua natureza contraditória (Moura, 2019; Iamamoto, 2009).  
Francisco Flavio Eufrazio  
Breve análise da ideologia-política do conservadorismo (e suas influências) no  
Brasil  
O conservadorismo tem sido a tônica da política brasileira nos últimos anos.  
[...] A razão disso é o significado social que o pensamento e a práxis  
conservadoras representam. Em um país de inserção periférica, dependente  
[...] no circuito da divisão internacional do trabalho, como o Brasil, as  
ideologias conservadoras, em geral, e o conservadorismo em particular,  
tendem a ressoar e a repercutir com intensidade sobre a cultura, a economia e  
a política (Souza, 2016, p. 360).  
O conservadorismo presente nas relações sociais que se constituíram (e se constituem) no  
Brasil, de característica razoavelmente distinta de “outros conservadorismos” presentes em  
países de formação econômica clássica, mas, ao mesmo tempo, imprimindo certas similaridades  
constitutivas “abrasileiradas”, parece resultar de amálgamas políticas e ideológicas mediante  
aproximações com o fascismo e com o bonapartismo (Souza, 2020). Sua composição, oriunda  
de ideologias políticas ultranacionalistas, autoritárias e ditatoriais, somada à personificação de  
tradições, valores e princípios reivindicados pela classe sociorracial, política e economicamente  
dominante como verdades intransigentes, é frequentemente (re)atualizada para (re)definir  
métodos conservacionistas e inibidores de mudanças radicais e profundas capazes de romper  
com as “revoluções” dentro da ordem (Fernandes, 2008).  
Suas influências tendem a “acentuar elementos de uma herança histórica que, mediante  
contradições, não foi inteiramente superada” (Souza, 2020, p. 275). E, pelo que é perceptível  
pelo que ocorreu e se agravou no governo Bolsonaro, elas permanecem presentes “no cotidiano  
e nos interesses das classes dominantes e dominadas, influenciando, sobretudo, suas escolhas  
políticas, ideias, valores, costumes e relações sociais” (Souza, 2020, p. 275).  
630  
Acerca destas influências, é preciso lembrar que o padrão de civilização conservador  
vigente no Brasil, agudizado com a latência do autoritarismo e da autocracia burguesa no  
governo Bolsonaro (Pereira, et al., 2021), não é uma adversidade societária contemporânea,  
tampouco essencialmente autêntica: ele foi “transferido ou transplantado de fora, [...] por via  
de herança cultural e de participação contínua nos processos de transformação dessa civilização,  
ocorridos nos centros originais de sua elaboração e irradiação” (Fernandes, 2008, p. 141), com  
a perspectiva de garantir estabilidade das posições estratégicas para o setor político e  
economicamente dominante na estrutura das classes sociais em disputa, mediante a arcaização  
do moderno e a modernização do arcaico sobre bases conservadoras capazes de centralizar o  
monopólio do poder sob o controle de uma de suas facções (Fernandes, 1975; 2008).  
Como fenômeno utilizado para preservar o domínio do poder da classe sociorracial,  
política e economicamente dominante, inerente à atual organização da sociedade no complexo  
Libertas, Juiz de Fora, v. 24, n. 2, p. 626-646, jul./dez. 2024. ISSN 1980-8518  
Conservadorismo enquanto ideologia-política e peleja histórica do Serviço Social  
econômico urbano-industrial, o conservadorismo elaborado no país foi mais requisitado após a  
finalização da produção de base escravista, em meio a um potencial desequilíbrio e instabilidade  
das relações sociais desiguais, sobretudo pelos setores burgueses na perspectiva de conservar  
política e ideologicamente a consolidação e expansão do capitalismo brasileiro ao velho estilo  
das elites senhoriais.  
Com isso, [estou convencido] de que a formação do “conservadorismo à  
brasileira” emerge em um contexto histórico marcado por um racismo  
enraizado que atinge também as instituições, resultante da exploração secular  
do trabalho escravo e pelo tardio estabelecimento de relações tipicamente  
capitalistas. Trata-se de uma transição capitalista sem a mediação de um  
processo revolucionário “clássico” e sem um corte profundo e definitivo com  
as formas pré-capitalistas, ou extraeconômicas, de subordinação do trabalho  
ao capital (Souza, 2020, p. 278).  
Neste caso, viso argumentar que o conservadorismo enquanto ideologia-política serviu  
de substrato para preservar as disparidades entre as classes sociorraciais e conduzir uma  
processualidade de mudanças políticas e econômicas tipicamente capitalistas, preliminarmente  
sob o signo do liberalismo e posteriormente sob o signo do neoliberalismo.  
Foi especialmente a partir de 1930, se agudizando em 1970, mas também em 2008,  
sobretudo a partir do crescimento das teorias irracionais e acríticas, que o conservadorismo  
possibilitou como ainda tem possibilitado estabilidade para o desenvolvimento da burguesia  
nacional, muito vinculado ao agravamento da questão social e de sua negligência,  
principalmente por parte do Estado, ao revitalizar uma cultura conservadora no enfrentamento  
da questão social (Mota, 2012).  
631  
Ocorre que os meios de “enfrentamento” da questão social muitas das vezes são  
destituídos de significados políticos, do ponto de vista histórico e teórico, os quais desvinculam  
a compreensão do surgimento da questão social da lei geral da acumulação, da centralização e  
da concentração de capitais, bem como da intervenção do Estado diante das desigualdades  
sociais e da constituição e ingresso da classe trabalhadora no circuito social, exigindo seu  
reconhecimento de classe social por parte do Estado e do empresariado (Iamamoto; Carvalho,  
2014).  
A administração da questão social nesta sociabilidade, marcada por reformas paliativas,  
não aspira resultar em sua superação como uma prática de transformação e eliminação da ordem  
social que lhe determina. Ao contrário, a questão social tem sido “enfrentada” mediante ações  
restauradoras e conservadoras nos marcos da sociedade burguesa (Mota, 2012). Em outras  
palavras, o trato da questão social, nos marcos da ordem vigente, é condicionado a “políticas e  
reformas sociais que mantêm intocadas a propriedade privada e a exploração do trabalho  
Francisco Flavio Eufrazio  
alheio” (Mota, 2012, p. 27).  
Tal realidade parece estar relacionada a parâmetros alienantes/alienadores e inibidores de  
entendimento crítico sobre a questão social e sobre o sistema político-econômico que a  
constitui. Isso porque a ideologia-política expressa pelo conservadorismo, ao mesmo tempo,  
em que funciona como mecanismo resguardador da ordem vigente, também determina a  
compreensão sobre ela, ao condimentar pensamentos, ideias, valores, crenças e relações sociais  
que a percebem como normalidade e insuperável; e ao fomentar concepções de realidade  
fetichizadas e reducionistas apoiadas em experiências limitadas e em abordagens irracionais  
sobre a complexidade e totalidade do real, acaba por garantir que as bases de produção e  
reprodução do sistema capitalista permaneçam intactas e inalteráveis.  
Acerca da temática, Rodrigues (2012), em seu trabalho “‘O estruturalismo e a miséria da  
razão’: bases para uma crítica a Foucault”, chama a atenção para as influências das  
perspectivas teóricas acríticas relacionadas às tentativas de compreensão da realidade concreta.  
Ao analisar as abordagens de Foucault apoiadas em experiências reducionistas da realidade, a  
autora defende que elas são elaboradas mediante abstrações superficiais e irracionais que  
reduzem a razão, a intelectualidade e o entendimento à imediaticidade pragmática, deixando de  
fora a compreensão dialética por se “aferrar a uma modalidade operativa racional  
essencialmente limitada, cujos procedimentos dedutivos e lógico-matemáticos que lhes são  
próprio[s] [...] deixam escapar a dinâmica contraditória e processual dos fenômenos”  
(Rodrigues, 2012, p. 168).  
632  
São abordagens analíticas que tiveram proporções significativas associadas às  
complicações próprias do sistema capitalista e como esse sistema as utiliza em sintonia com o  
conservadorismo: pois “as influências conservacionistas se mantiveram tão fortes e em  
condições de neutralizar o impacto das influências inovadoras no comportamento social  
[inteligentemente crítico]” (Fernandes, 2008, p. 109).  
O momento histórico e factual de sua generalidade, pelo que se pode inferir de Souza  
(2020), ocorreu no último quartel do século XX, precisamente durante a década de 1970, com  
o neoliberalismo representando, cognoscível e criticamente, a decadência liberal e  
sociometabólica do sistema capitalista (Mészáros, 2011). Além disso, houve nesse período a  
proliferação de perspectivas pós-modernas, estruturalistas e pós-estruturalistas, reivindicando a  
refutação de teorias como marxismo, mas que não cunham abordagens de totalidade, tampouco  
apresentam mediações relativas às opressões, explorações, desigualdades e dominações do  
respectivo sistema, por associarem contradições próprias do capitalismo à meritocracia, por  
exemplo.  
Libertas, Juiz de Fora, v. 24, n. 2, p. 626-646, jul./dez. 2024. ISSN 1980-8518  
Conservadorismo enquanto ideologia-política e peleja histórica do Serviço Social  
Associações como essas têm resultado na manutenção das condições reais da produção  
capitalista e naquelas referentes à sua reprodução (Mandel, 1982), seja pela via da alienação,  
da fetichização, da reificação ou da manipulação, que por vezes repercutem em pensamentos  
petrificadores da realidade, os quais podem induzir uma percepção do real de maneira  
naturalizada; além de poderem fragmentar a totalidade e a luta da classe trabalhadora enquanto  
unidade de diversos, ao fomentar a perspectiva do identitarismo.  
Essas ações são potenciais estimuladoras de determinações e de justificativas políticas e  
ideológicas que podem conferir pontos de vista significativamente diferentes aos sujeitos  
sociais, segundo suas posições sociais em relação aos instrumentos disponíveis de controle  
social, mantidos por uma tradição culturalmente conservadora. No Brasil, a cultura  
conservadora inerente ao “sistema ideológico socialmente estabelecido e dominante funciona  
de maneira a apresentar suas próprias regras de seletividade, tendenciosidade, discriminação e  
até distorção sistemática como ‘normalidade’, ‘objetividade’ e ‘imparcialidade científica’”  
(Mészarós, 2004, p. 13)3. Suas repercussões tendem a manter estruturas sociais que “continuam  
a ter vitalidade para preservar técnicas arcaicas legalmente proscritas de controle autoritário do  
poder, enquanto as sociais modernas não possuem bastante vitalidade para impor ou defender  
as técnicas democráticas de organização do poder” (Fernandes, 2008, p. 133).  
Ocorre que há relativa conexão entre a irracionalidade e o conservadorismo. Ambos se  
fortalecem reciprocamente, estabelecem bases de mandonismo e definem diagnósticos  
conservacionistas e de culpabilização sobre a matéria-prima do Serviço Social, a qual é a  
questão social, além de definir o papel e a função do Estado diante dela (Iamamoto; Carvalho,  
2014; Souza, 2020). Além disso, as funções do conservadorismo “abrasileirado” imprimem o  
impasse político-ideológico posto diante das tentativas de avanço e das manifestações dos  
circuitos sociais insatisfeitos com a processualidade civilizatória nacional.  
633  
Nos últimos anos, especialmente entre 2018 e 2022, a classe trabalhadora se deparou  
(como ainda se depara) com grandes desafios no enfrentamento do conservadorismo e de sua  
ideologia-política, sobretudo num contexto político, social e econômico marcado pelo aumento  
da precariedade e da flexibilidade das condições e relações de trabalho; pelo crescimento da  
informalidade; pela tendência crescente da plataformização do trabalho no tempo histórico da  
chamada indústria 4.0; além do crescente desemprego e do cerceamento de direitos sociais e  
trabalhistas.  
3
Partes da obra “O poder da ideologia” do Ístván Mészarós (2004), disponível em:  
%20ideologia%20%28pp.%2011-27%29.pdf. Acesso em: 11 jul. 2023.  
Francisco Flavio Eufrazio  
Atualmente, a luta que a classe trabalhadora tem empreendido no Brasil é  
majoritariamente referente à defesa da permanência de direitos sociais que conseguiram —  
mediante muita resistência por parte da sociedade civil progressista — atravessar o governo  
Bolsonaro. Em contraposição, o conservadorismo e sua ideologia-política têm alçado voo junto  
da extrema-direita, a qual o mantém como guardião do seu projeto societário (Barroco, 2022).  
É significativo destacar que o combate ao conservadorismo não está apenas relacionado  
à realização de mudanças nas mais “simples” relações sociais, já que a luta contra ele demanda  
transformações profundas em todas as esferas sociais, sobretudo nas representativas da  
sociedade civil que, durante os anos de gestão do governo Bolsonaro, foram majoritariamente  
ocupadas pela extrema-direita reacionária e conservadora, representada pela bancada  
parlamentar da “bíblia”, da “bala” e do “boi”. E que tiveram como principal apoiador de suas  
práticas e deliberações reacionárias e conservadoras a figura de Bolsonaro.  
Para Pereira et al. (2021), o ingresso de Jair Bolsonaro à Presidência da República foi  
decorrente da permanência de setores conservadores presentes nas instituições representativas  
da sociedade civil desde o golpe militar de 1964. Para a autora, esses setores vêm empreendendo  
ações reacionárias e restauradoras na perspectiva de barrar o projeto revolucionário da classe  
trabalhadora que havia prosperado junto aos avanços sociais nos primeiros governos petistas.  
Contudo, o resultado indesejado obtido por esses setores foi, sobretudo, o baixo rendimento em  
lucratividade, já que Bolsonaro “não mirou no aumento dos lucros do capital ou na solidificação  
de valores conservadores tradicionais” (Pereira et al., 2021, p. 8). Já para Bolsonaro, os efeitos  
inesperados de sua contraposição de projetos desembocaram na perda de apoio e força política  
na sua tentativa de reeleição em 2022. Para a classe trabalhadora, os efeitos desse jogo sádico  
de interesses desencadearam a difusão e a legitimação social do chamado neoconservadorismo  
de feições neoliberais (Barroco, 2022).  
634  
Em Barroco (2022), podemos inferir que a constituição do neoconservadorismo  
representa uma tentativa de atualização de fenômenos históricos utilizados pelo capitalismo  
para manter suas bases de produção e reprodução operando. Se o conservadorismo  
desenvolvido no Brasil resultou de amálgamas políticas e ideológicas da junção de elementos  
fascistas e bonapartistas, o neoconservadorismo, por outro lado, conservou tais elementos e  
agregou outros, pois o neoconservadorismo se “consiste na junção entre os valores do  
conservadorismo moderno e os princípios do neoliberalismo” (Barroco, 2022, p. 13). Segundo  
a autora, “do conservadorismo clássico, preservam-se a tradição, a experiência, o preconceito,  
a ordem, a hierarquia, a autoridade, valorizando-se as instituições tradicionais, como a igreja e  
a família patriarcal” (Barroco, 2022, p. 13). Já do neoliberalismo, “conservam-se a não  
Libertas, Juiz de Fora, v. 24, n. 2, p. 626-646, jul./dez. 2024. ISSN 1980-8518  
Conservadorismo enquanto ideologia-política e peleja histórica do Serviço Social  
interferência do Estado na economia, o empreendedorismo, a meritocracia, o privatismo, o  
combate aos movimentos sociais e aos direitos sociais” (Barroco, 2022, p. 13).  
Contudo, mesmo com o término do governo Bolsonaro, o conservadorismo e algumas  
características de sua nova versão permanecem vigentes no cotidiano das relações sociais, pois  
os setores conservadores que apoiaram a candidatura de Jair Messias Bolsonaro à Presidência  
da República não foram suprimidos ou eliminados com a derrota do candidato na tentativa de  
se reeleger em 2022. Os setores conservadores presentes na sociedade brasileira foram  
fortemente beneficiados tanto politicamente quanto ideológica e economicamente enquanto  
perdurou a gestão do ex-presidente Bolsonaro.  
Atualmente, esses setores se concentram em três principais esferas da sociedade:  
1. No religioso. O grande crescimento de igrejas pentecostais e neopentecostais  
revitaliza as práticas conservadoras e reacionárias na perspectiva de inibir  
avanços da modernidade ao impor uma percepção de mundo por lentes  
heurísticas, negando a ciência, naturalizando a desigualdade e enaltecendo a  
ordem e os “bons costumes” tradicionais que são enviesados de preconceitos,  
discriminações e intolerâncias (Barroco, 2022).  
2. Nas forças militares. As forças militares exercem papel axial na preservação da  
ordem burguesa e da cultura conservadora. As ações empreendidas pelas forças  
militares não visam mediar conflitos, tampouco restaurar a convivência social.  
Ao contrário, elas são operacionalizadas para “reprimir qualquer ameaça das  
classes dominadas [...] através do Exército, da polícia, do sistema judiciário e  
penitenciário” (Mandel, 1982, p. 334).  
635  
3. Nas propostas neofascistas. As quais visam incorporar discursos de ódio,  
intolerância, defesa de um nacionalismo radical e o uso da força e da violência  
no circuito social e econômico, além de enaltecer determinada raça  
simultaneamente ao extermínio de outras. Nessas propostas, os setores  
conservadores “encontram ressonância num tempo em que o emprego é escasso  
e a competição toma o lugar da solidariedade; em que a barbárie dissemina o ódio  
e a desumanização; em que a brutalidade passa a ser virtude política e o  
irracionalismo apela aos piores instintos e às reservas de animalidade que brotam  
no indivíduo, na sociedade capitalista” (Barroco, 2022, p. 13).  
Mesmo o país experimentando poucas progressões e muitas convulsões políticas  
dramáticas, relacionadas a mudanças de produção econômica de baixo desenvolvimento  
Francisco Flavio Eufrazio  
interno, mas de alta rentabilidade externa após 1930, que se agravaram com a instalação de uma  
ditadura que reorientou a organização e as polarizações do poder na sociedade brasileira em  
1937, subsequentemente, desemborcando numa “renovação” da “democracia” liberal-  
conservadora, somada ao suicídio de um presidente eleito e a renúncia de outro, que gestou uma  
experiência parlamentarista efêmera e extemporânea, mas também uma conspiração civil com  
apoio militar que redundou num golpe de Estado contrarrevolucionário e na implementação de  
um regime militar autoritário em 1964, o qual reatualizou o substrato material, político e  
ideológico que fez crescer a autocracia burguesa e conservadora que perdura até os dias atuais,  
é possível perceber que o conservadorismo nessa processualidade histórica-civilizatória não  
deu trégua; ao contrário, contribuiu significativamente para manter a organização da estrutura  
de classes no Brasil, em patamares que facilitou, em todos os níveis e em todos os momentos  
históricos do país: a absorção dos “progressos” pelos setores sociorraciais, políticos e  
economicamente dominantes (Fernandes, 2008; Souza, 2020).  
Nesse caso, é fundamental reconhecer “que o conservadorismo como forma de  
pensamento [político e ideológico] e experiência prática é resultado de um contra movimento  
aos avanços da modernidade, e nesse sentido, suas reações são restauradoras e preservadoras”  
(Yazbek, 2020, p. 300). Sua notoriedade se espraia em todos os âmbitos das relações sociais,  
garantindo a inviolabilidade de mudanças estruturais capazes de erradicá-lo. Por isso, o  
conservadorismo ainda se apresenta no Serviço Social, mesmo havendo intencionalidade de  
rompimento com ele por parte da categoria profissional. Portanto, é necessário não vilipendiar,  
tampouco negligenciar a existência do conservadorismo nas relações sociais que se forjaram no  
país, muito menos desconsiderar sua incidência no Serviço Social, majoritariamente viabilizada  
a partir dos espaços do exercício profissional.  
636  
Conservadorismo e sua incidência no Serviço Social via espaços sócio-ocupacionais  
Preliminarmente, [parto] do entendimento de que as demandas postas no  
cotidiano profissional têm requisitado ações cada vez mais imediatas,  
fragmentadas, heterogêneas e superficiais aos assistentes sociais, e que as  
políticas sociais [e públicas, as quais são campos da] intervenção dos  
profissionais, carregam contradições inerentes à sua própria natureza. É  
importante também situar que, num contexto de crise estrutural do capital, a  
lógica neoliberal – vista como saída à crise – adentra e interfere  
consideravelmente nas relações de trabalho dos assistentes sociais, pois com  
vínculos precários, baixa remuneração, desemprego e condições mínimas para  
o exercício profissional, muitos assistentes sociais acabam por acatar  
determinações que são contrárias aos princípios da profissão. Os espaços  
sócio-ocupacionais, enquanto instituições que possibilitam a atuação dos  
profissionais, também [são] composto[s] por interesses diversos e expressa[m]  
muitas das vezes determinações contrárias aos princípios profissionais. Assim,  
Libertas, Juiz de Fora, v. 24, n. 2, p. 626-646, jul./dez. 2024. ISSN 1980-8518  
Conservadorismo enquanto ideologia-política e peleja histórica do Serviço Social  
os assistentes sociais inseridos na saúde, educação, assistência social,  
sociojurídico e outras áreas enfrentam dilemas diversos quando optam pelo  
projeto crítico da profissão [contrário ao conservadorismo] (Moura, 2019, p.  
114).  
Os espaços sócio-ocupacionais que empregam assistentes sociais se apresentam como  
ambientes contraditórios, ora representando avanços, ora retrocessos. São pensados, elaborados  
e desenvolvidos pelo Estado (e pelo empresariado), mediante exigências e lutas da classe  
trabalhadora, para oferecer mínima cobertura e assistência social e máxima proteção  
empresarial, já que têm como uma de suas finalidades gerarem aquietamento social. Eles são  
produtos da efetivação e da execução de políticas públicas e sociais, desenvolvidas para  
responder aos agravos sociais produzidos pelas desigualdades e explorações do sistema  
capitalista e assim produzir, a curto e médio prazo, controle e apaziguamento entre burgueses e  
operários. Por outro lado, segundo Iamamoto (2009), os espaços sócio-ocupacionais se  
constituem enquanto ambientes para realização da venda da força de trabalho do profissional  
como tal.  
Segundo Iamamoto (2009),  
O exercício da profissão realiza-se pela mediação do trabalho assalariado, que  
tem na esfera do Estado e nos organismos privados – empresariais ou não – os  
pilares de maior sustentação dos espaços ocupacionais desse profissional,  
perfilando o seu mercado de trabalho, componente essencial da  
profissionalização do Serviço Social. A mercantilização da força de trabalho,  
pressuposto do estatuto assalariado, subordina esse trabalho de qualidade  
particular aos ditames do trabalho abstrato e o impregna dos dilemas da  
alienação, impondo condicionantes socialmente objetivos à autonomia do  
assistente social na condução do trabalho e à integral implementação do  
projeto profissional (Iamamoto, 2009, p. 8).  
637  
O profissional do Serviço Social, ao ser inserido nos espaços operacionais das políticas  
públicas e sociais — Centros de Referência de Assistência Social (CRAS), Centros de  
Referência Especializado de Assistência Social (CREAS), hospitais, instituições públicas de  
ensino básico ou superior, Instituto Nacional de Seguro Social (INSS), mas também nos Centros  
de Atenção Psicossocial (CAPs), Núcleos Ampliados de Saúde da Família (NASFs), etc. —, é  
recrutado pelo Estado para atuar na mediação de direitos; na prestação de assessoria e  
consultoria a órgãos da administração pública ou privada, seja direta ou indiretamente; na  
resolução de possíveis problemas que possam surgir entre os usuários e as instituições públicas  
e sociais que dispõem de programas, projetos, serviços e benefícios constitucionalmente  
garantidos; mas também na elaboração, implementação, execução e avaliação de políticas  
públicas e sociais, conforme as diligências das competências profissionais dispostas no Art. 4º  
da Lei n.º 8.662, de 7 de junho de 1993, a qual regulamenta a profissão.  
Francisco Flavio Eufrazio  
Sua inserção e exercício profissional são permeados por contradições próprias das  
instituições empregadoras, devido ao paradoxo funcional que as constitui enquanto espaços  
institucionais expressivos de contradições sociais (Iamamoto, 2009). Não obstante, é  
importante lembrar que o surgimento do Serviço Social brasileiro esteve associado à  
mundialização da matéria-prima de sua intervenção profissional, as quais são as expressões da  
questão social que se generalizaram a partir do desenvolvimento e mundialização do sistema  
capitalista, mais precisamente em seu estágio imperialista, pelo que se pode inferir de Netto  
(2011).  
Foi particularmente no imperialismo que as desigualdades entre os vários segmentos  
sócio-raciais se agudizaram e ganharam generalidade no país, com destaque especial para a  
pauperização da classe trabalhadora, acrescida tanto pela concentração de riquezas quanto pela  
relação desigual e exploratória entre burguesia e operariado oriunda do sistema capitalista  
(Netto, 2011). Cabe destacar, rapidamente, que  
não existe uma relação direta e imediata entre Serviço Social e questão social  
[...]. A relação existente é de natureza mediata em face das determinações  
históricas da existência e reprodução da profissão que se materializam nas  
demandas do Estado, do setor privado mercantil ou não e dos movimentos e  
organizações sociais e populares via obtenção ou execução de meios que  
permitam o enfrentamento das expressões da questão social (Mota, 2012, p.  
34).  
638  
Ao destacar essa natureza mediata entre Serviço Social e questão social, seja pelo setor  
público ou privado, viso enfatizar que não há uma inerência orgânica entre a profissão e a  
questão social. Em poucas palavras, não é o Serviço Social que cria ou mantém a questão social  
vívida e latente, tampouco será o Serviço Social e os seus agentes profissionais que o constituem  
que irão erradicá-la isoladamente. A questão social é um dos principais problemas produzidos  
pelo capitalismo e só a classe trabalhadora internacionalizada e mundializada conseguirá,  
coletivamente, destruí-lo.  
No Brasil, a questão social ganha maior notoriedade a partir de 1930, muito associada aos  
agravos sociais produzidos pelas tentativas de consolidação do mercado capitalista, pela  
escassez de postos de trabalho para a classe trabalhadora nativa e nacionalizada  
compulsoriamente4 e pela insalubridade da vida, mas também pela “expansão do processo de  
formação e desenvolvimento da classe trabalhadora e de seu ingresso no cenário político da  
sociedade, exigindo seu reconhecimento como classe por parte do empresariado e do Estado”  
(Iamamoto; Carvalho, 2014, p. 77).  
4 Leia-se aqui a população africana escravizada e mantida no país contra sua vontade.  
Libertas, Juiz de Fora, v. 24, n. 2, p. 626-646, jul./dez. 2024. ISSN 1980-8518  
Conservadorismo enquanto ideologia-política e peleja histórica do Serviço Social  
Para o setor conservador, a questão social foi percebida e interpretada como simples  
episódio epidérmico, sem importância. Reivindicada como fenômeno natural, convertida em  
objeto de ação moralizadora (Netto, 2011). Para esse setor,  
O enfrentamento das suas manifestações deve ser função de um programa de  
reformas que preserve, antes de tudo e mais, a propriedade privada dos meios  
de produção. [...] trata-se de combater as manifestações da “questão social”  
sem tocar nos fundamentos da sociedade burguesa. Tem-se aqui, obviamente,  
um reformismo para conservar (Netto, 2011, p. 115).  
A negligência da questão social pelos setores conservadores da sociedade brasileira foi  
sistemática e deliberadamente bem montada e inteligentemente arquitetada para interpretar as  
contradições, problemas e desigualdades que são próprias do sistema capitalista como sendo  
provenientes dos limites de cada indivíduo. Esses setores se utilizaram da culpabilização do  
sujeito diante da situação-problema para negar o ethos da questão, ao reivindicarem lógicas  
conservadoras e meritocráticas, além de vilipendiar o problema nos seus diversos níveis,  
desvinculando-o da dinâmica dicotômica produzida pelas explorações e expropriações do  
sistema capitalista.  
Obviamente, tais ações ocultam o real interesse por trás delas: impedir ou limitar a classe  
trabalhadora de acessar direitos sociais e, com isso, restringir a sociabilização dos recursos  
públicos. É uma tática dos setores conservadores de impossibilitar que a classe trabalhadora  
consiga alterar profundamente a estrutura das relações sociais, econômicas e políticas desiguais  
entre burgueses e operários. Táticas como essa foram bastante empreendidas e facilitadas pela  
implementação de variadas categorias profissionais, como o Serviço Social, junto aos serviços  
públicos e sociais, pela perspectiva burguesa de preservar inviolável a estrutura contraditória  
entre as classes sociais. Neste caso, é possível cogitar que as circunstâncias impostas pela  
burguesia conservadora sobre o Estado em relação ao trato da questão social podem incidir,  
direta ou indiretamente, no exercício profissional de assistentes sociais a partir das condições e  
relações desfavoráveis para a execução do labor profissional nos espaços sócio-ocupacionais  
das políticas públicas e sociais, podendo gerar restrições e barreiras diante da operacionalidade  
dos serviços e direitos sociais para a população.  
639  
Nesse ínterim, cabe sublinhar que as primeiras intervenções de assistentes sociais no país,  
por exemplo, caracterizavam-se por práticas conservadoras e associadas aos interesses do modo  
de produção capitalista, sobretudo a partir de 1930. Martinelli (1989) descreveu o caráter das  
ações realizadas pelos agentes profissionais anteriormente ao Movimento de Reconceituação  
do Serviço Social Latino-Americano5, como:  
5 Em poucas palavras, o assim denominado Movimento de Reconceituação do Serviço Social Latino-Americano  
Francisco Flavio Eufrazio  
[...] práticas burocráticas, alienadas e reducionistas, destituídas de referencial  
histórico-crítico, [...][marcadas] ainda por uma intensa dessolidarização da  
categoria profissional, que [incidiram] tanto sobre seus próprios pares como  
sobre suas relações com outras categorias profissionais (Martinelli, 1989, p.  
121).  
Nas “[...] primeiras experiências em Serviço Social [...]”, diz Iamamoto e Carvalho (2014,  
p. 207) “[...] os assistentes sociais atuaram, em geral, na racionalização dos serviços  
assistenciais ou na sua implementação [...]”, mediante práticas laborais que foram notadamente  
influenciadas pelo conjunto ideológico e formativo do Serviço Social de cunho positivista,  
filantrópico, fenomenológico e católico-conservador, denominado pela categoria profissional  
como protoformas do Serviço Social brasileiro, as quais foram responsáveis por estruturar e  
adequar, à época, a profissão à ideologia do conservadorismo, constituindo-a como substrato  
do exercício profissional.  
É importante destacar também que o tipo de operacionalidade do Serviço Social, de 1930  
até o final da década de 1970, expressou a mais aguda incidência do conservadorismo sobre a  
categoria profissional, com vista a responder às demandas da burguesia mediante a incidência  
sobre o exercício profissional, fosse pelo conteúdo teórico/político orientador da intervenção  
profissional antes e um pouco depois de 1960 (positivista e fenomenológico), ou posteriormente  
a essa década, com a modernização e reatualização do conservadorismo no interior da profissão  
até o desencadeamento da intenção de ruptura com o conservadorismo, a qual ganha maior  
notoriedade em 1979, com o Congresso da Virada6.  
640  
Embora o Serviço Social tenha buscado gerar mudanças na direção do seu fazer  
profissional durante e após o Movimento de Reconceituação do Serviço Social Latino-  
Americano, com objetivo de romper com as influências do tradicionalismo conservador;  
afastando-se da fenomenologia, do positivismo e do ideário católico-conservador através da  
aproximação sucessiva com a tradição marxista e pela construção de um Projeto Ético-Político  
— o qual representa a síntese entre o Código de Ética da profissão, as Diretrizes Curriculares e  
a Lei que regulamenta a profissão (Lei n.º 8.662/93) — voltado a defender os interesses da  
classe trabalhadora, bem como buscar contribuir na edificação e permanência de um modelo de  
sociedade cada vez mais igualitário, livre e plural (Netto, 2010); a categoria profissional, apesar  
disso, ainda se depara com situações contrárias aos interesses da classe trabalhadora, as quais,  
muita das vezes, ferem os princípios norteadores da profissão mais relacionados ao exercício  
buscou gerar “[...] condições para uma renovação da [profissão] de acordo com suas necessidades e interesses”  
(Netto, 2010, p. 129).  
6 Foi durante o Congresso da Virada, no ano de 1979, que a perspectiva de ruptura com o conservadorismo ganhou  
maior repercussão no interior da categoria profissional. Ver mais em Netto (2010).  
Libertas, Juiz de Fora, v. 24, n. 2, p. 626-646, jul./dez. 2024. ISSN 1980-8518  
Conservadorismo enquanto ideologia-política e peleja histórica do Serviço Social  
profissional, por se transformarem em requisições da burguesia, impostas sobre o exercício  
profissional via instituições empregadoras, as quais são notadamente impregnadas de ideologias  
preservadoras e restauradoras do status quo, por não serem desenvolvidas mediante perspectiva  
de superação da exploração do trabalho pelo capital.  
É importante destacar que muitas das demandas requisitadas pelas instituições  
empregadoras aos assistentes sociais acabam se sobrepondo às demandas reais da população,  
colocando o profissional em um dilema histórico, o qual desencadeia contradições na profissão  
e no exercício profissional, permanecendo os profissionais, dessa forma, numa espécie de  
“contínuo hiato operacional”, já que as políticas sociais e os espaços sócio-ocupacionais nos  
quais os agentes profissionais estão inseridos e as  
Ações públicas são instâncias em que se refletem interesses contraditórios e,  
portanto, espaços de lutas e disputas políticas. Por um lado, eles dispõem de  
potencial para fazer avançar o processo de democratização das políticas  
sociais públicas. Por outro lado, […] podem ser capturados por aqueles que  
apostam na reiteração do conservantismo político, fazendo vicejar as  
tradicionais práticas clientelistas, o cultivo do favor e da apropriação privada  
da coisa pública segundo interesses particularistas, que tradicionalmente  
impregnaram a cultura política brasileira (Iamamoto, 2009, p. 361).  
Isso porque os espaços de atuação profissional congregam contradições que incidem tanto  
sobre os assistentes sociais quanto sobre outros profissionais, e que podem reverberar  
possivelmente em prejuízos para a sociedade civil. Embora constituam o resultado das disputas  
das classes sociais e conquistas da fração operária, os espaços sócio-ocupacionais representam,  
no fim e ao cabo, ações diretas do Estado (e indiretamente do empresariado) diante da questão  
social e das lutas da classe trabalhadora. Para Iamamoto (2009), por serem de natureza  
contraditória, os espaços sócio-ocupacionais se constituem como ambientes laborais cujos  
profissionais neles inseridos convivem com os impactos das tensões de classes (Iamamoto,  
2009).  
641  
Desta forma,  
O espaço do [exercício] profissional não pode ser tratado exclusivamente na  
ótica das demandas já consolidadas socialmente, sendo necessário, a partir de  
um distanciamento crítico do panorama ocupacional, apropriar-se das  
demandas potenciais que se abrem historicamente à profissão no curso da  
realidade (Iamamoto, 2009, p. 4).  
Já que os campos de atuação dos profissionais de Serviço Social são um dos principais  
espaços de disputa entre burgueses e operários pelo domínio da “coisa pública” (Iamamoto,  
2009), além de serem ambientes laborais cujas tendências conservadoras, arcaicas, autoritárias,  
burocráticas, alienadas, tradicionalistas, preservadoras e restauradoras se mantêm. Seja pela via  
da redução da universalidade das ações e serviços de saúde provocada pelo neoliberalismo. Seja  
Francisco Flavio Eufrazio  
pela seletividade assistencial mediada a partir do nível de renda, o qual é utilizado como um  
dos parâmetros para acessar serviços, projetos, programas e benefícios da política de assistência  
social. Isso sem destacar de maneira aprofundada os agravos produzidos pela obrigatoriedade  
da contribuição à previdência social como regra geral, para, posteriormente, usufruir da  
cobertura dela em uma sociedade com alto índice de desemprego.  
Cabe recordar as contrarreformas do Estado iniciadas pelo governo Fernando Henrique  
Cardoso durante a década de 1990, mantidas pelos governos petistas, perpetuadas no governo  
Temer e agudizadas no governo Bolsonaro, as quais intensificaram a redução de direitos e  
serviços sociais viabilizados pelas políticas públicas e sociais, a serem efetivados mediante as  
intervenções de profissionais atuantes nas mesmas.  
[Acerca da temática], Behring (2008) destaca que as limitações do Estado ao  
social, efetivadas em decorrência de uma angulação maior de amparo estatal  
aos interesses burgueses, são decorrentes da diminuição da proteção social  
gerada pela tentativa da reestruturação acumulativa após a introdução do  
modelo neoliberal no país, o qual atingiu, a partir de 1990, não só as políticas  
públicas e sociais, mas as condições e relações de trabalho, sobretudo nos  
espaços de trabalho público que empregam assistentes sociais (Eufrazio, 2022,  
p. 4).  
São circunstâncias que imprimem limitações postas frente à efetivação de direitos sociais  
que, direta ou indiretamente, incidem sobre os agentes profissionais, inseridos tanto naqueles  
destacados acima quanto em outros espaços sócio-ocupacionais, ocasionando, desta forma, uma  
latência da relativa autonomia profissional provocada tanto pelas instituições empregadoras  
quanto pela política-ideológica do conservadorismo presente nelas. A qual esteve  
significativamente operante no governo Bolsonaro, influenciando ideias, valores, crenças e  
objetivos da população em geral, como também modificando disposições legais com vista a  
reduzir direitos sociais, como ocorreu com as leis trabalhistas e com a previdência social. Neste  
caso, é possível sugerir que uma das formas que o conservadorismo utiliza para incidir no  
Serviço Social é via espaços sócio-ocupacionais, já que esses, assim como as políticas públicas  
e sociais que os efetivam e os regulamentam, são permeados por contradições próprias à sua  
natureza.  
642  
Os espaços sócio-ocupacionais permeados de conservadorismo geram no Serviço Social  
complicações que impactam tanto nas condições quanto nas relações de trabalho. A partir disso,  
o conservadorismo e sua ideologia-política passam a afetar mais fortemente o chamado estatuto  
profissional do Serviço Social e, por determinação, os princípios norteadores do exercício  
profissional. O que orienta tal hipótese é que o conservadorismo é e sempre será: “alimento  
imprescindível da reprodução do capital, e por isso nunca sai de cena” (Boschetti, 2015, p. 639).  
Libertas, Juiz de Fora, v. 24, n. 2, p. 626-646, jul./dez. 2024. ISSN 1980-8518  
Conservadorismo enquanto ideologia-política e peleja histórica do Serviço Social  
A repercussão do conservadorismo sobre os princípios norteadores do exercício profissional de  
assistentes sociais através dos espaços sócio-ocupacionais não visa rebobinar necessariamente  
a profissão às suas protoformas tradicionais, mas conservar preliminarmente o sistema de classe  
intocável através da imposição de limitações diante dos avanços da classe trabalhadora e do  
cerceamento dos direitos sociais.  
No campo da economia, o atual contexto de crise capitalista tem revitalizado princípios,  
ações, medidas e valores conservadores para limitar a socialização da riqueza produzida pela  
classe trabalhadora, na perspectiva de encontrar saídas para a crise através da expropriação do  
fundo público. Soma-se a isso o incentivo ao empreendedorismo vinculado à redução do papel  
do Estado e à diminuição de recursos orçamentários a serem destinados para a efetivação e para  
a garantia de direitos sociais, cada vez mais fragilizados pelo processo de mercantilização dos  
serviços públicos e sociais. Para Boschetti (2015), “todas essas medidas estiveram largamente  
em curso sob o manto neoliberal desde a década de 1970, [alimentando] a competitividade, o  
individualismo e valores liberais conservadores” (Boschetti, 2015, p. 640).  
Em relação ao Serviço Social, mais precisamente aos princípios norteadores do exercício  
profissional, essas medidas têm afetado mais fortemente duas disposições do Código de Ética  
Profissional:  
● Compromisso com a qualidade dos serviços prestados à população e com o  
aprimoramento intelectual, na perspectiva da competência profissional (CFESS, 2012,  
p. 24) e;  
643  
● Disposição de condições de trabalho condignas, seja em entidade pública ou privada,  
de forma a garantir a qualidade do exercício profissional (CFESS, 2012, p. 31).  
No campo social, as funções superestruturais desempenhadas pelo Estado7 em função da  
manutenção das condições de produção e reprodução da sociabilidade capitalista não apenas  
têm gerado vilipêndio e negligência das expressões da questão social, como as têm  
intensificado. A série de problemas entorno das condições e relações de trabalho; a  
mercantilização da educação somada ao aligeiramento nos processos formativos; a fragilidade  
nas ações e serviços de saúde pública vinculado ao crescimento da procura por planos de saúde  
privados; os baixos valores dos benefícios previdenciários e as precárias condições de moradia  
e saneamento básico acabam desencadeando rupturas nas proposições da cobertura social e na  
Seguridade Social, afetando drasticamente a classe trabalhadora (Boschetti, 2015). Sobre o  
7 Em Mandel (1982), é possível apreender três principais funções superestruturais desempenhadas pelo Estado em  
favor do capitalismo: 1 - criar condições gerais de produção e reprodução; 2 - reprimir qualquer ameaça às classes  
dominantes; 3 - garantir a incidência da ideologia da classe dominante sobre a dominada.  
Francisco Flavio Eufrazio  
Serviço Social e sobre os princípios norteadores do exercício profissional, o desempenho das  
funções superestruturais realizadas pelo Estado para manter intacta a sociedade burguesa  
dificulta os assistentes sociais em promover:  
● Ampliação e consolidação da cidadania, considerada tarefa primordial de toda  
sociedade, com vistas à garantia dos direitos civis, sociais e políticos das classes  
trabalhadoras (CFESS, 2012, p. 23);  
● Defesa do aprofundamento da democracia, enquanto socialização da participação  
política e da riqueza socialmente produzida (CFESS, 2012, p. 23);  
● A equidade e justiça social, que assegure universalidade de acesso aos bens e serviços  
relativos aos programas e políticas sociais, bem como sua gestão democrática (CFESS,  
2012, p. 23);  
No campo ideológico, o crescimento do fundamentalismo; a intensificação do  
preconceito, da discriminação, da intolerância contra religiões de matriz africana; o crescente  
do nível de violência letal contra negros, mulheres e população LGBT+ (BOSCHETTI, 2015),  
somado à presença de setores conservadores nas instituições representativas da sociedade civil  
e nas de deliberação de políticas públicas e sociais têm requisitado dos assistentes sociais um  
empenho grandioso na “eliminação de todas as formas de preconceito, [ao buscarem incentivar]  
o respeito à diversidade, à participação de grupos socialmente discriminados e à discussão das  
diferenças” (CFESS, 2012, p. 23).  
644  
Considerações finais  
Nesse breve trabalho, visei tecer análises para identificar se ainda há a incidência do  
conservadorismo no Serviço Social brasileiro, reconhecendo sua existência. Admitir sua  
presença não significa refutar, tampouco diminuir os avanços conquistados e produzidos pela  
categoria profissional, tanto internos quanto externos à profissão.  
Além disso, considero que, embora a profissão tenha se estabelecido sobre bases  
conservadoras, elas necessariamente não são mais o conteúdo da intervenção dos agentes  
profissionais. Contudo, faz-se necessário reconhecer que tal fenômeno ainda incide sobre o  
exercício profissional, já que os assistentes sociais exercem suas intervenções laborais em um  
circuito social e institucional no qual há a presença do conservadorismo.  
O conservadorismo continua repercutindo negativamente no Serviço Social, sobretudo  
por interferências das instituições empregadoras impregnadas de conservadorismo, o qual se  
apresenta nos espaços sócio-ocupacionais que empregam assistentes sociais, ocasionando  
dificuldades na qualidade do exercício profissional de assistentes sociais comprometidos com  
Libertas, Juiz de Fora, v. 24, n. 2, p. 626-646, jul./dez. 2024. ISSN 1980-8518  
Conservadorismo enquanto ideologia-política e peleja histórica do Serviço Social  
os interesses da classe trabalhadora.  
Embora haja intencionalidade por parte da categoria profissional em romper efetiva e  
definitivamente com o conservadorismo, cogito que isso só será possível quando ocorrer o  
fenecimento do sistema de classes capitalista, porque é o próprio sistema de classes que mantém  
vívido o conservadorismo como determinação política e ideológica de preservação do sistema  
capitalista e da divisão da sociedade em classes distintas e antagônicas. Ou seja, há uma  
reciprocidade entre conservadorismo e capitalismo, donde ambos se fortalecem mutuamente.  
Para concluir, ressalto: é necessário que a categoria profissional, assim como a sociedade  
civil e, principalmente, alunos de graduação e Pós-Graduação, reconheçam que o Serviço  
Social, enquanto profissão eclodida na sociabilidade capitalista, não domina a potencialidade,  
tampouco o poderio de eliminar o respectivo sistema econômico. O Serviço Social,  
isoladamente, não será a lança que impedirá o capitalismo de se reerguer após momentos de  
estagnação, tampouco a pedra que atrapalhará seu avanço, muito menos a substância química  
que irá corroê-lo. O Serviço Social e os seus agentes profissionais fazem parte de um conjunto  
de operários que vivem sob a égide do capitalismo e qualquer pensamento ou prospecção que  
reduza o sentido de coletividade revolucionada, endeusando uma profissão ou demonizando-a,  
não passa de mera alienação.  
645  
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Apr-Jun 2015. Disponível em:  
SOUZA, Jamerson Murillo Anunciação de. Tendências ideológicas do conservadorismo  
[recurso eletrônico] / Jamerson Murillo Anunciação de Souza. Recife: Ed. UFPE, 2020.  
YAZBEK, Maria Carmelita. Os fundamentos do serviço social e o enfrentamento ao  
conservadorismo. Revista Libertas, v. 20 n. 2, (jul/dez 2020). Disponível em:  
Libertas, Juiz de Fora, v. 24, n. 2, p. 626-646, jul./dez. 2024. ISSN 1980-8518  
O fenômeno do empreendedorismo no Serviço  
Social brasileiro: notas exploratórias  
The phenomenon of entrepreneurship in brazilian social service:  
exploratory notes  
Carina de Santana Alves *  
Vinicius Pinheiro de Magalhães**  
Resumo: O objeto do presente ensaio teórico  
são os fundamentos da assimilação do  
empreendedorismo por assistentes sociais  
brasileiros. Trata-se de tendência que se  
manifesta como ideologia que fetichiza as reais  
possibilidades de sustentabilidade, autonomia e  
liberdade sem a proteção social dos direitos  
trabalhistas. O ensaio busca discutir os  
Abstract: The object of this theoretical essay is  
the foundations of the assimilation of  
entrepreneurship by Brazilian social workers.  
This trend manifests itself as an ideology that  
fetishizes the real possibilities of sustainability,  
autonomy, and freedom without the social  
protection of labor rights. The essay seeks to  
discuss the foundations of the addition of  
entrepreneurship by the professional category in  
Brazil. To this end, random samples of 10  
professional profiles on social media with  
entrepreneur-coach content and significant  
expressiveness in engagement and number of  
followers were analyzed. We understand that  
this phenomenon is an expression of  
neoconservatism in Social Service, as well as a  
fundamentos  
da  
incorporação  
do  
empreendedorismo por parte da categoria  
profissional no Brasil. Para tanto, foram  
analisadas amostras aleatórias de 10 perfis  
profissionais em mídias sociais com conteúdo  
empreendedor-coach  
e
significativa  
expressividade em termos de engajamento e  
quantitativo de seguidores. Compreendemos  
que esse fenômeno  
é
expressão do  
by-product  
of  
the  
weakening  
and  
neoconservadorismo no Serviço Social, além de  
subproduto da fragilização e precarização do  
processo de formação profissional, e do  
amoldamento da subjetividade da classe  
trabalhadora, decorrente das transformações do  
mundo do trabalho, em especial o desemprego  
estrutural.  
precariousness of the professional training  
process and the shaping of the subjectivity of  
the  
working  
class,  
resulting  
from  
transformations in the world of work, especially  
structural unemployment.  
Palavras-chaves: Serviço Social; Trabalho  
Keywords: Social Work. Professional work.  
profissional;  
Empreendedorismo;  
Entrepreneurship; Neoconservatism.  
Neoconservadorismo.  
* Assistente Social. Professora substituta no curso de graduação em Serviço Social da Universidade Federal da  
Bahia (UFBA). Doutoranda em Estudos Interdisciplinares sobre Mulheres, Gênero e Feminismo no Programa  
(PPGNEIM/UFBA). Mestre em Serviço Social pelo Programa de Pós-graduação da Universidade Federal de  
** Assistente Social no Hospital das Clínicas da Universidade Federal de Goiás (HC-UFG). Mestre em Serviço  
Social pelo Programa de Pós-graduação da Universidade Federal de Sergipe (PROSS/UFS). ORCID:  
DOI: 10.34019/1980-8518.2024.v24.44065  
Esta obra está licenciada sob os termos  
Recebido em: 02/04/2024  
Aprovado em: 05/08/2024  
Carina de Santana Alves; Vinicius Pinheiro de Magalhães  
Introdução  
O objeto do presente ensaio teórico são os fundamentos da assimilação do  
empreendedorismo por assistentes sociais brasileiros. O fenômeno empreendedor desponta na  
atual conjuntura como uma das expressões e facetas do neoliberalismo no quadro da  
reestruturação produtiva, supervalorização do capital financeiro e desemprego estrutural. Trata-  
se de ideologia, em seu sentido de falsa consciência do real, que fetichiza as reais possibilidades  
de sustentabilidade, autonomia e liberdade sem a proteção social dos direitos trabalhistas.  
Não bastasse tal cooptação ideológica da classe trabalhadora a fim de legitimar o atual  
estado de coisas e a precarização do trabalho, essa tendência conformadora de subjetividades  
tem se tornado, ela própria, uma mercadoria. Aflora na contemporaneidade uma série de cursos,  
seminários e encontros cuja finalidade é a mentoria para o alcance do sucesso; um modo de  
expressão coach, voltado para autoajuda, desenvolvimento pessoal e da carreira.  
Tem sido possível perceber as manifestações da ideologia empreendedora através de um  
ethos coach também nos arraiais do Serviço Social, profissão onde despontam propostas de  
minicursos na perspectiva da mentoria e orientação profissional com vistas à aceleração da  
carreira, ao alcance da expressividade profissional, além das promessas de facilitação e  
descomplicação da prática do assistente social.  
Desse modo, consideramos relevante a compreensão sobre os fundamentos da  
incorporação do empreendedorismo por parte da categoria profissional no Brasil. Nessa  
direção, o presente ensaio teórico, de objetivo exploratório, ancora-se na análise de perfis  
públicos nas mídias sociais de assistentes sociais brasileiros. Foram analisadas amostras  
aleatórias de 10 perfis profissionais em mídias sociais com conteúdo empreendedor-coach e  
significativa expressividade em termos de engajamento e quantitativo de seguidores. Os dados  
foram analisados na perspectiva da análise de conteúdo por categorização temática.  
O texto procura aproximar-se dos fundamentos do fenômeno do empreendedorismo e  
sua invasão no Serviço Social a partir da reflexão sobre o significado social da profissão e as  
recentes transformações na dinâmica da sociedade capitalista, notadamente no mundo do  
trabalho.  
648  
Serviço Social e seu significado sócio-histórico  
Em Iamamoto e Carvalho (2011) tem-se inaugural apreensão e análise da constituição  
do Serviço Social enquanto profissão no Brasil, desde uma perspectiva materialista histórico-  
dialética, na medida em que se compreende o significado social da profissão enquanto  
Libertas, Juiz de Fora, v. 24, n. 2, p. 647-660, jul./dez. 2024. ISSN 1980-8518  
O fenômeno do empreendedorismo no serviço social brasileiro: notas exploratórias  
especialização do trabalho coletivo inserido na divisão social e técnica do trabalho, donde o seu  
caráter contraditório.  
Ao analisar as condições histórico-sociais para a emergência da profissão, Netto (2011,  
p. 74) argumenta que o Serviço Social, enquanto profissão, “[...] é indivorciável da ordem  
monopólica – ela cria e funda a profissionalidade do Serviço Social”. O autor sustenta que as  
transformações pelas quais passa o capitalismo no final do século XIX, na passagem para a fase  
dos monopólios, ou fase madura, fornecem lastro para a emersão do Serviço Social enquanto  
profissão. Trata-se da maturidade histórica da sociedade burguesa, quando suas contradições  
são potencializadas, e sua contradição elementar socialização da produção e apropriação  
privada é conduzida ao ápice, através da multiplicação das atividades improdutivas (capital  
financeiro) e rearranjo da divisão internacional do trabalho no mercado capitalista mundial.  
A tendência pela apropriação privada da riqueza socialmente produzida conjurou uma  
necessidade cada vez mais fundamental, a do aumento da taxa de lucros pelo capital. Para tanto,  
tornou-se necessária a refuncionalização do Estado, que além de garantir as condições básicas  
para a produção capitalista, como infraestrutura, meios de trabalho e formação da força de  
trabalho, precisou garantir a legitimação sócio-política através da institucionalização de direitos  
sociais.  
Importa destacar o caráter contraditório da institucionalização dos direitos sociais, posto  
que também decorrente do processo organizativo e reivindicatório da classe trabalhadora em  
prol de melhores condições de vida e de trabalho; no entanto “[...] as respostas positivas a  
demandas das classes trabalhadoras podem ser oferecidas na medida justa em que elas mesmas  
podem ser refuncionalizadas para o interesse direto e/ou indireto da maximização dos lucros”  
(Netto, 2011, p. 29).  
649  
É, portanto, sob essas condições histórico-sociais concretas que a questão social, isto é,  
a contradição fundamental entre capital e trabalho, expressa nas variadas manifestações da  
desigualdade e exclusão social, além do ingresso da classe trabalhadora na cena de  
reivindicação por melhores condições de vida (Iamamoto, 2001), pôde se tornar objeto de  
intervenção contínua e sistemática por parte do Estado.  
Diante do amadurecimento político dos trabalhadores enquanto classe social e em face  
da necessidade de legitimação política do Estado e do capitalismo, não foi mais sustentável o  
tratamento das expressões da questão social pela única via da coerção, como caso de polícia.  
Despontou como imprescindível uma atuação contínua e sistemática sobre a questão social,  
mediada pelo manejo das políticas sociais legatárias do pacto fordista-keynesiano no mundo, o  
Carina de Santana Alves; Vinicius Pinheiro de Magalhães  
que demandou uma especialização social e técnica do trabalho coletivo, donde a emergência do  
Serviço Social.  
De acordo com Behring e Boschetti (2016), no Brasil o processo de intervenção do  
Estado nas expressões da questão social através das políticas sociais se desenvolveu com  
algumas particularidades no ritmo e na cobertura; ademais, teve início no contexto de influência  
das lutas dos trabalhadores, incentivados pelo contato e interlocução com trabalhadores  
imigrantes com experiência política; além do processo de urbanização; a fundação do Partido  
Comunista Brasileiro e a inquietação em relação ao projeto de nação. Tais condições sócio-  
históricas colocaram a questão social na cena política, tornando-a, paulatinamente, objeto de  
intervenção do Estado, ainda que em associação com a sociedade civil e suas instituições  
filantrópicas.  
As requisições profissionais para a atuação dos assistentes sociais decorreram desse  
panorama conjuntural. Inicialmente, a atuação profissional se deu na perspectiva de controle e  
ajustamento da classe trabalhadora, sob fundamentação do pensamento conservador e direção  
da Igreja Católica. No entanto, a fundação de novas escolas de Serviço Social e o ingresso de  
segmentos médios e populares na profissão, contribuiu para alteração do perfil e vínculo de  
classe da categoria (Behring; Boschetti, 2016).  
A partir do final da década de 1960, o Serviço Social brasileiro passou por processo de  
renovação que se expressou, conforme análise de tendências empreendida por Netto (2011), em  
três direções: a perspectiva modernizadora, de referência estrutural funcionalista e preocupação  
direcionada à questão técnico-operativa; a perspectiva da reatualização do conservadorismo,  
de referência marcada pela incorporação da fenomenologia e preocupação com a elaboração  
teórica, notadamente aspectos da singularidade; e a perspectiva da intenção de ruptura, que  
teve origem no âmbito universitário, influenciada pela resistência à ditadura militar e pela teoria  
marxista.  
650  
A década de 1980 marca a compreensão do Serviço Social enquanto especialização do  
trabalho coletivo, ou seja, enquanto profissão inserida na divisão social e técnica do trabalho.  
A categoria trabalho ganha centralidade no debate sobre a formação e atividade profissional a  
partir da perspectiva teórico-metodológica de Karl Marx (1818-1883). Dessa fundamentação  
deriva a apreensão da atividade profissional como trabalho, o que transcende a falsa tese de  
uma prática profissional automatizada, imediata, irrefletida; do contrário, o trabalho  
profissional pressupõe intervenção reflexiva, planejada, sobre determinado objeto,  
fundamentada em conhecimento rigoroso da realidade, ação que caminha na direção da defesa  
intransigente dos direitos sociais e humanos (Iamamoto, 2015; Brasil, 2012).  
Libertas, Juiz de Fora, v. 24, n. 2, p. 647-660, jul./dez. 2024. ISSN 1980-8518  
O fenômeno do empreendedorismo no serviço social brasileiro: notas exploratórias  
De acordo com Iamamoto (2008, p. 95), operar essa mudança na compreensão do  
Serviço Social implica entendê-lo como partícipe dos processos de trabalho “[...] que se  
organizam a partir de exigências econômicas e sociopolíticas do processo de acumulação”. O  
assistente social se constitui enquanto trabalhador assalariado na medida em que se insere no  
mercado de trabalho por meio da relação de compra e venda da sua força de trabalho (uma  
mercadoria que tem valor de uso, porque responde a uma necessidade social, e valor de troca  
expresso no salário).  
A condição de assalariamento impõe uma série de limites ao exercício do trabalho  
profissional do assistente social. Apesar das possibilidades que advêm da capacidade do  
trabalhador de fazer escolhas entre alternativas concretas, seu trabalho se defronta, por um lado,  
com a requisição institucional, de onde a necessária estrutura objetiva e disposição dos meios  
para o desenvolvimento da atividade técnica, e, por outro, com a relação contratual demarcadora  
de sua condição de assalariamento. Tal contradição igualmente expressa o significado social da  
profissão, a saber, essa capacidade de o Serviço Social contribuir com a reprodução da força de  
trabalho ao mesmo tempo em que contribui com relações sociais favoráveis à reprodução do  
modo de produção capitalista.  
O que possibilita ao profissional imprimir direção social ao trabalho é o exercício de sua  
relativa autonomia, assegurada pela base legal da profissão (lei de regulamentação da profissão,  
código de ética profissional, normativas, entre outros), que vai variar através da correlação de  
forças expressa de maneira particular em cada espaço sócio-ocupacional (Estado, empresas  
privadas, terceiro setor, etc.) (Iamamoto, 2012).  
651  
Sob tais fundamentos sócio-históricos da profissão assenta a compreensão atualizada  
acerca das atribuições privativas e competências técnicas dos assistentes sociais, atividades que  
superam a tese de nossa intervenção enquanto execução terminal das políticas sociais,  
abrangendo, ademais, competências de gestão e planejamento; formulação e avaliação de  
políticas sociais; pesquisa; além da assessoria e consultoria.  
Entretanto, na atual conjuntura, tais atribuições têm assumido novas características face  
aos atravessamentos da dinâmica neoliberal. Um exemplo da tentativa de pregnância ideológica  
neoliberal em nossa ação profissional é a atual tendência à mercadorização das competências  
de assessoria e consultoria em matéria de Serviço Social ou de Políticas Sociais, as quais vêm  
sendo desfiguradas pelo discurso empreendedor de um suposto Serviço Social autônomo, dadas  
as possibilidades do trabalho liberal, liberto da condição de assalariamento, prescindindo de  
inarredável mediação: o contrato de trabalho, isto é, a oferta de serviços para um cliente.  
Carina de Santana Alves; Vinicius Pinheiro de Magalhães  
Defendemos a tese de que os assistentes sociais não superaram sua condição de  
assalariamento em razão de se inserirem no mercado de trabalho através da compra e venda de  
sua força de trabalho. Nesse sentido, o discurso de um Serviço Social supostamente autônomo  
parece emergir a reboque de uma das facetas ideológicas do neoliberalismo.  
Empreendedorismo como faceta do neoliberalismo: fundamentos  
A passagem do capitalismo concorrencial para o monopolista representou alterações  
significativas nas funções do Estado burguês, o qual passou a atuar, defronte as expressões da  
questão social, por meio das políticas sociais, abrindo caminho para os conhecidos anos  
gloriosos, ou anos de ouro do capitalismo. Essa tendência, também descrita como decorrência  
do pacto fordista-keynesiano, possibilitou, na conjuntura de parte dos Estados-Nação de  
capitalismo central, a melhoria das condições de vida e trabalho da classe trabalhadora,  
notadamente através da consolidação de direitos sociais.  
Contudo, tratou-se de medida absolutamente pontual para a realização dos interesses do  
capital:  
Aquele período caracterizado pela produção de massa, consumo de massa e  
crescimento do círculo de consumo (pacto fordista-keynesiano – Welfare  
State), levando contingentes da classe trabalhadora e da classe média a um  
patamar de consumo antes inexistente, como também tornando-os  
beneficiários de políticas sociais de caráter universal e de direitos trabalhistas  
ampliados, segundo Mészáros (2002), não pôde ser mantido indefinidamente.  
Pois as medidas interventivas elaboradas para desobstruir os canais de  
acumulação e expansão do capital, dado o impedimento provocado pela  
contradição entre produção e realização, que tipifica a crise de superprodução  
de valores de troca do sistema, apenas protelaram os efeitos da contradição  
não enfrentada em sua base causal (Paniago, 2009, p. 3).  
652  
Como é próprio da dinâmica do capitalismo, a partir da década de 1970 esse padrão  
demonstrou seus sinais de esgotamento, que desembocou em uma nova crise com efeitos de  
maior gravidade, tendo o desemprego estrutural como uma de suas principais expressões. A  
reação burguesa à nova crise se configurou em três frentes enquanto “[...] processos imbricados  
e interdependentes no seio da totalidade concreta” (Behring, 2008, p. 34), a saber:  
reestruturação produtiva, mundialização financeira e o neoliberalismo.  
Na particularidade da formação sócio-histórica brasileira, tais processos ocorreram de  
forma singular, com marcadores significativos de diferenciação da experiência dos países de  
capitalismo central, especialmente daqueles que experimentaram um sistema de proteção social  
de alguma maneira consistente. Concordamos com Santos (2012) ao sustentar a hipótese de  
que, no caso brasileiro, a flexibilização e precarização do trabalho, próprias do processo de  
reestruturação produtiva como reação à crise do capital da década de 1970, são características  
Libertas, Juiz de Fora, v. 24, n. 2, p. 647-660, jul./dez. 2024. ISSN 1980-8518  
O fenômeno do empreendedorismo no serviço social brasileiro: notas exploratórias  
presentes na nossa realidade há mais tempo, herança de nossa relação de dependência e  
heteronomia face à conformação do capitalismo mundial (Fernandes, 2006):  
Vejamos o que estou designando como flexibilidade/precariedade do trabalho:  
inexpressividade e, em vários casos, ausência de regulação do trabalho; alta  
rotatividade nos postos de trabalho; subemprego; informalidade... Isso tudo  
está presente no Brasil ao longo da formação de seu mercado de trabalho  
(desde o final da escravidão), acentuando-se com a regulação do trabalho  
estabelecida por Vargas a partir dos anos 1930 e, especialmente, no momento  
da ditadura militar (Santos, 2012, p. 434-435).  
Nesse sentido, os impactos da flexibilização e precarização do trabalho no Brasil “[...]  
afirmam-se, de modo proeminente, no período em que nos países capitalistas desenvolvidos  
havia estabilidade, pleno emprego e Welfare State” (Santos, 2012, p. 434), elementos que  
caracterizam as particularidades da questão social no Brasil. Esse aspecto nos parece  
extremamente importante para a compreensão do processo de conformação da subjetividade da  
classe trabalhadora, seus processos de organização e mobilização políticas, constituição de  
entidades organizativas, assim como a assimilação da ideologia neoliberal expressa no discurso  
do empreendedorismo; subproduto de ideologia que testifica o fim da sociedade do trabalho.  
A polêmica em torno do fim da sociedade do trabalho é expressão da ampliação do  
desemprego com a estrutural incapacidade do mercado de trabalho de absorver contingentes  
cada vez maiores de trabalhadores, além da crescente heterogeneidade da classe trabalhadora e  
domínio do capital financeiro sobre o capital produtivo (Iamamoto, 2008).  
653  
Ao analisar o processo de contrarreforma do Estado brasileiro, Behring (2008) afirma  
tratar-se de movimento de mudanças estruturais, que tem raízes na reação burguesa à crise de  
1970, mas que precisa ser compreendido no quadro das particularidades da nossa formação  
sócio-histórica, conforme perspectivas de Florestan Fernandes e Caio Prado Júnior nas teses da  
modernização conservadora e revolução passiva.  
Nesses termos,  
[...] o neoliberalismo em nível mundial configura-se como uma reação  
burguesa conservadora e monetarista, de natureza claramente regressiva,  
dentro da qual se situa a contrarreforma do Estado. Do ponto de vista da  
reforma anunciada na Constituição de 1988 no Brasil, em alguns aspectos  
embebida da estratégia social-democrata e do espírito ‘welfareano’ – em  
especial no capítulo da Ordem Social –, pode-se falar também de uma  
contrarreforma em curso entre nós, solapando a possibilidade política, ainda  
que limitada, de uma reforma democrática no país [..] (Behring, 2008, p. 129).  
A transição democrática fortemente controlada pelas elites, a manutenção da condição  
de dependência em relação aos países de capitalismo central e o endividamento externo se  
anunciaram como condições favoráveis que precederam a contrarreforma neoliberal do Estado  
brasileiro nos anos 1990, o que contribuiu para o ajuste neoliberal no Brasil, o fracasso dos  
Carina de Santana Alves; Vinicius Pinheiro de Magalhães  
planos de estabilização econômica e as dificuldades decorrentes de investimento no setor  
público (Behring, 2008).  
Tem-se no cenário brasileiro, portanto, o desemprego substantivo que emerge a reboque  
do sucateamento da indústria nacional; a informalidade; dificuldades de investimentos  
estruturantes; restrição das políticas sociais; privatizações; redução do investimento produtivo;  
além das expressões mais diretas e imediatas dessas tendências da economia nacional, o  
agravamento da pobreza, da violência urbana e da precariedade da renda.  
Para Druck (2021), esse contexto de transformações operado pelo capitalismo flexível,  
donde a supervalorização da individualização do trabalhador e da narrativa ideológica (no  
sentido de falseamento da realidade) da liberdade, autonomia e autogestão do trabalho, fermenta  
a defesa do gerencialismo e empreendedorismo:  
Esse movimento de metamorfose da precariedade estrutural do trabalho na  
sociedade capitalista, para além das condições objetivas, transforma a  
subjetividade dos trabalhadores, através da busca de legitimidade dessas  
novas relações de trabalho, justificadas pela construção do ‘sujeito  
empreendedor’ (Druck, 2022, p. 826).  
O Serviço Social enquanto especialização do trabalho coletivo na divisão social e  
técnica do trabalho não se aliena do desenrolar dessas tendências, postos os atravessamentos  
desse cenário na formação, trabalho profissional e conformação da subjetividade dos assistentes  
sociais. De acordo com Iamamoto (2009), no cenário contemporâneo, o aumento do contingente  
profissional, estimulado especialmente pela expansão do ensino à distância, levaria ao  
crescimento do desemprego no Serviço Social, e ainda à conformação de um exército  
assistencial de reserva, donde a catalisação de ideias voltadas para a qualificação do  
voluntariado e o chamamento à solidariedade como forma de enfrentamento da questão social;  
além da perda na qualidade da formação e propensão à submissão dos profissionais às  
requisições do mercado. É o que nos parece que está em curso no âmbito da categoria  
profissional, principalmente a partir da incorporação do discurso ideológico neoliberal do  
empreendedorismo.  
654  
Empreendedorismo no Serviço Social brasileiro como expressão do  
neoconservadorismo  
A análise empreendida em pequena amostra de perfis públicos nas redes sociais de  
assistentes sociais brasileiros deu conta de desvelar algumas tendências acerca do fenômeno do  
empreendedorismo e ethos coach no âmbito do Serviço Social. Trabalhamos com a análise de  
10 (dez) perfis públicos com quantitativo de seguidores que chega a 140 mil e que funcionam  
na direção da mentoria e orientação profissional de assistentes sociais desde 2013.  
Libertas, Juiz de Fora, v. 24, n. 2, p. 647-660, jul./dez. 2024. ISSN 1980-8518  
O fenômeno do empreendedorismo no serviço social brasileiro: notas exploratórias  
Consideramos tendência empreendedora ou expressão do ethos coach a incorporação de  
uma linguagem gerencialista do mundo corporativo, bem como a oferta de produtos voltados  
à qualificação profissional, com promessas de aceleração da carreira e desenvolvimento  
profissional, mentoria para atuação técnica com vistas à conquista do sucesso e expressividade  
na carreira, além da orientação e estímulo ao empreendedorismo social.  
Lançar mão da categoria geração parece ser inarredável para a compreensão da invasão  
empreendedora no âmbito do Serviço Social pela via do recurso das mídias sociais. O ethos  
coach tem enredado de forma mais prevalente a juventude, notadamente aqueles com pouco  
tempo de formação e experiência profissional. É através das plataformas digitais das redes  
sociais que esse segmento tem encontrado formas de comunicar a necessidade e relevância de  
seu produto, recurso com maior incidência de acesso pela juventude.  
Trata-se de segmento que sofre mais frontalmente os impactos do desemprego estrutural  
na atual conjuntura de crise do capitalismo; uma massa de trabalhadores com formação e  
qualificação profissional que não foi incorporada ao limitado mercado formal de trabalho,  
mesmo no cenário pós-reforma trabalhista medida recentemente defendida pelos setores  
ultraliberais como uma das soluções centrais no combate ao desemprego (Guilland; Monteiro,  
2010).  
Uma particularidade a se destacar, contudo, é o fato do fenômeno empreendedor-coach  
envolver muito frequentemente a área de atuação na Política de Assistência Social, o que aponta  
para outro condicionante dessa tendência no Serviço Social, a hipótese da precarização do  
trabalho de parte desses jovens inseridos no mercado formal. A literatura das políticas sociais  
tem sinalizado a desvalorização da política de Assistência Social, desde o financiamento de  
serviços até os recursos humanos, expostos a vínculos fragilizados e à baixa remuneração  
(Pereira et al., 2017; Raichelis, 2010).  
655  
Ademais, a fragilização e/ou ineficiência de uma política de educação permanente e  
capacitação no setor (Pereira et al., 2017; Raichelis, 2010) pode justificar a oferta e procura de  
serviços de qualificação na perspectiva de mentoria e orientação profissional. O fato é que esses  
elementos conformam a dinâmica de um mercado que oferta produtos com preços diversos,  
valores que certamente contribuem para a complementação de renda de profissionais  
desvalorizados.  
Observa-se ainda ênfase significativa na oferta de produtos voltados para a qualificação  
da dimensão operativa do exercício profissional. O mercado parece ser bastante receptivo às  
promessas de facilitar ou descomplicar a prática, notadamente através da proposição de  
Carina de Santana Alves; Vinicius Pinheiro de Magalhães  
minicursos com foco na produção de documentação técnica e instrumentais no âmbito do  
Serviço Social.  
Vinculado à área do conhecimento das Ciências Sociais Aplicadas, o Serviço Social tem  
natureza profundamente interventiva, pelo que seus profissionais têm sido demandados a  
apresentarem soluções objetivas para questões reais e complexas que despontam no cotidiano  
de trabalho. Por este motivo a questão metodológica e técnico-operativa tem sido importante  
tema de reflexões no âmbito da categoria, no entanto, preocupa o debate raso e imediato que  
prescinde das determinações mais essenciais acerca do fazer profissional atualizado, crítico e  
convergente com o Projeto Ético-político do Serviço Social.  
A este respeito, Pontes (2010) sinaliza que embora a questão metodológica tenha sido  
objeto de produção acadêmica no âmbito do Serviço Social, essa reflexão teórica tem deixado  
a desejar em termos de profundidade. O autor defende a hipótese, com a qual concordamos, de  
que essa superficialidade se deve à complexidade do objeto de intervenção profissional, “[...]  
porque enredado em uma teia de mediações intrínsecas à ordem social burguesa, contém  
dificuldades que obstaculizam as possibilidades de seu pleno desvendamento” (Pontes, 2010,  
p. 18).  
Ao discutir a importância da mediação, tanto no potencial heurístico, quanto como  
categoria central do método dialético, que o constitui ontologicamente e reflexivamente, Pontes  
(2010) demonstra o valor da incorporação da mediação para a compreensão dos objetos de  
intervenção do Serviço Social e do próprio Serviço Social como profissão ou seja,  
compreensão da realidade concreta, em sua estrutura e dinâmica, enquanto totalidade complexa,  
em seu movimento e contradição. Essa apreensão efetiva do método de compreensão da  
realidade é que conduzirá tanto à abstração e construção do conhecimento, quanto à condução  
de uma intervenção na perspectiva de transformação social:  
656  
Neste sentido, a mediação aparece neste complexo categorial com um alto  
poder de dinamismo e articulação. É responsável pelas moventes relações que  
se operam no interior de cada complexo relativamente total e das articulações  
dinâmicas e contraditórias entre estas várias estruturas sócio-históricas.  
Enfim, a esta categoria tributa-se a possibilidade de trabalhar na perspectiva  
de Totalidade. Sem a captação do movimento e da estrutura ontológica das  
mediações através da razão, o método, que é dialético, se enrijece, perdendo,  
por conseguinte, a própria natureza dialética (Pontes, 2010, p. 81).  
A apreensão do método, defendemos junto com o autor, contribui para a superação das  
“[...] simplificações que tanto prejuízo trazem para o processo de conhecimento e  
consequentemente de intervenção na realidade” (Pontes, 2010, p. 124). A categoria mediação  
também é especialmente importante para a reflexão sobre a invasão do discurso neoliberal do  
Libertas, Juiz de Fora, v. 24, n. 2, p. 647-660, jul./dez. 2024. ISSN 1980-8518  
O fenômeno do empreendedorismo no serviço social brasileiro: notas exploratórias  
empreendedorismo no âmbito do Serviço Social, uma vez que contribui para a superação da  
imediaticidade na análise dos fatos cotidianos, os quais enredados por uma teia de complexas  
relações, donde seu efeito de ocultação da realidade no contexto do exercício profissional.  
Ora, é no campo da imediaticidade que a ideologia neoliberal alienante se sustenta nos  
discursos seja seu próprio patrão, ou 10 passos para uma carreira de sucesso, que ocultam a  
estrutura e dinâmica próprias da sociedade burguesa, cujo cerne é a apropriação privada da  
riqueza socialmente produzida a partir da exploração do trabalho pelo capital. Eis o sentido de  
ideologia para os jovens Marx e Engels de A ideologia Alemã, expressão mistificadora que se  
reproduz em fraseologias esvaziadas e sem legitimação da realidade histórico-concreta (Marx;  
Engels, 2007), o que, em última instância, desemboca na legitimação e naturalização do atual  
estado de coisas.  
A oferta de guias para atuação profissional em seu aspecto instrumental, em nosso ponto  
de vista, reduz a dimensão técnico-operativa a simples execução procedimental de passos ou  
etapas, dissociando-a das dimensões teórico-metodológica e ético-política. Essa tendência  
sugere possível desvalorização da dimensão teórica no quadro da atuação profissional, ou ainda  
a ideia de que na prática a teoria é outra, como se o método materialista histórico-dialético não  
instrumentalizasse para a intervenção profissional; trata-se de concepção que considera a  
prática mais importante do que a teoria (Santos, 2013).  
657  
Santos (2013) pondera que a lacuna assinalada no âmbito da profissão no que diz  
respeito aos instrumentos e técnicas decorre “[...] de uma incorporação equivocada e não  
satisfatória da relação entre teoria e prática na concepção do materialismo histórico-dialético”  
(Santos, 2013, p. 04), ou ainda, noutra direção, da superficialidade no tratamento dado à  
reflexão sobre unidade no contexto dessa relação, prescindindo de uma formação que se  
aproxime da especificidade de cada dimensão constitutiva dessa unidade também diversa.  
Concordamos com a autora que a dimensão técnico-operativa, malgrado sua imbricação  
às outras dimensões constitutivas da profissão, não deve ser subsumida face ao  
superdimensionamento da especificidade dos elementos teórico-metodológicos e ético-  
políticos do Serviço Social, uma vez que “[...] a teoria não se transmuta de imediato em prática”  
(Santos, 2013, p. 09), posta, portanto, a necessidade de investimento em reflexão formativa na  
perspectiva da totalidade, que expressa unidade na diversidade.  
De todo modo, o debate em torno da dimensão técnico-operativa envolve  
fundamentalmente aspectos da formação profissional, que tem tido dificuldades de trabalhar a  
complexidade do método materialista-histórico dialético, das categorias mediação, unidade,  
diversidade, totalidade e outras. Isso parece contribuir com as explicações de como as lacunas  
Carina de Santana Alves; Vinicius Pinheiro de Magalhães  
postas pela complexidade temática abrem as portas para o processo de mercadorização da  
qualificação profissional, a qual dirigidas por profissionais autorrepresentados como  
professores, mentores e empreendedores que prometem a segurança técnica, o sucesso e a  
expressividade profissional.  
Do exposto, inferimos que a conjuntura de crise do capital, reestruturação produtiva,  
desemprego estrutural e precarização do trabalho organiza não só as condições objetivas de  
ajuste fiscal e retração dos direitos sociais, mais que isso, influi na conformação de  
subjetividade equivalente a tais condições concretas, que assimila a ideologia neoliberal na  
radicalidade de sua idolatria à meritocracia, ao individualismo e à liberdade, em seu sentido  
mistificado, na forma da ideologia da gestão de si mesmo e do empreendedorismo, ainda que  
ao custo da desproteção trabalhista.  
Outrossim, na particularidade do Serviço Social, essa dinâmica opera na direção de  
promover um desserviço na dimensão da qualificação profissional, posta a centralidade na  
oferta de produtos que não convergem com as expectativas do Projeto Ético-político da  
profissão, principalmente com o direcionamento ético-político das ações profissionais no  
sentido da emancipação humana, que devem ser balizadas em acurada análise crítica da  
realidade social.  
658  
Considerações finais  
Enquanto profissionalidade fruto da fase madura do capital, além de resultado das lutas  
da classe trabalhadora por melhores condições de vida e de trabalho, o Serviço Social emerge  
como especialização do trabalho coletivo necessário à operacionalização de respostas  
fragmentadas e focalizadas às expressões da questão social.  
O Serviço Social, portanto, desde a sua emergência, seu desenvolvimento e  
transformações, não pode ser compreendido descolado da realidade na qual se inscreve a  
sociabilidade burguesa, mediada pelas particularidades histórico-concretas da formação social  
brasileira. Assim, a profissão na contemporaneidade, tanto na perspectiva da formação quanto  
do exercício profissional, tem sentido os impactos das recentes transformações da sociedade,  
especialmente a partir da crise do capital a partir de 1970 e da reação burguesa expressa na  
mundialização financeira, na reestruturação produtiva e no neoliberalismo.  
Na formação social brasileira, tais expressões da reação burguesa se apresentam de  
maneira mais agudizada em virtude da inserção desigual e dependente face ao mercado  
capitalista mundial, donde a nossa precarização e flexibilização do trabalho, rotatividade,  
informalidade e proteção social incipiente.  
Libertas, Juiz de Fora, v. 24, n. 2, p. 647-660, jul./dez. 2024. ISSN 1980-8518  
O fenômeno do empreendedorismo no serviço social brasileiro: notas exploratórias  
Nesse sentido, ao analisar a invasão do ethos coach e empreendedor no âmbito do  
Serviço Social brasileiro, buscamos demonstrar que esse fenômeno é expressão do  
neoconservadorismo na profissão, na medida em que incorpora o discurso neoliberal sobre as  
possibilidades de autogestão, aceleração da carreira e do sucesso no mundo do trabalho,  
mediadas pelas ideologias da meritocracia e qualificação profissional, o que termina por  
contribuir com a conservação da realidade de desemprego estrutural e precarização do trabalho.  
O Serviço Social crítico e renovado, orientado pela teoria social crítica, fornece  
ferramentas para compreender que a profissão, imersa na sociabilidade burguesa, sofre os  
rebatimentos de suas transformações. Assistentes sociais, enquanto classe trabalhadora,  
vivenciam as transformações contemporâneas do mundo do trabalho, marcado pela  
flexibilização, precarização e desemprego estrutural, expressões que impactam de forma  
nefasta suas condições objetivas de vida, além de contribuírem com a conformação de sua  
subjetividade e organização sócio-política.  
Além disso, o fenômeno empreendedor no âmbito da profissão também parece ser  
subproduto da fragilização e precarização do processo de formação profissional, que  
negligencia os aportes teórico-metodológicos necessários à compreensão crítica da  
sociabilidade burguesa e do significado social da profissão, a contrapelo das fecundas  
influências da Associação Brasileira de Ensino e Pesquisa em Serviço Social (ABEPSS) e de  
suas atualizadas diretrizes curriculares.  
659  
Longe de esgotar todos os aspectos deste necessário debate, apresentamos, nos limites  
deste ensaio, algumas pistas iniciais para a compreensão dos fundamentos da incorporação do  
empreendedorismo no âmbito do Serviço Social brasileiro como expressão do  
neoconservadorismo, compreensão que, em última instância, pode fornecer ferramentas para o  
enfrentamento desse estado de coisas, tendo como horizonte os princípios orientadores do nosso  
Projeto Ético-Político profissional no processo de tensionamento pela construção de outra  
sociabilidade.  
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Desigualdade e reconhecimento no atual  
contexto da economia política  
Inequality and recognition in the current contexto of political economy  
Antônio Dimas Cardoso*  
Máximo Alessandro Mendes Ottoni**  
Resumo: Este artigo discute a tentativa de  
atualização do socialismo no âmbito da teoria  
social marxiana, tendo Axel Honneth como  
principal referência na problematização dos  
conceitos de reconhecimento e liberdade na  
atualidade; ao mesmo tempo que identifica a  
necessidade de ação de agentes sociais na luta  
contra as desigualdades sociais, focalizando  
para o espectro do Serviço Social. Trata-se de  
um trabalho de discussão teórica, cuja  
finalidade é direcionar a análise para uma  
possível práxis na sociedade, a partir da  
operacionalização de políticas de valorização da  
dignidade humana e de redistribuição na  
sociedade.  
Abstract: This article discusses the attempt to  
update socialism within the scope of Marxian  
social theory, with Axel Honneth as the main  
reference in problematizing the concepts of  
recognition and freedom today. At the same  
time, it identifies the need for action by social  
agents in the fight against social inequalities,  
focusing on the Social Service spectrum. This is  
a work of theoretical discussion, the purpose of  
which is to direct the analysis towards a  
possible práxis in society based on the  
operationalization of policies to value human  
dignity and redistribution in society.  
Palavras-chaves: Socialismo; Desigualdade;  
Reconhecimento; Economia política; Agentes  
sociais.  
Keywords: Socialism; Inequality; Recognition;  
Political economy; Social agents.  
Introdução  
A necessidade de afirmação de valores humanitários, no contexto de exacerbação das  
desigualdades sociais e de desrespeito para com as pessoas em situação de vulnerabilidade,  
torna-se ainda mais premente na atualidade buscar referências na teoria social de Marx e sua  
crítica à economia política do sistema capitalista. Na salvaguarda aos interesses coletivos, por  
*
Doutor e Mestre em Sociologia pela Universidade de Brasília (UnB). Graduado em Ciências Sociais pela  
Fundação Norte-Mineira de Ensino Superior – FUNM. Docente e pesquisador do Programa de Pós-Graduação em  
Desenvolvimento Social da Universidade Estadual de Montes Claros (Unimontes). ORCID:  
**  
Doutor e Mestre em Desenvolvimento Social pela Universidade Estadual de Montes Claros (Unimontes).  
Graduado em Serviço Social pelas Faculdades Santo Agostinho de Montes Claros (MG). Servidor da Unimontes.  
DOI: 10.34019/1980-8518.2024.v24.43734  
Esta obra está licenciada sob os termos  
Recebido em: 29/02/2024  
Aprovado em: 19/08/2024  
Antônio Dimas Cardoso; Máximo Alessandro Mendes Ottoni  
meio da conscientização política e do serviço social, o que se firma na agenda da teoria  
marxiana é o desiderato da emancipação, no sentido de expansão da liberdade das classes de  
trabalhadores. Para isso, o nosso foco é reatualizar o conceito marxiano de liberdade social –  
retomado na atualidade pela teoria crítica de Axel Honneth (2017) vinculando-o à luta por  
reconhecimento social e possibilidades objetivas de enfrentamento por meio da ação política-  
institucional de agentes públicos comprometidos com as ações transformadoras na sociedade.  
Da ideia à política, entendemos que o Serviço Social, desde sua contribuição técnica-  
profissional na formulação geral de políticas públicas de Estado até sua operacionalidade nas  
bases sociais, junto às famílias e no conjunto das instituições locais, amálgama o potencial  
político de quebrar o senso comum que naturaliza o fenômeno da desigualdade e injustiça social  
como se as leis do capitalismo não admitissem alternativa.  
Neste artigo, o que almejamos discutir é um modo de pensar e agir vinculados a um  
conceito de bem comum sobre o qual os integrantes de uma coletividade devem racionalmente  
dialogar, de maneira propositiva a estabelecer relações cooperativas entre si, com preservação  
de sua autonomia e possibilidade simétricas de discordâncias. Portanto, o nosso interesse neste  
trabalho, inspirados na abordagem marxiana, é problematizar a ideia de socialismo como  
processo de transformação da economia política, tendo como referência a luta por  
reconhecimento.  
662  
Desigualdade e reconhecimento social são duas categorias que se entrecruzam e estão  
paradoxalmente imbricadas, na centralidade dos conflitos sociais, baseadas na premissa de que  
“a forma da reprodução social de uma sociedade é determinada por valores e ideias comuns  
compartilhados e universais” (Honneth, 2015, p. 31-32). Verifica-se que, para muitos,  
notadamente no Brasil, a desigualdade social é justificada como sendo algo natural, portanto,  
aceitável na sociedade. Na teoria social marxiana, sabe-se que a alienação coloniza as  
consciências dos indivíduos, conectando-as à lógica utilitarista de mercado e de  
instrumentalização de suas ações. Portanto, um dos empreendimentos atuais da teoria social  
marxiana passa a ser então de desnaturalização da desigualdade e de busca reflexiva pela  
emancipação, tendo a luta por reconhecimento como processo de afirmação social. Desta forma,  
entendemos que o Serviço Social pode contribuir para dar visibilidade pública e implementar  
ações contra a modernidade anômala até então predominante no Brasil.  
Socialismo: a tentativa de atualização  
Inspirado pelas teses do jovem Marx, principalmente quando parte da análise  
antropológico-filosófica da condição do trabalhador na era do capitalismo, uma das principais  
Libertas, Juiz de Fora, v. 24, n. 2, p. 661-672, jul./dez. 2024. ISSN 1980-8518  
Desigualdade e reconhecimento no atual contexto da economia política  
referências na atualidade do chamado “marxismo analítico”, Honneth (2017), passou a chamar  
a atenção nos meios acadêmicos em razão de sua tentativa de “atualização” do socialismo. O  
autor alemão, da terceira geração da Escola de Frankfurt, propõe novas buscas experimentais,  
no campo da política e das necessidades partilhadas pelos indivíduos em interação social. Busca  
tornar a autorrealização reciprocamente possível, na luta por reconhecimento, associando a  
crítica da injustiça social com o desvelamento dos processos que obscurecem injustiças e  
desigualdade.  
O esforço de Honneth, ao retomar conceitos fundamentais da teoria social marxiana, é  
trazer para o debate atual o fato de que “as condições de justiça podem ser dadas não apenas  
sob a forma de direitos positivos, mas sob a forma de atitudes, modos de tratamento e rotinas  
de comportamentos razoáveis” (Honneth, 2015, p. 127). Daí a necessidade que ele propõe de  
retomada do conceito de liberdade social, pressupondo um processo de formação da vontade  
pública na construção do bem-estar dos indivíduos em sociedade, tendo em vista a criação de  
relações de reconhecimento com base em confiança e solidariedade.  
Na salvaguarda aos interesses coletivos, pela via da moralidade e esclarecimento, o que  
se afirma também na agenda da teoria social marxiana, discutida por Honneth, é o desiderato  
da emancipação, no sentido de expansão da liberdade na sociedade contemporânea. Isso  
implicaria procurar superar do ideário socialista seu arquétipo estritamente economicista e  
rejeição ao determinismo histórico. Retomar os eixos que orientaram os primeiros socialistas,  
inclusive os do jovem Marx, para então se pensar em novo processo civilizatório.  
Para isso, a política no sentido qualitativo do termo precisa ser compreendida e  
praticada como meio de proteção dos recursos vitais da coletividade e de seu desenvolvimento  
social, livre e aberto. Sabe-se que isso não pode ocorrer de forma espontânea, natural na  
sociedade. Depende da ação de agentes sociais como geralmente defende a maioria dos  
profissionais do Serviço Social comprometidos com projetos de transformação social, pela  
via da conscientização e enfrentamento do processo de alienação.  
663  
Numa economia de mercado, o planejamento e controle público são atacados como  
negação da liberdade: “a liberdade que a regulação cria é denunciada como não liberdade”  
(Polanyi, 2000, p. 297); enquanto para o liberalismo, movido pelo utilitarismo, a ideia de  
liberdade situa-se na defesa da livre empresa, somada à flexibilização de direitos sociais; ao  
passo que a liberdade social moral pode tornar-se mais ampla e mais geral do que em  
qualquer tempo.  
No sentido proposto por Honneth, em sua “tentativa de atualização” do socialismo,  
pode-se considerar que o processo de desenvolvimento social deve ser compreendido e  
Antônio Dimas Cardoso; Máximo Alessandro Mendes Ottoni  
implementado qualitativamente, vinculado a um conceito de bem comum sobre o qual os  
integrantes de uma coletividade devem racionalmente dialogar, de maneira propositiva a  
estabelecer relações cooperativas entre si, com preservação de sua autonomia e possibilidade  
simétricas de discordâncias.  
Para isso, Honneth busca referência no próprio Marx, que esboça o modelo de uma  
economia política na qual a liberdade e a solidariedade estão interligadas.  
Isto parece-lhe possível se a ordem social for concebida de modo que cada um  
entenda os objetivos que pretende atingir simultaneamente como condição da  
realização dos objetivos do outro, portanto, se as intenções individuais  
estiverem interligadas de forma tão clara que nós só possamos realizá-las se  
formos conscientes da nossa interdependência, num ato recíproco (Honneth,  
2017, p. 35).  
Nota-se que o potencial de a liberdade social contribuir para a expansão da liberdade  
total na sociedade surge em Honneth, portanto em algumas vertentes da teoria social marxiana  
como resposta a teorias liberais de justiça, que preservam um dualismo esquemático no campo  
da economia política. Ou seja, a desconexão entre produção e distribuição.  
Na tese sobre liberdade social rumo à liberdade total, Honneth enaltece a centralidade  
das contribuições coletivistas como empreendimento cooperativo e comunitário, fruto não do  
contrato abstrato, mas sim resultante de práticas sociais e aprofundamento da democracia,  
geralmente conflituosas, e que necessitam da mediação de agentes sociais. “Os princípios da  
justiça social têm de se representar como resultado da interação de todas essas realizações  
individuais de liberdade” (Honneth, 2015, p. 65 e 73).  
664  
Para Honneth (2017), assim como para Nancy Fraser (2022), a ideia de socialismo está  
associada umbilicalmente à luta por reconhecimento, para a construção de uma sociedade justa,  
pautada pela dignidade pessoal de todos os indivíduos. E isto torna-se possível quando  
associado a uma política abrangente de redistribuição, ou seja, a uma visão de justiça que visa  
alcançar a igualdade social através de uma redistribuição das necessidades materiais para a  
existência dos indivíduos enquanto seres humanos livres. Neste sentido, reconhecimento não é  
a identidade específica de grupos, mas o status dos membros do grupo como parceiros plenos  
na integração social.  
No entanto, para que esta “tentativa de atualização” do socialismo em Honneth não fique  
circunscrita a uma dimensão especulativa, o nosso esforço é tentar assegurar operacionalidade  
a esta ideia primordial, direcionando-a a práxis, tendo como referência uma possível articulação  
institucional entre agentes sociais comprometidos com as transformações estruturais na  
economia política. É preciso que, além de iniciativas espontâneas de grupos informais de  
economia solidária, categorias profissionais possam fomentar, por meio de seus conselhos,  
Libertas, Juiz de Fora, v. 24, n. 2, p. 661-672, jul./dez. 2024. ISSN 1980-8518  
Desigualdade e reconhecimento no atual contexto da economia política  
academias, centros operacionais, instituições governamentais e não-governamentais, iniciativas  
e aplicações de políticas emancipatórias de exercício da liberdade social, conforme almeja  
Honneth.  
No que pese seu contexto de análise seja em sociedades mais desenvolvidas  
socialmente, entendemos que a “tentativa de atualização” do socialismo em Honneth – assim  
como a ênfase de Fraser na política de redistribuição possa servir de fundamento teórico-  
conceitual para a ação de agentes sociais, notadamente junto àqueles vinculados ao Serviço  
Social, no contexto brasileiro assim como nos demais países da América Latina.  
Assistentes sociais como categoria profissional protagonista de mudanças  
Ao tratarmos do tema reconhecimento e redistribuição, entende-se que o trabalho ainda  
é o principal fundamento da cidadania e, uma vez liberto da superexploração da economia  
política, pode contribuir para a emancipação dos trabalhadores assalariados e informais  
prestadores eventuais de serviços, desde que se enfrente o fenômeno da alienação, conforme  
detectou Marx. O reconhecimento mútuo não é absolutamente uma relação harmoniosa entre  
indivíduos, sendo o trabalho uma atividade primordial que pode transformar a relação de  
dependência, mas ao mesmo tempo reproduzir a alienação. O triunfo do capitalismo até os dias  
atuais exige dos agentes sociais comprometidos com as transformações sociais novos  
instrumentos de conscientização e luta contra as desigualdades. É neste sentido que a figura do  
agente social torna-se imprescindível nas sociedades contemporâneas, notadamente na África  
e América Latina.  
665  
Dentre potenciais agentes sociais, comprometidos com o ideário de um novo socialismo,  
conforme propõem Honneth e Fraser, é possível encontrar no assistente social esta referência  
profissional. A profissão surge inicialmente ligada a grupos dominantes e à Igreja Católica,  
como uma forma de ‘amenizar’ as inquietações da classe operária, visando a manutenção da  
ordem e do controle dos detentores dos meios de produção (Santos; Teles; Bezerra, 2013).  
Sobre os primeiros assistentes sociais, Martinelli (2000) afirma que os mesmos  
realizavam a sua prática profissional ainda de acordo com os interesses do capital burguês,  
agindo conforme a doutrina social da Igreja Católica, que também já havia influenciado a  
conduta das damas de caridade e daqueles que podem ser considerados os primeiros agentes  
sociais.  
Na história do serviço social, a primeira escola de filantropia aplicada foi criada por  
Mary Richmond, em 1899, em Nova Iorque. Posteriormente, os cursos se difundiram pela  
Europa e Estados Unidos. Dessa forma, a assistência aos pobres deixou de ser algo voluntário  
Antônio Dimas Cardoso; Máximo Alessandro Mendes Ottoni  
para se tornar uma profissão. Todavia, a ação social ainda não estava voltada aos interesses da  
classe trabalhadora, visto que as questões sociais eram tratadas como um desajuste da pessoa  
ou da família, sendo que os agentes sociais concediam benesses aos pobres, cumprindo  
orientações da Igreja e do Estado. Devido à ligação com a Igreja, moças religiosas se  
interessaram pelo curso (Corrêa Netto, 2010).  
De acordo com o autor, no início do século XX, é criada na Europa a Escola Católica  
de Serviço Social de Paris, vinculada à doutrina social da Igreja, que divulga essa ideologia na  
Europa e na América Latina. Mas na América do Norte, houve um afastamento da religião, o  
que favoreceu o surgimento e crescimento da Associação Nacional de Trabalhadores Sociais,  
em 1920. No pós-Primeira Guerra Mundial, houve a reconstrução econômica, política e social  
da Europa, e enfraquecimento da Igreja, que passou a incentivar leigos na sua ação social.  
Nessa breve introdução referente ao nascimento do serviço social como profissão,  
percebe-se uma forte influência da Igreja e também da burguesia, onde os primeiros assistentes  
sociais, sem um conhecimento holístico da questão social e tudo o que a envolve, realizavam  
um trabalho ditado pelos grupos dominantes, tratando os desfavorecidos de forma moralista e  
caridosa. Nesse contexto, verifica-se uma forte presença feminina, especialmente nas práticas  
caritativas.  
Em relação à questão feminina, Martins (2015) asserta que a caridade não estava restrita  
somente às mulheres, que eram a maioria, pois haviam homens que participavam de ações  
caritativas, como os filantrópicos ricos, que poderiam ser católicos ou protestantes, e que  
destinavam parte das suas riquezas para instituições de caridade, mas também aquelas voltadas  
ao ensino, cultura e arte.  
666  
Conforme o autor existe um discurso de gênero na sociedade, como se coubesse à  
mulher ocupar o lugar voltado para as questões de caridade e de ajuda aos mais necessitados.  
Mas ele ressalta que esse trabalho foi importante, pois possibilitou que as mulheres saíssem dos  
seus lares e ampliassem as suas vivências. Isso aconteceu tanto no Serviço Social, como na  
Enfermagem.  
Sobre a atuação profissional, Correa Neto (2010) vai dizer que os primeiros assistentes  
sociais eram do sexo feminino e voltados à religiosidade, à caridade e à moral. Utilizavam dos  
seus conhecimentos e técnicas para adaptar as pessoas ao sistema vigente, buscando eliminar  
as manifestações e o conteúdo político no meio dos trabalhadores, e trabalhavam de forma  
caridosa, o que servia para camuflar a miserabilidade deixada pelo sistema capitalista.  
Martins (s/d) afirma que existiam interesses diversos quanto à atuação dos assistentes  
sociais: para a Igreja, o interesse seria a difusão da Doutrina Social da Igreja no meio operário,  
Libertas, Juiz de Fora, v. 24, n. 2, p. 661-672, jul./dez. 2024. ISSN 1980-8518  
Desigualdade e reconhecimento no atual contexto da economia política  
como uma estratégia de recristianização. Já para o Estado, seria interessante que os assistentes  
sociais trabalhassem de forma a implementar a moralização e os bons costumes, principalmente  
dentro da família, racionalizando e individualizando a assistência, e ainda formando uma  
consciência nacional.  
Percebe-se no nascedouro do Serviço Social a forte ligação na questão da divisão social  
e técnica do trabalho, e também do pensamento conservador, que foi amplamente difundido e  
até mesmo imposto pela sociedade burguesa. Somando-se a isso, existiu também a influência  
da Doutrina Social da Igreja, além dos componentes técnicos da profissão.  
Tanto a profissão quanto o trabalho dos assistentes sociais vêm se modificando no  
decorrer dos tempos, devido a acontecimentos históricos como a Revolução Russa, a Primeira  
Guerra Mundial e a crise de 1929. As crises, tensões e manifestações operárias se  
intensificavam. Mudanças de pensamentos ocorriam no final do século XIX e início do século  
XX. Novas teorias surgiram, como a teoria liberal de Adam Smith, mas ainda com um estado  
fortemente interventor. Esses e outros acontecimentos foram mudando a forma de pensar e agir  
do serviço social.  
No Brasil, após a criação da primeira escola de Serviço Social, criada em São Paulo em  
1936, ainda com influência européia, formando moças para o trabalho social, mas com  
princípios vinculados à Igreja Católica. E do surgimento da Escola de Serviço Social no Rio de  
Janeiro; do Conselho Nacional de Serviço Social; da Legião Brasileira de Assistência; do  
Serviço Social da Indústria, dentre outras importantes instituições, um importante  
acontecimento para o Serviço Social foi o Movimento de Reconceituação.  
667  
Conforme Corrêa Netto (2010), o Movimento de Reconceituação, ocorrido nas décadas  
de 1960 e 1980, em plena ditadura militar, questionou os fundamentos teóricos, metodológicos  
e operacionais da profissão, traçando novas diretrizes para a realidade social atual, e recebe  
influências como o da Teoria da Libertação e do marxismo. Ocorrem vários eventos, seminários  
e congressos no país e no exterior voltados à uma nova visão da profissão. Mas foi o III  
Congresso Brasileiro de Assistentes Sociais, conhecido como Congresso da Virada, que se  
tornou um marco para a profissão; pois, em 1979, no período duro da ditadura, ocorreu a  
retirada de oficiais do governo da mesa do congresso, no qual foram substituídos por  
representantes dos movimentos populares e de pessoas que lutavam pela democracia.  
É nessa conjuntura que é preciso situar o movimento de reconceituação, não  
como um projeto isolado e vanguardista, mas como um processo vivo e  
contraditório de mudanças no interior do Serviço Social latino-americano. A  
ruptura com o Serviço Social tradicional se inscreve na dinâmica de  
rompimento das amarras imperialistas, de luta pela libertação nacional e de  
transformações da estrutura capitalista excludente, concentradora,  
Antônio Dimas Cardoso; Máximo Alessandro Mendes Ottoni  
exploradora (Faleiros, 1999, p. 143).  
Posterior ao movimento de reconceituação ocorre um amadurecimento do Serviço  
Social, influenciado pelo pensamento marxista, com uma nova interpretação da realidade  
latino-americana, e com rompimentos com as correntes confessionais e imperialistas. Acontece  
uma aproximação com outras áreas do conhecimento, em especial com as ciências sociais;  
ocorre o pluralismo profissional e os profissionais reivindicam atividades de planejamento e  
pesquisa, e não meramente técnicas e executivas. Além disso, profissionais passaram a ser  
contratados por sindicatos, por grupos católicos ligados à Teoria da Libertação, houve recusa  
por teorias importadas e mudanças nos currículos acadêmicos, no código de ética e na legislação  
profissional.  
Na perspectiva atual do assistente social como trabalhador, Corrêa Netto (2010) verifica  
alguns entraves no exercício profissional, pois apesar do Código de Ética Profissional  
estabelecer o livre exercício das atividades, o profissional é dependente de salário, encontra-se  
em um espaço de contradição, em que há lutas, avanços e retrocessos, e ainda existem as  
diretrizes do empregador.  
Para Iamamoto (2005, p. 22), “o Serviço Social é uma especialização do trabalho, uma  
profissão particular inscrita na divisão social e técnica do trabalho coletivo da sociedade”. Dessa  
maneira, a profissão seria remontada à sua gênese, ou seja, é uma ‘peça’ na divisão do trabalho  
e na reprodução das relações da sociedade do capital, sendo uma parte do modo de produção  
do capital, em que no setor produtivo o profissional vende a sua força de trabalho de forma  
imaterial, visando atender ao interesse do capital com ações para a minimização de conflitos e  
aumento da produção.  
668  
Corrêa Netto (2010, p. 110) diz que  
(...) o trabalho do assistente social, embora determinado pelo sistema  
econômico vigente, apresenta intrinsecamente as contradições presentes na  
sociedade enquanto totalidade, e por isso contém alternativas de re-produção  
do velho e de produção do novo, mas que necessitam de desvendamento para  
serem apropriadas.  
O autor explana que a profissão está em um momento atual de expansão, seja pela  
implantação das políticas públicas, seja pelas distorções que a questão social assume. Algumas  
dessas distorções seriam representadas pelo elevado número de desempregados, pela  
desproteção social e pelo crescimento da violência. Esse profissional da assistência social pode  
trabalhar em instituições públicas, privadas ou filantrópicas, e também em organizações não  
governamentais sem fins lucrativos.  
Libertas, Juiz de Fora, v. 24, n. 2, p. 661-672, jul./dez. 2024. ISSN 1980-8518  
Desigualdade e reconhecimento no atual contexto da economia política  
Luz (1998) vê na profissão serviço social o assalariamento e a intervenção na questão  
social via técnicas e instrumentos, mas diz que a ação profissional não será somente baseada na  
formação acadêmica, mas também no seu processo de socialização com o mundo. Corrêa Netto  
(2010) percebe que o serviço social é fruto do capitalismo, criado como forma de minimizar os  
efeitos da contradição capital x trabalho, servindo como uma resposta da classe burguesa às  
aspirações proletárias. Inicialmente, esse profissional do serviço social ajudou na reprodução  
das relações sociais dominantes. Posteriormente, há uma descoberta e desconstrução da  
intencionalidade burguesa, o que faz com que a profissão se afaste da classe dominante e se  
aproxime da classe menos favorecida.  
Na questão da liberdade, citada por Honneth, ela terá um valor ético no Serviço Social,  
uma vez que está inserida no Código de Ética do(a) Assistente Social (CFESS, 2012) e, de  
acordo com Lukács (2018), essa liberdade está associada diretamente ao trabalho, que  
transforma a natureza para a criação de construções realizadas para as necessidades humanas.  
No entanto, Barroco (2008) percebe essa liberdade na sociedade burguesa como algo alienante,  
devido à forma como o trabalho está formatado, pois o mesmo reduz a capacidade criativa à  
realização de tarefas que, em muitos casos são repetitivas e/ou não elevam o potencial criativo  
do ser humano.  
Nesse contexto, o profissional do Serviço Social deve pensar o seu fazer profissional  
não como uma simples tarefa ou um mero cumprimento de protocolos, mas como algo que irá  
transformar a sociedade e a consciência dos indivíduos em relação à sua liberdade, em prol de  
um bem estar social coletivo, minimizando as anomalias deixadas por um sistema alienante.  
Na discussão de Honneth sobre desigualdade e injustiça social, Netto (2007) perceberá  
o sistema capitalista como produtor de riqueza para poucos e de pobreza para muitos, e discorda  
da tese que afirma que o crescimento econômico seria a única forma capaz de combater a  
pobreza. Nessa perspectiva, o autor percebe que o Serviço Social é antagônico ao sistema  
capitalista, pois a profissão é comprometida com a igualdade e com a justiça social.  
Na mediação de conflitos, na qual Honneth problematiza sobre a importância dos  
agentes sociais nesse quesito, o assistente social também é chamado para atuar nessa questão,  
juntamente com profissionais da sociologia, da psicologia, do direito, e de outros profissionais.  
No sistema judiciário, por exemplo, o assistente social faz parte da equipe multiprofissional,  
identificando demandas e realizando trabalhos voltados para a mediação, conciliação e litígios  
judiciais e extrajudiciais (Fávero; Mazuelos, 2010). Nas relações familiares, o profissional é  
qualificado para entender, decodificar e concretizar a mediação de conflitos de forma a trazer  
669  
Antônio Dimas Cardoso; Máximo Alessandro Mendes Ottoni  
confiança às partes, buscando informar, esclarecer e ajudar na resolução de conflitos, de forma  
cooperada (Barbosa, 2010; Fiorelli, 2008).  
Em termos de mercado de trabalho, verificou-se que a profissão está atrelada à sua  
história, onde havia a prestação de assistência à classe operária, mas que vem sofrendo  
profundas modificações com o passar dos tempos. Na contemporaneidade, há uma  
diversificação dos espaços ocupacionais, exigindo do profissional um novo olhar, onde são  
exigidas novas competências, habilidades e atribuições, entendimento de áreas, como a política  
e a econômica, além de uma capacitação acadêmica direcionada pelo projeto ético-político e  
técnico do profissional. Isso possibilitou uma inserção do assistente social nos mais diversos  
espaços ocupacionais (Iamamoto, 2009).  
Silva; Santos (2015) verificam que os profissionais do Serviço Social atualmente estão  
inseridos nos mais diversos espaços ocupacionais, como no primeiro, segundo e terceiro setor,  
e isso inclui os Centros de Referência Especializados de Assistência Social, O Instituto Social  
do Seguro Social (INSS), além de creches, hospitais, unidades básicas de saúde, prefeituras,  
sindicatos, sistema judiciário e presidiário, dentre outros. Nas pesquisas, evidenciou-se que o  
projeto ético-político e as atribuições privativas do profissional são pouco conhecidos, o que  
faz com que o seu trabalho se confunda com o de outras profissões. Na área pública, observou-  
se um grande contingente de usuários do serviço social, sendo necessário um aumento do  
número de profissionais.  
670  
Na atualidade, uma grande conquista para a profissão e para o trabalho dos assistentes  
sociais e também para os psicólogos foi a aprovação da Lei nº 13.935/2019, que regulamentou  
a prestação de serviços desses profissionais na rede pública de educação básica do Brasil,  
devendo os mesmos trabalhar de forma multiprofissional visando realizar melhorias no  
processo ensino-aprendizagem, juntamente com a comunidade escolar, mediando relações  
sociais e institucionais. O trabalho desses profissionais deve estar em consonância com o  
projeto político-pedagógico das redes públicas de educação básica e dos seus estabelecimentos  
educacionais (Brasil, 2019).  
Considerações finais  
Por fim, entendemos que, enquanto a teoria da economia de mercado, hoje dominante,  
orientada pela ideologia neoliberal, apoia-se na premissa de que a maioria das transações sociais  
e relações no campo da economia devem permanecer livre de interferências políticas, da  
regulação pública (Polanyi, 2000), a ideia de socialismo no campo do marxismo analítico  
contemporâneo se pauta numa outra chave: a da democracia social em direção à democracia  
Libertas, Juiz de Fora, v. 24, n. 2, p. 661-672, jul./dez. 2024. ISSN 1980-8518  
Desigualdade e reconhecimento no atual contexto da economia política  
total (Honneth, 2017). No entanto, sabemos que este movimento não ocorre naturalmente.  
Depende de forças políticas progressistas, da aderência e ação de agentes sociais engajados em  
políticas públicas substantivas de combate às desigualdades, orçamentos participativos e, por  
consequência, de redistribuição.  
Em se tratando do Serviço Social, observa-se que se refere a uma atividade profissional  
de nível superior orientada para ação na vida cotidiana dos indivíduos, notadamente daqueles  
que estão em situação de vulnerabilidade social. Na realidade, não é uma exclusão pelo mercado  
de trabalho, apenas; é uma exclusão do campo dos direitos daí nossa ênfase na concepção da  
luta por reconhecimento, na atualidade. Sendo assim, exige-se não só tentar construir uma  
alternativa popular, mas primordialmente uma alternativa popular socialista no sentido  
proposto por Honneth que integre um campo mais amplo possível da sociedade de classes no  
Brasil.  
Entende-se que, nos setores progressistas do Serviço Social, socialismo é todo um  
mundo de ideias, de propostas, que vem lá do século XIX, desde Marx e “socialistas utópicos”,  
que se chamava socialismo, mas que, na realidade, era sua negação: tratava-se de estatismo,  
pragmatismo coletivista, não de um socialismo ao alcance da liberdade como  
autodeterminação em coletividade. Atualmente, pode-se voltar a exercitar a “tentativa de  
atualização” do socialismo pautado na cooperação social que baseia-se na instituição de  
vontades individuais e comuns, que Marx tinha proposto na fase inicial de sua obra. No  
entanto, para isso, necessita-se do protagonismo dos assistentes sociais, assim como de outros  
agentes sociais vinculados ao ideário humanista e libertário.  
671  
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Libertas, Juiz de Fora, v. 24, n. 2, p. 661-672, jul./dez. 2024. ISSN 1980-8518  
A nova ofensiva contra o trabalho na  
contemporaneidade e a validade histórico-  
analítica da teoria marxiana da crise1  
The new offensive against contemporary work and the historical-analytical  
validity of the marxian theory of crisis  
Fabiana Alcântara Lima*  
Resumo: Este trabalho tem por objetivo discutir  
as novas determinações do trabalho após a  
deflagração da crise financeira mundial de  
2008. Dadas as condições de desassalariamento  
e o aprofundamento sem precedentes dos níveis  
Abstract: This work aims to discuss the new  
determinations of work after the outbreak of the  
2008 global financial crisis. Given the  
conditions of unemployment and the  
unprecedented deepening of unemployment and  
informalization levels, which substantiate the  
structural precariousness of work, we argue that  
understanding the Capital's new offensive  
against labor requires the recovery of the  
concrete historical bases of Marx's theory of  
crisis. To do so, we resort to the main categories  
of Marxian analysis of the global process of  
capitalist production, with the help of  
contemporary debate, research and data on the  
subject. Our argument suggests contradictions  
related to the financial dominance of capital  
over labor, as a tendency for the reproduction of  
capital.  
de desemprego  
e
informalização, que  
consubstanciam a precarização estrutural do  
trabalho, argumentamos que a compreensão da  
nova ofensiva do capital contra o trabalho exige  
a recuperação das bases histórico-concretas da  
teoria da crise em Marx. Para tanto, recorremos  
às principais categorias da análise marxiana  
sobre o processo global de produção capitalista,  
com o auxílio do debate contemporâneo,  
pesquisas e dados sobre a temática. A nossa  
argumentação sugere contradições relacionadas  
ao domínio financeiro do capital sobre o  
trabalho, como tendência da reprodução do  
capital.  
Palavras-chaves: Teoria da crise; Trabalho;  
Keywords Crisis theory. Work. Reproduction  
Reprodução do capital.  
of capital.  
1 Neste artigo constam reflexões expostas no texto publicado, originalmente, nosAnais da XI Jornada Internacional  
de Políticas Públicas, UFMA/2023. Disponível em:  
769b.pdf. Acesso em: 29 de julho de 2024.  
*
Doutoranda no Programa de Pós-graduação da Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN) e  
pesquisadora do Grupo de Estudos e Pesquisa em Trabalho, Questão Urbano-rural-ambiental, Movimentos Sociais  
e Serviço Social (GEPTED/PPGSS/UFRN). ORCID: https://orcid.org/0000-0003-1680-3978  
DOI: 10.34019/1980-8518.2024.v24.43755  
Esta obra está licenciada sob os termos  
Recebido em: 01/03/2024  
Aprovado em: 31/07/2024  
Fabiana Alcântara Lima  
Introdução  
Nas últimas décadas, a dinâmica de expansão e concentração do capital levada às  
últimas consequências com a crise agravada pela pandemia, fez o capital reiterar medidas de  
ajuste neoliberal que já vinham em processo, desde a crise mundial deflagrada em 2008. Nesse  
cenário de aprofundamento do padrão de acumulação financeira, o capital redefine suas  
estratégias de monopolização em escala planetária, instituindo o rentismo como a norma geral  
para a produção da riqueza. Esta forma de acumulação é marcada pela contradição  
produção/apropriação de valor e pela insuficiente capacidade do setor produtivo gerar o  
excedente econômico necessário à sua reprodução ampliada.  
Este artigo busca recuperar as bases materiais da crise contemporânea, sob hegemonia do  
capital financeiro, no sentido de provocar reflexões acerca da validade histórico-ontológica da  
teoria da crise em Marx. Longe da pretensão de contemplar a complexidade do debate,  
pretendemos, especificamente, resgatar contribuições teóricas sobre crise e reprodução do  
capital, partindo das expressões concretas no âmbito do trabalho, que contempla estudos em  
desenvolvimento2. O trabalho tem como fonte de pesquisa o levantamento de dados estatísticos,  
oriundos de pesquisas realizadas anteriormente e revisão bibliográfica de autores clássicos e  
contemporâneos.  
Diante do cenário de crise, em que o capital necessita cada vez mais de respostas que  
não só garantam a recuperação de suas taxas de lucro, mas que possa estabelecer um consenso  
entre as classes, supomos que a nova ofensiva contra o trabalho reforça o projeto de dominação  
burguesa, buscando legitimar uma forma de trabalho, supostamente, descolada da produção de  
valor (Antunes, 2018; Tavares, 2021). Essas atividades situam-se, predominantemente, na  
esfera da circulação, lócus privilegiado da venda de serviços e mercadorias por pequenas e  
microempresas e microempreendedores individuais, aparentemente, “autônomas” das  
determinações macrossociais, configurando o que Ricardo Antunes, no livro O Privilégio da  
servidão, denominou de novo proletariado de serviços na era digital pensem-se nos serviços  
dos entregadores, dos motoristas de aplicativos e outras modalidades de trabalho por conta  
própria.  
674  
Em resposta ao quadro de desemprego e informalização do trabalho, agravado nos países  
da América Latina com a pandemia do Coronavírus (COVID-19), as políticas voltadas ao  
trabalho e a renda são recolocadas, notadamente, no epicentro do debate das agendas  
2
Constitui reflexões da tese intitulada Crise e reprodução do capital na contemporaneidade: uma crítica ao  
fenômeno do empreendedorismo (2024), sob orientação do professor Dr. Marcelo Braz Moraes dos Reis, do  
Programa de Pós-Graduação em Serviço Social (PPGSS/UFRN).  
Libertas, Juiz de Fora, v. 24, n. 2, p. 673-690, jul./dez. 2024. ISSN 1980-8518  
A nova ofensiva contra o trabalho na contemporaneidade e a validade histórico-analítica  
da teoria marxiana da crise  
governamentais. Sob a orientação dos organismos internacionais e com forte apelo ideológico  
do empreendedorismo, a Comissão Econômica para a América Latina e o Caribe (CEPAL) e a  
Organização Internacional do Trabalho (OIT)3 destacam-se como recomendação imediata à  
recessão a) o apoio dos serviços de proteção social básica e b) a proteção das pequenas e médias  
empresas e dos trabalhadores da economia informal4 através de incentivos financeiros. No  
Brasil, ganha centralidade a implantação de programas de fomento ao empreendedorismo,  
operacionalizados em parceria com os bancos5.  
A nossa argumentação sugere que tais alternativas, na medida em que contribui para o  
ocultamento dos índices de desemprego, realçando a preocupação do Estado com os  
trabalhadores desempregados, tem potencializado novas formas de precarização do trabalho  
associadas ao endividamento. A novidade consiste no que alguns especialistas vêm chamando  
de expropriação financeira da classe trabalhadora, que se caracteriza pelo endividamento  
crescente e expansão do capital financeiro para todas as esferas da vida (Granemann, 2007;  
Fontes, 2008; Lavinas; 2021).  
Portanto, pretendemos desenvolver a referida proposta a partir dos seguintes eixos  
temáticos: 1) As bases histórico-concretas da Teoria da crise em Marx 2) O debate marxista  
contemporâneo sobre a crise 3) A nova ofensiva contra o trabalho no pós-2008: tendências  
recentes. Metodologicamente, utilizaremos conceitos e categorias marxianas centrais à análise  
da crise do capital, a saber, reprodução do capital, capital fictício e valor, além do debate  
contemporâneo sobre a nova dinâmica da acumulação financeira.  
675  
Tomamos como referencial central para a elaboração crítica de Marx no livro III de O  
Capital (2017), de que trata O processo global de produção capitalista, nos quais o autor  
examina, dentre outras questões, o papel do crédito na produção capitalista e no processo de  
valorização do capital. O debate sobre a nova ofensiva contra o trabalho no pós-2008 será  
3 Situação trabalhista na América Latina e no Caribe maio de 2020 Número 22: Trabalho em tempos de pandemia:  
desafios contra a doença de coronavírus (COVID-19). De acordo com as estimativas da OIT, o trabalho informal  
é a fonte de renda para muitos lares na América Latina e no Caribe, onde a taxa média de informalidade é de  
4 O termo se refere a setorizalização da economia – formal e informal – adotada, originalmente, nas formulações  
expostas no Relatório do Quênia (OIT, 1972) e nos trabalhos do Programa de Emprego para a América Latina e o  
Caribe (PREALC), que se revela presente até hoje em seus estudos.  
5 Seguindo a recomendação, o governo brasileiro regulamentou o Programa Nacional de Apoio às Microempresas  
e Empresas de Pequeno Porte (PRONAMPE), sancionado pela Lei nº 13.999/2020, com o objetivo de desenvolver  
e fortalecer os pequenos negócios. O programa prevê investimentos de 15,9 bilhões e uma linha de crédito até o  
limite de 30% da receita bruta obtida em 2019, com a participação de diversos bancos públicos. O público alvo a  
ser atingido pelo programa são as pequenas e microempresas com faturamento de R$ 360 mil a R$ 4,8 milhões  
por ano, não contemplando, portanto, os Microempreendedores Individuais (MEI), cujo faturamento é  
expressivamente menor.  
Fabiana Alcântara Lima  
auxiliado por dados sobre a temática, a partir de relatórios da Pesquisa Nacional de Amostra de  
Domicílios (PNAD) Contínua (2022) e da Pesquisa de Endividamento e Inadimplência do  
Consumidor (PEIC) e Confederação Nacional do Comércio de Bens, Serviços e Turismo  
(CNC) (2023).  
As bases histórico-concretas da Teoria da crise em Marx  
Na obra marxiana não há elaboração sistematizada sobre a crise. As suas formulações  
percorrem o imenso arsenal teórico de sua obra máxima O capital, subdividido em três livros,  
além do livro IV, intitulado Teorias da Mais-valia. Esse método de investigação e de exposição  
permitiu uma certa flexibilidade analítica radicada na lógica de compreensão de suas partes  
como uma unidade contraditória, desde as determinações gerais até as particulares, do modo de  
produzir e de se reproduzir da sociedade capitalista. Historicamente, as formulações marxianas  
e marxistas sobre a crise perpassam diferentes estágios do desenvolvimento capitalista e  
tradições teóricas6. Partindo do pressuposto analítico deste trabalho, nos interessa nesta sessão  
o resgate das bases histórico-concretas que fundam a teoria marxiana sobre a crise, tendo como  
centralidade a análise do trabalho. Para tanto, daremos destaque aos fenômenos monetários e  
as suas funções determinantes no processo de reprodução do capital.  
A crise estrutural que começamos a experimentar em meados dos anos 1970 do século  
XX, com o aumento dos preços do petróleo bruto no mercado internacional, através da expansão  
do mercado financeiro e das altas taxas de juros, fez requerer do grande capital, medidas de  
ajustes com vistas à reestruturação da economia mundial. O capital se dispõe de meios variados  
para a sua realização na esfera do consumo. O objetivo é encurtar ao máximo o seu tempo de  
rotação, articulando capital produtivo, comercial e monetário, dinâmica que Marx denominou  
movimento total do capital, no capítulo IV do seu segundo livro. As crises se manifestam,  
fundamentalmente, quando esse movimento é interrompido e se desenvolve na esfera da  
reprodução.  
676  
Contudo, é no seu primeiro livro que o filósofo desenvolve formulações indispensáveis  
à compreensão da sua teoria da crise. Podemos dizer que no âmago da crise encontra-se a  
acumulação de capital e suas necessidades variáveis de expansão, a partir da aplicação de mais-  
valor ao processo produtivo. Marx demonstra que o valor é determinado pela proporção  
6 Remetemos à chamada tradição marxista que surge com a Primeira Internacional comandada por Marx e Engels  
(1864-1871), passando pela Segunda Internacional fundada em 1889, após a morte de Marx, com a presença de  
teóricos revisionistas como Kautsky, Plekhanov e Bernstein e, posteriormente, ganha força na interpretação dos  
novos fenômenos da sociedade burguesa, a partir das formulações dos teóricos que aderiram à III Internacional  
fundada por Lênin em 1919, à exemplo de Karl Liebknecht e Rosa Luxemburgo.  
Libertas, Juiz de Fora, v. 24, n. 2, p. 673-690, jul./dez. 2024. ISSN 1980-8518  
A nova ofensiva contra o trabalho na contemporaneidade e a validade histórico-analítica  
da teoria marxiana da crise  
constante e variável de capital, sempre suscetíveis a modificações. Assim, só é possível pensar  
acumulação, a partir do momento em que o capitalista investe na compra de meios de produção  
(capital constante) e força de trabalho (capital variável). A esta dinâmica Marx denominou  
composição orgânica do capital (q)=c/v.  
Ao valorizar por meio do trabalho vivo o valor constante do trabalho morto, através  
do aumento da produtividade do trabalho, o objetivo da produção capitalista alcança seu fim.  
Há, no entanto, uma tendência à redução da composição orgânica do capital, particularmente,  
em períodos de crise. No contexto da crise contemporânea, por exemplo, dentre outros fatores,  
essa redução se traduz pelo aumento dos níveis de apropriação de valor em razão  
desproporcional à produção capitalista.  
Na perspectiva marxiana, o capital só pode ser entendido como uma unidade de  
produção e realização de valor e mais-valor. Isto quer dizer que, se uma mercadoria que foi  
produzida no processo de trabalho não pode ser vendida no mercado, então o trabalho  
incorporado à produção não realiza valor. Ou seja, no movimento do capital, que tem como  
fórmula geral D-M-D´, o capitalista investe dinheiro em meios de produção e força de trabalho  
para produzir mercadorias com o objetivo de obter mais dinheiro do que investiu e,  
consequentemente, mais capital. O valor da mercadoria só se realiza quando pode ser convertida  
em mais dinheiro. Essa conversão se cumpre fora do processo produtivo, por meio da troca das  
mercadorias, possibilitando a reprodução da circulação do capital. E para dizê-lo nas suas  
próprias palavras:  
677  
Aforça de trabalho é comprada, aqui, não para satisfazer, mediante seu serviço  
ou produto, às necessidades pessoais do comprador. O objetivo perseguido por  
este último é a valorização de seu capital, a produção de mercadorias que  
contenham mais trabalho do que o que ele paga, ou seja, que contenham uma  
parcela de valor que nada custa ao comprador e que, ainda assim, realiza-se  
mediante a venda de mercadorias. A produção de mais-valor, ou criação de  
excedente, é a lei absoluta desse modo de produção. A força de trabalho só é  
vendável na medida em que conserva os meios de produção como capital,  
reproduz seu próprio valor como capital e fornece uma fonte de capital  
adicional em trabalho não pago. Portanto, as condições de sua venda, sejam  
elas favoráveis ao trabalhador em maior ou menor medida, incluem a  
necessidade de sua contínua revenda e a constante reprodução ampliada  
da riqueza como capital (Marx, 2014, 453-453, grifo nosso).  
Na passagem Marx deduz que a capacidade da força de trabalho produzir valor no  
processo produtivo, mediante o trabalho assalariado, se constitui necessidade primeira da  
acumulação. Quanto mais extração de mais-valor, maior é a capacidade de reprodução do  
capital. Mas a possibilidade de o capital valorizar-se não se encerra nela. Daí a preocupação de  
Marx em desvelar as leis de produção e de reprodução do capital, enquanto unidade  
Fabiana Alcântara Lima  
indissociável, ao buscar “a conexão real entre os ciclos dos capitais individuais como conexão  
dos movimentos parciais do processo de reprodução do capital social total(Marx, 2014, p.  
179).  
Sabe-se que o pensador não conheceu a condição de superacumulação que caracteriza  
o estágio atual da crise contemporânea, desencadeada em meados da década de 70 do século  
XX. Nem mesmo, o que se convencionou chamar de financeirização, que resulta da  
superacumulação e da queda das taxas de lucro do capital produtivo, além das análises clássicas  
sobre Capital financeiro que sucederam as formulações marxianas7. No entanto, quando esta  
forma de capital ainda não estava plenamente desenvolvida, Marx estudou as conexões entre  
os fenômenos monetários e o processo de produção de valor implícito nas relações financeiras,  
demonstrando as formas aparentes da crise e a sua necessidade histórica. Aqui tudo aparece  
distorcido, pois nesse mundo de papel jamais se manifestam o preço real e seus fatores reais; o  
que se vê são apenas barras, dinheiro metálico, cédulas bancárias, letras de câmbio e títulos”  
(Marx, 2017, p. 547).  
É em seu terceiro livro, especificamente, dos capítulos XXI a XXVI8, que o pensador  
desenvolve de modo mais sistemático a sua teoria da crise. Ainda que a investigação da  
produção de mercadorias tenha sido o ponto de partida de Marx, as análises sobre os fenômenos  
monetários ganham centralidade no debate marxista contemporâneo sobre a crise e a sua  
ofensiva contra o trabalho, buscando descortinar as determinações do valor ocultas em  
modalidades de trabalho informal e por conta própria9.  
678  
É inegável que essa tendência seja expressão dos limites cada vez maiores de acesso ao  
trabalho formal e, consequentemente, do desemprego e pauperismo da classe trabalhadora. Ou,  
dito a partir da própria teoria marxiana, trata-se do “material humano a serviço das necessidades  
variáveis de expansão do capital e sempre pronto para ser explorado, independentemente dos  
limites do verdadeiro incremento da população” (Marx, 2010, p. 735). No capítulo 23 do livro  
7 Remetemos remete aos estudos apontados originalmente por Hilferding em seu livro O capital financeiro (1985),  
também analisadas por Lênin no clássico ensaio O Imperialismo, fase superior do capitalismo (1916) e por Rosa  
Luxemburgo (1913) em A acumulação do capital. Contribuição ao estudo econômico do imperialismo. Tais  
estudos, permitem afirmarmos que o capital financeiro potencializou em grande magnitude as contradições  
capitalistas. Nesta perspectiva, a esfera da circulação e do consumo se tornaria lócus de profundas contradições e,  
por que não dizer, ímpeto para a construção de consciência de classe?  
8
Destacamos, especificamente, os capítulos em que Marx retoma a sua análise sobre o dinheiro e suas funções  
parasitárias ou, se preferirmos, sobre o capital portador de juros, forma desenvolvida do capital fictício.  
9 No âmbito da Sociologia do trabalho, destacamos a coletânea de pesquisas presentes no livro Riqueza e Miséria  
do Trabalho no Brasil II organizado por Ricardo Antunes, em que apresenta divergências em relação às teses  
do filósofo alemão Jürgen Habermas nos livros A nova obscuridade (1989) e Teoria do agir comunicativo (1991).  
Também dialoga criticamente com as análises de André Gorz nos livros O imaterial (2003) e Metamorfoses do  
trabalho (2005).  
Libertas, Juiz de Fora, v. 24, n. 2, p. 673-690, jul./dez. 2024. ISSN 1980-8518  
A nova ofensiva contra o trabalho na contemporaneidade e a validade histórico-analítica  
da teoria marxiana da crise  
I de O Capital, ao tratar sobre a lei geral da acumulação capitalista, Marx demonstra que o  
crescimento da força de trabalho sobrante é parte constitutiva do modo de produção capitalista  
e condição necessária à acumulação, fenômeno também denominado pelo filósofo de  
superpopulação relativa.  
No contexto de crise contemporânea, a coexistência de múltiplas faces da informalidade  
disponíveis ao capital à níveis de exploração cada vez mais elevados, reitera a assertiva  
marxiana. São as ocupações situadas na esfera da circulação e da venda de serviços e  
mercadorias, cuja natureza se funda, de modo insubstituível, na produção de mais-valia pelas  
grandes empresas e setores produtivos. Ou seja, a reprodução do capital ocorre sem que ele  
precise, necessariamente, investir em força de trabalho.  
Ao criticar as formulações dos economistas clássicos e contrariar o suposto caráter  
imanente da lei do valor, Marx demonstra que quanto maior o grau de desenvolvimento do  
capital, menor é a necessidade de força de trabalho para atender a um dado nível de acumulação.  
Isto quer dizer que:  
O sobretrabalho da parte ocupada da classe trabalhadora engrossa as fileiras  
de sua reserva, ao mesmo tempo que, inversamente, esta última exerce,  
mediante sua concorrência, uma pressão aumentada sobre a primeira,  
forçando-a ao sobretrabalho e à submissão aos ditames do capital. A  
condenação de uma parte da classe trabalhadora à ociosidade forçada em razão  
do sobretrabalho da outra parte, e viceversa, torna-se um meio de  
enriquecimento do capitalista individual, ao mesmo tempo que acelera a  
produção do exército industrial de reserva num grau correspondente ao  
progresso da acumulação social (Marx, 2013, p. 465).  
679  
Visto a partir da perspectiva marxiana, podemos antecipar, de modo generalizado, um  
dos nossos argumentos principais no texto, o de que a crise contemporânea sob hegemonia  
financeira potencializa a ofensiva do capital contra o trabalho, a partir dos seus mecanismos  
contratendenciais inerentes à lógica da acumulação. A consequência é a reprodução de  
estratégias de extração e apropriação de mais-valia que tendem a acelerar a acumulação, ao  
tempo em que repõe o exército industrial de reserva. Tudo se passando como se fosse possível,  
em momentos de profunda crise, a “blindagem” de determinados segmentos da economia–  
diga-se, a esfera da circulação onde situam-se trabalhadores desempregados, terceirizados e  
precarizados, funcionais às novas necessidades de reprodução do capital.  
O debate marxista contemporâneo sobre a crise  
O estágio capitalista que designamos como contemporâneo inicia-se com a recessão de  
1974-1975. A crise generalizada que pôs fim aos “anos dourados” inaugura um novo estágio  
da dinâmica de acumulação do capital. Diferentemente das crises cíclicas, em que era possível  
Fabiana Alcântara Lima  
a retomada da taxa de lucro dentro dos limites do capital,10 a crise contemporânea se caracteriza  
pelo bloqueio dessa possibilidade pela via dos espaços produtivos, assumindo um caráter  
permanente denominado por Meszáros (2010) de crise estrutural11. Essa crise se caracteriza,  
expressamente, pela expansão do capital financeiro em todas as esferas da vida social, haja vista  
a voraz apropriação de valor em razão desproporcional à produção capitalista, que se traduz em  
mais renda concentrada e, paradoxalmente, em maiores níveis de desigualdade.  
No texto Das crises cíclicas à estrutural, o filósofo húngaro recorda como exemplo  
emblemático, a devastação da natureza no Brasil, o emblemático caso da Amazônia a crise  
das instituições políticas, das estruturas familiares diga-se, as desigualdades do conjunto das  
relações humanas; de classe, gênero, raça, religião etc. Assim, a “crise estrutural do capital  
revela-se como uma verdadeira crise de dominação em geral” (Meszáros, 2010, p. 78), cujo  
alicerce se sustenta por uma ofensiva sem precedentes do capital contra o trabalho.  
A partir dos anos 2000, particularmente, no rastro da crise financeira que atingiu uma  
das principais economias mundiais12, evidencia-se uma busca inexorável pela valorização do  
capital acumulado, a partir do colapso dos empréstimos subprime13, provocou a falência do  
quarto maior banco norte-americano, o Lehman Brothers e Merryl Lynch. Além disso, as duas  
maiores empresas automobilísticas do mundo também entraram em crise, a General Motors e  
a Chrysler. “Um dos resultados anunciados da reestruturação dessas empresas é a demissão de  
52 mil trabalhadores” (Marques; Nakatani, 2009, p. 69), o que traduz o caráter universal e  
global da crise estrutural, que não se limita a esfera das finanças, da economia norte-  
americana14.  
680  
Essa crise tem sido analisada como marco histórico da nova dinâmica capitalista,  
também denominada hipertrofia do capital fictício, que se caracteriza pela oferta abundante de  
crédito por meio de financiamento hipotecário para compra de imóveis à baixo custo. O  
resultado foi a elevação das taxas de juros, desemprego, empobrecimento e hiperindividamento  
10 Pensemos nos mecanismos de contratendência à crise engendrados pelo pacto fordista-keynesiano, em resposta  
à recessão de 1929-1933, também chamada de Grande Depressão.  
11 Recomendamos a obra A crise estrutural do capital, de autoria de István Mészáros (2009).  
12 A primeira manifestação dessa crise ocorreu na esfera financeira, não por acaso, nos Estados Unidos, país onde  
se desenvolveu um maior grau de capital fictício. Para esta compreensão sugerimos a análise de Charles R. Morris  
(2008), autor do livro “O crash de 2008: dinheiro fácil, apostas arriscadas e o colapso global do crédito. São Paulo:  
Aracati, 2009”.  
13“Esse tipo de contrato é que foi chamado de subprime, devido ao elevado índice de inadimplência das famílias.  
O banco ou a agência hipotecária que corria inicialmente o risco ia transferindo vários desses contratos,  
combinados com contratos mais seguros e transformados em um derivativo vendido para outras instituições no  
mercado financeiro. Para conseguir vender esses derivativos a taxa de juros oferecida era maior, financiada pela  
diferença obtida no contrato subprime.” (Marques; Nakatani, 2009, p. 61).  
14  
Para esta compreensão sugerimos a análise de Charles R. Morris (2008), autor do livro “O crash de 2008:  
dinheiro fácil, apostas arriscadas e o colapso global do crédito. São Paulo: Aracati, 2009”.  
Libertas, Juiz de Fora, v. 24, n. 2, p. 673-690, jul./dez. 2024. ISSN 1980-8518  
A nova ofensiva contra o trabalho na contemporaneidade e a validade histórico-analítica  
da teoria marxiana da crise  
das famílias norte-americanas, consequências expressas mundialmente, conforme analisam  
Duménil e Lévy (2014).  
Segundo Marques e Nakatani (2009, p. 63), trata-se de uma crise provocada pela  
hipertrofia do capital fictício15. Ou seja, grande parte do capital global se especializa na  
apropriação do valor produzido e uma menor parte investe na produção desse valor. Esta  
apropriação chega ao ápice quando falta capital para ser apropriado: caem as taxas de lucro e o  
capital entra em crise (Carcanholo, 2015). Em tese, a saída da crise seria desvalorizar o capital  
concentrado, o que implicaria em maiores investimentos nos setores produtivos e,  
consequentemente, a geração de novos postos de trabalho. No entanto, os Estados continuam a  
adotar medidas neoliberais de contenção de gastos sociais, enquanto medidas de ajuste  
necessário à retomada da taxa média de lucro do capital.  
De acordo com Carcanholo e Nakatani (2015), a remuneração do capital fictício está  
constituída pelos juros auferidos e pelos ganhos obtidos pelo capital especulativo parasitário,  
forma desenvolvida do capital fictício. As novas determinações da produção global capitalista  
expressam a relação estabelecida entre capital produtivo e o que Marx no capítulo XXI do livro  
III de O capital denominou capital portador de juros. Ao examinar o desenvolvimento do  
sistema de crédito no capítulo XXV do Livro III, Marx (2017) chama a atenção para o fato de  
que este é uma expressão desenvolvida da produção capitalista, haja vista a sua função à  
aceleração do desenvolvimento das forças produtivas e valorização do capital.  
681  
No plano concreto, esses mecanismos elevaram os níveis de concentração da renda das  
classes capitalistas mais altas e das instituições financeiras leiam-se, os bilhões de dólares  
injetados para o salvamento dos bancos e do empresariado norte-americano16. Essa  
concentração não alcançou, portanto, a massa de trabalhadores das classes mais baixas. A esses  
trabalhadores restaram o endividamento crescente como alternativa ao suprimento dos meios  
de subsistência, em razão do desemprego e perda das rendas. Somente em 2008, “os  
empréstimos brutos do setor financeiro representaram 76% dos tomados pelas famílias e  
governo considerados em conjunto, e mais que cada um deles separadamente” (Duménil e  
Lévy, 2014, p. 116), percentual absolutamente maior, se comparado com os dados do período  
pós-guerra.  
15 Segundo Chesnais (1998, p. 268): “Na época em que Marx escreveu, essas representações de um capital público  
ou privado ainda eram pouco numerosas: limitavam-se aos títulos dos empréstimos tomados pelo Estado e às  
ações. Nas páginas que tratam do que ele chama de capital fictício, Marx estudou, com inegável fascínio, a maneira  
como as instituições financeiras (entre as quais a Bolsa) são capazes de fazer com que um crédito ou um título se  
desdobre para viver muitas vidas (livro III, capítulo XXIX e XXX)”.  
16 Recomenda-se TONELO, Iuri. No entanto, ela se move: a crise de 2008 e a nova dinâmica do capitalismo. 1ª.  
Ed – São Paulo: Boitempo/ Iskra, 2021 (Mundo do trabalho).  
Fabiana Alcântara Lima  
Ainda que os fenômenos monetários ganhem centralidade em um volume significativo de  
estudos sobre a crise de 2008, importa recordar as determinações que demarcam a crise  
contemporânea. Em um notável estudo, Ernest Mandel no capítulo XXV do seu livro A crise  
do capital: os fatos e sua interpretação marxista oferece pistas sobre as novas configurações  
da crise. Uma obra que nasceu de análises conjunturais sobre o quadro histórico das recessões  
de 1974/75 e 1980/82, que marcou a ruptura com o período de expansão do pós-guerra da  
economia internacional.  
No referido capítulo, o autor afirma que “a função objetiva da crise é a de constituir o  
mecanismo através do qual a lei do valor se impõe apesar da concorrência (ou da ação dos  
monopólios) capitalista” (Mandel, 1990, p. 212). Significa dizer que a interrupção da realização  
é determinada precisamente pelo seu valor de uso, cujos elementos se situam no processo  
material de produção, ainda que a esfera financeira ganhe centralidade no processo de  
valorização do capital. Nestes termos, as novas determinações da produção global capitalista  
traduzem a relação estabelecida entre capital produtivo e o que Marx no capítulo XXI do livro  
III de O capital denominou capital portador de juros.  
Do ponto de vista ídeo-político, tais contradições tendem a reforçar as estratégias de  
ocultação das contradições capitalistas, cumprindo função determinante ao processo de  
reprodução do capital. Trata-se de uma forma fetichista consumada da circulação de capital,  
ou seja, o dinheiro como uma forma mais evidente de mistificação do capital. Nos escritos de  
Marx, “o dinheiro-capital atinge a forma mais reificada, mais fetichista do processo de  
valorização” (2010, p 519). Nesta perspectiva, pode-se dizer que em condições de acumulação  
financeira, a relação social se converte em uma relação entre “coisas” se mantendo,  
aparentemente, na esfera da circulação monetária.  
682  
Tais manifestações fenomênicas são trabalhadas com rigor no livro Para a crítica da  
crise: diálogos com intelectuais e parlamentares da esquerda em Portugal, em que Marcelo  
Braz (2016), tendo como horizonte os impactos da crise de 2008 na realidade portuguesa, busca  
desvelar a sua essência se valendo da crítica marxiana e marxista. O autor parte do suposto da  
crise como expressão de contradições concentradas, relacionadas ao problema do valor, à sua  
criação no processo produtivo e à sua realização no processo de circulação.  
Concordando com a perspectiva mandeliana, o autor compreende as crises como  
complexo de determinações que se processaram, de modo cumulativo, nos períodos de  
expansão, relacionados ao novo estágio de acumulação do capital. Tratam-se de fatores  
estruturais e não somente conjunturais de ordem sócio-política, intrínsecos às contradições  
postas pelo desenvolvimento tardio (Mandel, 1982).  
Libertas, Juiz de Fora, v. 24, n. 2, p. 673-690, jul./dez. 2024. ISSN 1980-8518  
A nova ofensiva contra o trabalho na contemporaneidade e a validade histórico-analítica  
da teoria marxiana da crise  
A incontrolabilidade de um sistema que cria riqueza demais, comércio em  
excesso, mercado em abundância precisa ser contida. Capitais excedentes  
devem ser desvalorizados; dificuldades de realização da mais-valia devem ser  
mitigadas pelo crédito; empresas em dificuldades devem ser ou salvas ou  
absorvidas; a pulverização do mercado deve dar lugar a formas mais  
centralizadas e até monopolizadas de comércio e de financiamento; salários e  
outros gastos com a força de trabalho devem ser deprimidos; velhas formas de  
exploração devem dar lugar a novas ou até mesmo algumas formas mais  
antigas podem ser reavivadas, desde que em qualquer um dos casos sejam  
criadas as condições para elevar as taxas de mais-valia (Braz, 2016, p. 31).  
Portanto, argumenta o autor, que os mecanismos contratendenciais, com os quais nos  
deparamos no pós-2008, não passam de soluções temporárias ou momentâneas, incapazes de  
pôr em xeque as suas contradições substanciais do capitalismo recordem-se as atuais políticas  
de ajuste fiscal e os diversos ataques aos direitos trabalhistas e previdenciários da classe  
trabalhadora brasileira, sob o mote da crise . Dentre as principais causas que engendram as  
crises, Braz (2016) destaca a combinação entre superprodução de mercadorias e  
superacumulação de capitais, que reivindica a expansão de campos de valorização inéditos. O  
outro aspecto se refere ao subconsumo das massas trabalhadoras.  
Ainda de acordo com o autor, as crises explicam-se pela lei da tendência à queda da  
taxa de lucro tratada no livro terceiro de O capital e considerada uma das mais importantes da  
obra marxiana. De acordo com as formulações de Marx, o aumento da taxa de afluência de  
trabalhadores ao exército industrial de reserva é um traço constitutivo dos mecanismos de  
contratendência engendrados pelo capital em crise. Recordem-se o desemprego massivo  
causado com o esgotamento do padrão de acumulação taylorista-fordista. Sob tais  
circunstâncias, o capital se dispõe de meios que tendem a acelerar o período de rotação do  
capital, facilitado pelo capital monetário. Esta forma de capital torna-se, portanto, decisiva à  
retomada da demanda por mercadorias e a consequente retomada das taxas de lucro. Contudo,  
no capítulo 16 do segundo livro, dedicado a rotação do capital variável, Marx explica que o  
consumo, por si só, não é capaz de resolver o problema das crises, como a própria história  
demonstrou. A saber:  
683  
Quanto mais curto é o período de rotação do capital – quanto mais curtos são  
os intervalos em que se renovam seus prazos de reprodução durante o ano –,  
tanto mais rapidamente sua parte variável, inicialmente adiantada pelo  
capitalista em forma-dinheiro, converte-se em forma-dinheiro do produtor de  
valor (que, além disso, inclui mais-valor) criado pelo trabalhador para a  
reposição desse capital variável; tanto mais curto, portanto, o tempo para o  
qual o capitalista tem de adiantar dinheiro de seu próprio fundo [...] (Marx,  
2014, p. 409).  
Fabiana Alcântara Lima  
A partir da assertiva marxiana, dissemos que é parte inerente à dinâmica de acumulação  
capitalista alargar os limites de acesso ao trabalho e, consequentemente, ampliar o quantitativo  
de trabalhadores disponíveis a trabalhar sob condições cada vez mais precárias. Enquanto a  
renda monetária permanece blindada sob a crise17. Deste modo, se por um lado aumenta a  
superpopulação relativa, por outro lado, aos trabalhadores que permanecem empregados,  
restam as jornadas exaustivas, as condições degradantes, o aumento da intensidade de trabalho  
e o rebaixamento salarial.  
A nova ofensiva contra o trabalho no pós-2008: tendências contemporâneas  
As novas determinações da produção global capitalista traduzem a relação estabelecida  
entre capital produtivo e o que Marx no capítulo XXI do livro III de O capital denominou capital  
portador de juros. Trata-se de uma massa de capital dinheiro não investida produtivamente, que  
se apropria da mais-valia global. Segundo Chesnais (2005, p. 35), “esse capital busca “fazer  
dinheiro” sem sair da esfera financeira, sob a forma de juros de empréstimos [...]”.  
Nas suas lições sobre a lei do valor, Marx (2017) demonstra as formas multifacetadas  
do processo de transformação do dinheiro em capital, que passa desde a produção do excedente  
econômico, identificado em sua grandeza como mais-valia e extraídas da produção e circulação  
de mercadorias, até a forma especifica assumida pelo capital como portador de juros, definido  
com suas palavras, como um “capital vadio, à espera de aplicação” (Livro III, capítulo XIX).  
Dito de outro modo, a remuneração deste capital está constituída pelos juros auferidos e pelos  
ganhos obtidos pelo capital especulativo parasitário. Os dados apresentados na seção anterior,  
acerca da especulação financeira dos bancos, no contexto norte-americano, ratificam as  
formulações marxianas.  
684  
No Brasil, mesmo com as medidas implementadas pelo governo –de aumento  
da base monetária sobre a qual os bancos podem realizar empréstimos; de  
redução do imposto de renda e do imposto sobre o produto industrializado dos  
automóveis, de aumento das linhas de crédito dos bancos federais, inclusive  
do banco Nacional de Desenvolvimento e Social (BNDES), entre outras, o  
número de demitidos aumenta de forma assustadora (Marques; Nakatani,  
2009, p. 74).  
Desde 2008, o governo brasileiro vem aprimorando estratégia de fomento ao trabalho  
por conta própria como alternativa à crise. Podemos tomar como exemplo o aumento  
17 Um bilhão de trabalhadores de 50 países tiveram um corte médio de US$ 685 dólares em seus salários no ano  
passado, o que representou uma perda coletiva de US$ 746 bilhões em salários reajustados pela inflação,  
No Brasil, a queda dos salários de trabalhadoras e trabalhadores foi de 6,9% no ano passado, enquanto  
acionistas receberam cerca de 24% a mais do que em 2021 (US$ 33,8 bilhões – US$ 27,3 bilhões). Disponível em:  
Libertas, Juiz de Fora, v. 24, n. 2, p. 673-690, jul./dez. 2024. ISSN 1980-8518  
A nova ofensiva contra o trabalho na contemporaneidade e a validade histórico-analítica  
da teoria marxiana da crise  
significativo de registros de microempreendedores individuais (MEI), categoria regulamentada  
em nível federal no ano de 2008,18 que representa hoje uma das principais estratégias de  
enfrentamento ao desemprego no país. Tratam-se de respostas ao alargamento do índice de  
desemprego e informalização da força de trabalho, especialmente, no período de crise agravada  
pela pandemia19. O que aparece como alternativa esconde, no entanto, uma tentativa de  
ocultamento desses índices20. Esse mecanismo tem sido promovido pelos bancos e organismos  
privados, que fortalecem parcerias junto aos aparelhos midiáticos, em função da divulgação de  
experiências empreendedoras exitosas, à exemplo dos eventos e cursos ofertados pelo Serviço  
Brasileiro de Apoio às Micro e Pequenas Empresas (SEBRAE).  
De acordo com Abílio (2014), uma das consequências destrutivas deste processo é a  
subsunção21 incontestável do trabalho ao capital, refletida na intensificação do quadro de  
desemprego no contexto de acumulação flexível, processo agravado nos países latino-  
americanos. Essa nova forma de organização na dispersão reflete um processo de redução e  
transferência de capital constante para o trabalhador, que assume, em escala individual, a  
responsabilidade dos custos e condições de trabalho (desprotegido), aumentando a intensidade  
e extensão das jornadas de trabalho, chegando, por sua vez, na esfera do consumo e apropriação  
dos lucros pelo capital.  
Seguindo essa tendência, pequenas e microempresas, domiciliares ou não, passaram a  
abastecer a força de trabalho sobrante, através das quais muitos trabalhos informais, nas  
palavras de Tavares (2014), se articulam por fios invisíveis à produção formal numa relação de  
assalariamento disfarçado: trata-se de um processo de personificação da empresa pelo  
trabalhador. Assim, o aumento significativo de ocupações precárias no Brasil, nos últimos anos,  
associada à flexibilização das relações de trabalho é marcado pela hegemonia do capital  
financeiro cujo “espírito” leva até as últimas consequências a finalidade irremediável de “fazer  
mais dinheiro” do dinheiro e pelo dinheiro, agora não mais tendo como meio principal a  
685  
18 Regulamentada pelo governo Lula, a Lei Complementar n. 128/2008, que alterou a Lei Geral da Micro e Pequena  
Empresa  
(Lei  
Complementar  
n.  
123/2006)  
Disponível  
em:  
19 Indicamos a coletânea intitulada Trabalho e pandemia: informalidade, precarização e suas múltiplas relações,  
organizado por Roberto Véras de Oliveira e Ari Rocha da Silva (2021).  
20 Na nossa interpretação, tornar-se MEI significa sair das estatísticas oficiais de emprego informal e desemprego  
De acordo com a PNAD, "a taxa de informalidade – soma dos trabalhadores sem carteira, trabalhadores domésticos  
sem carteira, empregador sem CNPJ, conta própria sem CNPJ e trabalhador familiar auxiliar". Disponível:  
21 “O conceito de subsunção, mais ainda, de subsunção real, na teoria marxiana sintetiza a separação entre meios  
de produção e força de trabalho (o que significa pensar em termos da própria constituição da força de trabalho  
como tal), que é também um desapossamento do conhecimento, das decisões e do controle do trabalhador sobre a  
produção” (Abílio, 2014, p. 192).  
Fabiana Alcântara Lima  
produção em massa de mercadorias, mas sim a especulação financeira”, conforme interpretação  
de Graça Druck (2011, p. 91).  
Tais tendências reforçam a hipótese central de Antunes (2018) no livro O privilégio da  
servidão, a de que se processa uma nova morfologia de trabalho denominada de novo  
proletariado de serviços da era digital. Nesse cenário em que o empreendedorismo aparece  
como alternativa à crise22, o trabalho digital tornou-se mediação fundamental. Sem relação  
patronal, sem propriedade dos meios de produção, são “empreendedores de si mesmos”, com  
jornadas exaustivas e salários rebaixados (pagos por peça), algumas vezes, transformada em  
dívida, a exemplo do emblemático serviço dos entregadores. Embora os discursos de incentivo  
sugiram a possibilidade do trabalhador, a partir das suas próprias condições de investimentos e  
atributos pessoais, “fazer o seu próprio salário” e gerar novas alternativas de renda, o que se  
observa, na realidade, é a intensificação das condições de precarização.  
Os dados são incontestáveis. Mesmo em condições de pandemia, o Brasil alcançou no  
final de 2020 recorde no número de registros de MEI, com um total de 11,3 milhões de MEIs  
ativos, 20% a mais do que no fim de 2019, quando o segmento tinha 9,4 milhões de registros  
(Portal do Empreendedor, 2020)23. No entanto, os dados revelam que apesar do  
empreendedorismo se constituir como alternativa ao desenvolvimento e da “livre” escolha dos  
trabalhadores, as condições objetivas não deixam dúvidas. Segundo pesquisa divulgada pela  
Neon, responsável pela plataforma MEI Fácil, 53% destes empreendedores viviam com até R$  
1 mil reais por mês ao fim do ano passado. E nos últimos meses, 52% dos empreendedores  
individuais buscaram auxílio financeiro com parentes e amigos. E apenas um em cada cinco  
obteve empréstimo com bancos ou instituições financeiras tradicionais (MEI fácil, 2020)24.  
De acordo com o Sebrae/PB (2020), com base em dados da Receita Federal25 o índice  
de inadimplência dos microempreendedores individuais na Paraíba sofreu um aumento de quase  
15% entre os meses de dezembro de 2019 e maio deste ano. No mês de maio, o índice de  
inadimplência era de 57,12%, ou seja, 59.716 microempreendedores dos 139.271 registrados  
no Simples Nacional na Paraíba estavam em dia com o pagamento do Documento de  
Arrecadação do Simples (DAS). Em dezembro de 2019, esse percentual era de 42,75%: dos  
686  
22  
Pensemos no Vamos Ativar o Empreendedorismo (VAE), criado pela grande mídia em 2020, em meio à  
pandemia e financiado por diversas instituições financeiras, como o Itaú e o Bradesco.  
23  
bate-recorde-em-2020/. Acesso em 24 nov. 2021.  
24  
Disponível  
em:  
25 Disponível em:  
Libertas, Juiz de Fora, v. 24, n. 2, p. 673-690, jul./dez. 2024. ISSN 1980-8518  
A nova ofensiva contra o trabalho na contemporaneidade e a validade histórico-analítica  
da teoria marxiana da crise  
130.102 MEIs registrados no estado, 74.488 estavam adimplentes, o que revela a tendência ao  
endividamento dos MEIs, no período anterior à crise agravada pela pandemia.  
Os dados acima ratificam a contradição entre os discursos de incentivo ao  
empreendedorismo e as condições objetivas experimentadas pelos trabalhadores, no tocante a  
desproteção associada ao endividamento. Nesta direção, as desigualdades de classe inerentes  
à sociedade capitalista são canceladas e os indivíduos passam a se distinguir pelas e aptidões  
individuais e subjetivas, cuja referência comum é o mercado. Seguindo essa linha de análise,  
as relações sociais de produção e reprodução social são polarizadas, como se pertencessem a  
extremos opostos, para além da sociedade de classes e dos conflitos entre capital e trabalho”  
(Valentim; Peruzzo, 2018).  
É inegável que a crise expressa pela contradição produção/realização do valor teve como  
consequência direta a redução dos postos formais de trabalho, repercutindo na elevação do grau  
de informalização e precarização da força de trabalho sobrante. A novidade consiste no que  
alguns especialistas vêm chamando de dominância financeira sobre o trabalho, que se  
caracteriza pelo endividamento crescente e expansão do capital financeiro para todas as esferas  
da vida, seja através de hipotecas (predominante nos países centrais), seja através de crédito de  
consumo (predominante nos países periféricos) conforme analisa Lena Lavinas (et al., 2021).  
Em nível do Brasil, os dados são incontestáveis. De acordo com a Pesquisa de  
Endividamento e Inadimplência do Consumidor (PEIC) e Confederação Nacional do Comércio  
de Bens, Serviços e Turismo (CNC) (2023), o endividamento bate terceiro recorde este ano e  
atinge 79,3% das famílias brasileiras, dado que supomos ter relação com o crescimento das  
ocupações por conta própria26, público que também apresenta condições de endividamento. De  
acordo com o Sebrae/PB (2020), com base em dados da Receita Federal, o índice de  
inadimplência dos microempreendedores individuais na Paraíba sofreu um aumento de quase  
15% entre os meses de dezembro de 2019 e maio de 2020.  
687  
Vimos que a nova dinâmica de acumulação, que modificou a finalidade do processo de  
valorização do capital por intermédio da mercadoria dinheiro, só pode existir, teoricamente,  
destruindo valor de uso. Contudo, os leitores desta tradição teórica sabem que o dinheiro se  
converte em capital na medida em que se vincula ao movimento global, sendo, portanto, na  
forma inicial dinheiro que se gesta o processo capitalista de produção.  
26 A Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios Contínua (Pnad Contínua), do Instituto Brasileiro de Geografia e  
Estatística (IBGE, 2022) revela que, no terceiro trimestre de 2022, o número médio anual de trabalhadores por conta  
própria chegou a 25,5 milhões em 2022, com alta de 2,6% no ano. Foi o maior nível da série histórica da pesquisa e  
ficou 27,3% maior que em 2012, quando era de 20,1 milhões (o menor da série).  
Fabiana Alcântara Lima  
Considerações finais  
As contribuições subscritas neste texto fazem parte das reflexões suscitadas durante a  
retomada crítico-investigativa em torno das tendências contemporâneas do trabalho e a sua  
relação com a crise capitalista. Argumentamos que a ofensiva contra o trabalho no pós-2008,  
expressa por diferentes formas de valorização do capital potencializa, em grande magnitude, a  
expansão das relações de precarização do trabalho associada ao endividamento da classe  
trabalhadora. Nesta nova dinâmica, o capital necessita cada vez mais de respostas que não só  
garantam a recuperação de suas taxas de lucro e extração de mais valor, mas também de  
mecanismos ídeo-políticos que buscam ocultar as suas reais necessidades, modificando a forma  
e o conteúdo da dinâmica de acumulação do capital.  
Sob esse aspecto, partimos da suposição de que a ofensiva financeira contra o trabalho  
no pós-crise de 2008, representa o domínio financeiro sob a esfera da reprodução social. E por  
isto constitui um mecanismo contratendencial ao interferir na composição do exército industrial  
de reserva e, ao mesmo tempo, potencializar o trabalho precário. Essa ofensiva expressa a face  
reificada do capital-dinheiro, demonstrando que sua forma aparente de autonomia se funda na  
exploração da força de trabalho mundialmente e numa voracidade sem precedentes.  
Portanto, ainda que a expansão do crédito seja uma constante histórica do capital em  
seus estágios de crise, com o colapso de 2008, essa tendência assume novas conotações  
associadas às necessidades do sistema global de produção e suas determinações sobre o  
trabalho. Do ponto de vista fenomênico, o que aparece como saída da crise, na realidade, exerce  
função específica ao modo de operar do capitalismo sob a dominância financeira, que tem  
atingido, drasticamente, a completude da classe trabalhadora e, com piores efeitos, os  
trabalhadores que atuam na esfera da circulação.  
688  
A compreensão da crise contemporânea, seus rebatimentos nas relações de trabalho e nas  
estratégias de enfrentamento por via do Estado exige, portanto, a recuperação da análise marxiana  
da crise e dos mecanismos de reprodução do capital, reeditados sob as novas circunstâncias  
históricas, o que conduz ao argumento central trabalhado ao longo do texto: a de que a crise sob o  
domínio financeiro no pós-2008 representa a construção de uma nova ofensiva contra o trabalho,  
cujas contradições são deslocadas para a esfera da reprodução do capital.  
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690  
Libertas, Juiz de Fora, v. 24, n. 2, p. 673-690, jul./dez. 2024. ISSN 1980-8518  
Exploração e jornada de trabalho em Marx:  
mais-valia como noção de mais-tempo  
Exploration and the working day in Marx:  
surplus value as a notion of surplus time  
Silvio Aparecido Redon*  
Eliane Christine Santos de Campos**  
Resumo: A estrutura exploradora do modo de  
produção capitalista é um elemento essencial  
para se pensar sobre a realidade social e, embora  
não seja restrita à essa sociabilidade, ela adquire  
traços particulares sob a direção do capital. Em  
busca de valorização, o capital altera a dinâmica  
da produtividade do trabalho social mediante a  
introdução da tecnologia na esfera da produção  
e ocasiona, de forma espetacular e inédita, a  
exponenciação da exploração a partir do  
controle do tempo. Este artigo, elaborado por  
meio de revisão de literatura essencialmente no  
universo marxiano, se propõe a entender a  
extração da mais-valia a partir da noção de  
mais-tempo e considerando o uso capitalista das  
inovações tecnológicas. O que se pode destacar  
é que a tecnologia é capaz de acelerar o tempo  
de rotação do capital, propiciar maior campo  
humano explorável e aprofundar a relação  
capital enquanto relação social de produção.  
Abstract: The exploitative structure of the  
capitalist mode of production is an essential  
element for thinking about social reality and,  
although it is not restricted to this sociability, it  
acquires particular traits under the direction of  
capital. In search of valorization, capital alters  
the dynamics of the productivity of social labor  
by introducing technology into the sphere of  
production and causes, in a spectacular and  
unprecedented way, the exponentiation of  
exploitation based on the control of time. This  
article, written through a literature review  
essentially in the Marxist universe, proposes to  
understand the extraction of surplus value based  
on the notion of surplus time and considering  
the capitalist use of technological innovations.  
What can be highlighted is that technology is  
capable of accelerating the time of capital  
turnover, providing a greater exploitable human  
field and deepening the relationship between  
capital as a social relation of production.  
Palavras-chaves:  
Capital;  
Tecnologia;  
Keywords: Capital; Technology; Exploration.  
Exploração.  
*
Doutor em Serviço Social e Política Social pela Universidade Estadual de Londrina. Assistente social da  
Prefeitura Municipal de Cambé. ORCID: https://orcid.org/0000-0002-6163-4846  
**  
Doutora em Serviço Social pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC/SP). Docente do  
departamento de Serviço Social da Universidade Estadual de Londrina. ORCID: https://orcid.org/0000-0002-  
DOI: 10.34019/1980-8518.2024.v24.45899  
Esta obra está licenciada sob os termos  
Recebido em: 06/09/2024  
Aprovado em: 02/12/2024  
Silvio Aparecido Redon; Eliane Christine Santos de Campos  
Introdução  
Assegurada pela propriedade privada, a exploração do capital sobre o trabalho  
assalariado é um elemento que deita raízes profundas na sociedade capitalista, encoberta por  
uma relação juridicamente entre iguais: o trabalhador e o capitalista, vendedor e comprador da  
mercadoria força de trabalho. O trabalho, e as condições a que está submetido na sociedade  
capitalista é, sem dúvidas, um ponto essencial para refletirmos a “questão social”; afinal, a  
capacidade produtiva do trabalho comporta, desde há muito, as investidas do progresso técnico  
e organizacional. Em Marx, ele é duplamente abordado, basicamente sob as diferentes  
perspectivas de finalidade e resultado, considerando a estruturação das classes sociais e o poder  
decorrente dessa divisão, revestido de dominação e subjugação.  
Conjugada ao e dinamizada pelo aumento da capacidade produtiva do trabalho, a  
exploração é o fator que traz determinações históricas à realidade, impondo condições de vida  
que desafiam o cotidiano do proletariado em todo o mundo. Essa exploração exponenciada pela  
introdução da tecnologia no processo produtivo é a garantia da extração e acumulação da mais-  
valia, da permanente distância entre as classes sociais quanto ao acesso à riqueza produzida. E,  
dentre os autores do Serviço Social brasileiro, a chave explicativa para a “questão social”. Eis  
as justificativas para a busca de sua elucidação e difusão do debate.  
A proposta do artigo é compreender a exploração a partir da discussão do controle do  
tempo; defendemos ser este um fator essencial para o capital. Esse controle apenas se tornou  
possível com a introdução da maquinaria na produção, trazendo no seu rastro a superpopulação  
relativa, como uma lei populacional particular do modo de produção especificamente capitalista  
e expressa na lei geral da acumulação capitalista, formulada por K. Marx; dessa forma, também  
considera as alterações sofridas pelo capital global, as mudanças entre seus componentes  
constante e variável. Em meio à essa sociabilidade é que se ergue a luta de classes. Por meio de  
uma revisão de literatura de textos marxianos e marxistas, o texto está dividido em duas partes:  
na primeira parte, Exploração e o significado do tempo para a produção capitalista, é  
apresentado como a medição e controle do tempo se tornaram vitais para a produção capitalista,  
diferentemente de outras épocas, visto que tal elemento está vinculado à exploração do capital  
sobre o trabalho. Depois, em A transformação dos tempos da jornada de trabalho a partir da  
tecnologia: mais-valia absoluta e mais-valia relativa, é exposta a luta do capital sobre esse  
tempo, em que a aplicação e o uso da tecnologia se torna imprescindível, aprofundando a  
relação social de produção e possibilitando a extração da mais-valia relativa a partir da  
transformação dos tempos contidos na jornada de trabalho.  
692  
Libertas, Juiz de Fora, v. 24, n. 2, p. 691-708, jul./dez. 2024. ISSN 1980-8518  
Exploração e jornada de trabalho em Marx: mais-valia como noção de mais-tempo  
Exploração e o significado do tempo para a produção capitalista  
Não basta que as condições de trabalho apareçam num polo como capital e no  
outro polo, pessoas que nada tem para vender a não ser sua força de trabalho.  
Não basta também forçarem-nas a se venderem voluntariamente. Na evolução  
da produção capitalista, desenvolve-se uma classe de trabalhadores que, por  
educação, tradição, costume, reconhece as exigências daquele modo de  
produção como leis naturais evidentes (Marx, 1984, p. 277, grifo nosso).  
Para o estabelecimento dessa nova forma de trabalho, o trabalho assalariado como venda  
da capacidade de trabalho, é insuficiente a pura imposição violenta e coercitiva na busca de  
aceitação e obediência conformadas. É preciso mais que somente isso; é importante as formas  
de introjeção e conformação à nova realidade, em que a reprodução social dos sujeitos passa a  
seguir o ritmo da reprodução do capital. Dessa forma, se coloca imprescindível o papel de  
instituições, como a escola e a igreja, que trazem componentes morais e religiosos que passam  
a moldar a vida em sociedade, estabelecendo condições e comportamentos necessários à  
realidade burguesa. Em um momento em que a força de trabalho passa a circular e ser negociada  
como mercadoria, queremos salientar, sem descartar outros aspectos, o controle econômico do  
tempo nessa nova forma social.  
É o historiador britânico Thompson (1998) quem instiga uma discussão sobre a questão  
do tempo na sociedade capitalista em seu notável ensaio Tempo, disciplina de trabalho e  
capitalismo industrial. Seu eixo de investigação é detectar, como e até que ponto, a alteração  
na noção do tempo afetou a disciplina do trabalho e incidiu sobre a percepção dos trabalhadores:  
considerando a maturação da sociedade industrial, que impõe uma outra lógica para o trabalho,  
como isso está relacionado com a alteração na notação do tempo? Defendemos que essa questão  
do tempo, sua medição e controle, é algo essencial na sociedade burguesa, o qual o capital luta  
de forma incessante para ter total domínio por estar atrelado diretamente à exploração  
capitalista.  
693  
Entre os povos primitivos, ou em certas regiões e em determinadas épocas, como o Chile  
do século XVII ou regiões rurais da Grã-Bretanha de hoje – de forma geral, em sociedades que  
as estruturas de mercado e administrativas são mínimas – a marcação do tempo ocorre orientada  
pelas tarefas diárias, em que o trabalhador e o camponês independentes parecem cuidar do que  
é uma necessidade, além de não haver uma distinção muito clara entre as relações sociais e o  
trabalho, em que a atividade desempenhada não segue um ritmo de urgência. Conforme Mandel  
(1975), o trabalho não era tido como algo imposto do exterior, de forma exaustiva e desgastante  
como se configura hoje, visto que seus ritmos eram traçados pela natureza e pelo organismo do  
homem. Nessa mesma lógica, Thompson (1998) diz que a regularidade dessas atividades era  
determinada através de formas naturais, como a altura do sol no céu ou o sentido do vento, além  
Silvio Aparecido Redon; Eliane Christine Santos de Campos  
de não serem organizadas e ordenadas pelo princípio e vigilância capitalista da intensa  
produtividade; havia outro sentido no trabalho. Mas com o emprego de mão-de-obra  
assalariada, esse critério de medição do tempo adquire certa complexidade: “[...] o tempo está  
começando a se transformar em dinheiro, o dinheiro do empregador” (Thompson, 1998, p. 272).  
Começa-se, então a medição das tarefas por horário marcado.  
Essa medição incorpora uma relação simples. Aqueles que são contratados  
experenciam uma distinção entre o tempo do empregador e o seu “próprio”  
tempo. E o empregador deve usar o tempo de sua mão de obra e cuidar para  
que não seja desperdiçado: o que predomina não é a tarefa, mas o valor do  
tempo quando reduzido a dinheiro. O tempo é agora moeda: ninguém passa  
o tempo, e sim o gasta (Thompson, 1998, p. 272, grifo nosso).  
Segundo Mandel (1975), esse reordenamento da medição e da regularidade do trabalho  
é consequência do aparecimento e da intensificação da produção de mercadorias: “quanto mais  
a produção de mercadorias se generaliza tanto mais o trabalho se regulariza, e mais a sociedade  
se organiza em torno de uma contabilidade fundamentada no trabalho” (Mandel, 1975, p. 12).  
Essa noção de tempo revelada pelo autor é a margeada pelo discurso capitalista de tempo é  
dinheiro, que contou com a decisiva introdução na vida social de um elemento extremamente  
comum nos dias atuais: o relógio. Não se sabe ao certo a precisão da hora marcada pelo relógio  
nesse período, mas a sua proliferação aconteceu no momento em que a Revolução Industrial  
exigia maior controle e ajuste do trabalho. Segundo Thompson (1998, p. 279), “O pequeno  
instrumento que regulava os novos ritmos da vida industrial era ao mesmo tempo uma das mais  
urgentes dentre as novas necessidades que o capitalismo industrial exigia para impulsionar seu  
avanço”. Além da associação da marcação do tempo e da tecnologia, é interesse do autor  
também “a medição do tempo como meio de exploração da mão-de-obra” (Thompson, 1998,  
p. 289), o que não ocorreu sem conflito. Essa tensão, está claro, se deve mesmo à imposição de  
um ritmo de trabalho totalmente diferente do que a população estava então acostumada. A  
entrada e saída dos trabalhadores nas fábricas eram devidamente registradas, não honestamente,  
e os relógios eram alterados para garantir vantagem ao capital, além de terem seu uso proibido1.  
E vantagem não somente em relação ao ganho de tempo, mas também quanto a aplicação de  
multas como método dos capitalistas aumentarem seus lucros: os operários que encontravam  
os portões das fábricas fechados, porque o relógio estava adiantado, tinham seus nomes  
694  
1 Thompson (1998, p. 294) traz o depoimento anônimo de uma testemunha que trabalhava em uma fábrica: “[...]  
na realidade não havia horas regulares: os mestres e os gerentes faziam conosco o que desejavam. Os relógios nas  
fábricas eram frequentemente adiantados de manhã e atrasados à noite; em vez de serem instrumentos para medir  
o tempo, eram usados como disfarces para encobrir o engano e a opressão. Embora isso fosse do conhecimento  
dos trabalhadores, todos tinham medo de falar, e o trabalhador tinha medo de usar relógio, pois não era incomum  
despedirem aqueles que ousarem saber demais sobre a ciência das horas” (Anônimo, Chapters in the life of a  
Dundee factory boy – Dundee, 1887, p. 10 apud Thompson, 1998, p. 294).  
Libertas, Juiz de Fora, v. 24, n. 2, p. 691-708, jul./dez. 2024. ISSN 1980-8518  
Exploração e jornada de trabalho em Marx: mais-valia como noção de mais-tempo  
marcados em um caderno de multas. Certa vez, 95 trabalhadores de uma indústria em  
Manchester foram multados: “[...] eram operários de um fábrica cujo relógio, em relação aos  
relógios públicos da cidade, pela manhã estava adiantado e, à noite, atrasado em um quarto de  
hora” (Engels, 2010, p. 215, grifos no original). Apesar da resistência, os trabalhadores foram  
sugados pela força do capital e submetidos ao seu movimento, passando a lutar não mais contra  
o tempo, mas sobre o tempo, indo da redução da jornada de trabalho para o direito de receberem  
horas extras e porcentagens em dinheiro pelo tempo trabalhado fora do horário.  
A dominação do capital não conhece barreiras. Essa questão do tempo é importante pelo  
próprio entendimento dessa relação social. Talvez a definição mais conhecida usada por Marx  
para descrever o capital seja “[...] valor que se valoriza” (Marx, 1983, p. 130; Marx, 1984, p.  
153). Esse conceito deve ser entendido, também, enquanto um processo, um movimento em  
que o capital necessariamente precisa passar por metamorfoses e trocar suas formas para que  
se opere a valorização, desconsiderando possíveis percalços. Falamos aqui da circulação do  
capital, renovada a cada ciclo, como uma finalidade em si mesma, objetivando a valorização  
do valor, “[...] pois a valorização do valor só existe dentro desse movimento sempre renovado.  
Por isso o movimento do capital é insaciável” (Marx, 1983, p. 129). Essa descrição nos afasta  
do entendimento a-histórico e simplesmente material do capital, visto em si como um montante  
de dinheiro, uma forma equivocada, como nos alerta os autores Lowy, Duménil e Renault  
(2015). Segundo Gorender (1983, p. XXXVII), o capital no sentido marxiano também se afasta  
da definição de trabalho acumulado: “o capital não é uma coisa – ferramenta ou máquina”; estes  
se convertem em capital quando são destinados à valorização do capital, convertidos em  
“instrumento[s] de exploração do trabalho assalariado”.  
695  
Ao invés de coisa, o capital é relação social, relação de exploração dos  
operários pelos capitalistas. As coisas – instalações, máquinas, matérias-  
primas, etc. – constituem a encarnação física do trabalho acumulado para  
servir de capital, na relação do proprietário dessas coisas e os operários  
contratados para usá-las de maneira produtiva (Gorender, 1983, p. XXXVII).  
Harvey (2018) disseca esse conceito tal como definido por Marx. Primeiramente, traz a  
noção de valor: “é o trabalho social que realizamos para os outros tal como ele é organizado  
por meio de trocas de mercadorias em mercados competitivos, com seus mecanismos de  
determinação de preços” (Harvey, 2018 p. 18). Mas recordemos que esse trabalho tem um  
tempo necessário socialmente estabelecido, não sendo aleatório: o valor é definido em Marx  
(1983) como o tempo de trabalho socialmente necessário2. “O tempo que gasto fabricando bens  
2
“Tempo de trabalho socialmente necessário é aquele requerido para produzir um valor de uso qualquer, nas  
condições dadas de produção socialmente normais, e com grau médio de habilidade e de intensidade de trabalho”.  
É, portanto, apenas o quantum de trabalho socialmente necessário ou o tempo de trabalho socialmente necessário  
Silvio Aparecido Redon; Eliane Christine Santos de Campos  
para outros comprarem e usarem é uma relação social”, portanto, relação “imaterial”, mas que  
urge por uma expressão objetiva, satisfeita pela existência do dinheiro, que representa o valor.  
“O valor é a relação social, e todas as relações sociais escapam à investigação material direta.  
O dinheiro é a representação e a expressão dessa relação social” (Harvey, 2018, p. 18-19).  
Na esfera da produção, além de mercadorias materiais, é produzida também uma  
“relação social de exploração da força de trabalho” (Harvey, 2018, p. 23). Assim, “esse  
momento da circulação do capital abarca não apenas a produção de mercadorias, mas também  
a produção e reprodução da relação de classe entre capital e trabalho na forma de mais-valor  
[mais-valia]” (Harvey, 2018, p. 24). “O processo de consumo da força de trabalho é,  
simultaneamente, o processo de produção de mercadoria e de mais-valia”; é para onde Marx  
direciona nossa atenção: o “local oculto da produção” (Marx, 1983, p. 144). É aqui que ocorre  
o que Marx chama de valorização do capital, em que o tempo figura como um elemento  
essencial.  
Se compararmos o processo de formação de valor com o processo de  
valorização, vemos que o processo de valorização não é nada mais que um  
processo de formação de valor prolongado além de certo ponto. Se este apenas  
dura até o ponto em que o valor da força de trabalho pago pelo capital é  
substituído por um novo equivalente, então é um processo simples de  
formação de valor. Se ultrapassa esse ponto, torna-se processo de valorização  
(Marx, 1983, p. 161, grifo nosso).  
696  
Conforme a citação, o processo de trabalho é, também, processo de valorização. Esse  
tempo de trabalho que excede ao valor da força de trabalho, valor este sumariado nos meios de  
subsistência necessários à vida do trabalhador, é trabalho não pago, portanto, trabalho  
explorado. O mecanismo da exploração, que é a essência do trabalho no modo de produção  
capitalista, está elucidado; a força de trabalho pode operar além do tempo determinado para sua  
reprodução: “seus custos diários e seu dispêndio diário, são duas grandezas inteiramente  
diferentes”. Quando comprou a força de trabalho no mercado, o capitalista sabia que, embora  
apenas meia jornada de trabalho fosse suficiente para manter o trabalhador vivo, não havia  
impedimentos para ele trabalhar uma jornada inteira. Pagou por ela por um dia de sua utilização;  
protege e vigia zelosamente seu investimento para que consiga extrair o máximo disso, quase  
como a inquietante teletela da distopia de George Orwell (2021). Assim, “O valor da força de  
trabalho e sua valorização no processo de trabalho são, portanto, duas grandezas distintas”. Para  
o capitalista, “[...] o decisivo foi o valor de uso dessa mercadoria ser fonte de valor, e de mais  
valor do que ela mesma tem”. Mas a força de trabalho cria esse mais valor, que extrapola o seu  
para a produção do valor de isso o que determina a grandeza de seu valor” (Marx, 1983, p. 48).  
Libertas, Juiz de Fora, v. 24, n. 2, p. 691-708, jul./dez. 2024. ISSN 1980-8518  
Exploração e jornada de trabalho em Marx: mais-valia como noção de mais-tempo  
próprio valor, apenas e a partir da extensão do tempo da jornada de trabalho necessário: dessa  
forma, o seu valor de uso ultrapassa o seu valor de troca.  
A circunstância de que a manutenção diária da força de trabalho só custa meia  
jornada de trabalho, apesar de a força de trabalho poder operar, trabalhar um  
dia inteiro, e por isso, o valor que sua utilização cria durante o dia é o dobro  
de seu próprio valor de um dia, é grande sorte para o comprador, mas, de  
modo algum, uma injustiça contra o vendedor (Marx, 1983, p. 160, grifo  
nosso).  
A valorização decorre do tempo que excede o tempo socialmente necessário à  
manutenção e reprodução da mercadoria força de trabalho, tempo empregado na produção:  
“[...] processo de valorização, que ocorre na esfera da produção” (Marx, 1983, p. 160). O  
processo de trabalho que compreende o trabalho necessário é o processo simples de formação  
de valor3; aqui não está compreendido a formação da mais-valia, apenas o que o capitalista paga  
em salário ao trabalhador. É impossível concebermos o modo de produção capitalista  
unicamente pelo processo de formação simples de valor – este deve ser analisado como parte  
de um processo maior, não existindo de modo isolado, pois se se interrompe a produção nesse  
momento, não há valorização do capital, não há excedente. O tempo prolongado da jornada de  
trabalho para além de determinado ponto é o que garante a valorização do capital, estando na  
sua dependência direta. Se em determinadas condições esse tempo prolongado oscila, também  
oscila a capacidade de valorização do capital, para mais ou para menos, pois oscila a  
produção da mais-valia4. Portanto, a mais valia está cristalizada não no montante absoluto de  
mercadorias produzidas em uma jornada inteira de trabalho, mas apenas naquele em que são  
produzidas no tempo da jornada de trabalho que engloba o trabalho excedente. De modo geral,  
“[...] a mais-valia resulta somente de um excesso quantitativo de trabalho, da duração  
prolongada do mesmo processo de trabalho [...]” (Marx, 1983, p. 162, grifo nosso), agora  
particularizado como processo de produção capitalista de mercadoria5, síntese agregada do  
valor e da mais-valia.  
697  
3 “Trata-se aqui apenas do tempo que o trabalho precisa para sua operação ou da duração na qual a força de trabalho  
é despendida de forma útil” (Marx, 1983, p. 161).  
4 A história nos mostrou que a tendência é o aumento desse tempo pelo imperativo do capital se assentar em uma  
prospecção de reprodução ampliada. Além de que a mais-valia pode oscilar em decorrência do aumento do valor  
da força de trabalho, se expressando no fato de que o trabalho pode ter mais acesso à riqueza produzida  
socialmente, mas isso tem diferentes repercussões: ou realmente o trabalhador percebe esse aumento, por exemplo  
em decorrência da luta de classe e a pressão de seu poder de barganha; ou sobe os meios de subsistência e, na  
mesma proporção, sobe os salários.  
5 “Como unidade do processo de trabalho e processo de formação de valor, o processo de produção é processo de  
produção de mercadorias; como unidade do processo de trabalho e processo de valorização, é ele processo de  
produção capitalista, foram capitalistas da produção de mercadoria” (Marx, 1983, p. 162).  
Silvio Aparecido Redon; Eliane Christine Santos de Campos  
Ainda nessa análise sobre o processo de valorização do capital, é importante nos atermos  
a certos processos e conceitos marxianos. O valor do produto é resultado das diferentes formas  
em que os fatores do processo de trabalho o constituem, como fatores objetivos e fatores  
subjetivos. Constitui valor do produto os valores dos meios de produção consumidos que, de  
fato, são conservados pela transferência6 e, também, o novo valor que o trabalhador acrescenta  
através de determinada quantidade de trabalho7. Mas esses dois resultados são alcançados pelo  
trabalhador ao mesmo tempo, pelo mesmo processo de trabalho e não através de processos  
isolados, com objetivos próprios; essa dualidade de resultado é explicada pela dualidade de seu  
próprio trabalho: “No mesmo instante, o trabalho, em uma condição, tem de gerar valor e em  
outra condição deve conservar ou transferir valor” (Marx, 1983, p. 165). O trabalhador agrega  
tempo de trabalho e, portanto, valor, sob a forma peculiar de seu trabalho produtivo, pela sua  
própria atividade como trabalho em geral, ao passo que também o valor dos meios de produção  
se torna elemento constituinte do produto, de um novo valor de uso. Esse trabalho que agrega  
valor é trabalho abstrato, trabalho social geral, e agrega certa grandeza de valor não por ser  
trabalho particular, útil, mas porque dura um tempo determinado; por sua característica abstrata,  
como dispêndio de força de trabalho humano, agrega novo valor. Distinto disso é a transferência  
de valor ao produto, que ocorre através do trabalho concreto, útil; apenas um trabalho específico  
é capaz de manejar certos meios de produção e, assim, transferir seus valores aos novos  
produtos. A força de trabalho, ao ser acionada em um processo de trabalho, cria novo valor e  
transfere valor, formando o valor de um novo produto, e de forma simultânea.  
698  
Essa caracterização dos fatores do processo de trabalho nada mais é que as funções dos  
diferentes elementos que compõem o capital em seu próprio processo de valorização8: os meios  
de produção e a força de trabalho são “as diferentes formas de existência que o valor do capital  
originário assumiu ao desfazer-se de sua forma dinheiro e ao transformar-se nos fatores do  
processo de trabalho”. Marx (1983) denominou de capital constante a parte do capital  
convertida em meios de produção, cuja grandeza de valor não se altera no processo de produção  
e, de capital variável, a parte do capital convertida em força de trabalho, cujo valor se altera no  
6
“Se considerarmos todo o período em que tal meio de trabalho presta serviço, desde o dia de sua entrada na  
oficina até o dia de seu banimento ao despejo, veremos que, durante esse período, seu valor de uso foi inteiramente  
consumido pelo trabalho e seu valor de troca transferiu-se, por isso, totalmente ao produto” (Marx, 1983, p. 168)  
7 “É diferente o que acontece com o fator subjetivo do processo de trabalho, a força de trabalho em ação. Enquanto  
o trabalho, por meio de sua forma adequada a um fim, transfere o valor dos meios de produção ao produto e o  
conserva, cada momento de seu movimento cria valor adicional, valor novo” (Marx, 1983, p. 170).  
8 “As mesmas partes componentes do capital, que do ponto de vista do processo de trabalho se distinguem como  
fatores objetivos e fatores subjetivos, como meios de produção e força de trabalho, se distinguem, do ponto de  
vista do processo de valorização, como capital constante e capital variável” (Marx, 1983, p. 171).  
Libertas, Juiz de Fora, v. 24, n. 2, p. 691-708, jul./dez. 2024. ISSN 1980-8518  
Exploração e jornada de trabalho em Marx: mais-valia como noção de mais-tempo  
processo de produção, reproduzindo seu equivalente e produzindo um excedente, uma mais-  
valia que pode variar, ser maior ou menor.  
Mediante a atividade da força de trabalho, reproduz-se, portanto, não só seu  
próprio valor, mas reproduz-se também, valor excedente. Essa mais-valia  
forma o excedente do valor do produto sobre o valor dos constituintes  
consumidos do produto, isto é, dos meios de produção e da força de trabalho  
[...]. O excedente do valor total do produto sobre a soma dos valores de seus  
elementos constituintes é o excedente do capital valorizado sobre o valor do  
capital originalmente adiantado (Marx, 1983, p. 171).  
Mas essa formação do excedente depende muito mais do que a junção e a convergência  
dos elementos que compõe o capital em um processo de trabalho. Marx (1983) é taxativo e  
insiste no prolongamento desse processo de trabalho para além da reprodução do equivalente  
da força de trabalho que é utilizada como valor de uso pelo capitalista não por meio período,  
mas por uma jornada de trabalho inteira, como é reiteradamente apontado pelo autor. Caso não  
ocorresse dessa forma, a força de trabalho iria agregar apenas o seu valor de reprodução ao  
produto, não sendo formado, por tanto, o excedente. Tratamos, pois, de tempo. Tempo  
apropriado e conduzido pelo capitalista, tempo de trabalho efetivado e não pago, explorado. Na  
sociedade burguesa, o homem é reduzido a tempo: “o tempo é tudo, o homem não é nada –  
quando muito, é a carcaça do tempo” (Marx, 1985, p. 58, grifo nosso).  
699  
A transformação dos tempos da jornada de trabalho a partir da tecnologia: mais-  
valia absoluta e mais-valia relativa  
A especificidade do sistema sociometabólico do capital, descortinada por  
Marx, reside justamente em que a sociabilidade engendrada por esse sistema  
é estruturada e sustentada pela forma valor: o tempo de trabalho socialmente  
necessário enquanto parâmetro das trocas e, por isso, da própria sociabilidade,  
sendo as mudanças técnicas e organizacionais estimuladas e voltadas para a  
redução desse tempo, não pela busca de maior tempo livre ou da maior  
satisfação das necessidades humanas, mas tão somente enquanto mecanismo  
de aprofundamento da exploração de tempo de trabalho excedente, ou  
valorização do valor (Queiroz, 2016, p. 43).  
Vejamos o detalhamento sobre esse tempo, ou tempos, do processo de trabalho como  
processo de valorização. A jornada de trabalho compreende a grandeza absoluta do tempo de  
trabalho. Ela congrega dois momentos expressos no processo de trabalho: por um lado, tem-se  
a parte do processo de trabalho que se restringe à reprodução da força de trabalho, podendo ser  
maior ou menor segundo o valor dos meios de subsistência. Marx (1983, p. 176) denomina esse  
tempo de tempo de trabalho necessário, e o trabalho de trabalho necessário. No segundo  
período da jornada de trabalho é gerada a mais-valia, é dispêndio de energia que não cria valor  
Silvio Aparecido Redon; Eliane Christine Santos de Campos  
para o trabalhador; esse momento é chamado de trabalho excedente, e o trabalho, de mais-  
trabalho.  
Assim como, para a noção do valor em geral, é essencial concebê-lo como  
mero coágulo de tempo de trabalho, como simples trabalho objetivado, é  
igualmente essencial para a noção de mais-valia concebê-lo como mero  
coágulo de tempo de trabalho excedente, como simples mais-trabalho  
objetivado (Marx, 1983, p. 176, grifo nosso).  
Em uma relação direta, se o capital variável é igual ao valor da força de trabalho que o  
capitalista compra e, se o valor dessa força de trabalho é determinado pelo tempo de trabalho  
necessário, como trabalho voltado para os meios de subsistência do trabalhador, a mais-valia é  
determinada pelo excedente da mesma jornada de trabalho. Mais-valia que diz sobre a riqueza  
de um dado país. A parte do produto em que ela está representada é o mais-produto; é objetivo  
da produção capitalista a produção de mais-valia, sendo, portanto, não a grandeza absoluta do  
produto, mas a sua grandeza relativa que mede o grau dessa riqueza. Isso compreendendo que  
o valor do produto em sua totalidade não é somente o valor criado no produto – para este último  
caso, o valor transferido do capital constante deve ser deduzido do seu valor total9. Dessa forma,  
a exploração do capital sobre a força de trabalho é a exploração da mais-valia, do trabalho  
que, sendo excedente, não é pago; portanto, a exploração é explicada pelo tempo relativo da  
jornada de trabalho, o do trabalho excedente, compreendido que está no tempo absoluto da  
jornada de trabalho. Com isso, temos que essa exploração de mais-valor é a exploração do  
tempo da vida do trabalhador, tempo que é consumido na produção de mercadorias e não pago,  
tempo de trabalho excedente que é, em si mesmo, a concentração exata da mais-valia, do mais-  
valor, do mais-tempo. É em decorrência da ampliação abusiva da jornada de trabalho, desse  
mais-valor como mais-tempo, até o limite possível, que “levanta-se a voz no trabalhador, que  
estava emudecida pelo bombar do processo de produção” (Marx, 1984, p. 189).  
700  
Mas até aqui dispomos atenção sobre o processo de trabalho sob o comando do capital  
de forma genérica, contemplando a produção da mais-valia absoluta, considerando que a parte  
do trabalho necessário é uma grandeza dada, constante, como quer Marx (1983). Essa forma de  
extração de mais-valia, “produzida pelo prolongamento da jornada de trabalho” (Marx, 1983,  
p.251), está condicionada à uma lei muito específica10, que “só vale para a forma da mais-valia  
9 O capital adiantado C adiantado no processo de produção, formado por c + v (capital constante + capital variável  
– força de trabalho), se transforma em C’= c + v + m (em que o capital valorizado C’ é formado por capital  
constante + capital variável + mais-valia”). Porém, o valor do capital constante apenas reaparece no produto: “O  
produto de valor realmente criado no processo distingue-se, portanto, do valor do produto obtido dele” (Marx,  
1983, p. 174).  
10 Marx (1983, p. 239-241) desenvolve três lei sobre a massa de mais-valia. Vamos nos limitar apenas à terceira,  
por tratar mais diretamente ao assunto por nós abordado. As outras leis, resumidamente, são: primeira, que “a  
massa de mais-valia produzida é igual à grandeza do capital variável adiantado multiplicado pela taxa de mais-  
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Exploração e jornada de trabalho em Marx: mais-valia como noção de mais-tempo  
que tratamos até agora” (Marx, 1983, p. 242, grifo nosso), alicerçada que está em um momento  
da produção capitalista em que não se coloca a alteração do componente constante do capital,  
já que fixo o valor da força de trabalho, se impondo da seguinte forma:  
Se o limite da jornada de trabalho é dado, assim como o limite de sua parte  
necessária, a massa de valor e de mais-valia que um capitalista individual  
produz depende, como é obvio, exclusivamente da massa de trabalho que põe  
em movimento. Esta, por sua parte, depende, sob os pressupostos dados, da  
massa de força de trabalho ou do número de trabalhadores que ele explora, e  
esse número por sua vez é determinado pela grandeza do capital variável por  
ele adiantado. Dados a taxa de mais-valia e o valor da força de trabalho, as  
massas de mais-valia produzidas estarão, assim, em razão direta às grandezas  
dos capitais variáveis adiantados (Marx, 1983, p. 241, grifo nosso).  
A massa de mais-valia produzida está diretamente e unicamente atrelada ao trabalho que  
é empregado na produção, ao número de trabalhadores que movimentam os meios de produção  
em um processo de trabalho11. Dessa forma, a produção de mais-valia absoluta é limitada pelo  
crescimento populacional ou, sob outro olhar, dada certa população, a produção da mais-valia  
está limitada pela extensão da jornada de trabalho, resultando dessa condição a luta do capital  
quando do surgimento do capitalismo para o aumento da jornada de trabalho. Isso nos direciona  
a retomar o primeiro modelo de acumulação descrito por Marx, regido pela lei da acumulação  
capitalista, em que a valorização do capital estava, de certa forma, comprometida por esse  
paradoxo: se em dado momento a produção da mais-valia se efetiva nesse cenário de  
dependência direta do aumento da força de trabalho empregada, visto que o prolongamento da  
jornada de trabalho possuiu limites, a alta demanda por trabalhadores faz com que os salários  
subam, comprometendo o grau da exploração exercida pelo capital. Segundo Marx (1984a), o  
capital passa por uma evolução: dentro do processo de produção, passa a comandar a força de  
trabalho ativa e, posteriormente, “evolui” para uma relação de coerção, obrigando o trabalhador  
a exercer mais trabalho para além do necessário para satisfazer suas necessidades. O capital  
701  
valia ou é determinada pela relação composta entre o número das forças de trabalho exploradas simultaneamente  
pelo mesmo capitalista e o grau de exploração da força de trabalho individual”, ou seja, massa de mais-valia é  
dada pela mais-valia individual fornecida por cada trabalhador multiplicada pelo total de trabalhadores  
empregados. Segunda que, entendendo que na produção da massa de mais-valia um fator pode ser compensado  
por outro, como o decréscimo do número de trabalhadores pelo prolongamento da jornada de trabalho, segue-se  
que: “O limite absoluto da jornada média de trabalho, que por natureza sempre é menor que 24 horas, forma um  
limite absoluto à compensação de capital variável diminuído por aumento da taxa de mais-valia ou de um número  
reduzido de trabalhadores explorados por um acréscimo do grau de exploração da força de trabalho”; dessa forma,  
o prolongamento da jornada de trabalho, expressa em horas, encontra um teto, um patamar em que não é possível  
ultrapassar para contrabalançar um número restrito de trabalhadores.  
11  
Diz Marx (1983, p. 242): “Se, por exemplo, o número de trabalhadores é de 1 milhão e a jornada de trabalho  
média de um trabalhador é de 10 horas, a jornada de trabalho social será de 10 milhões de horas. Dada a duração  
desta jornada de trabalho, a massa de mais-valia só pode ser aumentada por meio do aumento do número de  
trabalhadores, isto é, da população trabalhadora”.  
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supera, com a extração de mais-trabalho e exploração da força de trabalho, todos os sistemas  
de produção anteriores baseados em trabalho forçado diretamente. Contudo:  
De início, o capital submete o trabalho ao seu domínio nas condições técnicas  
em que o encontra historicamente. Não altera, portanto, imediatamente o  
modo de produção. A produção da mais-valia na forma observada até agora,  
mediante simples prolongamento do dia de trabalho, parecia, por isso,  
independente de qualquer mudança do próprio modo de produção (Marx,  
1983, p. 244).  
O capital foi estruturando paulatinamente o seu próprio modo de produção, ajustando-o  
às suas necessidades de valorização. Até aqui, a parte da jornada de trabalho compreendida pelo  
trabalho necessário foi considerada como grandeza constante, “o que ela realmente é sob  
condições de produção dadas, em dado grau de desenvolvimento econômico da sociedade”  
(Marx, 1983, 249, grifo nosso). Mas com o desenvolvimento social da produtividade do  
trabalho, em patamares históricos até então inéditos, o capital ultrapassa em larga, e em potência  
crescente, a escala de produção da mais-valia, agora não mais dependente do acréscimo do  
número de trabalhadores e do aumento global da jornada de trabalho. Como nos ilumina  
Gorender (1983):  
Nos primórdios do regime capitalista, quando as inovações técnicas  
avançavam com lentidão, o aumento da quantidade de mais-valia por operário  
ocupado só era possível mediante criação de mais-valia absoluta, isto é,  
mediante prolongamento da jornada de trabalho ou intensificação das tarefas,  
de tal maneira que o tempo de sobretrabalho (criador de mais-valia)  
aumentasse, enquanto se conservava igual o tempo de trabalho necessário  
(criador do valor do salário). No entanto, a característica mais essencial do  
modo de produção capitalista não é a criação de mais-valia absoluta, porém  
de mais-valia relativa. Esta resulta do acúmulo de inovações técnicas, que  
elevam a produtividade social do trabalho e acabam por diminuir o valor dos  
bens de consumo nos quais se traduz o valor da força de trabalho, exigindo  
menor tempo de trabalho para a reprodução desta última. Por isso, sem que se  
alterem o tempo e a intensidade da jornada de trabalho, cuja grandeza  
permanece a mesma, altera-se a relação entre seus componentes: se diminui o  
tempo de trabalho necessário, deve crescer, em contrapartida, o tempo de  
sobretrabalho (Gorender, 1983, p. XLIV).  
702  
Em se tratando de uma compreensão da exploração capitalista, vamos salientar as  
consequências da revolução dos meios de trabalho sobre a classe trabalhadora, dos “efeitos  
imediatos da produção mecanizada sobre o trabalhador” (Marx, 1984, p. 22), o que nos faz  
entendermos ainda melhor a estrutura e os efeitos da lei geral da acumulação capitalista. Isso  
já havia sido destacado por Engels, embora não nos mesmos termos: “Numa ordem social  
organizada, tais aperfeiçoamentos seriam uma ótima coisa; porém, num regime que reina a  
guerra de todos contra todos, uns poucos indivíduos se apossam das vantagens que deles  
derivam e subtraem à maioria os seus meios de subsistência”. Na sociedade burguesa,  
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Exploração e jornada de trabalho em Marx: mais-valia como noção de mais-tempo  
“Qualquer aperfeiçoamento das máquinas põe alguns operários na rua e quanto mais importante  
é o progresso, maior é a parcela da classe jogada no desemprego [...], gerando miséria  
sofrimentos e crime” (Engels, 2010, p. 174). Pelas colocações de Marx (1984) no capítulo XIII,  
Maquinaria e Grande Indústria, reafirmamos a importância do tema nas análises do autor  
acerca dos impactos sociais destrutivos da mecanização da produção sob a ordem estabelecida.  
A ideia é imprimirmos a noção de que, tanto a produtividade do trabalho, como a exploração e  
a acumulação de capital atingiram patamares históricos que seriam insustentáveis sem tais  
revolucionamentos. A plena exploração, subjugação e miséria do trabalhador e a maquinaria  
estão imbricadas, quase como que se fossem um único elemento: a relação social de dominação  
e seu cavalo de Tróia. Como disse Marx (1980, p. 1007) em outro momento: “A burguesia erige  
a perpetuação da escravatura assalariada por meio da aplicação das máquinas em ‘apologia’  
destas”.  
Segundo Marx (1984), a maquinaria dispensou a força para o processo de trabalho,  
ampliando o campo da força de trabalho explorável: trabalhadores sem força muscular ou com  
desenvolvimento ainda imaturo, mas com alta flexibilidade, caso das mulheres e crianças. A  
máquina, como forma de substituir e dispensar trabalho e trabalhadores, amplia o número de  
assalariados ao destituir o homem, no sentido do gênero mesmo, da sua atividade12, enquanto  
que os outros membros da família, sem distinção de sexo e idade, caem sob as garras do capital.  
O valor da força de trabalho masculina, que deveria cobrir o sustento do próprio trabalhador e  
de sua família, agora é dividido pelos seus familiares; a máquina desvaloriza a força de trabalho.  
Mesmo que a compra dessas forças de trabalho em conjunto representasse mais gasto do que a  
força individual do trabalhador, apesar de os salários dessa mão de obra serem “abomináveis,  
já que era formada em grande parte por mulheres e crianças” (Hobsbawm, 2018, p. 77), elas se  
constituem em mais jornadas de trabalho, gerando mais excedente. Os esforços são deslocados  
para a máquina e o trabalho do homem adulto é reduzido a mera vigilância, que pode  
perfeitamente ser executada por uma mulher ou criança, e pela metade do preço de um operário  
que são “cada vez mais afastados da indústria e não são novamente ocupados com o aumento  
da produção industrial” (Engels, 2010, p. 176). “Assim, a maquinaria desde o início amplia o  
material humano de exploração, o campo propriamente de exploração do capital, assim como  
ao mesmo tempo o grau de exploração” (Marx, 1984, p. 23, grifo nosso).  
703  
Quanto mais a atividade dos braços e esforços musculares vêm sendo  
12  
“O número de trabalhadores aumentou muito, porque se substituiu cada vez mais trabalho masculino por  
feminino e sobretudo trabalho adulto por infantil. Três garotas de 13 anos de idade, com salários de 6 a 8 xelins  
por semana, deslocaram um homem adulto com salários de 18 a 45 xelins” (Quincey, Th. De. The Logic f Polit.  
Econ. Londres, 1844. Nota à página 147 apud Marx, 1983, p. 4, p. 22, nota).  
Silvio Aparecido Redon; Eliane Christine Santos de Campos  
substituídos, mediante a introdução da máquina, da força hidráulica ou do  
vapor, tanto menos se necessita de homens, deslocados por mulheres e  
crianças quem além de serem mais hábeis que os homens, recebem salários  
menores (Engels, 2010, p. 179).  
É responsável também, a maquinaria, por uma alteração substancial da “mediação  
formal das relações do capital, o contrato entre trabalhador e capitalista” (Marx, 1984, p. 23).  
Agora o capital compra crianças ou semidependentes; o trabalhador, que antes vendia sua força  
de trabalho, agora negocia no mercado sua esposa e filhos. Estes, se definham frente ao poder  
do capital: os sujeitos que a máquina submete à exploração se arruínam fisicamente; a  
mortalidade infantil é alta13; se degradam moralmente e são devastados intelectualmente, já que  
as pessoas são transformadas apenas em apêndices de máquinas para a produção de mais-valia.  
Há uma rearticulação das relações sociais e de gênero que incide violentamente sobre a estrutura  
familiar do proletariado.  
É tendência desencadeada nesse processo inicial o impulso para o prolongamento da  
jornada de trabalho, “[...] além de qualquer limite natural” (Marx, 1984, p. 28), para o capitalista  
compensar o que Marx (1984, p. 290) designou como depreciação moral da máquina, quando  
outras iguais a ela são produzidas em menos tempo ou quando surge outra que a supere em  
potência; seu valor passa agora a ser determinado não pelo tempo de trabalho que foi objetivado  
em si, mas ao necessário à produção da máquina melhorada. Devido à ampliação do contingente  
populacional explorado e do descarte de trabalhadores, agora sedimentados no exército  
industrial de reserva, a classe trabalhadora é submetida irrestritamente aos ditames do capital.  
A máquina abre as possibilidades da plena dominação e exploração do capital.  
704  
Daí o notável fenômeno na história da indústria moderna de que a máquina  
joga por terra todos os limites morais e naturais da jornada de trabalho. Daí o  
paradoxo econômico de que o meio mais poderoso para encurtar a jornada de  
trabalho se torna o meio infalível de transformar todo o tempo de vida do  
trabalhador e de sua família em tempo de trabalho disponível para a  
valorização do capital (Marx, 1984, p. 32).  
Outro fenômeno desencadeado com a introdução e expansão da utilização da  
maquinaria, de “decisiva importância” (Marx, 1984, p. 33), é a intensificação do trabalho. Com  
a explosão da luta de classes no cenário social no combate à extensão desmedida da jornada de  
13 É estarrecedor o apontado por Marx (1984a, p. 25) sobre esse assunto: as altas taxas de mortalidade decorrem  
principalmente à “ocupação extradomiciliar das mães e ao descuido e mau trato das crianças aí decorrentes – entre  
outras coisas, alimentação inadequada, falta de alimentação, administração de opiatos etc. – além da alienação  
inatural [*natural, nas 3° e 4° edições. Na tradução da Boitempo, alienação está como estranhamento] das mães  
contra seus filhos, e consequentemente esfomeação e envenenamento propositais”. Um relatório oficial sobre  
investigação médica, em 1861, revela que, além da negligência e maus tratos devido à ausência da mãe, estas por  
outro lado perdem de forma assustadora as emoções em relação às suas crianças, não demonstrando incômodo por  
suas mortes ou até tomam medidas para provocá-las.  
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Exploração e jornada de trabalho em Marx: mais-valia como noção de mais-tempo  
trabalho provocada pelas máquinas, é instaurada uma jornada limitada de trabalho após cerca  
de cinquenta anos, quando o seu aumento caminhou junto à intensificação do trabalho. Após o  
Estado ser obrigado a legislar sobre a jornada de trabalho, impedindo a produção da mais-valia  
pelo simples prolongamento do tempo de trabalho, “o capital lançou-se com força total e plena  
consciência à produção de mais-valia relativa por meio do desenvolvimento acelerado do  
sistema de máquinas” (Marx, 1984, p. 33), alterando o caráter da mais-valia relativa. Se antes  
o trabalhador era capacitado a produzir mais no mesmo espaço de tempo, com mais dispêndio  
de trabalho, em que o mesmo tempo de trabalho agrega ao produto total o mesmo valor de  
antes, mas agora incorporado em mais valores de uso, gerando queda no valor da mercadoria  
individual, agora, com a jornada comprimida, junto a um novo impulso e redução dos gastos  
com as condições de produção, impõe-se, no mesmo intervalo de horas, uma condensação dos  
espaços temporais, uma tensão do trabalho que só pode ser atingida na jornada reduzida: “Essa  
compressão de uma maior massa de trabalho num dado período de tempo conta, agora, pelo  
que ela é: como maior quantidade de trabalho” (Marx, 1984, p. 33). Resumidamente, as  
consequências dessa evolução técnica está em que:  
Vimos como a maquinaria aumenta o material humano explorável pelo capital  
mediante a apropriação do trabalho de mulheres e crianças, vimos como ela  
confisca todo o tempo de vida do operário mediante ampliação desmedida da  
jornada de trabalho e como seu progresso, que permite fornecer um produto  
em enorme crescimento num tempo cada vez mais curto, serve finalmente de  
meio sistemático de liberar em cada momento mais trabalho ou de explorar a  
força de trabalho de modo cada vez mais intenso (Marx, 1984, p. 39-40).  
705  
Marx expressa todas as consequências da implementação da maquinaria em um  
processo de trabalho conduzido pelo capital, evidenciando como esse fato vinca a sociedade  
burguesa. Quando desse estágio do desenvolvimento do modo de produção capitalista, a  
produção da mais-valia se consolida não pela necessidade da extensão da grandeza absoluta da  
jornada de trabalho, mas sim pela modificação da proporção de cada um dos dois tempos  
contidos nesse tempo: o prolongamento do mais-trabalho agora se opera pela diminuição de  
tempo de trabalho necessário que é destinado à manutenção e reprodução da força de trabalho.  
“Isso, porém é impossível, sem aumentar a força produtiva do trabalho”, assegura Marx (1983,  
p. 250); aumento compreendido como “uma alteração no processo de trabalho, pela qual se  
reduz o tempo de trabalho socialmente necessário para produzir uma mercadoria, que um menor  
quantum de trabalho adquira, portanto, a força para produzir um maior quantum de valor de  
uso” (Marx, 1983, p. 250-251, grifo nosso). Ora, a mais-valia relativa, “[...] que decorre da  
redução do tempo de trabalho e da correspondente mudança de proporção entre os dois  
componentes da jornada de trabalho [...]” (Marx, 1983, p. 251) não pode acontecer sob as  
Silvio Aparecido Redon; Eliane Christine Santos de Campos  
mesmas condições produtivas dadas no surgimento do capitalismo; é inoperante um aumento  
requerido na produtividade social do trabalho sem uma revolução nos meios de produção.  
Podemos considerar que se antes a extração de trabalho excedente se baseava na extensão  
absoluta do mais-valor, do mais-tempo, agora ela se alicerça na compressão de mais-valor,  
desse mais-tempo, considerando a jornada de trabalho reduzida. Exige-se, pois, uma alteração  
geral dos elementos e das formas como se opera o processo de trabalho, uma alteração da  
composição do capital, uma alteração da sua base técnica – estamos aqui nos referindo ao  
segundo modelo da acumulação capitalista descrito por Marx.  
Enquanto pois na produção da mais-valia, na forma até aqui considerada [a  
absoluta], o modo de produção é suposto como dado, não basta de modo  
algum, para produzir mais-valia mediante a transformação do trabalho  
necessário em mais-trabalho, que o capital se apodere do processo de trabalho  
em sua forma historicamente herdada ou já existente, e apenas alongue sua  
duração. Tem de revolucionar as condições técnicas e sociais do processo de  
trabalho, portanto, o próprio modo de produção, a fim de aumentar a força  
produtiva do trabalho, mediante o aumento da força produtiva do trabalho  
reduzir o valor da força de trabalho, e assim encurtar parte da jornada de  
trabalho necessária para a reprodução desse valor (Marx, 1983, p. 251, grifo  
nosso).  
Em certo momento do desenvolvimento histórico do capitalismo ocorre um  
redimensionamento da exploração, mas possível somente com o progresso das forças  
produtivas. O que acontece é que o aumento das potências do trabalho social se reflete no  
barateamento das mercadorias, agora produzidas em menos tempo e contento, dessa forma,  
menos tempo de trabalho socialmente necessário à sua produção. Com a queda do valor das  
mercadorias, diminui-se o tempo de trabalho necessário no qual o trabalhador trabalha para si  
próprio, para sua subsistência, pois se reduz o valor das mercadorias necessárias à sua  
reprodução, mas não só, reduzindo-se, também, o valor da força de trabalho, o que implica  
diretamente na ampliação do tempo de mais-trabalho, de trabalho não pago objetivado em  
mercadorias, em trabalho explorado. Esse é o objetivo do desenvolvimento da força produtiva  
do trabalho no âmbito da produção capitalista: reduzir o tempo de trabalho necessário e  
expandir o tempo do mais-trabalho. “Por isso, é impulso imanente e tendência constante do  
capital aumentar a força produtiva do trabalho para baratear a mercadoria e, mediante o  
barateamento da mercadoria, baratear o próprio trabalhador” (Marx, 1983, p. 254).  
706  
Contudo, a forma com que se busca a mais-valia relativa gera implicações que aqui  
vamos apenas indicar pois entendemos que extrapola nossa intenção para esse trabalho. Tal e  
qual o valor da força de trabalho, também cai o valor de outras mercadorias quando o capitalista,  
por meio da aplicação de um novo método, intensifica a força produtiva do trabalho; em si, ela  
contém materializado menos tempo de trabalho. Por ser produzida fora dos padrões sociais  
Libertas, Juiz de Fora, v. 24, n. 2, p. 691-708, jul./dez. 2024. ISSN 1980-8518  
Exploração e jornada de trabalho em Marx: mais-valia como noção de mais-tempo  
médios, seu valor é mais baixo que o seu valor social, podendo ser vendida ligeiramente acima  
do que realmente ela vale, mas ainda assim mais em conta que o seu valor social – já que a  
produção aumentou, há a necessidade de maior espaço no mercado, possível com a contração  
do seu preço. A mais-valia relativa, portanto, além de se revelar na redução do valor da força  
de trabalho, também é gerada por essa vantagem mercadológica, mas apenas momentânea e  
individualmente. Essa mais-valia extra desaparece tão logo esse novo método de produção se  
generaliza entre os demais capitalistas, impelidos que são pela concorrência a inovarem sua  
produção. A partir disso, o que ocorre é a queda tendencial da taxa de lucro e a possibilidade de  
crises, afirmando que o método capitalista de aumento dos lucros se torna uma força disruptiva  
do modo de produção capitalista.  
Considerações finais  
É importante ressaltar que não se trata de eleger a expansão da capacidade produtiva do  
trabalho social por meio da aplicação de tecnologias como o fator que explica a realidade da  
classe trabalhadora, mas de entender seu uso capitalista para o aumento da produção e da  
acumulação. O que defendemos é que a tecnologia é capaz de aprofundar o capital enquanto  
relação social, exponenciando a exploração em proporções nunca experienciada. Trata-se de  
visão em que a exploração e a tecnologia se reforçam mutuamente: ao mesmo passo em que a  
segunda confere poder e domínio à acumulação de capital, este é revertido para aprimorar e  
ampliar as formas de exploração.  
707  
Essa convergência dos elementos está presente na teoria marxiana quando a analisamos  
sobre a perspectiva do controle do tempo. É a partir do desenvolvimento do processo de  
industrialização que a produção capitalista se desvencilha do aumento quantitativo da força de  
trabalho empregada para um aumento qualitativo dos meios de produção; é a partir desse  
momento que o capital toma para si o total domínio do processo produtivo e subjuga o conjunto  
da classe trabalhadora ao seu interesse. Essa transformação da base material da produção e a  
exploração, das quais se origina a lei populacional específica da sociedade burguesa moderna,  
estão imbricadas: se o progresso produtivo possibilita a exponenciação da exploração, esta  
permite a extração da mais-valia, cuja maior parte é revertida em capital para o investimento na  
produção, mas agora em escala ampliada.  
A partir da tecnologia, a exploração não apenas se torna mais extensa, abrangendo  
mulheres e crianças, mas também mais intensa ao comprimir o tempo da produção de  
mercadorias: produz-se mais em um mesmo tempo ou produz-se o mesmo em um tempo menor,  
fazendo com que a linha horária que expressa a jornada global de trabalho se modifique,  
Silvio Aparecido Redon; Eliane Christine Santos de Campos  
operando um deslocamento da marcação dos ponteiros desse relógio social, fazendo com que  
as horas de trabalho excedente se expandam, o que significa menos trabalho necessário e,  
inversamente, mais trabalho não pago, o que significa mais trabalho explorado sob a forma da  
mais-valia. Isso traz no seu verso a necessidade de menos trabalhadores para movimentar uma  
massa sempre crescente de meios de produção: temos o surgimento de um contingente de  
trabalhadores sobrantes às necessidades imediatas do capital, a superpopulação relativa.  
Essas colocações tratam-se apenas de uma releitura de Marx, justificativas que foram  
elencadas para considerar a tecnologia dominada pelo capital como um elemento essencial que  
interage numa totalidade para conformar a realidade da sociedade burguesa. A aproximação de  
seus movimento e dinamicidade, tornando evidente a sua contradição, é esclarecedora e digna  
de todos os esforços teóricos.  
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Libertas, Juiz de Fora, v. 24, n. 2, p. 691-708, jul./dez. 2024. ISSN 1980-8518  
Para uma crítica à “Sociedade de consumo” e  
ao fim da transcendência da alienação em  
Jean Baudrillard  
Towards a critique of “The consumer society” and the end of the  
transcendence of alienation in Jean Baudrillard  
Dariane Cordeiro de Araújo*  
Marlon Garcia da Silva**  
Resumo: O artigo analisa criticamente a obra  
“A sociedade de consumo”, de Jean Baudrillard,  
polemizando contra as teses do autor sobre a  
natureza, as raízes e imbricações do consumo no  
capitalismo da segunda metade do século XX.  
Nesse âmbito, busca retomar teses e argumentos  
Abstract: The article critically analyzes Jean  
Baudrillard's work "The Consumer Society",  
polemicizing against the author's theses on the  
nature and the roots and imbrications of  
consumption in capitalism in the second half of  
the 20th century. In this context, it seeks to  
return to classic theses and arguments of  
marxism, sustaining the impropriety of the  
detachment between the forms of consumption  
and the forms of activity, of production, and  
sociability that matrix and preponderate the  
interactions between partial complexes of the  
economic totality. Thus, Marx's analysis of the  
commodity fetish is unintelligible without  
consideration of commodity production and its  
capitalist specificity, nor can the category of  
alienation and the consideration of its  
conditions of possibility of supersumption be  
sufficiently considered, if they are detached  
from their internal, active, practical-sensible  
and social forms.  
clássicos do marxismo, sustentando  
a
impropriedade das cisões entre as formas do  
consumo e as formas da atividade, da produção  
e
da  
sociabilidade  
matrizadoras  
e
preponderantes das interações entre complexos  
parciais da totalidade econômica. Assim, a  
análise de Marx do fetiche da mercadoria é  
ininteligível sem a consideração da produção  
mercantil e da sua especificidade capitalista,  
tampouco a categoria da alienação e a  
consideração das suas condições de  
possibilidade de suprassunção podem ser  
consideradas suficientemente, se forem  
desvinculadas de suas formas internas, ativas,  
prático-sensíveis e sociais.  
Palavras-chaves: Marxismo; Capitalismo;  
Keywords: Marxism; Capitalism; The  
Sociedade  
Alienação.  
de  
Consumo;  
Mercadoria;  
Consumer Society; Commodity; Alienation.  
*
Bacharel em Serviço Social pela Universidade Federal de Ouro Preto. Pesquisadora bolsista no projeto  
“Qualificação da formação e do exercício profissional de assistentes sociais da região dos Inconfidentes: a arte  
como ferramenta de trabalho nas Proteções Sociais Básica e Especial da Política de Assistência Social”, vinculado  
ao Curso de Serviço Social da Universidade Federal de Ouro Preto. ORCID: https://orcid.org/0009-0005-3796-  
**  
Doutor pela Universidade Federal de Santa Catarina. Professor do Curso de Serviço Social da Universidade  
DOI: 10.34019/1980-8518.2024.v24.43503  
Esta obra está licenciada sob os termos  
Recebido em: 07/02/2024  
Aprovado em: 17/06/2024  
Dariane Cordeiro de Araújo; Marlon Garcia da Silva  
Introdução  
O presente artigo tem em consideração teses filosóficas sensíveis e críticas aos  
fenômenos do fetichismo da mercadoria, da reificação das relações sociais, da alienação e do  
estranhamento, tendo em vista as relações de consumo no capitalismo, especialmente, desde a  
segunda metade do século XX.  
É razoável ponderar que, tanto em termos práticos quanto teóricos, ou seja, tanto no  
evolver crescentemente contraditório do capitalismo, quanto também nas reflexões científicas  
e filosóficas correspondentes, esses fenômenos se tornam mais abrangentes, extensivos e  
intensivos. Considere-se, por exemplo, sua exponenciação na vida urbana no capitalismo  
monopolista no evolver do século XX, bem como, por outro lado, textos filosóficos em grande  
medida voltados a esses fenômenos, desde o seminal História e Consciência de Classe até o  
conjunto de textos críticos redigidos por autores situados no âmbito da chamada Escola de  
Frankfurt.  
O presente artigo reconhece essas elaborações críticas, e traz, polemicamente, em sua  
fundamentação teórica, teses marxistas pouco repercussivas ou mesmo conhecidas na filosofia  
acadêmica e no pensamento filosófico e científico contemporâneos. Nos referimos aqui a teses  
estabelecidas pelo filósofo húngaro marxista György Lukács em sua obra tardia, em especial, a  
ideias e argumentos defendidos pelo autor em Para uma Ontologia do Ser Social1. Nesse  
âmbito, recorre-se também à letra e algumas obras de Karl Marx, para fins de subsídio tanto à  
leitura da teoria e das categorias lukcscianas, quanto para a armação da estrutura crítica geral  
do artigo. Nesta arquitetura, consideramos e analisamos criticamente as elaborações, teses e  
argumentos do inteligente e instigante livro “A Sociedade de Consumo”, de Jean Baudrillard,  
publicado pela primeira vez no ano de 1970.  
710  
O tema proposto consiste no desenvolvimento de um debate crítico tendo em vista o que  
sugerimos como destituição ontológica procedida no texto de Baudrillard. Neste sentido, o  
senso de realidade e a perspicácia do autor francês no tratamento crítico de fenômenos  
contemporâneos como fetichismo e reificação, quando o mesmo busca apreender novas  
determinações e formas de expressão desses fenômenos nas relações de consumo na segunda  
metade do século XX, mostram-se, não obstante certos méritos inequívocos, a nosso ver,  
1 A polêmica obra “Para uma ontologia do ser social”, inacabada e póstuma, na qual o filósofo húngaro marxista  
György Lukács trabalhou de meados dos anos 1960 até o início de 1970, sustenta, em termos inéditos, a existência  
de uma ontologia histórico-materialista e dialética do ser social na obra de Karl Marx, uma ontologia que não  
coincide com metafísica, com absolutos e com invariáveis, na qual a substância é tomada como o que persiste na  
mudança, e as categorias não são meros enunciados sobre “algo que é ou se torna, mas sim partes moventes e  
movidas da própria matéria”, “formas de ser, determinações da existência”, de modo que o seu objeto é “o ser e  
suas transformações” (Lukács, 2014).  
Libertas, Juiz de Fora, v. 24, n. 2, p. 709-733, jul./dez. 2024. ISSN 1980-8518  
Para uma crítica à “Sociedade de consumo” e ao fim da transcendência da alienação em Jean Baudrillard  
parciais, limitados e insuficientes, uma vez que o autor cinde e corta as ilações substantivas  
entre os fenômenos e os processos do consumo com suas determinações mais fundamentais, de  
base, da produção e reprodução do capital e da sociabilidade burguesa como totalidade  
orgânica. É nesse sentido que podemos pensar, em termos iniciais, a referida destituição  
ontológica.  
Buscaremos procedimentos capazes de favorecer e facultar o desvelamento das  
determinações objetivas e subjetivas que se encontram nas bases, nos fundamentos, nas relações  
sociais historicamente travadas, por vias que sugerem, a nosso ver, não só a necessidade do  
estudo de caráter ontológico, no sentido aqui aludido, mas também, articuladamente, da crítica  
ao sistema econômico vigente, capitalista, alicerçado nos imperativos de expropriação da  
riqueza social, socialmente produzida e, por conseguinte, movente e movido nas relações de  
poder e dominação que atravessam as lutas de classes sociais antagônicas.  
O artigo está dividido em quatro tópicos, que correspondem ao desdobramento  
científico da abordagem materialista, histórica e dialética, do objeto delimitado, no âmbito do  
qual são desenvolvidas provocações acerca das formas de ser e de consciência, desde as  
relações do trabalho, da produção e da reprodução social da vida material e subjetiva, suas  
categorias, dinâmicas e regularidades, indissociáveis do contexto histórico e da ordem burguesa  
tomada como totalidade social.  
711  
Nesses movimentos, a análise da obra de Jean Baudrillard permite o desenvolvimento  
preambular de uma crítica que pretende ir além do exame estrito da própria obra. Quer dizer,  
busca-se entender a problemática por trás do pensamento do autor acerca do consumo e das  
relações nele implicadas, um pensamento, a propósito, representativo de tendências importantes  
da chamada teoria social crítica contemporânea.  
Nessas vias, considera-se também, como aludido nestas linhas, certo distanciamento  
que a obra estabelece de um pensamento, por assim dizer, mais radical, no sentido marxiano de  
“ir à raiz” dos fenômenos sociais, aos fundamentos sócio-materiais da produção, sem o que,  
sugerimos, não se pode compreender com clareza, no limite, as relações de consumo, suas  
determinações, desdobramentos e formas de expressão, bem como, não se pode compreender  
tampouco as relações de distribuição e de circulação de mercadorias no capitalismo em geral e  
no período considerado.  
Estas preocupações de base e inquirições pretendem, pois, estender a reflexão a um nível  
de argumentação capaz de situar os fenômenos prático-sensíveis e subjetivos do fetichismo e  
da reificação num quadro analítico mais abrangente, de totalidade social, no qual não sejam  
subestimadas, menos ainda excluídas, as relações sócio-materiais da base produtiva e  
Dariane Cordeiro de Araújo; Marlon Garcia da Silva  
reprodutiva do capitalismo e da sociedade burguesa nas suas conformações complexas,  
especialmente, desde a segunda metade do século XX.  
Sacralização da mercadoria e alienação na sociedade de consumo  
Neste tópico dedicado à análise das teses de Jean Baudrillard no livro “A sociedade de  
consumo”, convém iniciar situando que o autor francês dedica grande parte de suas obras ao  
desvelamento das dinâmicas sociais estabelecidas em face de um contexto histórico moderno  
e, especialmente, contemporâneo, tendo em vista os desdobramentos extensivos e intensivos da  
mundialização do capital e dos fenômenos expressos através da hipertrofia do consumo e da  
chamada cultura de massa.  
Escrevendo num período que consiste entre os anos de 1968 até o início do século XXI,  
Baudrillard desenvolveu uma forte crítica ao consumo e às relações sociais voltadas à lógica da  
mercantilização geral dos produtos humanos, da cultura e da arte, ao passo em que direciona  
importantes provocações acerca dos fenômenos alienantes da virtualidade dos signos, da  
culturalização, da ambiência moderna voltada à fomentação do consumo e, sobretudo, ao que  
ele estabelece como a perda da essência humana em prol da funcionalidade objetificada  
enquanto aspecto central da sociedade moderna.  
Tendo em vista o interesse das presentes reflexões em fomentar um debate que perpassa  
problemas do que estamos sugerindo como destituição ontológica, no sentido brevemente  
aludido nas linhas introdutórias acima, passa-se aqui a uma breve exposição de ideias vertebrais  
do livro “A Sociedade de Consumo” (1970), uma vez que o minucioso estudo feito por  
Baudrillard assume uma firme proposta de crítica à sociedade contemporânea, com vistas a  
desvelar o fenômeno do espelhamento do gênero humano respaldado no feitiço da mercadoria,  
contribuindo de forma considerável para se pensar e discutir a matéria delimitada.  
O livro é dividido em três partes, quais sejam, a primeira, “A liturgia formal do objeto”,  
seguida da “Teoria do consumo”, e de uma terceira parte, “Mass media’, sexo e lazeres”, além  
da conclusão, intitulada “Da alienação contemporânea ao fim do pacto com o diabo”, em que o  
autor, em sintonia com preocupações de certas correntes de pensamento em voga na segunda  
metade do século XX, discorre acerca do caráter mistificador da mercadoria, bem como, do  
aspecto fantasmagórico e oculto que ronda as relações humanas alienadas à lógica do consumo,  
além de abordar noções psicossociais que determinariam o desejo de consumir e, por  
conseguinte, atuariam na esfera social enquanto árbitro das relações sociais.  
712  
A noção de alienação trabalhada por Jean Baudrillard é de suma importância para suas  
teses principais, assim como para as reflexões do presente artigo, visto que possibilita um  
Libertas, Juiz de Fora, v. 24, n. 2, p. 709-733, jul./dez. 2024. ISSN 1980-8518  
Para uma crítica à “Sociedade de consumo” e ao fim da transcendência da alienação em Jean Baudrillard  
diálogo e uma crítica ontológica, de caráter histórico-materialista, como esperamos clarificar  
no andamento crítico da análise ora desenvolvida.  
No início da obra “A sociedade de Consumo”, o autor introduz a crítica à sociedade  
moderna atrelada ao fenômeno da “profusão” do consumo, e o caracteriza enquanto parte  
central e elementar do modo ativo das relações humanas no capitalismo avançado, sendo essas  
as relações estabelecidas entre membros da sociedade, bem como, relações entre o homem e a  
mercadoria. Assim, a cultura, a arte, e as formas subjetivas em geral, são imbricadas em uma  
lógica asfixiante, implícita e alienante, de um sistema societal voltado à produção sistemática e  
ambivalente do consumo, retroagindo, outrossim, seu modo operante e ativo sobre as formas  
de consciência e sobre a subjetividade, tudo imbricado e impulsionado pela publicidade (o  
chamado “mass media”, e os “fait divers”)2.  
Tal contexto supõe a “sacralização da mercadoria”, tida enquanto mito, que vai além  
das formas figurativas e distantes da religião, isto é, um mito observado e abstraído da realidade,  
que se põe para além da cultura espontânea, e é absorvida no imaginário coletivo como principal  
alicerce da sociedade moderna.  
A análise de Baudrillard acerca da mistificação por trás do objeto, revela uma sociedade  
em vertigem, bem como, desprovida de razões e métodos para subverter a realidade duramente  
imposta pelo sistema integrado à produção de lucro e à manipulação psicossocial de sujeitos  
que conhecem apenas a realidade fantástica da amálgama de objetos que os cercam. Nesse  
sentido, o autor considera que “a prática dos signos é sempre ambivalente” e “tem como função  
esconjurar”, num “duplo sentido”, qual seja, “fazer surgir”, emergir, “para captar por signos (as  
forças do real, a felicidade, etc.) e evocar algo para recalcar”, de modo que “o pensamento  
mágico nos mitos procura conjurar a mudança na história” (Baudrillard, 1970, p. 23).  
Desse modo, a panóplia3, o drugstore4, e as fileiras de mercadorias presentes no mundo  
moderno, correspondem a  
713  
uma corrente de produtos que se fortalecem enquanto feitiço, enquanto  
representação fantástica que contém em si, no nível mais profundo de  
abstração, a exteriorização do gênero humano no ato de espelhamento que  
2 “Fait Divers” consiste em um termo jornalístico que corresponde a notícias que contém informações de gênero  
extraordinário. Jean Baudrillard entende a importância na atuação das fait divers para o mass media, uma vez que,  
esta categoria é tida enquanto molde para a interpretação lúdica fantasiosa que os veículos de informação usam,  
no intuito de manipular as massas.  
3 Apalavra “Panóplia”, que originalmente era utilizada para designar o conjunto da armadura de um soldado grego,  
contemporaneamente, designa um agrupamento de coisas de mesma categoria, remetendo à abundância e  
afluência. Baudrillard usa o termo para designar a coleção profusa de mercadorias que se organizam e amontoam-  
se de forma estratégica para instigar o consumo.  
4
O “drugstore” é um centro comercial que, para Baudrillard, reúne em si a síntese simples da profusão da  
mercadoria, com o cálculo lógico e estratégico de objetos, ou seja, um ambiente estrategicamente criado e  
aperfeiçoado para contemplar a abundância de mercadorias e a afluência do consumo.  
Dariane Cordeiro de Araújo; Marlon Garcia da Silva  
ultrapassa a identidade própria do sujeito, e encarna em um mundo  
materializado através dos signos, mistificações e da sacralização da  
mercadoria (Araújo, 2023, p. 14).  
Em “A liturgia formal do objeto” (Baudrillard, 1970, p. 23), o autor desenvolve uma  
forte crítica ao consumo enquanto regulador das relações sociais, e afirma que a produção  
humana se torna tão escrava do consumo de forma a criar, no imaginário moderno, a  
representação do significado do objeto, pautada em uma fantasia inesgotável, imbricada a uma  
logicidade danosa das representações simbólicas na ordem societária vigente, ao passo em que  
é manipulada e impulsionada pela criação de shopping centers, lojas e vitrines decorativas que  
compreendem parte de uma ambiência pensada ou manipulada para a produção do consumo;  
simbolizando, ao menos, a insultuosa evidência de que o desejo humano pelo consumo se esvai  
para além da necessidade: é pautado na demasia e na naturalização de signos.  
Em aproximações à relação entre produção e consumo, pode-se entender que o autor  
considera que o domínio ideológico das representações fantásticas da mercadoria não quer  
dizer, necessariamente, que as relações sociais não se conformem sob o imperativo categórico,  
econômico e político de uma dinâmica específica de produção social. Entretanto, pode-se  
entender também que Baudrillard estabelece, inexoravelmente, que a sociabilidade é integrada  
a uma ordem meticulosa e alicerçada nas bases do consumo, que se expande e prepondera para  
além da ordem de produção, uma vez que, a ordem do consumo e da sociabilidade é movente-  
movida pelos princípios e imperativos dos signos, do pensamento mágico e sensível.  
714  
No item “O estatuto miraculoso do consumo” (Baudrillard, 1970, p. 23), o autor expõe  
o “mito dos melanésios”, propondo uma analogia entre os sujeitos que integram a sociabilidade  
profilática do sistema vigente e os indígenas melanésios: no mito exposto pelo autor, os  
indígenas, apontados como “primitivos”, passavam grande parte do tempo a observar os aviões  
que sobrevoavam suas casas e sempre pousavam distantes, onde os brancos estavam. Nessa  
situação, os indígenas decidiram montar um simulacro de pista de pouso, na esperança de que  
o avião enfim pousasse em sua ilha. Baudrillard procura, através deste e de outros mitos ao  
longo do livro (Baudrillard, 1970, p. 22), evidenciar que existe um estatuto categórico que  
obedece ao amálgama de mercadorias do mundo contemporâneo, e que consiste na criação de  
um simulacro da vida moderna, que instiga a esperança do consumidor, correspondendo à uma  
“ludicidade mágica que governa o imperativo do consumo pautado na mentalidade primitiva e  
automatizada” (Araújo, 2023, p. 16), ou seja, uma ludicidade responsiva à fantasia miraculosa  
do consumo, que infere o desejo pelo objeto, baseando-se decisivamente na crença irracional  
na superioridade de um amálgama de signos, ilusoriamente antecipando a felicidade e satisfação  
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Para uma crítica à “Sociedade de consumo” e ao fim da transcendência da alienação em Jean Baudrillard  
de possuir um objeto baseado em uma significação subjetiva, colocando em evidência a relação  
de fruição com a possibilidade do objeto, uma satisfação virtual e abstrata.  
O objetivo desta analogia consiste na afirmação de que o consumidor e o  
indígena se amparam, não na apropriação da coisa em si, mas na captação  
fantástica e imagética de que, segundo a lógica milagrosa, o desejo do  
consumo possa antepor e proporcionar uma satisfação de potência superior à  
da realização concreta em si (Araújo, 2023, p. 16-17).  
Assim, uma vez que opera no imaginário coletivo uma liturgia cega e fantasmagórica  
da profusão de objetos, é imprescindível constatar que o prazer real, diferenciado da lógica  
mercantil, não está presente na realidade concreta da sociabilidade vigente. Esse prazer, assim  
como tantas outras categorias humanas (felicidade, liberdade, lazer, igualdade), consiste  
unicamente no espelhamento de suas representações abstratas, condicionadas ao mito do prazer  
através do consumo. A liberdade, falsa sensação de individualização que é embutida no  
imaginário coletivo e que assume o papel mistificado de “liberdade de escolha”, não se dá  
concretamente, pois que não há escolha autêntica, uma vez que o sistema, de antemão,  
condiciona e impõe vontades, sentimentos e ideias, etc., de caráter abstrato-mistificador.  
No que concerne ao tema da produção humana e socialmente voltada à profusão da  
mercadoria, Baudrillard postula que o processo de racionalização das forças produtivas, no  
capitalismo, favorece o mito de que a sociedade percorre constantemente processos de caráter  
revolucionário, mas na realidade, também isso constitui-se, para o autor, apenas como um  
simulacro, uma vez que condiciona um processo geral muito maior atrelado a um sistema de  
valores determinados que nunca se revolucionou efetivamente.  
715  
O que poderia ser uma revolução humana, social, na era da ambiência e dominância dos  
objetos, seria apenas algo esvaziado de conteúdo real e concreto, portanto, longe de ser  
concebido enquanto possibilidade real. O Estado mantém, nesse sistema, o papel de árbitro das  
relações sociais, que nada faz além de conservar as desigualdades e vender a falsa sensação de  
igualdade.  
Baudrillard entende que a sociedade não é constituída de tendências naturais  
harmoniosas, defendendo que existe um sistema de castas entendido dentro de uma separação  
entre grupos que se organizam e manipulam as necessidades sociais.  
Desse modo, não se pode analisar a relação do indivíduo empírico-imediatamente ao  
objeto, ao contrário, deve-se entender que existe um sistema de necessidades condicionadas,  
que não necessariamente dependem do indivíduo para serem concebidas, onde o sistema  
ambivalente de signos se torna tão central que ultrapassa e manipula as reais necessidades dos  
indivíduos, aglutinando o processo de produção da consciência individual enquanto dependente  
Dariane Cordeiro de Araújo; Marlon Garcia da Silva  
da relação de reflexos exteriores da significação dos signos atrelados à arbitrariedade de um  
sistema condicionado de consumo, sugerindo a existência de um sentido semiológico e  
intercambiável entre as formas condicionadas à realidade, e a abstração da consciência  
individual.  
Baudrillard, durante toda a exposição e desenvolvimento das teses e argumentos do  
livro, exprime a noção de que a prática do consumo no grande quadro social contemporâneo  
consiste nas novas formas de consciência moldadas através da profusão da mercadoria,  
imbricadas no desenvolvimento de uma consciência coletiva voltada à abstração do objeto e  
das demais relações sociais que se seguem.  
Existe, em Baudrillard, uma forte alusão à evolução da humanidade de forma  
progressiva e material que obedece ao imperativo dos objetos e das significações  
psicologizantes que rodeiam o espectro cultural-histórico. A relação entre a finitude de objetos  
(o fim da vida útil de um produto), e o espelhamento social neste curto ciclo, presume a ideia  
de que, subjetivamente, a sociedade moderna vive em ciclos curtos nas suas relações sociais,  
afetivas e de trabalho, pautados, essencialmente no tempo dos objetos.  
O autor sustenta um fluxo de pensamento voltado a entender criticamente a lógica da  
sociedade de consumo como autossustentável, uma vez que esta depende dos marcadores de  
miséria e fome para que o milagre do objeto e que a simulacro da realidade objetiva continue  
impelindo, no ciclo que corresponde ao movimento material da sociedade moderna, a  
fetichização do objeto.  
716  
Assim, e, à medida em que a pobreza e a desigualdade reúnem, enquanto problema  
residual de tal movimento, a integralização do sistema, correspondendo à fomentação de um  
sistema cultural e político moderno que reafirma a ideia de “forças produtivas”, tais estruturas  
sociais seriam, em tese, capazes de manter, junto à noção do simulacro do objeto, o que o autor  
denomina como “sistema industrial de pobreza”.  
A noção dos direitos ao trabalho e à propriedade residem essencialmente a esta lógica:  
“não há direito ao espaço senão a partir do momento em que já não existe espaço para todos”  
(Baudrillard, 1970, p. 57). Assim, o autor afirma que os direitos humanos são falsos, e que  
correspondem à narrativa ilusória do mito da abundância; quando cita o “direito ao ar puro”  
demonstra, através do exemplo, que transformar algo que naturalmente já existe em direito é o  
mesmo que desnaturaliza-lo, mercantilizando bem naturais, que passam agora a integrar a  
categoria de bem útil e indispensável, porém raro, fazendo parte de uma divisão de consumo  
que acomoda uma redistribuição social desigual. Baudrillard pensa que constitui um traço  
básico do capitalismo: a passagem de bens naturais a bens de consumo, a necessidade de  
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Para uma crítica à “Sociedade de consumo” e ao fim da transcendência da alienação em Jean Baudrillard  
transformar o que é o direito natural do homem a um direito adquirido em meio a concessões  
previamente julgadas, ou seja, a fomentação da desnaturalização do real e natural, e uma  
naturalização de ideário místico e falso (Araújo, 2023, p. 24).  
É importante frisar o trato que Baudrillard invoca ao conceito do “fetichismo”, dado o  
contexto e sua linha própria de pensamento; é necessário se atentar ao fato de que o feitiço da  
mercadoria, que se constitui enquanto principal ideologia que sustenta teoricamente a sociedade  
da abundância, advém da relação de dependência das estruturas sociais ao objeto, e não rondam  
o espectro das relações sociais do trabalho em si, embora, na visão do autor, a divisão social do  
trabalho e a propriedade privada estejam essencialmente interligadas na lógica sufocante do  
consumo. O feitiço aqui reside na relação das formas de consciência imbricadas ao sistema  
cultural, histórico e político da ambivalência dos signos do consumo, enquanto fenômeno  
psicológico fomentado a partir dessa lógica, assim, estes são os pontos principais da crítica que  
o autor desenvolve durante toda a obra.  
Tendo isso em vista, Jean Baudrillard problematiza a passividade da sociedade moderna  
referentes às questões voltadas ao sistema social opressor, uma vez esta reside na conformidade  
jocosa com o sistema, e, numa análise quase que psicológica, o autor discorre acerca de uma  
conversão de sentimentos que, em forma de permuta, são perpassados por vários sintomas  
psicossomáticos, (a náusea, a melancolia, o estranhamento etc) e se assemelham com a lógica  
do consumo, ou seja: multiplicam-se, confundem-se em si mesmas e distanciam-se cada vez  
mais do real objeto de angústia. Todos esses processos caminham no sentido da desconstrução  
e dissociação da ambivalência do desejo, uma vez que a somatização negativa do desejo  
desemboca em reações negativas (violência e fadiga), ao passo em que a desconstrução positiva  
de tais males constitui a vazão às necessidades e satisfações mitológicas.  
717  
Baudrillard assume que a relação incessante de elementos opostos e contraditórios não  
é explicada pela antropologia necessitante de maior análise dos fenômenos aqui tratados,  
perpassando pelo entendimento do consumo enquanto processo global de conversão, de  
transferência e inversão simbólica de uma carência projetada na abundância de objetos, bem  
como, a necessidade de uma análise que leve em consideração a generalização da teoria do  
objeto parcial aos processos de somatização, sendo assim, examinando a intercorrência entre  
vivência de um indivíduo na esfera material e subjetiva, que o leva, dentre todas as vias, a  
tornar-se também um mero objeto desta lógica violenta a que se respalda a sociedade moderna  
de consumo.  
É possível aferir, acompanhando as teses do autor, que a humanidade, acometida por  
um estado geral de angústia e melancolia, segue o ímpeto do consumo através de gatilhos  
Dariane Cordeiro de Araújo; Marlon Garcia da Silva  
disparados nos âmbitos psicológico e imaginativo, uma vez que se atribui aos signos a  
significação das relações sociais que são alicerçadas nessa dinâmica das trocas abstratas,  
mercantis. Para Baudrillard, existe e persiste na humanidade uma interpretação ilusória e  
inquebrável, relacionada ao espelhamento da sociedade em formas fantásticas e inalcançáveis.  
Tendo isso em vista, no tópico de desfecho do livro, a “Conclusão”, intitulada “Da  
alienação contemporânea ao fim do pacto com o Diabo” (p. 199), Jean Baudrillard procura  
explorar a relação entre o indivíduo e a sua representação fantasmagórica e imagética, resultado  
das dinâmicas imbricadas na lógica mistificadora do objeto. A dicotomia e a inversão entre o  
real e o abstrato evidenciam as problemáticas que rondam o inquebrável vínculo entre o mundo  
externo e o sujeito particular.  
Convém aqui mencionar, em termos breves, que o autor, em sua argumentação, faz uma  
incursão e uma analogia com o filme “O estudante de Praga” (1913), dirigido pelo dinamarquês  
Stellan Rye, e codirigido por Paul Wegener, cuja história mostra a vida de um estudante que,  
tendo poucos recursos materiais-financeiros, faz um pacto com o Diabo: vende sua própria  
imagem em troca de muito dinheiro. Todavia, desde então, o estudante se depara com a sua  
própria imagem, seu espectro fantasmagórico, usurpando o seu ser no mundo, numa situação  
cada vez mais inversora e insuportável, que leva o estudante a iniciativas para matar a  
duplicação fantasmagórica de si. Na cena final, atirando na imagem, quem morre é o próprio  
estudante.  
718  
Tal nível de abstração é de extrema importância para concluir a articulação dos  
conceitos que o autor constrói na argumentação que atravessa o livro. É nesta parte final que  
Baudrillard, fazendo uma analogia com o filme citado, procura destrinchar a alienação enquanto  
a evidência de que o indivíduo, sob o imperativo do consumo no mundo contemporâneo, tem a  
representação e a significação de si mesmo externalizada, alienada, objetificada e perdida.  
Uma vez que a profusão do consumo mantém o movimento das dinâmicas sociais  
fantásticas, Baudrillard compreende que tudo que se perde em termos de vida social e concreta  
se mantém intacto na esfera privada e abstrata da existência humana.  
A humanidade, subordinada a viver sob os inúmeros imperativos condicionantes do  
sistema de consumo, é intrinsecamente condicionada a viver, portanto, sob a impossibilidade  
de afirmar, mas também de negar, a essência real e concreta de si própria. Esta que se perde, se  
autonomiza, ganha vida própria, voltando-se contra e assombrando os próprios seres humanos.  
Em decorrência, é muito importante citar o item “Fim da transcendência” (Baudrillard,  
1970, p. 134), em que o autor francês reitera a concepção de que o fator que determina as  
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Para uma crítica à “Sociedade de consumo” e ao fim da transcendência da alienação em Jean Baudrillard  
relações sociais e que ronda o espectro da cotidianidade é pautado, necessariamente, num  
conjunto de representações e significações subjetivas, sígnicas e abstratas.  
Jean Baudrillard afere que a sistematização da profusão do consumo, sob o signo da  
mercadoria, demonstra que a era da alienação é tão ofuscante e hiperbólica que todos os  
aspectos da cotidianidade e das relações sociais são subjugados à lógica da representação  
imagética da vida humana através do imperativo dos signos.  
A alienação, à vista disso, protagoniza um momento desviante do que seria a essência  
humana, onde, alicerçada nas formas espelhadas e fantasmagóricas dos signos, tem-se a noção  
de que a alienação generaliza a vida humana a tal ponto que não exista mais alma, nem luta,  
nem a possibilidade de superação desse estado de coisas.  
Dá-se apenas a emissão e a recepção de signos, abolindo-se o ser individual  
no interior dessa combinatória e no cálculo de signos… O homem do consumo  
nunca encontra-se perante as próprias necessidades, como também se vê  
jamais diante do produto de seu trabalho, também nunca se defronta com a  
própria imagem: é a imagem do signos que o ordena. Acabou-se a  
transcendência, a finalidade, o objetivo: a característica de tal sociedade é a  
ausência de reflexão e de perspectiva sobre si própria (Baudrillard, 1970. p.  
206).  
O autor considera, pois, que no capitalismo contemporâneo, na sociedade de consumo,  
caracterizada como uma “sociedade pós-industrial”, de “abundância”, “profusão” e “panóplia”  
das mercadorias, o próprio “duplo” de si dos produtores, se multiplica infinitamente sob formas  
sígnicas, tornando muito mais abrangente, complexo e ativo o problema e a vigência da  
alienação, interditando qualquer possibilidade de reversão dessa situação, nos circuitos  
fechados da imersão humana na imanência do consumo.  
719  
A categoria da alienação em Marx  
Nesta sessão, o estudo tem por objetivo tratar de forma preambular, breve,  
aproximativa, reflexões de Karl Marx em torno das categorias “alienação” e “estranhamento”,  
bem como das análises que o autor faz sobre a mercadoria, e sobre as formas de consciência  
humana implicadas nessas bases sócio-materiais e relações, especialmente, na sociabilidade  
burguesa.  
Convém começar com uma breve incursão por um texto bastante recuado das  
elaborações do autor, os chamados “Manuscritos Econômicos e Filosóficos”, de 1844, mais  
especificamente, por algumas referências ao tópico “Trabalho estranhado e propriedade  
Dariane Cordeiro de Araújo; Marlon Garcia da Silva  
privada” (Marx, 2008, p. 79), onde Marx inaugura o desvelamento de temas que serão  
desenvolvidos com mais determinações em suas obras posteriores5.  
Pode-se considerar que o fato de Marx, nos processos formativos de um pensamento  
original, ter sido influenciado inicialmente por elaborações filosóficas, especialmente aquelas  
formuladas por Hegel, para só depois mergulhar a fundo em elaborações de caráter, por assim  
dizer, mais especializado e científico, notadamente, nas suas incursões pelo campo da crítica da  
economia política, converge para o surgimento de um tipo específico de teoria social,  
caracteristicamente abrangente, ou seja, interessado em situar não apenas o “como” dos objetos  
investigados, no caso, a sociedade capitalista e suas categorias, mas também o seu “que” e o  
seu “de onde para onde”.  
Essas considerações são importantes para antecipar referências a possíveis críticas que  
tendem a datar e descartar como anacrônica uma teoria social pretensamente superada, que, no  
entanto, é bastante cuidadosa, por exemplo, em investigar as formas determinativas originárias,  
bem como certas regularidades e continuidades que persistem nas mudanças histórico-sociais,  
isso quando se tem em vista formações e formas de sociedades diversas, e também quando se  
consideram as próprias metamorfoses internas à ordem do capital e do capitalismo, cujas leis  
gerais e essenciais têm se mostrado persistentes nas mudanças, por assim dizer, de caráter  
histórico-fenomênico.  
720  
A nosso ver, uma leitura isenta de preconceitos ideológicos gnosio-epistêmicos, de  
juízos extrínsecos ou formados a priori, da obra de Marx, desde os seus textos de juventude,  
põe em evidência a referida capacidade abarcadora e os tipos diversos de vias que o pensamento  
do autor percorre e perscruta na decifração da realidade social com a qual se defronta.  
Avesso a pontos de partida absolutos, nos “Manuscritos econômico-filosóficos”, o autor  
consolida e desenvolve aquisições precedentes obtidas de confrontos com as filosofias de  
matriz idealista e de matriz materialista, em diversos de seus expoentes, especialmente os  
modernos, e crava que em suas análises o ponto de partida é um “fato político-econômico  
atual”, constatado por vias empíricas, qual seja, a relação de externalidade hostil” “entre  
produtor e produtodo trabalho, nas relações da propriedade privada capitalista (Silva, 2018,  
p. 43). O termo alemão que expressa essa relação é Entfremdung, por vezes traduzido em  
5
Como é sabido, textos importantes de Marx, como “Manuscritos econômico-filosóficos” e a íntegra de “A  
ideologia Alemã”, entre outros, só vieram a público no início dos anos 1930. Desde então, as posições diante da  
leitura desses textos repercutiram sobre tipos diversos de marxismo que se desdobraram no século XX. Assumimos  
aqui a posição que compreende que esses textos têm muito a contribuir com a abrangência e a potência do alcance  
da teoria social de Marx, atravessada por reflexões e elaborações de caráter filosófico, científico e político.  
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Para uma crítica à “Sociedade de consumo” e ao fim da transcendência da alienação em Jean Baudrillard  
português por estranhamento, tendência mais contemporânea que parece, a nosso ver, mais  
apropriada e precisa.  
Essa relação da externalidade hostil compreende uma forma mais fundamental, interna  
e ativa, onde a atuação transformadora da atividade humana, sensível, consciente e social,  
traduz o processo e as resultantes pelos quais o emprego, a externação e a transferência das  
energias corporais, físicas e mentais, dos produtores, se objetivam como perda, materializadas  
nos objetos produzidos, nas relações da propriedade privada capitalista, nas quais esses  
produtos da riqueza socialmente objetivada é propriedade privada, nos termos de Marx, de  
outrém, do capitalista. Essa exteriorização ou externação e objetivação de forças vitais dos  
produtores e do trabalho como transferência e perda caracterizam, para o autor dos Manuscritos  
de 1844, o trabalho alienado, a forma ativa e as determinações mais fundamentais da alienação  
[Entäusserung], imbricadas ao fenômeno do estranhamento, na formação, pois, de um par  
categorial inextrincável.  
Para os propósitos da argumentação que interessa ressaltar aqui, essas elaborações em  
torno da alienação e do estranhamento, que constituem o centro nervoso desses Manuscritos,  
deixam claro o amálgama entre forma de atividade e de ser e formas de consciência. Chama a  
atenção o tipo enérgico de elaboração teórica do autor, a força e a energia de arrancar de  
expressões materiais prático-sensíveis e cotidianas, de caráter marcadamente fenomênico, para  
a escavação de determinações e articulações mais mediadas e ocultas sob a aparência, para  
alcançar, por esses movimentos, generalizações caracteristicamente filosóficas (Silva, 2018, p.  
33), tais como o enunciado de acordo com o qual “na forma da atividade reside o caráter de  
uma species” (Marx, 2008, p. 84).  
721  
Note-se ainda que esta generalização é desdobrada, nesses mesmos Manuscritos, em  
duas direções: em comparações da forma da atividade no âmbito das formas de ser da natureza  
em geral, tendo em vista e consideração, especialmente, a natureza orgânica e os animais  
superiores, e na direção, ainda e principalmente, das formas concretas da atividade, da  
sociabilidade, dos sentidos, sentimentos e formas de consciência sociais, do seu engendramento  
prático-sensível às suas formas mais mediadas e abstratas.  
Não é difícil perceber que esse tipo de elaboração é avesso, ressalte-se, por princípio, a  
quaisquer procedimentos teóricos que, de alguma forma, cindem os planos da objetividade  
social, tomada como unidade contraditória de materialidade e processualidade, e da  
subjetividade social, e isso por uma razão relativamente simples: as formas da subjetividade  
são, elas próprias, constituídas e desdobradas, desde suas raízes, no chão das relações de  
Dariane Cordeiro de Araújo; Marlon Garcia da Silva  
produção e reprodução da vida social, afirmadas, pois, como predicados constitutivos e  
entificadores da própria forma de ser, em circunstâncias históricas determinadas.  
É claro que, em termos mais concretos, a consciência pode imaginar ser algo distinto do  
ser consciente, seja em formações e formas de sociedade mais recuadas, de parcas forças  
produtivas próprias, seja em formações e formas de sociedades mais complexas, como a  
capitalista, burguesa, na qual também, conforme a argumentação em curso, os produtos  
dominam os produtores, na forma de riqueza social materializada em mercadoria, dinheiro,  
capital.  
Na argumentação bastante sumária aqui procedida, tendo em vista fins mais estritos de  
estabelecer elaborações e posições instigantes e, nosso ver, instrutivas, de Marx sobre a  
categoria da “alienação”, posições distintas daquela estabelecida, por exemplo, por Jean  
Baudrillard, talvez seja suficiente ressaltar uma forma principal pela qual as forças e formas da  
atividade social são usurpadas, objetivadas, materializadas, nas aludidas relações de alienação  
e estranhamento, abarcadoras da prática sensível e das formas da consciência: nos referimos  
aqui a elaborações germinais do autor sobre o dinheiro, analisado e decifrado em termos  
afloratórios a partir de suas expressões fenomênicas no advento e consolidação da modernidade  
burguesa.  
Neste sentido, pode-se indicar, por exemplo, o poder inversor do dinheiro que,  
“enquanto conceito existente e atuante do valor, confunde e troca todas as coisas, ele é então a  
confusão e a troca universal de todas as coisas, portanto, o mundo invertido, a confusão e a  
troca de todas as qualidades naturais e humanas” (Marx, 2008, p. 38).  
722  
Ocorre que, para o autor, a natureza, o poder e a função social do dinheiro se coadunam  
com “a propriedade privada material, imediatamente sensível”, quer dizer, é a “expressão  
material-sensível da vida humana estranhada”, na forma da atividade e da sociabilidade. Neste  
ponto, Marx considera que o movimento da propriedade privada, “a produção e o consumo”,  
“é a manifestação sensível do movimento de toda a produção até aqui, isto é, realização ou  
efetividade do homem”, de modo que “Religião, família, Estado, direito, moral, ciência, arte  
etc. são apenas formas particulares da produção e caem sob sua lei geral” (Marx, 2008, p. 106).  
Destacamos linhas acima a força que os princípios assumidos por esse tipo de  
construção teórica desempenham na apreensão razoável de ordens determinativas, de  
articulações, interações e relações de reciprocidade entre os complexos sociais gerais, no âmbito  
dos quais o complexo socio-material da economia e, nele, o complexo da produção,  
desempenham, na conformação de elos tônicos e sobredeterminantes das formas, modos e  
direção de uma totalidade social determinada.  
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Para uma crítica à “Sociedade de consumo” e ao fim da transcendência da alienação em Jean Baudrillard  
Com isso, queremos sugerir, em termos iniciais, um quadro de referência alternativo ao  
estabelecido por Baudrillard em a Sociedade de consumo, um quadro obtido a partir do que,  
polemicamente, estamos sugerindo como sendo uma elaboração de caráter ontológico  
materialista, histórico e dialético, enquanto tal, interessante de ser visitado, pensado e discutido.  
A nosso ver, o estudo introdutório apresentado nas linhas acima pode ser articulado com  
elaborações e aquisições da obra posterior de Karl Marx, como os chamados “Grundrisse”  
(1857), e também, especialmente, “O Capital - Volume I” (1867), especificamente o primeiro  
capítulo, intitulado “A Mercadoria”, com o que se pode avançar no debate proposto.  
Duplo caráter da mercadoria e fetichismo  
Tendo em vista os limites e o escopo do presente artigo, passaremos, suprimindo  
mediações, a considerar algumas elaborações principais avançadas em escritos de maturidade  
de Marx, notadamente, aquelas que se apresentam na obra magna do autor, “O Capital”.  
Em relação aos interesses delimitados nas presentes reflexões, a apresentação dos nexos  
que compõem o entendimento da forma mercadoria e das formas de valor é de extrema  
importância, uma vez que é através dessa análise basilar que se torna possível compreender a  
relação fantasmagórica que ronda o espectro da mercadoria, sua profusão, a mistificação que  
ronda as formas de valor, no que diz respeito à abstração da real forma da mercadoria,  
desembocando no que o autor classifica como “fetichismo”. Assim, a investigação da forma  
mercadoria e suas determinações perpassa, primeiramente, pela análise de sua forma elementar,  
a fim de levar luz acerca do entendimento da realidade da profusão desses objetos enquanto  
determinadas por um processo histórico, social e ativo, bem como, desvelar o véu místico que  
cobre a verdade sobre esse processo.  
723  
É importante reiterar que o autor considera as propriedades físicas da mercadoria  
enquanto seu valor de uso, categoria sensível e material que incorpora sua evidente função útil  
enquanto objeto externo de uso humano, não só para satisfazer as necessidades materiais, mas  
também as psíquicas, intelectuais etc.  
Isso dito, Marx reitera que, por outro lado, a forma do valor abstrato da mercadoria  
reside na condição socialmente determinada pela realidade que se apresenta aos indivíduos em  
um contexto específico de tempo e espaço e do desenvolvimento da atividade produtiva  
socialmente necessária, de modo que o valor é advindo da relação de troca entre mercadorias.  
O valor abstrato (sensível-suprassensível) embutido e corporificado na mercadoria é  
nada mais que o valor de troca, abstraídas as diferenças específicas entre valores de usos  
distintos, concretos, bem como abstraída a própria dimensão concreta de trabalhos distintos,  
Dariane Cordeiro de Araújo; Marlon Garcia da Silva  
reduzidos a dispêndio de energias corporais no tempo, e sua coagulação dos produtos do  
trabalho.  
Assim, a constituição e a profusão da mercadoria compreendem também, em suas  
formas originárias e fundamentais, a função de suporte material e sensível do amálgama de  
objetos que carregam e expressam o valor de troca.  
É na qualidade de razão quantitativa, que o valor de troca supõe a troca simultânea de  
um valor de uso com outro valor de uso de diferente característica e função (1 tonelada de ferro  
= 1 braça de linho), o que, em análises mais desenvolvidas, permite a compreensão de que o  
trabalho empregado em diferentes mercadorias e feito por diferentes indivíduos, no cálculo  
geral do valor, é, também, igualado e mediado apenas pela grandeza do valor: o tempo.  
Em geral, o tempo de trabalho humano socialmente necessário em certas circunstâncias  
é o determinante da grandeza do valor do produto, evidenciando que o tempo do processo de  
produção de um determinado produto é equivalente, em valor, com o processo de um produto  
distinto desde que ambos demandem o mesmo tempo em suas produções. Assim, a mercadoria,  
enquanto valor, é uma forma complexa que compreende em si o tempo de trabalho socialmente  
necessário e o trabalho fundido e cristalizado na materialização do objeto, ou seja, o dispêndio  
de energia vital e corporal do trabalhador. Sobre essa dinâmica de igualização abstrata dos  
produtos do trabalho, e, consequentemente, dos próprios trabalhos e da atividade humana, Marx  
exprime:  
724  
Se abstrairmos seu valor de uso, observamos também os componentes e  
formas corpóreos que fazem dele um valor de uso. O produto não é mais uma  
mesa, uma casa, um fio, ou qualquer outra coisa útil, Todas as suas qualidades  
sensíveis foram apagadas. E também já não é mais o produto do carpinteiro,  
do pedreiro, do fiandeiro ou de qualquer outro trabalho produtivo  
determinado. Com o caráter útil dos produtos do trabalho desaparece o caráter  
útil dos trabalhos neles representados, e, portanto, também as diferentes  
formas concretas desses trabalhos, que não mais se distinguem uns dos outros,  
sendo todos reduzidos a trabalho humano igual, a trabalho humano abstrato.  
(Marx, 1957. p. 98).  
É importante ressaltar que Marx discorre acerca do valor, não enquanto conceito criado  
para método de análise, mas compreendendo-o enquanto categoria, antes de tudo, existente em  
si, na realidade, enquanto aspecto velado de uma relação social pautada na troca de mercadorias  
que, por sua vez, obedecem a uma lógica quantitativa, de indiferença e equivalência.  
Logo, o valor, enquanto resultado das determinações das dinâmicas estabelecidas na  
sociabilidade, é materializado e expresso na relação mercadológica que reside no dispêndio da  
força de trabalho humano para a criação da forma sensível da mercantil abstrata. O valor tem,  
assim, caráter histórico-social.  
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Para uma crítica à “Sociedade de consumo” e ao fim da transcendência da alienação em Jean Baudrillard  
Em suma, é necessário enfatizar: a mercadoria é uma unidade contraditória de valor de  
uso, corpo físico material e sensível, e, valor, fenômeno abstrato que se expressa através da  
troca e que, enquanto determinado socialmente pelas relações sociais que são estabelecidas,  
carrega em si o trabalho humano como base fundamental, uma vez que este é caracterizado  
como substância comum entre todas as mercadorias, na equação do valor.  
A análise da forma sensível-suprassensível da mercadoria, permite, em uma visão  
crítica, a compreensão da esfera dicotômica que ronda o objeto: para além de seu valor útil,  
corporificado e material, a mercadoria exprime em si a dinâmica abstrata e “metafísica” pautada  
e desenvolvida através de determinações histórico-sociais que se fundamentam na substância  
principal e intransferível do trabalho.  
Assim, ter em vista o exame que Marx afere à elementaridade da mercadoria, que a  
desvela como complexo social, até o desdobramento em formas de valor, permite, entre outras  
coisas, entender que as relações da atividade enquanto transferência e dispêndio de forças e  
energias corporais, na sociedade capitalista, obedecem ao imperativo de relações sociais  
reificadas, posto que estas giram em torno da produção de valores econômicos abstratos, em  
detrimento das relações sociais, humanas, concretas.  
O desvelamento da forma mercadoria comporta o entendimento de que o produto do  
trabalho não só atende às necessidades materiais concretas de dada organização social, e  
tampouco existe somente enquanto forma natural da atividade humana, mas que, ademais, o  
caráter fantasmagórico e oculto da mercadoria, revelado pelo estudo de crítica de economia  
política empreendido pelo autor, fornece as bases para a compreensão das formas de relações  
sociais, subjetivas e objetivas, necessariamente ligadas a dinâmicas sociais desenvolvidas na  
sociabilidade do capital.  
725  
Logo, a objetivação da atividade laboral, a equivalência atribuída aos trabalhos  
distintos, específicos, obedecendo à razão quantitativa e temporal no movimento de troca,  
explicita a necessidade ímpar de desvelar os nexos que se estabelecem no tocante às relações  
humanas com o objeto de uso, bem como, com a própria atividade produtiva.  
Pode-se considerar que é da maior importância se ater ao fato de que, levando em conta  
uma ordem societária que se sobrepõe através de determinações sociais do trabalho, a atividade  
produtiva é necessariamente atrelada às objetivações típicas do modo de produção. Estando  
subordinada em razão do caráter duplo da mercadoria, e, por conseguinte, o caráter duplo da  
própria atividade, é importante perceber que as relações estabelecidas nesta sociabilidade  
obedecem aos imperativos das mercadorias: são relações entre coisas.  
Dariane Cordeiro de Araújo; Marlon Garcia da Silva  
O fetichismo, em Marx, consiste no processo que se dá a partir da reificação de relações  
sociais entre produtores de mercadoria. Assim, o autor é perspicaz ao analisar que o espírito  
oculto da mercadoria reverbera o objeto enquanto forma fantasmagórica das próprias relações  
sociais, como um espelho que reflete a relação mercadológica que os produtos estabelecem na  
grande cadeia de objetos, uma vez que estes relacionam-se entre si pelos processos de  
valorização.  
Tendo isso em vista, é importante reiterar que a análise do fetichismo enquanto  
movimento real que indica a abstração e a objetificação das relações sociais, evidencia a  
compreensão do processo de produção e reprodução objetivado nas amarras dos movimentos  
do valor e do capital enquanto totalidade, desvelando a condição fetichizada das relações  
humanas em seus desdobramentos gerais e específicos, no seio de uma sociabilidade que  
mantém as relações humanas pautadas na realidade do valor abstrato e na troca.  
É imprescindível citar que tal processo não se caracteriza como um elemento  
psicológico ou do imaginário cultural coletivo. O processo fetichizado das relações sociais, em  
Marx, pressupõe a existência da ocultação das formas concretas da consciência ao estabelecer  
a vigência do valor enquanto mediador das relações entre os produtores.  
Logo, há, inegavelmente, a evidência de que o movimento típico da realidade material,  
histórica e dialética do capital permite a compreensão ontológica das relações sociais em  
essência, ao apreender e expor o seu inverso: a visão crítico-científica que norteia a  
contraposição entre a soberania do valor e a genericidade humana, e que entende, acima de  
tudo, que as categorias do trabalho e da produção social consistem em formas principais para  
desvelar o movimento real que determina a mistificação que ronda o espectro do objeto que  
subordina e rege a vida do sujeito, do produto que domina e orienta o ser, e o destino do  
produtor.  
726  
Inversão ontológica das relações de preponderância entre produção e consumo  
Tendo em vista o interesse em desdobrar o debate na direção de uma crítica ontológica  
à teoria do consumo, é oportuno fazer uma breve referência também a parte do exame que Marx  
dedica nos seus estudos econômicos de 1857, vindos a público e conhecidos sob a denominação  
de Grundrisse, onde o autor, tecendo uma afiada crítica à economia política, reitera o fato de  
que a atividade produtiva é, antes de mais nada, o ponto de partida para a efetivação real do  
consumo.  
Aqui, um argumento principal pode ser indicado tendo em vista o reconhecimento de  
que a mera articulação entre complexos parciais da totalidade econômica não ultrapassaria a  
Libertas, Juiz de Fora, v. 24, n. 2, p. 709-733, jul./dez. 2024. ISSN 1980-8518  
Para uma crítica à “Sociedade de consumo” e ao fim da transcendência da alienação em Jean Baudrillard  
dimensão de arranjos estacionários, de modo que é imprescindível apreender na articulação  
interna do ser social o complexo de peso tônico, preponderante, capaz de imprimir, numa  
unidade dialética, contraditória, as direções tendenciais do desenvolvimento econômico. Este  
complexo sobreordenador é, para Marx, inequivocamente, o complexo da produção,  
preponderante, nas interações dialéticas, sobre os complexos da distribuição, da troca, da  
circulação e do consumo, numa totalidade econômica orgânica, determinada.  
Assim, o complexo do consumo, enquanto necessidade básica e vital humana, traz em  
si, dialeticamente, o momento da produção, implicando no fato de que, enquanto relação de  
reciprocidade e de preponderância, a produção figura o momento predominante do consumo,  
uma vez que é a partir da atividade produtiva que se desdobram implicações materiais e  
subjetivas que correspondem à materialização de uma extensão do gênero humano dispendida  
e materializada no objeto, na conformação da unidade contraditória entre valor-de-uso e valor.  
Nas palavras de Marx:  
O importante aqui é apenas destacar que, se produção e consumo são  
considerados como atividade de um sujeito ou de muitos indivíduos, ambos  
aparecem em todo caso como momentos de um processo no qual a produção  
é o ponto de partida efetivo, e por isso, também, o momento predominante. O  
próprio consumo, como carência vital, como necessidade, é um momento  
interno da atividade produtiva. Mas esta última é o ponto de partida da  
realização e, por essa razão, também seu momento predominante, o ato em  
que todo processo transcorre novamente (Marx, 1857. p. 68).  
727  
Logo, entender esses processos permite, entre outras coisas, a fomentação de uma  
análise crítica das formas da atividade produtiva e da produção enquanto cadeia objetivamente  
movida pelos imperativos de valorização do valor, no capitalismo.  
As teses de Baudrillard, no intuito de desenvolver a crítica do consumo na sociedade  
moderna, especialmente nas relações do capitalismo contemporâneo, desenvolve, a nosso ver,  
insuficientemente, os nexos e mediações dos processos humanos ativos e sociais frente ao  
consumo, à mistificação da mercadoria, num sistema econômico voltado aos imperativos do  
lucro.  
O que indicamos aqui, afloratoriamente, como inversão ontológica, pode ser localizado  
no não aprofundamento da análise no desvelamento dos complexos categoriais centrais da  
produção e complexidade também das formas de consciência, estas indexadas a uma totalidade  
que se respalda na subordinação da atividade produtiva em torno das relações objetivadas da  
propriedade privada, e obedecendo uma dinâmica mercadológica, de modo que exprime, ainda  
que implicitamente, o sintoma sistemático da modernidade, que consiste no esquecimento de  
Dariane Cordeiro de Araújo; Marlon Garcia da Silva  
importantes categorias marxistas no desvelamento das formas das relações sociais  
contemporâneas.  
A posição do autor francês, ao conjecturar a análise de uma suposta sociedade “pós-  
industrial” (Baudrillard, 1970, p. 43), e ao anunciar a impossibilidade de um “fim da  
transcendência”, leia-se, da superação da alienação (Baudrillard, 1970, p. 205), implica na  
desistência de uma crítica que propõe análises respaldadas em movimentos mais mediados,  
mais profundos e mais abrangentes, correspondentes às relações humanas de produção e  
reprodução material e social, objetiva e subjetiva, na ordem do capital em sentido lato.  
Pensando na significação dos signos e das representações abstratas como bases  
fundamentais que norteiam seu pensamento, Baudrillard projeta, como visto acima, a noção de  
um feitiço mistificado e oculto da mercadoria, atrelado a um processo psicologizante e  
subjetivamente definido através de estruturas ideológicas da consciência humana, estas,  
necessariamente indexadas e experimentadas como consequência de relações sociais que  
pressupõem a problemática do consumo e do desejo de consumir, concebidos como centrais e  
determinantes das relações gerais da vida humana, no enredamento, inclusive, das relações de  
produção.  
A destituição que estamos indicando reside justamente na inversão das ordens  
determinativas das relações de preponderância entre os complexos categoriais centrais que  
rondam o espectro do ser social nos campos objetivo e subjetivo, nomeadamente, a inversão  
nas ordens de determinação e peso tônico entre produção e consumo.  
728  
A nosso ver, o autor da “Sociedade de consumo”, em suas posições críticas a um sistema  
que fomenta a hipertrofia, real e objetiva, da esfera do consumo, se distancia, e perde de vista  
a possibilidade de buscar e visualizar as reais formas das relações, interações e reciprocidades  
entre de produção e consumo.  
A análise que Baudrillard faz das dinâmicas e modos do consumo, a despeito da  
apreensão crítica de aspectos da manipulação no capitalismo tardio, não dá conta do ciclo que  
se realinha e se reproduz através da objetivação da consciência humana ao figurar o ciclo da  
produção enquanto parte naturalmente indivisível deste, onde o consumo, é, como podemos  
concluir, uma categoria que se situa no interior do momento da produção.  
De modo que o autor analisa a categoria do consumo sem se ater suficientemente à  
materialidade dialética das relações sociais de produção, bem como, sem considerar os  
complexos determinantes do trabalho e da genericidade humana, e sobre essas bases, as formas  
de consciência, da alienação e do estranhamento. O que entendemos que se caracteriza como  
Libertas, Juiz de Fora, v. 24, n. 2, p. 709-733, jul./dez. 2024. ISSN 1980-8518  
Para uma crítica à “Sociedade de consumo” e ao fim da transcendência da alienação em Jean Baudrillard  
inversão de categorias e complexos categoriais ontológicos, quer dizer, inscritos na  
materialidade da forma de ser.  
É importante e mesmo necessário ponderar que as contribuições críticas de Baudrillard  
representam uma relevante crítica às formas do consumo sistemático e típico do quadro social  
e capitalista contemporâneo. Nesse viés, entende-se que o simulacro da realidade e a  
mistificação do objeto enquanto representação abstrata e psicologizante culturalmente  
desenvolvida, caracteriza pontos interessantes que, no entanto, vão para além da representação  
imagética da mercadoria, isto é, são categorias que perpassam a totalidade, fundamentadas  
sobre bases sólidas da realidade material, que só podem ser reveladas através do estudo das  
formas do valor, da forma-mercadoria e seu caráter social e histórico, da objetivação do  
trabalho, da alienação e das relações de preponderância na retroação do consumo no ciclo de  
produção.  
No item “Fim da transcendência” (Baudrillard, 1970, p. 206), Baudrillard, ao  
compreender que a combinação fantástica dos signos e o processo generalizado e hipertrófico  
do consumo determina a relação do indivíduo com o mundo que o cerca, defende a posição de  
que, na dinâmica metabólica e cíclica da sociedade moderna, o processo generalizado do  
consumo nega a existência de uma realidade concreta da consciência humana voltada à  
potencialidade objetiva e subjetiva do ser, de modo que, não resta a possibilidade do vislumbre  
de uma restituição da consciência e da práxis humana para além do imperativo categórico dos  
signos e do consumo. Nesse sentido, a vida humana é fatalmente alicerçada nos fundamentos  
da sociedade de consumo. Nas palavras do autor:  
729  
No modo específico do consumo, já não existe transcendência, nem sequer a  
transcendência feiticista da mercadoria: reina a imanência à ordem dos signos.  
Assim como não existe separação ontológica, mas relação lógica entre o  
significante e o significado (Baudrillard, 1970, p. 206).  
À vista disso, é preciso ponderar o fato de que Baudrillard, enquanto importante teórico  
contemporâneo, compreende os nexos causais e os processos societários que rondam o espectro  
da produção e do trabalho tendo em vista o contexto histórico em que se insere, nomeadamente,  
a chamada afluência econômica de parte da sociedade europeia ocidental nas décadas  
imediatamente seguintes à Segunda Guerra Mundial. Não obstante, ao considerar a dinâmica  
hiperbólica do consumo enquanto matrizadora das relações sociais, bem como, entendendo o  
consumo, nesta sociabilidade, enquanto categoria que se respalda na questão lúdica, imagética,  
absoluta e imutável, reflete a noção de que a estrutura da sociedade moderna, pautada na  
destituição do indivíduo nas formas de ser e nas formas de consciência, tem, impreterivelmente,  
nessas relações do consumo, sua tônica predominante.  
Dariane Cordeiro de Araújo; Marlon Garcia da Silva  
Trazendo à luz a ideia de alienação assumida por Baudrillard, é possível aferir que o  
autor entende o espelhamento do gênero humano enquanto consequência múltipla da imanência  
dos signos e das representações, que aparecem no espectro do consciente e do inconsciente,  
bem como, consequência das formas imagéticas que se sobrepõem à realidade material.  
Logo, é necessário reiterar o fato dado de que, em “A Sociedade de Consumo”,  
precisamente, no item “Fim da transcendência”, Baudrillard evoca a noção de que o processo  
alienante típico do movimento da ambivalência mística da mercadoria, é impossível de ser  
superado.  
Considerações finais  
Destarte, faz-se necessário concatenar os exames aqui expostos para conferir peso  
teórico ao tema proposto. Sendo assim, é imprescindível aferir que a carga teórica marxista é  
rica no tocante ao exame da realidade material, concreta e prática da sociabilidade burguesa, e  
compreende a relação intrínseca da alienação e as formas da atividade e da sociabilidade  
humana, uma vez que, enquanto categoria que transcorre como consequência direta da relação  
de transferência imbricada na expropriação das forças, processos e resultados do trabalho,  
contém em si os desdobramentos da dinâmica material, concreta e reveladora da estrutura  
totalizante da sociabilidade do capital, incluídas as formas da consciência, bem como, as formas  
do consumo.  
730  
É nesse cenário que se destaca a importante contribuição do pensamento marxista  
persistente no interesse de desvelar categorias sociais que se relacionam com as formas de  
consciência e com a atividade produtiva em seu aspecto genérico e ontológico. É de extrema  
importância a reunião e articulação dos conceitos apresentados no que diz respeito à dissolução  
da obra de Baudrillard, principalmente no evolver de tensões preliminares a respeito de uma  
discussão mais aprofundada acerca da noção semiológica moderna que envolve, não somente a  
relação superficial com a tradição marxista, mas permeia um campo contextual ocidental de  
capitalismo tardio e ideologicamente direcionado à priorização de estudos das representações  
fenomênicas  
Na análise aferida da obra madura de Karl Marx, “O Capital - Volume I”, precisamente,  
em suas contribuições acerca do duplo caráter da mercadoria e o processo fetichizado que  
decorre das determinações imbricadas na dinâmica da valorização dos objetos, que, por sua vez,  
reverbera nas relações sociais entre os produtores, é possível traçar o elemento básico da  
análise, que configura extrema importância para o presente artigo: o caráter fantasmagórico que  
Libertas, Juiz de Fora, v. 24, n. 2, p. 709-733, jul./dez. 2024. ISSN 1980-8518  
Para uma crítica à “Sociedade de consumo” e ao fim da transcendência da alienação em Jean Baudrillard  
o objeto espelha no processo de valorização, se dá através de sua imbricação na sociabilidade  
fetichizada e alienante, sob as determinações do modo de produção capitalista.  
É evidente, através da breve exposição desses conceitos, a ratificação de que o exame  
da mercadoria possibilita a compreensão de que o movimento real do processo fetichizado  
sugere a criação de uma consciência geral, que se fundamenta na ocultação das formas reais  
das relações sociais, justapostas às noções fenomênicas e de abstração da realidade, resultando  
em uma gama de ilusões acerca do processo produtivo. Outrossim, o processo de produção,  
pautado no caráter místico da mercadoria, implica no espelhamento do real valor do objeto,  
fruto do dispêndio de força vital e de trabalho humano. Dessa forma, levando em consideração  
que o aspecto social da mercadoria reflete as formas das relações sociais, a dinâmica fetichizada  
dessas determinações são, necessariamente, elencadas na expressão da forma-mercadoria, e  
resultam na ocultação da verdadeira forma do valor, bem como, na abstração da realidade  
histórica, social e material das dinâmicas sociais.  
Nos manuscritos de 1857, “Grundrisse”, Karl Marx situa historicamente a atividade  
produtiva socialmente necessária, não só enquanto ferramenta e meio para a criação de objetos,  
mas que fomenta e mantém ativo o ciclo infindável do consumo, das esferas de distribuição e  
de circulação, enquanto parte mediadora e inter-relacionada, contudo, e, simultaneamente,  
determinante, que sobreordena e direciona com peso tônico as dinâmicas imbricadas nessa  
totalidade, bem como, culmina nas formas e dimensões do complexo categorial da economia  
como totalidade orgânica, evidenciando sua preponderância ontológica no tocante às dimensões  
tomadas por este último, na sociabilidade capitalista.  
731  
Tendo em vista o aspecto ontológico da produção e reprodução da vida material  
humana, cujas formas matriciais encontram-se no trabalho, categoria intrínseca à espécie  
humana, que dispara a forma específica de ser, de produção e reprodução objetiva e subjetiva,  
é possível aferir a noção de que existe nos predicados da humanidade a potencialidade de  
modificar o ambiente ao redor, natural e social, de modo a estruturar formas e modos complexos  
de produção, de cooperação, de divisão social do trabalho, que podem se estender para além de  
uma ordem organizada nos moldes da sociabilidade burguesa.  
É nesse cenário que se faz necessário reiterar a legitimidade das vertentes marxistas não  
desistentes, em termos de princípios e de telos, de compreender as possibilidades humanas de  
orientar forças produtivas socialmente constituídas na direção de organização de relações e  
dinâmicas sociais estruturadas em moldes diversos, trazendo à luz a potencialidade ontológica  
humana, nas determinações múltiplas de diferentes instâncias e complexos categoriais, como a  
política, a ciência, a arte, a filosofia etc.  
Dariane Cordeiro de Araújo; Marlon Garcia da Silva  
À vista disso, é possível aferir a contraposição à crítica de Jean Baudrillard acerca da  
impossibilidade de superação frente à realidade sufocante de um mundo governado pelo  
imperativo categórico dos signos do consumo, uma vez que, de acordo com o autor francês, a  
profusão da mercadoria coordena e determina a produção material da vida pautando-se na  
alienação enquanto representação fantástica da ocultação, e do espelhamento humano, o que  
denota, entre outras coisas, a destituição de uma consciência humana pautada na vida, na  
atividade e sociabilidade reais.  
Assim, salienta-se que o processo pungente do consumo na sociedade moderna, em  
Baudrillard, não vislumbra a possibilidade de superação dessa situação de menoridade  
subordinada, administrada e funcionalizada em prol da mercantilização geral, uma vez que a  
humanidade se encontra destituída de potencialidades na esfera da produção objetiva e subjetiva  
da vida.  
Se a produção material da vida se constitui como a extensão da espécie humana  
genericamente no mundo material e inorgânico e orgânico, e desdobra formas de relações  
sociais e pautadas na atividade produtiva, logo, é necessário cravar como fato, que as dinâmicas  
que se seguem nesse processo não são fechadas nem se esgotam, antes, são abertas, posto que  
são próprias de um ser que se autoconstitui.  
Tendo isso em vista, é razoável assumir que não há modo de produção ou organização  
societária que seja eterno, e que seja capaz de destituir a humanidade de seu aspecto genérico e  
vital, matrizado na força e nas potencialidades do trabalho social.  
732  
É nesse sentido que o estudo crítico e ontológico da teoria do consumo pode constituir  
um estímulo e reforço da importância de estudos, nesse diapasão, de bases marxistas, e  
favorecer e fomentar o tensionamento das bases fundantes do modo de produção vigente,  
essencialmente, no que diz respeito à compreensão dos nexos e dos processos que se estendem  
para além da crítica à sacralização da mercadoria e desembocam na evidência flagrante de que  
há, para além da abstração, uma sociedade estruturada materialmente nos moldes da exploração  
do trabalho, da acumulação de capital, e regada pelo direcionamento ideológico do projeto  
político liberal burguês, estabelecendo, desta forma, por princípio e por evidências prático-  
sensíveis, razoáveis, a possibilidade de superação desta ordem societária.  
Referências bibliográficas  
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Baudrillard. Monografia (Graduação em Serviço Social) - Instituto de Ciências Sociais  
Aplicadas, Universidade Federal de Ouro Preto, Mariana, 2023.  
Libertas, Juiz de Fora, v. 24, n. 2, p. 709-733, jul./dez. 2024. ISSN 1980-8518  
Para uma crítica à “Sociedade de consumo” e ao fim da transcendência da alienação em Jean Baudrillard  
BAUDRILLARD. Jean. A Sociedade de Consumo. 1970. Rio de Janeiro: Elfos Editora, 2004.  
FORTES. R. V. As três determinações fundamentais da análise lukacsiana do trabalho: modelo  
das formas superiores, prioridade ontológica e abstração isoladora. Crítica da ideia da  
centralidade do trabalho em Lukács. Verinotio, Ano XI. n. 22, out., 2016.  
LUKÁCS, György. Para uma ontologia do ser social II. São Paulo: Boitempo, 2013.  
LUKÁCS, György. Conversando com Lukács. São Paulo: Instituto Lukács, 2014.  
MANDEL, Ernest. Capitalismo Tardio. São Paulo: S.A Cultural, 1985.  
MARX, Karl. Grundrisse. Manuscritos Econômicos de 1857-1858. Esboços da crítica da  
economia política. São Paulo: Boitempo, 2011.  
MARX, Karl, ENGELS, Friedrich. Manifesto do Partido Comunista. Ed. São Paulo: Edipro,  
2017. 110 p  
MARX, Karl. Manuscritos Econômicos e Filosóficos. “Trabalho estranhado e propriedade  
privada”. São Paulo: Boitempo, 2008.  
MARX, Karl. O Capital: crítica da economia política. Livro I - Capítulo 1: A Mercadoria. São  
Paulo: Boitempo, 2013.  
SILVA, Marlon Garcia da. A filosofia como complexo ideológico na obra tardia de György  
Lukács. Tese de doutorado, Universidade Federal de Santa Catarina, Centro Sócio-  
Econômico, Programa de Pós-Graduação em Serviço Social, Florianópolis, 2018.  
733  
Fundamentos do Serviço Social e formação  
profissional: Entrevista com Maria Carmelita  
Yazbek*  
Thaisa Closs**  
Thaisa Closs: Querida professora Carmelita, primeiramente gostaria de agradecer a  
entrevista. Tu és uma grande referência na profissão, com tua ampla produção intelectual e  
atuação na formação de muitas gerações de assistentes sociais, docentes e pesquisadores/as.  
Especialmente no âmbito dos Fundamentos do Serviço Social, tens contribuído  
significativamente para a análise da profissão no movimento da história, nos impulsionando na  
realização de estudos que recuperem a memória e a historicidade profissional. Nessa direção,  
gostaria de trabalhar na entrevista aspectos da trajetória da formação profissional, em seu  
processo de renovação crítica, temática relativa à minha pesquisa de pós-doutoramento.  
Considerando sua experiência docente na PUCSP e nas entidades profissionais, como foi o  
processo de construção do currículo de 1982, seus avanços e limites?  
Maria Carmelita Yazbek: Se nossa ótica é situar o Serviço Social na história, em  
primeiro lugar entendo que esse currículo expressa um processo mais amplo de mobilização da  
sociedade brasileira na luta pela democratização do país e no caso do Serviço Social, o  
confronto com a classe burguesa e com o conservadorismo na profissão. Processo cuja  
expressão emblemática foi o Congresso da Virada em 1979, mas não só. Era grande parte do  
país que se posicionava politicamente: a Igreja Católica com sua Teologia da Libertação que,  
naquele momento, estava profundamente vinculada aos interesses da população trabalhadora;  
foi a fundação do Partido dos Trabalhadores, e foram as grandes greves do ABC Paulista, e a  
presença do Movimento Estudantil apoiando essas greves e com suas próprias lutas. Um  
momento de aprofundamento dos interesses do capital monopolista, caracterizado na América  
*Assistente social. Doutora em Serviço Social. Professora e pesquisadora do Programa de Estudos Pós-Graduados  
em Serviço Social da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP). Pesquisadora CNPq.  
**  
Assistente Social. Doutora em Serviço Social. Professora adjunta do Departamento de Serviço Social da  
Universidade Federal do Grande do Sul (UFRGS). Pesquisadora CNPq.  
DOI: 10.34019/1980-8518.2024.v24.46774  
Esta obra está licenciada sob os termos  
Recebido em: 02/12/2024  
Aprovado em: 04/12/2024  
Fundamentos do Serviço Social e formação profissional  
Latina pela dependência, um momento de expansão do capital dos monopólios, das grandes  
empresas, em que o ABC Paulista era uma vanguarda, bastando lembrar que a classe operária  
do ABC, tinha uma forte liderança política entre os trabalhadores latino-americanos, e esse é o  
contexto onde surgiu o Lula.  
No contexto em que emerge o currículo de 1982 eu fui diretora da Faculdade de Serviço  
Social da PUCSP, onde coordenei um projeto de revisão curricular que, em certo sentido  
inspirou, ao lado de outras importantes experiências, o próprio currículo de 1982. Gostaria de  
assinalar que fez parte do grupo que realizou essa revisão curricular a professora Marilda  
Iamamoto, docente da PUCSP naquele momento, que já traz para o currículo da PUCSP em  
elaboração sua perspectiva de análise da profissão sob a inspiração do pensamento marxiano:  
o Serviço Social como atividade profissional e inserido no processo de reprodução das relações  
sociais.  
E tínhamos um contexto muito rico na PUCSP. Com professores como o (Octavio)  
Ianni, o Paulo Freire, o Florestan (Fernandes). Era uma coisa muito interessante, a minha sala  
era na frente da sala do Paulo Freire, e, era uma alegria vê-lo. Mas aí a gente aproveitou, o que  
nós fizemos no curso de Serviço Social? Fomos fazer os cursos com eles. Eu fiz curso com o  
Ianni, com o Florestan. Aproveitar esses quadros, não é? A gente sabia quem eram eles. E a  
reitora uma assistente social, Nadir Kfouri abriu essas possibilidades. E Dom Paulo Evaristo  
Arns, responsável pela Universidade, era um cardeal como poucos. A Nadir Kfouri foi a  
primeira reitora mulher. E, sob o comando deles abriu-se a universidade, para a periferia. Então,  
era um momento mesmo muito rico. Entendo que a virada do III CBAS foi uma “virada”, mas  
foi um processo. Ela expressou o que vinha acontecendo e não uma coisa assim, de repente. Era  
um momento incrível da sociedade e a gente conseguiu uma mobilização muito forte e  
interessante de vários setores da sociedade.  
735  
No Serviço Social temos que pensar um pouco melhor sobre isso, nós passamos do  
grupo conservador para um grupo comprometido com a visão crítica, marxista, com uma  
tranquilidade muito grande. Na PUCSP, as herdeiras das “pioneiras” eram mulheres incríveis.  
Assim tivemos Helena Junqueira, Maria Lúcia Carvalho, que inclusive foi uma grande  
protagonista de Araxá, em 1967. Elas eram as professoras, a gente trabalhava com elas. E  
naquele momento, tinha Marilda Iamamoto com a gente na PUCSP. Nós tivemos a Marilda  
(Iamamoto) por um longo tempo e ela já deixava suas marcas, ela é incrível. Então foi  
relativamente tranquilo.  
Eu me lembro de que em 1975 teve um congresso da ABESS em Piracicaba, cidade do  
interior de São Paulo e Dona Nadir Kfouri foi, como professora de caso, em Serviço Social de  
Entrevista com Maria Carmelita Yazbek  
Caso. E quando ela voltou, ela disse que havia um clima, vamos dizer, propício à mudança.  
Havia pessoas que estavam levantando questionamentos sobre o serviço social norte-americano  
e que ela achava que as coisas tinham que mudar. Ela não sabia exatamente a direção e nem foi  
ela que deu essa direção, mas ela abriu um pouco o caminho para a gente. E foi bem tranquila  
essa transição. A única coisa de que ela não gostou foi quando o livro da Marilda (Iamamoto)  
saiu, com aquela foto na capa, não é? Ela está naquela foto, e quando ela leu o conteúdo, ela  
me chamou, chamou a Raquel (Raichelis), para conversar com a gente. Ela não tinha gostado  
porque estava sendo identificada com um projeto da burguesia.  
O projeto das pioneiras era um projeto político e um projeto que buscava, na verdade,  
formar quadros, vamos dizer assim, para enfrentar o comunismo. Então a gente teve uma longa  
conversa com ela. Porque essa mulher era uma democrata, sabe? As iniciativas que ela foi  
tomando, ela concordava com o Dom Paulo, colocou o Serviço Social na periferia. Nós  
tínhamos vários projetos juntos, então era um clima de parceria. Obviamente, o marxismo não  
entra imediatamente, ele vai entrando mais através da concepção de profissão que a Marilda  
(Iamamoto) traz. Aquela revisão curricular, que começou em 1979, nós levamos para a  
Convenção de Natal depois.  
Thaisa Closs: Professora Carmelita, tu poderias detalhar mais sobre a Convenção em  
Natal, de 1979, um ano importante, considerando também a realização do III CBAS?  
Maria Carmelita Yazbek: Foi nessa convenção que se fechou, sob o comando da  
ABESS, o currículo, que depois vai ser aprovado, em 1982, pelo Conselho Federal de  
Educação. Entendo que nessa Convenção foram apresentadas algumas propostas, que eu  
considero como avançadas naquele contexto, como a ruptura com o Caso, Grupo e a  
Comunidade, e a decisão de criar as disciplinas de Teoria do Serviço Social, História do Serviço  
Social, ainda em uma perspectiva evolucionista, e a de Metodologia do Serviço Social, com  
uma perspectiva de estratégias de ação profissional. Sobre essas disciplinas cabem algumas  
considerações e sugiro a leitura do texto do professor José Paulo Netto, sobre a disciplina  
Metodologia, da Revista Serviço Social e Sociedade nº 14.  
736  
As proposições traziam a marca do ecletismo teórico-metodológico e eram  
desconectadas e justapostas, mas se propunham a um avanço às influências do Serviço Social  
norte americano, até então hegemônicas na formação. Lembrando que essa influência era de  
base funcionalista e buscava-se a superação dessa perspectiva. Quanto à disciplina na área da  
Teoria do Serviço Social que hoje é abordada no âmbito dos Fundamentos do Serviço Social, a  
proposta apontava um tratamento “cientifico” da profissão, a definição de seu objeto e objetivos  
e de suas bases epistemológicas. Eram proposições que, apesar das insuficiências lançavam as  
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Fundamentos do Serviço Social e formação profissional  
sementes de uma profunda renovação da formação profissional.  
Então, na Convenção, havia um clima na profissão dessa renovação, dessa mudança. Eu  
me lembro que a discussão foi de altíssimo nível. Aí eu descobri a força e competência dos  
Grupos do Nordeste, o Grupo do Maranhão. Eu já tinha alguns contatos, mas só há uma  
aproximação de fato num encontro desses, que permitiu uma maior sintonia. E havia muitos  
consensos. Alguns até equivocados, mas o consenso era que precisava mudar, de que caso,  
grupo ou comunidade, esse modelo não respondia à realidade da América Latina, muito menos  
a do Brasil. Então, Natal foi um momento significativo. E o Nordeste foi uma grata surpresa.  
Eu conheci a Ana (Elizabete Mota) nesse contexto. Ela era uma liderança. Não era a  
única. O grupo do Maranhão, a Franci Cardoso, a Marina Maciel, e o grupo do Rio de Janeiro,  
como a Maria Inês (Bravo). Era um grupo no qual havia consensos de que o Serviço Social  
deveria mudar. Era um grupo muito eclético na convenção, mas a ideia de mudança já estava  
ali consolidada, vinha vindo de outras Convenções. O Maranhão teve um protagonismo  
importante. Eu me lembro dessas pessoas, da Marina (Abreu), da Franci (Cardoso), da Josefa  
(Lopes). A professora (Maria) Ozanira (da Silva e Silva) eu conheci depois e ela estava mais  
envolvida com a pós-graduação, uma pesquisadora incrível.  
Então, do que eu me lembro, foi uma convenção de altíssimo nível. Os debates, vamos  
dizer assim, havia muitos pontos convergentes. O grupo conservador não teve presença.  
Interessante que no evento de Teresópolis, uma década antes, esse grupo estava muito articulado  
entre si, defendendo um serviço social absolutamente funcionalista, conservador. Mas em 1975,  
veja, a Nadir Kfouri reconhece que era o momento de fazer algumas adaptações. Por quê? Por  
que ela reconhecia isso? O Movimento de Reconceituação foi um movimento complexo, vamos  
dizer assim. Por exemplo, porque uma das pessoas que fizeram as palestras em Porto Alegre,  
no I Seminário, que marcou a Reconceituação foi a Maria Lucia Carvalho. E a Maria Lucia  
Carvalho não era uma autora marxista. Embora ela fosse uma autora crítica, ela não era  
marxista, mas ela era considerada do grupo da renovação, e que participava, mas numa outra  
direção. E eu acho que, do ponto de vista do conhecimento de Marx e do pensamento marxista,  
o Maranhão tinha uma base forte. A Marina (Abreu) já era uma gramsciana. Sempre conheci a  
Marina (Abreu) como alguém ligada ao pensamento gramsciano.  
737  
A gente da PUCSP estava muito bem respaldada, porque a gente tinha a Marilda  
(Iamamoto) por trás. E tinha uma outra professora, a Maria Berenice Delgado, mineira, hoje ela  
é um quadro da OIT, trabalha na OIT. Ela era da CUT. Nós tínhamos a Bia, a BeatrizAbramides,  
de um lado, a Luísa Erundina, que estavam na organização política. E outro grupo que estava  
no debate teórico, meio assim, vamos dizer, como que dividido nessas frentes. E a Bia  
Entrevista com Maria Carmelita Yazbek  
(Abramides) tem um protagonismo histórico no III Congresso. A Luísa Erundina também era  
uma das professoras da casa, da PUCSP. Era um grupo muito interessante. Quando a gente  
chega em 1979, em Natal, a gente chega com propostas. A gente estava construindo as  
propostas. E eu acho que a gente teve, vamos dizer, não foi exclusivo, mais teve um papel  
importante ali. Tanto é que na PUCSP, nós fizemos mais de uma pesquisa para acompanhar esse  
processo, de renovação mesmo, não é? No caso da nossa universidade. E logo em seguida eu  
assumi a ABESS.  
Thaisa Closs: Em que período foi, professora, sua presidência na ABESS, em 1983 a  
1985? Como foi sua gestão na entidade?  
Maria Carmelita Yazbek: Sim, na sequência, como Presidente da ABESS pude  
participar do aprofundamento do processo de construção da passagem dos conteúdos  
tradicionais para os desafiantes conteúdos da nova proposta. Nesse processo separavam-se  
História, Teoria e Método. Em minha avaliação essa foi a grande lacuna inicial em relação à  
uma efetiva ruptura. No entanto, aos poucos vai sendo melhor explicitada essa relação, sob a  
perspectiva da Teoria Social de Marx.  
Cabe lembrar que tenho uma concepção de teoria que busca essa articulação: a teoria  
social constitui conjunto explicativo totalizante, ontológico, e, portanto, organicamente  
vinculado ao pensamento filosófico, acerca do ser social na sociedade burguesa, e a seu  
processo de constituição e de reprodução. A teoria reproduz historicamente e conceitualmente  
o real, é, portanto, construção intelectual que proporciona explicações aproximadas da realidade  
e, assim sendo, supõe uma forma de autoconstituição, um padrão de elaboração: o método.  
Neste sentido, cada teoria social é um método de abordar o real. O método é, pois, a trajetória  
teórica, o movimento teórico e histórico que se observa na explicação sobre o ser social.  
Desse modo, a análise do Serviço Social a partir de matrizes fundamentais de  
conhecimento do social na sociedade burguesa nos coloca face aos Fundamentos, que são  
constituídos por múltiplas dimensões: históricas, teórico-metodológicas, ético-políticas,  
culturais e técnico-operativas que, nas atuais Diretrizes Curriculares, se expressam na  
abordagem histórico-crítica fundada na Teoria Social Marxiana. Assim sendo, é a partir dessa  
perspectiva que venho privilegiando a abordagem da dimensão teórico-metodológica dos  
Fundamentos, entendendo que essa forma de apreensão incorpora o movimento de história. O  
que venho tentando aprofundar em minhas análises mais recentes na ótica dos Fundamentos é  
a sua dimensão ontológica, sua natureza, aquilo que “permanece na mudança” conforme destaca  
Lukács.  
738  
Retomando, eram os primeiros anos do novo currículo. Lembro que na minha gestão da  
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Fundamentos do Serviço Social e formação profissional  
ABESS, eu fiz uma coisa que eu acho maravilhosa. Eu trouxe o José Paulo Netto para o Brasil.  
Aliás, eu o trouxe como diretora da faculdade de Serviço Social, na PUCSP. A tensão das lutas  
contra a ditadura estava menos dura, muitos exilados estavam voltando e a gente convidou ele  
para dar aula. Ele veio para a PUCSP, aí ele faz o doutorado com a Myriam Veras (Baptista).  
Ele teve esse protagonismo daquele momento, que não eram as Diretrizes ainda, era a revisão  
curricular de 1982. E para a nossa proposta da PUCSP, a Marilda (Iamamoto) foi fundamental.  
Ela foi a figura-chave, ela traz o marxismo. Lembro-me que ela fazia um curso na USP, com o  
José de Souza Martins, que era um núcleo de estudos marxistas. E eles liam o Capital.  
E a ela fazia o quê? Chegava lá na PUCSP e formava a gente. Ela formava a gente. Aí  
sim, superando os equívocos. Nesse momento, ela tinha um vínculo forte com o CELATS. Ela  
nos colocou na equipe de pesquisadores do CELATS. Era um grupo grande que colaborava.  
Então, ela foi uma figura central para a nossa revisão curricular de 1982, que por sua vez,  
interferiu na própria formulação do que seria o currículo de Serviço Social no país. E eu me  
lembro que o nosso currículo tinha tantas ciências sociais, que o parecer da universidade  
questionou isso: é um curso de Serviço Social ou de ciências sociais? Nós estávamos  
empolgadíssimos. E a primeira concepção que a Marilda (Iamamoto) traz sobre a profissão, ela  
foi o esteio da nossa reforma curricular. Eu me lembro que em outra convenção também surgiu  
uma proposta, porque aí tem a história do CEDEPSS também. Surgiu uma proposta de que nós  
criássemos, conforme existe na educação, a ANPED, a ANPCS na Ciência Social, que a gente  
criasse um grupo de debates, de estudos e pesquisas semelhantes às demais disciplinas da área  
social.  
739  
Já, embrionariamente, eu fiz o primeiro encontro de pesquisa. Eu não acho o registro,  
porque também na PUCSP houve uma enchente, perdendo registros da ABESS.  
E se perdeu o material do primeiro encontro de pesquisadores que nós fizemos, que eu me  
lembro que fizemos na PUCSP e foi uma explosão de gente. Porque havia uma demanda  
reprimida, as pessoas queriam discutir as suas pesquisas, os seus estudos, seus mestrados,  
doutorados. Então, foi uma quantidade muito grande de gente. E, ao mesmo tempo em que a  
gente avançava para criar o CEDEPSS, outro grupo de pessoas da própria PUCSP, como a  
Úrsula Karsch, criou uma associação. Eles chegaram a fazer duas publicações, e me lembro que  
a segunda era sobre fenomenologia. Depois eles desistiram, porque nessa convenção de 1985,  
quando eu deixo o mandato, a gente opta por criar um centro de pesquisa ligado à ABESS.  
Thaisa Closs: Professora, então ocorreu uma disputa no campo da pesquisa, em termos  
da organização política da categoria?  
Maria Carmelita Yazbek: Sim, teve uma disputa, esse caderno que eu mencionei é um  
Entrevista com Maria Carmelita Yazbek  
caderno interessante. Ele é só sobre fenomenologia. Não se esqueça de que nós tínhamos Ana  
Augusta (Almeida) atuando nesse contexto também. Eu não me lembro de Ana Augusta  
(Almeida) na convenção. Quer dizer, eu não me lembro dos fenomenólogos na convenção, essa  
de 1979 em Natal. Eu não sei se elas foram, eu não me lembro. Quer dizer, protagonismo grande  
elas não tiveram. Eu me lembro muito da Ana Elizabete (Mota), de outras pessoas, do Nordeste,  
principalmente, pessoas de Natal. Era um grupo forte, criticamente posicionado, mas eu não me  
lembro de uma iniciativa dos grupos fenomenólogos nesse momento. Mas sei que tiveram uma  
influência grande em alguns currículos.  
Thaisa Closs: Nós no Rio Grande do Sul, na PUCRS especialmente, a influência no  
currículo foi fortíssima, durante esse período.  
Maria Carmelita Yazbek: E na PUC do Rio também. Ela era o coração, vamos dizer  
assim, desse debate, porque a Ana Augusta (Almeida) era professora de lá. Mas eu não me  
lembro dessa disputa lá na convenção de Natal. Havia mais consensos do que disputas. Pode  
ser até que estivesse presente, mas não me recordo. Quando José Paulo (Netto) escreveu o  
Ditadura e Serviço Social, que aponta as tendências profissionais, ele é muito fiel ao que estava  
acontecendo. Ele percebe isso nas convenções, ele sempre era convidado para uma palestra, ele  
não deixou de ser protagonista nesse processo. E depois a gente tem aquela crítica registrada na  
revista Serviço Social e Sociedade, número 14, uma crítica muito correta, porque havia um  
grupo que defendia o Serviço Social como ciência. E aí ele entra no debate e ele põe, vamos  
dizer assim, as coisas no lugar. Não, o Serviço Social não é ciência, é uma disciplina  
profissional, que se refere a uma teoria social.  
740  
Como é que isso rebate nos fundamentos profissionais? A discussão de qual é o objeto  
da profissão, quais são os seus objetivos. Então, era uma discussão da profissionalidade, vamos  
dizer assim. E o que é Serviço Social? O Serviço Social é arte, ciência? Essa discussão  
permanecia o tempo todo, até que a gente assume a perspectiva de uma profissão, da  
centralidade do trabalho, mas a gente não explicitou isso naquele momento. Mas a concepção  
de profissão de Marilda (Iamamoto) já está presente naquele currículo nosso, da PUCSP, ou  
seja, do Serviço Social na divisão social e técnica do trabalho.  
Thaisa Closs: Sim. A revista Serviço Social e Sociedade nº 14 já registra esses  
elementos, a partir do currículo da PUCSP, vocês já identificavam algumas lacunas e limites na  
proposta formativa de 1982. Um aspecto muito rico de recuperarmos, considerando tua gestão  
na ABESS, como presidente, e também como diretora na PUCSP. Como foi esse processo?  
Maria Carmelita Yazbek: Uma coisa interessante era que nós fizemos foram duas  
grandes pesquisas. Uma pesquisa que era no âmbito do curso, do curso de Serviço Social da  
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Fundamentos do Serviço Social e formação profissional  
PUCSP, uma pesquisa que acompanhava o processo, e outra, na ABESS. Outra ainda, na  
ABESS, depois, que avaliou a discussão da metodologia, tem um caderno ABESS só sobre isso.  
Resultado de pesquisas. Nós tínhamos uma professora que já faleceu, Dilséa Bonetti, ela  
conduziu pesquisas da nossa faculdade e essa da ABESS também.  
Foi uma grande pesquisa, com muitos seminários. E a gente ouviu o José Paulo (Netto),  
a Nobuco Kameyama, a gente ouviu a Marilda (Iamamoto). Então, a gente tentava dar um  
“tratamento científico”, vamos dizer entre aspas, e aí o José Paulo vem e lança essa história da  
ciência, da ciência positivista. Não existe a ciência marxista, mas a ciência positivista. Mas a  
gente tinha uma preocupação de dar um tratamento científico, ou melhor, acadêmico. A  
investigação era uma novidade também. Foi ali que ela veio e ganhou corpo, a ideia de que o  
Serviço Social desenvolve ações investigativas desde o seu cotidiano até a universidade. Então,  
aquele momento, ele foi rico. Porque isso era do nosso lado, do lado dos que estavam tentando  
adequar a formação à realidade.  
Do outro lado, São Paulo ferveu naquele momento. Então, quando a gente fala da  
Virada, ela vinha vindo, a virada estava na Igreja Católica, na Ação Católica, a virada estava no  
ABC Paulista, com as greves do ABC. Em 1979, ocorreu a fundação do Partido dos  
Trabalhadores. E eu me lembro que com aquele cardeal que a gente tinha, com aquela reitora  
da PUCSP, a gente estava no ABC. A universidade sustentava ou ajudava a sustentar os  
trabalhadores que estavam em greve quando o salário era cortado. Então foi um momento  
importante, a gente tinha todo o clima desse contexto das lutas dentro da universidade. “Não  
fiquem aqui, vão para fora dos muros da universidade”. E aí nós fomos. Nós fomos trabalhar  
com os loteamentos clandestinos, com os movimentos sociais, nas periferias. Eu fui para o  
município de Embu-Guaçu trabalhar com creches. A (Maria) Lúcia Barroco foi trabalhar na  
área da saúde. Bom, a gente criou muito. Era uma universidade muito interessante. Uma  
universidade que mais de uma vez foi invadida. Seu teatro, o TUCA foi incendiado duas vezes.  
Agora vai ter um metrô que vai servir a PUCSP, sabe? Tem um movimento para chamar  
a estação Nadir Kfouri. Imagina! Realmente, ela foi uma mulher ímpar, inclusive, a postura  
dela. A biblioteca da universidade chama-se já Nadir Kfouri. Ela foi muito reconhecida. A coisa  
que eu acho mais interessante, ela nunca se colocou no campo marxista. Ela era uma grande  
especialista em caso, porque também a gente nem tem ideia do que é o caso, um caso bem feito,  
um caso como aprendemos nos EUA, não é? Embora ela tivesse essa postura teórica, ela era  
uma mulher que ia para a rua brigar com a gente. Quando a gente ia para passeatas, todos  
professores muito jovens, alguns alunos. Fazíamos essas coisas. Ela ficava lá... Primeiro a  
faculdade era numa casa na Rua Sabará, era uma casa enorme. E ela ficava até a última voltar,  
741  
Entrevista com Maria Carmelita Yazbek  
para ver se precisava de iniciativa política de ajuda. Ela tinha um irmão desembargador, uma  
coisa assim, e ela ia atrás.  
Então ela foi uma grande mulher. E a coisa mais interessante é que os alunos invadiam  
a Reitoria e quando os estudantes saíam, era bonito isso, a enchiam de flores, porque não era  
algo pessoal com ela. Então, é um fenômeno isso, ter passado do conservadorismo para o  
marxismo, mantendo boas relações, relações cordiais. A gente tinha um carinho muito grande  
por ela. Porque ela permitiu também. Ela podia se contrapor, ela tinha prestígio e poder, mas  
ela concordou, abriu espaço.  
Thaisa Closs: As lutas que vocês travaram na profissão são incríveis, é muito  
importante recuperar essa memória. Os debates de avaliação do currículo de 1982, registrados  
nos cadernos ABESS, como de o de nº 3, também foram fundamentais. Professora Carmelita,  
como foi esse processo?  
Maria Carmelita Yazbek: Foi muito rico esse processo, porque essa unidade  
indissociável, teoria e método e história, ela foi sendo, vamos dizer, incorporada, porque não  
fomos nós que construímos, o próprio pensamento marxiano coloca assim. Mas é um processo  
de apreensão. Porque havia muitos marxistas positivistas, como, por exemplo, mostrou o estudo  
de (Consuelo) Quiroga. Mas aos poucos a gente foi avançando. E aí, eu acho que eu tive um  
privilégio, eu brinco com a Marilda (Iamamoto), eu fui formada por ela. Todos os equívocos  
que eu dizia, ela corrigia, ela foi arrumando as nossas cabeças (risos). E ela traz com força a  
tese da unidade teoria, método e história. É que falando assim agora, tanto tempo depois, parece  
que não há polêmicas, mas havia polêmicas. Havia uma identificação da metodologia com o  
procedimento, do método com o procedimento, quando o método, na verdade, é constitutivo da  
própria construção teórica. A gente foi caminhando, o José Paulo (Netto) também ajudava, veio  
trabalhar com a gente. Foi um tempo de muita construção.  
742  
E, interessante, as minhas lembranças foram de busca de consenso, nesses debates. A  
tensão maior foi em Teresópolis. O Documento de Teresópolis foi muito difícil para nós. Eu me  
lembro que eu não quis participar, eu não fui para Teresópolis. E a gente ainda estava lá na Rua  
Sabará, onde tinha um porão. Enquanto elas estavam em Teresópolis, a gente estava estudando  
no porão, escondidas. A primeira vez que eu li Paulo Freire foi em espanhol. Ele não era  
publicado no Brasil. Então a gente tinha um grupo ali de estudos. Elas sabiam. Como a gente  
tinha bons vínculos, elas nos protegiam. Mas Teresópolis foi muito doloroso. É muito ruim, não  
é? Araxá tem ainda a marca do pensamento de São Tomás, da perfectibilidade do homem, da  
natural sociabilidade, tem umas coisas que vêm de Aristóteles, que São Tomás incorporou e que  
elas incorporaram, então tem um lado humano, podem até discordar dessa leitura, mas o  
Libertas, Juiz de Fora, v. 24, n. 2, p. 734-747, jul./dez. 2024. ISSN 1980-8518  
Fundamentos do Serviço Social e formação profissional  
documento tem uma defesa do humano, da sociabilidade humana.  
Teresópolis foi muito ruim, Teresópolis foi tenso, claro. Não quis participar. Marilda  
(Iamamoto), nessa época, ela ainda estava em Minas Gerais, eu acho. Depois é que ela vem  
para a PUCSP, que nem a Rosângela (Batistoni). BH foi uma experiência belíssima, mas que  
terminou tragicamente reprimida. Foi um processo muito rico, essa experiência de vida entre  
1975 e 1979, vamos dizer assim. E até o final dos anos 1980, um período, de muita  
efervescência. A organização política era incrível. E quando eu vejo hoje a (Luisa) Erundina é  
uma coisa... Que grande mulher que ela foi e é.  
Ela vai fazer 90 anos, eu tenho muito carinho por ela. Ela foi uma professora de luta, da  
política. Os anos 1980 lançaram as grandes bases da profissão, para a atualidade mesmo. É  
importante a gente recuperar esses processos, inclusive, a raiz das Diretrizes Curriculares  
também está nesses debates, nesses avanços que também estavam articulados com a  
organização política, não era só um projeto de formação, era um projeto de profissão, de  
sociedade, em conjunto. É aí que está o nascedouro do que a gente chama de projeto ético-  
político. E depois, em 1993, tem o Código de Ética, a Lei de Regulamentação, isso vem tudo  
na mesma esteira, de um acúmulo. Foi um momento privilegiado da profissão. Foi um momento  
da virada de todos os lados.  
Thaisa Closs: E caminhando por esse percurso histórico, no início dos anos 1990, como  
foi sua inserção nas entidades profissionais nesse período?  
743  
Maria Carmelita Yazbek: Eu estive no CFESS. Quando eu estive no Conselho  
Nacional de Assistência, primeiro conselho, na construção da LOAS, eu participei de uma  
equipe representando o CFESS. E antes, em 1986, a PUCSP firmou um convênio com Portugal  
para implantar mestrado, doutorado, nós saímos do Brasil também. Não sei como dava tempo  
de fazer tanta coisa. Foi um trabalho muito interessante. Nós estávamos discutindo a  
internacionalização, só em Portugal a gente formou 41 mestres, que saíram com o diploma da  
PUCSP, mais 13 doutores, e depois nós vamos para a Argentina também. Então a gente estava  
numa linha de avançar mesmo. Dentro do país, fora, claro que era um grupo muito interessante.  
A Aldaíza (Sposati) estava envolvida com Portugal. Estava fora. Bom, eu não sei como coube  
no tempo tanta coisa. Eu sei que os anos 1990 consolidaram o que a gente vinha fazendo, através  
desses documentos, acúmulos.  
Em 1996 eu estava no CEDEPSS com a Marieta (Koike). A Marieta é incrível, nós  
vivemos aventuras, sabe? A gente saiu para a América Latina, fomos para a Guatemala. E ela  
consolidou, consolidou a proposta de formação. Ela é uma figura emblemática do Nordeste,  
representava o Nordeste. Eu aqui do outro lado, em outra região, representando um pouco a  
Entrevista com Maria Carmelita Yazbek  
história das pessoas que começaram o Serviço Social no Brasil. Nós fizemos um trabalho muito  
curioso, muito interessante. Entendo que os maiores avanços das atuais DCN da ABEPSS no  
tocante aos Fundamentos do Serviço Social referem-se à abordagem na perspectiva da  
indissociabilidade dos três núcleos de fundamentação das Diretrizes Curriculares de 1996:  
Núcleo de Fundamentos teórico metodológicos da Vida Social, Núcleo de Fundamentos da  
formação sócio-histórica da sociedade brasileira e, Núcleo de fundamentos do trabalho  
profissional. Nessa abordagem há algumas questões centrais cuja abordagem é imprescindível  
no conjunto das Diretrizes e especialmente dos conteúdos, que são os eixos estruturantes da  
questão social e do trabalho.  
As diretrizes curriculares, eu estava relembrando, eu falei, que coisa mais linda! Não  
tem nem o que mexer nelas, atuais, não é? Claro que elas têm que se atualizar, tem que caminhar  
com a história, mas a proposta dos núcleos de fundamentação, eu acho que, por enquanto, é  
imbatível, se indissociável. Nesse sentido há algumas questões a serem aprofundadas: as  
determinações da formação colonial, escravista, sexista nas condições de vida das classes  
subalternas; o debate étnico-racial como constitutivo das relações sociais capitalistas no Brasil,  
afirmando a pauta antirracista; a temática da diversidade sexual; as profundas transformações  
do mundo do trabalho face à reestruturação vasta e dramática do capitalismo global,  
impulsionada pelo capital financeiro e pela reestruturação produtiva e particularmente por sua  
incorporação das tecnologias de informação e comunicação nas relações de trabalho; a nova  
morfologia do trabalho dos assistentes sociais nesse contexto; o novo perfil das Políticas Sociais  
no capitalismo financeiro e plataformizado. Entendo que esses necessários avanços no tocante  
a esses temas não devem significar deixar de lado os pensadores que construíram as matrizes,  
as bases do pensamento social contemporâneo. É preciso conhecer o pensamento marxiano, a  
tradição marxista, as vertentes atuais derivadas do positivismo, o estruturalismo e o pensamento  
pós-moderno, como uma necessária interlocução.  
744  
Thaisa Closs: Sobre os debates das Diretrizes, a formulação de seus elementos centrais,  
da indissociabilidade dos Núcleos de Fundamentação, ocorreram muitas oficinas. Houve o  
suporte de assessores, durante a gestão da professora Marieta Koike, não é?  
Maria Carmelita Yazbek: A Marieta, ela se cercava de pessoas para contribuir na  
construção, ela era uma mulher muito aberta. Creio que quando entrei no debate a proposta dos  
Núcleos já estava construída. Claro que havia discussões parciais, não é? Sobre a concepção de  
profissão, a dimensão política. Eu estava mais com a discussão da pesquisa. Eu acho desafiante  
a questão da indissociabilidade. Não era uma coisa fácil. E não tem sido fácil, até hoje, discutir,  
por exemplo, a relação teoria/metódo/história. Os cursos ainda hoje confundem método e  
Libertas, Juiz de Fora, v. 24, n. 2, p. 734-747, jul./dez. 2024. ISSN 1980-8518  
Fundamentos do Serviço Social e formação profissional  
metodologia, na questão de como fazer a parte de instrumentalização, das técnicas. Depois a  
gente tem a Yolanda (Guerra) que avança nisso, ela faz o doutorado com a gente também, ela  
dá um belo salto nessa questão. O que aconteceu com a graduação da PUCSP? Estou muito  
longe da graduação agora, naquele momento eu não estava. Naquele momento, lá atrás, a gente  
discutia, discutia, conversava, conversava. E nós tínhamos algumas pessoas incríveis. A gente  
tinha (Maria Lúcia) Barroco. Além da Marilda (Iamamoto), tinha Barroco, nesse campo da  
ética. Além de ser assistente social ela depois foi para fazer filosofia, porque não dá para discutir  
ética somente com os conhecimentos que a gente tem. Então ela avançou muito nisso.  
Um grande grupo participava. E a Marieta (Koike) foi uma grande articuladora, ela  
soube conduzir isso, sabe? Quando chega a convenção que aprova as diretrizes, foi tranquila.  
Mas uma das polêmicas era sobre a política social. Porque depois a gente acabou ficando com  
os eixos da questão social e do trabalho. E a política social foi uma questão, porque tinha um  
grupo que defendia a política como um dos eixos, com o mesmo peso da questão social e da  
concepção de serviço social como trabalho. Naquele momento, a gente não aceitava. Hoje, eu  
acho que talvez, quando você vê o mercado de trabalho, quando você vê que o grande  
empregador de assistentes sociais é o Estado, são as políticas sociais. Talvez a gente não tivesse  
sido tão rigorosa com o eixo da política social. Não que ela não tenha importância, mas ela  
cresceu na importância. Porque, por exemplo, se a gente questiona uma ação focalizada,  
seletiva, em relação, por exemplo, à pobreza, é isso que a gente faz, a gente faz pela via da  
política. Mas a política social como eixo perdeu. Esse domínio que a gente alcançou em relação  
à política social, o trabalho da Elaine (Behring), por exemplo, avançou com a questão do fundo  
público. Acho que política social tem um peso maior do que o que a gente deu naquele  
momento. Ela ganhou esse peso também.  
745  
Os grupos temáticos de pesquisa (GTP’s) daABEPSS abriram um caminho interessante,  
como o movimento mais recente das lutas antirracistas, por exemplo. E os temas que os GTPS  
trazem são todos muito importantes. Olha que interessante, naquele momento de criação deles  
eu entrei no GTP de política social. Eu estava muito envolvida com a assistência social. Depois  
eu percebi que eu tinha que passar para o GTP de fundamentos do serviço social, porque que  
eu ensinava fundamentos. Aí eu passei para o de fundamentos. Vamos dizer assim, é difícil  
separar a política social do campo da intervenção, porque ela está ali, ela nos condiciona,  
determina o que você pode e o que não pode. Aí eu desisti da assistência social, em termos da  
pesquisa, pela ênfase em um tema. Em termos de pesquisa, ou é uma coisa ou é outra, priorizar.  
Thaisa Closs: São temáticas que marcam tua produção e trajetória docente.  
Maria Carmelita Yazbek: Sim, e a conquista da assistência social na Constituição  
Entrevista com Maria Carmelita Yazbek  
Federal é uma conquista histórica também. Porque é no mesmo contexto, da história, a tentativa  
de quebrar com a prática clientelista, do favor, da ajuda, que está aí até hoje. A luta pela  
constitucionalidade foi uma luta importante, tinha um grupo bem bom e as entidades também.  
Foi um momento muito rico da vida.  
Thaisa Closs: Professora, um desafio importante no tocante aos fundamentos do  
Serviço Social reside nos processos de ensino, no sentido do rigoroso trato histórico e teórico-  
metodológico da profissão, na garantia da lógica e fundamentos das DCN da ABEPSS. Poderias  
compartilhar um pouco sobre sua experiência docente na área de fundamentos?  
Maria Carmelita Yazbek: A minha experiência atualmente no ensino é na pós-  
graduação. Então, ela tem outras características. Eu trabalho em dois momentos, duas  
disciplinas de fundamentos, a I e a II. Na primeira eu coloco em discussão as bases das  
Diretrizes. Eu discuto profissão, o que é o serviço social, a ênfase para o trabalho e a questão  
social. E eu estou fazendo profundas mudanças na discussão. Porque em relação à questão  
social, por exemplo, a abordagem é sempre histórica. Por exemplo, eu começo discutindo a  
questão social, como emerge essa expressão? Quem usou essa expressão pela primeira vez? A  
questão social ou a questão inglesa. Ela surge como expressão histórica que tem a ver com o  
capitalismo, a classe... Mas, em 2001, teve o debate da revista Temporalis nº3 onde, analisando  
o ensino das diretrizes, o tema foi a questão social. E aí tem o José Paulo Netto, tem a Marilda  
Iamamoto, a Potyara Amazoneida Pereira e eu estava lá. Bom, e a partir dali eu fui ver um  
pouco o que diziam. José Paulo e Marilda, que foram mais fiéis tendo como referência a  
sociedade industrial e a lei geral da acumulação.  
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Mas eles já diziam que a questão social assume expressões concretas em diferentes  
realidades, em diferentes nações, em diferentes tempos históricos. Eu, naquele momento, estava  
com a subalternidade, discutia a pobreza, e ela nada mais é que um resultado dessa forma de  
organização da sociedade. Mas, o movimento teórico na categoria foi: Qual é a realidade  
concreta da classe trabalhadora, da classe que vive do trabalho, por exemplo, em termos da  
questão social? Quem é ela? E aí, nós fomos avançando nas lutas antirracistas, nos GTP’s a  
gente tinha uma discussão sobre as múltiplas opressões, vamos dizer assim. Então, hoje, nesse  
momento, eu trabalho desde o sentido clássico, que eu acho que temos que trabalhar, até essas  
expressões. A gente trabalha na ótica da questão social a questão racial, a questão social e as  
perspectivas feministas, as perspectivas de gênero, LGBTQIA+, a gente hoje discute questão  
social de um outro modo. Depois é a discussão do trabalho. Na PUCSP é muito forte a discussão  
do trabalho, conduzida pela Raquel (Raichelis), ela avançou muito, a gente tem convidado  
muito o (Ricardo) Antunes, ele dá atividades programadas. Então, vamos discutir também: O  
Libertas, Juiz de Fora, v. 24, n. 2, p. 734-747, jul./dez. 2024. ISSN 1980-8518  
Fundamentos do Serviço Social e formação profissional  
que é o trabalho hoje? Você lembra as polêmicas que ocorreram na produção da área, como se  
o trabalho se restringisse ao trabalhador de chão de fábrica. Então a gente debate com o  
(Ricardo) Antunes, a nova morfologia, a financeirização do capitalismo. Eu também trabalho  
na disciplina com unidades sobre o serviço social e a inserção na política social.  
Primeiro semestre é isso. Segundo semestre eu discuto as tendências teóricas, então é  
mais árido o debate, sabe? Porque, na verdade, a gente começa do pensamento doutrinário, da  
Igreja, chega no positivismo. E o positivismo de hoje não é aquele positivismo de antes, ele tem  
impressões culturalistas, funcionalistas. A gente aprofunda o culturalismo, e aí eu entro em  
alguns autores como o (Pierre) Bourdieu, o (Michel) Foucault, o Foucault é difícil, mas temos  
muitos alunos que querem estudá-lo. Depois eu debato isso que a gente chama de pensamento  
pós-moderno, a gente trabalha com o (Jean-François) Lyotard, com o Boaventura Sousa de  
Santos. Eu trabalho os pensamentos, as tendências do pensamento social. No campo da tradição  
marxista, é Marx a ênfase, eu trabalho um pouquinho com Gramsci também. Eu gosto de  
Gramsci. Às vezes, eu discuto com outros autores, como (Edward Palmer) Thompson e com  
(Georg) Lukács. Sem abrir mão da opção da tradição marxista, o marxismo dialoga com essas  
correntes. O pessoal gosta muito desse curso, é o debate do pensamento social contemporâneo.  
Com quem nós dialogamos? O que se coloca hoje no debate social? Então vão surgindo autores,  
surgindo teses, a gente vai discutir com alguns autores que estão no debate hoje.  
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Thaisa Closs: Para finalizarmos a entrevista, que desafios você apontaria para a  
produção de conhecimento na área de fundamentos do Serviço Social?  
Maria Carmelita Yazbek: Mais uma vez afirmo que o fundamento da profissão é sua  
inserção na história. Essa inserção exige o desvelamento contínuo da realidade e a produção de  
conhecimentos sobre essa realidade e sobre o trabalho profissional nela inserido. Assim, a  
pesquisa e o processo de produção de conhecimentos são de grande relevância no âmbito da  
profissão. Profissão que tem na pós-graduação um importante suporte, e que alcançou um nível  
de maturação consistente, pela produção de conhecimentos, que ao lado da organização política  
da categoria tem sustentado seu Projeto Profissional. Sobre a pesquisa, gostaria de assinalar a  
importância da inovação em seu âmbito, com novas tecnologias e metodologias, como a  
pesquisa militante e outras estratégias.  
Thaisa Closs: Professora Carmelita muito obrigada pela entrevista!