R E V I S TA  
Revista de Serviço Social  
Programa de Pós-Graduação em Serviço Social  
Curso de Graduação em Serviço Social  
Universidade Federal de Juiz de Fora  
ISSN 1980-8518  
DOSSIÊ:  
Teoria social de Marx,  
desigualdades sociais e  
Serviço Social  
VOLUME 24  
NÚMERO 1  
JANEIRO/JUNHO  
ANO 2024  
EXPEDIENTE  
FOCO E ESCOPO  
CONSELHO EDITORIAL  
A revista Libertas, criada em 2001, é uma  
publicação semestral da Faculdade de Serviço  
Social e do Programa de Pós-Graduação em  
Serviço Social da Universidade Federal de Juiz de  
Fora. Seu objetivo é estimular o intercâmbio da  
produção intelectual, de conteúdo crítico,  
produzida a partir de pesquisas empíricas e  
teóricas, no âmbito brasileiro e internacional,  
sobre temas atuais e relevantes da área do  
Serviço Social e das Ciências Sociais e Humanas,  
com as quais mantem interlocução.  
Alcina Maria de Castro Martins, Instituto  
Superior Miguel Torga, Portugal; Carina Berta  
Moljo, Universidade Federal de Juiz de Fora,  
Brasil; Caterine Reginensi, Ecole Nacionale  
Superieure Agronomique de Toulouse, França ;  
Elizete Menegat, Universidade Federal de Juiz de  
Fora, Brasil; Íris Maria de Oliveira, Universidade  
Federal do Rio Grande do Norte, Brasil; José  
Paulo Netto, Universidade Federal do Rio de  
Janeiro, Brasil; Margarita Rozas Pagaza,  
Universidad Nacional de La Plata, Argentina;  
Maria Aparecida Tardim Cassab, Universidade  
Federal de Juiz de Fora, Brasil; Maria Beatriz  
Abramides, Pontifícia, Universidade Católica de  
São Paulo, Brasil; Maria Patricia Fernandes Kelly,  
Princeton University, EUA; Maria Rosangela  
Batistoni, Universidade Federal de São Paulo,  
Brasil; Marilda Vilella Iamamoto, Universidade  
Estadual do Rio de Janeiro, Brasil; Nicolas Bautes,  
Universite de Caen Normandie, França; Olga  
Mercedes Paez, Universidad Nacional de  
Córdoba, Argentina; Roberto Orlando Zampani,  
Universidad Nacional de Rosário, Argentina;  
Rosangela Nair Carvalho Barbosa, Universidade  
Estadual do Rio de Janeiro; Brasil; Silvia  
Fernandes Soto, Universidad Nacional de Tandil,  
COMISSÃO EDITORIAL  
Drª. Mônica Aparecida Grossi, Faculdade de  
Serviço Social, Universidade Federal de Juiz de  
Fora, Brasil. Editora-chefe.  
Drª. Isaura Gomes de Carvalho Aquino,  
Faculdade de Serviço Social, Universidade  
Federal de Juiz de Fora, Brasil. Editora-adjunta.  
Drª. Alexandra Aparecida Leite Toffanetto Seabra  
Eiras, Faculdade de Serviço Social, Universidade  
Federal de Juiz de Fora, Brasil. Editora-adjunta.  
Luciano Cardoso de Souza, Faculdade de Serviço  
Social, Universidade Federal de Juiz de Fora,  
Brasil. Editor-executivo.  
Argentina;  
Xabier  
Arrizabalo  
Montoro,  
Universidad Complutense de Madri, Espanha.  
Universidade Federal de Juiz de Fora  
Faculdade de Serviço Social  
Programa de Pós-graduação em Serviço Social  
Editores:  
Mônica Aparecida Grossi (editora-chefe);  
Isaura Gomes de Carvalho Aquino (editora-adjunta);  
Alexandra Aparecida Leite Toffanetto Seabra Eiras (editora-adjunta);  
Luciano Cardoso de Souza (editor-executivo).  
Editor de Leiaute:  
Luciano Cardoso de Souza.  
IMAGEM DA CAPA: SOUZA, Luciano Cardoso de. O elefante na sala, 2024.  
IMAGEM DA CONTRACAPA: SOUZA, Luciano Cardoso de. Reconciliação, 2024.  
ARTE CAPA E CONTRACAPA: Luciano Cardoso de Souza.  
Juiz de Fora/MG, junho, 2024.  
FICHA CATALOGRÁFICA  
Libertas / Universidade Federal de Juiz de Fora, Programa de Pós-graduação em Serviço Social,  
Curso de graduação em Serviço Social. n.1 (abril, 2001) .  
Juiz de Fora, ano 2024 –  
v.24, n. 1.  
Semestral  
Resumo em português e inglês  
Vinculada ao Programa de Pós-graduação em Serviço Social e ao Curso de Graduação em  
Serviço Social.  
Versão online ISSN 1980-8518  
1. Serviço Social. 2. Periódico. I. Universidade Federal de Juiz de Fora, Programa de Pós-Graduação em  
Serviço Social. II. Universidade Federal de Juiz de Fora, Curso de Graduação em Serviço Social.  
Publicação indexada em:  
Sumário  
VIII  
Editorial  
Dossiê temático:  
Teoria social de Marx, desigualdades sociais e  
Serviço Social  
Marx diante da França revolucionária na  
Crítica à filosofia do Direito de Hegel  
Vitor Bartoletti Sartori  
1
18  
42  
66  
90  
Teoria social e método em Marx:  
materialismo, história e dialética  
José Amilton de Almeida  
Atividade sensível e gênero humano nos  
Manuscritos econômico-filosóficos de Marx  
Pedro Gomes Barbosa  
A expropriação do mais-trabalho no contexto da  
“caça apaixonada do valor”  
Fernando Araújo Bizerra  
Considerações sobre a atualidade da teoria social  
de Marx no contexto da pós-modernidade  
Inez Rocha Zacarias  
Elziane (Ziza D) Olina Dourado  
Isaura Gomes de Carvalho Aquino  
María Fernanda Escurra  
Neoliberalismo: a lógica irracional do capitalismo em decadência 104  
Natália Perdomo dos Santos  
A “questão da terra” no Brasil: heranças e permanências 126  
na cidade, no campo e na floresta  
Tânia Maria Ramos de Godoi Diniz  
Caroline Magalhães Lima  
Raphael Martins de Martins  
(RE)produção social do capital no Brasil: 146  
flexibilidade da produção e do acesso a direitos  
Maria Augusta Bezerra da Rocha  
Teoria social de Marx e Serviço Social: 163  
aportes para uma abordagem histórico-crítica  
José Fernando Siqueira da Silva  
Totalidade concreta, capitalismo e Serviço Social 187  
Alexandra Aparecida Leite Toffanetto Seabra Eiras  
A tradição marxista na formação em Serviço Social 212  
na Universidade Federal do Piauí  
Sofia Laurentino Barbosa Pereira  
Tema Livre  
Relação Serviço Social e movimentos sociais a partir dos fundamentos 236  
do Serviço Social  
Kathleen Pimentel dos Santos  
A fundamentação dos direitos humanos: tradições teóricas e 251  
aproximação ontológica  
Luís Guilherme Nascimento de Araujo  
Clovis Gorczevski  
Socialização da política versus privatização do Estado: 264  
elementos para reposicionar a democracia em tempos de crise  
orgânica - representação e representatividade  
Bárbara T. Sepúlveda  
Miriam Krenzinger  
Quem construiu o "Caes do Porto"? 282  
As marcas das relações raciais e da superexploração  
Gustavo Gonçalves Fagundes  
Thiago Vinicius Mantuano da Fonseca  
O homem para todas as estações: irracionalismo e 319  
neokantismo na sociologia de Max Weber  
Gabriel Magalhães Beltrão  
VI MINEPS 2017: Esporte, Organismos Internacionais e Neoliberalismo 340  
Marcelo Paula de Melo  
Emanoel Borges Candal  
Fernando Henrique Carneiro  
Entrevista  
O Memórias Reveladas e o desmonte da política pública de abertura 359  
dos arquivos da ditadura militar: entrevista com Inez Stampa  
Entrevistadora: Carina Berta Moljo  
Tradução  
Não está escuro ainda, mas está chegando lá”: 367  
Crises globais, Serviço Social e resistência  
Iain Fergusson  
Michael Lavalette  
Tradução por:  
Giovanna Canêo  
Jhulia Salviano da Silva  
Pedro Gabriel Silva  
Shirleny Pereira de Souza Oliveira  
Antoniana Defilippo  
Editorial  
Teoria social de Marx, desigualdades sociais e  
Serviço Social  
Prezadas(os) leitoras(es) comprazemo-nos em lhes apresentar o Volume 24, n. 01 da  
revista Libertas, ora publicado, em junho de 2024.  
Para nós foi uma grata satisfação recebermos um conjunto de elaborações que, ao  
dialogarem com a teoria social de Marx, reafirmaram a vitalidade de seu pensamento na  
produção acadêmica e sua enorme contribuição para compreender a realidade atual, nas  
diferentes esferas das relações sociais capitalistas.  
O dossiê Teoria social de Marx, desigualdades sociais e Serviço Social traz a público  
algumas das produções acadêmicas de autoras(es) participantes do “Seminário de Estudos sobre  
O Capital, de Karl Marx” (Centro de Estudos Otávio Ianni/CEOI/Universidade do Estado do  
Rio de Janeiro/UERJ). Esse grupo de estudos foi proposto, em sua total constituição e  
elaboração, pela Dra. Marilda Villela Iamamoto (UERJ), a partir da pesquisa “Reprodução das  
relações sociais e Serviço Social no século XXI(CNPq). A pesquisadora e coordenadora  
acadêmica do grupo de Estudos tem o apoio de uma coordenação colegiada com pesquisadoras  
vinculadas à UERJ, UFJF (Universidade Federal de Juiz de Fora) e UFRGS (Universidade  
Federal do Rio Grande do Sul).  
Atualmente, o “Seminário de Estudos sobre O Capital, de Karl Marx”, conta com a  
participação de integrantes da pesquisa internacional em rede, “Serviço Social na História”. Na  
primeira etapa foram realizadas as releituras do livro I, O Capital - Crítica da Economia  
Política: o processo de produção do capital e do Capítulo VI Inédito, com 51 participantes,  
vinculados a 09 universidades brasileiras e 06 estrangeiras. Na segunda etapa, o estudo centrou-  
se no livro II, O Capital - Crítica da Economia Política: o processo de circulação do capital,  
que teve a participação de 42 pesquisadores(as) de 7 universidades brasileiras e 2 estrangeiras.  
A terceira etapa, ainda em curso, tem como proposta a releitura do livro III de O Capital -  
DOI: 10.34019/1980-8518.2024.v24.45028  
Esta obra está licenciada sob os termos  
Recebido em: 25/06/2024  
Aprovado em: 26/06/2024  
Editorial  
Crítica da Economia Política: o processo global da produção capitalista e conta com a  
inscrição de 55 pesquisadores(as), brasileiros e estrangeiros.  
Nessas 3 etapas, o objetivo continuou sendo debater o pensamento social de Marx, no  
esforço da análise histórico-crítica das relações sociais capitalistas na atualidade, tendo em vista  
compreender o significado social da profissão de Serviço Social e como se desenvolve o  
trabalho de assistentes sociais.  
Agradecemos a contribuição dessas(es) pesquisadoras(es) integradas(os) na pesquisa  
em rede internacional “Serviço Social na História” e coparticipantes do Seminário de Estudos  
sobre O Capital, que elaboraram quatro artigos constantes do dossiê. Nesse sentido,  
expressamos ainda, nossa gratidão aos autores Iain Ferguson e Michael Lavalette (docentes  
e pesquisadores do Reino Unido) pela cessão para a tradução de seu artigo intitulado ‘Its not  
dark yet but its getting there’: Global crises, social work and resistance. A tradução foi  
coordenada e revisada por Antoniana Defilippo com a participação de Geovanna Canêo,  
Jhulia Salviano da Silva, Pedro Gabriel e Shirleny P. S. Oliveira. Também agradecemos a  
Inez Stampa e Carina Berta Moljo pela entrevista intitulada “O Memória Reveladas e o  
desmonte da política pública de abertura dos arquivos da ditadura militar”.  
Neste Volume 24, n. 01, expomos 11 artigos vinculados ao dossiê temático “Teoria  
Social de Marx, desigualdades sociais e Serviço Social” e 06 artigos recebidos em fluxo  
contínuo, com a participação de 27 pesquisadoras(es).  
IX  
Os artigos foram escritos por docentes e, também, discentes em processo de pós-  
graduação, advindos de diferentes regiões do Brasil. Não obstante tratarem de temáticas  
diferentes, os artigos dialogam muito entre si.  
Em um primeiro bloco, agrupam-se as elaborações de Sartori, Almeida, Barbosa e  
Bizerra. A posição de Marx diante da Revolução Francesa e de seus desdobramentos na Crítica  
à filosofia do Direito de Hegel é analisada por Vitor Sartori indicando que ele “vislumbra algo  
distinto do que se coloca na república nascida na França e da monarquia colocada na restauração  
e na revolução de 1830” ou seja, “não há elogio acrítico da revolução de 1789 ou da miséria  
alemã”. O artigo de José Amilton Almeida ao tratar dos fundamentos da teoria social marxiana,  
isto é, do assim chamado “materialismo histórico e dialético”, conclui que “perpassando pela  
crítica religiosa à crítica do Direito e do Estado, pela crítica da filosofia à crítica da economia  
política, o modo de ser socialmente burguês é desvelado, seu movimento e estrutura  
são racionalmente apreendidos, as classes fundamentais (capitalistas, proprietários de terras e  
proletários), evidenciadas, e o método através do qual este modo de ser opera mostra-se, então,  
determinado pelo modo de produção”. Pedro Barbosa demonstra que a “constatação das  
Teoria social de Marx, desigualdades sociais e Serviço Social  
determinações gerais do ser social tornou possível a Marx lidar com o problema da negação do  
homem na atividade estranhada. Indo à raiz do ser social – tanto ao complexo da individualidade  
quanto ao “complexo de complexos da universalidade social” –, a crítica ontológica da  
economia política, iniciada nos Manuscritos econômico-filosóficos, permitiu a Marx, por um  
lado, demonstrar os problemas da produção capitalista – o estranhamento do homem em relação  
ao objeto que produz, o estranhamento-de-si e da própria atividade, o estranhamento em relação  
ao gênero autoproduzido, e o estranhamento em relação aos demais –; e, por outro, tornar  
explícitas as categorias e determinações mais gerais do ser social”. Fernando Bizerra “oferece  
uma síntese teórico-interpretativa, a partir de exegeses e análises econômicas de Karl Marx,  
sobre a expropriação do mais-trabalho na sociedade capitalista”, “os elementos coligidos  
permitem a compreensão de que a expropriação do mais-trabalho que nutre os capitalistas ao  
longo dos últimos séculos ocorre em plena sintonia com a dinâmica sociorreprodutiva do  
capital, sendo, pois, uma exigência inflexível deste”.  
Na sequência, contamos com as elaborações de Aquino, Dourado, Escurra e Zacarias, e  
de Santos, as quais enfatizam a crítica às elaborações “pós-modernas”. Isaura Aquino, Inez  
Zacarias, Maria Fernanda Escurra e Ziza Dourado tecem considerações teóricas e  
metodológicas com o objetivo de “afirmar a atualidade do pensamento marxiano, com ênfase  
na natureza radical e historicidade da sua crítica. Tais considerações são recuperadas no  
contexto do debate da pós-modernidade e de suas implicações para a vida social e a ciência”.  
As autoras sintetizam: “a consciência pós-moderna é uma perspectiva, uma forma de  
compreender a realidade, mas de forma alguma corresponde a essa realidade. Ao contrário, ela  
desempenha o papel de mistificar essa realidade (...) as estruturas de exploração e domínio  
burguesas continuam mais fortes do que nunca. Exatamente por tentar eliminar a ontologia dos  
processos sociais, ignorando a historicidade dos fenômenos, o pensamento pós-moderno é tão  
funcional a esse sistema”. Natália Perdomo Santos analisa “os fundamentos constitutivos do  
neoliberalismo, que o configuram como uma estratégia de reprodução do capitalismo tardio (...)  
Resulta desta etapa a reconfiguração das relações e dos seres sociais na sua totalidade, os quais  
passam a expressar nos costumes o irracionalismo do capitalismo em decadência. Este é o  
marco a partir do qual será tecida uma crítica ao pensamento mistificador formulado pelos  
foucaultianos Dardot e Laval, exposta no livro 'A Nova Razão do Mundo'”.  
X
Com ênfase na análise sobre o Brasil, Diniz, Magalhães e Martins; e Rocha, apresentam  
elementos importantes para a compreensão da questão social e para a “agenda” do Serviço  
Social brasileiro. Tânia Maria Ramos de Godoi Diniz, Caroline Magalhães Lima e Raphael  
Martins, “a partir de categorias marxianas e de intérpretes marxistas, realizam apontamentos  
Libertas, Juiz de Fora, v. 24, n. 1, p. VIII-XIV, jan./jun. 2024. ISSN 1980-8518  
Editorial  
sobre a “questão da terra”, explicitando heranças e permanências que marcam sua disputa na  
cidade, no campo e na floresta. Essa chave analítica é fundamental para o trabalho de assistentes  
sociais, na apreensão dos sentidos da dinâmica da produção e reprodução das relações sociais  
capitalistas e identificação das mediações necessárias ao enfrentamento das expressões da  
“questão social”, que assume novas complexificações em tempos de reconfiguração do  
capitalismo mundializado”. Maria Augusta Rocha analisa como a produção flexível implica  
em direitos flexíveis tendo como foco o cenário recente pós-golpe de 2016, no Brasil.  
“Elemento central dessas transformações e foco deste trabalho é que os desdobramentos das  
mudanças no processo produtivo também possuem impactos na reprodução social da vida da  
classe trabalhadora e no seu acesso a direitos sociais e trabalhistas (...) Em países de capitalismo  
periférico e dependente como o Brasil, esses rebatimentos são ainda mais intensos tendo em  
vista que possuem desde suas bases de formação social uma produção especializada para o  
mercado internacional e exploração intensiva da força de trabalho com baixa remuneração”.  
A contribuição da teoria social de Marx para a compreensão do Serviço Social está  
presente nos artigos escritos por Silva, Eiras, Pereira. José Fernando Siqueira da Silva debate  
o sentido da perspectiva histórico-crítica a partir da teoria social de Marx. Propõe “dialogar  
com o Serviço Social como profissão no atual estágio de acumulação capitalista, nas condições  
particulares da América Latina (...) O artigo conclui que este debate “é pertinente e necessário,  
ainda que seja fundamental considerar as inúmeras tensões e contradições inerentes a este  
processo". Segundo o autor, para o Serviço Social histórico-crítico, de raiz marxista, não há  
modelo a ser aplicado. “Ao contrário, [negam-se] modelos, receitas, aplicações de qualquer  
espécie, exige-se um sujeito ativo que atue na história – onde se situa a profissão – sempre de  
forma relativa (não plena), construindo conhecimentos a partir da realidade, analisando sua  
dinâmica, reconstruindo categorias que [explicam] o ser social. (...) É também um compromisso  
ético-político (...) que rejeita “neutralidades”, questiona diversas formas de ciências descritivas  
e opõe-se a todas as orientações e posturas obscurantistas e de base fascista”. Alexandra  
Aparecida Leite Toffanetto Seabra Eiras evidencia a “relação entre totalidade concreta e  
capitalismo, a partir da argumentação de Marx e Engels e do diálogo com pesquisadores  
marxistas, em um estudo preliminar para compreender os fundamentos históricos das  
perspectivas críticas/contestatórias ao Serviço Social Tradicional (SST), emergentes nas  
décadas de 1960-1970, no plano desta totalidade, de um modo global”. A autora adotou a  
hipótese de que a emergência da perspectiva crítica/contestatória ao SST nesses países, no  
período de 1960-1980, teve como fundamento histórico a inserção da profissão na totalidade  
concreta das relações sociais capitalistas. “Foi necessário explicitar a compreensão dessa  
XI  
Teoria social de Marx, desigualdades sociais e Serviço Social  
totalidade concreta para entender o processo nesta dimensão transversal aos países analisados,  
por isso, recorremos à Marx e Engels, e aos historiadores no campo do marxismo, para formular,  
ainda que de modo inicial, essa explicação sobre o processo histórico global que se instaura  
com o desenvolvimento das relações sociais capitalistas perpassado pela contradição (unidade  
e antagonismo) entre capital e trabalho”. Sofia Laurentino Barbosa Pereira analisa a  
“influência da tradição marxista na formação profissional no curso de graduação em Serviço  
Social da Universidade Federal do Piauí, nas quatro propostas curriculares implantadas na  
trajetória do curso, de 1976 a 2012 (...) O estudo contribui com a literatura sobre os fundamentos  
do Serviço Social e sua interlocução com o pensamento social de Marx, revelando as tendências  
teórico-metodológicas, as direções e os projetos de profissão e de sociedade construídos nos  
processos formativos no percurso histórico do curso da UFPI”.  
Ainda, nos artigos de tema livre, abre a seção Kathleen Pimentel dos Santos,  
apresentando a discussão acerca da relação entre Serviço Social e movimentos sociais na ótica  
dos fundamentos da profissão. A partir de pesquisa bibliográfica, qualitativa e exploratória  
busca compreender como esta relação se processa no âmbito profissional e evidencia que,  
através de processos aproximativos, ainda que, haja concordância na categoria profissional  
acerca dessa relação, há questões relevantes que devem ser consideradas. A mais importante  
delas é a de que há poucas pesquisas e produções acadêmicas sobre a temática no Serviço  
Social. Na sequência, Luís Guilherme Nascimento de Araujo e Clovis Gorczevski, através  
de pesquisa bibliográfica, trazem importante contribuição sobre as bases históricas e filosóficas  
presentes nos debates europeu, anglo-saxão e norte-americano que versam sobre direitos  
humanos em seus fundamentos ontológicos. Destarte, o caráter inédito do trabalho está em  
descortinar as “particularidades do ser social como ser automediador através do trabalho e na  
dinamicidade imanente das suas relações como ser histórico.” O artigo de Bárbara T.  
Sepúlveda e Miriam Krenzinger analisa com propriedade a problematização central  
apresentada, qual seja, como ocorre “a representação político-partidária” na particularidade da  
formação sócio-histórica brasileira de segmentos subalternizados, especificamente o de  
mulheres negras. Essa abordagem abarca a contraditória e desigual relação no modo de  
produção capitalista periférico, numa perspectiva de totalidade que articula sujeitos sociais,  
Estado e acumulação capitalista. Ao apresentarem um debate necessário e urgente, Gustavo  
Gonçalves Fagundes e Thiago Vinicius Mantuano da Fonseca abordam o racismo nas  
relações sociais de superexploração da força de trabalho na construção do cais do porto do Rio  
de Janeiro, no início do século XX. A reflexão deles é consistente e indispensável, não só para  
profissionais e estudantes de Serviço Social, mas para pesquisadores em geral. Em tempos de  
XII  
Libertas, Juiz de Fora, v. 24, n. 1, p. VIII-XIV, jan./jun. 2024. ISSN 1980-8518  
Editorial  
ascensão da extrema-direita e de análises que perpassam o fatalismo e o conservadorismo, as  
reflexões tecidas por Gabriel Magalhães Beltrão acerca do irracionalismo que entrelaça o  
pensamento de Max Weber são densas na sua construção e potente na análise. Para tanto, recorre  
às fontes clássicas e alimenta o debate contemporâneo não só do Serviço Social, mas das  
Ciências Sociais. Marcelo Paula de Melo, Emanoel Borges Candal e Fernando Henrique  
Carneiro analisam as estratégias burguesas para a Educação Física/Esportes, no plano  
internacional, através das “indicações e recomendações da VI Conferência de Ministros e Alto  
Funcionários da Educação Física e do Esporte (MINEPS - vinculado à ONU/UNESCO),  
realizada em Kazan (Rússia) no ano de 2017 e suas relações com as políticas públicas de  
Esporte, Educação Física e Lazer. Os autores afirmam que “ao longo das reflexões, foi possível  
perceber uma Educação Física voltada à difusão de valores nos marcos do capital, em especial  
com características de associação às demandas estruturais neoliberais pelo alto desemprego e  
informalidade”.  
A imagem que ilustra a capa desta edição, elaborada por Luciano Souza, busca  
representar o avanço da “civilização” humana contra a natureza, nos servindo de lembrete sobre  
o futuro catastrófico que há tanto tempo fingimos ignorar. O edifício moderno, imponente e  
reluzente, simboliza o ambicioso “progresso” humano – a materialização do fetichismo da  
mercadoria descrito por Marx – que estimula relações sociais que priorizam o lucro e a  
acumulação incessante de capital. Projetada sobre o edifício há a sombra de uma árvore que, ao  
mesmo tempo em que representa a solitária resistência da Mãe Terra à degradação ambiental  
gerada por essa busca insaciável, reflete a ignorância humana que se furta a reconhecer o  
impacto devastador de suas ações sobre a natureza e tenta se convencer, em vão, de que o  
crescimento econômico pode continuar indefinidamente sem consequências. Entretanto, o  
vibrante céu azul simboliza a possibilidade de mudança, uma lembrança de que, somente ao  
romper com a ignorância de que vivemos sob o desígnio de ideologias que nos dessensibilizam  
e promovem uma percepção distorcida da realidade, a humanidade poderá encontrar um  
caminho para a reconciliação com a natureza, ou seja, consigo mesma, colocando fim ao seu  
processo de autodestruição.  
XIII  
Ao finalizar o Editorial, registramos nosso apoio ao movimento paredista coordenado  
pelas entidades sindicais, sobretudo, ANDES e FASUBRA, e no plano local, APES-JF e  
SINTUFEJUF. As ações empreendidas durante a greve buscaram disputar e fortalecer o campo  
da educação pública, da pesquisa e produção acadêmica no Brasil, através dos recursos que são  
imprescindíveis para a sua implementação, seja nas condições de acesso e permanência dos  
estudantes, seja na manutenção e ampliação do patrimônio e das condições de trabalho para o  
Teoria social de Marx, desigualdades sociais e Serviço Social  
conjunto dos(as) trabalhadores(as).  
Frisamos ainda que as atividades necessárias à publicação deste número da revista  
Libertas foram consideradas pelo Comando Local de Greve do SINTUFEJUF como de caráter  
excepcional e por isso puderam ser mantidas durante a greve.  
Antes de finalmente nos despedir, gostaríamos de saudar e manifestar nosso  
agradecimento a Mônica Grossi pelo trabalho que realizou como editora-chefe na Libertas.  
Desejamos à nossa cara companheira de luta muito sucesso nos novos projetos que irá conduzir  
– razão pela qual deixará de compor a Comissão Editorial da Libertas. Felicidades, Mônica!  
Juiz de Fora, 26 de junho de 2024.  
Isaura Aquino, Alexandra Eiras, Mônica Grossi e Luciano Souza.  
XIV  
Libertas, Juiz de Fora, v. 24, n. 1, p. VIII-XIV, jan./jun. 2024. ISSN 1980-8518  
Marx diante da França revolucionária na  
Crítica à filosofia do Direito de Hegel  
Marx towards revolutionary France in the  
Critic of Hegel´s Philosophy of Law  
Vitor Bartoletti Sartori*  
Resumo: Analisaremos a posição de Marx  
diante da Revolução Francesa e de seus  
desdobramentos na Crítica à filosofia do Direito  
de Hegel. Mostraremos que, já no início de  
1843, a revolução de 1789 não é um modelo  
para Marx ao se pensar o futuro. Antes, ela  
expressa a consolidação da oposição entre o  
social e o político, bem como o mútuo  
estranhamento entre sociedade civil-burguesa e  
Estado. Aquilo que se passa na França depois  
Abstract: We will analyze Marx's position in  
the face of the French Revolution and its  
consequences in the Critique of Hegel's  
Philosophy of Law. We will show that the  
revolution of 1789 is not a model for Marx  
when thinking about the future. It expressed the  
consolidation of the opposition between the  
social and the political, as well as the mutual  
estrangement between civil-bourgeois society  
and the State. What happens in France after the  
revolutionary events is seen as an advance, and  
as something superior to the German  
constitutional monarchy, defended by Hegel.  
However, both, the republican and monarchical  
state constitutions, are seen as marked by  
political representation and the typical  
abstraction of understanding. A clear defense of  
democracy would be necessary, which  
ultimately ends up considering that the State is  
a predicate of society, and not the opposite, as  
occurs in Hegel´s Philosophy of Law.  
dos  
acontecimentos  
revolucionários  
é
enxergado como um avanço, e como algo  
superior à monarquia constitucional alemã,  
defendida por Hegel. Porém, tanto  
a
constituição estatal republicana quanto a  
monárquica são enxergadas como marcadas  
pela representação política e pela abstração  
típica do entendimento, de modo que seria  
preciso uma defesa decidida da democracia, a  
qual finalmente acaba por reconhecer que o  
Estado é um predicado da sociedade, e não o  
oposto, como ocorre na Filosofia do Direito.  
Palavras-chaves: Marx; Crítica da filosofia do  
Direito de Hegel; Revolução Francesa;  
Estranhamento político.  
Keywords: Marx; Critic of Hegel´s philosophy  
of Law; French Revolution; Political alienation  
* Professor adjunto da Universidade Federal de Minas Gerais, Belo Horizonte, Minas Gerais, Brasil. Mestre em  
História social pela PUC SP e doutor em teoria e filosofia do Direito pela USP. ORCID: https://orcid.org/0000-  
DOI: 10.34019/1980-8518.2024.v24.42580  
Esta obra está licenciada sob os termos  
Recebido em: 25/10/2023  
Aprovado em: 06/11/2023  
Vitor Bartoletti Sartori  
Introdução  
No presente texto, intentamos analisar a transformação dos estamentos políticos em  
estamentos sociais na Crítica da filosofia do Direito de Hegel. Procuraremos demonstrar que,  
já no início de 1843, a distinção entre o âmbito político e social é de grande importância para  
Marx. Sua interpretação sobre a Revolução Francesa liga tal transformação à força do  
legislativo, à abstração presente no Estado e no Direito e, indiretamente, a possibilidade da  
emergência da forma política da democracia.  
A partir do que Chasin chamou de análise imanente1, explicitaremos como que, no texto  
aqui analisado, Marx não é um simples defensor da Revolução Francesa ao mesmo tempo em  
que não toma o atraso alemão como medida para tratar do presente.  
A peculiaridade da Crítica à filosofia do Direito de Hegel no percurso formativo de  
Marx  
As diferenças de Marx quanto à posição hegeliana já aparecem em seu doutoramento,  
em que o autor destaca a necessidade de uma posição reflexiva, e não imediata, com o autor da  
Fenomenologia (Marx, 1974). Não seria possível simplesmente adotar as conclusões de Hegel  
em uma época posterior àquela do autor. Seria preciso, pois, buscar mediações históricas, para  
que se enxergasse o pensamento hegeliano em sua época e para que se pudesse progredir, tendo  
em conta o desenvolvimento histórico do gênero humano, diante daquilo deixado pelo autor.  
Nesse sentido, A diferença entre as filosofias da natureza de Demócrito e de Epicuro,  
de 1841, trata de autores que pouca importância tiveram no sistema hegeliano. Marx, com isso,  
questiona o posicionamento hegeliano sobre a filosofia ao abordar os mencionados pensadores.  
Porém, haveria algo mais, e que nos é fundamental sobre a relação de Marx com Hegel: ao  
contrário do que acontece com parte substancial dos neohegelianos – exceção feita a Feuerbach  
(Cf. Marx; Engels, 2003; 2007) –, para Marx, seria preciso questionar os próprios princípios da  
dialética do autor da Filosofia do Direito. Ou seja, é preciso muito cuidado ao classificar Marx  
como um “neohegeliano”.  
2
Primeiramente, isso se dá porque os próprios grupos que se autoproclamavam discípulos  
de Hegel eram muito heterogêneos (Cf. Heinrich, 2019). Porém, e mais fundamental para nós:  
1
Como diz Chasin: “tal análise, no melhor da tradição reflexiva, encara o texto – a formação ideal – em sua  
consistência autosignificativa, aí compreendida toda a grade de vetores que o conformam, tanto positivos como  
negativos: o conjunto de suas afirmações, conexões e suficiências, como as eventuais lacunas e incongruências  
que o perfaçam. Configuração esta que em si é autônoma em relação aos modos pelos quais é encarada, de frente  
ou por vieses, iluminada ou obscurecida no movimento de produção do para-nós que é elaborado pelo investigador,  
já que, no extremo e por absurdo, mesmo se todo o observador fosse incapaz de entender o sentido das coisas e  
dos textos, os nexos ou significados destes não deixariam, por isso, de existir [...]” (Chasin, 2009, p. 26).  
Libertas, Juiz de Fora, v. 24, n. 1, p. 1-17, jan./jun. 2024. ISSN 1980-8518  
Marx diante da França revolucionária na Crítica à filosofia do Direito de Hegel  
ao passo que tais grupos reivindicavam o verdadeiro legado hegeliano, Marx já se encontra  
criticando os pontos de partida do hegelianismo.  
E, assim, a relação reflexiva que Marx reivindica para si levaria à impossibilidade de  
simplesmente se declarar como um “hegeliano” puro. Antes, tratar-se-ia de reconhecer o lugar  
de Hegel na história, ao mesmo tempo em que a superação do sistema e da dialética hegeliana  
estariam na ordem do dia para a filosofia e para o trabalho da filosofia.  
Levantamos tais aspectos para que a Crítica da filosofia do Direito de Hegel possa ser  
vista com mais cuidado: não se trata do primeiro momento em que Marx questiona Hegel.  
Também não se está diante de um autor que realiza uma autocrítica radical quanto à sua posição  
anterior: na mesma época em que escreve o texto, Marx continua a se referir, em suas cartas,  
aos textos da Gazeta Renana, por exemplo (Cf. Marx; Engels, 2020). Se há mudanças na  
posição do autor – e claramente elas estão no texto (Cf. Sartori, 2020) – elas são o resultado de  
um percurso longo, que precisa ser estudado com cuidado.  
E, como não poderia deixar de ser, tais mudanças dizem respeito tanto à sua posição  
política (que não se confunde mais com aquela da defesa do Estado racional, ou do Estado  
político pleno, como na Gazeta Renana)2 quanto às questões de princípio. Quanto a esse último  
aspecto, a especulação hegeliana é criticada na medida em que a própria política ficaria  
eclipsada diante do idealismo especulativo do autor, para quem:  
3
A essência das determinações do Estado não consiste em que possam ser  
consideradas como determinações do Estado, mas sim como determinações  
lógico-metafísicas em sua forma mais abstrata. O verdadeiro interesse não é a  
filosofia do direito, mas a lógica. O trabalho filosófico não consiste em que o  
pensamento se concretize nas determinações políticas, mas em que as  
determinações políticas existentes se volatilizem no pensamento abstrato. O  
momento filosófico não é a lógica da coisa, mas a coisa da lógica. A lógica  
não serve à demonstração do Estado, mas o Estado serve à demonstração da  
lógica (Marx, 2010, p. 38-39).  
A especulação hegeliana levaria a uma posição lógico-metafísica diante do Estado e do  
Direito. Esses últimos acabariam por ser subsumidos à esquemas lógicos e especulativos, nos  
quais as determinações políticas acabariam por se volatilizar.  
Marx, por outro lado, defende justamente a necessidade de captar a lógica da coisa, as  
determinações políticas, e o próprio Direito. E, assim, ao passo que, para Hegel, a filosofia  
acaba por subordinar em seu caráter abstrato a concretude da realidade, para Marx, tem-se o  
oposto: o trabalho filosófico deve apreender as determinações políticas existentes, o Direito e  
a lógica da coisa. Para o autor da Filosofia do Direito, tem-se a busca pela coisa da lógica; já,  
2 Sobre o assunto do Estado racional, Cf. Eidt (1998).  
Vitor Bartoletti Sartori  
em Marx, procura-se, ao contrário, a diferença específica colocada na própria realidade e na  
lógica específica do objeto específico. Tem-se, assim, uma inversão em Hegel: a realidade  
mesma aparece como um predicado da ideia, e não o oposto. Na síntese de Leonardo de Deus:  
“Marx critica Hegel por promover uma autêntica ontologização da ideia e, consequentemente,  
uma desontologização da realidade” (De Deus, 2014, p. 21). Marx, com isso, defende o estatuto  
ontológico (Cf. Chasin, 2009) das categorias, as quais, como ele dirá posteriormente,  
“expressam formas de ser determinações de existência” (Marx, 2011, p. 59)3. A posição da  
Crítica à filosofia do Direito de Hegel, com isso, é bastante importante no itinerário formativo  
de Marx.4 Mesmo que não traga uma reviravolta completa (pois Marx já criticava Hegel), e que  
na obra não se tenha a posição política comunista de Marx (como acontecerá ainda no final de  
1843), ela traz algo essencial: uma posição clara quanto ao estatuto do pensamento, que capta  
o movimento da própria realidade, cuja existência é objetiva.  
Revolução Francesa, estamentos políticos e sociais diante da vida política e da vida  
privada  
Marx, assim, critica substancialmente o sistema hegeliano.5 Trata de mostrar como seu  
princípio é marcado pela especulação e pela inversão entre sujeito e predicado. Ao analisar a  
política, o autor da Crítica da filosofia do Direito de Hegel explicita como que a classe universal  
trazida por Hegel (a burocracia) está maculada pelo particularismo, de modo que se coloca com  
tonalidades teológicas: “o espírito burocrático é um espírito profundamente jesuítico, teológico.  
Os burocratas são os jesuítas do Estado, os teólogos do Estado” (Marx, 2010, p. 65). Longe de  
se ter qualquer Estado racional, tem-se o nível da teologia (e não da filosofia, por exemplo), de  
modo que o Estado não se coloca como um instrumento de realização da razão na história, como  
quer Hegel. O trabalho filosófico, assim, não é realizado; a ideia aparece como uma espécie de  
demiurgo do real. A ideia de burocracia, assim, parece se sobrepor à burocracia mesma ao passo  
4
3 Para uma abordagem da teoria das abstrações de Marx, Cf. Chasin (2009) e Assunção (2014).  
4 Acreditamos ser importante estudar esse texto, portanto. Isso se dá também porque o melhor da crítica marxista  
ao Direito, infelizmente, acaba por não o estudar. No texto de Naves (2014), A questão do Direito em Marx, não  
há um tratamento dedicado ao livro que aqui mencionamos. Ele é abordado, muito rapidamente, em conjunto com  
outras obras supostamente anteriores ao “corte epistemológico” existente na obra marxiana a partir de A ideologia  
alemã.  
5 Também por essa razão, não podemos concordar com Furet quando diz que “o jovem Marx conhecia Hegel da  
primeira à última linha e foi por seu intermédio que tomou conhecimento da Revolução Francesa, antes de estudá-  
la na historiografia francesa” (Furet, 1989, p. 13). O autor francês parece tomar Marx como alguém que emula  
Hegel no seu tratamento da revolução de 1789 quando, em verdade, trata-se de entender justamente a peculiaridade  
do pensamento marxiano. Noutro momento, o pensador francês realiza o mesmo procedimento ao se ter a  
influência de Feuerbach: “o Marx de 1843-44 está em pleno entusiasmo feuerbachiano; propõe-se a criticar a  
concepção hegeliana de Estado e a fazer com o Estado hegeliano o mesmo que Feuerbach faz com a alienação  
religiosa” (Furet, 1989, p. 12). Em ambos os casos, o texto do Marx, ao fim, aparece como uma mera sombra do  
pensamento de outros pensadores.  
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Marx diante da França revolucionária na Crítica à filosofia do Direito de Hegel  
que essa última, em verdade, é mesquinha. Ela expressa “a real falta de espírito do Estado” que  
é transformada “em imperativo categórico. A burocracia se considera o fim último do Estado”  
(Marx, 2010, p. 65). Portanto, somente com uma logicização de uma classe universal – e com  
a suposição de que a monarquia constitucional é capaz de trazer uma pessoa, o monarca, como  
alguém que está acima da sociedade, bem como sem apreender o ser da burocracia mesma – é  
que Hegel toma a esfera estatal como racional, universal e capaz de reconciliar as contradições  
e as oposições da sociedade civil-burguesa.  
Após questionar o princípio especulativo da filosofia hegeliana, nosso autor ataca a  
leitura da Filosofia do Direito sobre a potencialidade do Estado moderno, portanto.  
Da crítica ao caráter especulativo – e, no limite, teológico – do pensamento hegeliano,  
vai-se à crítica da posição do autor sobre a política e sobre o Estado moderno.  
Marx, porém, já no início de 1843, não pode se contentar com tais conclusões.  
Uma das descobertas mais importantes de sua Crítica à filosofia do Direito de Hegel é  
aquela segundo a qual, na oposição entre Estado e sociedade, a sociedade civil-burguesa é o  
sujeito e a esfera política é um predicado dessa sociedade. Para nosso autor, ao contrário do que  
ocorre na especulação hegeliana, “família e sociedade civil[-burguesa] são os pressupostos do  
Estado; elas são os elementos propriamente ativos; mas, na especulação, isso se inverte” (Marx,  
2010, p. 30). E, dessa maneira, é preciso se voltar às próprias determinações da sociedade, no  
caso, como disse Marx posteriormente, da “‘sociedade [civil-]burguesa’, que se preparou desde  
o século XVI e que, no século XVIII, deu largos passos para sua maturidade” (Marx, 2011, p.  
54). Ou seja, mesmo que Marx ainda não traga em seu repertório uma crítica da economia  
política madura e posta de modo plenamente consciente, ele precisa se voltar à compreensão  
do elemento social, o qual se coloca na sociedade que analisa. E, com isso, o autor aborda o  
impacto da Revolução Francesa na história, mais precisamente: ele analisa como que a própria  
oposição entre o político e o Estado de um lado, e o social e a sociedade doutro se colocam na  
moderna sociedade civil-burguesa a partir dessa revolução e de suas consequências.  
5
Somente a Revolução Francesa completou a transformação dos estamentos  
políticos em sociais, ou seja, fez das distinções estamentais da sociedade  
civil[-burguesa] simples distinções sociais, distinções da vida privada, sem  
qualquer significado na vida política. A separação da vida política e da  
sociedade civil[-burguesa] foi, assim, consumada (Marx, 2010, p. 97).  
É também por perceber que a sociedade civil-burguesa é o sujeito e o Estado o predicado  
que Marx traz a Revolução Francesa à tona. A partir da análise desse acontecimento, resta claro  
que o elemento social e o político são distintos. E mais: em verdade, eles estão presentes na  
Vitor Bartoletti Sartori  
própria oposição entre sociedade civil-burguesa (e vida civil-burguesa) de um lado e o Estado  
(também a vida política) de outro.  
Tal contraposição é característica do modo pelo qual se conforma o Estado moderno,  
por meio de uma oposição e mútuo estranhamento entre a vida política e a vida civil-burguesa  
(Cf. De Deus, 2014). E, com isso, ao contrário do que acontecia em 1842 na Gazeta Renana,  
Marx não se baseia mais na superioridade do Estado político e racional diante do privilégio e  
do particularismo; ele enxerga esses dois últimos como determinações de uma situação em que  
a vida política e a privada se contrapõem (Cf. Sartori, 2020). As distinções estamentais se vão  
com a Revolução Francesa e o privilégio, bem como as prerrogativas privilegiadas, tornam-se  
algo já ultrapassado do ponto de vista histórico-mundial. No lugar deles, depois dessa  
revolução, tem-se o tempo do Direito baseado na oposição entre o público e o privado, bem  
como na existência de estamentos sociais. As distinções estamentais se tornam sociais e a  
oposição entre vida privada e vida política se explicita com força. Ou seja, Marx olha para a  
Revolução Francesa como um avanço diante da feudalidade; no entanto, o Estado trazido por  
essa revolução não é resolutivo das condições sociais do mundo moderno. Antes, ele consolida  
e reconhece o mútuo estranhamento entre o elemento político e a vida civil-burguesa.  
A Revolução Francesa traz à cena uma situação em que a contraposição entre o público  
e o privado não é resolvida. Antes, ela é reconhecida como um fundamento inatingível. A  
revolução acaba por superar os estamentos políticos, mas mantém os sociais e, desse modo, a  
vida civil-burguesa moderna prevalece de modo particularista.  
6
Os entraves que marcaram a feudalidade são, em linhas gerais, superados. Mas os  
entraves que marcam o mundo moderno emergem e são expressos na oposição, bem como no  
estranhamento, entre a sociedade e a vida civil-burguesa de um lado e o Estado e a vida política  
de outro. David Maclellan diz que “para todos os intelectuais alemães, a Revolução Francesa  
era a revolução. E Marx e seus amigos Jovens Hegelianos constantemente se comparavam aos  
heróis de 1789” (Mclellan, 2023, p. 146). E, pelo que vemos, ele está bastante enganado.  
Primeiramente, não é possível colocar Marx em conjunto com os neohegelianos sem inúmeras  
mediações. Em segundo lugar, o biógrafo de Marx está equivocado porque toma a Revolução  
Francesa como algo a ser resolutivo para o pensamento marxiano. Pelo que vemos, antes, ela  
traz os problemas tipicamente modernos; ela explicita questões que fazem parte da própria  
constituição da política e do Direito modernos, os quais são tratados na Crítica à filosofia do  
Direito de Hegel.  
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Marx diante da França revolucionária na Crítica à filosofia do Direito de Hegel  
AAlemanha diante da Revolução Francesa no começo de 1843  
Analisando a política e o Direito, Marx critica a posição hegeliana, a qual julga estar  
aquém daquela dada pela Revolução Francesa. A defesa da monarquia constitucional  
preservaria a contradição e o mútuo estranhamento entre sociedade civil-burguesa e Estado. E,  
assim, tanto seria necessário mostrar o anacronismo da política alemã quanto não bastaria  
remeter aos princípios da revolução de 1789. Ao analisar a centralidade que adquire o que Hegel  
chama de poder governamental (que seria exercido pelo monarca), o autor da Crítica à filosofia  
do Direito de Hegel acaba por remeter aos diferentes poderes presentes no Estado e os compara  
tendo em conta o seu potencial:  
O poder legislativo fez a Revolução Francesa; lá onde ele, em sua  
particularidade, apareceu como dominante, ele fez, em geral, as grandes  
revoluções universais orgânicas; ele não combateu a constituição, mas uma  
particular constituição antiquada, precisamente porque o poder legislativo era  
o representante do povo, da vontade genérica. Em contrapartida, o poder  
governamental fez as pequenas revoluções, as revoluções retrógradas, as  
reações; ele não fez a revolução por uma nova constituição, contra uma antiga,  
mas a fez contra a constituição, precisamente porque o poder governamental  
era o representante da vontade particular, do arbítrio subjetivo, da parte  
mágica da vontade (Marx, 2010, p. 97).  
Na contraposição à Hegel, Marx ataca a importância que o autor atribui ao monarca. Em  
sua visão, em verdade, o soberano aparece como uma pessoa (e não como o povo como um  
todo) dotada de arbítrio, e não como a expressão da liberdade. Com isso, sequer se chega ao  
patamar da Revolução Francesa em que a constituição (entendida aqui como uma configuração  
específica do Estado, como a da monarquia, e não no sentido do moderno constitucionalismo)  
consegue representar o povo, com sua vontade genérica.  
7
Ou seja, tanto no caso alemão quanto no francês a representação política está presente.  
Em ambos os países, têm-se sérios problemas, tanto porque ainda há estamentos políticos e  
privilégios quanto ao se trazer à tona o estranhamento político e os estamentos sociais. No  
entanto, seria gritante o anacronismo da defesa da monarquia constitucional.  
Nesta forma de governo, o arbítrio domina e o soberano representa uma vontade pessoal  
e particular, a qual Hegel acaba por dar uma tonalidade universal somente ao passo que põe em  
funcionamento o pior do idealismo especulativo: em meio à logicização da realidade, o real  
torna-se um mero fenômeno da ideia de soberania defendida por Hegel; porém, em verdade, a  
ideia não pode ser outra coisa que um espelhamento da própria realidade.6 A especulação  
6
Como bem coloca Rubens Enderle: “a inversão determinativa entre sujeito e predicado é, portanto, a inversão  
ontológica entre a determinação real e a determinação ideal, o conteúdo concreto e a ideia abstrata ou, poder-se-ia  
dizer, o ser e o pensar. A Ideia é feita sujeito, na medida em que a ela é conferido o poder de engendrar, a partir  
de si mesma, suas determinações concretas, finitas” (Enderle, 2005, p. 19).  
Vitor Bartoletti Sartori  
hegeliana se coloca de tal maneira que “o real torna-se fenômeno; porém, a Ideia não tem outro  
conteúdo a não ser esse fenômeno. Também não possui a Ideia outra finalidade a não ser a  
finalidade lógica” (Marx, 2010, p. 30). Hegel quer resolver as contradições presentes na  
realidade a partir do que chama – de modo bastante sui generis, diga-se de passagem – de poder  
governamental.7 Ocorre, porém, que, na realidade mesma, o monarca corporifica o arbítrio, e  
não a liberdade, o particular, e não o universal (Cf. Palu, 2019). Há, portanto, um nexo  
ineliminável entre a crítica marxiana à posição política e ao funcionamento do sistema  
hegeliano.  
Para Marx, o poder legislativo, em oposição ao poder governamental, teria tido um papel  
progressista. No limite, foi ele que fez a Revolução Francesa. Nela, a vontade genérica e a  
universalidade (ainda abstrata, porque calcada na oposição entre sociedade civil-burguesa e  
Estado) prevalecem. Trata-se do que, nesse momento, Marx chama de revoluções orgânicas,  
em que as formas de constituição do Estado são questionadas em nome da perfectibilização da  
política. A representação, assim, coloca-se da maneira mais avançada possível: tem-se o povo  
e a vontade genérica representados. Porém, em conjunto com a representação, tem-se a o  
estranhamento entre a sociedade e o Estado.  
Na Revolução Francesa, o questionamento de um Estado antiquado é realizado pelo  
poder legislativo, o qual modifica a forma política procurando superar o arbítrio e o  
particularismo. Doutro lado, ao analisar a Alemanha do tempo de Hegel (e de seu próprio  
tempo) Marx traz a proeminência do poder governamental o qual, segundo a Crítica à filosofia  
do Direito de Hegel, só trouxe revoluções retrógradas, ou seja, reações.  
8
Marx, assim, critica a especificidade da constituição do Estado alemão ao ligá-lo à  
reação. Hegel, dessa maneira, mesmo que não seja um reacionário, objetivamente, acaba  
chancelando uma constituição do Estado que se liga às reações. Isso ocorre, ao fim, “porque o  
poder governamental era o representante da vontade particular, do arbítrio subjetivo, da parte  
mágica da vontade” (Marx, 2010, p. 97). E, dessa maneira, novamente, destaca-se o  
anacronismo da defesa hegeliana do Estado alemão.  
Como se diz na Crítica à filosofia do Direito de Hegel:  
também a constituição francesa representa um progresso. Ela reduziu, em  
verdade, a câmara dos pares a uma pura nulidade, mas essa câmara, segundo  
o princípio da monarquia constitucional, tal como Hegel tencionava  
desenvolvê-lo, só pode ser, por sua natureza, uma nulidade, a ficção da  
7 Colocamo-nos dessa maneira porque há em Hegel uma crítica à separação dos poderes; porém, ao mesmo tempo,  
ele traz, por meio de uma nomenclatura diferente, funções do Estado, dentre elas, aquela do poder governamental,  
cuja titularidade, no caso da monarquia constitucional, seria do príncipe. Trata-se de uma construção que, até onde  
conseguimos ir, não encontra paralelo exato em outro autor.  
Libertas, Juiz de Fora, v. 24, n. 1, p. 1-17, jan./jun. 2024. ISSN 1980-8518  
Marx diante da França revolucionária na Crítica à filosofia do Direito de Hegel  
harmonia entre príncipe e sociedade civil, ou do poder legislativo ou Estado  
político consigo mesmo como uma existência particular e, precisamente por  
isso, mais uma vez contraditória. Os franceses deixaram subsistir a  
perpetuidade dos pares, visando exprimir a independência destes em relação  
à escolha por parte do governo e do povo. Mas aboliram a expressão medieval:  
a hereditariedade. Seu progresso consiste em que eles não derivam mais a  
câmara dos pares da sociedade civil real, mas a criaram a partir de sua  
abstração. Eles deixam derivar a sua escolha do Estado político existente, do  
príncipe, sem ter ligado este último a qualquer qualidade social. A paridade é  
realmente, nessa constituição, um estamento na sociedade civil, um estamento  
que é puramente político e criado a partir do ponto de vista da abstração do  
Estado político; mas ele aparece mais como decoração política do que como  
estamento real, provido de direitos particulares. A câmara dos pares, sob a  
restauração, era uma reminiscência. A câmara dos pares da revolução de Julho  
é uma criação efetiva da monarquia constitucional (Marx, 2010, p. 128).  
O modo pelo qual se tem na França o questionamento da monarquia com a revolução  
de 1789 seria um grande avanço diante da forma anterior de colocação da política. Mesmo com  
o desenvolvimento da restauração, isso ainda seria uma verdade.  
A câmara dos pares, de início, em 1814, traz uma composição estamental e hereditária,  
conformada por estamentos políticos. Trata-se de uma câmara voltada à preservação dos  
interesses da nobreza. Posteriormente, porém, sua natureza hereditária (e medieval) é abolida  
e, com isso, Marx destaca como que essa câmara, em sua versão francesa, ao final, somente  
poderia ser uma ficção de harmonia entre o príncipe e a sociedade civil-burguesa. Uma classe  
ligada ao medievo tem sua existência medieval suprimida e, assim, essa classe, mesmo que  
preservada, deixa de se colocar com poder social. A constituição francesa, até mesmo quando  
se olha para a restauração, é um avanço, portanto. Ela exprime a superação da sociedade  
medieval e traz uma oposição entre os estamentos políticos e sociais. O resultado é a nulidade  
da câmara dos pares.  
9
O poder político e o Estado político também se opõem. Eles acabam formando uma  
existência contraditória e marcada pela oposição entre a sociedade e o Estado. Os pares – ou  
seja, os nobres nomeados pelo príncipe – colocam-se com certa perpetuidade. Nesse sentido,  
eles aparentam se colocar como um fruto da vontade política do príncipe e, como tal,  
independente, do governo e do povo, os quais aparecem representados essencialmente no  
legislativo. O poder político dos nobres, com isso é um anacronismo.  
Segundo Marx, a nobreza não traz mais uma relação imediata com a sociedade civil-  
burguesa. Antes, a câmara dos pares deriva da abstração do poder político que se pretende um  
sujeito (e não um predicado) da sociedade. A nobreza, bem como os pares, portanto, não trazem  
mais qualidades sociais que justifiquem sua perpetuidade. Essa última acaba aparecendo como  
fruto do arbítrio e, assim, precisa ser superada. O Estado político existente – colocado no  
Vitor Bartoletti Sartori  
príncipe – opõe-se de modo claro à sociedade; em verdade, o estranhamento entre Estado e  
sociedade se coloca de modo tão absurdo aqui que o príncipe não está ligado a qualquer  
qualidade social. Ele acaba por se configurar como alguém ligado a estamentos puramente  
políticos, de modo a se ter clareza: a abstração da representação política está contraposta ao  
elemento social, presente na sociedade. A contraposição e o estranhamento entre sociedade e  
Estado, que foi desenvolvido a partir da Revolução Francesa, com isso, é desenvolvido. Eles  
chegam a uma figura bastante extremada na restauração, em que hereditariedade ainda se  
coloca. Porém, mesmo na monarquia de julho de 1830, a existência da câmara dos pares  
significa que a oposição entre sociedade civil-burguesa e o elemento social de um lado e o  
Estado político de outro traz consigo a representação e o estranhamento políticos.  
Nesse sentido específico, a forma de existência da câmara dos pares na França é, na  
restauração, aquela de uma reminiscência medieval. E, com isso, já se tem claro que essa  
câmara é destinada a ser uma nulidade. No caso da monarquia de julho de 1830, as coisas já  
são diferentes: a câmara dos pares é uma representante autêntica da monarquia constitucional.  
Tanto num caso como noutro, a situação é melhor do que na Alemanha.  
No entanto, Hegel não poderia estar mais errado em tentar se basear nessa nulidade que  
é a câmara dos pares para se posicionar diante da existência alemã. Aquilo que expressa, de um  
lado, o caráter de mera reminiscência do passado e de outro o anacronismo da monarquia só  
prova que é preciso reconhecer a sociedade como o sujeito, e não com o predicado do Estado.  
E, dessa maneira, seria necessário superar a própria tentativa de fazer o Estado o sujeito do  
processo social; no limite, tratar-se-ia de superar a oposição entre a sociedade civil-burguesa e  
o Estado. Isso não seria possível com a monarquia constitucional, baseada no mútuo  
estranhamento entre o social e o político.  
10  
Democracia e a superação da oposição entre sociedade e Estado  
Nas distintas constituições, até então colocadas, há, de acordo com a Crítica à filosofia  
do Direito de Hegel, uma oposição entre o elemento formal e o elemento material. Na melhor  
das hipóteses, o Estado político se apresenta como uma abstração diante da sociedade; porém,  
o Estado acredita poder determinar politicamente o conteúdo social, o que, segundo Marx, seria  
impossível. Em Hegel, isso é explicito na inversão especulativa entre sujeito e predicado, no  
fato de que o autor pretende que o Estado (que aparece estranhado diante da sociedade) seja  
capaz de reconciliar as contradições sociais.  
Diante disso, Marx começa a criticar a própria representação política. Ao tratar das  
formas estatais, está criticando a representação. Porém, não questiona o Estado como tal ainda  
Libertas, Juiz de Fora, v. 24, n. 1, p. 1-17, jan./jun. 2024. ISSN 1980-8518  
Marx diante da França revolucionária na Crítica à filosofia do Direito de Hegel  
(Cf. De Deus, 2014; Palu, 2019). Sua solução está na superação da oposição entre sociedade  
civil-burguesa e Estado, o que, nesse momento de sua obra, traz a política como um elemento  
importante, ligado a uma forma específica de Estado, a democracia.  
Veja-se o que diz Marx no texto que aqui estudamos:  
Todas as demais formas estatais são uma forma de Estado precisa,  
determinada, particular. Na democracia, o princípio formal é, ao mesmo  
tempo, o princípio material. Por isso ela é, primeiramente, a verdadeira  
unidade do universal e do particular. Na monarquia, por exemplo, na república  
como uma forma de Estado particular, o homem político tem sua existência  
particular ao lado do homem não político, do homem privado. A propriedade,  
o contrato, o matrimônio, a sociedade civil [-burguesa] aparecem, aqui (Hegel  
desenvolve de modo bastante correto estas formas abstratas de Estado, mas  
ele crê desenvolver a ideia de Estado), como modos de existência particulares  
ao lado do Estado político, como o conteúdo com o qual o Estado político se  
relaciona como forma organizadora, como entendimento que determina,  
limita, ora afirma, ora nega, sem ter em si mesmo nenhum conteúdo (Marx,  
2010, p. 50).  
No Estado representativo, o particularismo se colocaria ao passo que a universalidade  
abstrata conflui com a separação entre forma e conteúdo que é típica do entendimento. E, assim,  
na compreensão marxiana o Estado político traz em seu bojo a oposição entre princípio formal  
e material, oposição essa que é tomada como insuperável.  
Para o entendimento, há uma oposição entre forma e conteúdo, do mesmo modo que nas  
formas estatais marcadas pela representação. A oposição entre o princípio formal e o princípio  
material, assim, diz respeito às formas de Estado que não poderiam ser chamadas de racionais:  
elas não alcançariam a superação das oposições (no caso, entre forma e conteúdo); antes,  
estariam baseadas nelas, tal qual ocorre no entendimento.  
11  
Assim, pode-se dizer que o mútuo estranhamento entre sociedade e Estado não é um  
acidente do Estado representativo moderno. É algo inerente a ele. E tal estranhamento se  
expressa no modo pelo qual as formas do Estado político são carentes de um conteúdo próprio;  
tal conteúdo, em verdade, está presente na sociedade, da qual a representação política é uma  
abstração. A inversão entre sujeito e predicado se dá, no caso, enquanto o Estado aparece como  
uma forma organizadora sem conteúdo ao passo que a sociedade se mostra como um agente  
passivo. No entanto, na realidade, o oposto que precisa ser compreendido: o Estado é um  
predicado da sociedade. Enquanto as constituições políticas não reconhecem isso, o máximo  
que se consegue é assumir o estranhamento político como algo insuperável. Tenta-se colocar  
como uma forma organizadora; no entanto, o conteúdo dessa forma está na própria organização  
social, na sociedade civil-burguesa.  
Vitor Bartoletti Sartori  
Na república, bem como na monarquia, o homem político, em verdade, é um particular.  
E, assim, ele não existe acima do homem particular. A consequência disso é que, nessas  
constituições do Estado, o mútuo estranhamento entre a política e a particularidade social são  
uma realidade insuprimível, a qual se assenta sobre o caráter abstrato do Estado diante da  
sociedade: a política é um predicado da organização social, a qual não é compreendida por  
Hegel de modo devido. Quando se pensa que se oscila entre a república defendida pela  
Revolução Francesa e a monarquia da restauração de 1814 ou 1830, ou mesmo na monarquia  
constitucional alemã, tem-se problemas insolúveis. Nessas formas de Estado a oposição entre  
Estado e sociedade é pressuposta.  
A propriedade, os contratos, o matrimônio são ligados ao Direito privado e ao  
particularismo da sociedade civil-burguesa. Eles se mostram como formas abstratas de Estado;  
a mediação jurídica que se interpõe na propriedade, no matrimônio e nos contratos reconhece  
o homem particular da sociedade civil-burguesa, e, assim, o homem político se mostra como  
um predicado dessas determinações. O Estado político é uma forma organizadora do conteúdo  
privado e particular, portanto. Ele não se encontra acima, mas ao lado do particularismo da  
sociedade civil-burguesa; o grande problema, porém, é que o Estado representativo é uma  
abstração da sociedade e, portanto, não tem em si qualquer conteúdo. Esse último, antes,  
contrapõe-se a ele na forma do homem privado. A oposição e o estranhamento entre sociedade  
civil-burguesa e Estado, portanto são reconhecidos como uma espécie de base natural na  
monarquia e na república.  
12  
Por isso, de acordo com Marx, seria necessária uma forma de Estado que não opõe o  
princípio formal e o material. Tratar-se-ia de um Estado que fosse capaz de reconhecer a  
sociedade como sujeito e que, com isso, pudesse trazer à tona a resolução da oposição entre  
sociedade civil-burguesa e Estado. Tem-se a constituição da democracia.  
Marx, na Crítica à filosofia do Direito de Hegel, não traz uma crítica à política como  
tal, mas ao Estado representativo. Ao opor-se tanto à situação alemã quanto àquilo que se  
desenvolve na esteira da Revolução Francesa, isso se explicita na obra.  
Para que o autor não traga uma crítica à própria política, é preciso que ele a veja como  
algo que tem tanto relação com o Estado quanto, e principalmente, com a organização da  
sociedade. Na concepção marxiana de democracia, a sociedade civil-burguesa mesma aparece  
como a verdadeira sociedade política. Nas palavras do autor: “a sociedade civil[-burguesa] é  
sociedade política real” (Marx, 2010, p. 133). Ou seja, diante da crítica à especulação hegeliana,  
Marx procura trazer a sociedade como o sujeito e o Estado como o predicado; ao tentar resolver  
a oposição entre os dois termos da relação, ele só pode se apoiar em uma concepção  
Libertas, Juiz de Fora, v. 24, n. 1, p. 1-17, jan./jun. 2024. ISSN 1980-8518  
Marx diante da França revolucionária na Crítica à filosofia do Direito de Hegel  
ontopositiva da política (Cf. Eidt, 1998) ao passo que a vê surgindo democraticamente no seio  
da sociedade a partir de uma concepção de democracia que nasce da crítica à representação  
política. Trata-se de uma crítica às próprias oposições políticas, típicas do que o autor chamará  
posteriormente, nas Glossas marginais, de entendimento político (Cf. Sartori, 2020). A maneira  
de se tratar racionalmente da política somente poderia trazer consigo a superação das oposições  
e dos entranhamentos colocados sobre os próprios pés depois da Revolução Francesa.  
A concepção de democracia marxiana, portanto, é avessa à representação. Essa última  
partiria do mútuo estranhamento entre sociedade e Estado; e seria justamente esse o problema  
político próprio à sociedade moderna. No limite, tratar-se-ia de buscar uma constituição política  
que conseguisse reconciliar indivíduo e gênero humano, portanto.  
Na democracia, cada homem, no limite, representa o gênero humano por meio de sua  
atividade. E, assim, Marx distancia-se substancialmente de qualquer concepção liberal sobre a  
oposição entre sociedade civil-burguesa e Estado, ao contrário do que pretende Furet ao dizer  
que “Marx vai buscar em Hegel a distinção Estado-sociedade civil, mas sua crítica à concepção  
hegeliana do Estado o conduz justamente à acepção liberal desta distinção” (Furet, 1989, p. 17).  
Em contraposição ao liberalismo, à economia política e ao próprio Hegel, não se trata, portanto,  
da partição do indivíduo em privado e político, mas na relação unitária entre aquilo que o  
homem é e o que faz:  
13  
A sociedade civil[-burguesa] é sociedade política real. E então é um absurdo  
colocar uma exigência que deriva apenas da concepção do Estado político  
enquanto existência separada da sociedade civil [-burguesa], uma exigência  
que deriva apenas da representação teológica do Estado político. Nessa  
situação, desaparece totalmente o significado do poder legislativo como poder  
representativo. O poder legislativo é, aqui, representativo no sentido em que  
toda função é representativa: o sapateiro, por exemplo, é meu representante  
na medida em que satisfaz uma necessidade social, assim como toda atividade  
social determinada, enquanto atividade genérica, representa simplesmente o  
gênero, isto é, uma determinação de minha própria essência, assim como todo  
homem é representante de outro homem. Ele é, aqui, representante não por  
meio de uma outra coisa, que ele representa, mas por aquilo que ele é e faz  
(Marx, 2010, p. 133-134).  
Se o trabalho filosófico busca a lógica da coisa, e não a coisa da lógica, há de se perceber  
que, na Crítica à filosofia do Direito de Hegel, ele se volta contra uma concepção teológica.  
Essa última, em verdade, não teria sido superada por Hegel, para quem a representação ainda é  
essencial. No caso da política, essa representação se põe seja na república, seja na monarquia,  
em que a separação e o mútuo estranhamento são a base da atividade e da política mesma. A  
teologia toma as determinações políticas como algo derivado do pensamento e subsumido a  
figuras lógico-metafísicas; mas, na filosofia, segundo Marx, o gênero não aparece como algo  
Vitor Bartoletti Sartori  
estranhado e apartado da atividade humana; ele mesmo passa pela essência humana ao passo  
que não se tem uma mediação extraterrena, seja ela estritamente teológica (como na religião)  
ou ela indiretamente teológica, como na representação política. A essência do gênero humano  
precisa ser apreendida, não mais por uma outra coisa, mas pela própria atividade humana.  
Sendo isso impossível com a representação política, trata-se de buscar uma atividade  
que se coloque mundanamente na sociedade, e não mais no Estado apartado e supostamente  
colocado acima da vida dos indivíduos. Assim, diz Marx ao se referir ao locus real da atividade  
humana que “a sociedade civil-burguesa é a sociedade política real” (Marx, 2010, p. 133); com  
isso, a atividade política não está mais colocada em um Estado apartado da sociedade. Com  
isso, supera-se a representação teológica do Estado político. O trabalho filosófico, então,  
consegue apreender as reais determinações da política, e, com isso, volta-se à sociedade como  
o sujeito e ao Estado como o predicado.  
O poder legislativo, altivo na Revolução Francesa, poderia deixar de ser meramente  
representativo. Afinal, ele não traria mais consigo a oposição entre o político e o social,  
justamente aquilo que caracteriza o moderno Estado representativo trazido pela revolução de  
1789. A legislação, assim, coloca-se, certamente. Porém, ela é representativa, não mais na  
medida em que traz a separação e a oposição consolidadas: ela coloca-se politicamente ao  
satisfazer necessidades sociais, ao reconhecer a verdadeira sede do poder na sociedade civil-  
burguesa, que já aparece como sociedade política real.  
14  
A atividade social, com isso, coloca-se como política, sem precisar de um corpo político  
apartado, sem que se tenha a oposição entre sociedade civil-burguesa e Estado.  
A atividade particular aparece relacionada harmonicamente com a atividade genérica,  
não se tendo a oposição entre a realização dos interesses privados e dos interesses políticos. A  
democracia que defende Marx, portanto, não está, seja em confluência com a república derivada  
do desenvolvimento da Revolução Francesa, seja com o anacronismo conformado na  
monarquia constitucional alemã. Ela tem uma formulação que busca nada menos que a  
superação da oposição entre o elemento social e o político. Um homem singular, com isso,  
representa todos os homens, não se colocando na democracia como concebida por Marx poderes  
estranhados entre cada indivíduo. Aquilo que os homens são e fazem os liga diretamente, sem  
que se tenha o Estado apartado da sociedade e contraposto a essa. Tem-se a crítica ao Estado  
representativo e a defesa da democracia como forma de Estado correspondente ao  
desenvolvimento racional do gênero humano. Nesse desenvolvimento, a separação, o apartar e  
estranhar-se mútuo entre sociedade civil-burguesa e Estado estão superados. As oposições  
Libertas, Juiz de Fora, v. 24, n. 1, p. 1-17, jan./jun. 2024. ISSN 1980-8518  
Marx diante da França revolucionária na Crítica à filosofia do Direito de Hegel  
típicas do entendimento não têm lugar, e a apreensão das determinações reais da política leva a  
uma concepção em que a superação da oposição entre sociedade e Estado é o central.  
Apontamentos finais  
Crítica à filosofia do Direito de Hegel é um texto peculiar. Isso se dá, não só porque ele  
não está completo e não foi publicado na vida de Marx. A matéria que o escrito trata é de grande  
interesse: a oposição de Marx diante de Hegel. Ao analisar tal tema, passa-se por questões  
essenciais para a filosofia, como a relação entre sociedade e Estado, a significação histórica da  
Revolução Francesa e a valorização das distintas constituições estatais. Aqui, tentamos deixar  
claro como Marx se posiciona no começo de 1843 sobre tais temas. E uma peculiaridade para  
o estudioso da obra do autor de O capital é: diante da ausência de uma crítica da economia  
política no texto aqui estudado, as posições do autor tendem a ser traçadas de modo bastante  
distinto do que na obra imediatamente posterior de Marx, em que categorias da economia  
política (e da sociedade civil-burguesa) como dinheiro e propriedade privada ganham um  
destaque acentuado. Com isso, a análise da textualidade marxiana, no limite, ganha um interesse  
muito distinto daquele que é trazido pelo autor na época da escrita: por vezes, somos pegos  
imaginando como seria a crítica marxiana caso ele não tivesse desenvolvido uma crítica da  
economia política como algo central. Claro que não é possível fazer especulações nesse sentido.  
No entanto, há a possibilidade de enxergar como o pensamento marxiano se conformava antes  
que tivesse investigado com o cuidado e com seriedade a anatomia da sociedade civil-burguesa.  
O cuidado do autor já é notável. Ele não cai em tentações gêmeas: de um lado, não toma  
acriticamente a Revolução Francesa e o Estado político pleno como modelo. Antes, critica o  
mundo trazido pela revolução de 1789 como aquela do mútuo estranhamento entre a sociedade  
e o Estado, entre o homem privado e o homem político. E, assim, vislumbra algo distinto do  
que se coloca na república nascida na França e da monarquia colocada na restauração e na  
revolução de 1830. A crítica marxiana ao desenvolvimento da Revolução Francesa também não  
o leva ao romantismo ou ao elogio ao atraso alemão (e nem mesmo à situação sui generis  
colocada naAlemanha). Marx mostra que mesmo a constituição francesa oriunda da restauração  
– em que a câmara dos pares se coloca – é superior que a alemã. As oposições que caracterizam  
o mundo moderno aparecem de modo muito mais claro no primeiro país que no segundo e,  
assim, fica mais evidente a necessidade de se superar o mútuo estranhamento entre Estado e  
sociedade. Ou seja, não há elogio acrítico da revolução de 1789 ou da miséria alemã.  
Marx, com isso, chega à sua formulação de democracia, que traz a própria sociedade  
como política e tenta trazer a superação da oposição entre sociedade civil-burguesa e Estado. A  
15  
Vitor Bartoletti Sartori  
relação entre a atividade singular e a atividade genérica não seria estranhada, como o que ocorre  
com um Estado apartado da sociedade. E, assim, a concepção democrática de Marx intenta  
trazer a superação da oposição entre o homem privado e o político, com uma crítica decidida à  
representação política. Ao tentar compreender a maneira pela qual a sociedade se coloca como  
sujeito e o Estado como predicado, o autor alemão se volta para os limites das constituições  
estatais e toma a política como um ponto de partida, o qual poderia operar de modo diferente,  
sem o estranhamento entre o político e o social, bem como sem potências estranhadas que se  
colocassem entre os indivíduos, como aconteceria na teologia e na política representativa.  
Não podemos sucumbir à tentação de pensar como seria o pensamento marxiano sem a  
crítica da economia política, com a qual Marx logo tomaria contato a partir do esboço de Engels  
para a crítica da economia política (Cf. Engels, 2020). Ali, Engels traz a correlação entre a  
crítica da teologia e a crítica da economia política, algo que Marx irá tomar como um ponto a  
ser desenvolvido nos próximos anos de sua vida (Cf. Sartori, 2020). Ou seja, a análise mais  
cuidadosa das determinações da sociedade civil-burguesa fará parte dos esforços de Marx logo  
depois do texto que analisamos. Podemos dizer, portanto, que o caminho tomado na Crítica à  
filosofia do Direito de Hegel seria, no mínimo, revisado, logo a seguir. E tal revisão é de enorme  
importância: sem ela, Marx não consegue trazer uma crítica ao Estado como tal e não consegue  
se colocar para além do terreno da sociedade civil-burguesa. Ou seja, aquilo de essencial ao  
pensamento marxiano posterior não aparece e, em seu lugar, há tentativas mais ou menos  
ilusórias de superar a oposição entre o Estado e a sociedade civil-burguesa sem suprimir ambas  
essas instâncias. A formulação marxiana no texto que aqui tratamos é bastante sofisticada,  
certamente. Mas há de se perceber que sua concepção de democracia é um tanto quanto difícil  
de compreender: como conceber a crítica à representação e ao estranhamento entre sociedade e  
Estado sem uma crítica às determinações da sociedade capitalista, como a divisão do trabalho,  
a propriedade privada, o dinheiro, a mercadoria etc.?  
16  
A resposta a essa pergunta, de certo modo, vem sendo buscada por muitos autores  
radicais que, por vezes, pretendem-se próximos do marxismo. Autores claramente  
antimarxistas também passam por esse caminho. E, assim, tem-se uma situação dúbia: Marx  
aparece como mais atual do que nunca. De um lado, aqueles que se colocam à esquerda ainda  
tentam responder a questões que foram colocados por ele no começo de 1843. Doutro, os  
problemas da formulação marxiana da questão precisam ficar claros para os marxistas: sem  
uma crítica da economia política realizada com cuidado, não é possível uma crítica às formas  
de governo, de Estado e àquilo que Marx chama na Crítica à filosofia do Direito de Hegel de  
constituições estatais. Talvez, a dubiedade da situação se coloque hoje porque falte mais  
Libertas, Juiz de Fora, v. 24, n. 1, p. 1-17, jan./jun. 2024. ISSN 1980-8518  
Marx diante da França revolucionária na Crítica à filosofia do Direito de Hegel  
cuidado na crítica à economia política e, nessa medida, mesmo marxistas, por vezes, caiam  
nas aporias do texto de 1843. Trata-se de algo a ser analisado noutro local. Porém, fica a  
atualidade de Marx, mesmo que de modo bivalente: para aqueles que se colocam como  
defensores da resolução política das questões do capitalismo e para aqueles que buscam se  
contrapor ao próprio capitalismo.  
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da Gazeta Renana (1842 1843). (Dissertação de mestrado). Belo Horizonte, 1998.  
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MARX, Karl. A diferença entre as filosofias da natureza em Demócrito e Epicuro. Trad.  
Conceição Jardim e Eduardo Lúcio Nogueira. Lisboa: Editorial Presença, 1974.  
MARX, Karl. Contribuição à crítica da economia política. Trad. Florestan Fernandes. São  
Paulo: Expressão popular, 2009.  
17  
MARX, Karl. Crítica da filosofia do Direito de Hegel. Trad. Rubens Enderle e Leonardo de  
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MARX, Karl; ENGELS, Friedrich. A sagrada família. Trad. Marcelo Backers. São Paulo:  
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SARTORI, Vitor. Política, gênero humano e direitos humanos na formação do pensamento de  
Karl Marx. In: Direito e práxis n. 11, v. 4. Rio de Janeiro: UERJ, 2020.  
Teoria social e método em Marx: materialismo,  
história e dialética  
Social theory and method in Marx: materialism, history and dialectics  
José Amilton de Almeida*  
Resumo: O objeto deste estudo são os  
fundamentos da teoria social marxiana, isto é,  
do assim chamado “materialismo histórico e  
dialético”. O objetivo é analisar alguns  
princípios e categorias fundamentais que  
perpassam o movimento teórico analítico  
marxiano, buscando elucidar a) o que é a  
dialética é qual a concepção de história expressa  
no materialismo de Marx? b) o que é o trabalho  
e qual a concepção de humanidade para a sua  
teoria social: a relação homem/natureza e  
sujeito/objeto? c) O que é e como opera a  
alienação (e a ideologia) na sociabilidade  
humana e de que modo poderia ela ser superada  
Abstract: The object of this study is the  
foundations of Marxian social theory, that is, of  
the so-called “historical and dialectical  
materialism”. The objective is to analyze some  
fundamental principles and categories that  
permeate the Marxian analytical theoretical  
movement, seeking to elucidate a) what is  
dialectics and what is the conception of history  
expressed in Marx's materialism? b) what is  
work and what is the conception of humanity for  
your social theory: the relationship between  
man/nature and subject/object? c) What is and  
how does alienation (and ideology) operate in  
human sociability and how could it be overcome  
from an emancipatory perspective? The  
methodology was based on bibliographical  
research and review, recovering syntheses,  
reflections and summaries that were  
systematized throughout doctoral research.  
Some of these fragments were carefully selected  
numa  
perspectiva  
emancipatória?  
A
metodologia se deu com base em pesquisa e  
revisão bibliográficas, recuperando sínteses,  
reflexões  
e
resumos que foram sendo  
sistematizados ao longo de uma pesquisa de  
doutorado. Alguns desses fragmentos foram  
cuidadosamente  
selecionados  
e,  
aqui,  
and, here, ordered to make  
a
modest  
ordenados para operar uma modesta  
contribuição com o estudo do método da teoria  
social marxista.  
contribution to the study of the method of  
Marxist social theory.  
Palavras-chaves: Materialismo histórico e  
dialético; Ser social; Trabalho; Trabalho  
alienado; Comunismo.  
Keywords:  
Historical  
and  
dialectical  
materialism; Being social; Work; Alienated  
work; Communism.  
*
Assistente Social, graduado pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Mestre em Serviço Social pela  
Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF) e doutor em Serviço Social pela Universidade do Estado do Rio de  
Janeiro (UERJ). Professor da Faculdade de Serviço Social da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ).  
DOI: 10.34019/1980-8518.2024.v24.43722  
Esta obra está licenciada sob os termos  
Recebido em: 29/02/2024  
Aprovado em: 18/06/2024  
Teoria social e método em Marx: materialismo, história e dialética  
Introdução  
O objeto sobre o qual discorre o presente artigo são os fundamentos da teoria social  
marxiana, isto é, do método elaborado por Marx – e Engels –, que convencionou ser chamado  
de materialista histórico e dialético. Este novo modo de absorver cientificamente a realidade  
social, não apenas enriqueceu e influenciou como revolucionou teórico-metodologicamente a  
filosofia, a teoria política, a teoria econômica e as próprias ciências sociais, alçando-as a um  
novo patamar, e ofereceu um instrumento de análise concreta da realidade às classes exploradas,  
a fim de guiar prática e conscientemente sua emancipação.  
Nesse sentido, o objetivo, aqui expresso, é expor algumas características fundantes da  
teoria social marxiana, observando o caminho e as fontes primordiais através dos quais Marx  
transita do direito à filosofia, da filosofia à economia política, elabora à crítica da economia  
política com a qual desmistifica o modo de produção capitalista a partir de sua própria base  
econômica e científica, supera os maiores filósofos e economistas que o precederam, assim  
como seus contemporâneos e, desde uma juventude de aspiração democrata radical (Netto,  
2020), termina por preconizar o comunismo como forma necessária de emancipação da  
exploração humana.  
Com base em pesquisa bibliográfica e análise teórica, recorre-se a textos de Marx e de  
Engels, além de intérpretes marxistas como Leandro Konder, José Paulo Netto e Luckács, a fim  
de entender os fundamentos principais do materialismo histórico e dialético e como essa  
ciência contribui para a análise (e transformação) da sociedade na qual vigora a exploração  
de classes. Para isso, o manuscrito estrutura-se didaticamente a partir de três questões  
interligadas: a) o que é a dialética é qual a concepção de história expressa no materialismo  
marxista? b) o que é o trabalho e qual a concepção de humanidade para essa teoria social: a  
relação homem/natureza e sujeito/objeto? c) O que é e como opera a alienação (e a ideologia)  
na sociabilidade humana e de que modo poderia ela ser superada numa perspectiva  
emancipatória?  
19  
Ademais, espera-se que este texto possa ser mais uma contribuição para o debate acerca  
do núcleo de fundamentação teórico- metodológicos da vida social e da dimensão ético-política  
da formação profissional de assistentes sociais, oferecendo um estudo sobre os fundamentos da  
vida social tal qual é apreendida na teoria social marxiana – e marxista. Vamos a cada uma das  
três questões então levantadas.  
José Amilton de Almeida  
Dialética e concepção materialista da história em Marx: o longo processo de  
edificação de um método novo  
O material que ora temos em mão não é mais do que uma modesta aproximação a alguns  
elementos fundamentais da obra de Marx, buscando, sobretudo, os fundamentos da sua filosofia  
e da “revolução copernicana” que, em suas mãos, sofreu a dialética ao ser posta em pé e, com  
isso, ser trazida do universo idealista para o materialismo. As categorias, aqui debatidas,  
encontram-se em obras de Marx como Introdução (de Crítica da Filosofia do Direito de Hegel);  
Sobre a questão judaica; Manuscritos econômico-filosóficos; A miséria da filosofia (uma  
resposta à Filosofia da miséria de Phoudhon); O capital: crítica da economia política; A  
Sagrada família ou Crítica da crítica crítica – de autoria de Marx e Engels; e A ideologia alemã  
– também de autoria de ambos1, dentre outras.  
Conforme Netto (2011) chama a atenção, sem referência a Hegel, Marx é  
incompreensível. Hegel é um dos últimos grandes expoente da fase ascendente da burguesia de  
quem Marx herdou a concepção dialética2, que marca, do início ao fim, o conjunto de sua obra  
e compõe a ordenação medular do método analítico-critico que, então, desenvolveu.3 Ao longo  
de sua formação e produção intelectual, o autor se desloca do terreno do Direito para o da  
Filosofia, e da filosofia para o da economia política (Netto, 2020). Ele supera e conserva de  
cada qual seu núcleo racional, enriquecendo seu modo de abarcar a realidade e, com os  
fundamentos da crítica do Direito, da religião, da filosofia, da política e da economia política,  
constrói suas “pesquisas para análise concreta da sociedade moderna, aquela que se engendrou  
nas entranhas da ordem feudal e se estabeleceu na Europa Ocidental na transição do século  
XVIII ao XIX: a sociedade burguesa”4 (Netto, 2011, p. 17). As fontes principais que constituem  
20  
1 Importantes fragmentos dessas obras foram organizados por Netto (2012) no livro O leitor de Marx – uma das  
principais referências bibliográficas utilizadas na construção do presente estudo.  
2 Em Hegel, porém, Marx descobriu que a dialética estava de cabeça para baixo, pois o espirito era absoluto em  
relação ao objeto; o Estado era o demiurgo da sociedade civil; o sujeito, mesmo compondo unidade com seu objeto  
e história, aparecia como o movimento do próprio conceito em sua autodeterminação. Sua dialética era, por isso,  
idealista, apesar de constituir um “idealismo objetivo”, a despeito do “idealismo subjetivo” que habitava a filosofia  
e era repudiada por Marx. A dialética precisava, pois, ser posta em pé para desvelar o “invólucro místico” que  
envolvia a natureza humana, a qual possui no trabalho a condição primária do seu ser. Portanto, o trabalho constitui  
o “primeiro ato”, o “fato histórico” (Marx; Engels, 2009) preliminar da autoconstrução humana: assenta-se no fato  
de o ser humano produzir os próprios meios com que satisfazer suas necessidades, criar novas necessidades e,  
concomitantemente, desenvolver relações que se complexificam constantemente, transformando sua realidade  
social, seu próprio intercâmbio, e transformando a si mesmo como humano.  
3 O próprio Marx reconheceu ser “abertamente discípulo daquele grande pensador [Hegel]” e afirmou ter jogado,  
“várias vezes, com seus modos de expressão peculiares”. Para Marx (2006, p. 28-29), “a mistificação por que  
passa a dialética nas mãos de Hegel não o impediu de ser o primeiro a apresentar suas formas gerais do  
desenvolvimento, de maneira ampla e consciente”.  
4
Segundo Netto, esta pesquisa, de que resultarão as bases da sua teoria social ocuparão Marx de 1840 até sua  
morte, “e poderão localizar o seu ponto de arranque nos Manuscritos econômico-filosóficos de 1844 e a sua  
culminação dos materiais constitutivos d’ O capital”.  
Libertas, Juiz de Fora, v. 24, n. 1, p. 18-41, jan./jun. 2024. ISSN 1980-8518  
Teoria social e método em Marx: materialismo, história e dialética  
a matéria-prima do seu método foram elucidadas por Lenin (2003), num texto publicado em  
1913, sob o título: As três fontes e as três partes constitutivas do Marxismo. São elas: (1) a  
filosofia alemã; (2) a economia política inglesa; e (3) o socialismo francês. Daí resultaram (1)  
o materialismo como a filosofia do marxismo; (2) a crítica da economia política como a crítica  
da sociedade capitalista, burguesa; e o socialismo científico, que apreende a luta de classes  
como o motor da história e elucida o proletariado no seu papel revolucionário diante dela.  
Marx não apenas incorpora os principais expoentes dessas “três fontes” como os supera  
e avança. É “assim que ele trata a filosofia de Hegel, os economistas políticos ingleses  
(especialmente Smith e Ricardo) e os socialistas que o precederam (Owen, Fourier)” (Netto,  
2011, p. 18); e é assim também, que, “avançando criticamente a partir do conhecimento  
acumulado, Marx empreendeu a análise da sociedade burguesa, com o objetivo de descobrir a  
sua estrutura e a sua dinâmica” (Netto, 2011, p. 18-19). Essa empreitada configura “um  
processo longo de elaboração teórica, no curso da qual Marx foi progressivamente  
determinando o método adequado para o conhecimento veraz, verdadeiro, da realidade social”  
(Netto, 2011, p. 19). Em Marx, teoria significa “a reprodução ideal do movimento do objeto  
pelo sujeito que pesquisa: pela teoria o sujeito reproduz em seu pensamento a estrutura e a  
dinâmica do objeto que pesquisa” (Netto, 2011, p. 21).  
Se temos em vista a ciência como método para se chegar ao conhecimento de algo,  
significa esperar dela que seja capaz de, mediante procedimentos investigativos e analíticos e  
instrumentos adequados para tal, reproduzir o movimento concreto da realidade de modo a  
transpô-la para o âmbito do pensamento. “Se isto se consegue, ficará espelhada, no plano ideal,  
a vida da realidade pesquisada, o que pode dar a impressão de uma construção a priori” (Marx,  
2006, p. 28).  
21  
Já nos Manuscritos econômico-filosóficos, de 1844, Netto (2011, p. 29) lembra que,  
ainda que Marx não tenha penetrado profundamente na economia política, “isso não  
compromete a segurança do autor no manuseio da dialética, manuseio que se aprofunda na  
relação com Engels”. Em A sagrada família ou crítica da crítica crítica, publicada em 1845  
sob autoria de ambos, a dialética adquire um trato mais acabado. Nessa obra, recorda Netto  
(2011, p. 29): “em várias passagens, os dois jovens autores apontam a perspectiva teórica a  
partir da qual criticam filósofos como os quais, até pouco tempo antes, mantinham boas relações  
intelectuais” (Netto, 2011, p. 29). Formulações mais precisas de sua concepção teórica são  
desenvolvidas em A Ideologia alemã, escrita entre 1845/1846 por Marx e Engels (2009) e no  
interior da qual o materialismo contemplativo de Feuerbach é novamente tomado à crítica. Em  
As 11 teses sobre Feuerbach, na 11ª Tese Marx (2009) enfatiza o papel da filosofia materialista  
José Amilton de Almeida  
diante da história: a partir de então, será o de transformá-la e não simplesmente a interpretar e  
contemplar. O método filosófico consistirá, assim, em partir da vida real dos homens, das suas  
condições reais de vida, dos homens reais, ativos, de carne e osso. Desse modo, a filosofia  
materialista marx-engelsiana arranca do modo de produção humano, do desenvolvimento de  
suas forças produtivas, das relações sociais com as quais a consciência social se encontra  
entrelaçada e a partir das quais “os homens”, no papel de sujeitos, “fazem história”, mas não  
como querem e sim sob circunstâncias pré-existentes, que não são de sua escolha (Marx;  
Engels, 2009, Netto, 2011, 2012).  
Marx era herdeiro de esquerda da filosofia hegeliana e feuerbachiana: da primeira, ele  
herda a dialética; da segunda, o materialismo. Mas “tanto o materialismo feuerbachiana quanto  
a dialética idealista de Hegel passaram por ‘uma simbiose crítica, por um processo de síntese  
original, para servir de fundamento norteador às pesquisas marxiana’” (Frederico, 1995 apud  
Forti, 2010, p. 22).  
Etimologicamente, sabe-se que a palavra dialética vem do grego, sendo formada pelo  
“prefixo dia (que indica reciprocidade ou intercambio) e pelo vocábulo leigen ou pelo  
substantivo logos (o que significa que a palavra dialética tem a mesma origem que a palavra  
diálogo)” (Konder, 1988, p. 1). Ademais, “como nota Foulquié, que já havia chamado atenção  
para as ambiguidades do termo dialética, “o termo logos tanto significa ‘palavra’ ou ‘discurso’,  
como significa ‘razão’ (Konder, 1988, p. 1), e, conforme Konder (1988, p. 2), “essa cisão  
operada no interior do termo logos não podia deixar de influenciar o termo dialética”, pondo  
em destaque, com base na classificação feita por Nicola Abbagnano, o desdobramento da  
dialética em quatro conceitos distintos mais comumente utilizados: “1) método da divisão; 2)  
lógica do provável; 3) lógica; 4) síntese de opostos. Estes quatro conceitos [...] derivam,  
respectivamente, da doutrina de Platão, de Aristóteles, dos estoicos e de Hegel” (Konder, 1988,  
p. 2).  
22  
Seguindo seu desenvolvimento histórico-cronológico, Konder (1988, p. 3) observa que,  
depois da filosofia helenística e dos estoicos, “nos séculos que precederam o Renascimento, a  
dialética oscilava, sem encontrar um espaço próprio”, e ao citar um estudioso do tema, relata  
que “Eugene Garin escreveu a respeito do que se passava nessa época: ‘a dialética parece  
constantemente exposta à tentação de se confundir, às vezes com a lógica, outras vezes com a  
retórica’”. E assim, “até a passagem do século XVIII para o século XIX”, analisa Konder (1988,  
p. 3), “a ‘inteligência dialética não chega a inaugurar para a ‘dialética’ uma concepção diversa  
das três já mencionadas. [...]. A dialética continua marcada por critérios que se referem mais à  
forma do que ao conteúdo”. Hegel é o filósofo que iria romper este limbo. Com ele, “um novo  
Libertas, Juiz de Fora, v. 24, n. 1, p. 18-41, jan./jun. 2024. ISSN 1980-8518  
Teoria social e método em Marx: materialismo, história e dialética  
conceito de dialética foi elaborado”:  
Com o pensador alemão, a questão da dialética não se limitava ao campo  
estrito da metodologia e nem cabia no âmbito das discussões sobre a teoria do  
conhecimento; ela pressupunha toda uma nova teoria do ser. Segundo Hegel,  
a realidade é intrinsecamente contraditória e existe em permanente  
transformação; e o modo de pensar que nos permite conhecê-la não pode  
deixar de ser, ele mesmo dinâmico. Nosso modo de ser consiste em plasmar o  
mundo à nossa feição. O modo de existir do mundo consiste, por sua vez, em  
mudar, sob o efeito da nossa intervenção. E nós nos transformamos, ao agir.  
Tudo, portanto, é instável [...]  
O novo conceito de dialética desenvolvido por Hegel é mais do que mera  
‘síntese de opostos proposta por Abbagnano para caracterizá-lo: é todo um  
complexo sistema, baseado numa original concepção do absoluto. O absoluto,  
na filosofia de Hegel, precisa incorporar todos os momentos significativos do  
movimento pelo qual se realiza, assimilando tanto a oposição como o  
negativo, superando-os numa síntese viva, para poder se estruturar,  
rigorosamente como ‘sistema científico: ‘a verdadeira figura em que a verdade  
existe’ – afirma Hegel – ‘só pode ser o sistema científico dela’. O sentido do  
movimento realizado – o ‘sistema’ – só pode ser compreendido do ângulo do  
resultado alcançado. Na Fenomenologia do Espírito, o saber absoluto’  
pressupõe – e simultaneamente elucida – a ‘experiência da consciência’ em  
todas as suas figuras, desde a ‘certeza sensível’ e da ‘percepção’ até o ponto  
de chegada proporcionado pelo ‘espírito’, que adquire a plena consciência de  
si mesmo, depois de superar as limitações do ‘discernimento’ (‘Vrstand’), da  
‘consciência de si’ e da ‘razão’ (‘Vernunft’) (Konder, 1988, p. 4- 5).  
Como registrou Netto (2020), “a relação de Marx com o pensamento hegeliano foi uma  
relação profunda e duradoura, concretizando o que o próprio Hegel denominava por  
superação”. Para Hegel, “superação (Aufhebung, que se traduz também por suprassunção)  
denota um processo que”, conforme o filosofo, “é ao mesmo tempo um negar e um conservar’”  
(Hegel, 2008, p. 96 apud Netto, 2020, p. 47). Netto (2020, p. 49) recorda, a partir daí, que  
“Marx simultaneamente negou e conservou de modo crítico (elevando-os a outro nível)  
elementos essenciais da elaboração hegeliana”, razão pela qual “a sua própria obra não se torna  
plenamente inteligível se não se considerar a relevância que ela ofereceu a incorporação crítica  
do contributo hegeliano”. Foi o próprio Marx que escreveu sobre A fenomenologia do espírito:  
23  
A grandeza da Phänomenologie de Hegel e do seu resultado final – da  
dialética, da negatividade como princípio motor gerador – é [...] que Hegel  
apreende a autogeração do homem como um processo [...], apreende a  
essência do trabalho e concebe o homem objetivo, verdadeiro, porque o  
homem real, como resultado do seu próprio trabalho (Marx apud Netto, 2020,  
p. 124).  
Um resumo do “idealismo objetivo” de Hegel, em oposição ao “idealismo subjetivo”, é  
oferecido por Netto (2020, p. 48, grifos do autor) em sua mais recente e rica obra Karl Marx:  
uma biografia:  
Num primeiro momento do seu longo labor filosófico, Hegel – em empreitada  
teórica parcialmente compartilhada com Schelling – criticou o idealismo  
José Amilton de Almeida  
subjetivo de Kant-Fitche e estabeleceu, no curso dessa crítica, o moderno  
idealismo objetivo. Foi no marco desse idealismo objetivo que ele,  
descobrindo e formulando no desenvolvimento ulterior de suas pesquisas um  
riquíssimo acervo categorial, ergueu um sistema filosófico compreensivo e  
inclusivo da história (da natureza e da sociedade). Essa história Hegel a (ex)  
pôs como um largo processo de (auto)desenvolvimento do Espírito, cuja  
efetividade se explicitava na sua demiúrgica atividade objetivada na natureza  
e na sociedade. Natureza e sociedade eram produtos da dinâmica constitutiva  
do Espírito e demonstravam a sua peculiaridade mais essencial: a de serem  
movimento perene, tensionada e movidas (bem como o próprio Espírito) por  
contradições internas, endógenas. Ambos, o Espírito e o mundo, aparecem,  
assim, em Hegel, como processualidade – e processualidade automobilizada,  
uma vez que seu dínamo reside na contraditoriedade imanente que lhes é  
própria. Tudo é processo, movimento, transformações quantitativas  
imparáveis que redundam em transformações qualitativas – do que não resulta  
um conjunto caótico ou aleatório, regido pelo arbítrio ou pelo acaso. Ao  
contrário: O Espírito, no seu processo evolutivo imanente, obedecendo às suas  
próprias leis, contradiz-se a si mesmo e nessa contradição se desdobra noutra  
efetividade, o mundo, que também é dinamizado e se transforma pelo seu  
próprio movimento contraditório e, ao fim e ao cabo, ambos se reconciliam e  
instauram-se numa unidade que reconstitui não a configuração original do  
Espírito nem do mundo, mas numa totalidade articulada então por um Espírito  
que se sabe e a si mesmo e se reconhece para si num mundo com inéditas  
qualidades, e ambos acabam por unir-se numa plena identidade. Todo esse  
processo perfaz a história, comandada por uma racionalidade [...] cujo centro  
reside sempre no Espírito.  
Netto (2020, p. 49) ressalta, porém, o problema já apontado por Engels da “contradição  
entre o método e o sistema de Hegel”. De acordo com o biografo de Marx, a leitura engelsiana  
também fazia jus a Hegel ao reconhecer que a construção filosófica deste “se operou mediante  
uma elaborada dialética que, embora idealista, tomou o ser, a realidade, como processualidade:  
ser é devir, movimento imanente, constante (auto)transformação; no entanto”, advertiu, “essa  
metodologia se consuma num sistema que encerra a história quando o Espírito se realiza no  
estágio final, o do Espírito absoluto” (Netto, 2020, p. 49). Vê-se que, conforme se refere Netto  
(2020, p. 49, grifos do autor): “trata-se mesmo de uma teoria do [...] fim da história” – o que  
evidencia, igualmente, como é profunda e longínqua a moderna raiz da “teoria pós-moderna”  
do fim da história. Desse modo, “a contradição hegeliana é inequívoca: se o método é  
revolucionário, o sistema é conservador” (Netto, 2020, p. 49, grifos do autor)5.  
24  
5 Atendo-se mais detalhadamente nesta contradição entre “o método e sistema hegeliano”, Cornu (1975, v. I, p.  
185 apud Netto, 2020, p. 49), resumiu: “A concepção hegeliana de desenvolvimento dialético da história  
implicava, de fato, um devir incessante, uma contínua transformação na qual não se pode tomar como limite e  
como fim uma história determinada. Com efeito, pelo progresso dialético, toda realidade de ordem econômica,  
política ou social, tende a perder o caráter de necessidade, ao mesmo histórica e lógica, que tem em determinado  
momento; torna-se, portanto, irracional e deve ceder lugar a uma nova realidade, destinada, por sua vez, a  
desaparecer um dia. Entretanto, contrariamente a essa concepção dialética, Hegel, inclinado cada vez mais ao  
conservadorismo, tendia a atribuir às instituições de seu tempo – especialmente à religião cristã e ao Estado  
prussiano – um valor absoluto e a deter nelas o curso da história”.  
Libertas, Juiz de Fora, v. 24, n. 1, p. 18-41, jan./jun. 2024. ISSN 1980-8518  
Teoria social e método em Marx: materialismo, história e dialética  
Com efeito, Netto (2020, p. 49) constata que, “dadas as inclinações do último Hegel” –  
que embora na juventude tivesse se entusiasmado com a revolução francesa, sem, contudo,  
nunca se aproximar de suas tendências radicais, ao cabo terminou por se mostrar politicamente  
inclinado à monarquia e impressionado com os domínios napoleónicos – “compreende-se [...]  
que as inferências políticas extraídas do seu sistema filosófico se mostrassem compatíveis com  
o regime prussiano”. Assim como compreende-se, também, porque do filosofo alemão ter visto  
no Estado e na sociedade civil burguesa a mais desenvolvida e derradeira forma de (auto)  
realização do Espírito: o Espírito absoluto. Hegel se empenhou em “apreender e expressar o  
verdadeiro não como substância, mas também, na mesma medida, como sujeito’”, no entanto,  
para Marx,  
o autor da Fenomenologia do espírito não se deu plenamente conta de como  
era concreta a atividade desse sujeito. ‘O único trabalho que Hegel conheceu  
e reconhece’ – escreve Marx – é o trabalho espiritual abstrato [...] ‘A essência  
humana, o ser humano, equivale para Hegel, à consciência de si’. Essa crítica,  
formulada nos Manuscritos de 1844, e retomada na Sagrada Família: ‘Hegel  
transforma o homem em homem da consciência em si, em vez de reconhecer  
na consciência de si a consciência de si do homem, quer dizer, de um homem  
real, que vive num mundo real, objetivo, e é condicionado por ele’ (Konder,  
1988, p. 5).  
Não obstante ter assumido “o conceito hegeliano de dialética [...], Marx foi levado a  
modifica-lo, tornando-o ainda mais complexo do que já era no pensamento de Hegel” (Konder,  
1988, p. 5). Sob o escopo marxiano, a dialética hegeliana seria submetida à crítica da filosofia  
materialista e, com ela, sofre uma inversão, já que, em Hegel, a dialética estava de cabeça para  
baixo. É assim que Marx chega ao trabalho como o centro da autocriação humana. A esta  
“angulação filosófico-antropológica” agrega-se a angulação “econômico-política e histórico-  
social” (Netto, 2020) com as quais Marx abarca a sociedade burguesa em sua estrutura,  
movimento e contradições econômicas, políticas e ideológicas. Não obstante, apreende o  
antagonismo entre capital e trabalho, elucida a luta de classes como expressão desse  
antagonismo e alça o trabalhador à condição de sujeito revolucionário, isto é, antítese do capital,  
capaz de libertar a humanidade. Por isso, para Netto (2020), a teoria marxiana é uma “teoria  
social revolucionária”6.  
25  
Leiamos, a seguir – numa passagem um tanto quanto longa, porém imprescindível –, a  
interpretação dialética e materialista da luta de classes e, nela, o destaque do papel ativo do  
proletariado para Marx, mostrando-se o porquê de sua teoria social ser autenticamente  
6
Notavelmente, “a perspectiva de Marx implicava não só uma reavaliação do papel do trabalho material na  
autocriação e na autotransformação humana, como também exigia a reavaliação do papel dos trabalhadores como  
força material capaz de, nas condições atuais, dar prosseguimento à autotransformação histórica da humanidade”  
(Konder, 1988, p. 6).  
José Amilton de Almeida  
revolucionária. Aqui, sua dialética e materialismo como unidade teórico-metodológica se  
mostra inteira e cristalinamente:  
Proletariado e riqueza são antíteses. E nessa condição formam um todo.  
Ambos são formas do mundo da propriedade privada. Do que aqui se trata é a  
posição determinada que um ou outro ocupam na antítese. Não basta  
esclarecê-los como os dois lados – ou extremos – de um todo.  
A propriedade privada na condição de propriedade privada enquanto riqueza,  
é obrigada a manter sua própria existência e com ela a existência de sua  
antítese, o proletariado. Esse é o lado positivo da antítese, a propriedade  
privada que se satisfaz a si mesma.  
O proletariado na condição de proletariado, de outra parte, é obrigado a  
suprassumir a si mesmo e com isso à sua antítese condicionante, aquela que o  
transforma em proletariado: a propriedade privada. Esse é o lado negativo da  
antítese [...], a propriedade privada que dissolve e se dissolve.  
A classe possuinte e a classe do proletariado representam a mesma  
autoalienação humana. Mas a primeira das classes se sente bem e aprovada  
nessa autoalienação, sabe que a alienação é seu próprio poder e nela possui a  
aparência de uma existência humana; a segunda, por sua vez, sente-se  
aniquilada nessa alienação, vislumbra nela sua impotência e a realidade de  
uma existência desumana. Ela é, para fazer uso de uma expressão de Hegel,  
no interior da objeção, a revolta contra essa objeção, uma revolta que se vê  
impulsionada necessariamente pela contradição entre sua natureza humana e  
sua situação de vida, que é a negação, franca e aberta, resoluta e ampla dessa  
mesma natureza.  
Dentro dessa antítese o proprietário privado é, portanto, partido conservador,  
e o proletariado o partido destruidor. Daquela parte a ação que visa manter a  
antítese, dessa a ação de seu aniquilamento.  
Em seu movimento econômico-político, a propriedade privada se impulsiona  
a si mesma, em todo caso, à sua própria dissolução; contudo, apenas através  
de um movimento independente dela, inconsciente, contrário a sua vontade,  
condicionado pela própria natureza da coisa: apenas enquanto engendra o  
proletariado enquanto proletariado, enquanto engendra a miséria consciente  
de sua miséria espiritual e física, enquanto engendra a desumanização  
consciente – e portanto suprassunsora – de sua própria desumanização. O  
proletariado executa a sentença que a propriedade privada pronuncia sobre si  
mesma ao engendrar o proletariado, do mesmo modo que executa a sentença  
que o trabalho assalariado pronuncia sobre si mesmo ao engendrar a riqueza  
alheia e a miséria própria. Se o proletariado vence, nem por isso se converte,  
de modo nenhum, no lado absoluto da sociedade, pois ele vence de fato apenas  
quando suprassume a si mesmo e à sua antítese. Aí sim tanto o proletariado  
quanto sua antítese condicionante, a propriedade privada, terão desaparecido  
(Marx apud Netto, 2020, p. 137-138).  
26  
Ao compreender a sociedade burguesa em seu desenvolvimento histórico, enquanto uma  
totalidade movida por contradições e antagonismos de classes, o papel da filosofia materialista  
dialética passa a ser, na elaboração marxiana, o de intervir objetivamente no mundo. Nessa  
perspectiva, a filosofia – assegura Marx – ‘não pode se realizar sem a superação do proletariado;  
e o proletariado não pode se superar sem a realização da filosofia’” (Marx apud Konder, 1988,  
p. 6). Por isso, na Crítica da filosofia do direito de Hegel, Marx (2010, p.151) ressaltou: ainda  
que “a arma da crítica não” possa “substituir a crítica da arma”; ainda que “o poder material”  
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Teoria social e método em Marx: materialismo, história e dialética  
tenha de ser “derrubado pelo poder material”, “a teoria também se torna força material quando  
se apodera das massas”. Na teoria social marxiana, o proletariado deve apoderar-se da teoria e  
a teoria apoderar-se do proletariado7.  
Ocorre que, em Hegel, conforme já enunciamos, “ela [a dialética estava] de cabeça para  
baixo”. Por isso, para Marx (2006, p. 10), era “preciso colocá-la sobre seus próprios pés para  
descobrir-lhe o núcleo racional, sob o invólucro místico” e, para tal, o caminho que vem sendo  
delineado – que tem no processo de autoconstrução do ser social mediante sua atividade  
sensível a centralidade ontológica – leva ao conceito de práxis, que significa “a atividade prática  
vital, material, que é o trabalho” (Konder, 1988, p. 10-11, grifos do autor). Compete-nos, assim,  
mirar mais de perto do que se trata o trabalho e qual a concepção de humanidade adjacente à  
teoria social marxiana.  
O trabalho e a concepção de humanidade na teoria social marxiana: relação  
homem/natureza e sujeito/objeto  
Partindo da perspectiva antropológico-filosófica que Marx assume na sua elaboração  
teórica, o trabalho é o “primeiro ato”, isto é, “o fato histórico” através do qual “os homens”  
afastam as barreiras naturais e passam a se distinguir dos outros animais humanizando-se.  
Através do trabalho o ser humano cria a si próprio, transforma a natureza, autoconstrói-se e  
autotransforma-se no processo.  
27  
O trabalho é sempre uma relação social: a relação de indivíduos direta ou indiretamente  
associados, e essa associação é uma condição imanente da produção e reprodução, material e  
espiritual, da vida humana. O trabalho põe um elemento inédito na natureza pré-existente: o ser  
social, o que desenvolve, no seu salto ontológico ao afastar as barreiras naturais, uma espécie  
de “segunda natureza”, ou seja, uma natureza modificada e socializada, na definição de Luckács  
(2018), uma “causalidade posta”.  
É o trabalho que, na analogia marxiana (Marx, 2006, p. 211, grifos nossos), distingue a  
atividade de uma aranha da de um tecelão e diferencia o “pior arquiteto da melhor abelha”. O  
processo de trabalho, como tal, isto é, o movimento entre homem e natureza que resulta num  
produto novo, transformado, que satisfaz necessidades humanas e que, não obstante, “já existia  
antes na imaginação do trabalhador”, articula-se por meio de três componentes fundamentais:  
7
Konder afirma que, “antes de Marx, os encontros da dialética com o pensamento político de ‘esquerda’ eram  
fortuitos, ocasionais. Marx modificou esse quadro, porque tratou de entrelaçar, de um modo sistemático, uma  
concepção materialista da história (o reconhecimento do processo material que cria as condições nas quais  
amadurece e se organiza as forças capazes de promover a mudança) como uma concepção dialética da revolução  
(o reconhecimento da importância da intervenção ativa dos homens no mundo, fazendo política, fazendo história)”  
(Konder, 1988, p. 8, grifos nossos).  
José Amilton de Almeida  
“1) a atividade adequada a um fim, isto é o próprio trabalho; 2) a matéria a que se aplica o  
trabalho, o objeto de trabalho; e 3) os meios de trabalho, o instrumental de trabalho” (Marx,  
2006, p. 212). O modo específico através do qual esses três elementos são apropriados no curso  
do desenvolvimento das forças produtivas e das relações sociais determina as diferentes épocas  
históricas (Marx, 2008).  
Para Marx, a despeito do idealismo – que parte da ideia de homem e não do homem  
materialmente existente – e do materialismo contemplativo – que compreende apenas a  
atividade teórico como realmente humana –, “a raiz para o homem é o próprio homem” (Marx,  
2010, p. 151). Sendo assim, a essência da natureza humana é a própria humanidade, que é  
constituída e constitutiva também da natureza (orgânica e inorgânica) com a qual o ser social  
se exterioriza, se objetiva e se subjetiva ao produzir e consumir seu próprio produto social. Não  
obstante, esse ser não elimina a natureza existente em si ou fora de si como condição de si  
mesmo. A relação não é dicotômica, forma, isto sim, uma unidade entre natureza humanizada  
e humano naturalizado. Longe de uma cisão, Luckács (1979. p. 17 apud Forti, 2010, p. 27)  
argumenta que “o ser social – em conjunto em cada um de seus processos singulares – pressupõe  
o ser da natureza inorgânica e orgânica”, além de enfatizar que “não se pode considerar o ser  
social como independente do ser da natureza, como antítese que se excluem, o que é feito por  
grande fato da filosofia burguesa quando se refere aos chamados ‘domínios do espírito’”. Ele  
adverte que “a ontologia do ser social excluí a transposição simplista, materialista vulgar, das  
leis naturais para a sociedade, como era moda, por exemplo, na época do ‘darwinismo  
social’[...]”. Para o filósofo húngaro, “esse desenvolvimento [...] é um processo dialético, que  
começa com um salto, com o pôr teleológico do trabalho, não podendo ter nenhuma analogia  
na natureza” (Lukács, 1979, p. 17 apud Forti, 2010, p. 27).  
28  
O “pôr teleológico do trabalho” significa que “o primeiro ato histórico pelo qual  
podemos distinguir os homens dos animais não é o de pensarem, mas o de começarem a  
produzir os seus meios de vida”, o que faz brotar “uma nova realidade humanizada” a partir da  
qual “temos a práxis, cuja forma privilegiada é o trabalho” (Barroco, 2001 apud Forti, 2010 p.  
28). Na verdade, a categoria trabalho, em Marx, não põe uma relação sequencial ou hierárquica  
entre atividade e pensamento, entre aquilo que vem antes e aquilo que vem depois, são, antes,  
concomitantes, momentos de uma unidade, de uma totalidade que se move mediante  
contradições. Marx e Engels (2009, p. 43-44) descobriram “que os homens também têm  
‘consciência’, mas advertiram, a têm, “logo de início, não como consciência ‘pura’. O espírito  
tem consigo de antemão a maldição de estar ‘preso’ à matéria, a qual nos surge aqui na forma  
de camadas de ar em movimento, de sons, numa palavra, da linguagem [Sprache]”. Aliás, a  
Libertas, Juiz de Fora, v. 24, n. 1, p. 18-41, jan./jun. 2024. ISSN 1980-8518  
Teoria social e método em Marx: materialismo, história e dialética  
própria “linguagem é tão antiga quanto a consciência – a linguagem é a consciência real prática  
que existe também para outros homens e que, portanto, só assim também existe para mim”, e  
conforme os autores, “a linguagem só nasce, como a consciência, da necessidade [Bedürfinis],  
da necessidade orgânica [Notdurft], do intercâmbio com outros homens” (Marx; Engels, 2009,  
p. 44, grifos nossos). Na filosofia materialista de Marx e Engels, o homem é apreendido em  
toda sua significação como “um ser da natureza ativo” (Netto, 2020, p. 146), pois sua atividade  
é uma “atividade ativa”, por isso, “toda sua vida é essencialmente prática” (Netto, 2020, p. 148).  
São três as premissas básicas, os incrementos primordiais que propiciam a formação do gênero  
humano, dos quais a ciência materialista não pode se furtar: inicialmente,  
[1] Devemos começar por constatar o primeiro pressuposto de toda existência  
humana, e, também portanto, de toda a história, a saber, o pressuposto de que  
os homens têm de estar em condições de viver para fazer história. Mas, para  
viver, precisa-se, antes de tudo, de comida, bebida, moradia, vestimentas e  
algumas coisas mais. O primeiro ato histórico é, pois, a produção dos meios  
para satisfação dessas necessidades, a produção da própria vida material, e  
este é, sem dúvida, um ato histórico, uma condição fundamental de toda a  
história, que ainda hoje, assim como a milênios tem de ser cumprida ainda  
diariamente [...] simplesmente para manter o homem vivo. A primeira coisa a  
fazer em qualquer concepção histórica é, portanto, observar esse fato  
fundamental em toda a sua significação e todo o seu alcance [...]. [2] O  
segundo ponto é que a satisfação dessa primeira necessidade, a ação de  
satisfazê-la e o instrumento de satisfação já adquiridos conduzem a novas  
necessidades [...]. [3]. A terceira condição que já de início intervém no  
desenvolvimento histórico é que os homens, que renovam diariamente a  
própria vida, começam a criar outros homens, a procriar – a relação entre  
homem e mulher, entre pais e filhos, a família. Essa família [...] deve, portanto,  
ser tratada e desenvolvida segundo os dados empíricos já existente e não  
segundo o conceito de família [...] (Marx; Engels, 2009, p. 40-42, grifos  
nossos).  
29  
Com efeito, “estes três aspectos da atividade social”, salientam Marx e Engels (2009, p.  
42, grifos nossos), “não devem ser considerados como três estágios distintos, mas sim apenas  
como três aspectos ou [...] como ‘três momentos’ que coexistem desde os primeiros dias da  
história e desde os primeiros homens, e que ainda hoje se fazem valer na história”: o trabalho,  
portanto, “é a condição eterna da vida humana”, acrescentará Marx (2006, p. 218) em O capital:  
crítica da economia política. É através do trabalho que o homem se distingue dos outros animais  
e assenta sua natureza social diante dos seres naturais, orgânicos e inorgânicos externos8. Nos  
Manuscritos econômico-filosóficos, a diferença entre o homem – o zoom politikon (Marx, 2008,  
8 Por isso, ressaltam Marx e Engels (2009, p. 24-25): “podemos distinguir os homens dos animais pela consciência,  
pela religião – por tudo o que se quiser. Mas eles começam a distinguir-se dos animais assim que começam a  
produzir os seus meios de subsistência (lebensmittel), passo esse que é requerido pela sua organização corpórea.  
Ao produzirem os seus meios de subsistência, os homens produzem indiretamente a sua própria vida material [...].  
Aquilo que os indivíduos são depende, portanto, das condições materiais da sua produção”.  
José Amilton de Almeida  
p.237) e a natureza já havia sido posta nitidamente. Ali, escreveu Marx:  
O animal é exatamente um com a sua atividade vital. Não se diferencia dela.  
É ela. O homem faz a sua própria atividade vital objeto da sua vontade e da  
sua consciência. Não é uma determinidade com a qual ele se confunda  
imediatamente. A atividade vital consciente diferencia imediatamente o  
homem da atividade vital animal. Decerto, o animal também produz. Constrói  
para si um ninho, habitações, como as abelhas, castores, formigas etc.  
Contudo, produz apenas o que necessita imediatamente para si ou para sua  
cria; produz unilateralmente, enquanto o homem produz universalmente;  
produz apenas sob a dominação da necessidade física imediata, enquanto o  
homem produz mesmo livre da necessidade física e só produz verdadeiramente  
na liberdade da mesma. [...] o animal dá forma apenas segundo a medida e a  
necessidade da species a que pertence, enquanto o homem sabe produzir a  
medida de cada species e sabe explicar em toda a parte a medida inerente ao  
objeto; por isso, o homem dá forma também segundo as leis da beleza (Marx,  
2015, p. 312-313 apud Netto, 2020, p. 107-108, grifos do autor).  
Netto (2020, p. 108) salienta, contudo, que, “a atividade vital específica do homem –  
que o distingue da vida animal –, não suprime a sua naturalidade. Para Marx”, explica ainda,  
“o homem (tal como o animal) vive da natureza”, pelo menos em dois sentidos: “tanto no  
sentido em que ela é 1) um meio de vida imediato, como na medida em que ela é 2) o  
objeto/matéria e o instrumento da sua atividade vital” (Netto, 2020, p. 108). Com efeito, “a  
produção humana, que tem na natureza o objeto/matéria e o instrumento da sua atividade vital,  
torna a natureza o corpo inorgânico do homem, provando sua universalidade e a genericidade  
do seu ser” (Netto, 2020, p. 109 grifos do autor) 9. Para Marx, tal “homem”,  
30  
só na elaboração do mundo objetivo [...] se prova realmente como ser  
genérico. Esta produção é a sua vida genérica operativa. Por ela, a natureza  
aparece como obra sua e realidade sua. O objeto do trabalho é, portanto, a  
objetivação da vida genérica do homem, na medida em que ele se duplica não  
só intelectualmente, como na consciência, mas também operativamente,  
realmente, e contempla-se por isso num mundo criado por ele (Marx, 2015, p.  
313 apud Netto, 2020, p. 109, grifos do autor).  
Netto (2020, p. 110) explica que “aí está porque para Marx, o homem, na sua  
genericidade e consciência, é um ser objetivo”, pondo em relevo o fato de que no terceiro  
manuscrito (que compõe os Manuscritos econômico-filosóficos) Marx tenha expressamente se  
referido ao homem como o “‘homem real, corpóreo, de pé sobre a terra bem redonda e firme,  
expirando e inspirando todas as forças da natureza’” (Netto, 2020, p. 110). Marx argumenta que  
o ser objetivo opera objetivamente e não operaria objetivamente se o objeto  
não residisse na sua determinação essencial. [...] O seu produto objetivo  
apenas confirma a sua atividade objetiva, a sua atividade como a atividade de  
um ser natural objetivo. [...] Que o homem é um ser objetivo [...] significa que  
ele tem objetos sensíveis, reais por objeto de sua essência, da sua  
9
Netto (2020, p. 109) recorda que “procede de Feuerbach a ideia do homem como ser genérico e consciente” e  
que “Marx coincide com Feuerbach em determinar a genericidade e a consciência como especificidades humanas,  
mas “a diferença essencial” se dá em razão do “caráter ativo (produtivo) que [Marx] atribui ao homem”.  
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Teoria social e método em Marx: materialismo, história e dialética  
exteriorização de vida ou que só pode exteriorizar a sua vida em objetos  
sensíveis reais (Marx, 2015, p. 375 apud Netto, 2020, p. 110, grifos do autor).  
Assim sendo, para a ciência materialista da história, é necessário  
sobretudo [...] evitar fixar de novo a ‘sociedade’ como abstração face ao  
indivíduo. O indivíduo é o ser social. A sua exteriorização de vida – mesmo  
que ela não apareça na forma imediata de exteriorização de uma vida, levada  
a cabo simultaneamente como outros – é, por isso, uma exteriorização e uma  
confirmação da vida social. [...] O homem – por muito que seja, portanto, um  
indivíduo particular e, precisamente a sua particularidade faz dele um  
indivíduo e uma comunidade [gemeinwesen] individual real – é tanto a  
totalidade ideal, a existência subjetiva para si da sociedade sentida e pensada  
como também existe na realidade, quer como instituição e fruição real da  
existência social quer como uma totalidade de exteriorização humana de vida  
(Marx, 2015, p. 348 apud Netto, 2020, p. 111 grifos do autor).  
Assim, tendo em vista o desenvolvimento social, diga-se, da produção humana, Marx e  
Engels chegam à seguinte conclusão: dado determinado desenvolvimento da produção e das  
relações sociais da humanidade, daí resulta: a) “as relações de diferentes nações entre si  
dependem do grau em que cada uma dela desenvolveu as suas forças produtivas, a divisão do  
trabalho e o intercâmbio interno”; b) “[...] a própria estrutura interna dessa nação depende da  
fase de desenvolvimento da sua produção e do seu intercâmbio interno e externo” (idem, p. 25);  
c) “até onde chega o desenvolvimento produtivo de uma nação é indicado, com maior clareza,  
pelo grau atingido pela divisão do trabalho”; d) cada nova força produtiva, na medida em que  
não é uma simples extensão quantitativa das forças produtivas até aí já existentes (p. ex., o  
arroteamento de terrenos), tem como consequência, uma nova constituição da divisão do  
trabalho” (Marx; Engels, 2009, p. 25).  
31  
Uma vez que os homens engendraram (1) instrumentos e objetos humanos para a  
satisfação das suas necessidades, com isso, (2) gerando novas necessidades e (3) (novas)  
relações e (novos) complexos sociais (família, moral, religião, Estado, filosofia etc.), 4)  
desdobra-se uma dupla relação: “a produção da vida, tanto da própria quanto da alheia, na  
procriação, surge agora imediatamente [...], por um lado como relação natural, por outro, como  
relação social [...]” (Marx; Engels, 2009, p. 42-43). Em Contribuição à crítica economia  
política, de 1859, Marx deixa evidente as conclusões teórico-metodológicas a que havia  
chegado, assim como em “Crítica da filosofia do Direito de Hegel”, livro cuja Introdução  
apareceu no Anais Franco-alemães publicada em Paris, em 1844”, no qual ele escreveu:  
Minhas investigações me conduziram ao seguinte resultado, as relações  
jurídicas, bem como as formas do Estado, não podem ser explicadas por si  
mesmas, nem pela chamada evolução geral do espírito humano; essas relações  
têm, ao contrário, as suas raízes nas condições materiais de existência, em suas  
totalidades, condições estas que Hegel, a exemplo dos ingleses e dos franceses  
do século 18, compreendia sob o nome de sociedade civil (Marx, 2008, p. 45)  
José Amilton de Almeida  
A outra conclusão, advinda dos estudos da economia política, é que “a anatomia  
da sociedade burguesa deve ser procurada na Economia Política” (Marx, 2008, p. 45), e, daí,  
Marx (2008, p. 46) explicita ter chegado ao seguinte resultado geral “e que, uma vez obtido”,  
serviu lhe “de guia para” seus “estudos”. Tal resultado  
pode ser formulado, resumidamente, assim: na produção social da própria  
existência, os homens entram em relações determinadas, necessárias,  
independentes de sua vontade, essas relações de produção correspondem a um  
grau determinado de desenvolvimento de suas forças produtivas materiais. A  
totalidade dessas relações de produção constitui a estrutura econômica da  
sociedade, a base real sobre a qual se eleva uma superestrutura jurídica e  
política e à qual correspondem a formas sociais determinadas de consciência.  
O modo de produção da vida material condiciona o processo de vida social,  
política e intelectual. Não é a consciência dos homens que determina o seu  
ser; ao contrário, é o seu ser social que determina sua consciência. Em uma  
certa etapa do seu desenvolvimento, as forças produtivas materiais da  
sociedade entram em contradição com as relações de produção existentes, ou,  
o que não é mais do que sua expressão jurídica, com as relações de  
propriedade no seio das quais elas haviam se desenvolvido até então. De  
formas evolutivas das forças produtivas que eram, essas relações convertem-  
se em entraves. Abre-se, então, uma época de revolução social. A  
transformação que se produziu na base econômica transforma mais ou menos  
lenta ou rapidamente toda a colossal superestrutura. Quando se consideram  
tais transformações, convém distinguir sempre a transformação material das  
condições econômicas de produção – que podem ser verificadas fielmente  
com ajuda das ciências físicas e naturais – e as formas jurídicas, politicas,  
religiosas, artísticas ou filosóficas, em resumo, as formas ideológicas sob as  
quais os homens adquirem consciência desse conflito e o levam até o fim.  
32  
Nessa perspectiva, “do mesmo modo que não juga o indivíduo pela ideia que de  
si mesmo faz, tampouco se pode jugar uma tal época de transformações pela consciência que  
ela tem de si mesma” (Marx, 2008, p. 46)10. Para o autor, “é preciso, ao contrário, explicar essa  
consciência pelas contradições da vida material, pelo conflito que existe entre as forças  
produtivas sociais e as relações de produção”. Eis porque, para ele, “a humanidade não se  
propõe senão a problemas que ela pode resolver, pois, aprofundando a análise, ver-se-á sempre  
que o próprio problema só se apresenta quando as condições materiais para resolvê-lo existem  
ou estão em vias de existir” (Marx, 2008, p. 46)11. Na perspectiva de Marx e Engels, ao ter em  
10 Analogamente, Marx (2006, p. 128) chama a atenção, também, para este mesmo fato em O capital (Capítulo  
III), quando discute O dinheiro e a circulação das mercadorias, sarcasticamente afirmando que “o nome de uma  
coisa é extrínseco as suas propriedades”, e que, assim, “nada sei de um homem por saber apenas que se chama  
Jacó”.  
11  
Marx registra ainda, em perspectiva histórica: “em grandes traços, podem ser os modos de produção asiático,  
antigo, feudal e burguês moderno designados como outras tantas épocas progressivas de formação da sociedade  
econômica. As relações de produção burguesas são a última forma antagônica do processo de produção social,  
antagônica não no sentido de um antagonismo individual, mas de um antagonismo que nasce das condições de  
existência socais dos indivíduos; as forças produtivas que se desenvolvem no seio da sociedade burguesa criam,  
ao mesmo tempo, as condições materiais para resolver esse antagonismo. Com essa formação social termina, pois,  
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Teoria social e método em Marx: materialismo, história e dialética  
vista a relação do Estado com a sociedade,  
A estrutura social e o Estado decorrem constantemente do processo de vida de  
determinados indivíduos; mas desses indivíduos, não como eles poderão  
parecer na sua própria representação ou na de outros, mas como eles são  
realmente, como atuam [tätig], portanto, em determinados limites, premissas,  
e condições materiais que não dependem da sua vontade. (Marx; Engels, 2009,  
p. 30).  
Não obstante, a concepção materialista do ser social consiste em reconhecer que  
a produção das ideias, das representações, da consciência está em princípio  
diretamente entrelaçada com a atividade material e o intercâmbio material dos  
homens, linguagem da vida real. [...]. O mesmo se aplica à produção espiritual  
como ela se apresenta na linguagem da política, das leis, da moral, da religião,  
da metafísica etc., de um povo. [...]. O ser dos homens é o seu processo de  
vida real. A consciência nunca pode ser outra coisa senão o ser consciente, e  
o ser dos homens é o seu processo real de vida. Se em toda ideologia os  
homens e suas relações aparecem de cabeça para baixo como numa câmera  
escura, é porque esse fenômeno deriva do seu processo histórico de vida da  
mesma maneira que a inversão dos objetos na retina deriva do seu processo  
diretamente físico de vida (Marx; Engels, 2009, p. 31 grifos dos autores).  
As relações desse mundo invertido chegam à consciência humana como ideologia:  
ideias aparentemente autônomas e desconexas em relação à produção e aos intercâmbios  
materiais. Longe de esgotar a discussão sobre Ideologia, pois ela abrange um campo temático  
próprio de pesquisa (ver, por exemplo, Chauí: O que é ideologia?), do material bibliográfico  
que ora temos em mãos para este estudo, dentre os muitos significados de ideologia como  
conjunto de ideias, podemos dizer que ela expressa uma extensão da alienação no âmbito da  
consciência operando uma inversão na relação entre consciência e ser social.  
33  
A ideologia age como se fosse uma forma de consciência autônoma, extramundana ou  
extraeconômica, e se expressa em vários campos. Na teologia, por exemplo, o homem pensa  
ser ele cria de Deus quando é Deus cria sua; na política, na Filosofia e no Direito: o Estado  
aparece determinando a sociedade, no papel de Espírito universal e absoluto e demiurgo da  
sociedade civil, quando, na verdade, ele, o Estado, é que é fruto da sociedade (civil, de classes).  
A teoria aparece autônoma à prática, e na relação sujeito/objeto, de duas a uma: ou o sujeito se  
sobrepõe ao objeto – numa percepção idealista – ou o objeto se sobrepõe ao sujeito – numa  
percepção empirista ou positivista, ambos se sobrepondo, assim, unilateralmente. Já na  
economia política: o indivíduo burguês, particular e historicamente determinado, aparece como  
universal, a-histórico, como se fosse a essência da humanidade, como se constituísse a causa e  
o princípio do desenvolvimento social humano quando, de fato, este indivíduo é a consequência  
e o resultado do mesmo desenvolvimento (Marx, 2008).  
a pré-história da humanidade” (Marx, 2008, p. 46).  
José Amilton de Almeida  
Na inversão da consciência operada sob o poder da ideologia, categorias como dinheiro,  
mercado, capital, tornam-se a essência das relações humanas e não uma forma particular e  
alienada desta; o indivíduo proprietário privado, cindido da comunidade, e egoísta, aparece  
como sendo a premissa e o pressuposto quando, na verdade, este indivíduo não é mais que um  
produto histórico; as ideias e interesses particulares dessa classe, a burguesia, aparecem como  
se expressassem o interesse da humanidade e de todas as classes sociais; além de eternizar-se,  
na ideologia liberal, a sociedade burguesa, quando, ao contrário, ela não é mais do que uma  
forma específica do desenvolvimento social, historicamente demarcada, com seu modo de  
produção e composição de classes específico e transitório, com suas contradições e lutas de  
classes, com sua economia, sociedade civil e Estado.  
Diante disso, Marx e Engels aludem que na filosofia materialista por eles empreendida,  
em completa oposição à filosofia alemã [idealista e contemplativa], a qual desce do céu à  
terra, aqui sobe-se da terra ao céu” (Marx; Engels, 2009, p. 31, grifos nossos). Isso significa  
que no materialismo  
Não se parte daquilo que os homens dizem, imaginam ou se representam, e  
também não dos homens narrados, pensados, imaginados, representados, para  
daí se chagar ao homem de carne e osso; parte-se dos homens realmente  
ativos, e com base no seu processo real de vida apresenta-se também o  
desenvolvimento dos reflexos [Reflexe] e os ecos ideológicos desse processo  
de vida.  
34  
Portanto, “são os homens que desenvolvem a sua produção material e o seu intercâmbio  
material que, ao mudarem essa realidade, mudam também o seu pensamento e os produtos do  
seu pensamento”, logo, “não é a consciência que determina a vida, é a vida que determina a  
consciência” (Marx; Engels, 2009, p. 32, grifos nossos). Conforme enfatizam, no método  
filosófico-cientifico materialista parte-se “dos pressupostos reais e nem por um momento os  
abandona”, e, “assim que esse processo de vida ativo é apresentado, a história deixa de ser uma  
coleção de fatos mortos – como é para os empiristas, eles próprios ainda abstratos –, ou uma  
ação imaginada de sujeitos imaginados, como para os idealistas”, de tal modo que, com base  
numa concepção teórica que do real parte e nunca o abandona, abre-se a possibilidade para o  
conhecimento concreto do objeto do ser social, isto é, da base material de sua vida e consciência,  
da sua realidade social, finalmente, a produção de um “saber real”, de uma “ciência real” . “Lá  
onde a especulação cessa, na vida real, começa, portanto, a ciência real, positiva, a descrição  
[Drastenllung] da atividade prática, do processo de desenvolvimento prático dos homens”. Com  
isso, “terminam as frases sobre a consciência, o saber real tem de as substituir (Marx; Engels,  
2009, p. 32).  
Mas como é possível a relação entre homem e natureza, entre ser social e consciência,  
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matéria e espírito, atividade e pensamentos aparecerem assim cindidos à própria consciência, e  
operar uma relação invertida na ideologia? Sua base objetiva não pode ser a própria  
consciência; é, isto sim, a “divisão social do trabalho e a propriedade privada”. Marx e Engels  
(2009, p. 47, grifos nossos), aludiram que “divisão de trabalho e propriedade privada são  
expressões idênticas – numa enuncia-se em relação à atividade o mesmo que na outra enuncia  
relativamente ao produto da atividade”. A divisão do trabalho é o alicerce a partir do qual se  
produz a separação não apenas entre trabalho manual e espiritual, trabalho agrícola e industrial,  
campo e cidade, como da conformação do Estado e a cisão entre indivíduo cidadão, da  
conformação das classes sociais e da luta de classes:  
Com a divisão do trabalho está dada, ao mesmo tempo, a contradição entre o  
interesse de cada um dos indivíduos e o interesse comunitário  
[gemeinschaftlichen] de todos os indivíduos que mantêm intercâmbio uns com  
os outros. [...]. E é precisamente dessa contradição do interesse particular e do  
interesse comunitário que o interesse comunitário assume uma organização  
[Gestaltung] autônoma com o Estado, separado dos interesses reais dos  
indivíduos e do todo, e ao mesmo tempo como comunidade ilusória, mas  
sempre sobre a base real [realen basis] dos laços existentes em todos os  
conglomerados de famílias e tribais – como de carne e sangue, de língua, de  
divisão de trabalho numa escala maior, e demais interesses – e, especialmente  
[...] das classes desde logo condicionadas pela divisão do trabalho e que se  
diferenciam de todas essas massas de homens, e das quais uma domina todas  
as outras. (Marx; Engels, 2009, p. 47).  
35  
Daí “resulta que todas as lutas no seio do Estado, a luta entre a democracia, a aristocracia  
e a monarquia, a luta pelo direito do voto etc. etc., não são mais do que as formas ilusórias em  
que são travadas as lutas reais das diferentes classes entre si” (Marx; Engels, 2009, p. 47); e as  
ideias que aparecem como naturais a todas as classes como ideias universais, são as ideias  
dominantes neste modo de produção e em suas relações sociais, mais precisamente, a  
dominação das ideias das classes dominantes que estão na condição de proprietárias dos meios  
de produção – de produção material propriamente ditos e na produção de ideias – e da  
acumulação do produto (riqueza) social produzido pelo trabalho/trabalhador. Marx e Engels  
(2009, p. 67) aludiram:  
As ideias das classes dominantes são, em todas as épocas, as ideias  
dominantes, ou seja, a classe que é o poder material dominante da sociedade  
é, ao mesmo tempo, o seu poder espiritual dominante. A classe que tem a sua  
disposição os meios para produção material dispõe assim, ao mesmo tempo,  
dos meios para a produção espiritual, pelo que lhe estão assim, ao mesmo  
tempo, submetidos em média as ideias daqueles a quem faltam os meios para  
a produção espiritual.  
O poder político é, também, uma manifestação da contradição do interesse particular e  
do interesse da comunidade, de maneira que esta contradição se objetiva concentrando no  
Estado o poder político de uma classe social particular, mas aparece como se representasse o  
José Amilton de Almeida  
poder de toda a comunidade, ou “o interesse geral”, nos termos de Rousseau. Em outras  
palavras, o Estado é expressão do poder organizado da classe dominante e opera de modo  
teológico, mistificador, para com a sociedade, pois nele está politicamente alienado o interesse  
coletivo da comunidade, e de cada indivíduo, em detrimento dos interesses particulares de uma  
classe, que se pretende universal e aparece como tal.  
Particularmente no Estado burguês, um produto da sociedade (civil) burguesa – Hegel  
imaginava o oposto: que a sociedade (civil) é que era produto do Estado – opera uma  
contradição, um antagonismo inconciliável, entre os ideais liberais do cidadão, gênero, e o  
indivíduo, particular (burguês ou vivendo sob relações burguesas subordinadamente, como o  
proletariado). Aí impera uma oposição entre o interesse coletivo e o interesse restrito das classes  
economicamente dominantes e politicamente no poder. Por isso, essas classes no poder se  
mantêm conservadoras, elas se conservam não apenas através do monopólio sobre os meios de  
produção social da humanidade e universalização de suas próprias ideias, mas,  
concomitantemente, através do poder político, isto é, do monopólio do uso da força – e a  
organização sistemática desta força, militar, financeira, administrativa e burocraticamente –  
através do Estado e suas instituições inerentes. Mas, sabendo-se que o Estado é um instrumento  
de dominação de classe – até mesmo na fase monopolista quando ele se amplia e amplia o  
próprio horizonte da sociedade civil –, poderia a classe trabalhadora se furtar ao Estado em seu  
processo emancipatório? A resposta é não. Para Marx, assim como para Engels,  
36  
Todas as classes que aspiram ao domínio, como é o caso do proletariado,  
condiciona a superação de toda a velha sociedade e da dominação em geral,  
têm primeiro de conquistar o poder político, para por sua vez representarem o  
seu interesse como o interesse geral, coisa que no primeiro momento são  
obrigadas a fazer. Precisamente porque os indivíduos procuram apenas o seu  
interesse particular, que para eles não coincide com o interesse comunitário –  
a verdade é que o geral é a forma ilusória da existência da comunidade –, este  
é feito valer como um interesse que lhes é ‘alienado’ e ‘independente’ deles,  
como um interesse geral que é também ele, por sua vez, peculiar e particular,  
ou eles próprios têm de se mover nesta discórdia, como na democracia (Marx;  
Engels, 2009, p. 48).  
Vê-se que, como um pensador cientificamente crítico e eticamente comunista, o fio que  
percorre a elaboração marxiana é a preocupação com a verdadeira libertação humana dos  
grilhões do capital, com o fim das opressões e da exploração do homem pelo homem. A  
pergunta, sempre adjacente que pode ser deduzida de seus escritos, dentre muitas outras é:  
como poderia o ser humano tornar-se verdadeiramente livre e desalienado? A resposta mais  
simples, seria: o comunismo. Mas, devido a degeneração deliberada de que a expressão tem  
sido vítima, para expressar o teor científico do comunismo exige que façamos algumas devidas  
mediações.  
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Teoria social e método em Marx: materialismo, história e dialética  
O caminho da alienação humana e o caminho da sua superação: o comunismo na  
perspectiva filosófico-antropológica emancipatória de Marx  
A ciência materialista foi criada no processo de objetivação-subjetivação da luta de  
classes da sociedade burguesa. Sendo produto das relações sociais deste mundo de exploração  
e miséria, é também “a arma da crítica” produzida para facilitar o caminho revolucionariamente  
humano; além de tornar evidente que a exploração tem de ser combatida realmente, não  
idealmente única e simplesmente.  
Marx chega à crítica da economia política como desmistificação da sociedade burguesa  
na sua mais elementar relação cotidiana, na qual a alienação é constitutiva de um universo no  
qual as relações sociais aparecem como relação entre coisas, um fenômeno difundido através  
do que Marx (2006, p. 92), em O capital (Livro I, capítulo 1), denominou de “o fetichismo da  
mercadoria: seu segredo” – e que, neste breve artigo, não temos tempo de desenvolver. Na  
sociedade burguesa, como em toda sociedade de classes, o indivíduo está cindido, separado,  
desapossado, isto é, alienado do seu produto social, da atividade da qual o produto resulta e do  
gênero humano. Se a alienação consiste na cisão do criador da sua criatura e no domínio desta  
sobre aquele, o caminho para a desalienação consiste em (re)unir o gênero ao indivíduo, cindido  
e explorado, isto é, devolver ao ser social o produto de sua sociabilidade, a sua criação para a  
qual ele se porta como se fosse criatura. Netto (2020, p. 125) lembra que Marx já apontara que  
“a superação da autoalienação faz o mesmo caminho que a autoalineação”. Mas por qual via se  
consolida a alienação do ser humano na sua relação prática com a natureza, e na relação com o  
próprio ser humano, isto é, em sua constituição como ser social? Quem nos oferece um  
esquemático resumo é Lápine, que, apoiado em Marx, pontua cinco momentos fundamentais  
desse processo:  
37  
1) Inicialmente, num estágio bárbaro, selvagem, não há alienação, o trabalho e  
seus produtos servem apenas para atender às necessidades do homem em  
meios de subsistência; então, todo o trabalho acumulado pertence ao próprio  
produtor (diz Marx: ‘Capital e trabalho primeiro ainda unidos’);  
2) Etapa em que surge a troca direta: o produtor dispõe da troca de um excedente  
que ele produz, mas tem necessidade de bens produzidos por outrem [...].  
Desenvolve-se a troca e a divisão do trabalho, o produto alienado do seu  
produtor e as relações sociais tornam-se também um ato genérico exterior  
alienado; [...]  
3) Etapa na qual, ademais da alienação do produto [...] opera a alienação na  
atividade de trabalho, marcada pelo surgimento do equivalente cujo papel não  
para de crescer e substituir tudo: o dinheiro. Então, mais desenvolvida ainda a  
divisão do trabalho, a troca e o trabalho tornam-se meros meios para o ganho  
(o que então Marx chama de trabalho lucrativo) e a alienação passa a envolver  
as forças essenciais do homem;  
José Amilton de Almeida  
4) Os efeitos das etapas anteriores determinam, para Lápine a acumulação do  
trabalho de outrem, ou seja, do capital no sentido próprio do termo e sua  
oposição ao trabalho direto. [...] a oposição entre o trabalho e o capital aparece  
aqui sob a forma de oposição entre o trabalho agrícola e a renda da terra, mas  
a essência dessa oposição é mascarada por uma série de circunstâncias;  
5) Na última etapa, tais circunstâncias são suprimidas, nas palavras de Marx,  
‘quando o desenvolvimento necessário do trabalho’ põe ‘a indústria liberta e  
constituída como tal para si própria e o capital liberto, [...] quando o capital  
tornado liberto torna-se capital ‘puro’, se coloca factualmente no controle da  
produção da riqueza social. Só então é possível apreender o trabalho como a  
essência subjetiva da propriedade privada como exclusão da propriedade e o  
capital como o trabalho objetivo como exclusão do trabalho só então [...] a  
propriedade privada se põe na sua relação enérgica que impele à resolução; só  
então se chega ao ponto de comutação que abre a via à ‘resolução’, que não é  
outra coisa senão a superação da propriedade privada e da alienação (Lápine,  
1983, p. 327-333 apud Netto, 2020, p. 121- 122).  
A crítica da alienação religiosa leva Marx e Engels à crítica da alienação política e a  
estabelecerem analogias metodológicas entre ambas. Eles escreveram que “a tarefa imediata da  
filosofia, que está a serviço da história, é, depois de desmascarar a forma sagrada da alienação  
humana, desmascarar a auto-alienação nas suas formas não sagradas” (Marx, Engels, 2009, p.  
146). Assim, “a crítica do céu transforma-se na crítica da terra, [...] a crítica da religião, na  
crítica do Direito, a crítica da teologia, na crítica da política (Marx; Engels, 2009, p. 146). Ao  
comparar a vida na sociedade burguesa a uma vida emancipada longe dela, diga-se, comunista,  
observaram:  
38  
[na primeira] assim que o trabalho começa a ser distribuído, cada homem tem  
um círculo de atividade determinado e exclusivo que lhe é imposto e do qual  
não pode sair; será caçador, pescador; ou crítico, e terá de continuar a sê-lo  
senão quiser perder os meios de subsistência – ao passo que na [segunda]  
sociedade comunista, na qual cada homem não tem um círculo exclusivo de  
atividade, mas pode se formar [ausbilden] em todos os ramos que preferir, a  
sociedade regula a produção geral e, precisamente desse modo torna possível  
que eu faça hoje uma coisa e amanhã outra, que cace de manhã, pesca de tarde,  
crie gado à tardinha, critique depois da ceia, tal como me aprouver, sem ter de  
me tornar caçador, pescador, pastor ou crítico (Marx; Engels, 2009, p. 49).  
Em Crítica à filosofia do direito de Hegel – Introdução, ao expor a necessidade de um  
outro estatuto para a filosofia na qual essa intervenha na história muito além de especulá-la,  
Marx (2010) identifica no proletariado a força capaz de levar a cabo tal emancipação, havendo  
que produzir uma relação orgânica entre a filosofia e proletariado. Nessa obra, ele registra que  
a possibilidade positiva para a emancipação alemã – o que vale para a emancipação do homem  
em geral – estava no proletariado, isto é,  
na formação de uma classe com grilhões radicais, de uma classe da sociedade  
civil que não seja uma classe da sociedade civil, de um estamento que seja a  
dissolução de todos os estamentos, de uma esfera que possua um caráter  
universal mediante seus sofrimentos universais e que não reivindique nenhum  
direito particular porque contra ela não se comete uma injustiça em particular,  
Libertas, Juiz de Fora, v. 24, n. 1, p. 18-41, jan./jun. 2024. ISSN 1980-8518  
Teoria social e método em Marx: materialismo, história e dialética  
mas a injustiça por excelência, que já não possa exigir um título histórico, mas  
apenas o título humano, que não se encontre numa posição unilateral às  
consequências, numa posição abrangente aos pressupostos do sistema político  
alemão, uma esfera, por fim, que não pode se emancipar sem emancipar todas  
as outras esferas da sociedade e, com isso, sem emancipar essas esferas – uma  
esfera que é, numa palavra, a perda total da humanidade e que, portanto, só  
pode ganhar a si mesma por um ganho total do homem. Tal dissolução da  
sociedade, como um estamento particular, é o proletariado. (Marx, 2010, p.  
156, grifos nossos)12.  
Para Marx, a verdadeira natureza do homem é a sua natureza antropológica, donde  
conclui que para o socialista,  
Toda a chamada história do mundo não é senão geração do homem pelo  
trabalho humano, senão o devir na natureza para o homem, assim ele tem,  
portanto, a prova irrefutável, intuível, do seu nascimento através de si próprio,  
do seu processo de surgimento. [...] O ateísmo, como renegação dessa  
inessencialidade [da alienação do homem], não tem mais qualquer sentido,  
pois o ateísmo é uma negação do deus e põe por esta negação a existência do  
homem; mas o socialismo como socialismo não necessita mais de uma tal  
mediação; ele começa pela consciência teórica e praticamente sensível do  
homem e da Natureza como [consciência] da essência. Ele é autoconsciência  
positiva do homem já não mediada pela supressão da religião, tal como a vida  
real é realidade positiva do homem já não mediada pela propriedade privada,  
o comunismo. O comunismo é a posição como negação da negação, por isso,  
o momento real, necessário para o próximo desenvolvimento histórico, da  
emancipação e recuperação humanas (Marx, 2012, p. 121).  
Com esta passagem – com a qual convém encerrar este artigo – fica evidente a unidade  
entre ciência e ética no método de Marx. Ele distancia-se de um vulgar posicionamento neutro  
diante da ciência e desenvolve a crítica da sociedade burguesa com vista na sua superação. Com  
isso, edifica uma teoria social revolucionária, na qual, mais do que desvestir os mitos e  
fundamentos ideológicos da sociedade burguesa e desnudar sua estrutura e movimento, aponta  
aos oprimidos uma ciência própria e uma teoria concreta para superarem a opressão. A teoria  
revolucionária marxiana segue sendo, mais do que necessária, imprescindível para o  
movimento de luta da classe trabalhadora. Nesse sentido, ela tem muito ainda a contribuir para  
ajudar a guiar e enriquecer a práxis de movimentos sociais, quaisquer que sejam e onde quer  
que estejam: operários, proletários, camponeses, sem-terra, sem-teto, movimento negro,  
indígena, feminista, Lgbtqiapn+ etc.  
39  
12 Em perspectiva emancipatória, Marx (2012, p. 15-16) defende que “a supressão da propriedade privada é [...] a  
completa emancipação de todos os sentidos e qualidades humanas; mas ela é esta emancipação precisamente pelo  
fato destes sentidos e qualidades se terem tornado humanos, tanto objetiva quanto subjetivamente” e, assim, a  
“necessidade ou fruição perderam [...] a sua natureza egoísta e a Natureza perdeu a sua mera utilidade na medida  
em que a utilização se tornou uma utilização humana”.  
José Amilton de Almeida  
Considerações finais  
Mediante os fundamentos antropológicos, econômico-filosóficos e histórico-sociais  
rapidamente esboçados nestas páginas, Marx desenvolve o método comumente denominado  
“materialismo histórico e dialético” com o qual a sociedade burguesa é tomada concreta e  
criticamente na sua leitura13. Perpassando pela crítica religiosa à crítica do Direito e do Estado,  
pela crítica da filosofia à crítica da economia política, o modo de ser socialmente burguês é  
desvelado, seu movimento e estrutura são racionalmente apreendidos, as classes fundamentais  
(capitalistas, proprietários de terras e proletários), evidenciadas, e o método através do qual este  
modo de ser opera mostra-se, então, determinado pelo modo de produção, isto é, a partir da  
produção material da vida de indivíduos socialmente determinados, produzindo em sociedade,  
adquirindo relações sociais com base da divisão social do trabalho e desenvolvendo suas forças  
produtivas, autoproduzindo-se e reproduzindo-se material e espiritualmente, ao mesmo tempo  
objetiva e subjetivamente.  
A relação que produz meios humanos para satisfação de necessidades humanas forma a  
base – e concomitantemente as ideias se entrelaçam a esta base – para a produção de ideias. Se  
essas ideias não são um reflexo instantâneo do mundo real e sim uma refração projetada na  
consciência, isto é, projeção da realidade tal como esta chega distorcida ou invertida na mente  
humana, neste caso, o papel da ciência e da teoria é corrigir a distorção, desinverter o mundo e  
colocá-lo “sobre os seus próprios pés”.  
40  
Isso quer dizer que a crítica da economia política, que assenta seus pés numa percepção  
materialista e dialética de economia, percebe que, na sociedade burguesa, a relação entre sujeito  
e objeto está invertida. Pois o trabalho, que é a essência do ser, está subordinado, alienado,  
enquanto o capital, um produto das relações sociais do ser, o subordina. Sob tais condições, nas  
quais todos os membros da sociedade estão alienados, o proletariado é prejudicado enquanto a  
classe capitalista se beneficia da alienação: o que uma perde é imediatamente o que a outra  
ganha.  
A força dinâmica, que objetiva a negação da sociedade burguesa é o proletariado – leia-  
13 Escapou-nos uma exposição mais precisa do “método da economia política” discutida por Marx em Introdução  
(à contribuição à crítica da economia política), no qual ele resume seu método. Escusamo-nos conscientemente  
de tal tarefa, pois a riqueza e densidade do conteúdo ali expressos, merecem um capítulo próprio no estudo dos  
fundamentos da teoria social e do método marxista. Pela mesma razão escapou-nos, também, uma exposição das  
relações capitalista de produção, suas contradições inerentes, a exploração e extração de mais-valia, a lei geral de  
acumulação, a desigualdades, o pauperismo e a “questão social”. Não pudemos abordar as bases de expropriação  
dos produtores diretos, nem a formação do capital com suas crises e a apropriação capitalista da renda fundiária,  
a mercadoria, o dinheiro e o fetiche da mercadoria ou outras categorias econômicas do modo de produção  
capitalista, nas quais o método marxiano se efetiva inteiramente e subjaz à análise do objeto; funde-se ao objeto  
indistinguivelmente. Teoria é método torna-se um só elemento: a crítica da economia política.  
Libertas, Juiz de Fora, v. 24, n. 1, p. 18-41, jan./jun. 2024. ISSN 1980-8518  
Teoria social e método em Marx: materialismo, história e dialética  
se classe trabalhadora –, porque, ao mesmo tempo, a negação entre capital e trabalho se  
personifica na luta entre classe capitalista e classe proletária: uma, respectivamente,  
proprietária, dominante e exploradora, outra, expropriada, dominada material e  
ideologicamente, e explorada economicamente. No modo de produção capitalista, a realização  
do capital é, ao mesmo tempo, a desrealização do trabalhador, e esta antítese tende a se  
generalizar com aumento do desenvolvimento das forças produtivas ante as relações sociais  
inerentes ao modo de produção, com isso, abrir possibilidade para sua superação (Marx, 2012).  
O horizonte da teoria social marxiana, não obstante buscar um conhecimento realista e  
concreto do mundo, o faz com o objetivo de transformá-lo e instrumentaliza-se para tal com  
vista à “supressão positiva da propriedade privada”. O propósito de longo alcance – que, sem  
dúvida, emite a harmonia da teoria social com o sentido ético-político das preocupações  
marxianas de aspiração proletária – é a liberdade substantiva, a emancipação humana,  
expressamente assumindo o comunismo como forma social necessária para tal, e, sob esse  
pressuposto adjacente, sustenta-se toda a crítica de Marx da sociedade moderna e ergue-se sua  
teoria social. Teoria esta cuja medula é um método materialista e dialético de apreender a  
história, de ultrapassar a aparência e penetrar a essência do objeto estudado.  
Referências bibliográficas  
41  
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Atividade sensível e gênero humano nos  
Manuscritos econômico-filosóficos de Marx*  
Sensitive activity and human gender in Marx’s Economic-philosophical  
Manuscripts  
Pedro Gomes Barbosa**  
Resumo: Neste artigo, buscaremos demonstrar  
que a constatação das determinações gerais do  
ser social tornou possível a Marx lidar com o  
problema da negação do homem na atividade  
estranhada. Indo à raiz do ser social – tanto ao  
complexo da individualidade quanto ao  
“complexo de complexos da universalidade  
social” –, a crítica ontológica da economia  
política, iniciada nos Manuscritos econômico-  
filosóficos, permitiu a Marx, por um lado,  
demonstrar os problemas da produção  
capitalista – o estranhamento do homem em  
relação ao objeto que produz, o estranhamento-  
de-si e da própria atividade, o estranhamento em  
Abstract: In this article we intend to  
demonstrate that the understanding of the  
general determinations of social being, made it  
possible for Marx to deal with the problem of  
man's denial of estranged activity. Going to the  
root of social being – both the complex of  
individuality and the “complex of complexes of  
social universality” – the ontological critique of  
political economy, initiated in the Economic-  
philosophical Manuscripts, allowed Marx to  
demonstrate, on one hand, the problems of  
capitalist production – the estrangement of man  
in relation to the object of his production, the  
estrangement from himself and from his own  
activity, the estrangement from the self-  
produced genre, and the estrangement in  
relation to the others –; and, on the other, to  
make explicit the more general categories and  
determinations of social being.  
relação ao gênero autoproduzido,  
e
o
estranhamento em relação aos demais –; e, por  
outro, tornar explícitas as categorias  
determinações mais gerais do ser social.  
e
Palavras-chaves: Teoria social de Marx;  
Keywords: Marx's social theory; Ontology of  
social being; Alienation and estrangement;  
Critique of political economy.  
Ontologia do ser social; Alienação  
estranhamento; Crítica da economia política.  
e
*
O presente artigo é parte da dissertação (Mestrado) intitulada “Ser social e crítica ontológica nos Manuscritos  
econômico-filosóficos: atividade sensível, gênero humano e crítica da economia política em Marx” (Barbosa,  
2022). Disponível em: https://repositorio.ufjf.br/jspui/bitstream/ufjf/14738/1/pedrogomesbarbosa.pdf.  
** Doutorando e mestre em Serviço Social (UFJF), com especialização em Filosofia, Cultura e Sociedade (UFJF).  
Licenciado em História (UFJF). ORCID: https://orcid.org/0000-0002-1124-3740  
Esta obra está licenciada sob os termos  
DOI: 10.34019/1980-8518.2024.v24.43244  
Recebido em: 04/01/2024  
Aprovado em: 02/04/2024  
Atividade sensível e gênero humano nos Manuscritos econômico-filosóficos de Marx  
Introdução  
Os Manuscritos econômico-filosóficos nos revelam a presença de elementos  
significativos do pensamento de Marx acerca das categorias mais gerais do ser social. De modo  
geral, a obra é carregada de considerações que nos permitem pensar sobre aspectos  
fundamentais que dizem respeito ao homem e sua atividade, a natureza e o mundo social, mas,  
sobretudo, a obra nos fornece elementos decisivos acerca da relação do indivíduo com o próprio  
gênero e do modo como se estabeleceu historicamente o estranhamento e a alienação dos  
indivíduos em relação 1) ao trabalho; 2) à própria atividade e a si mesmos; 3) ao gênero; e 4)  
aos outros indivíduos. A dificuldade em analisar uma obra dessa complexidade pode ser  
explicada não apenas pela densidade dos temas tratados por Marx, mas também pela não-  
sistematização das proposições marxianas, o que é característico em um texto que vai ao  
encontro do caráter ontológico de sua investigação, constituindo-se em um conjunto de  
anotações para o próprio estudo de seu autor.  
O comentário de Lukács sobre os Manuscritos econômico-filosóficos esclarece o sentido  
deste trabalho: é precisamente nessa obra que as categorias da economia aparecem, pela  
primeira vez, “como as categorias da produção e reprodução da vida humana, tornando assim  
possível uma exposição ontológica do ser social sobre bases materialistas” (Lukács, 2018b, p.  
284-285). Não se trata, pois, de uma “ontologia marxiana” acabada, já pronta ou sistematizada.  
Tampouco se trata, é verdade, de uma antropologia filosófica, tal qual se verifica nos escritos  
de Lüdwig Feuerbach. No sentido corrente na Filosofia, isto é, como consta no verbete  
“Antropologia” do Dicionário de Filosofia, de Nicola Abbagnano (2007), a antropologia  
filosófica é compreendida como “ciência filosófica”, como “determinação daquilo que o  
homem deve ser, em face do que é”. Ainda segundo o verbete, a antropologia filosófica é  
também definida em Humboldt como a busca pelo “ideal da humanidade, a forma  
incondicionada à qual nenhum indivíduo está completamente adequado, mas que permanece o  
objetivo a que todos os indivíduos tendem” (Abbagnano, 2007, p. 67-68).1 Em Marx, toda  
43  
1 A antropologia filosófica aqui referida difere e é anterior à antropologia enquanto disciplina específica, produto  
da modernidade e “relativamente autônoma”, como a antropologia cultural, a antropologia física, fisiológica,  
pragmática, etc. (Abbagnano, 2007, p. 67). Em outro dicionário, organizado por José Ferrater Mora (s.d.), a  
antropologia filosófica levanta a questão pelo o que é o homem e qual o seu destino. Ela busca compreender o ser  
em sua “essência”. É também a ponte entre a metafísica e as assim chamadas ciências positivas. Sua missão é,  
pois, “mostrar exatamente como a estrutura fundamental do ser humano” se manifesta nas mais diversas formas  
de atividade humana. Em suma, a antropologia filosófica concebe o ser dos homens – a sua “essência” – como  
dotada de existência a priori, podendo essa suposta essência ser realizada ou não, ser conhecida ou não pelos  
indivíduos. Em Marx, por sua vez, não se trata da elucidação dos “traços essenciais” do homem. Ainda que o autor  
dos Manuscritos econômico-filosóficos faça uso diversas vezes da expressão “capacidades essenciais” ao se referir  
aos homens em sua própria atividade, seu sentido é distinto daquele de uma antropologia filosófica. Como  
demonstraremos, para Marx, as assim chamadas capacidades ou forças essenciais dos homens são sempre  
Pedro Gomes Barbosa  
discussão filosófica referente ao homem é sempre realizada a partir (e também no interior) da  
busca pela apreensão daquilo que o homem é em uma dada sociabilidade. Assim, é na análise  
crítica do modo de produção da vida no capitalismo que os traços mais gerais do ser social  
podem ser expostos, resultando naquilo que podemos chamar de uma “teoria social de Marx”.  
Como bem destacado por José Chasin (2009) – que percebeu o mérito da leitura de  
Lukács acerca dos Manuscritos econômico-filosóficos –, em Marx as “categorias econômicas”  
são elevadas “ao plano filosófico na forma das categorias de produção e reprodução da vida  
humana” (Chasin, 2009, p. 77).2 Ainda à guisa de introdução, antecipamos que, em Marx, a  
gênese das expressões estranhadas do homem deve ser procurada no modo de produção da vida  
e, portanto, faz-se necessário perscrutar criticamente o terreno da economia política. A crítica  
da economia política é, pois, decisiva para a compreensão de seu pensamento e, como veremos,  
os Manuscritos econômico-filosóficos comprovam suas novas preocupações.  
Gênese do ser social: natureza, objetividade/sensibilidade e atividade sensível  
consciente  
O homem é tanto o ponto de partida quanto o ponto de chegada dos estudos de Marx  
nos Manuscritos econômico-filosóficos. Ao tratar do caráter objetivo e sensível do ser, Marx  
nos convida a seguinte reflexão: “Imaginemos um ser que não seja ele mesmo objeto e que não  
tenha um objeto. Um ser desse tipo seria, em primeiro lugar, o único ser: não existiria nenhum  
ser fora dele; ele existiria isolado e solitário” (Marx, 2010, p. 199). A assertiva resume muito  
bem o caráter sensível do ser social, e situa na dimensão das relações do homem com o próprio  
mundo, a “essência” do ser dos homens. Ao tratar da relação do homem com o mundo objetivo  
com o qual ele se defronta, Marx assinala que “um ser que não é objeto de outro ser supõe, pois,  
que não exista nenhum ser objetivo”. Isso quer dizer que, na medida em que “tenho um objeto”,  
que me relaciono com algo que me é exterior, “este objeto” (ou ser) também “tem a mim como  
objeto”, e é nele que encontro aquilo com o qual me relaciono:  
44  
Um ser que não tenha sua natureza fora de si, não é um ser natural, não toma  
parte na essência da natureza. Um ser que não tem objeto fora de si, não é um  
ser objetivo. Um ser que não é ele mesmo objeto para um terceiro, não tem  
nenhum ser para seu objeto, quer dizer, não se comporta de forma objetiva,  
seu ser não é objetivo. Um ser não-objetivo é um não-ser (Marx, 2010, p. 199).  
historicamente engendradas pelos próprios homens, produto de sua atividade sensível consciente.  
2 Assim, sua crítica da economia política não tem a si mesma como objeto central, isto é, não se trata de uma  
“crítica pela crítica”. Chasin (2009) nos ajuda no que diz respeito à essa questão: “Em suma, posta em andamento,  
a crítica ontológica da economia política, ao contrário de reduzir ou unilateralizar, induz e promove a  
universalização, estendendo o âmbito da análise desde a raiz ao todo da mundaneidade, natural e social,  
incorporando toda a gama de objetos e relações” (Chasin, 2009, p. 77).  
Libertas, Juiz de Fora, v. 24, n. 1, p. 42-65, jan./jun. 2024. ISSN 1980-8518  
Atividade sensível e gênero humano nos Manuscritos econômico-filosóficos de Marx  
Para Marx, o fato de que o homem seja um ser sensível corpóreo, vital, real, dotado  
de forças naturais, em suma, um ser objetivo – significa que o homem “tem objetos reais,  
sensíveis, como objeto de seu ser, de sua expressão vital”, de modo que ele “só pode expressar  
sua vida em objetos reais, sensíveis”. Assim, assinala que “[...] ser objetivo, natural, sensível e  
ter objeto, natureza e sentido fora de si, como ser objeto, natureza e sentido para um terceiro,  
são coisas idênticas” (Marx, 2010, p. 198). Marx utiliza a fome como exemplo de que o homem  
só pode encontrar seu objeto, que satisfaz essa necessidade objetiva e sensível – objeto com o  
qual se relaciona como ser, como natureza fora de si –, quando ele se coloca diante do mundo,  
isto é, quando se volta para a objetividade que existe diante dele – tanto como seu produto, sua  
criação, como mundo humano, quanto como mundo natural mesmo3:  
A fome é uma necessidade natural; necessita, portanto, de uma natureza  
externa, de um objeto externo para satisfazer-se, para aplacar-se. A fome é a  
necessidade admitida por meu corpo de um objeto que existe fora dele,  
indispensável para sua integração e expressão essencial. O sol é objeto da  
planta, um objeto indispensável para ela, que garante a sua vida, assim como  
a planta é objeto do sol, como expressão da capacidade vivificadora do sol,  
como expressão da capacidade essencial objetiva do sol (Marx, 2010, p. 198).  
Assim como as demais espécies de animais, o homem também está em contato direto  
com a natureza orgânica e inorgânica para a sua própria existência.  
Considerada por Marx como o “corpo inorgânico do homem”, a natureza é algo do qual  
ele não pode prescindir e com o qual ele “deve ficar em um processo contínuo para não morrer”.  
De modo imediato, ela “fornece” ao homem os meios de vida, tanto no “sentido de que o  
trabalho não pode viver sem os objetos nos quais é realizado”, ou seja, toda atividade depende  
dos materiais adequados para ser realizada, quanto no sentido mais “estrito”, pois oferece “os  
meios de subsistência física do próprio trabalhador” (Marx, 2010, p. 107). Nesse sentido, a  
natureza, “o mundo externo sensível”, é imprescindível para que o homem crie algo e produza  
sua própria existência, configurando-se assim no material de seu próprio trabalho, a partir do  
qual o homem produz.  
45  
Ainda que seja o material da atividade do homem, a natureza não se encontra  
imediatamente adequada para ele, e ela só existe “humanamente” para o homem em sociedade.  
Assim, o homem confere à natureza uma forma humana que só ele pode fornecer, inclusive  
3
Sobre a necessidade de voltar-se para o mundo no trabalho, José Chasin destaca que esta atividade é  
compreendida como a “protoforma” do mundo humano dos homens, ou seja, é uma atividade “especificamente  
humana porque consciente e voltada a um fim” (Chasin, 2009, p. 92). Assim, em última instancia, o trabalho  
corresponde à “prática mesma da fabricação do homem, sem prévia ideação ou télos último, mas pelo curso do  
‘rico carecimento humano’, aquele pelo qual a própria efetivação do homem ‘como necessidade [Notwendigkeit]  
interior, como falta (Not)” (Chasin, 2009, p. 92-93). Nesse sentido, o homem precisa voltar a si mesmo para o  
mundo concreto, objetivo, que existe diante dele, e deve apreender suas conexões e causalidades naturais para  
colocar em movimento no mundo causalidades postas por ele.  
Pedro Gomes Barbosa  
quando essa humanização se converte em estranhamento. Diferentemente dos objetos da  
natureza, os objetos humanos “não são objetos da natureza, tal como estão oferecidos de forma  
imediata”, e nem o sentido humano, “como existe imediatamente, é objetivo”, ou seja, é  
“sensibilidade humana, objetividade humana”. Já no manuscrito dedicado a crítica à Hegel, ele  
assinala que:  
O homem é imediatamente um ser natural. Como ser natural e como ser  
natural vivo, está munido, por uma parte, de capacidades naturais e vitais; é  
um ser natural ativo; tais capacidades existem nele como predisposições e  
habilidades, como pulsões. Por outra parte, o homem é, como ser natural,  
corpóreo, sensível, objetivo, um ser passivo, condicionado e limitado, como o  
são o animal e a planta, quer dizer, os objetos de suas pulsões existem fora  
dele, como objetos independentes dele; mas estes objetos são objetos de sua  
necessidade, indispensáveis, essenciais para a atuação e confirmação de suas  
capacidades essenciais (Marx, 2010, p. 198).  
Ao avançarmos no manuscrito dedicado à crítica da filosofia hegeliana, constatamos  
que a natureza inorgânica refere-se tanto à ciência quanto as representações artísticas que o  
homem faz da sua relação com a natureza, referindo-se a tais elementos como “meios de vida  
espirituais”:  
[como] as plantas, os animais, as pedras, o ar, a luz, etc., formam,  
teoricamente, uma parte da consciência humana, por um lado como objetos  
das ciências naturais, por outro como objetos da arte – sua natureza inorgânica  
espiritual, meios de vida espirituais, que ele deve preparar prioritariamente  
para logo saboreá-los e digeri-los –, também formam praticamente uma parte  
da vida humana e da atividade humana (Marx, 2010, p. 111).  
46  
Portanto, ao tratar tanto da vida física quanto da vida espiritual, da natureza orgânica e  
inorgânica do ser, Marx assinala que “o fato da vida física e espiritual do homem depender da  
natureza, não significa outra coisa senão que a natureza se relaciona consigo mesma, já que o  
homem é uma parte da natureza” (Marx, 2010, p. 112).  
Compreendida como o “primeiro objeto do homem” – objeto imprescindível para a sua  
existência –, a natureza é também convertida em “objeto imediato das ciências humanas”, de  
modo que ela é tornada objeto no qual o homem investiga os nexos e causalidades naturais nela  
operantes, e o conhecimento elaborado e desenvolvido sobre ela é expresso praticamente na sua  
atividade. A indústria – assim como o grau de desenvolvimento das forças produtivas que  
acarreta –, por exemplo, é concebida como “a relação histórica real da natureza e, portanto, das  
ciências naturais com o homem” (Marx, 2010, p. 151). Na medida em que o ser se faz no mundo,  
ele busca controlar a natureza e, para isso, ele deve ser capaz de compreendê-la em seus nexos  
e categorias para transformá-la e melhor engendrar nela os objetos que condizem com seu  
próprio ser. Marx aqui pôde indicar o caminho para o desenvolvimento de uma ciência  
verdadeiramente materialista, a partir da afirmação de que “a sensibilidade deve ser a base de  
Libertas, Juiz de Fora, v. 24, n. 1, p. 42-65, jan./jun. 2024. ISSN 1980-8518  
Atividade sensível e gênero humano nos Manuscritos econômico-filosóficos de Marx  
toda ciência” (Marx, 2010, p. 151-152):  
A sensibilidade (ver Feuerbach) deve ser a base de toda ciência. Só que, se a  
ciência parte dela, na dupla forma de consciência sensível e de necessidade  
sensível – quer dizer, se a ciência parte da natureza –, é ciência real. A história  
toda é a história da preparação e do desenvolvimento do processo pelo qual o  
homem” se converte em objeto da consciência sensível, e a necessidade do  
“homem enquanto homem” se converte em necessidade. A história mesma é  
realmente uma parte da história natural, do devir homem da natureza. As  
ciências naturais incluirão logo as ciências humanas, do mesmo modo que as  
ciências humanas incluirão as ciências naturais: haverá uma única ciência  
(Marx, 2010, p. 151-152).  
A referência feita à Feuerbach é um nítido exemplo da influência do pensador  
materialista sobre Marx, que sempre reconheceu os méritos de sua filosofia em romper com a  
superfície racional que encobria o núcleo teológico do pensamento hegeliano.4 Mas, do mesmo  
modo que se contrapôs à Hegel e o superou criticamente, Marx também lidou com os equívocos  
da filosofia feuerbachiana.  
Ponto de partida tanto da atividade quanto para a compreensão do ser dos homens, a  
sensibilidade, entretanto, não é a única determinação do ser social. O “devir homem da  
natureza” carrega todo o sentido de que a história do homem é sua responsabilidade, e o homem  
mesmo é tornado “objeto da consciência sensível” como ser social. Aqui, portanto, a história da  
relação do homem com a natureza é compreendida como a história verdadeiramente humana  
do homem. Sua argumentação a favor de uma ciência unitária nos revela sua compreensão da  
necessidade de ir para além dos limites do materialismo vulgar5 e do idealismo: os problemas  
teóricos que os homens enfrentam só podem ser solucionados de forma prática. Por isso, em  
Marx, as contradições artificialmente criadas entre objetivismo e subjetivismo, materialismo e  
espiritualismo, passividade e atividade, deixam de existir quando postas sob o crivo da categoria  
da atividade sensível consciente.6 Em suma, a própria teoria não é uma tarefa resumida ao  
47  
4
Como destacado por Rodrigo Maciel Alckmin (2003), em sua dissertação de Mestrado intitulada Feuerbach e  
Marx: da sensibilidade à atividade sensível, duas são as contribuições de Feuerbach: a primeira delas diz respeito  
à ruptura realizada com a filosofia idealista, sobretudo a hegeliana. Alckmin assinala para o fato de a proposta  
feuerbachiana de renovação da filosofia indicar a necessidade de “ultrapassar os limites de uma contenda  
meramente teórica para se configurar como uma exigência prática imposta por um tempo distinto” (Alckmin, 2003,  
p. 69), destacando também a identificação realizada por Feuerbach do pensamento de Hegel como um pensamento  
caduco que, assim como seu cúmplice, o Cristianismo, passam a sofrer “simultaneamente os bombardeios oriundos  
de uma filosofia do porvir” (Alckmin, 2003, p. 70). A segunda contribuição, por sua vez, trata da “reivindicação  
da sensibilidade enquanto dimensão decisiva na colocação do problema do ser” (Alckmin, 2003, p. 11).  
5
De acordo com José Chasin, a crítica de Marx ao “velho materialismo” não é direcionada aos procedimentos  
científicos por ele adotados, e nem mesmo é uma crítica às “suas insuficiências ou mazelas epistêmicas”. Ela tem,  
pois, outra direção e sentido: o autor dos Manuscritos econômico-filosóficos denunciou “uma grave lacuna  
ontológica” no materialismo antigo, uma vez que este ignorou por completo a qualidade da objetividade social,  
isto é, sua energia, sua atualização pela atividade sensível dos homens ou, simplesmente, desconhece sua forma  
subjetiva” (Chasin, 2009, p. 97).  
6 Enquanto a filosofia apenas tomou o homem por suas características espirituais, e pretendeu dizer o que o homem  
é a partir de uma abstração, em Marx, o modo como os homens produzem a própria vida e a si mesmos nos diz  
Pedro Gomes Barbosa  
campo do conhecimento, ela é também uma “tarefa vital autêntica”, a qual a “filosofia não pôde  
resolver precisamente porque apenas a concebeu como tarefa teórica” (Marx, 2010, p. 150).  
Nos Manuscritos econômico-filosóficos, o trabalho é compreendido por Marx como  
atividade vital” e “vida produtiva mesma” do homem, como “meio para satisfação de uma  
necessidade”. As considerações iniciais de Marx sobre essa categoria estão presentes no  
manuscrito Trabalho estranhado e propriedade privada. Nas primeiras páginas desse texto, o  
trabalho é compreendido em sua particularidade no interior do modo de produção capitalista e,  
desse modo, a categoria traz as marcas da alienação e do estranhamento. Entretanto, é neste  
mesmo manuscrito que Marx começa a contrastar a esse caractere histórico do trabalho, sua  
determinação mais geral.  
O trabalho possui o caráter de atividade de produção dos meios necessários à existência  
dos homens. Compreendido como expressão da atividade vital e sensível humana, é a categoria  
na qual repousam as “características de uma espécie, seu caráter genérico”. A atividade do  
homem é “atividade consciente livre” e, diferentemente das demais espécies que se encontram  
“imediatamente unidas a sua atividade vital” e dela não se diferenciam, o homem é capaz de  
fazer “de sua atividade vital mesma um objeto de sua vontade e de sua consciência”, uma vez  
que sua atividade é “atividade consciente”, isto é, atividade que “não é uma determinação com  
a qual [ele] coincide imediatamente”. Portanto, no intercâmbio entre homem e natureza, a  
atividade consciente exerce papel mediador essencial na diferenciação da atividade do homem  
em relação à atividade animal. Assim, segundo Marx:  
48  
A criação de um mundo objetivo através da prática, a elaboração da natureza  
inorgânica, é a prova que o homem é um ser genérico consciente, isto é, um  
ser que se relaciona com o gênero como com seu próprio ser, ou consigo  
mesmo como ser genérico. Sem dúvida, o animal também produz. Constrói  
para si um ninho, habitações, como a abelha, o castor, a formiga, etc., mas  
produz unicamente o que necessita imediatamente para si ou para sua cria;  
produz unilateralmente, enquanto o homem produz de modo universal; o  
animal produz apenas sob a forma da coação da necessidade física imediata,  
enquanto o homem produz também livre de necessidade física, e apenas  
produz verdadeiramente quando se encontra livre dessa necessidade; o animal  
apenas produz a si mesmo, enquanto o homem reproduz a natureza inteira; o  
produto do animal pertence imediatamente ao seu corpo físico, enquanto o  
homem se defronta livremente com seu produto. O animal forma apenas de  
acordo com a medida e a necessidade da espécie a qual pertence, enquanto o  
muito mais coisas sobre o que eles de fato são. A filosofia precedente não percebeu, pois, que as ciências naturais  
se apropriaram de um número considerável de material acerca da natureza do homem. Uma permaneceu estranha  
à outra. Sua separação só foi momentaneamente suspensa de modo artificial, por meio de uma “ilusão fantástica”.  
De acordo com José Chasin (2009), a crítica marxiana não poderia deixar de romper com “a concepção excludente  
entre natureza e sociedade, pondo em primeiro plano o metabolismo humano-societário que as relaciona” (Chasin,  
2009, p. 78). A natureza é, pois, a “plataforma natural” necessária e não-dominante, incessantemente transformada  
pela sociabilidade, isto é, pelos homens em seu processo de autoedificação, por meio de sua atividade sensível,  
“cada vez mais puramente social”.  
Libertas, Juiz de Fora, v. 24, n. 1, p. 42-65, jan./jun. 2024. ISSN 1980-8518  
Atividade sensível e gênero humano nos Manuscritos econômico-filosóficos de Marx  
homem sabe produzir segundo a medida de qualquer espécie, e sabe aplicar  
em todos os casos a medida inerente ao objeto; o homem também forma, por  
isso, de acordo com as leis da beleza (Marx, 2010, p. 113).  
O que constitui o gênero humano e diferencia o homem das demais espécies é a  
capacidade de produzir livremente através de sua atividade. Ele é capaz de dar à natureza uma  
forma adequada para si e, além de produzir o próprio gênero, ele pode também produzir de  
acordo com a medida das demais espécies e da natureza, tornando-a uma extensão de seu  
próprio corpo.  
Para o homem, a natureza carece de sua atividade: ela não está nem objetiva e nem  
subjetivamente disponível de modo imediato na “forma adequada para o ser humano”. Ao atuar  
sobre a natureza, o homem confere a ela uma história, e a história humana da natureza do  
homem tem um começo, isto é, tem um ato de origem. Para o homem, esse ato de origem é sua  
atividade, e o ato de sua história é um “ato consciente e, por ser um ato de origem com  
consciência, supera a si mesmo. A história é a verdadeira história natural do homem” (Marx,  
2010, p. 199-200). O modo de existência do homem e a sua “natureza” são, assim, determinados  
pelo próprio agir humano.  
Marx vai além da filosofia feuerbachiana e, mesmo que não tivesse ainda formulado as  
Teses ad Feuerbach, de 1845, ele desenvolveu elementos decisivos que o diferenciam  
radicalmente do velho materialista: ele compreendeu a essência do ser não como a mera  
sensibilidade muda característica do pensamento feuerbachiano, mas como o sensível que é  
ativo, que é capaz de transformar a natureza e constituir a sua própria subjetividade, isto é,  
como atividade sensível consciente. Segundo Lukács (2018a), temos aqui a “quintessência” da  
teoria materialista marxiana da objetividade, capaz de, ao mesmo tempo, explicar o  
“estranhamento capitalista e sua superação”, superando a concepção e crítica feuerbachiana ao  
idealismo de Hegel7,  
49  
A crítica marxiana toca também no universo especulativo hegeliano, demonstrando os  
limites da filosofia idealista diante da descoberta marxiana da atividade sensível consciente  
como atividade objetiva de um ser objetivo. Na crítica certeira à Hegel e à alienação como  
atividade do espírito, Marx assinala:  
Quando o homem real, corpóreo, que está sobre a terra firme e inteiramente  
redonda, que expira e aspira todas as forças naturais, põe suas capacidades  
essenciais reais, objetivas, por meio de sua alienação, não é o sujeito; é a  
subjetividade das capacidades essenciais objetivas, cuja ação deve ser, por  
7 Segundo Lukács, Feuerbach “[...] passou ao largo desse problema social [do estranhamento] sem lhe dar atenção  
e, por essa razão, por um lado, não percebeu os momentos justificados da teoria hegeliana e, por outro, comete  
erros parecidos com os do idealismo hegeliano quanto à concepção de homem e sociedade, partindo do ponto de  
vista contrário” (Lukács, 2018a, p. 706).  
Pedro Gomes Barbosa  
isso, também uma ação objetiva. Aessência objetiva atua objetivamente, e não  
atuaria objetivamente se o objetivo não estivesse na determinação de sua  
essência. Apenas cria, põe, porque está posta por objetos, porque é  
originalmente natureza. O ato de pôr não cai, então, de sua “atividade pura” a  
uma criação do objeto, mas seu produto objetivo confirma unicamente sua  
atividade objetiva, sua atividade como atividade de um ser natural objetivo.  
(Marx, 2010, p. 197-198)  
O ato de pôr do homem não provém de uma “atividade pura” e, contrapondo-se à Hegel,  
em Marx, história do homem não é produto daquilo que o espírito absoluto coloca em  
movimento, sua atividade é atividade de um ser natural objetivo.  
Generidade e individualidade humanas  
Vimos que a atividade sensível consciente é o elemento fundante do ser social para  
Marx. Sua atividade – que não é atividade especulativa –, traça os contornos possíveis daquilo  
que o gênero humano é – e também daquilo que pode ser. Assim, como sua atividade é atividade  
universal, o seu gênero também é feito da mesma substância, e essa universalidade é confirmada  
na prática quando, por exemplo, o homem faz da universalidade da “natureza inteira, seu corpo  
inorgânico, tanto na medida em que é 1. um meio de vida imediato, quanto na medida em que  
é 2. a matéria, o objeto e a ferramenta de sua atividade vital” (Marx, 2010, p. 111-112).  
O que comprova o caráter genérico do ser humano, quer dizer, o que o “confirma, em  
primeiro lugar efetivamente, como ser genérico”, é o fato de ele elaborar “o mundo objetivo”  
através de sua atividade vital, sensível, isto é, através desta “produção que é sua vida genérica  
ativa”, de modo que a natureza aparece para o homem como sua “obra e realidade”. Sua  
atividade sensível consciente é o meio através do qual ele constitui o próprio mundo humano.  
Nas palavras de Marx:  
50  
O objeto do trabalho é, por isso, a objetivação da vida genérica do homem: na  
medida em que este não apenas se duplica na consciência, intelectualmente,  
mas também de modo ativo, real e, desse modo, contempla a si mesmo em um  
mundo por ele criado (Marx, 2010, p. 113-114).  
O trabalho como meio para a vida, e não meio de vida imediato apenas, faz da “vida  
produtiva” do homem sua “vida genérica”. Enquanto vida genérica, a atividade produtiva do  
homem é sinônimo de “vida que cria vida”, o que indica o caráter específico da espécie para a  
qual a liberdade consiste na própria atividade. Assim, é na vida social real dos homens que pode  
ser expressada a “consciência genérica” que os homens têm de sua própria espécie.  
É a partir da relação com o próprio gênero que surgem os delineamentos da  
individualidade no texto marxiano dos Manuscritos. De acordo com Marx, cada exemplar  
singular do gênero molda sua personalidade na atividade social ativa que é produtora do gênero,  
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Atividade sensível e gênero humano nos Manuscritos econômico-filosóficos de Marx  
no contato com os demais exemplares de sua espécie. Assim, nas palavras de Marx:  
[quando] prática e teoricamente torna o gênero um objeto seu, tanto do seu  
próprio quanto do restante das coisas, mas também – e isso é apenas outra  
expressão para a mesma ideia – porque se relaciona consigo mesmo como com  
o gênero presente e vivo, porque se relaciona consigo mesmo como com um  
ser universal e, por isso, livre (Marx, 2010, p. 111).  
Ao indicar que a “sociedade é a unidade essencial plena do homem com a natureza, a  
verdadeira ressurreição da natureza, o naturalismo consumado do homem e o humanismo  
consumado da natureza” (Marx, 2010, p. 144), Marx identifica que, por mais que pensamento  
e ser sejam diversos, eles constituem entre si uma unidade, isto é, uma totalidade da qual o  
indivíduo é sua expressão particular, é um exemplar singular do gênero. Nesse sentido, o  
homem é, para Marx, a “totalidade de expressão vital humana”. Em suas palavras:  
O homem, que é um indivíduo particular – e é precisamente essa sua  
particularidade que faz dele um indivíduo e um ser verdadeiramente  
individuais –, é também a totalidade, a totalidade ideal, o ser subjetivo da  
sociedade pensada e sentida para si, do mesmo modo como, na realidade, o  
homem existe tanto como intuição e fruição verdadeiras do ser social, quanto  
como uma totalidade de expressão vital humana (Marx, 2010, p. 145).  
O homem só pode formar sua individualidade porque ele se encontra em sociedade. Mas  
isso é apenas o ponto de partida: para Marx, a atividade e a fruição sociais “não existem apenas  
sob a forma da atividade comunitária imediata e da fruição comunitária imediata” (Marx, 2010,  
p. 144). Nesse sentido, a vida genérica social e a vida individual dos homens não são opostas –  
e, como veremos posteriormente, a relação entre indivíduo e gênero é decisiva na compreensão  
marxiana do estranhamento. O primeiro é, pois, um exemplar singular do último:  
51  
O homem, mesmo que seja, pois, um indivíduo particular, e precisamente  
sua particularidade faça dele um indivíduo e ser comum verdadeiramente  
individual, é também a totalidade, a totalidade ideal, o ser subjetivo da  
sociedade pensada e sentida para si (Marx, 2010, p. 145).  
A individualidade não é secundarizada por Marx: é precisamente na vida de cada  
indivíduo que o gênero humano pode alcançar sua expressão mais concreta possível. A morte,  
por exemplo, ainda que pareça ser uma “dura vitória do gênero sobre o indivíduo determinado”,  
apenas confirma o fato de que “o indivíduo determinado é um ser genérico determinado, e, por  
isso, mortal” (Marx, 2010, p. 145). Desse modo, quando o indivíduo deixa de existir, ele deixa  
de existir apenas enquanto exemplar singular do gênero humano, mas o gênero não deixa de  
existir nos outros homens. Vejamos, por exemplo, o “desenvolvimento de uma atividade  
científica”: é atividade social na qual o material de meu trabalho é socialmente produzido, e me  
foi dado como tal – a linguagem, por exemplo –, assim como “meu próprio ser é atividade  
social; aquilo que faço por mim e para mim mesmo, faço-o para a sociedade, e com a  
Pedro Gomes Barbosa  
consciência de meu ser enquanto ser social” (Marx, 2010, p. 144). O que é identificado  
enquanto consciência universal por Marx é a “imagem teórica daquilo do qual o ser comum  
real, o ser social, é imagem viva”, e é precisamente a partir da relação estabelecida com o  
próprio gênero que a consciência individual do homem é produzida.  
Para o ser social, a maior riqueza do homem é o próprio homem, e o outro é também  
expressão de seu ser. Em Marx, a sociedade não é uma abstração fixada e contraposta ao  
indivíduo e, do mesmo modo, o indivíduo é, enquanto ser social, a “expressão vital” da  
comunidade, da sociedade; ele é a “expressão e confirmação da vida social”, e a personalidade  
do homem resulta do modo como ele se relaciona com os outros homens, e a natureza dessa  
relação, como vimos, repousa na atividade sensível consciente. Nas palavras de Marx:  
Assim, deste modo, o caráter social é o caráter universal de todo o movimento;  
assim como a sociedade mesma produz o homem como homem, ela [a  
sociedade] também é produzida por ele. A atividade e a fruição, como  
conteúdos seus, são também, de acordo com o modo de existência, de natureza  
social, são atividade social e fruição social. A essência humana da natureza  
está presente apenas para o homem social, mas apenas aqui [para o homem  
em sociedade] a natureza existe para ele como vínculo com o homem, como  
ser dele para outro, e do outro para ele (Marx, 2010, p. 144).  
Nesse sentido, a sociedade produz o homem, mas, em última instância, é o homem quem  
produz a sociedade e, deste modo, ele produz a si mesmo e ao modo como se relaciona com os  
demais e com os produtos de sua atividade. Assim, é a partir do modo como se relacionam com  
a riqueza objetivamente produzida por eles mesmos é que os homens produzem suas  
subjetividades:  
52  
[...] apenas a partir da riqueza objetivamente desenvolvida da essência humana  
se desenvolve a riqueza da sensibilidade humana subjetiva; se desenvolve um  
ouvido musical, um olho capaz de perceber a beleza da forma; em suma, são,  
em parte, educados e, em parte, produzidos, sentidos capazes de promover  
fruições humanas; sentidos que se confirma como capacidades essenciais  
humanas (Marx, 2010, p. 149).  
Os sentidos do homem são todos formados, eles possuem uma história. Esse processo  
de “humanização” de sua sensibilidade, que configura a formação de sua natureza já não mais  
muda, é o que diferencia o homem do animal. Quando trata da formação dos sentidos humanos  
– e não apenas dos cinco sentidos naturais (olfato, audição, visão, paladar e tato), mas também  
dos sentidos práticos ou espirituais (o desejo, o amor etc.) –, Marx realiza um movimento de  
crítica e radical superação não apenas da filosofia idealista precedente, mas também do  
materialismo engessado de Feuerbach, ao afirmar que os sentidos humanos, produtos da  
autoatividade humana, são:  
[...] em parte educados e, em parte, produzidos; sentidos capazes de promover  
o desfrute humano; sentidos que se confirmam como capacidades essenciais  
Libertas, Juiz de Fora, v. 24, n. 1, p. 42-65, jan./jun. 2024. ISSN 1980-8518  
Atividade sensível e gênero humano nos Manuscritos econômico-filosóficos de Marx  
humanas. Pois não apenas os cinco sentidos, mas também os assim chamados  
sentidos espirituais, os sentidos práticos (vontade, amor, etc.); em uma  
palavra, a sensibilidade humana, a humanidade dos sentidos, surge apenas  
através da existência de seu objeto, através da natureza humanizada. A  
formação dos cincos sentidos é um trabalho de toda a história universal  
precedente. A sensibilidade afetada pela necessidade prática possui, pois, uma  
sensibilidade limitada (Marx, 2010, p. 149).  
Marx nos fornece um exemplo que esclarece a diferença entre o animal, mortificado e  
necessitado, e o homem, que não devora mais a carne crua com os dentes:  
Para o homem famélico não existe a forma humana da comida, mas apenas  
sua existência abstrata como comida; igualmente poderia encontrar-se  
disponível sob a forma mais elementar, e não poderia dizer-se de nenhuma  
qualidade pela qual essa alimentação se distinguisse da alimentação animal.  
O homem mortificado, necessitado, não exibe sensibilidade alguma diante do  
mais belo drama; o traficante de minerais só vê o valor mercantil, mas não a  
beleza e natureza peculiar do mineral; não tem, pois, nenhuma sensibilidade  
para a mineralogia (Marx, 2010, p. 149).  
E, continuando no mesmo parágrafo, Marx assinala que é de inteira responsabilidade  
dos homens o modo como produzem a si mesmos, tanto praticamente quanto teoricamente: a  
objetivação da essência humana – a atividade sensível, vital – é necessária tanto para a  
humanização dos próprios sentidos, quanto para a produção e criação de sentidos humanos que  
correspondam à riqueza humana objetiva.  
O homem tem como “natureza sensível” imediata também a sensibilidade humana  
disponível, o outro homem, com o qual ele se relaciona. Ao se relacionar com um semelhante,  
ele se relaciona com a natureza que está “sensivelmente disponível para ele”, a qual ele  
compartilha. O outro, como natureza sensível, se converte imediatamente em “sensibilidade  
humana” para ele (Marx, 2010, p. 152), e vice-versa. Nesse sentido, a “natureza sensível” do  
homem – sua sensibilidade – é o próprio homem como sujeito ativo que modifica o mundo  
objetivo e natural, e a realidade que se coloca diante dele é tornada objeto do homem e para o  
homem. A sensibilidade humana – ou a “humanidade dos sentidos” –, é a natureza que para o  
homem é seu produto, ou seja, é a sensibilidade limitada tornada natureza para o homem,  
tornada natureza humana. Ela é, pois, o ponto de partida de qualquer expressão humana ulterior:  
53  
O homem rico é, ao mesmo tempo, o homem necessitado de uma totalidade  
da expressão vital humana. O homem cuja própria realização existe como  
necessidade intrínseca, como necessidade. Não apenas a riqueza, mas também  
a pobreza do homem, recebem simetricamente – sob o pressuposto do  
socialismo – uma importância humana e, portanto, social. É o vínculo passivo  
que permite que o homem experimente como necessidade a maior riqueza, o  
outro homem. O domínio do ser objetivo em mim, a irrupção sensível de  
minha atividade essencial, é a passividade que aqui se converte, com isto, em  
atividade de meu ser (Marx, 2010, p. 152-153).  
As “capacidades essenciais” do homem – como os sentidos humanos – são  
Pedro Gomes Barbosa  
historicamente engendradas pelos próprios homens, como mencionamos anteriormente. O  
gênero humano, ou a sociedade, é objeto do homem e para o homem. Arealidade objetiva diante  
dele é a realidade de suas “capacidades essenciais” objetivadas:  
Como se convertem em seus objetos, depende da natureza do objeto e da  
natureza da capacidade essencial correspondente a natureza do objeto; pois,  
precisamente a determinação desta relação configura o modo particular real  
da afirmação. Um objeto é, para o olho, diferente do que para o ouvido, e o  
objeto do olho é outro que do ouvido. A peculiaridade de cada capacidade  
essencial é, precisamente, sua essência peculiar, e assim, pois, também o é o  
modo peculiar de sua objetivação, de seu ser objetivo e real, vivo. Não apenas  
no pensamento, mas também com todos os sentidos o homem se vê afirmado  
no mundo objetivo (Marx, 2010, p. 148).  
Entretanto, não se trata da objetivação de capacidades ou forças intrínsecas ou inerentes  
à natureza do homem. Tais necessidades são também produzidas pelos próprios homens  
mediante sua atividade vital, sensível, e pelo modo como os homens se relacionam com tais  
objetos. No caso do trabalho estranhado, tais capacidades se convertem em forças alienadas e  
estranhadas do homem, e a sociedade é tornada um empecilho ao desenvolvimento da  
individualidade:  
Por outro lado, em termos subjetivos: assim como é a música que desperta o  
sentido musical do homem, desse modo, para o ouvido insensível, a mais bela  
música não tem sentido algum, não é nenhum objeto, já que meu objeto só  
pode ser a confirmação de minhas capacidades essenciais, assim ele só pode  
existir de tal maneira para mim porque minha capacidade essencial existe para  
si como capacidade subjetiva, porque o sentido do objeto para mim (apenas  
possui significado para um sentido de acordo com ele [com o objeto]) chega  
tão longe quanto meu sentido (Marx, 2010, p. 148).  
54  
Tais “capacidades essenciais” existem apenas como virtualidades na sociabilidade do  
capital. Para o “homem social”, isto é, emancipado, elas podem se tornar capacidades objetivas  
de constituição da subjetividade, mas, para o homem estranhado-de-si, tais capacidades são  
convertidas em objetos hostis e estranhos a ele. Se os homens estão estranhados, seu  
estranhamento é produto do modo como produzem a própria existência. Por isso, a propriedade  
privada tem lugar na história apenas como produto da atividade do homem.  
A relação entre indivíduo e gênero na sociabilidade do capital  
Como indicado no início do manuscrito Trabalho estranhado e propriedade privada,  
ambos os elementos foram reconhecidos e analisados como um fato. Ainda que o trabalho  
estranhado e a propriedade privada sejam o ponto de partida efetivo da exposição de Marx, a  
questão decisiva consiste em desvendar o modo como se estabeleceram a alienação do trabalho  
e o estranhamento do homem “na essência do desenvolvimento humano”. Faltou à economia  
política, portanto, a mais importante conquista do pensamento verdadeiramente preocupado em  
Libertas, Juiz de Fora, v. 24, n. 1, p. 42-65, jan./jun. 2024. ISSN 1980-8518  
Atividade sensível e gênero humano nos Manuscritos econômico-filosóficos de Marx  
desvendar a gênese da propriedade privada: faltou a “reformulação da pergunta sobre a origem  
da propriedade privada” e o questionamento acerca da “relação entre o trabalho estranhado e  
o desenvolvimento da humanidade”. Como indicado por Marx: “Pois, quando se fala sobre a  
propriedade privada, acredita-se se tratar de algo externo ao homem”, ao passo em que “quando  
se fala do trabalho, se trata imediatamente do homem mesmo. Esta nova formulação da pergunta  
é já, inclusive, sua solução” (Marx, 2010, p. 119) – solução porque precisamente coloca no  
centro da questão o próprio homem como ser que se auto constitui no mundo.  
Além de conseguir demonstrar o movimento de inversão do real efetuado pela economia  
política – que identificou a “essência” do homem com o trabalho alienado, de modo que a  
propriedade privada corresponderia, assim, à exteriorização dessa suposta natureza através do  
trabalho, que corresponderia imediatamente à propriedade privada capitalista –, Marx também  
tornou possível a superação das incongruências do idealismo e do velho materialismo. Portanto,  
trata-se aqui de destacar o fato de que o homem é um ser ativo e que se relaciona consigo mesmo  
como “ser genérico real”, e essa “conduta real” do homem só é possível:  
[...] na medida em que cria realmente todas as suas capacidades genéricas – o  
que, por sua vez, só é possível através da ação conjunta dos homens, apenas  
como resultado da história – e que se comporta em relação a tais capacidades  
genéricas como objetos, o que por sua vez só é possível, inicialmente, sob a  
forma do estranhamento (Marx, 2010, p. 193).  
55  
Incursionar sobre a crítica do trabalho estranhado é também uma forma de demonstrar  
aquilo que a economia política não compreendeu: na sociabilidade do capital, o trabalho  
corresponde ao estranhamento do homem. Ao buscar a anatomia da sociedade civil na crítica  
direcionada à economia política, Marx pôde evidenciar o “pressuposto insuprimível dos homens  
ativos”: o trabalho, ou seja, a atividade sensível e vital consciente.8  
A crítica de Marx ao trabalho estranhado também expressa sua preocupação acerca da  
relação entre o indivíduo e o gênero. No manuscrito Propriedade privada e comunismo, ao  
tratar da necessidade de superação da propriedade privada, Marx já havia apreendido e  
demonstrado que a gênese da propriedade privada é o trabalho estranhado. Manifestação  
histórica daquilo que o homem produz – e, mais ainda, do modo como produz –, a propriedade  
privada é a manifestação do estranhamento e alienação do homem em relação ao próprio  
gênero:  
A propriedade privada é apenas a expressão sensível de que o homem se  
torna, ao mesmo tempo, objetivo para si, e se torna antes um objeto estranho  
e inumano; de que sua expressão vital é a alienação de sua vida; de que sua  
8 A economia política reconheceu positivamente esse segredo, mas apenas pelo seu lado positivo, tal qual Hegel  
fizera. Ela pode ter descoberto que o trabalho é a “essência subjetiva da riqueza”, mas não pôde explicar que na  
sociabilidade do capital ele se traduz no empobrecimento da subjetividade do homem.  
Pedro Gomes Barbosa  
realização é sua desrealização, uma realidade estranha (Marx, 2010, p. 146).  
Como seu produto, a propriedade privada expressa a atividade estranhada do homem,  
convertida pela economia política em sua “essência”. Entretanto, ela é apenas a expressão  
histórico-social do modo como o homem produz a própria vida e do modo como ele se relaciona  
com os produtos de seu trabalho, com o próprio gênero e com os outros indivíduos. Os próprios  
sentidos humanos sofrem a interferência da dimensão estranhada da vida: o olho que só enxerga  
o valor mercantil do mineral, e que não tem “nenhuma sensibilidade para a mineralogia”, por  
exemplo, é igualmente produto da atividade dos homens, e resultado do modo como é produzida  
sua subjetividade nesta sociabilidade historicamente determinada – e isso justamente numa  
sociabilidade que virtualmente potencializa o desenvolvimento de individualidades mais ricas,  
mas que acaba impedindo o pleno desenvolvimento individual porque o reduz, e até mesmo  
nega ao homem, à satisfação de suas necessidades mais banais, impedindo-o de se apropriar  
das potências do próprio gênero. Aqui trazemos novamente um elemento que diz respeito à  
alienação e o estranhamento do indivíduo em relação ao próprio gênero humano: o homem  
aparece como reduzido a uma condição animalesca. Marx assinala que até mesmo a satisfação  
da mais banal e simples necessidade de um animal deixa de ser garantida aos homens nessa  
civilização” que só lhes proporciona o mais “completo desamparo desnaturalizado”, isto é,  
artificialmente produzido, e essa “natureza corrompida” é convertida para o homem em seu  
elemento vital” (Marx, 2010, p. 158).9  
56  
A alienação do gênero é a perda da essência do homem no mundo. Como uma potência  
tornada hostil ao homem, o gênero se coloca diante do indivíduo como uma objetividade  
estranha. Por exemplo, uma das transformações mais hostis ao homem produzida pelo  
capitalismo é a redução dos custos do trabalho. A introdução da máquina, e a simplificação que  
ela acarreta no processo de trabalho, chegou mesmo a transformar seres humanos em  
desenvolvimento, isto é, crianças e jovens, em “trabalhadores adultos”. Nas palavras de Marx:  
“A máquina se adapta à deficiência do homem, e converte o homem deficiente em máquina”  
(Marx, 2010, p. 158). Não se trata aqui, entretanto, de uma crítica à tecnologia ou ao  
desenvolvimento das forças produtivas. Marx tem a dimensão da complexidade na qual esse  
desenvolvimento tecnológico se realiza: no modo de produção capitalista, se o homem está  
9
O recrudescimento de suas necessidades é acompanhado também do recrudescimento dos meios para sua  
satisfação: “Os métodos e os instrumentos de trabalho humano mais rudimentares retornam, como o moinho dos  
escravos romanos que se converteu no modo de produção e no modo de existência de muitos trabalhadores  
ingleses” (Marx, 2010, p. 158). O recrudescimento das necessidades humanas é apontado por Marx como uma  
realidade nos grandes centros industriais de sua época, como Inglaterra e França, e ele denuncia a existência de  
uma “pequena Irlanda” em cada um desses grandes centros industriais.  
Libertas, Juiz de Fora, v. 24, n. 1, p. 42-65, jan./jun. 2024. ISSN 1980-8518  
Atividade sensível e gênero humano nos Manuscritos econômico-filosóficos de Marx  
alienado dos produtos do trabalho e de seu próprio gênero, quanto mais rico for o gênero  
humano, mais pobre é o homem em sua individualidade. Por isso, nessa sociabilidade, o  
desenvolvimento das forças produtivas – a redução do tempo de trabalho socialmente  
necessário à reprodução da vida dos indivíduos – não é convertido para o homem em tempo  
verdadeiramente disponível para o enriquecimento de sua personalidade e subjetividade.  
Os homens produzem a si mesmos a partir da configuração histórica na qual eles se  
encontram. Por isso, compreendida como “expressão materialmente sensível da vida humana  
estranhada” (Marx, 2010, p. 142), a propriedade privada é o ponto de partida incontornável das  
investigações de Marx. Em outro trecho, essa questão é retomada:  
Do mesmo modo, tanto o material do trabalho quanto o homem enquanto  
sujeito, são o resultado e o ponto de partida do movimento (e a necessidade  
histórica da propriedade privada reside no fato de constituir, de modo preciso,  
o ponto de partida). (Marx, 2010, p. 143-144).  
Ao analisar de modo mais detido o trecho no qual Marx afirma que a propriedade  
privada é a manifestação ou expressão “materialmente sensível da vida humana estranhada”, e  
que “seu movimento – a produção e o consumo – é a manifestação sensível do movimento de  
toda produção precedente; quer dizer, a realização ou a realidade do homem” (Marx, 2010, p.  
142), é possível constatar que ele compreendeu que são os homens os responsáveis pela  
produção de suas condições de existência e reprodução sociais, e que todos os outros “modos  
particulares de produção”, como “religião, família, Estado, direito, moral, ciência, arte, etc.”,  
estão submetidos à “lei geral” do movimento de produção e reprodução de sua existência.  
Após desvendar a gênese da propriedade privada no manuscrito Trabalho estranhado e  
propriedade privada, que encerra o primeiro caderno, Marx demonstra que é apenas no ponto  
de culminância do desenvolvimento da propriedade privada capitalista que esta retroage sobre  
o trabalho e, mais ainda, que esse estranhamento incide também diretamente sobre a  
subjetividade e personalidade dos próprios homens. Páginas adiante, no manuscrito intitulado  
Propriedade privada e comunismo, Marx indica que a contraposição entre a propriedade e a  
não-propriedade, entre proprietário e não-proprietário, só pode ser corretamente compreendida  
quando concebida como contradição entre “trabalho e capital” (Marx, 2010, p. 138). Isso posto,  
as páginas iniciais deste manuscrito seguem com a exposição do seguinte problema: como  
superar a propriedade privada? E quais os efeitos dessa superação para os homens? A superação  
desse autoestranhamento [Selbstentfremdung] não pode ser realizada sem que se supere a forma  
estranhada da atividade do homem – o trabalho estranhado:  
57  
O comunismo, finalmente, é a expressão positiva da superação da propriedade  
privada, acima de tudo da propriedade privada universal. Na medida em que  
compreende essa relação em sua universalidade, é 1. em sua primeira  
Pedro Gomes Barbosa  
configuração, apenas uma generalização e consumação dela [a propriedade  
privada]; desse modo, mostra-se sob uma forma duplicada: ao começo, o  
domínio que a propriedade concreta exerce sobre o comunismo é tão grande  
que ele quer destruir tudo que, enquanto propriedade privada, não pode ser  
possuído por todos; por meios violentos quer fazer abstração do talento, etc.  
A posse física, imediata, vale para ele [o comunismo primitivo] como o único  
fim da vida e do ser [...] (Marx, 2010, p. 139).  
Marx direciona suas críticas à Proudhon, Fourier e Saint-Simon. O assim chamado  
“comunismo primitivo”, criticado por Marx, contrapôs à propriedade privada capitalista uma  
espécie de “propriedade privada universal”. Nesse sentido, não pôde postular a superação da  
“determinação de trabalhador” do homem, mas pôde apenas estendê-la a todos, permanecendo  
a relação estranhada como relação fundante da comunidade com o mundo.10 Ao desejar o  
“retorno a uma simplicidade não-natural do homem pobre e desprovido de necessidades”, é  
preconizado um tipo de homem que não consegue superar a propriedade privada porque sequer  
chegou a atingir seu nível:  
A negação abstrata do íntegro mundo da cultura e da civilização, o retorno à  
simplicidade não natural do homem pobre e desprovido de necessidades, que  
não superou a propriedade privada porque sequer chegou a alcançá-la,  
demonstra, de modo preciso, o quão pouco semelhante negação da  
propriedade privada representa uma verdadeira apropriação (Marx, 2010, p.  
140).  
O “comunismo primitivo” – ainda contaminado pela propriedade privada – pôde apenas  
postular a superação da contradição entre capital e trabalho que está na raiz da propriedade  
privada, em uma “universalidade imaginada: o trabalho, como aquela determinação em que  
todos são colocados; o capital, como a universalidade e força reconhecidas da comunidade”  
(Marx, 2010, p. 140).  
58  
Seguindo o percurso crítico de Marx ao “comunismo” pautado na noção de igualdade  
entre os homens em sua fundamentação política, o autor dos Manuscritos econômico-filosóficos  
assinala que o “comunismo” como “negação da negação, como suposta reapropriação da  
essência humana, mediada consigo mesma através da negação da propriedade privada”, que  
parte da propriedade privada (ainda que com a intenção de negá-la) não pode ser a postulação  
verdadeira do comunismo. O “comunismo político” – que nega a propriedade privada e postula  
o homem partindo dessa negação – traz as marcas da Fenomenologia do espírito, de Hegel, ou  
10 Exemplo fornecido por Marx é a contraposição ao matrimônio (propriedade exclusiva do homem sobre a mulher)  
uma espécie de “comunidade das mulheres”, que acabaria por converter a mulher em propriedade comum, de  
todos. A analogia é usada para esclarecer que, do mesmo modo que “a mulher passa do matrimônio para a  
prostituição universal”, o mundo da riqueza passa da “relação matrimonial exclusiva com o proprietário privado  
para a relação de prostituição universal com a comunidade” (Marx, 2010, p. 139). Trata-se, pois, de um  
“comunismo” desprovido de pensamento, rudimentar e vulgar, que tanto nega as individualidades humanas quanto  
é “expressão consequente da propriedade privada, que é essa negação” (Marx, 2010, p. 139).  
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Atividade sensível e gênero humano nos Manuscritos econômico-filosóficos de Marx  
seja, traz a superação meramente pensada e apenas imaginada da propriedade privada  
capitalista. A negação abstrata da propriedade privada – o que não nega o trabalho estranhado  
– não pode fazer com que o homem se aproprie de fato das potências do gênero humano.  
Enquanto a atividade sensível consciente dos homens for a atividade da alienação e do  
estranhamento, eles permanecerão alienados e estranhados do gênero, da natureza, uns dos  
outros e da própria atividade, isto é, estranhados de si mesmos.  
Ainda que a consequência do trabalho estranhado seja a propriedade privada capitalista  
– ela é consequência necessária da relação estranhada que o trabalhador estabelece com a  
natureza e consigo mesmo –, como bem destaca Mészáros (2016), ela constitui apenas “uma  
parte” de um complexo muito maior da alienação e do estranhamento dos seres humanos:  
[...] a questão da alienação não está resolvida de uma vez por todas pela  
simples negação das relações capitalistas de propriedade. Não devemos  
esquecer que estamos lidando com um conjunto complexo de inter-relações,  
do qual as “relações de propriedade” são apenas uma parte (Mészáros, 2016,  
p. 140).  
A principal crítica de Marx direcionada à economia política é que ela não foi capaz de  
compreender que o trabalho estranhado – o trabalho “em geral” – e a propriedade privada  
capitalista – supostas “essências” do homem –, constituem a negação do homem, seu  
estranhamento. É precisamente aqui que se encontra a razão do estranhamento do homem em  
relação ao objeto, a si mesmo e sua atividade vital, ao gênero e aos demais homens: trata-se do  
trabalho estranhado, da perda do sentido de sua atividade vital – perda que se expressa também  
na consciência, refletida na constituição de subjetividades que estão estranhadas do próprio  
gênero. De um lado, o imenso avanço das forças produtivas; de outro, o desenvolvimento de  
subjetividades que não conseguem se apropriar e se desenvolver de acordo com as potências do  
gênero. Em suma, há aqui um descompasso entre o desenvolvimento do mundo material e do  
gênero humano em relação ao desenvolvimento da personalidade de cada indivíduo singular.  
Nessa sociabilidade, todas as forças e potências engendradas pelos próprios homens se voltam  
contra eles, tornando-os, como assinala Marx, servos de um mundo por eles mesmos criado.  
59  
Superação da propriedade privada e emancipação humana  
A crítica de Marx feita à Proudhon, anteriormente apresentada, só pôde ser devidamente  
elaborada a partir da elucidação das consequências do trabalho estranhado e da propriedade  
privada, assim como da necessidade de sua superação (Marx, 2010, p. 146). O que está em jogo  
é a “apropriação sensível do ser e da vida humanos, do homem objetivado, das obras humanas  
para e pelo homem”, e isto, afirma Marx, não apenas no sentido unilateral da posse, do  
Pedro Gomes Barbosa  
possuir” ou da “fruição imediata”: trata-se, pois, da apropriação de “seu ser universal de modo  
universal; como homem total” (Marx, 2010, p. 146). A superação da propriedade privada é, em  
suma, o retorno do homem ao homem, como indicado por Marx no seguinte trecho:  
Vimos que, pressupondo a superação positiva da propriedade privada, o  
homem produz ao homem: produz a si mesmo e produz o outro homem; que  
o objeto que produz é a ativação imediata de sua individualidade e, ao mesmo  
tempo, sua própria existência para outro homem, que é sua existência para ele,  
e a existência deste para ele (Marx, 2010, p. 142).  
Assim, em contraposição ao pensamento de Proudhon, para Marx, o verdadeiro  
comunismo é a “superação positiva da propriedade privada”, é “a verdadeira solução do conflito  
entre liberdade e necessidade, entre indivíduo e gênero”:  
O comunismo como superação positiva da propriedade privada, como  
estranhamento-de-si humano [a propriedade privada], e, por isso, como  
verdadeira apropriação da essência humana pelo [homem] e para o homem.  
Por isso, como retorno do homem para si enquanto homem social, quer dizer,  
humano; retorno pleno que, enquanto tal, é consciente e ocorre no interior de  
toda riqueza da evolução precedente. Este comunismo é, enquanto  
naturalismo pleno = humanismo; enquanto humanismo pleno = naturalismo;  
é a verdadeira solução do conflito que o homem sustenta com a natureza e  
com o próprio homem; a verdadeira solução do conflito entre existência e  
essência, entre objetivação e autoconfirmação, entre liberdade e necessidade,  
entre indivíduo e gênero. É a solução do enigma da história, e sabe a si mesmo  
como tal solução (Marx, 2010, p. 141-142).  
60  
Para Marx, o comunismo não é o fim da história. Ele é, ao contrário, o ponto de partida  
efetivo da história humana do homem e não deve ser confundido com o retorno do homem à  
determinadas formas primitivas de sociabilidade. Trata-se, pois, da superação positiva da  
propriedade privada dos meios de produção da vida e, consequentemente, do estranhamento-  
de-si dos indivíduos. Nas palavras de Marx: “a superação positiva da propriedade privada,  
como a apropriação da vida humana, é, por isso, a superação positiva de todo estranhamento  
[Entfremdung]” (Marx, 2010, p. 143). E Marx conclui seu raciocínio, ao assinalar que é somente  
com a superação positiva da propriedade privada que o homem pode superar o estranhamento  
da religião, do Estado, da família, da moral, etc. Ainda de acordo com nosso autor:  
O estranhamento religioso como tal se desenvolve apenas no âmbito da  
consciência, na interioridade humana, mas o estranhamento econômico  
corresponde a vida real; sua superação compreende, pois, ambos os lados  
(Marx, 2010, p. 143).  
Páginas adiante, no manuscrito Propriedade privada e comunismo, quando Marx coloca  
em xeque tanto a filosofia idealista quanto sua crítica ateísta, tomando como exemplo a questão  
da postulação do homem a partir de uma negação – de Deus, no caso –, ele novamente nos  
deixa cientes de sua compreensão do que seria, de fato, o comunismo autêntico. De acordo com  
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Atividade sensível e gênero humano nos Manuscritos econômico-filosóficos de Marx  
nosso autor, as investidas desse ateísmo perdem seu sentido pois pretende postular “a existência  
do homem” a partir dessa negação. A constatação de que o homem é um ser que engendra a si  
mesmo ao longo de sua história, nos leva a questionar e a superar “a pergunta por um ser alheio,  
por um ser superior a natureza e ao homem” (Marx, 2010, p. 155), e aqui tanto faz se esse ser  
alheio é identificado como espírito ou como natureza. Tal pergunta só é possível se for admitida  
a “não-essencialidade da natureza e do homem” (Marx, 2010, p. 155). O comunismo, ao  
contrário, deve postular o homem para além da mera “negação da negação”. A auto posição do  
homem é a “consciência-de-si positiva do homem, agora não mais mediada pela superação da  
religião, do mesmo modo como a vida real positiva já não é a realidade do homem mediada  
pela superação da propriedade privada”, mas mediada consigo mesmo (Marx, 2010, p. 155).  
Nesse sentido, Marx caracteriza o comunismo como o “momento real da emancipação e  
restauração humanas, momento necessário para a evolução histórica ulterior” (Marx, 2010, p.  
155).  
A subjetividade e personalidade humanas são enriquecidas conforme os indivíduos se  
apropriam de seu “ser universal”, ou seja, do gênero humano e de suas potencialidades, e na  
medida em que se autoproduzam em uma relação autenticamente humana com o mundo e entre  
si:  
Cada uma de suas relações humanas com o mundo, a visão, a audição, o olfato,  
o paladar, o tato, o pensamento, a intuição, o sentimento, o desejo, a ação, o  
amor; em suma, todos os órgãos de sua individualidade, como órgãos que  
existem imediatamente em sua forma como órgãos comunitários, são, em sua  
relação objetivada, ou em sua relação com o objeto, a apropriação deste [do  
objeto]; a apropriação da realidade humana, sua relação com o objeto, é o pôr  
em prática da realidade humana; é, por isso, tão múltipla como o são as  
determinações do ser e as atividades humanas; ação humana e paixão [no  
sentido do padecimento] humana, posto que a paixão, humanamente  
concebida, é auto fruição do homem (Marx, 2010, p. 146).  
61  
Tanto o desfrute, a fruição, quanto o sofrimento, a paixão etc., resultam do modo como  
os homens produzem a própria vida e a si mesmos. Ao estranhamento que transforma os  
sentidos humanos em “propriedades”, Marx contrapôs à abstração e redução da essência  
humana à “esta pobreza absoluta”, a emancipação dos sentidos humanos, concebidos como  
“órgãos sociais, constituídos sob a forma da sociedade”:  
O olho se converteu em olho humano, como seu objeto se converteu em um  
objeto social, humano, originado no homem e para o homem. Os sentidos se  
converteram, assim, imediatamente em teóricos em sua práxis. Se relacionam  
com a coisa em função da coisa mesma, e com o homem e vice-versa. A  
necessidade ou a fruição perdem, por isso, sua natureza egoísta, e a natureza  
perde sua mera utilidade, na medida em que a utilidade se converte em  
utilidade humana (Marx, 2010, p. 147).  
Pedro Gomes Barbosa  
O homem não deve estranhar a si mesmo e o seu objeto – o gênero – quando este é  
produzido de forma autenticamente humana para ele, isto é, quando visa a atender a sua  
reprodução humana livre:  
O homem não se perde em seu objeto apenas quando este é para ele um objeto  
humano, ou um homem objetivado. Isto apenas é possível quando o objeto é  
convertido para ele em um objeto social; quando ele mesmo se constitui como  
ser social, do mesmo modo que a sociedade, nesse objeto, é convertida em ser  
para ele (Marx, 2010, p. 148).  
Referindo-se ao ser social e a sua capacidade de autoprodução, Marx utiliza por diversas  
vezes a expressão “capacidades essenciais humanas”. Em todos os contextos analisados – seja  
na crítica da economia política, seja nas considerações de caráter ontológico e referentes a  
natureza do ser social – o sentido da expressão está atrelado a noção de auto atividade e de  
produção, efetivação, e mesmo negação, das possibilidades de desenvolvimento das múltiplas  
e variadas capacidades humanas:  
Vimos qual significado têm, sob o pressuposto do socialismo, a riqueza das  
necessidades humanas e, consequentemente, tanto um novo modo de  
produção como também um novo objeto de produção: uma nova função da  
capacidade humana essencial e um novo enriquecimento da essência humana.  
Dentro da propriedade privada, ocorre o sentido inverso (Marx, 2010, p. 156).  
No trecho em questão, por exemplo, com o qual Marx inicia o texto Necessidade  
humana, produção e divisão do trabalho, a capacidade humana essencial – a autoprodução de  
sua natureza humana, isto é, social – assume um caráter específico em cada modo de produção.  
Em uma sociedade na qual os homens produzam livremente, ela deve ter o sentido de afirmação  
e enriquecimento da individualidade e personalidade humanas.  
62  
Ainda sobre a configuração do mundo do homem pelo homem, o seguinte trecho traz  
também a crítica à concepção hegeliana abstrata da história como produto do trabalho do  
espírito:  
Na medida em que para o homem socialista toda a assim chamada história  
universal não é outra coisa senão a produção do homem pelo trabalho humano,  
que o devir da natureza para o homem possui, pois, a prova cabal, irrefutável,  
de seu nascimento a partir de si mesmo, de seu processo de constituição. Na  
medida em que a essencialidade do homem e da natureza se tornou prática,  
perceptível; na medida em que o homem voltou prática, sensível, perceptível  
para o homem enquanto existência da natureza, e a natureza se voltou para o  
homem como existência do homem, a pergunta por um ser alheio, por um ser  
superior ao homem e a natureza – uma pergunta que implica admitir a  
inessencialidade da natureza e do homem – se torna praticamente impossível  
(Marx, 2010, p. 155).  
A crítica só pôde ser concebida pelo fato de Marx ter provocado uma ruptura radical  
com a filosofia precedente: trata-se do homem concreto em sua realidade concreta, da  
constituição de sua subjetividade a partir do solo real da autoatividade real dos homens, e não  
Libertas, Juiz de Fora, v. 24, n. 1, p. 42-65, jan./jun. 2024. ISSN 1980-8518  
Atividade sensível e gênero humano nos Manuscritos econômico-filosóficos de Marx  
do “espírito” ou de uma “razão pura”, como demonstrado anteriormente neste trabalho.  
Com a superação positiva da propriedade privada, o homem pode produzir a si mesmo  
– isto é, a sua própria individualidade – sem que entre em contradição com o gênero por ele  
também produzido e, uma vez que o objeto de sua produção posto em prática é seu próprio ser,  
ele pode superar também o estranhamento-de-si, de seu próprio corpo e espírito. O comunismo  
é, assim, a integração humana do homem, é a efetivação do homem como fim em si mesmo. A  
noção de objetivação ou expressão sensível, expressão vital do homem, aparece vinculada à  
categoria da alienação apenas na medida em que toda alienação é uma objetivação, mas nem  
toda objetivação é, do ponto de vista ontológico, uma alienação. O meio pelo qual o  
estranhamento ocorre é ele mesmo “um meio prático” – e igualmente o é a superação dessa  
condição e, por isso, Marx afirma que as categorias da economia política, como “riqueza e  
miséria”, devem dar lugar ao “homem rico e a rica necessidade humana”, de modo que o devir  
homem do homem, a sua autêntica objetivação no mundo, é sua necessidade intrínseca que  
ainda carece de realização.  
Considerações finais  
Acerca da originalidade das considerações marxianas sobre as determinações mais  
gerais do ser social nos Manuscritos econômico-filosóficos, vimos que, para Marx, o homem é  
um ser ativo que produz o próprio mundo humano e a si mesmo por meio de sua atividade  
sensível consciente. A relação do homem com a natureza e, consequentemente, do homem com  
o homem, pôde ser compreendida sem que sofresse as deformações do idealismo ou do  
materialismo vulgar: a natureza não é desconsiderada por Marx e é somente através do  
intercâmbio homem-natureza que podemos falar da existência de uma essência humana da  
natureza. Nas palavras de Marx, “somente dessa forma a natureza existe para o homem como  
vínculo com os demais, como seu ser para o outro e do outro para ele” (Marx, 2010, p. 144).  
Nesse sentido, Marx solucionou o problema posto pelo velho materialismo, que concebeu o  
mundo como “bipartido em objetivos e intuições”, diante do qual o idealismo ficou encarregado  
de desenvolver, ainda que abstratamente, o “lado ativo” do sujeito que se faz no mundo.  
A crítica de Marx feita à economia política, assim como a crítica ao idealismo hegeliano  
e a originalidade das considerações marxianas para além do materialismo de Feuerbach,  
resultam da constatação das determinações ontológicas mais gerais do ser social. Quando trata  
da “relação social ‘do homem com o homem’”, Marx introduz algo novo na filosofia, capaz de  
superar as antinomias existentes tanto no pensamento especulativo hegeliano – que, de acordo  
com Marx, “aristocraticamente abstrai” de toda objetividade imanente ao ser, e que desvaloriza  
63  
Pedro Gomes Barbosa  
toda a autonomia que a natureza em si possui diante do sujeito, criando uma dependência  
abstrata entre ambos – quanto no “materialismo” feuerbachiano – que não compreendeu o fato  
de que o ser dos homens é historicamente determinado pelos próprios homens, ou seja, de que  
o homem é um ser que se faz no mundo e faz do próprio gênero seu objeto, engendrado através  
de sua atividade vital, sensível. Ambas as correntes não foram capazes de perceber as limitações  
e insuficiências que cada tradição filosófica trazia em seu interior.  
Nos Manuscritos econômico-filosóficos, objetividade e subjetividade são tratadas  
corretamente como coisas distintas, mas que “não são necessariamente contrárias, nem  
intransitivas porque contraditórias” (Chasin, 2009, p. 98), como foram apresentadas pelo  
idealismo e pelo velho materialismo. Na verdade, podemos afirmar que elas só são  
contraditórias porque são transitivas, caso contrário, não poderia ser estabelecido qualquer tipo  
contradição entre elas, uma vez que estariam fechadas em si mesmas como complexos  
mutuamente excludentes. Em síntese, Marx contrastou à filosofia especulativa, à política e à  
economia política, o ser real, identificado à “objetividade social – enfim decifrada como  
atividade sensível” (Chasin, 2009, p. 86).11  
Como corretamente sinalizado também por Mészáros (2016), Hegel concebeu a  
“atividade” como “condição absoluta da gênese histórica”, mas ele não foi capaz de diferenciar  
a “forma ‘exteriorizada’ da atividade”, isto é, da objetividade e do trabalho como manifestação  
da vida (Lebensäusserung), de suas “manifestações ‘alienadas’”, do trabalho como alienação  
da vida (Lebensentäusserung). Em Marx, por sua vez, ocorre a diferenciação entre  
manifestação da vida e alienação da vida, e o autor dos Manuscritos econômico-filosóficos tem  
nessa diferenciação o ponto de partida de sua crítica à concepção hegeliana: a reivindicação do  
mundo objetivo pelo homem passa pelo reconhecimento de que a “consciência sensível” é, de  
fato, uma consciência “humanamente sensível”, não meramente abstrata, e todas as formas de  
objetivação humana, como a religião, a riqueza etc., ainda que sejam formas estranhadas de  
objetivação, correspondem a autoatividade dos homens e constituem o “caminho até a  
realidade verdadeiramente humana” (Marx, 2010, p. 191-192).  
64  
O que está no centro das preocupações de Marx é a elucidação das categorias do ser  
social. Tais preocupações permanecem mesmo quando incursiona na crítica demolidora das  
11  
Segundo José Chasin (2009), Marx compreendeu a atividade humana sensível, prática, vital, como atividade  
que está articulada com a “forma subjetiva, dação de forma pelo efetivador” (Chasin, 2009, p. 97). Ao reconhecer  
o “caráter fundante da positividade ou objetividade autopostas”, juntamente com o descarte da especulação e com  
a ultrapassagem das “fronteiras de uma estrita teoria política”, Marx adere à referenciais novos, e a sociabilidade  
é identificada como “base da inteligibilidade”, isto é, do próprio conhecimento do que é – ou pode ser – o homem  
“em sua autofetividade material” (Chasin, 2009, p. 56-57).  
Libertas, Juiz de Fora, v. 24, n. 1, p. 42-65, jan./jun. 2024. ISSN 1980-8518  
Atividade sensível e gênero humano nos Manuscritos econômico-filosóficos de Marx  
contradições da economia política e da filosofia especulativa: o homem é um ser que constrói  
o próprio mundo, e é na própria atividade que repousa a “natureza” ou a “essência” de seu ser.  
Salientamos que é na investigação que tem como ponto de partida o ato da perda e o  
estranhamento do trabalho que Marx pôde tratar dos pressupostos ontológicos mais gerais do  
ser social: o homem é um ser que realiza uma atividade consciente e é produtor do próprio  
gênero. A constatação de Marx é realizada no momento de sua incursão crítica no terreno da  
economia política e da crítica da filosofia hegeliana. Através do reconhecimento e da crítica do  
modo de produção da vida dos homens na sociabilidade do capital, ele pôde desvendar a gênese  
da propriedade privada capitalista e, além disso, pôde denunciar que o homem acaba negando  
a si mesmo no próprio trabalho. É sob o efeito dessas novas conquistas que Marx entra no  
terreno da crítica da economia política para dar início a terceira crítica instauradora, de modo  
que a inflexão ontológica verificada nos textos escritos entre 1843 e 1844 – movimento marcado  
pela crítica da especulação e da política – pudesse ser complementada nos Manuscritos  
econômico-filosóficos.12  
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Verlag, 1982.  
MARX, K. Manuscritos económico-filosóficos de 1844. Tradução de Miguel Vedda, Fernanda  
Aren e Silvina Rotemberg. Buenos Aires: Colihue, 2010.  
MÉSZÁROS, I. A teoria da alienação em Marx. Tradução de Nélio Schneider. São Paulo:  
Boitempo, 2016.  
MORA, J. F. Diccionario de filosofia. Buenos Aires: Editoral Sudamericana, [s.d.].  
12  
Como buscamos demonstrar, é nesse conjunto de textos auto elucidativos que Marx nos legou uma de suas  
principais contribuições, ao fazer “da produção e da reprodução da vida humana o problema central” tanto da  
filosofia quanto da ciência, em que “tanto no próprio ser humano como em todos os seus objetos, relações, vínculos  
etc.”, revelam-se uma “dupla determinação de uma insuperável base natural e de uma ininterrupta transformação  
social dessa base”, em que, segundo Lukács, “o trabalho é a categoria central, na qual todas as outras determinações  
já se apresentam in nuce” (Lukács, 2018b, p. 285).  
A expropriação do mais-trabalho no contexto da  
“caça apaixonada do valor”1  
The expropriation of surplus work in the contexto of the “passionate  
hunting of value”  
Fernando Araújo Bizerra*  
Resumo: O presente artigo oferece uma síntese  
teórico-interpretativa, a partir de exegeses e  
análises econômicas de Karl Marx, sobre a  
expropriação do mais-trabalho na sociedade  
capitalista. Fruto de pesquisa bibliográfica,  
apreende, num primeiro momento, as  
características essenciais da produção da  
riqueza subordinada à lógica mercantil, donde  
provém a infinitude de mercadorias que  
cristalizam o valor criado pelos trabalhadores.  
Na sequência, evidencia como, na busca  
obstinada pelo valor, os capitalistas exploram a  
força de trabalho e expropriam o excedente. Os  
elementos coligidos permitem a compreensão  
de que a expropriação do mais-trabalho que  
nutre os capitalistas ao longo dos últimos  
séculos ocorre em plena sintonia com a  
dinâmica sociorreprodutiva do capital, sendo,  
pois, uma exigência inflexível deste.  
Abstract: This article offers a theoretical-  
interpretative synthesis, based on exegeses and  
ecnonomic analyses by Karl Marx, on the  
expropriation of surplus work in capitalist  
society. The result of bibliographical research,  
it demonstrates, at first, the essential  
characteristics of the production of wealth  
subordinated to mercantile logic, from which  
the infinity of commodities that crystallize the  
value created by workers. Next, it shows how,  
in the stubborn pursuit of value, capitalists  
exploit the workforce and expropriate the  
surplus. The collected elements allow the  
understanding that the expropriation of the  
surplus work that nourishes the capitalists over  
the last centuries occurs in full harmony with  
the socio-reproductive dynamics of capital,  
being, therefore, an inflexible requirement of  
this.  
Palavras-chaves:  
Mercadoria;  
Valor;  
Keywords: Commodity; Value; Exploration;  
Exploração; Expropriação do mais-trabalho.  
Expropriation of surplus work.  
1
O texto que agora se divulga compõe, originalmente, uma parte da minha tese de doutoramento (BIZERRA,  
2022), elaborada e defendida – sob a orientação da Profa. Dra. Reivan Marinho de Souza – no marco do Programa  
de Pós-Graduação em Serviço Social (PPGSS) da Universidade Federal de Alagoas (UFAL).  
*
Assistente social, mestre e doutor pelo Programa de Pós-Graduação em Serviço Social (PPGSS) da Universidade  
Federal de Alagoas (UFAL). Professor Adjunto e Coordenador do Curso de Serviço Social da UFAL/Campus  
Arapiraca/Unidade Educacional de Palmeira dos Índios.  
DOI: 10.34019/1980-8518.2024.v24.42757  
Esta obra está licenciada sob os termos  
Recebido em: 05/11/2023  
Aprovado em: 18/06/2024  
A expropriação do mais-trabalho no contexto da “caça apaixonada do valor”  
Introdução  
O capital é trabalho morto, que apenas se reanima, à maneira dosvampiros,  
chupando trabalho vivo e que vive tanto mais quanto mais trabalho vivo chupa  
(Marx, 1996a, p. 347).  
A expropriação do mais-trabalho é a quintessência das sociedades de classe,  
sustentando o funcionamento permanente de todas as sociedades deste tipo. Desde que entra  
em cena a propriedade privada, enquanto relação social antagonística que assegura a existência  
das classes sociais, expropriar o trabalho excedente gerado pelos produtores diretos passa a ser  
uma necessidade absolutamente fundamental para que um microscópico quadro de pessoal se  
reproduza na condição de classe dominante. A riqueza apetecida pela classe dominante em cada  
momento singular da história exige, da antiguidade aos dias hodiernos, com diferenças  
consideráveis, a contínua expropriação do mais-trabalho, imposta a todo custo e assegurada de  
todas as maneiras possíveis, com tudo o que ela implica de exploração, sujeição e conflitos.  
Em seu devido curso expansionista, e de modo a provar sua viabilidade histórica  
diante de vicissitudes cada vez mais amplas e agudas, o capital – criatura “que apenas se  
reanima” “à maneira dos vampiros” – explora a força de trabalho com vistas a alcançar a maior  
taxa de mais-trabalho possível em circunstancias dadas, garantindo continuamente a  
expropriação do excedente gerado dia a dia a expensas da exploração de levas de trabalhadores  
em todos os quadrantes do globo. Sem isso, o sistema social em questão seria totalmente  
incapaz de se manter. Se o vampiro, efígie mobilizada na epígrafe que abre esta reflexão, engole  
sangue de criaturas vivas para se alimentar, o capital se desenvolve e se vitaliza “quanto mais  
trabalho vivo chupa” e expropria riquezas. Se o vampiro suga o líquido corporal que percorre  
o sistema circulatório de humanos, o capital apropria-se do mais-trabalho obtido com o gasto  
de energias corpóreas dos trabalhadores usadas na realização do trabalho. Se o vampiro ataca  
localmente na surdina para obter sua bebida predileta, o capital ergue sob seu comando uma  
ordem de reprodução sociometabólica singular, poderosa, hierárquica e universal onde opera a  
lei do valor, tendo seus vigamentos assentados na expropriação do mais-trabalho e marcados  
pela presença de classes sociais antagônicas que se confrontam na defesa dos seus interesses  
irreconciliáveis. A expropriação do mais-trabalho, neste sentido, desempenha um papel crucial  
no dinamismo autoexpansivo do capital, devendo ser potencialmente realizada em todo  
processo produtivo consolidado no modo de produção vigente.  
67  
Partindo desse pressuposto heurístico, neste artigo, que condensa resultados da  
pesquisa desenvolvida durante o doutorado, nosso interesse primordial consiste em oferecer  
uma síntese teórico-interpretativa acerca da expropriação do mais-trabalho em sua modalidade  
Fernando Araújo Bizerra  
específica associada à produção da riqueza objetivada sob a forma de mercadorias. Para tanto,  
o texto baseia-se em algumas indicações analíticas elaboradas e sistematizadas por Karl Marx  
na sua obra monumental O Capital, realizando um duplo movimento expositivo. Primeiro,  
apresenta uma rápida discussão acerca das categorias mercadoria e valor, delineando elementos  
importantes para a compreensão da especificidade da produção genuinamente capitalista.  
Segundo, e em adição, demonstra a materialização da expropriação do mais-trabalho no ciclo  
metabólico do capital, deixando nítidas as suas consequências para os trabalhadores.  
A produção da riqueza subordinada à lógica mercantil  
Na arquitetônica da sociedade capitalista, a produção da riqueza se expressa num  
imenso acervo de mercadorias obtido com o recurso da exploração da força de trabalho de  
milhões de expropriados dos meios de vida convertidos, no mercado, em trabalhadores  
assalariados. Produzida no interior de e por meio de relações produtivas específicas, a  
mercadoria – “célula elementar da riqueza capitalista” (Carcanholo, 2013, p. 25) – se  
transaciona, circula e é consumida imediatamente como meio de subsistência ou indiretamente  
como meio de produção, satisfazendo necessidades originadas “do estômago ou da fantasia”  
(Marx, 1996a). As propriedades constituintes do corpo da mercadoria determinam sua utilidade  
para alguém, fazendo dela um valor de uso. Como tal, realiza-se no consumo de quem a  
demanda e, na sociedade em análise, constitui-se como o substrato material do valor de troca.  
Na relação de troca, a mercadoria, antes gozando de existência por-si mesma como  
valor de uso, assume ainda valor de troca – daí sua natureza dúplice. O valor de troca aparece,  
inicialmente, como a proporção na qual certos valores de uso se trocam por valores de uso de  
outra espécie, modificando-se no espaço e no tempo. Sigamos o exemplo dado por Marx  
(1996a): 1 quarter de trigo é trocado, em certa ocasião, por X de graxa de sapato, Y de seda, Z  
de ouro etc. A mercadoria trigo tem, nesta experiência, múltiplos valores de troca. Já X de graxa  
de sapato, Y de seda e Z de ouro exprimem valores de troca permutáveis uns pelos outros ou  
idênticos entre si, expressando, ao mesmo tempo, um conteúdo quantitativo e qualitativo  
distinguível dos demais. A transação mercantil deixa claro que um valor de uso corresponde  
exatamente a outro qualquer, desde que seja ofertado em grandeza compatível. A equiparação  
da quantidade de uma mercadoria de qualidade específica com a quantidade de outra  
mercadoria, com sua qualidade também única, reduz os valores de troca a algo comum. E é  
preciso advertir: o “algo em comum não pode ser uma propriedade geométrica, física, química  
ou qualquer outra propriedade natural das mercadorias”. As propriedades corpóreas da  
mercadoria “só entram em consideração à medida que elas lhes conferem utilidade, isto é,  
68  
Libertas, Juiz de Fora, v. 24, n. 1, p. 66-89, jan./jun. 2024. ISSN 1980-8518  
A expropriação do mais-trabalho no contexto da “caça apaixonada do valor”  
tornam-nas valor de uso” (Marx, 1996a, p. 167). Inquestionavelmente, esse algo é o trabalho  
humano abstrato.  
Enquanto valores de uso, as mercadorias têm diferenças de qualidade e se destinam  
ao consumo; como valores de troca, são quantitativamente diferentes e postas à  
comercialização. No mercado, as necessidades do indivíduo A podem supridas por meio da  
mercadoria trocada com o indivíduo B. E esta troca acontece só porque o indivíduo A também  
satisfaz, em alguma medida, as necessidades do indivíduo B. Servindo a outrem, o possuidor  
da mercadoria termina por servir a si mesmo ao receber valores de uso de qualidade distinta e  
de igual valor de troca. Há, por essa via, uma satisfação mútua. Ora, para que dois valores de  
uso diferentes possam ser intercambiados, deve-se haver algo que sirva como parâmetro de  
equivalência entre ambos. Abstraindo o valor de uso definido no corpo das mercadorias, resta-  
lhes o atributo de serem, todas elas, das mais rudes às mais elaboradas, produtos do trabalho. A  
infinidade de mercadorias que, pela troca, podem ser vendidas e compradas a cada instante são  
objetivações do metabolismo social com a natureza. Os valores de uso expressos no corpo das  
mercadorias resultam da síntese entre a causalidade natural e a ação transformadora do homem,  
encerrando um determinado tipo de atividade produtiva.  
Prescindindo do valor de uso dos produtos do trabalho, “abstraímos também os  
componentes e formas corpóreas que fazem dele[s] valor de uso. Deixa[m] já de ser mesa ou  
casa ou fio ou qualquer outra coisa útil. Todas as suas qualidades sensoriais se apagaram”  
(Marx, 1996a, p. 167). Perdem a característica de ser trabalho do marceneiro ou do padeiro ou  
do fiandeiro ou de outro indivíduo singular. Desaparecendo o caráter útil dos produtos do  
trabalho, obscurece-se o caráter útil do trabalho neles representados e negligenciam-se as  
peculiaridades das formas e dos meios de trabalho empregados na sua elaboração. Os trabalhos,  
equalizados para que o sistema de troca se realize, reduzem-se em sua “totalidade a igual  
trabalho humano, a trabalho humano abstrato” (Marx, 1996a, p. 168).  
69  
Com essa completa abstração das particularidades reais e sensíveis dos objetos  
trocados, resultando o resíduo dos produtos do trabalho,  
Não restou deles a não ser a mesma objetividade fantasmagórica, uma simples  
gelatina de trabalho humano indiferenciado, isto é, do dispêndio de força de  
trabalho humano, sem consideração pela forma como foi despendida. O que  
essas coisas ainda representam é apenas que em sua produção foi despendida  
força de trabalho humano, foi acumulado trabalho humano. Como  
cristalizações dessa substância social comum a todas elas, são elas valores —  
valores mercantis (Marx, 1996a, p. 168).  
As mercadorias levadas ao mercado pelos agentes da troca escondem as  
características do trabalho empregado na sua elaboração, mostrando-se como “uma simples  
Fernando Araújo Bizerra  
gelatina de trabalho humano indiferenciado”. Inter-relacionando-se no circuito mercantil  
capitalista como abstratamente iguais, pressupõem uma “substância social” genérica que as  
equaliza. A esta “substância social” interna e comum às mercadorias dá-se o nome de valor.  
O valor da mercadoria, abstraído do seu valor de uso e manifesto no seu valor de  
troca, determina-se pelo tempo de trabalho socialmente necessário investido na sua produção,  
considerando-se as condições técnicas e sociais de trabalho normais e o nível médio de  
habilidade e de intensidade com que se realiza. Na produção mercantil, a quantidade de trabalho  
despendida na produção de um valor de uso é medida pelo seu tempo de duração; o tempo de  
trabalho leva em conta, na sua comensurabilidade, as determinadas frações do tempo, tais como  
hora, dia etc. Produtos do trabalho com a mesma proporcionalidade quantitativa de trabalho ou  
produzidos na mesma escala de tempo médio de trabalho contêm igual grandeza de valor2. Ou  
seja, o valor de uma mercadoria “está para o valor de cada uma das outras mercadorias assim  
como o tempo de trabalho necessário para a produção de uma está para o tempo de trabalho  
necessário para a produção de outra” (Marx, 1996a, p. 169).  
O valor é uma relação social cristalizada no conteúdo dos produtos do trabalho. A  
“objetividade do valor é puramente social e, então, é evidente que ela pode aparecer apenas  
numa relação social de mercadoria para mercadoria” (Marx, 1996a, p. 176). Na imediaticidade  
das mercadorias, seu valor está imperceptível aos sujeitos envolvidos na comercialização. A  
objetividade do valor, desprovida de qualquer átomo de matéria natural, difere completamente  
da estrutura física das mercadorias que comporta o valor de uso. O valor de uso é o conteúdo  
material da riqueza em todas as formações sociais e resulta do trabalho concreto, explicitando-  
se no núcleo palpável das mercadorias. O valor, oculto no corpo das mercadorias, provém do  
trabalho abstrato e, por este não ser eterno, expressa condições objetivas particulares da  
produção mercantil. O quantum de trabalho abstrato contido na mercadoria, o seu valor, serve  
no intercâmbio mercantil como regulador das trocas.  
70  
A natureza duplicada da mercadoria representa o duplo caráter do trabalho no  
sistema sociometabólico do capital. O trabalho concreto é o fundamento ontológico do trabalho  
abstrato e, em todas as épocas históricas, tem como função produzir valores de uso através da  
transformação da matéria natural em objetos úteis às necessidades humanas; o trabalho abstrato,  
à distinção, pressupõe o trabalho concreto e não cria valores de uso, mas incorpora a estes uma  
2 Marx (1996a, p. 173-174, grifos do autor), no trato desse aspecto, constata que “Uma mercadoria pode ser produto  
do trabalho mais complexo, seu valor a equipara ao produto do trabalho simples e, por isso, ele mesmo representa  
determinado quantum de trabalho simples”. A dimensão quantitativa, neste sentido, é o que, de fato, define o valor  
das mercadorias, e não o nível de complexidade, o grau de esforço e o tipo de trabalho nelas presente.  
Libertas, Juiz de Fora, v. 24, n. 1, p. 66-89, jan./jun. 2024. ISSN 1980-8518  
A expropriação do mais-trabalho no contexto da “caça apaixonada do valor”  
dimensão social: o valor de troca, tornando os objetos intercambiáveis no mercado. O trabalho  
concreto dá origem ao ser social e possibilita o processo de constituição do gênero humano,  
sendo exigência eterna da vida em sociedade. O trabalho abstrato, sinônimo de trabalho  
alienado, funda o capital, constituindo-se, pois, como um elemento primordial da  
autorreprodução desta modalidade única de metabolismo social.  
A mercadoria, elemento que medeia e pauta a produção especificamente capitalista,  
apresenta-se aos homens, em sua imediatez, como um objeto “trivial”, “evidente”. Uma análise  
cuidadosa que apreenda os nexos internos da configuração da mercadoria, entretanto, mostra-a  
como uma coisa “muito complicada”, carregada de “sutileza metafísica e manhas teológicas”  
(Marx, 1996a, p. 197). Ao ser vista sob o prisma do valor de uso,  
[...] não há nada misterioso nela, quer eu a observe sob o ponto de vista de que  
satisfaz necessidades humanas pelas suas propriedades, ou que ela somente  
recebe essas propriedades como produto do trabalho humano. É evidente que  
o homem por meio de sua atividade modifica as formas das matérias naturais  
de um modo que lhe é útil. A forma da madeira, por exemplo, é modificada  
quando dela se faz uma mesa. Não obstante, a mesa continua sendo madeira,  
uma coisa ordinária física. Mas logo que ela aparece como mercadoria, ela se  
transforma numa coisa fisicamente metafísica. Além de se pôr com os pés no  
chão, ela se põe sobre a cabeça perante todas as outras mercadorias e  
desenvolve de sua cabeça de madeira cismas muito mais estranhas do que se  
ela começasse a dançar por sua própria iniciativa (Marx, 1996a, p. 197).  
O invólucro místico da mercadoria não emana do seu valor de uso, tampouco do  
conteúdo das determinações do valor. Primeiro porque, não obstante ser resultado de diferentes  
trabalhos privados, a mercadoria é fruto de atividades produtivas em que ocorre dispêndio  
fisiológico-mental de energias humanas ao explorarem-se os produtores. Segundo, no que serve  
como parâmetro para determinar sua grandeza de valor, a quantidade de tempo de trabalho  
empregada é distinguível inclusive pelos sentidos da qualidade do trabalho. O “caráter  
enigmático” do produto do trabalho que, no mercado, e apenas nele, é convertido em  
mercadoria só pode advir da sua própria forma mercadoria.  
71  
Na produção generalizada de mercadorias, da qual resulta um renovado fluxo de  
bens trazidos ao mercado todos os dias e em todos os lugares, “A igualdade dos trabalhos  
humanos assume a forma material de igual objetividade de valor dos produtos de trabalho”; “a  
medida do dispêndio de força de trabalho do homem, por meio da sua duração, assume a forma  
da grandeza de valor dos produtos de trabalho”; e, por fim, as relações entre os produtores, nas  
quais se ativam as caraterísticas sociais de seus trabalhos, “assumem a forma de uma relação  
social entre os produtos de trabalho” (Marx, 1996a, p. 198). Os produtos do trabalho  
transformados em mercadoria ganham, dentro da sua troca, preeminência sobre os produtores.  
As conexões entre os produtores independentes e privados dão-se exclusivamente por meio da  
Fernando Araújo Bizerra  
mercadoria, tenham consciência disso ou não. Os produtores estabelecem contato social com  
outros produtores mediante a troca dos produtos do seu trabalho tornados mercadorias;  
relacionam-se, rigorosamente, e em todo caso, por meio deles.  
O “misterioso” da forma mercadoria é que, para os homens, “as características  
sociais do seu próprio trabalho” são refletidas “como características objetivas dos próprios  
produtos de trabalho”, “como propriedades naturais sociais dessas coisas”. Em decorrência, a  
relação social dos produtores com a totalidade da produção (“o trabalho total”) aparece “como  
uma relação social existente fora deles, entre objetos”. Através deste “quiproquó”, uma  
determinada relação social estabelecida entre os produtores apresenta-se como uma relação  
“natural” entre coisas fisicamente diferenciadas. O fetichismo, intrínseco à produção de  
mercadorias, penetra, dissemina-se e satura a sociedade capitalista, singularizando-a como  
aquela sociabilidade em que as coisas ganham acentos humanos e as relações humanas  
assumem “a forma fantasmagórica de uma relação entre coisas” (Marx, 1996a, p. 198)  
inexplicáveis, supostamente dotadas de vida própria, encaradas como algo superior aos próprios  
sujeitos que a criaram. Para os produtores, as relações sociais entre seus trabalhos privados  
revelam-se “não como relações diretamente sociais entre pessoas em seus próprios trabalhos,  
senão como relações reificadas entre as pessoas e relações sociais entre as coisas” (Marx, 1996a,  
p. 199). Por causa desta inversão fetichizante, as relações humanas passam a transfigurar como  
relações objetuais, coisificadas, independentes dos homens.  
72  
Na sociedade burguesa, onde predomina3 o valor, para que a compra e venda da  
mercadoria se realize uma mercadoria precisa assumir o papel de equivalente geral. O dinheiro  
é a mercadoria que cumpre esta função social, equiparando todas as mercadorias oferecidas4.  
Seja em moedas metálicas, seja em cédulas de papel, o dinheiro funciona como medida geral  
dos valores. Mas, para não incorrer numa interpretação equivocada, vale registrar que não é o  
dinheiro o que torna as mercadorias comensuráveis. Qualquer incursão por esta linha desvia da  
3
Carcanholo (2013, p. 28) ressalta: “o desenvolvimento mercantil é um processo por meio do qual, partindo da  
sua gênese com a chamada forma simples, o valor impõe cada vez mais seu domínio sobre o valor de uso e chega  
a converter-se em polo dominante. Essa dominação culmina com a consubstantivação, mas continua o processo  
de desenvolvimento mercantil – agora capitalista – e prossegue cada vez mais intensa a dominação do valor sobre  
o valor de uso, da forma sobre o conteúdo da riqueza. [...] sendo a riqueza mercantil unidade valor de uso e valor,  
ela se torna, com o desenvolvimento, cada vez mais valor e cada vez menos valor de uso. No capitalismo, a dialética  
permite entender que o valor chega a ser a própria natureza da riqueza, embora o valor de uso continue existindo  
(não pode desaparecer) como aspecto subordinado”.  
4 O dinheiro, quando a produção se amplia e se supera aquele estágio histórico em que as trocas eram acidentais e  
fortuitas, funciona também como “meio de troca – possibilitando a circulação de mercadorias”, “medida de valor  
– oferecendo um padrão de mensuração para todas as mercadorias”, “meio de acumulação ou entesouramento –  
podendo ser guardado para uso posterior”, “meio de pagamento universal – servindo para quitar dívidas públicas  
e privadas” (Netto; Braz, 2009, p. 89, grifos dos autores).  
Libertas, Juiz de Fora, v. 24, n. 1, p. 66-89, jan./jun. 2024. ISSN 1980-8518  
A expropriação do mais-trabalho no contexto da “caça apaixonada do valor”  
questão essencial: as mercadorias podem medir a magnitude dos seus valores numa mercadoria  
específica por elas serem encarnações do trabalho humano objetivado, sendo em si e para si  
comensuráveis. O dinheiro é a “medida comum de valor”, “manifestação da medida imanente  
do valor das mercadorias” (Marx, 1996a, p. 219). A expressão monetária do valor de uma  
mercadoria é, por sua vez, o seu preço.  
O dinheiro é a primeira forma de aparição do capital. Ao ser empregado no mercado  
pelo seu possuidor, o dinheiro deve passar por certos processos para se transformar em capital.  
A circulação do dinheiro como capital é uma finalidade em si mesma; valorizar o valor é um  
movimento insaciável, renovado constantemente para que se tenha a apropriação da riqueza. A  
multiplicação insaciável do valor é a meta ser alcançada pelo seu possuidor em sua marcha  
impulsionada pelo enriquecimento. Estrategicamente, ele tira do seu bolso dinheiro e o investe,  
esperando, com isso, seu retorno enquanto capital. Ao ser empregado, o dinheiro transforma-se  
em mercadoria que, uma vez vendida, retransforma-se em mais dinheiro; torna-se valor em  
processo, dinheiro em movimento e, assim, capital.  
A transformação do dinheiro em capital acontece sem burlar as leis imanentes do  
intercâmbio de mercadorias: munido de dinheiro, seu possuidor compra as mercadorias pelo  
seu valor, lançam-nas reiteradamente no mercado e as vende pelo seu valor; no final desta  
operação mercantil, obtém mais valor do que o lançado, valorizando-se o dinheiro adiantado.  
A dinâmica das trocas inicia-se com operações individuais, com um simples ato de compra e  
venda sucedido por outros e outros. Avança, com o desenvolvimento e a ampliação do  
comércio, para uma cadeia infinita de trocas interconectadas em escala abrangente e mundial.  
Nestas circunstâncias, o valor torna-se capital ao passar da forma mercadoria para a forma  
dinheiro, da forma dinheiro para a forma mercadoria e assim sucessivamente.  
73  
Ser possuidor de dinheiro, todavia, não é condição suficiente para que ocorra  
plenamente a modificação do dinheiro em capital. A condição isolada de detentor de certa  
quantia de dinheiro acumulado não leva à sua conversão automática em capital. Como é  
possível converter dinheiro em capital? Fica patente que, nesta altura da exposição, há algo que  
precisa ser explicado, algo que não pode ser desvendado pela simples diferença entre o preço  
da compra e o preço da venda das mercadorias. O possuidor de dinheiro, para valorizar a sua  
somatória de valor já existente, precisa encontrar no mercado uma mercadoria que, pelo seu  
valor de uso, tenha a característica singular de ser fonte de valor maior do que nela está contido.  
A única mercadoria que, quando consumida produtivamente, materializa a transformação do  
dinheiro em capital é a força de trabalho – a “força de trabalho de um homem consiste, pura e  
simplesmente, na sua individualidade viva” (Marx, 2012, p. 111). E o seu possuidor oferta-a no  
Fernando Araújo Bizerra  
mercado somente após se encontrar completamente expropriado dos meios de vida, após ter se  
consumado a total disjunção entre o trabalhador e os meios de produção.  
A criação de novo valor exige relacionar diretamente dinheiro, força de trabalho e  
meios de produção. Na circulação, encontram-se, como sujeitos historicamente determinados  
(leia-se: como proprietários privados), o possuidor de dinheiro e o possuidor de força de  
trabalho, permutando entre si as mercadorias das quais são “guardiões”. A grandeza do valor da  
força de trabalho, única mercadoria que os expropriados dos meios de vida detêm, determina-  
se assim como a das demais mercadorias (pelo tempo de trabalho socialmente necessário à  
produção) e está representada no salário5 fixado6 segundo condições nacionais, culturais,  
históricas e sociais. O valor da força de trabalho corresponde ao cálculo médio “dos meios de  
subsistência necessários para produzir, desenvolver, manter e perpetuar a força de trabalho”  
(Marx, 2012, p. 112, grifos do autor). O trabalhador, vendedor da sua força de trabalho, precisa  
consumir uma quantidade diária de meios de subsistência para se manter apto a objetivar o  
trabalho, ativando cérebro, músculos, nervos e demais componentes corpóreos. Sem esse  
consumo, a força de trabalho jamais consegue realizar as tarefas com a agilidade requerida.  
O valor da força de trabalho, negociado no ato da sua compra e pago posteriormente  
ao seu consumo, deve ser o suficiente para preservar a vitalidade do trabalhador expropriado  
dos meios de vida, suprindo-lhe necessidades de autossubsistência como alimentação,  
vestuário, habitação, formação etc. Mas não só. Como o trabalhador é mortal, como desgasta  
física e mentalmente sua corporalidade ao ter sua força de trabalho explorada, em algum  
momento, cedo ou tarde, ocorrerá sua substituição no mercado. O trabalhador precisa, diante  
disso, gastar uma parte do salário recebido com a preservação da sua vida dos seus filhos,  
mantendo sua família e, por essa via, perpetuando a classe trabalhadora. O pagamento do seu  
trabalho na forma dinheiro deve ser efetuado em espaços temporais curtos para possibilitar a  
reprodução do trabalhador como trabalhador assalariado e da sua prole enquanto reserva de  
força de trabalho à espera da convocação do capital.  
74  
5 A mercantilização da força de trabalho generaliza o trabalho assalariado na sociedade burguesa. O sistema de  
trabalho assalariado é exigência da reprodução do capital; o capital, por sua vez, é exigência para a existência do  
sistema de trabalho assalariado tal como conhecemos hoje. Há, entre eles, uma determinação reflexiva.  
6
Salienta Marx (2012, p. 112, grifos do autor): “[...] como os diferentes tipos de força de trabalho têm valores  
diferentes, ou seja, exigem para a sua produção distintas quantidades de trabalho, necessariamente têm de ter preços  
diferentes no mercado de trabalho. Reivindicar uma retribuição igual, ou simplesmente uma retribuição  
equitativa, na base do sistema de trabalho assalariado, é o mesmo que pedir liberdade na base do sistema  
escravocrata”.  
Libertas, Juiz de Fora, v. 24, n. 1, p. 66-89, jan./jun. 2024. ISSN 1980-8518  
A expropriação do mais-trabalho no contexto da “caça apaixonada do valor”  
Expropriação do mais-trabalho no ciclo metabólico do capital  
O ciclo metabólico que converte o dinheiro em capital sob a base da produção  
capitalista resume-se na seguinte equação: D-M...P...M’-D’. No ponto de partida (D-M), a  
atividade do possuidor de dinheiro concentra-se na circulação simples, onde se cruzam livres  
compradores e livres vendedores: ele vai ao mercado com a pretensão de investir uma quantia  
de dinheiro (D) e transformá-lo em mercadorias (M). O vendedor o entrega suas mercadorias e  
acaba por transformá-las em dinheiro. Neste momento, as mercadorias trocam de lugar com o  
dinheiro, o dinheiro metamorfoseia-se em mercadorias. O dinheiro, a forma como o capital é  
adiantado, destina-se à compra de meios de produção (Mp) (matérias-primas, instalações,  
equipamentos e instrumentos de trabalho) e de força de trabalho (T) correspondentes ao tipo de  
mercadoria desejada. Como meio geral de compra e meio geral de pagamento, o dinheiro se  
decompõe em D-Mp e D-T, aquisição de meios de produção e aquisição de força de trabalho,  
capital constante e capital variável. M, aqui, significa Mp+T, os fatores materiais e subjetivos  
da produção encontrados e adquiridos em mercados diferentes: meios de produção no mercado  
de mercadorias propriamente dito, força de trabalho no mercado de trabalho.  
Apartados uns dos outros, meios de produção e força de trabalho são fatores de  
produção só em potência. Sem a força de trabalho atuando, os meios de produção não  
funcionam, se desgastam e se tornam inoperantes, uma vez que a força de trabalho é quem os  
consome na objetivação do seu trabalho. Sem os meios de produção, a força de trabalho está  
impossibilitada de realizar o trabalho do qual resulta a produção da riqueza social. O trabalho  
morto corporificado nos meios de produção deve ser vivificado pelo trabalho vivo, tornando os  
valores de uso apenas possíveis em valores de uso efetivos. Meios de produção e força de  
trabalho precisam ser combinados, interagir e atuar em conjunto para dar vida às coisas que  
eram mortas, para efetivar a criação de artigos úteis comercializados no mercado.  
Aproporção quantitativa do capital constante e do capital variável investido na compra  
de duas séries de mercadorias qualitativamente distintas (Mp e T) é mensurada, desde o início  
daquele processo cíclico, considerando-se a quantidade de trabalho excedente a ser executado  
pelos trabalhadores contratados. Na mensuração, é imperativo que a parte do dinheiro destinada  
à compra de meios de produção  
75  
[...] seja, sob quaisquer circunstâncias, suficiente; que ela seja, portanto,  
calculada de antemão, obtida na devida proporção. Em outras palavras, a  
massa dos meios de produção tem de ser suficiente para absorver a massa de  
trabalho e, por meio desta, transformar-se em produto. Sem os meios de  
produção suficientes, o trabalho excedente do qual dispõe o comprador não  
seria aplicável; seu direito de dispor desse trabalho não serviria para nada. Se,  
ao contrário, houvesse mais meios de produção do que trabalho disponível,  
Fernando Araújo Bizerra  
eles não seriam absorvidos pelo trabalho e, portanto, não se converteriam em  
produto (Marx, 2014, p. 117).  
Ao comprar uma quantidade de meios de produção tendo como referência a  
quantidade de força de trabalho adquirida, o possuidor de dinheiro insere estas mercadorias na  
produção (P), permitindo, através do trabalho abstrato, a fabricação de um gigantesco arsenal  
de mercadorias, a extração do mais-trabalho e a valorização do valor. O comprador passa a  
dispor de meios de produção e força de trabalho, bem como de “uma quantidade maior de  
trabalho do que a necessária para repor o valor da força de trabalho e, ao mesmo tempo, dos  
meios de produção requeridos para a realização ou objetivação dessa quantidade de trabalho”.  
Tem, sob o seu domínio, os fatores necessários à produção de coisas de um valor maior que o  
de seus elementos de produção. O valor adiantado no estágio D-M sob a forma de dinheiro para  
alavancar o empreendimento de produção de mercadorias encontra-se, ao adentrar na produção,  
“numa forma natural”, como valor prenhe de mais-valor que pode ser realizado; encontra-se  
“no estado ou sob a forma do capital produtivo, que tem a propriedade de atuar como criador  
de valor e mais-valor7” (Marx, 2014, p. 118, grifos do autor).  
P continua sendo o mesmo valor de capital que D, assumindo, porém, outra forma de  
existência. Na produção, transforma-se o valor de capital de sua forma-dinheiro em sua forma  
produtiva, de capital monetário em capital produtivo. Como capital monetário, no ciclo D-M o  
dinheiro desempenha exclusivamente a função própria do dinheiro, atuando como meio  
universal de compra e meio universal de pagamento. O fato de o dinheiro servir para comprar  
e para pagar se justifica porque ele constitui a equivalência universal entre todas as mercadorias,  
não porque ele é capital monetário. O que converte o dinheiro de simples mediador da troca de  
uma mercadoria por outra em capital é o papel determinado que ele assume no movimento de  
rotação do capital, cabendo-lhe estabelecer o nexo entre um ciclo e outro. O dinheiro gasto na  
compra da mercadoria força de trabalho (D-T) é “a condição essencial para que o valor  
adiantado em forma-dinheiro se realize em capital, ou seja, transforme-se em valor que produz  
mais-valor” (Marx, 2014, p. 120). E só ocorre a compra da mercadoria força de trabalho,  
premissa decisiva da produção mercantil capitalista, porque, por meio de mediações  
extremamente violentas, decompôs-se a conexão originária entre os meios de produção e a força  
de trabalho. A aliança entre trabalhador e fatores materiais da produção precisa ser rompida, do  
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7 Aqui, vale destacar, fizemos a opção de preservar a tradução das obras citadas. Por isso, o leitor irá se deparar  
ora com mais-valia, tal como consta em Marx (1996a) e Marx (1996b), ora como mais-valor, quando a referência  
for Marx (2014).  
Libertas, Juiz de Fora, v. 24, n. 1, p. 66-89, jan./jun. 2024. ISSN 1980-8518  
A expropriação do mais-trabalho no contexto da “caça apaixonada do valor”  
contrário o dinheiro não se converte em capital porque a produção-circulação de mercadorias  
não se concretiza.  
Completado o primeiro estágio, ocorrendo a transformação do capital monetário em  
capital produtivo, interrompe-se a circulação (...P...) e avança o processo cíclico do capital ao  
entrar na produção. O primeiro estágio é precursor e fase introdutória do segundo estágio.  
No segundo estágio, consomem-se produtivamente a força de trabalho e os meios de  
produção. As mercadorias compradas no clico D-M são mobilizadas na produção, resultando  
num montante de novas mercadorias (M’) com valor acima (D’) do que foi adiantado  
inicialmente, valor este que pode variar, ser maior ou menor. O funcionamento da produção é a  
todo tempo controlado para que os meios de produção utilizados pela força de trabalho sejam  
consumidos adequadamente, para que não ocorra consumo desnecessário de matéria-prima e  
meios de trabalho. As tarefas que cabem à força de trabalho na produção são supervisionadas  
do início ao fim, vertical e horizontalmente, para que se evitem desperdícios, já que representam  
quantidades de meios de produção despendidas em excesso de trabalho objetivado, não  
contando e nem entrando no produto da formação de valor.  
Examinemos, com vagar, como ocorre a criação da mais-valia. O trabalhador, livre  
proprietário da sua capacidade de trabalho, celebra um contrato com o possuidor de dinheiro  
para cumprir uma jornada de trabalho delimitada. Cede, provisoriamente, sua força de trabalho  
a outro sujeito. Na venda da força de trabalho, o trabalhador aliena o valor de uso desta sua  
mercadoria ao comprador e, em contrapartida, usufrui do seu valor de troca expresso no salário.  
Em razão disso, o possuidor de dinheiro goza, no decorrer da jornada de trabalho, do direito de  
utilizar o valor de uso da força de trabalho por ter pago seu valor de troca. E o utiliza como  
quiser, consumindo-a conforme seus propósitos econômicos. Tira, em todas as experiências, o  
melhor proveito do valor de uso da mercadoria força de trabalho. O tempo em que a força de  
trabalho está em ação é o tempo durante o qual o seu comprador desfruta do seu valor de uso.  
O proprietário dos meios de produção e comprador da força de trabalho deseja a produção de  
um objeto que, além de valor de uso, tenha valor de troca; um artigo destinado à venda cujo  
valor seja maior que a soma dos valores das mercadorias exigidas para sua produção. Pela  
utilidade da força de trabalho na produção, o capitalista tem, ao final do processo de trabalho,  
não só um valor de uso, mas um item portador de valor de troca; não simplesmente valor de  
uso, mas valor; não somente valor, mas também mais-valia.  
77  
Acionada, explorada, atuando com os meios de produção pertencentes ao  
empregador, a força de trabalho produz uma variedade de coisas e acrescenta ao objeto  
trabalhado novo valor. Os meios de produção em hipótese alguma criam valor nem alteram sua  
Fernando Araújo Bizerra  
grandeza de valor na produção. Cabe à força de trabalho acrescer valor ao produto final. O  
trabalhador, na fábrica, “não trabalha duas vezes ao mesmo tempo, uma vez para agregar, por  
meio de seu trabalho, valor ao algodão, e outra vez para conservar seu valor anterior” (Marx,  
1996a, p. 317). Ao contrário: acrescentando novo valor conserva o valor antigo. Ao a força de  
trabalho consumir um valor de uso para produzir outro valor de uso, o tempo de trabalho  
socialmente necessário gasto na produção do valor de uso consumido é incorporado ao cômputo  
do tempo de trabalho socialmente necessário para a produção do novo valor de uso. Pela via do  
trabalho abstrato, indiferenciado, a atividade específica produtiva do trabalhador agrega valor;  
pelo dispêndio de força de trabalho humana, transfere o valor dos meios de produção  
consumidos ao novo produto e obtém nele seu valor. Na sua labuta diária,  
O trabalhador conserva, portanto, os valores dos meios de produção  
consumidos ou os transfere, como partes componentes do valor, ao produto,  
não pelo seu acréscimo de trabalho em geral, mas pelo caráter particularmente  
útil, pela forma específica produtiva desse trabalho adicional. Como atividade  
produtiva, adequada a um fim — fiar, tecer, forjar —, o trabalho, através de  
seu mero contato, ressuscita dos mortos os meios de produção, os vivifica para  
serem fatores do processo de trabalho e se combina com eles para formar  
produtos (Marx, 1996a, p. 318).  
Pela mera agregação quantitativa de trabalho, valor novo é agregado ao produto e,  
ao mesmo tempo, pela quantidade do trabalho agregado, os valores dos meios de produção são  
preservados no produto que ajudaram a compor. Os meios de produção ingressam no processo  
de trabalho conservando, durante toda a sua utilização, sua figura originária. Máquinas,  
edifícios, instalações e instrumentos de trabalho em geral, desde a sua primeira inserção na  
indústria até o momento de seu banimento ao despejo, entram no dia seguinte com a mesma  
forma que entraram ontem. Objetivado o produto, os meios de trabalho continuam existindo  
separados dele, têm existência autônoma ao produto antes e depois da produção. No tempo total  
de uso dos meios de produção, “seu valor de uso foi inteiramente consumido pelo trabalho e  
seu valor de troca transferiu-se, por isso, totalmente ao produto” (Marx, 1996a, p. 320). Uma  
máquina com tempo de vida prolongado em 10 anos, por exemplo, transfere o seu valor total  
durante o processo de trabalho de 10 anos. Os meios de produção nunca transferem mais valor  
ao produto do que aquele perdido no processo de trabalho a que servem. E a transferência do  
valor dos meios de produção, ocorrida pela “destruição” do seu próprio valor de uso, para o  
novo produto só é possível porque os meios de produção são eles mesmos resultantes do  
trabalho humano. Caso não fossem, não transfeririam nenhum valor. Serviriam para formar  
valor de uso, mas jamais participariam da formação do valor de troca.  
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Libertas, Juiz de Fora, v. 24, n. 1, p. 66-89, jan./jun. 2024. ISSN 1980-8518  
A expropriação do mais-trabalho no contexto da “caça apaixonada do valor”  
Marx (1996a), no trato deste aspecto, constata que na transformação dos meios de  
produção em elementos constituintes do novo produto acontece com o seu valor uma  
“transmigração de almas”. O valor “transmigra do corpo consumido ao corpo recém-  
estruturado”. Esta transmigração ocorre “às costas do verdadeiro trabalho”. O trabalhador para  
criar novo valor deve conservar valores antigos. Tendo em vista que lhes é demandado agregar  
o trabalho sempre sob uma forma útil, o trabalhador não pode agregá-lo em forma útil sem fazer  
de produtos meios de produção de um novo produto. Ao fazê-lo, transfere seu valor ao novo  
produto, de tal modo que no novo valor de uso produzido reaparece o antigo valor de troca. A  
força de trabalho em ação possui, assim, “um dom natural”: conservar valor ao agregar valor.  
E este “dom natural” nada custa ao trabalhador, embora seja vantajoso para o capitalista ao  
realizar a conservação do valor preexistente do capital.  
Já o fator subjetivo do processo de trabalho, a força de trabalho em ação, muda o  
valor do capital investido na sua compra. Ela produz seu próprio equivalente e, em adição,  
produz um excedente vampirescamente expropriado pelo capitalista. Suponhamos que o  
trabalhador vende sua força de trabalho para exercer uma jornada de trabalho de 12 horas,  
recendo em troca um salário correspondente à compra dos seus meios de subsistência. Nas 6  
primeiras horas, o trabalhador produz o equivalente do valor da sua força de trabalho, reproduz  
e devolve o capital originalmente adiantado pelo capitalista para comprá-la na esfera da  
circulação simples. O processo de trabalho não é interrompido aí. Perdura além, gerando o  
excedente do valor total do produto sobre a soma dos valores de seus elementos constituintes.  
Vejamos o que nos diz o autor na passagem seguinte:  
79  
Em vez das 6 horas, que bastam para isso, o processo dura, por exemplo, 12  
horas. Mediante a atividade da força de trabalho, reproduz-se, portanto, não  
só seu próprio valor, mas produz-se também valor excedente. Essa mais-valia  
forma o excedente do valor do produto sobre o valor dos constituintes  
consumidos do produto, isto é, dos meios de produção e da força de trabalho  
(Marx, 1996a, p. 325).  
A jornada de trabalho levada a cabo sob o controle absoluto do capitalista divide-se  
em duas partes complementares, concretizando-se através duma forma particular de exploração  
da força de trabalho. Na primeira, pela sua atividade o trabalhador reproduz o equivalente do  
valor da sua força de trabalho. Como este valor é uma grandeza variável, a parte da jornada de  
trabalho que o trabalhador precisa para reproduzi-lo não é estática; é mais extensa ou mais curta,  
a depender do valor da média dos seus meios diários de subsistência. Nomeia-se de tempo de  
trabalho necessário a parte da jornada de trabalho em que sucede essa reprodução. Necessário  
tanto ao trabalhador quanto ao capital e ao mundo por ele criado à sua imagem e semelhança.  
Fernando Araújo Bizerra  
Àquele, “por ser independente da forma social de seu trabalho”; a estes, “por ser a existência  
contínua do trabalhador a sua base” (Marx, 1996a, p. 331).  
Na segunda parte, o trabalhador labuta além do tempo de trabalho confinado à  
reprodução do valor da sua força de trabalho. Tendo seu único patrimônio explorado, excede o  
tempo de trabalho necessário e não origina nenhum valor para si mesmo. Chama-se essa parte  
da jornada de trabalho de tempo de trabalho excedente. Nela, o trabalhador reproduz valor  
existente e cria um mais-trabalho expropriado pelo capitalista, cedendo-o sem ser remunerado  
a mais por isso; ao alterar a composição física da matéria-prima recorrendo ao auxílio dos  
instrumentos de trabalho, cria a “mais-valia, que sorri ao capitalista com todo o encanto de uma  
criação do nada” (Marx, 1996a, p. 331). O mais-trabalho não deriva de uma sub-remuneração  
do trabalhador, nem de uma ação sub-reptícia, de um roubo perpetrado contra ele, nem da pura  
diferença entre preços de compra e preços de venda, nem é obra de uma arbitrariedade. O  
capitalista pagou o valor diário da força de trabalho, dispondo juridicamente do seu uso. O  
trabalho objetivado no dia inteiro pertence, de fato e de direito, ao capitalista. O mais-trabalho  
que o trabalhador produz, envolto em relações produtivas atravessadas pelo antagonismo entre  
capital e trabalho, aparece ao capitalista como mais-valia, convertendo-se em propriedade  
privada de quem não o produz, no entanto o expropria por ser proprietário dos meios de  
produção. O capitalista não pode abrir mão da expropriação do mais-trabalho, obrigando o  
trabalhador a cumprir, com exatidão, o tempo de trabalho excedente, criando um valor que nada  
custa ao possuidor de dinheiro.  
80  
Considerando que o valor em geral é “mero coágulo de tempo de trabalho”, “simples  
trabalho objetivado”, a mais-valia é “mero coágulo de tempo de trabalho excedente”, “simples  
mais-trabalho objetivado” (Marx, 1996a, p. 331-332). A força de trabalho transforma o trabalho  
acumulado, passado, em capital ao produzir o “mero coágulo de tempo de trabalho excedente”.  
O trabalhador trabalha uma parte da jornada de trabalho para garantir sua conservação e outra  
parte para produzir o mais-trabalho e valorizar o capital antes investido numa soma de  
mercadorias. O capitalista obtém mais-trabalho somente porque compulsa ao trabalhador o  
cumprimento desta segunda parte, gerando-se nela a mais-valia. O capitalista nutre-se da mais-  
valia, do valor excedente produzido pelo trabalhador. O que do lado do capitalista aparece como  
valorização do capital, do lado do trabalhador não passa de dispêndio excedente de força de  
trabalho. O capitalista só existe como capitalista se, em todas as atividades produtivas, explorar  
o trabalhador visando a apropriação do excedente gerado.  
A riqueza do capitalista advém da expropriação do mais-trabalho vindo ao mundo  
pela mediação da exploração da força de trabalho para além do tempo de trabalho necessário.  
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A expropriação do mais-trabalho no contexto da “caça apaixonada do valor”  
Pelo modo como ocorre a exploração da força de trabalho no capitalismo, mediada pelo salário,  
nas suas múltiplas vivências cotidianas o trabalhador não encontra uma nítida linha divisória  
entre as duas partes da jornada de trabalho. Em sendo assim, a modalidade de trabalho  
assalariado, pressupondo o trabalhador livre, é mais ocultadora da exploração quando  
comparada com as formas de trabalho pré-capitalistas.  
Como na Índia, na China, no Império Romano, na Grécia antiga e nas dinastias do  
Medievo não estava determinado no próprio processo produtivo o quanto do trabalho destinar-  
se-ia para a classe dominante e o quanto permaneceria com o produtor direto, a exitosa  
expropriação do mais-trabalho demandava a intervenção direta e imediata do Estado. A classe  
dominante, em todo caso, contava com o amparo do Estado na expropriação do excedente. A  
coação extraeconômica mostrou-se absolutamente imprescindível para que os bens excedentes  
chegassem, por vias diversas, às mãos dos indivíduos que se reproduziam na condição de classe  
dominante nas circunstâncias singulares de cada sociedade de classes.  
Em se tratando do trabalhador assalariado, a situação é distinta: o mais-trabalho lhe  
é expropriado sem que se aplique a violência extraeconômica. Como houve um acordo de  
compra e venda entre capitalista e trabalhador, o contrato de trabalho, por si só, assegura que o  
produto do trabalho – “não apenas mercadoria, mas mercadoria fertilizada [befruchtete] com  
mais-valor” (Marx, 2014, p. 129, grifo do autor) – pertença ao comprador da força de trabalho.  
Ao realizar uma jornada de trabalho contínua, o trabalhador desconhece a proporção em que  
ela é prolongada de modo a ultrapassar o tempo durante o qual ele repõe o seu salário, não se  
torna nítido para ele o tempo de trabalho pago e o tempo de trabalho cedido gratuitamente ao  
capitalista. No funcionamento da produção capitalista, o trabalhador não tem consciência de  
que a realização do trabalho necessário é permitida somente onde ele pode convertê-lo em  
trabalho excedente objetivado em bens excedentes, em valores excedentes que caem na posse  
do capitalista. Salta aos olhos do trabalhador a distinção entre o momento em que realiza o  
processo de trabalho e o momento em que realiza o processo de valorização do capital,  
gastando, em ambos os casos, a sua reserva de energias físicas e psíquicas. O resultado dessa  
processualidade é o mascaramento da exploração da força de trabalho e a captura, pelo  
capitalista, do máximo possível de mais-trabalho sem ter que liberar equivalente algum em  
troca do excedente de trabalho expropriado.  
81  
Aqui, num rápido parêntese, é obrigatório aludir que, como o capital é processo de  
valorização que se efetiva por intermédio da apropriação do trabalho excedente, as  
personificações do capital valem-se de duas maneiras distintas, mas não autoexcludentes, de  
expropriar o mais-trabalho.  
Fernando Araújo Bizerra  
A primeira é designada de mais-valia absoluta8 (absoluten Mehrwerts). Como  
interessa ao capitalista a parte da jornada de trabalho consolidada como trabalho excedente, já  
que é nela que se autovaloriza o seu capital, ele deve ampliá-la. O prolongamento desmedido  
da jornada de trabalho (variando, à época da grande indústria, de 8 até 14, 16, 18 horas diárias)  
associado à preservação do salário pago resulta, sem dúvida, numa maior lucratividade ao se  
ter o aumento absoluto do tempo de trabalho excedente. Da metade do século XIV até o fim do  
século XVII, o Estado elaborou leis compulsórias para o prolongamento ilimitado da jornada  
de trabalho, facilitando a extração da mais-valia absoluta. Com a complacência do Estado,  
atropelaram-se os limites máximos morais e físicos da jornada de trabalho. Tornou-se comum  
a usurpação do tempo para o crescimento, o desenvolvimento e a preservação do corpo; roubou-  
se o tempo para o consumo do ar puro e da luz solar; privou-se o tempo destinado às refeições,  
incorporando-o ao tempo de produção; reduziu-se o tempo do sono benéfico para a restauração  
do organismo exausto devido ao ritmo extensivo de trabalho; aumentou-se o material humano  
explorável pelo capital a partir da inserção da força de trabalho infantil e feminina.  
O capitalista, afirmando seu direito como comprador da força de trabalho, decide pelo  
aumento da jornada de trabalho além dos limites do dia natural por noite adentro, conserva o  
índice de tempo de trabalho necessário e eleva o grau de exploração para acrescer o tempo de  
trabalho excedente. Sendo impraticável manter em certos ramos a mesma força de trabalho  
ininterruptamente dia e noite, o capitalista institui a sistemática do revezamento de turnos, isto  
é, propõe uma alternância onde o trabalhador faça numa semana o trabalho diurno e noutra o  
trabalho noturno. Na produção da mais-valia absoluta, em vez da “conservação normal da força  
de trabalho determinar [...] o limite da jornada de trabalho”, é “o maior dispêndio possível diário  
da força de trabalho que determina, por mais penoso e doentiamente violento, o limite do tempo  
de descanso do trabalhador” (Marx, 1996a, p. 379).  
82  
Do trabalhador explora-se todo tempo de trabalho para que se obtenha mais-trabalho  
sem qualquer limite legal. Ao prolongar a jornada de trabalho, o capitalista amplia não só o  
tempo que usufrui do valor de uso da mercadoria força de trabalho, como também o processo  
de expropriação do mais-trabalho daí resultante. O trabalhador, “durante toda a sua existência,  
nada mais é que força de trabalho” e, “por isso, todo seu tempo disponível é por natureza e por  
direito tempo de trabalho, portanto, pertencente à autovalorização do capital”. Na realização da  
jornada de trabalho prolongada, destina-se um pequeno intervalo de descanso, sem o qual o  
8 A mais-valia absoluta não “é uma criação específica da produção do capital, pois existiu nas etapas passadas ou  
inferiores da história das sociedades de classes”, relacionando-se “à capacidade da classe dominante de estender o  
tempo de trabalho total de seus produtores” (Santos Neto, 2015, p. 60).  
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A expropriação do mais-trabalho no contexto da “caça apaixonada do valor”  
trabalhador vê-se impossibilitado de dar continuidade às suas tarefas. No mais, considera-se  
“pura futilidade” o tempo para convívio social, para a educação humana, para realizar  
atribuições sociais, para aproveitar o domingo etc. Em sua voracidade por mais-trabalho, o  
capital “não se importa com a duração de vida da força de trabalho. O que interessa a ele, pura  
e simplesmente, é um maximum de força de trabalho que em uma jornada de trabalho poderá  
ser feita fluir” (Marx, 1996a, p. 379, grifo do autor).  
A produção capitalista, que é essencialmente produção de mais-valia,  
absorção de mais-trabalho, produz, portanto, com o prolongamento da jornada  
de trabalho não apenas a atrofia da força de trabalho, a qual é roubada de suas  
condições normais, morais e físicas, de desenvolvimento e atividade. Ela  
produz a exaustão prematura e o aniquilamento da própria força de trabalho.  
Ela prolonga o tempo de produção do trabalhador num prazo determinado  
mediante o encurtamento de seu tempo de vida (Marx, 1996a, p. 379).  
Jornadas de trabalho extensas degradam a força de trabalho e abreviam a vitalidade  
do trabalhador. O que o capitalista recebe em mais-trabalho, o trabalhador perde em substância  
de trabalho. Na fábrica, prolonga-se o tempo de produção do trabalhador a expensas do  
encurtamento de seu tempo de vida. O cumprimento da jornada de trabalho compulsoriamente  
prolongada termina por originar “gerações humanas atrofiadas, cuja vida se consome depressa,  
que rapidamente se suplantam, como se fossem, por assim dizer, colhidas prematuramente”. O  
capital provoca a “degeneração da população industrial”, a qual leva, com efeito, ao  
“apodrecimento futuro da humanidade”. O que está explícito é que o capital, à medida que gera  
degradação física e mental, mortes prematuras e a tortura do sobretrabalho, não tem “a menor  
consideração pela saúde e duração de vida do trabalhador, a não ser quando é coagido pela  
sociedade a ter consideração” (Marx, 1996a, p. 382-383).  
83  
A classe trabalhadora, diante da sede vampiresca do capital por mais-valia absoluta,  
não teve uma conduta politicamente timorata. Abre-se, em decorrência, um confronto direto  
entre capital e trabalho iniciado no ambiente interno das fábricas e, de imediato, espalhado pelas  
ruas. As extensivas jornadas de trabalho introduziram um complexo de tensões, ocasionando a  
reação dos trabalhadores que, ao readquirir os seus sentidos, mobilizam-se, organizam-se e  
exigem do Estado limites legais ao impulso à prolongação da jornada de trabalho. Desencadeia-  
se, desde então, uma luta “ao redor dos limites da jornada de trabalho”. Frente a ela, o Estado  
que antes legitimou o prolongamento da jornada de trabalho regula, em meados do século XIX,  
o período, os limites e as pausas do trabalho para refeições e descanso, uniformizando  
legalmente a jornada de trabalho “de modo tão militarmente uniforme” como o “bater do sino”.  
Longe de ser produto de “alguma fantasia parlamentar”, a “formulação, reconhecimento oficial  
Fernando Araújo Bizerra  
e proclamação” da jornada de trabalho limitada nos ramos industriais submetidos à legislação  
fabril é o “resultado de prolongadas lutas de classes” (Marx, 1996a, p. 396).  
O Estado, em resposta à recalcitrância dos trabalhadores à prevalência da mais-valia  
absoluta, e visando garantir os interesses dos capitalistas, cria o quadro legal-institucional para  
que entre em cena a segunda maneira de expropriação do mais-trabalho: a mais-valia relativa9  
(relativen Mehrwerts). Aexpropriação desumana de mais-valia absoluta, mesmo em sua forma  
mais cruel, é o ponto de partida e o fundamento material necessário para a variante mais refinada  
(e também ideologicamente mais desconcertante) da exploração capitalista”. A crescente  
produção e apropriação da mais-valia relativa, um “sofisticado motor de exploração”  
(MÉSZÁROS, 2002, p. 680-681, grifo do autor), efetiva-se graças ao acúmulo de inumeráveis  
inventos e aperfeiçoamentos técnico-científicos que, subordinados ao imperativo autotélico da  
lucratividade, dão vantagens ao capital na sua ação expropriatória e contribuem para seu  
dinamismo autoexpansivo em conjunturas históricas distintas.  
Por via das inovações tecnológicas e das estratégias de controle vertical e horizontal  
da produção, o capital intensifica o ritmo de trabalho sem obrigatoriamente alongar o  
quantitativo de horas trabalhadas. O capital evolui para o comando irrestrito sobre o trabalho e  
estabelece no âmbito da produção, não sem consideráveis resistências, uma relação coercitiva  
que coage o trabalhador a executar trabalho que ultrapasse a satisfação do estreito círculo de  
suas necessidades vitais. Emprega meios para aumentar a força produtiva do trabalho e  
potencializar a exploração, encurtando relativamente o tempo de trabalho destinado à produção  
do equivalente ao valor da força de trabalho e acrescendo o tempo de trabalho excedente. Utiliza  
as descobertas científicas para que uma menor quantidade de trabalho possa produzir uma maior  
quantidade de produtos, reduzindo-se o valor da força de trabalho. Sob tais circunstâncias, à  
diminuição do trabalho necessário segue-se a extensão do mais-trabalho expropriado.  
Ao capitalista, personificando o capital, cabe cobrar do trabalhador a execução de  
seu trabalho metodicamente e com o grau adequado de intensidade. Produz-se mais em menos  
tempo mediante os progressos técnicos que, economizadores de trabalho, elevam a  
produtividade do trabalho. Os meios de produção favoráveis à lucrativa produção de  
mercadorias, ao serem empregados pelo capital, revolucionam as condições técnicas e sociais  
do processo de trabalho, permitindo uma maior expropriação do mais-trabalho. Com o  
constante aprimoramento técnico, menos tempo é demandado para o trabalhador criar mais  
mercadorias que anteriormente. E, com efeito, uma parte do tempo de trabalho que o  
84  
9 À distinção da ressalva feita na nota anterior, a mais-valia relativa “consiste no modo de expropriação do tempo  
de trabalho excedente específico do sistema do capital” (Santos Neto, 2015, p. 60).  
Libertas, Juiz de Fora, v. 24, n. 1, p. 66-89, jan./jun. 2024. ISSN 1980-8518  
A expropriação do mais-trabalho no contexto da “caça apaixonada do valor”  
trabalhador utilizava para si mesmo converte-se em tempo de trabalho para o capitalista. Altera-  
se, assim, a divisão em trabalho necessário e mais-trabalho durante a jornada de trabalho.  
Conquanto a redução da jornada de trabalho tenha sido motivo de muitas lutas, ao  
invés de diminuir a subordinação da força de trabalho aos ditames capitalistas e evitar sua  
degradação física, redundou na intensificação da exploração. As atividades incumbidas ao  
trabalhador tornaram-se mais céleres, elevando-se, em decorrência, o percentual de mais-  
trabalho expropriado. Se na vigência da mais-valia absoluta tratava-se da grandeza extensiva  
do trabalho, nas condições em que predomina a mais-valia relativa trata-se da grandeza  
intensiva. Promover o aumento do tempo de trabalho excedente implica, do lado do capital,  
levar adiante a intensificação da exploração da força de trabalho. Uma vez reduzida a jornada  
de trabalho, o capital vale-se de mecanismos tecnológicos que ampliam a capacidade de  
produção, abreviam o tempo de trabalho necessário e aprimoram a expropriação do mais-  
trabalho. A limitação da jornada de trabalho revela-se como um “progresso” alcançado através  
de enormes lutas sociais que, paradoxalmente, vem acompanhado por um “‘retrocesso’  
compensador” (Marx, 1996a, p. 396), pois, quando o capital se lança com força total à produção  
de mais-valia relativa, o que se perde em duração é recuperado em grau de esforço cobrado da  
força de trabalho.  
A expropriação do mais-trabalho, pela mediação da mais-valia relativa, só se realiza  
na escala em que se ampliam e se intensificam o ritmo das etapas da produção, chegando-se a  
um considerável nível de produtividade. Quando o capital adere à produção da mais-valia  
relativa, desenvolve – por necessidade socioeconômica, e não simplesmente tecnológico-  
instrumental – o sistema de máquinas que, funcionando articulado e ininterruptamente, permite  
a economia do tempo de trabalho necessário cristalizado em cada mercadoria individual  
produzida. A maquinaria, tecnicamente falando, é o meio mais poderoso de elevar a  
produtividade do trabalho e diminuir o tempo de trabalho necessário. Por atuar nas mãos do  
capitalista, a maquinaria acaba por gerar um “paradoxo econômico”: “o meio mais poderoso  
para encurtar a jornada de trabalho se torna o meio infalível de transformar todo o tempo de  
vida do trabalhador e de sua família em tempo de trabalho disponível para a valorização do  
capital” (Marx, 1996b, p. 41). A máquina, ditando o movimento geral da fábrica e exercendo  
mais pressão sob o trabalhador que se habilita na ação inteiramente particularizada de manejar  
uma ferramenta parcial, passa a ser o meio objetivo e sistematicamente aplicado de maximizar  
a expropriação do mais-trabalho.  
85  
Geralmente, o método de produção de mais-valia relativa consiste em habilitar o  
trabalhador, por intermédio de maior força produtiva do trabalho, a produzir um volume  
Fernando Araújo Bizerra  
superior de bens com o mesmo dispêndio de trabalho. Porém, com a redução da jornada de  
trabalho, com seu extraordinário impulso ao desenvolvimento das forças produtivas e à  
economia das condições de produção, outro fato ocorre: impõe-se “maior dispêndio de  
trabalho”, “tensão mais elevada da força de trabalho, preenchimento mais denso dos poros da  
jornada de trabalho, isto é, impõe[-se] ao trabalhador uma condensação do trabalho a um grau  
que só é atingível dentro da jornada de trabalho mais curta” (Marx, 1996b, p. 42-43). Para que  
o trabalhador efetivamente movimente mais força de trabalho, na jornada de trabalho eleva-se  
a regularidade, uniformidade, ordem, cadência, continuidade e energia do trabalho.  
Feitas essas observações, fica claro para o leitor que a mais-valia, seja ela absoluta  
ou relativa, é o trabalho não pago criado diretamente do próprio processo de produção e  
expropriado do trabalhador. Ainda que sua criação ocorra no momento da produção, a  
realização da mais-valia acontece na circulação, quando a mercadoria é vendida e passa pelo  
ciclo M’-D’. Amercadoria se torna capital-mercadoria. O capital reveste a forma de mercadoria,  
exerce a função de mercadoria.  
No ciclo M-D, o dinheiro adiantado “funciona como capital monetário, pois,  
mediante a circulação, converte-se em mercadorias de valor de uso específico”. No ciclo M’-  
D’, “a mercadoria pode funcionar como capital na medida em que, antes de começar a circular,  
traz consigo esse caráter pronto do processo de produção” (Marx, 2014, p. 131). M’ é igual ao  
valor do capital produtivo consumido em P adicionado da mais-valia. M’ é M+m. M’ é capital-  
mercadoria, forma modificada do capital produtivo P. A marca capitalista de M’ está na sua  
grandeza relativa de valor comparada com aquela que o capital produtivo continha antes de se  
ter convertido em mercadoria. M’ deve ser comercializada, percorrer a fase M-D e se converter  
em dinheiro acrescido (D’). M’, contendo em si capital valorizado, tem de passar pela  
metamorfose M’-D’ para que ocorra a transformação do capital-mercadoria da sua forma-  
mercadoria em forma-dinheiro na esfera da circulação.  
86  
O próximo passo do capital valorizado na forma M’ (M+m) é converter-se em D’  
(D+d). Para isso, ele ingressa novamente na circulação e se transforma em um montante de  
dinheiro. A realização do valor gerado na produção mediante a exploração da força de trabalho  
só é possível à medida que se converte Mem D’, que o capital passa da forma-mercadoria para  
a forma-dinheiro num curto tempo de rotação. M’ e D’ são formas distintas do valor de capital  
valorizado: a primeira a forma-mercadoria, a segunda a forma-dinheiro. Quando se concretiza  
o ciclo M’-D’, do lado da mais-valia tem-se a sua primeira transmutação da forma-mercadoria  
em forma-dinheiro; do lado do valor de capital, opera-se a sua reconversão à forma original de  
dinheiro, mas de dinheiro agregado de valor adicional. Na conclusão do ciclo, realizando-se o  
Libertas, Juiz de Fora, v. 24, n. 1, p. 66-89, jan./jun. 2024. ISSN 1980-8518  
A expropriação do mais-trabalho no contexto da “caça apaixonada do valor”  
capital-mercadoria, o valor de capital e o valor expropriado existem como dinheiro, ou seja,  
estão agora na forma de equivalente universal.  
O ciclo D-M-P-M’-D’, onde duas fases pertencem à esfera da circulação e uma à da  
produção, completa-se quando suas distintas fases se sucedem sem bloqueios. Nele, parte-se  
inicialmente da transformação de dinheiro em mercadoria; no seu final, alcança-se a  
transformação da mercadoria em dinheiro. Ocorre, no desenvolver do ciclo, uma dupla  
mudança de posição da mercadoria em sentido contrário. E isso a tal ponto que a forma capital-  
dinheiro aparece no início e no fim do processo. O capital, em todo o movimento D-M-P-M’-  
D’, “aparece aqui como um valor que percorre uma sequência de transformações coerentes e  
condicionadas umas pelas outras, uma série de metamorfoses, que constituem tantas outras  
fases ou estágios de um processo total” (Marx, 2014, p. 142).  
O capital assume na esfera da circulação as formas de capital monetário e capital-  
mercadoria. Na forma típica ao estágio da produção, o capital é capital produtivo. Juntas estas  
formas compõem, no ciclo total, o capital industrial – único modo de existência do capital que  
não apenas se apropria de valor excedente, mas também o cria no ato da produção; que traz à  
lume o antagonismo estrutural entre capital e trabalho. Capital monetário, capital-mercadoria e  
capital produtivo “não designam aqui, portanto, tipos autônomos de capital, cujas funções  
constituam o conteúdo de ramos de negócio igualmente autônomos e separados entre si”.  
Designam “apenas formas funcionais específicas do capital industrial, formas que este assume  
uma após a outra” (Marx, 2014, p. 143).  
87  
Uma vez completado o ciclo D-M-P-M’-D’, o processo deve ser reiniciado para  
ampliar a acumulação de capital. O capital, pela sua dinâmica interna, pelas suas determinações  
mais essenciais, é um tipo de propriedade privada que tem de se reproduzir em proporções cada  
vez mais ampliadas, a despeito das consequências imediatas ou de médio e longo prazo para o  
conjunto da humanidade. O capital investido deve, com o máximo de brevidade possível, ser  
valorizado, aumentando e retornando para o capitalista. Uma parte da mais-valia o capitalista  
destina ao pagamento dos seus gastos pessoais diários. Outra parte significativa é reconvertida  
em capital, possibilitando a continuidade da produção realizada nas unidades produtivas  
particulares. Com essa reconversão, o capital monetário reinicia sua função específica como  
capital monetário num novo ciclo, e assim sucessivamente. O desenvolvimento da produção  
guiada pelos imperativos objetivos de autorreprodução ampliada do capital torna imperioso o  
aumento da magnitude do capital empregado num dado empreendimento. À produção ampliada  
de mercadorias corresponde a reprodução ampliada de capital dinamizada pela sua acumulação.  
Fernando Araújo Bizerra  
Na sociedade de produtores de mercadorias, onde predominam as determinações  
fetichistas do valor, “A contínua retransformação de mais-valia em capital apresenta-se como  
grandeza crescente do capital que entra no processo de produção” (Marx, 1996b, p. 255). O  
capital, ao estimular métodos de elevação da força produtiva social do trabalho, eleva ao mesmo  
tempo a produtividade do trabalho e a produção da mais-valia. O modo de produção capitalista,  
que pressupôs certo grau de acumulação de capital nos seus primórdios, ao se consolidar torna  
exequível uma acumulação ilimitada de capital. E vice-versa: com a acumulação de capital  
gerado pela exploração de um exército de trabalhadores e expropriado pelos capitalistas  
desenvolve-se, nas diversas paragens do globo, o modo de produção verdadeiramente  
capitalista. O capitalismo é o modo de organizar a produção da riqueza nos parâmetros do  
capital, permitindo sua autovalorização, sua autorrenovação, sua acumulação e, por  
conseguinte, as condições elementares da sua ininterrupta reprodução sociometabólica.  
Considerações finais  
O capital, espécie peculiar de vampiro, ao longo da sua trajetória plurissecular só  
se produz e se reproduz ao encontrar as condições especiais de sua existência, incluindo-se  
aí a propriedade privada, certo nível de acumulação de riquezas e a disponibilidade de força  
de trabalho apta a ser comercializada e explorada, uma vez que seu possuidor encontra-se  
expropriado dos meios de vida e, por conseguinte, almeja o salário para garantir sua  
sobrevivência. O capital, graças aos revolucionamentos operados no campo das forças  
produtivas, livra-se das restrições objetivas e subjetivas típicas da produção autossuficiente,  
ultrapassa infatigavelmente os limites e os obstáculos com que historicamente se depara e  
logra um dinamismo singular que o torna um competente extrator de mais-trabalho antes  
inimaginável quando comparado às modalidades de metabolismo social precedentes,  
alargando e tornando praticáveis suas potencialidades produtivas.  
88  
Como foi exposto, o capitalista, personificação do capital, explora a força de  
trabalho e expropria o valor excedente por ela produzido sob certas circunstâncias  
históricas. A produção da riqueza no capitalismo, realizada em sintonia com os requisitos  
prevalecentes do modo de controle sociometabólico vigente, só adquire sentido à medida  
que ativa as possibilidades de valorização e crescimento do capital, tendo como mediação  
a expropriação do mais-trabalho. Os ritmos do desenvolvimento e a vitalidade do capital  
determinam a intensidade da expropriação do mais-trabalho que retroage e se reflete no seu  
dinamismo singular. Donde se conclui que, enquanto o capital controlar o processo  
produtivo, a referida expropriação é posta e reposta sob sua interferência direta. A dinâmica  
Libertas, Juiz de Fora, v. 24, n. 1, p. 66-89, jan./jun. 2024. ISSN 1980-8518  
A expropriação do mais-trabalho no contexto da “caça apaixonada do valor”  
autoexpansionista do capital estimula e, por sua vez, é estimulada pela expropriação do  
mais-trabalho. Sem expropriação do mais-trabalho não há reprodução do capital. O capital  
precisa manter, em bases duradouras, o mais alto grau possível de extração do trabalho  
excedente. O capital orienta-se para a expansão e para a expropriação do mais-trabalho.  
Se é verdade que o mais-trabalho não é uma invenção do capital, é igualmente  
verdadeiro que, no ubíquo sistema socioeconômico estabelecido, onde predomina  
generalizadamente o valor, onde a organização produtiva é orientada pelas demandas do  
mercado, o mais-trabalho se mostra em sua plena essencialidade e constitui, aqui e alhures,  
o leitmotiv da produção da riqueza. A despeito de todas as tentativas e dos  
correspondentes esforços empreendidos para superar o capital, a substância da produção  
exploradora mantém-se e a expropriação do mais-trabalho segue sendo feita em escala  
mundial no interesse exclusivo de uma classe; situação que coloca, uma vez mais, a  
necessidade de elucidação da essência exploradora-expropriatória do capital.  
É crucial, para que haja essa elucidação, recuperar a crítica marxiana acerca da  
anatomia do capital, reconhecendo nela a funcionalidade que a expropriação do mais-  
trabalho exerce e seus severos impactos no cotidiano dos trabalhadores. Apreender as  
categorias e as contradições que perpassam o sistema do capital na perspectiva de subvertê-  
lo completamente é, hoje mais do que nunca, uma tarefa urgente. Foi para este horizonte  
que se direcionou o esforço analítico ora findado.  
89  
Referências bibliográficas  
BIZERRA, Fernando de Araújo. Estado e expropriações: uma relação vital ao sistema do  
capital. 2022. 212f. (Doutorado em Serviço Social) Faculdade de Serviço Social.  
Universidade Federal de Alagoas. Maceió, 2022.  
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MARX, Karl. O capital: crítica da economia política. Volume I, Tomo I. São Paulo: editora  
Nova Cultural, 1996a. (Coleção Os Economistas).  
MARX, Karl. O capital: crítica da economia política. Volume I, Tomo II. São Paulo: editora  
Nova Cultural, 1996b. (Coleção Os Economistas).  
MARX, Karl. Salário, preço e lucro. 2 ed. São Paulo: Expressão Popular, 2012.  
MARX, Karl. O capital: crítica da economia política. Livro II. O processo de circulação do  
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MÉSZÁROS, István. Para além do capital: rumo à teoria da transição. São Paulo: Boitempo,  
2002.  
NETTO, José Paulo; BRAZ, Marcelo. Economia política: uma introdução crítica. 5 ed. São  
Paulo: Cortez, 2009.  
SANTOS NETO, Artur Bispo dos. A expropriação do trabalho e o desafio operário. Maceió:  
EDUFAL, 2015.  
Considerações sobre a atualidade da teoria  
social de Marx no contexto da pós-modernidade  
Considerations on the relevance of Marx's social theory in the context of  
postmodernity  
Inez Rocha Zacarias*  
Elziane (Ziza D) Olina Dourado**  
Isaura Gomes de Carvalho Aquino***  
María Fernanda Escurra****  
Resumo: O presente artigo, resultado de  
reflexões suscitadas a partir da participação das  
autoras no grupo de estudos e pesquisas sobre O  
Capital, de Karl Marx, tece considerações  
teóricas e metodológicas com o objetivo de  
afirmar a atualidade do pensamento marxiano,  
com ênfase na natureza radical e historicidade  
da sua crítica. Tais considerações são  
recuperadas no contexto do debate da pós-  
modernidade e de suas implicações para a vida  
social e a ciência. É constituído, portanto, por  
pesquisa teórica e reflexões das autoras,  
apresentando elementos da teoria social de  
Marx que são centrais na abordagem realizada,  
com aproximações ao debate da pós-  
modernidade.  
Abstract: This article, the result of reflections  
raised from the authors' participation in the  
study and research group on the Capital, by Karl  
Marx, weaves theoretical and methodological  
considerations with the aim of affirming the  
relevance of Marxian thought, with an emphasis  
on the radical nature and historicity of his  
critique. Such considerations are recovered in  
the context of the postmodernity debate and its  
serious implications for social life and science.  
It is therefore made up of theoretical research  
and reflections by the authors, presenting  
elements of Marx's social theory that are central  
to the approach taken, with approaches to the  
debate on postmodernity.  
Palavras-chaves: Teoria social; Marx; Pós-  
Keywords:  
Social  
theory;  
Marx;  
modernidade.  
Postmodernity.  
*
Assistente social; mestre e doutora em Serviço Social (PPG em Serviço Social da PUCRS). Professora Adjunta  
do Departamento de Serviço Social da UFRGS. ORCID: https://orcid.org/0000-0003-2325-9034  
** Assistente social; mestre e doutora em Serviço Social (ESS/PPG/UFRJ). Professora Adjunta de Faculdade de  
Serviço Social da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (FSS/UERJ), pesquisadora do Programa de Estudos  
do Trabalho e Reprodução Social (PETRES) e coordenadora do Laboratório de Imagem (LI); artista visual.  
***  
Assistente social (UFJF), mestrado em Serviço Social (UFRJ), doutorado (UERJ), pós-doutorado (UERJ).  
Professora Associado na Universidade Federal de Juiz de Fora. ORCID: https://orcid.org/0000-0002-3685-6199  
**** Assistente Social (Universidad Nacional de Rosario – Argentina), mestre em Serviço Social (UFRJ) e doutora  
em Serviço Social (UERJ). Professora Adjunta da Faculdade de Serviço Social da Universidade do Estado do Rio  
DOI: 10.34019/1980-8518.2024.v24.44272  
Esta obra está licenciada sob os termos  
Recebido em: 22/04/2024  
Aprovado em:05/06/2024  
Considerações sobre a atualidade da teoria social de Marx no contexto da pós-modernidade  
Introdução  
A atualidade, riqueza e magnitude da teoria social de Marx na compreensão do tempo  
presente revelam a fertilidade e densidade de seu legado. Há em sua obra, para além de  
indicações e pistas, bases estruturantes de uma forma original de pensar. Suas formulações,  
em estreita colaboração intelectual e política com Friedrich Engels1, têm nas condições  
materiais de existência, no modo de produção capitalista, na luta de classes e na história a força  
que move a compreensão da sociedade desvendando suas redes de significado, gênese,  
dinâmica e materialidade concreta.  
A perspectiva teórica-metodológica desta tradição fundamenta-se em uma concepção  
ontológica e no método materialista histórico-dialético que permite decifrar os principais  
dilemas enfrentados hoje no debate da teoria social.  
A teoria social de Marx tem sido objeto de polêmicas e confrontos, particularmente em  
questões afeitas ao debate da pós-modernidade, trazendo inevitavelmente para o centro desse  
debate a perspectiva teórica-metodológica que a sustenta e sua recusa radical a qualquer tipo  
de condescendência com o capital. Nesta direção é que Marx e Engels orientaram seus  
esforços, enquanto intelectuais e militantes, em prol da subversão da ordem do capital e pela  
emancipação humana (Marx, 2009), que seriam fruto exclusivamente da ação revolucionária  
em luta direta com a classe capitalista, detentora dos meios de produção.  
91  
Longe de estabelecer uma narrativa unívoca empobrecida e simplista do real, como  
querem alguns ciosos arautos da pós-modernidade, esta teoria social traz, em sua forma de  
apreensão dos fenômenos, a complexidade de suas múltiplas determinações. Isso significa  
que, em termos de cognoscibilidade, a forma manifesta aparece como coisa destituída de  
historicidade, isolada em seus circuitos de produção e circulação, de onde os fenômenos não  
são dados a conhecer como de fato o são: como relações sociais e não relação entre coisas.  
Distinguir a essência da aparência impõe, indubitavelmente, um percurso particular de  
reconstrução científica da realidade em que a categoria da totalidade é orientadora na  
compreensão das leis gerais, enquanto tendências, de constituição do processo global de  
produção capitalista e de como essas determinações mais abstratas se materializam na  
particularidade histórica, ou seja, quais as formas assumidas pelo capital e suas múltiplas  
determinações na realidade social.  
Para problematizar o debate da pós-modernidade entende-se oportuno, em um  
1
Colaborador intelectual ao desenvolvimento do trabalho de Marx e essencial à preservação de seu legado.  
Frederic Engels (1820-1895) cuidou pessoalmente dos manuscritos de Marx organizando e editando-os  
posteriormente à sua morte. Conferir Engels (2021) e Netto (2020, p. 131-139).  
Inez R. Zacarias; Elziane (Ziza D) O. Dourado; Isaura G. de Carvalho Aquino; María Fernanda Escurra  
primeiro momento, ressaltar que análises e estudos da vida social restringidos ao empírico  
imediato, limitados à compreensão do mundo reduzido ao dado tal como posto, manipulam  
fatos e fenômenos que procuram justificar. Desse modo, necessariamente, tais análises se  
legitimam perseguindo a eficácia no limitado horizonte desta forma de organização social que  
é hipostasiada. A dificuldade, o limite objetivo, é que uma ciência que reduz o mundo ao  
imediatamente dado tem de se legitimar perseguindo a eficácia no reduzido horizonte desse  
mundo, aspecto que possui implicações econômicas, sociais, culturais, éticas e políticas e  
que, necessariamente, reforçam e reproduzem esta forma de organização social e caracterizam  
o ceticismo do presente.  
Neste contexto, o presente artigo tece considerações teóricas e metodológicas com o  
objetivo de afirmar a atualidade do pensamento marxiano, no contexto do debate da pós-  
modernidade e de suas sérias implicações para a vida social e a ciência. Tais considerações  
são reflexões que resultaram da participação das autoras nos “Seminários de Estudos sobre O  
Capital”, desde o início de 2022, sob a coordenação da Prof.ª Dr.ª Marilda Villela Iamamoto2,  
contando com a participação de docentes e pesquisadores de diferentes universidades do país  
e do exterior. É importante registrar que o artigo representa uma primeira aproximação teórica  
que exigiu, considerando os limites objetivos postos em um texto desta natureza, priorizar  
alguns aspectos inicialmente considerados relevantes que, longe de esgotar as inúmeras  
reflexões suscitadas neste processo de estudo e pesquisa, abrem caminho para seu  
aprofundamento e continuidade. Em sua exposição, são apresentados, em um primeiro  
momento, elementos centrais à perspectiva teórico-metodológica da teoria social de Marx,  
para, em seguida, tecer aproximações ao debate da pós-modernidade.  
92  
Marx, crítica radical e verdade3  
É oportuno lembrar, a advertência realizada por Rosa Luxemburgo (2021, p. 19), que  
a principal obra de Marx, O Capital, assim como toda sua visão de mundo “não é nenhuma  
bíblia com verdades de última instância, acabadas e válidas para sempre, mas um manancial  
inesgotável de sugestões para levar adiante o trabalho intelectual, continuar pesquisando e  
lutando pela verdade”. A pensadora acrescenta que em todos os volumes dessa obra estão  
2
A proposta dos Seminários é apresentar a perspectiva teórico-metodológica de Marx sobre o processo de  
produção, circulação, assim como o processo global da produção capitalista com intuito de contribuir para a análise  
das transformações históricas do capital na sociedade contemporânea, suas implicações na órbita do trabalho e na  
análise dos fundamentos do Serviço Social, com ênfase no significado social da profissão e do trabalho do  
assistente social em uma perspectiva histórico-crítica.  
3 Para uma análise mais detalhada de alguns dos aspectos presentes neste item, ver: Escurra (2018).  
Libertas, Juiz de Fora, v. 24, n. 1, p. 90-103, jan./jun. 2024. ISSN 1980-8518  
Considerações sobre a atualidade da teoria social de Marx no contexto da pós-modernidade  
presentes as mesmas três condições principais: tudo o que sucede na sociedade capitalista não  
é efeito da arbitrariedade, mas resulta de leis que atuam de maneira regular, mesmo que os  
envolvidos não possuam nenhuma consciência disso; o contexto econômico não se firma em  
bases violentas que objetivam a pilhagem e o roubo; e, não existem atividades planejadas  
fundamentadas em uma razão social que atua sobre o todo.4  
Mandel (2001) chama a atenção que o pensamento dos dois fundadores do marxismo  
frequentemente foi censurado por seu “eurocentrismo”, na medida em que foi fortemente  
marcado pela história social e intelectual da Europa. Porém, o autor mostra que são censuras  
sem fundamento, tendo em vista que na medida em que o marxismo é resultado das  
contradições que surgiram na Europa devido ao amadurecimento da sociedade burguesa seria  
inviável o surgimento de tais contradições inicialmente na Ásia, na América ou na África,  
com incipiente desenvolvimento capitalista durante o século XIX.5  
Na crítica da economia política, Marx apresenta a minuciosa crítica realizada à  
economia vulgar que, limitada ao tratamento das relações aparentes de fenômenos relevantes,  
rumina na busca de uma explicação aceitável do material fornecido pela economia científica.  
Material esse para o uso da burguesia, se restringindo, desse modo, a “sistematizar as  
representações banais e egoístas dos agentes de produção burgueses como o melhor dos  
mundos, dando-lhes uma forma pedante e proclamando-as como verdades eternas.” (Marx,  
2015, p. 156).  
93  
A crítica radical desenvolvida por Marx demonstra que resultado da passagem à  
cientificidade, o caráter instrumental peculiar do conhecimento, não necessariamente resulta  
em uma ruptura. Neste particular, Medeiros (2013) lembra a diferenciação famosa realizada  
por Marx entre economistas vulgares e economistas clássicos e, analisando suas fragilidades,  
sublinha as críticas de Marx à economia vulgar que, em vez de partir da inspeção crítica das  
categorias utilizadas em teorias existentes ou na vida cotidiana, se afunda sucessivamente na  
procura de aplicar técnicas cada vez mais sofisticadas e sistematizar as categorias fornecidas  
na prática imediata. Assim, o pensamento vulgar, diante a infinita experiência humana, não  
4 Já no Prefácio da Primeira Edição de o livro I de O Capital, Marx explicita que “aqui só se trata de pessoas na  
medida em que elas constituem a personificação de categorias econômicas, as portadoras de determinadas relações  
e interesses de classes. Meu ponto de vista [...] pode menos do que qualquer outro responsabilizar o indivíduo por  
suas relações das quais ele continua a ser socialmente uma criatura, por mais que, subjetivamente, ele possa se  
colocar acima delas” (Marx, 2015, p. 80).  
5 “Mas se o capitalismo nasceu na Europa, ele tinha desde o início uma dimensão internacional, ou mesmo mundial,  
que o tornava dependente de tudo que se passava nos outros continentes. O impacto violento, desagregador,  
destruidor, desumano que o capitalismo exerceu sobre as sociedades pré-capitalistas da América, Ásia e África  
supera de longe seu impacto similar sobre a sociedade pré-capitalista da Europa ocidental, meridional, central e  
oriental. Marx e Engels eram sábios demasiadamente rigorosos e humanistas demasiadamente apaixonados para  
não perceberem, se indignarem e se revoltarem contra esses crimes abomináveis” (Mandel, 2001, p. 82-83).  
Inez R. Zacarias; Elziane (Ziza D) O. Dourado; Isaura G. de Carvalho Aquino; María Fernanda Escurra  
consegue escapar da contínua procura empiricista que impede a compreensão das estruturas  
que provocam os fenômenos, nem consegue esclarecer categorias em si mesmas enganosas.  
A economia vulgar, com efeito, não faz mais que interpretar, sistematizar e  
louvar doutrinariamente as concepções dos agentes presos dentro das relações  
burguesas de produção. Não nos deve surpreender, portanto, que ela,  
precisamente na forma de manifestação alienada das relações econômicas, nas  
quais essas aparecem, prima facie, como contradições totais e absurdas – e  
toda ciência seria supérflua se a forma de manifestação e a essência das coisas  
coincidissem imediatamente –, se sinta aqui perfeitamente à vontade e que  
essas relações lhe apareçam tanto mais naturais quanto mais escondida se  
encontrar nela a correlação interna, ao mesmo tempo em que são correntes  
para a concepção comum (Marx, 2021, p. 880).  
Escurra (2018) ressalta que a crítica de Marx (2015; 2021), no caso da economia  
política, demonstra que as falsas ideias possuem um papel necessário fundamentado nas  
estruturas sociais que elas representam. Para Marx, a economia burguesa apresenta categorias  
objetivas, pois se traduzem em formas de pensamento que, apesar de enganosas, possuem  
validade social ao representar a forma como as relações sociais se evidenciam aos sujeitos na  
produção.  
Trata-se de formas de pensamento socialmente válidas e, portanto, dotadas  
de objetividade para as relações de produção desse modo social de produção  
historicamente determinado, a produção de mercadorias. Por isso, todo o  
misticismo do mundo das mercadorias, toda a mágica e a assombração que  
anuviam os produtos do trabalho na base da produção de mercadorias  
desaparecem imediatamente, tão logo nos refugiemos em outras formas de  
produção (Marx, 2015, p. 151).  
94  
Nesta perspectiva, com base em Duayer (2001), Escurra (2018) acrescenta que ao  
reconhecer que essas categorias são objetivas para este modo de produção social e submetê-  
las a uma crítica radical, Marx obtém um duplo resultado: por um lado, afirma a objetividade  
das ideias correntes sobre o mundo e, por outro, não equipara todas as ideias sobre o mundo,  
posto que as ideias objetivas podem perfeitamente ser falsas, superficiais e, consequentemente,  
objeto de crítica.  
A autora registra, inclusive, que é relevante reforçar que Marx teoricamente sempre  
considerou o falso enquanto socialmente necessário, na medida em que em suas obras,  
após a análise crítica minuciosa,ele nunca abandona formas de consciência científica,  
artística, religiosa etc. que contam com validade social, apesar de absurdas, falsas e/ou  
incoerentes (Duayer, 2001). De fato, considerada a sua validade social efetiva, a crítica não  
possui o poder de anular praticamente a teoria ou concepção criticada (Escurra, 2018).  
Escurra (2018) reforça que, como sublinhado por Duayer (2001), Marx desenvolvia  
críticas rigorosas às teorias burguesas que considerava falsas, em menor ou maior medida, e  
Libertas, Juiz de Fora, v. 24, n. 1, p. 90-103, jan./jun. 2024. ISSN 1980-8518  
Considerações sobre a atualidade da teoria social de Marx no contexto da pós-modernidade  
elaborava uma teoria alternativa. Porém, sempre considerava a eficácia social das teorias que  
submetia a crítica e compreendia que a sua validade não estava relacionada com a sua  
veracidade. Além disso, dado que do ponto de vista burguês as teorias ficam restritas ao mundo  
da aparência, elas apresentam soluções parciais e contradições não resolvidas. Com isto, em  
oposição às perspectivas conservadoras das teorias burguesas, Marx formula uma teoria  
crítica que, tendo em vista a superação do modo de produção capitalista, articula de forma  
explícita a vida e as relações reais e as diversas formas de consciência que resultam dessas  
relações (Escurra, 2018).  
A autora resgata, também, este aspecto tratado por Lukács (2012, p. 284) ao observar  
que o jovem Marx, em sua tese de doutorado, aborda um problema que terá grande importância  
em sua obra: “a função prático-social de determinadas formas de consciência,  
independentemente do fato de elas, no plano ontológico geral, serem falsas ou verdadeiras”.  
De acordo com Lukács, a autora escreve que Marx, em uma passagem dessa tese, apesar de  
não admitir a existência de qualquer Deus, reconhece que a prática religiosa tem por  
pressuposto a existência de Deus, que adquire uma objetividade social a partir da própria  
imaginação compartilhada socialmente. Em outros termos, Marx reconhece que a existência  
social de Deus, independentemente de sua existência no plano ontológico geral, é pressuposto  
da prática religiosa, desse modo, para ele, o critério último do ser ou não-ser social de um  
fenômeno é dado pela realidade social (Escurra, 2018).  
95  
Portanto, conforme Lukács (2012), Marx procura mostrar que certa ideia que influencia  
a prática humana, apesar de ser falsa, não deve ser desconsiderada como puro erro de  
entendimento do mundo, visto que possui efetividade social, plausibilidade empírica, causa  
um comportamento efetivo e tem uma forma real de existência (Escurra, 2018). Diante disso,  
Escurra (2018) afirma que existe, desse modo, uma relação de mútua dependência entre  
objetos e relações sociais e a forma como são compreendidos por parte dos indivíduos. Em  
sua análise crítica da economia política, Marx ilustra essa dependência recíproca destacando  
a validade social das categorias da economia burguesa.  
Ainda em relação a essa característica do pensamento marxiano, Escurra (2018)  
assinala que Heinrich (2008) alerta que fica patente ao observar que, na crítica da economia  
política, a análise de Marx pretende dissolver e pôr de manifesto o absurdo das ideias às quais  
as categorias da economia política devem sua aparente aceitação, das representações que se  
produzem espontaneamente e que são consideradas autoevidentes. Diante disso, a crítica  
compreende simultaneamente a crítica do conhecimento e a crítica das relações de produção  
capitalista. Em outras palavras, a crítica que Marx desenvolve em O Capital abrange não só  
Inez R. Zacarias; Elziane (Ziza D) O. Dourado; Isaura G. de Carvalho Aquino; María Fernanda Escurra  
uma crítica da ciência burguesa e da consciência burguesa, mas também uma crítica das  
relações sociais burguesas (Escurra, 2018).  
Marx, “um analista crítico do mundo concreto” (Fontes, 2018, p. 1), revelou a lógica  
oculta inerente ao processo de valorização do capital e expôs sem qualquer tipo de disfarce o  
modo pelo qual se produz o mais-valor, trabalho não pago que é apropriado pelo capitalista e  
que sacramenta, nesse processo, a transformação do dinheiro em capital mecanismo central  
dessa forma histórica de organização econômica, política e social. É nessa dinâmica de criação  
de valor e mais-valor que faz sentido e requer a existência de um trabalhador, despossuído de  
qualquer condição a não ser aquela que é imprescindível ao capital e que unicamente possui:  
sua força de trabalho. Ela assume o caráter de mercadoria que entra no circuito de produção e  
reprodução social, e constitui a peculiaridade de ser a única que cria valor e mais-valor.6 “É  
exclusivamente do mecanismo da troca, ou seja, da lei do valor e do mais-valor que dela  
decorre, que Marx pouco a pouco extrai todos os fenômenos e relações da economia capitalista  
com uma lógica e uma clareza penetrantes.” (Luxemburgo, 2021, p. 24).  
Ao analisar como o dinheiro se transforma em capital e, especificamente, a compra e  
venda da força de trabalho, Marx (2015) também desmistificou as falácias reproduzidas pelos  
economistas clássicos ao reafirmarem os princípios iluministas como salvaguarda da  
naturalização do modo de produção capitalista. Segundo eles, o ser humano se mantinha  
“livre” em uma relação supostamente igual e fraterna.7 Portanto, revelou o cerne do que movia  
a teoria do valor até então em voga e evidenciou a lógica interna dos mecanismos de  
ocultamento e subtração do que efetivamente move as relações sociais concretas e sua  
dinâmica histórica.  
96  
Na crítica elaborada por Marx (2008) em relação à forma de agir dos economistas que  
compreendem as relações burguesas de produção como naturais e eternas é possível  
constatar, também, a historicidade do pensamento marxiano. Para eles, mostra Marx, as  
instituições da burguesia são leis naturais, independentes da influência do tempo, em oposição  
às do feudalismo consideradas artificiais. Nesta perspectiva, para os economistas as relações  
6 Cf.: Marx (2015, p. 241-251).  
7 Como demonstra Marx, “[a] esfera da circulação ou da troca de mercadorias, em cujos limites se move a compra  
e venda da força de trabalho, é, de fato, um verdadeiro Éden dos direitos inatos do homem. Ela é o reino exclusivo  
da liberdade, da igualdade, da propriedade e de Bentham. Liberdade, pois os compradores e vendedores de uma  
mercadoria, por exemplo, da força de trabalho, são movidos apenas por seu livre-arbítrio. Eles contratam como  
pessoas livres dotadas dos mesmos direitos. [...] Igualdade, pois eles se relacionam um com o outro apenas como  
possuidores de mercadorias e trocam equivalente por equivalente. Propriedade, pois cada um dispõe apenas o que  
é seu. Bentham, pois cada um olha para si mesmo. [...] E é justamente porque cada um se preocupa apenas consigo  
mesmo e nenhum se preocupa com o outro que todos, em consequência de uma harmonia preestabelecida das  
coisas ou sob os auspícios de uma providência todo-auspiciosa, realizam em conjunto a obra de sua vantagem  
mútua, da utilidade comum, do interesse geral” (Marx, 2015, p. 250-251).  
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Considerações sobre a atualidade da teoria social de Marx no contexto da pós-modernidade  
de produção burguesas são naturais, por conseguinte, eternas, independentes da influência do  
tempo: houve história, dado que houve instituições feudais, mas não háde mais.  
Sobre este aspecto, Postone (2005) também chama a atenção que a historicidade que  
caracteriza a teoria crítica de Marx demonstra a impossibilidade de uma crítica transhistórica  
e de validade absoluta, tal como pretendido pelas teorias de sua época. Se assim feito, a própria  
historicidade seria abolida, e o modo capitalista de produção seria considerado eterno.  
Apontamentos para o debate da pós-modernidade  
Segundo os pensadores pós-modernos, a partir de uma leitura limitada e reducionista,  
as transformações econômico-políticas e socioculturais contemporâneas são de tal monta  
“inovadoras” que a teoria social de Marx se torna “obsoleta” para a análise da sociedade. Para  
essa perspectiva, o marxismo teria uma raiz “exclusivamente” econômica ligada à lógica  
intrínseca do capital, ao antagonismo de classes e ao processo de exploração capitalista que já  
estariam superados no tempo presente. Exatamente por isso, é refutada pelos pós-modernos  
como se encerrasse em si mesma as impossibilidades de estabelecer mediações com a  
realidade social.  
A superação do capitalismo através da subversão de sua ordem e a realização da plena  
emancipação humana e sua defesa pelo marxismo provoca críticas do pensamento pós-  
moderno que lhe atribui características dogmáticas, racionalistas e deterministas em que o  
processo histórico é subordinado a um fim teleológico do progresso (Evangelista, 1992).  
Desse modo, desqualifica qualquer determinação que porventura situe a experiência histórica  
numa ótica de superação vinculada a um projeto revolucionário que recusa o status quo.  
Argumentam se tratar de uma explicação totalizante, insuficiente e incapaz de dar sentido e  
explicar o tempo presente. Nega as teorias que julga ser portadoras de verdades absolutas,  
porque inspiradas ou tradutoras da modernidade (Cassiano, 2018).  
97  
Nessa interpretação do marxismo, eivada de distorções e generalizações mais  
condizentes com a visão míope de quem as vê do que com seu conteúdo original, é apresentada  
uma perspectiva conformista cuja descrença na humanidade, incerteza e ceticismo diante da  
história torna-se o único veio possível de libertar o ser humano em seu aprisionamento e  
amarras a valores de uma sociedade supostamente já colapsada. Perde-se o horizonte de  
compreensão do processo histórico-social e da possibilidade de o sujeito intervir na história  
reiterando, assim, a lógica intrínseca do capital enquanto forma de produção e reprodução  
social.  
Este núcleo duro de análise resguarda o fundamento teórico-metodológico crítico que  
Inez R. Zacarias; Elziane (Ziza D) O. Dourado; Isaura G. de Carvalho Aquino; María Fernanda Escurra  
subjaz a recusa do fim da história, capaz de confrontar o subjetivismo aleatório, a irrazão, a  
efemeridade, volatilidade, imutabilidade e finitude, advogados por esse pensamento, em  
detrimento da razão crítica, histórica e dialética. A suposta crise da Modernidade, em  
desenvolvimento desde a queda do comunismo, ou socialismo real, na Europa Oriental e  
Central, trouxe desalento político e ideológico a franjas significativas de segmentos sociais  
que vislumbraram no imediatismo a satisfação das necessidades sociais como única  
alternativa ao sofrimento, exploração e alienação do trabalho na sociedade capitalista  
contemporânea. Instaura-se uma “crise política e teórica”, no entendimento de Evangelista  
(1992, p. 17):  
É crise política, porque acompanhada da ‘crise da teoria da revolução  
proletária’, na medida em que são postas em xeque as anteriores certezas  
teleológicas de um socialismo concebido como a realização de uma missão  
histórica, ditada como tarefa ‘ontológica’ a ser cumprida pelo proletariado, o  
‘sujeito revolucionário’. E, também, é crise teórica, com consequências na  
ampliação da crise política, porque a dinâmica da realidade social tornou-se  
impermeável a suas categorias explicativas. Atualmente, o marxismo seria  
apenas uma ‘fonte’ datada, com alcance já esgotado para ‘novas’ formulações  
e a produção de novos conhecimentos. Assim estaria aberto um período de  
‘transição para algo novo’ em termos de teoria social (Sader, 1986, p. 64)  
(Evangelista, 1992, p. 17).  
Nessa ótica, a razão não oferece mais subsídios para o conhecimento da realidade, dos  
processos e relações sociais porque, circunscrita à sua racionalidade técnica e instrumental,  
reduz os seres humanos a uma determinação material empobrecendo a sua singularidade e  
subjetividade.  
98  
Conforme já assinalado, para Marx e Engels (2007, p. 94), as relações materiais  
objetivas são constitutivas dos sentidos da história e da vida dos homens não partindo de visões  
simplistas ou mesmo ideações desvinculadas do “processo de vida real”. Portanto, parase  
chegar “aos homens de carne e osso” não se se parte “do que os homens dizem, imaginam ou  
representam, e tampouco dos homens pensados, imaginados e representados.”  
A partir do trabalho, a produção de valor e de mais-valor alicerçam o modo de  
produção capitalista e, dialeticamente, a despeito de controvérsias, indicam a revolução como  
possibilidade histórica de superação da ordem do capital, em face do antagonismo entre as  
classes sociais e de seus confrontos.  
O projeto político-social e crítico de Marx, constitutivo da Modernidade, apesar de não  
ser exclusivo (haja vista a existência de outras direções político-ideológicas de pensadores  
como Max Weber e Émile Durkheim que deram consistência ao projeto da Modernidade), está  
centrado na perspectiva da totalidade, sob o ponto de vista da classe trabalhadora, saturada de  
historicidade.  
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Considerações sobre a atualidade da teoria social de Marx no contexto da pós-modernidade  
A herança da Ilustração é, pois, heterogênea, manipuladora no sentido de  
possibilidades de mudanças e de transformações daí, expressa também capacidade  
emancipatória, autonômica, soberana, condensada de elementos e processos tensos e  
conflitantes. As relações sociais na sociedade burguesa podem, então, ser reconhecidas  
teórica, política e ideologicamente capazes de submeter à prova e não mais à intuição, ao  
misticismo ou, simplesmente, à fé. Esse conhecimento não é algo aleatório. É um sistema de  
relações articuladas e reais.  
A teoria social crítica de Marx está sedimentada na lógica da Modernidade a partir do  
ponto de vista da classe trabalhadora com objetivo emancipatório, social e político, para  
atender à proposta Iluminista, ou programática da Modernidade de uma burguesia forte que  
rompe com tudo que trava culturalmente o quadro societário de uma burguesia não ameaçada.  
Pensar aspectos relacionados a pós-modernidade em sua relação com a teoria social crítica  
supõe sustentar a sua recusa radical a qualquer tipo de condescendência com o capital ea sua  
natureza civilizatória, se comparada com os modos de produção anteriores, apesar da sua  
essência predatória.  
Considerações finais  
A pós-modernidade, enquanto expressão ideológica da realidade contemporânea, que  
se assenta nas transformações econômicas, sociais e políticas advindas desde os anos de 1970,  
tem mostrado nestas últimas décadas a sua funcionalidade para ocultar as determinações  
derivadas desse modo social de produção. Fragmentar para mistificar a realidade tem se  
constituído em um instrumento eficaz para evitar a problematização da ordem do capital.  
Apesar das transformações constantes e cada vez mais intensas, o capitalismo  
contemporâneo, nas palavras de Netto (2010, p. 258) “continua sendo capitalismo”, ou seja, é  
um modo de produção material que permanece produzindo e reproduzindo relações sociais,  
condicionando a vida social na sua totalidade. Apesar das suas reconfigurações, a essência do  
modo de produção capitalista, a exploração do trabalho, se mantém como característica  
inerente à sua estrutura e dinâmica. Contudo, o capitalismo exige novos meios e instrumentos  
para a sua apropriação e os novos processos sociais por ele determinados devem ser objeto  
constante de análise crítica.  
99  
A economia de trabalho vivo, marca da acumulação flexível, permitida pelo advento  
de novas tecnologias que vêm substituindo a força de trabalho de milhares e a perspectiva,  
para os próximos anos, de milhões de trabalhadores , vem acarretando num processo de  
expulsão de uma massa de pessoas no mercado de trabalho. Consequência mais que vantajosa  
Inez R. Zacarias; Elziane (Ziza D) O. Dourado; Isaura G. de Carvalho Aquino; María Fernanda Escurra  
para o processo de acúmulo e reprodução do capital, pois o desemprego estrutural constitui-se  
em elemento fundamental para o rebaixamento dos salários e o acirramento da  
competitividade entre trabalhadores, “a ordem do capital é hoje, reconhecidamente, a ordem  
do desemprego e da insegurança no trabalho” (Netto, 2012, p. 2010). Por essa lógica, a  
revolução técnica e científica tornou-se a meta a ser alcançada pelo capital, pois, dessa forma,  
livrou a burguesia de se comprometer com as exigências da classe trabalhadora, já que essa  
agora se encontra cada vez mais dividida.  
Sob essa nova lógica, o trabalhador passa a ser inserido de uma outra forma, pois ele é  
base de toda essa sociabilidade. Dessa forma, torna-se imprescindível a sua colaboração  
“espontânea”, pois os mecanismos de coerção estão cada vez mais aprimorados. O capital  
impõe a sua lógica em todas as instâncias da vida social, nos padrões de consumo, nos  
rearranjos das relações sociais, nas escolas, na formação profissional, na reestruturação ou  
desestruturação do Estado. Ou seja, invade a totalidade da vida social através de ferramentas  
cada vez mais aperfeiçoadas com o intuito de conquistar a filiação de todos ao seu projeto,  
tornando-o cada vez mais universal e dominante.  
Conforme Lima (2022), a burguesia busca novas formas de adesão ao seu projeto e  
essa adesão não pode perpassar somente via a coerção, a própria classe trabalhadora deve ser  
agente atuante no fortalecimento dessa engrenagem. Dessa forma, essa anuência convém para  
a absorção dos valores burgueses, da sua ideologia. Netto (2012) afirma que a esfera cultural  
enquanto espaço estratégico para o triunfo do controle da consciência das classes subalternas,  
tem sido campo privilegiado dessas disputas. A sociabilidade tem se reproduzido por  
mecanismos que até bem pouco tempo atrás eram inexistentes: Whatsapp, Facebook,  
Instagram, Meet, Telegram, Twitter, são alguns exemplos de redes sociais8 que em poucos  
anos tornaram-se ferramentas de contato que vêm transformando e moldando novas formas de  
relações.  
100  
Por esse caminho, ainda conforme Netto (2012, p. 211), as relações sociais se  
reconstituem enquanto imagem e semelhança das mercadorias, “a cultura incorpora as  
características próprias da mercadoria no tardo-capitalismo: a sua obsolescência programada,  
a descartabilidade e o imediatismo reificado”. É o reino do consumo que se sobrepõe às  
relações humanas, nada mais do que relações entre coisas, como já dizia Marx (2015). Essas  
8
“A dinâmica cultural do capitalismo contemporâneo, o tardo-capitalismo, é para-metrada por dois vetores, de  
natureza econômico-política e técnica: a translação da lógica do capital para todos os processos do espaço cultural  
(criação/produção, divulgação, fruição/consumo) e o desenvolvimento de formas culturais socializáveis pelos  
meios eletrônicos (a televisão, o vídeo, a multimídia)” (Netto, 2012, p. 212).  
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Considerações sobre a atualidade da teoria social de Marx no contexto da pós-modernidade  
coisas, ou seja, as mercadorias são nada mais, nada menos que objetos inanimados que  
passam a ganhar vida a tal ponto que determinam o modo como a humanidade se relaciona,  
através de uma reprodução social cada vez mais alienada. Todos são treinados a consumir  
cada vez mais um número de mercadorias cada vez maior, fazendo entrar em um círculo  
vicioso que reifica a realidade. Os sentimentos devem se traduzir nas mercadorias. Assim,  
tudo se torna efêmero e a realidade que se basta não ultrapassa a sua aparência, sobressaindo-  
se somente os fragmentos partículas, sem estabelecer as mediações necessárias para  
compreender a sua complexidade.  
Ainda que a consciência esteja cada vez mais disciplinada para privilegiar a dimensão  
imediata da vida social, tentativas para superação do sensível ainda que o sensível também  
deva ser objeto de compreensão e análise, pois não é parte ou etapa separada da essência  
mas a sua superação enquanto fragmento exige leituras que apreendem os múltiplos  
determinantes dos fenômenos. O grande desafio do tempo presente é afirmar a existência de  
uma totalidade.  
A década de 1970 marca a era em que as ideias da Modernidade e do próprio  
Iluminismo passam a ser questionadas intensamente. É o tempo marcado pela chamada pós-  
industrialização e a pós-modernidade, com o seu ápice na queda do muro de Berlim. É o fim  
da história, como alguns proclamam. Não há mais classe operária clássica e, portanto, luta de  
classes. Segundo a perspectiva pós-moderna, qualquer metanarrativa que se empenha em  
entrelaçar fatos e mediá-los com a estrutura são leituras totalitárias. Vive-se o império da  
micropolítica, do identitarismo e da substituição da ciência pelas narrativas. A ciência é  
desmerecida e o método científico é apenas uma estratégia usada por instituições de ensino  
que também são totalitárias por desmerecer o saber popular. Agora tudo é mero jogo de  
linguagem e “as verdades” tornam-se relativas a depender do discurso daqueles mais  
habilidosos. Basta ter o poder da oratória. Nada mais precisa passar pelo crivo científico ou  
qualquer experimentação, vale somente o lugar da fala dos partícipes desse jogo. É a era da  
pós-verdade.  
101  
A consciência pós-moderna é uma perspectiva, uma forma de compreender a  
realidade, mas de forma alguma corresponde a essa realidade. Ao contrário, ela desempenha  
opapel de mistificar essa realidade. Mas não há um mundo novo. O capitalismo continua sendo  
capitalismo. Obviamente, não há uma paralisia do tempo, pois muitos processos se  
ressignificaram. Contudo, as estruturas de exploração e domínio burguesas continuam mais  
fortes do que nunca. Exatamente por tentar eliminar a ontologia dos processos sociais,  
ignorando a historicidade dos fenômenos, que o pensamento pós-moderno é tão funcional a  
Inez R. Zacarias; Elziane (Ziza D) O. Dourado; Isaura G. de Carvalho Aquino; María Fernanda Escurra  
esse sistema.  
Observa-se o triunfo do indivíduo em detrimento da sociedade e isso transcorre via  
uma política de desqualificação total da esfera pública. Essa ideologia por ora dominante  
provoca transformações na arena política, promovendo mudanças implacáveis nas economias,  
nas instâncias socioculturais, nas relações entre a sociedade civil e o Estado. Enquanto há uma  
realidade que não se revela essencialmente, a dinâmica dos “de cima” encobre uma verdadeira  
anarquia de mercados que submete nações e seus povos aos seus interesses, se locupletando  
dos fundos e instituições públicas. Dessa forma, deixa as classes subalternas sob condições de  
vida que remetem ao início do capitalismo, onde reinava total ausência de regulações sociais.  
Também o Estado burguês, mantendo o seu caráter de classe, experimenta um considerável  
redimensionamento. A mudança mais imediata é a diminuição da sua açãoreguladora,  
especialmente o encolhimento de suas “funções legitimadoras” (Netto, 2012, p. 2013).  
Finalmente, cabe enfatizar, como inicialmente explicitado, que o presente artigo teve  
como objetivo tecer algumas considerações teóricas e metodológicas, com a finalidade de  
tratar a atualidade do pensamento marxiano, no contexto do debate da pós-modernidade e de  
suas sérias implicações para a vida social e a ciência. De acordo com as questões pautadas  
nestas considerações finais, abre-se um leque para novas reflexões.  
102  
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103  
Neoliberalismo: a lógica irracional do  
capitalismo em decadência1  
Neoliberalism: the irrationality of decaying capitalism  
Natália Perdomo dos Santos*  
Resumo: Este artigo propõe analisar, a partir de  
uma perspectiva pautada na tradição inaugurada  
pela obra marxiana, os fundamentos  
Abstract: This article aims to analyze, from a  
perspective grounded in the tradition  
inaugurated by Marx's work, the constitutive  
foundations of neoliberalism, which configure it  
as a strategy of reproduction of late capitalism.  
Stemming from the maturation process of  
bourgeois society, neoliberalism reformulates  
State's action to adapt it to the needs imposed by  
the new forms of accumulation management,  
wich, in face of the hegemony of interest-  
bearing capital, can only guarantee the  
valorization of value with an uncontrollable  
destructive power. It reveals the barbarism that  
constitutes this mode of production, especially  
in dependent capitalist. This stage results in the  
reconfiguration of the entirety of relations and  
social beings, which come to express the  
irrationalism of decaying capitalism in customs.  
This is the framework from which a critique will  
be woven of the mystifying thought formulated  
by the Foucauldians Dardot and Laval, as  
exposed in the book 'The New Reason of the  
World.' Despite purporting to be critical of  
neoliberalism, the book only scratches the  
surface of the problem to safeguard bourgeois  
society, representing, in this sense, the typical  
ideological deformation of this current stage.  
constitutivos do neoliberalismo, que  
o
configuram como uma estratégia de reprodução  
do capitalismo tardio. Emergente no processo  
de maturação da sociedade burguesa, o  
neoliberalismo reformula a ação do Estado para  
adaptá-lo às necessidades impostas pelas novas  
formas de gestão da acumulação que, diante da  
hegemonia do capital portador de juros, só pode  
garantir a valorização do valor com um poder  
destrutivo incontrolável. Este movimento revela  
a barbárie que constitui este modo de produção,  
e
especialmente exposta nos países de  
capitalismo dependente. Resulta desta etapa a  
reconfiguração das relações e dos seres sociais  
em suas múltiplas dimensões, que incorporam  
nos costumes o irracionalismo do capitalismo  
em decadência. Este é o marco a partir do qual  
será tecida uma crítica ao pensamento  
mistificador formulado pelos foucaultianos  
Dardot e Laval, exposta no livro 'A Nova Razão  
do Mundo'. O livro, apesar de propor-se crítico  
ao neoliberalismo, limita-se à epiderme do  
problema para salvaguardar a lógica estrutural  
da sociedade burguesa, representando, neste  
sentido, a típica deformação ideológica desta  
etapa corrente.  
Palavras-chaves: Neoliberalismo; Capitalismo  
Keywords: Neoliberalism; Late capitalism;  
tardio; Marxismo; Dardot e Laval.  
Marxism; Dardot & Laval.  
1
Esta análise foi elaborada a partir da revisão bibliográfica trabalhada na disciplina Política Social e Serviço  
Social, integrante do curso de doutorado da Universidade do Estado do Rio de Janeiro e ministrada pela professora  
Dra. Elaine Rosseti Behring.  
*
Mestre em Serviço Social pela Universidade Federal do Rio de Janeiro e doutoranda em Serviço Social pela  
Universidade do Estado do Rio de Janeiro. ORCID: https://orcid.org/0000-0003-2439-8474  
DOI: 10.34019/1980-8518.2024.v24.43747  
Esta obra está licenciada sob os termos  
Recebido em: 01/03/2024  
Aprovado em: 19/06/2024  
Neoliberalismo: a lógica irracional do capitalismo em decadência  
Introdução  
Este artigo propõe analisar os fundamentos constitutivos do neoliberalismo que, no  
curso do processo de maturação da sociedade burguesa, configuram-no como a expressão  
irracional do processo de reprodução do capitalismo tardio e revelam a barbárie constitutiva  
dessa sociabilidade.  
A análise que o sustenta foi elaborada no curso dos trabalhos da Comissão Parlamentar  
de Inquérito, responsável pela investigação dos atos golpistas que, no dia 8 de janeiro de 2023,  
buscaram dar continuidade ao governo neofascista que estava em curso. Os acontecimentos  
desse período sugeriam a suposta derrota da ultradireita, responsável pelo recrudescimento  
genocida do neoliberalismo no Brasil. A história demonstra, contudo, que a conservação das  
relações burguesas está intrinsecamente atada à violência como expressão do irracionalismo  
que norteia a etapa em curso e que extrapola as fronteiras nacionais.  
A partir do mirante (Lowy, 1998) da emancipação da classe trabalhadora como  
pressuposto à emancipação humana, será tecida, na segunda parte do texto, uma crítica ao  
pensamento mistificador formulado pelos foucaultianos franceses Pierre Dardot e Christian  
Laval, exposta em A Nova Razão do Mundo. O livro, que identifica manifestações imediatas  
do tempo corrente e que se propõe crítico ao neoliberalismo, tem ganhado relevância, inclusive  
no serviço social. Seus limites, todavia, o mantêm circunscrito às estreitas fronteiras  
fenomênicas das transformações societárias, incutindo-lhe contornos incognoscíveis que  
salvaguardam a sociedade burguesa.  
105  
É neste rastro que “a categoria da totalidade como pedra angular da gnose social” (Netto,  
1981, p. 41) segue como pressuposto que leva à defesa da tradição teórico-metodológica  
inaugurada por Marx, cuja ortodoxia, distante de negar a necessidade permanente de  
elaborações teóricas capazes de dar conta das novas manifestações do real, extrai do seu  
movimento histórico a sua verdade.  
1 - A longa etapa neoliberal e a espiral da violência no capitalismo tardio  
A derrota eleitoral do governo Bolsonaro foi a luz no final de mais um longo túnel  
atravessado pelos trabalhadores na história brasileira. A intentona golpista repetia em Brasília  
o fracasso de Donald Trump e seus asseclas no Capitólio. As investigações subsequentes  
resultaram em escândalos diários, que permitem demonstrar aos que insistem em não saber –  
que o finado governo fora um esquema de espoliação e superexploração (Marini, 2022)  
articulado sob a gerência de uma horda que congregava estirpes que não se pode adjetivar.  
Natália Perdomo dos Santos  
As notícias parecem a muitos “compensadoras”, como pílulas de esperança, figuradas  
na possibilidade de, como diria Herbert Vianna (1995), “fazer justiça uma vez na vida”. Isso se  
dava ainda que o legado de sua destruição se perpetuasse em distintas dimensões de nossa  
sociabilidade, como na subsunção do Estado ao capital portador de juros, expressa no Novo  
Arcabouço fiscal de 2023, que, apesar de mitigar a insanidade austericída (Granemann, 2019)  
do Teto de gastos de Bolsonaro, mantém a condição permanente de ajuste fiscal (Bhering,  
2018), sangrando o fundo público e as políticas sociais em nome do pagamento de dívidas  
infindáveis e não auditadas.  
O alívio, contudo, não é à toa. Sem precisar de um só disparo, foram cerca de 700 mil –  
e subnotificadas mortes por covid-19, até o ano de 2022. Tamanho desterro resultou não do  
movimento reprodutivo do RNA viral, mas de um governo irracionalista, cujo projeto de  
extermínio encontrou respaldo profícuo para sua tarefa no combate à ciência, à confiabilidade  
popular na capacidade preventiva das vacinas e às medidas protetivas garantidoras do  
isolamento social. Contudo, é preciso atentar-nos: o irracionalismo é característica não de um  
dado governo, mas de uma longa etapa2 de desenvolvimento da sociedade burguesa, na qual  
sucumbem as categorias forjadas pela Modernidade. Para o pensamento liberal, não há mais  
espaço para o humanismo, para o historicismo concreto, para a dialética e nem tampouco para  
a razão (Coutinho, 2010).  
106  
E se o reacionarismo virulento que se expressou política, econômica e ideologicamente  
em Bolsonaro não será com ele enterrado, tampouco o avanço do neofascismo (Boito, 2020) se  
faz particularidade nacional para dar-se por derrotado. Nos mesmos canais que noticiam a  
revenda e a recompra das joias sauditas em nome do inelegível ex-presidente, assistimos nossos  
vizinhos argentinos rumarem ao abismo no qual, a menos de um lustro, caímos.  
Seguramente, a vitória nas prévias eleitorais da tosca figura de Javier Milei não se  
sustenta sobre as excentricidades de um candidato tão ultra(neo)liberal a ponto de defender a  
comercialização de órgãos3, para compensar o despojo dos direitos. Os projetos políticos que  
radicalizam seu modus operandi, localizando-se à direita dos liberais clássicos, refletem o  
“espírito deste tempo”, ainda que portem diferentes traços, variáveis de acordo com o terreno  
no qual emergem. Podem ser abertamente xenofóbicos na Europa, como não poderiam ser no  
Brasil; revelam aqui um peso militarista explícito, como não seria aceito na Argentina. Podem  
2 Etapa esta que não demora a revelar-se na história da burguesia, que encontra os limites de seu sistema filosófico  
na contradição da sociedade de classes, que a partir de 1848, tornava-se inconteste.  
3 Liberdade que não comtempla a legalização do aborto, que há tão pouco tempo poderia ter encontrado seu rumo  
na Argentina para salvar as vidas das mulheres postas na clandestinidade.  
Libertas, Juiz de Fora, v. 24, n. 1, p. 104-125, jan./jun. 2024. ISSN 1980-8518  
Neoliberalismo: a lógica irracional do capitalismo em decadência  
até ser autodeclarados anarco-capitalistas, como Milei; mas, em última instância, convergem  
sempre em uma mesma desembocadura: na radicalização neoliberal, amplificadora do conjunto  
das desigualdades. Para tal, podem admitir cariz neofascista, sustentados na apologia à  
violência e na defesa do extermínio dos inimigos, na crítica superficial ao sistema, em que  
suportam o autoritarismo e o engessamento das instituições liberais e na existência de um  
movimento social que apoia suas características. Foi assim com Bolsonaro e com aquele que,  
no pior e mais provável cenário, venha a ser o próximo presidente argentino.  
Embora este breve comentário não trate de uma análise da conjuntura, ela corrobora o  
debate porque, quando analisada criticamente, expressa a trajetória societária na qual se  
articula. Tratamos, sim, da análise do movimento da lógica irracional da sociedade burguesa,  
agudizada pela etapa chamada tardocapitalismo por Mandel (1982). Esta foi inaugurada pelas  
transformações societárias que eclodem na década de 1970, ainda que previamente germinasse  
no processo metabólico da sociedade da mercadoria, e agrega contradições que incorporam e  
vão além daquelas discutidas por Lenin na análise do Imperialismo clássico (Netto, 2011).  
Este estágio de desenvolvimento do capital, que só pode ser superado pela própria  
superação do capitalismo, permanentemente admite novas e distintas formas, que se tornam  
cada vez mais violentas, conforme se generalizam. Sua reprodução traz consigo um caminho  
para sua viabilização: o Neoliberalismo, que, em 1973, ensaia no golpe militar de Pinochet sua  
ascensão e hegemonia, é expressão da urgência em acelerar os processos de rotação de capitais,  
no curso da incontornável tendência decrescente da taxa média de lucros. Esta condição vai  
atravessar a idade dos monopólios e se tornará mais profunda a cada nova depressão econômica,  
ainda que os fatores contrarrestantes do capital (Marx, 2017) possam criar ondas ascendentes  
107  
em determinados intervalos históricos.  
O neoliberalismo, e a violência que o caracteriza, toma força no processo de maturação  
e apodrecimento das relações tipicamente burguesas, e impõe a reformulação da economia e da  
ação do Estado, que serão capazes de criar o caldo cultural necessário à constituição de um  
novo ser social, adequado às novas demandas da produção e reprodução social do  
tardocapitalismo. O desencadeamento da neoliberalização, no curso do desenvolvimento  
desigual e combinado da sociedade (Trotsky, 1977), conforme o próprio Estado, admitirá  
formas particulares de manifestação nas distintas regiões do mundo. Tais diferenças, no entanto,  
serão costuradas por determinações de caráter universalizante, sendo o fortalecimento da fração  
Natália Perdomo dos Santos  
parasitária da burguesia, que ascende com a hegemonia do capital portador de juros4, a mais  
incontestável.  
A tomada da direção societária por essa forma capital engendra uma incompatibilidade  
insustentável entre as transações financeiras da riqueza imaterial e aquela que se pode de fato  
enfiar nos bolsos. Este cenário leva à busca constante por novos nichos de acumulação que  
permitam a captura de valores reais, capazes de sanear, ainda que temporariamente, o  
desequilíbrio entre a ficção e o valor real socialmente produzido. A resultante objetiva na vida  
do trabalhador é a agudização da precariedade, que se consolida não apenas no Brasil, ou no  
conjunto dos países dependentes, como é de costume, mas que embrenha suas raízes pelo  
mundo como uma incontrolável avalanche de destruição.  
Apesar da aceleração dos motores expansionistas da burguesia monopolista, o capital  
funcionante encontra óbices cada vez maiores à extração do valor capaz de remunerar a si  
mesmo e ao capital portador de juros. Por isso, a captura do fundo público formado pelo  
trabalho e sua conversão em capital torna-se essencial ao processo ampliado de reprodução  
capitalista, atingindo, conforme Behring (2021), níveis qualitativamente distintos das etapas  
anteriores. Este mecanismo se demonstrou, depois do desenvolvimento da indústria bélica e das  
guerras necessárias à realização de suas mercadorias, como a melhor alternativa para tentar dar  
corpo aos fantasmas da especulação (Marx, 2017), os quais, por mais que se esforcem, não  
encontram lastro equivalente na realidade.  
108  
Esta “tarefa” não é simples e impõe a subordinação geral do conjunto social, como  
sinaliza Fontes (2010). É preciso converter bens naturais em commodities, assalariados em  
empreendedores individuais que recorrem ao capital portador de juros na tentativa de abrir ou  
desafogar seus negócios. Direitos são convertidos em privilégios, empregados em  
colaboradores, solidariedade em concorrência. Valores decrépitos se insinuam como novos, o  
que só é possível a partir de uma profunda alteração da morfologia do trabalho (Antunes, 2013)  
transformadora da própria classe que, fragmentada, é condicionada a uma práxis  
individualizada e estéril. Para tal condução, constitui-se, a despeito da ideologia do  
minimalismo, um Estado que é mais forte do que nunca. Mais que isso, um Estado que é  
máximo para o capital (Netto, 2011), que, em nome de sua gigantesca corpulência, tudo engole,  
deixando para o trabalho, e só para ele, o Estado mínimo.  
4
Importa salientar que essa hegemonia do capital portador de juros não resulta de uma disputa entre frações da  
burguesia, mas sim do limite imposto pelo próprio desenvolvimento da sociedade à realização de mercadorias, que  
encontram cada vez mais dificuldades para efetuar seu "salto mortal" (Marx, 2014, p. 180) e garantir o metabolismo  
societário.  
Libertas, Juiz de Fora, v. 24, n. 1, p. 104-125, jan./jun. 2024. ISSN 1980-8518  
Neoliberalismo: a lógica irracional do capitalismo em decadência  
Por isso, as novas manifestações do neofascismo ainda que decaiam numa nação,  
reerguem-se em outras, seja através de um mandato ou de uma nova guerra, sem nunca tornar  
a violência prescindível, se considerarmos o complexo em processo de totalização (Lukács,  
2003) que internacionalmente caracteriza a sociedade burguesa. A violência multifacetada é a  
força motriz principal da permanência da sociedade da mercadoria, sejam elas concretas ou  
intangíveis, e ainda que sua brutalidade opere nos marcos dos regimes democráticos. Desvela  
assim os limites históricos atingidos por uma sociabilidade que, para garantir sua reprodução  
tardia, hipertrofia sua condição predatória, adquirindo tamanha capacidade destrutiva, que  
assume contornos autofágicos.  
Certamente, não se discute que a sociedade do capital e seu Estado se equilibram entre  
a coerção e o consenso para manter a sua ordem anárquica. Esta é a marca das relações sociais  
fundadas na antinomia do capital e trabalho, desde que a classe operária se tornou capaz de  
buscar sua projeção societária particular, que é nada mais do que a destruição de todo  
particularismo de classes. Mesmo os regimes declaradamente autocráticos tiveram de caminhar  
por estes atilhos contraditórios e complementares. E é esta antinomia que não deixa alternativa:  
se a necessidade de valorização dos capitais não permite concessões à classe trabalhadora, ainda  
que como tal esta não se reconheça, é preciso engrossar o caldo da força bruta. O consenso,  
originalmente materializado nas políticas sociais que internacionalmente são resumidas pela  
privatização, focalização, descentralização neoliberal (Behring, 2003) é cada vez garantido  
pela ideologia irracionalista.  
109  
Encontramos assim a existência de um fio condutor que conecta não apenas os traços  
da barbárie burguesa, que na década de 1970 cria novos e mais profundos modos de ser, à  
barbárie contemporânea. As autocracias, que outrora tomaram os países de capitalismo  
dependentes para conter a ação revolucionária ascendente, foram pressupostos necessários à  
nova onda neoliberalizante, por terem sido capazes de aniquilar não apenas as organizações do  
trabalho, mas os seus oponentes e os espaços de sociabilidade que cultivavam as novas gerações  
de lutadores. Permitiram ao capital um ganho de tempo indispensável para seu rearranjo.  
Neste percurso, os regimes democráticos são convertidos em regimes suficientes para o  
desenvolvimento da violência neoliberal em toda a sua essência e o neofascismo, como  
fenômeno novo (Boito, 2020), não emerge como resposta a uma ameaça revolucionária a ser  
derrubada; mas como meio de garantir o avanço da acumulação capitalista para além das  
barreiras da superexploração, eliminando as reminiscências da velha socialdemocracia, dentro  
dos próprios marcos do seu regime.  
Natália Perdomo dos Santos  
O neoliberalismo consolida-se como estratégia fundamental de conservação da  
sociedade burguesa, sem a qual não seria possível garantir o equilíbrio, cada vez mais instável,  
do processo de valorização do valor e neutralizar a revolta, mesmo que despolitizada,  
desorganizada e em estado de pulverização, que se expressará frente a um modo de produção e  
reprodução social que esgotou suas capacidades civilizatórias (Mészáros, 2002). E não  
necessariamente por sua eficácia, mas pela falta de alternativas haja vista a incapacidade de  
reverter uma crise que passa a portar caráter estrutural (Mészáros, 2009) tornou-se, até então,  
incontornável à permanência do tardocapitalismo.  
Tal afirmação está, contudo, distante de sugerir que os fenômenos sociais típicos do  
neoliberalismo contemporâneo se apresentem como na década de 1970. Outrossim, diante de  
crises cada vez mais profundas e longas, que não apenas se defrontam com a queda das taxas  
de lucro, mas também com a queda da massa de lucros, como ocorrido na crise dos subprimes  
de 2008, o capital é obrigado a reinventar-se. E, sem dúvidas, é pleno de capacidades para tal,  
ainda que revele sua essência destrutiva. Essa se expressa não somente na economia, mas no  
meio ambiente, na política, na decadência ideologia, nas capacidades intelectivas e práticas da  
humanidade, em seu estado psicofísico, na estética, na vida do novo ser social, forjado à  
imagem e semelhança do capitalismo decadente.  
Essa base material sobre a qual sustentamos a crítica ao neoliberalismo, no entanto, não  
é consensual mesmo entre seus críticos. A própria cultura herdeira do estruturalismo, que é  
expressão teórica e ideológica da etapa decadente do capital, é capaz de olhar-se no espelho e,  
ao contrário de Narciso, achar feio o que vê. Só não pode perscrutar sua imagem a ponto de  
reconhecer nela um conteúdo que também faz parte do problema.  
110  
Como todo produto social, o neoliberalismo se transforma no curso de seu  
desenvolvimento, mas somente a partir de seus fundamentos ontológicos e não dos discursos  
produzidos sobre si mesmo, pode ser compreendido e enfrentado. Esse é o caminho teórico-  
metodológico oposto ao percorrido pela crítica romântica, avessa não à sociedade de classes,  
mas à razão moderna, e que, ao livrar-se “das categorias capazes de apreender subjetivamente  
essa racionalidade objetiva, categorias que englobam, superando, as provenientes do "saber  
imediato" (intuição) e do "entendimento" (intelecto analítico)” (Coutinho, 2010, p. 28), não é  
capaz de extrair a essência da realidade, que é senão expressa por seu movimento.  
Libertas, Juiz de Fora, v. 24, n. 1, p. 104-125, jan./jun. 2024. ISSN 1980-8518  
Neoliberalismo: a lógica irracional do capitalismo em decadência  
2 - Dardot, Laval e a Razão dos franceses  
A obra A nova razão do Mundo, dos foucaultianos franceses Pierre Dardot e Christian  
Laval, publicada na França em 2009, chega ao Brasil em um momento sui generis de nossa  
história. O golpe de novo tipo (Demier, 2017) ocorreu em um país cuja ideia de nação foi forjada  
à base de sucessivos golpes de Estado, mas que, no ano de 2016, testemunhou a capacidade  
renovadora de “suas tradições”. A derrubada de um governo democraticamente eleito se  
sustentou não pela força dos canhões, mas sobre os próprios alicerces do regime democrático.  
Deu-se fim ao segundo mandato de Dilma Rousseff, sem que ataques misóginos fossem  
poupados. Foi interrompida a sequência de governos petistas, deterioradas as já rarefeitas  
conquistas deste período e destruídos os direitos históricos, ainda que insuficientes, que o  
antecederam.  
Neste cenário, as teses de Dardot e Laval ganham eco considerável no campo crítico à  
viragem da burguesia, que assume a gestão do Estado a partir de seus representantes diretos.  
São especialmente insufladas pela necessária imposição de pensarmos as transformações do  
neoliberalismo, diante de um cenário de generalizada insegurança e dilaceração vertiginosa das  
condições de vida.  
O ensaio dos franceses propõe analisar o que seria o processo de continuidades e roturas  
ocorridas desde a naturalização das teorias constituídas pelos liberais clássicos do século XVIII.  
Apontam que a exacerbação do Laissez-faire teria sido interrompida pelo que os autores  
chamam de “crise de governamentalidade do liberalismo”, desdobrada do que chamamos nós  
de emergência da “questão social”. Essa crise de legitimidade teria compelido o remanejamento  
teórico e interventivo do papel do Estado, que precisava dar respostas políticas para enfrentar  
os processos de disputa que, especialmente a partir da Comuna de Paris de 1871, musa  
inspiradora da vitoriosa Revolução Soviética de 1917, ameaçavam a reprodução da sociedade  
burguesa.  
111  
Este movimento gerou uma rápida reação, que teve como marco o Colóquio Walter  
Lippmann, de 1938, quase dez anos antes da formação da Sociedade Mont Pèlerin, como bem  
sinalizam os autores. No Colóquio, surge um conjunto de elaborações que permaneceria  
marginal por mais de 30 anos, mas que bem definiu duas correntes de um nascente pensamento  
neoliberal: o ordoliberalismo alemão, encabeçado por Walter Eucken e Wilhelm Röpke, e o  
neoliberalismo austro-americano, que teve Friedrich Hayek como principal expoente. Essas  
correntes não pretendiam reabilitar o liberalismo clássico, como demonstrou Friedman (2003)  
com a popularização da renda básica universal, na década de 1960. Prenunciavam uma política  
Natália Perdomo dos Santos  
que refletiria o porvir, mas que somente se expressaria no fim da onda longa ascendente que  
marcou a década de ouro do capitalismo.  
Os autores, todavia, não apenas declaram suas intenções de pensar o neoliberalismo  
desde as raízes até a sua morfologia contemporânea. Eles se ocupam, antes de mais nada, da  
crítica aos seus analistas, ou mais precisamente aos analistas marxistas, como exposto na  
introdução do livro. Neste primeiro momento, anunciam o propósito de enfrentar o que,  
segundo eles, caracterizaria um erro de diagnóstico realizado acerca do Neoliberalismo.  
Dardot e Laval parecem admirados com a longevidade neoliberal ao identificarem sua  
permanência, ainda que em meio à crise de 2008, famosos neoliberais, como Joseph Stiglitz,  
anunciassem prematuramente a derrocada do projeto que defenderam. Levantam, assim, com  
inegável truísmo, a questão que não quer calar: como é possível que apesar das tão perversas  
consequências das políticas neoliberais, elas sigam existindo, sem encontrar pelo mundo  
maiores resistências?  
A chave de resposta desta questão não tarda a aparecer em A Nova Razão do mundo.  
Ela estaria exatamente na política, mas não na macropolítica. Propõem os autores a noção  
biopolítica de Foucault5, que enfatiza a influência do poder sobre os corpos, que são tanto alvo  
quanto agentes das relações de poder, gerando um estado de sujeição dos indivíduos entre si e  
consigo mesmos, independentemente da própria ação do Estado. Dardot e Laval discutem o  
neoliberalismo pela via da reflexão sobre o modo de governo e suas estratégias, abordando não  
apenas o que chamam de aspectos negativos como os direitos que ele destrói , mas o que ele  
é capaz de criar no campo das relações sociais, e que determinará uma forma de existência, uma  
dada subjetividade produzida pelo “admirável mundo novo”6, que é o seu neosujeito.  
É a partir do marco do problema da governamentalidade7, desenvolvido por Foucault  
no curso Segurança, território, população, e apresentado no Collège de France (1977-1978),  
que Dardot e Laval acreditam traçar o diagnóstico correto sobre o neoliberalismo,  
desconstruindo “os limites do marxismo”; ou daquilo que a parelha acredita ter entendido das  
correntes múltiplas, distintas e muitas vezes divergentes que do pensamento Marxiano  
derivam, mas que, como batatas, são por eles postas no mesmo saco.  
112  
5 Michel Foucault foi um historiador e filósofo pós-estruturalista francês.  
6 O romance de Aldous Huxley foi publicado em 1932 e apresenta um mundo distópico, que combina tecnologia,  
manipulação psicológica e uma profunda alteração das relações sociais.  
7
A questão da governamentalidade não se finda apenas na ação do Estado, mas compreende o conjunto de  
instituições e articulações capazes de gerar uma conduta disciplinadora das ações individuais, que resultam na  
gestão do corpo social.  
Libertas, Juiz de Fora, v. 24, n. 1, p. 104-125, jan./jun. 2024. ISSN 1980-8518  
Neoliberalismo: a lógica irracional do capitalismo em decadência  
Teremos assim a proposição de que os marxistas se fecham na concepção “que faz da  
‘lógica do capital’ um motor autômato da história”; “reduzem a história a uma repetição dos  
mesmos roteiros, com as mesmas personagens vestidas com novos figurinos”. Os franceses  
afirmam ainda que a tendência à centralização de capitais exposta em O capital caracterizaria  
uma lei natural, e encontram no marxismo o suposto e requentado determinismo da “ruína final”  
e do socialismo como desaguadouro inevitável da história. Em síntese, e conforme os próprios,  
não seria possível contentar-nos com Karl Marx e Rosa Luxemburgo para desvendar os  
mistérios da contemporaneidade, pois insuficiente seria “a interpretação marxista, por mais  
atual que seja” (Dardot; Laval, 2023, p. 21).  
Apesar de buscarem uma posição original, supostamente destacada tanto do pensamento  
dominante quanto da tradição marxista, a posição “não ortodoxa” dos autores combina  
ecleticamente matrizes teórico-metodológicas absolutamente distintas. Independente dos vieses  
que daí derivam, é notório que a defesa de sua tese é precedida da crítica a Marx, ainda que  
com a superficialidade dos liberais. Incidem assim na mesma vulgata que vem sendo utilizada  
desde o século XIX, para deformar e falsificar a teoria Marxiana e assim justificar a ordem do  
capital. E o fazem, ainda que não se declarem defensores da sociedade burguesa, mas por  
considerarem que este não é mais o ponto central ou por desconsiderarem qualquer horizonte  
que a ultrapasse, como fica expresso no fatalismo que norteia a obra.  
113  
2.1 - O Estado e o neoliberalismo  
Os franceses afirmam que, ao contrário da visão simplista de que os mercados teriam  
conquistado o Estado e, a partir disto, dominado a sua política, teria sido justamente através  
deste que se daria a universalização do modelo empresarial na economia. Põem-se, desta forma,  
a desenvolver uma discussão assemelhada ao velho questionamento sobre se o primeiro a  
chegar teria sido o ovo ou a galinha, quando já há muito se sabe que galinhas não podem  
anteceder a existência dos ovos.  
Não obstante, e buscando acordos com os próprios autores, que recuperam corretamente  
a concepção de que o mercado não pode atuar sozinho, sendo do Estado a mão não tão invisível  
que garante sua motilidade, podemos afirmar que tampouco atuaria o Estado como ser flutuante  
sobre as classes e dotado de interesses próprios. Nos demonstra a história e desta não se pode  
abrir mão que é a disputa de projetos societários e a correlação de forças estabelecida em cada  
particularidade do tempo e do espaço a determinante não apenas do tipo de governo, mas do  
tipo de regime e, em situações especiais, do tipo de Estado que será instituído.  
Natália Perdomo dos Santos  
Certamente, devemos enfatizar o papel decisivo do Estado para o que chamou Chesnais  
(1996) de “mundialização do capital”, mas não se pode perder de vista que a constituição das  
sociedades produtoras de excedentes, antecede o Estado como forma de organização social.  
Destaca-se ainda que o Estado não é uma coisa como bem dizia Marx sobre o próprio capital  
(2014), nem um ser monolítico. Deve ser entendido, conforme Harvey (2006), como uma  
relação social em processo, que se materializa historicamente através de um conjunto de forças  
e instituições que determinam e normatizam elementos da sociabilidade, inclusive daquilo que  
caracteriza a transgressão. Mandel (1985, p. 335) afirma que “suas funções não podem ser  
derivadas diretamente das necessidades da produção e da circulação de mercadorias”, pois  
muito antes da sociedade das mercadorias, também o Estado estava posto, nas suas distintas  
formas, respondendo pela manutenção de uma dada ordem, que preponderava socialmente.  
Os Estados não assumem, nem tampouco ditam por conta própria diretrizes políticas ou  
econômicas conflitantes com aquelas que se tornam dominantes na vida social. Às barbas da  
Fiesp8 não seria possível legislar sobre a socialização dos meios de produção, como fizeram os  
soviéticos, pois o Estado é um produto histórico posto no desenvolvimento societário, que atua  
sobre os conflitos de interesses particulares de classes, com a premissa de proteger aqueles que  
se constituíram como dominantes. O Estado feudal garantia assim o domínio dos proprietários  
de terra e atrasou em diversas nações o processo de desenvolvimento de uma burguesia  
mercantil. Para que chegasse, portanto, a trabalhar em prol da universalização da “lógica da  
concorrência e [d]o modelo de empresa” (Dardot; Laval, 2023, p. 19), a direção do Estado  
precisou ser tomada pela burguesia por meio de uma revolução. Revolução que inaugura a  
existência de uma autonomia relativa do Estado frente à nova dinâmica societária, e cujas  
funções, como demonstrou Mandel (1982, p. 333), não poderiam ser “puramente  
superestruturais”9.  
114  
É no capitalismo que a economia e a política aparecem pela primeira vez como esferas  
separadas, através de um processo de despolitização da vida social, mediada pela erosão das  
antigas feudalidades (Marx, 2017). Esta conformação, contudo, se dá através de um  
destacamento entre a forma jurídico-política e o conteúdo societário. O Estado moderno institui  
uma universalidade abstrata, expressa nos “direitos iguais”. A supressão do particularismo  
estamental legalmente determinado nas sociedades feudais10, emancipou politicamente a  
8 Federação das indústrias do estado de São Paulo.  
9
Importa lembrar que a alegoria da estrutura e superestrutura tem finalidade pedagógica e trata de relações se  
articulam na realidade.  
10 Particularismo legal também presente nas sociedades escravagistas, como o Brasil.  
Libertas, Juiz de Fora, v. 24, n. 1, p. 104-125, jan./jun. 2024. ISSN 1980-8518  
Neoliberalismo: a lógica irracional do capitalismo em decadência  
burguesia, e garantiu a manutenção das desigualdades concretas postas na estrutura social e que  
se tornaram cada vez mais complexas.  
Mandel (1982) vai demonstrar ainda que o Estado Moderno é a forma organizativa da  
burguesia. Na idade dos monopólios, ele robustece sua ossatura, na medida em que a  
constituição do proletariado como classe para si (Marx, 2018) impõe a admissão de novas  
funções que, para além da ação coercitiva pura, sejam capazes de criar consenso. Esse  
alargamento faz também com que a autonomia do Estado se expanda, inclusive para protegê-lo  
em seu parlamento da disputa por políticas sociais, mas sem que seu caráter “relativo” seja  
suprimido.  
A despolitização da sociedade e a deseconomização do Estado não podem, assim,  
impedir que a política seja obra da sociedade, nem que a economia seja alvo de intervenção do  
Estado, pois essa divisão de tarefas oculta relações que se entrecruzam na totalidade da vida  
social, ainda que tal articulação não seja manifesta na aparência imediata dos fenômenos. No  
entanto, o esforço realizado para defender a existência de uma primazia da política sobre a  
economia, ou ainda mais, um destacamento entre ambas, é tamanho em Dardot e Laval, que os  
impedem de perceber que o Estado “foi capturado pela lógica monopolista – ele é o seu Estado;  
tendencialmente, o que se verifica é a integração orgânica entre os aparatos privados dos  
monopólios e as instituições estatais” (Netto, 2011, p. 26).  
115  
Isto foi bem demonstrado pela onda de estatizações operada pelo “Estado mínimo”  
norte-americano que, em 2008, e a despeito da defesa do não intervencionismo, salvou da  
bancarrota instituições financeiras tais quais Fannie Mae e Freddie Mac. O Estado no  
tardocapitalismo é o Estado de uma forma capital despreocupada com a criação de empregos  
em massa, que impulsionem o consumo também massivo de mercadorias. É o Estado do capital  
portador de juros, preocupado em facilitar a migração internacional de capitais, a venda de  
títulos e “papéis podres”, e a conversão do fundo público formado pelo trabalho em capital.  
Mas, Dardot e Laval incorporam no seu discurso o divórcio entre forma e conteúdo que  
particularizam a sociedade burguesa e admitem que não é o enfrentamento à burguesia o  
problema contemporâneo, pois os corpos convertidos em empresas que dominam a si mesmos  
constituem novos poderes. Aqui demonstra-se o direcionamento teórico-metodológico dos  
autores, que invocam Foucault em toda a sua essência proto pós-moderna (Rodrigues, 2006)  
E o que é o neoliberalismo para Dardot e Laval? Para os franceses, o neoliberalismo ou  
a “racionalidade neoliberal” teria se desenvolvido a partir da década de 1980, e não resultaria  
da aplicação prática das elaborações da década de 30. Estaria voltado para a gestão de uma  
Natália Perdomo dos Santos  
nova tecnologia de controle social que, para além do Estado, produzisse o que chamam de  
“novo sujeito” e a “racionalização do desejo”. (Dardot; Laval, 2023, p. 333).  
É interessante notar como nesta síntese nossos autores negam a relevância da  
experiência chilena que, ao sul do mundo, qualificou a ascensão de Reagan e Thatcher, e abriu  
caminho ao que chamam Dardot e Laval (2023, p. 17) de “o conjunto de discursos, práticas e  
dispositivos que determinam um novo modo de governo dos homens segundo o princípio  
universal da concorrência”. Afirmam ainda, que o modus operandis admitido “neste caso”, teria  
sido um “método particular” de uma situação particular (Dardot; Laval, 2023, p. 20). Caberia  
ao argumento dos franceses que hoje não é mais necessário queimar, à luz do dia, os corpos  
vivos de seus adversários, como fez no Chile a patrulha militar com Rodrigo Rojas e Carmen  
Gloria Quintana, no ano de 1986. E, de fato, a história demonstrou que, em dadas condições de  
desmantelamento das organizações da classe trabalhadora, é a própria democracia burguesa um  
terreno suficiente à expansão do neoliberalismo.  
Nos países dependentes, que experimentam as capacidades destrutivas do capitalismo  
decadente em todas as esferas da vida, ainda que o avanço neoliberal possa preservar  
formalmente as liberdades políticas, não é possível evitar a violência como método para sua  
realização, pois a “queima” não apenas dos adversários, mas do conjunto dos excedentes do  
capital é elemento imprescindível à reprodução do tardocapitalismo.  
116  
Esse movimento tem implicações sobre recursos naturais, como demonstram, por  
exemplo, os desastres provocados pelo aquecimento do planeta. Afetam até mesmo os capitais  
constantes, como evidencia a desindustrialização no Brasil11. Não obstante, são os  
trabalhadores, especialmente aqueles trajados pela fantasia do empreendedorismo, que seguem  
como a lenha mais importante da fogueira do capitalismo, em suas novas e diversas formas.  
As teses sobre o pós-trabalho, que caminham lado a lado com as de Dardot e Laval, para  
os quais não há mais classes, apenas sujeitos atomizados, são refutadas pela realidade quando,  
no curso da pandemia de COVID-19, a burguesia implora para que os trabalhadores enfrentem  
a morte e salvem a economia. Isso demonstra não apenas que o capitalismo é incapaz de  
produzir riquezas sem o trabalho, mas que o faz sem nunca preterir a eliminação física. Opera  
seja pela fome, pelo COVID, pelos tiros que, apesar da democracia, tiraram a vida Marielle  
Franco em 2018, como o fazem com aqueles que, no campo, se levantam contra a expansão do  
11 Ainda que a mecanização do campo constitua fábricas a céu aberto, estamos tratando de produtos de baixo valor  
agregado, incomparáveis com a produção do que Marx (2017b) categorizou como departamentos I e II da  
produção.  
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Neoliberalismo: a lógica irracional do capitalismo em decadência  
latifúndio, ou no extermínio racial que diariamente controla nas favelas brasileiras o modo de  
ser dos trabalhadores negros, que constituem a camada mais pauperizada desta classe.  
Para Dardot e Laval o neoliberalismo seria então uma nova racionalidade desenvolvida  
a partir de dados artifícios voltados à construção do “homem-empresa ou do sujeito empresarial  
(...) inteiramente imerso na competição mundial” (Dardot; Laval, 2023, p. 322). Os franceses  
inclusive reivindicam Marx para afirmar a tese de que a subjugação cumpre papel principal na  
história; mas, para quê? O movimento pela dominação, segundo os autores, se apresenta como  
um circuito que gira em torno de si mesmo, no qual todos dominam e são dominados, não  
havendo finalidade e nem direcionamento.  
Concordemos, todavia, com Dardot e Laval quando afirmam que o neoliberalismo  
emprega técnicas de poder inéditas. Inéditas, contudo, também foram as técnicas do  
Imperialismo clássico, como a realização da Primeira Guerra Imperialista (Lenin, 2005) da  
história da humanidade, como recurso voltado à disputa por mercados. Tais transformações do  
neoliberalismo identificadas pelos franceses indicam, tão somente, a gigantesca plasticidade do  
próprio capitalismo, que se renova para seguir existindo. E se não há dúvidas de que as técnicas  
elaboradas na sua operacionalização foram capazes de engendrar condutas e subjetividades que  
lhes são particulares, podemos igualmente afirmar que a capacidade de transformar as relações  
e a conduta do ser social não é novidade nem característica especial, que a partir desta nova  
etapa teria se inaugurado.  
117  
Vejamos o fordismo, que consolidou a idade dos monopólios no início do século XX.  
A introdução da esteira constituiu muito mais do que uma técnica de produção. Forjou o  
operário-massa, estável, rígido, fragmentado pelo trabalho repetitivo. Operários que, por um  
lado, projetavam o american way of life no ideário fetichizado das camadas populares e  
fomentava o consumo massivo de mercadorias; por outro, era capaz de desenvolver  
solidariedade de classes, através da reunião do sofrimento comum e compartilhado nas grandes  
fábricas. Instituiu um tipo particular de que já estavam postas na sociabilidade burguesa, um  
ethos social que exigia “um novo sistema de reprodução da força de trabalho, uma nova estética,  
uma nova psicologia, em suma, um novo tipo de sociedade democrática, racionalizada,  
modernista e populista” (Harvey, 1992, p. 121).  
Estes termos se tornaram absolutamente incompatíveis com as demandas  
correspondente à ascensão do capital portador de juros. Um novo ethos é cultivado, como bem  
percebem Dardot e Laval, e segue profundamente ligado à forma como o trabalho se desenvolve  
nesta nova etapa, como nos demonstrou Marx e Engels (2007). E não foi por acaso que a  
construção desta nova subjetividade, que é o “ponto forte” da obra de Dardot e Laval, foi  
Natália Perdomo dos Santos  
precedida por profundas modificações, operadas pelas sucessivas reestruturações produtivas, as  
parteiras dos diversos “modos de ser da informalidade” (Antunes, 2013, p. 14), que implicaram  
diretamente no modo de ser da classe.  
E se é verdade que as capacidades e características portadas pelo neoliberalismo hoje  
não poderiam ser previstas na década de 1930, já que anteceder a realidade não é habilidade da  
não-teoria neoliberal, tampouco se pode negar que o Estado seguiu à risca as orientações de  
Hayek (2022) sobre a necessidade de destruir o poder de pressão dos sindicatos. A partir daí, e  
sucessivamente, foi possível criar manifestações novas e inimagináveis pelos pioneiros.  
Dardot e Laval afirmam que “A originalidade do neoliberalismo está no fato de criar um  
novo conjunto de regras que definem não apenas outro regime de acumulação, mas também,  
mais amplamente, outra sociedade” (Dardot; Laval, 2023, p. 24). Seguramente, o regime de  
acumulação capitalista admite distintas formas no processo histórico, que vão determinar  
modos de regulação que consistem exatamente nas engrenagens cambiáveis, que serão capazes  
de garantir a reprodução do regime de acumulação. Dardot e Laval somente não puderam  
explicar, ao longo de todo livro, qual seria a “nova sociedade” por eles identificada.  
Contudo, a nova gestão da acumulação de capital, que caracterizou o regime de  
acumulação flexível (Harvey, 1992) acelerou as contradições de uma sociabilidade que forja  
relações antissociais, instáveis, efêmeras e fungíveis, que admitem as formas da mercadoria  
conforme ela se apresenta nesta etapa. Sociabilidade esta que é precarizada, assim como o são  
os trabalhadores polivalentes, terceirizados, quarteirizados, deprimidos pela insegurança do dia  
de amanhã, cada vez mais desprotegidos, a ponto de perderem até o “status de assalariado”. E  
“se o comportamento dos indivíduos (...) não é mais inteiramente descritível e prescritível”  
(Dardot; Laval, 2023, p. 342), essa extrema individuação é desdobrada da exaustão, da busca  
permanente pela inovação, da instabilidade permanente da vida, que atomizaram a classe, a  
cada dia mais heterogeneizada, pulverizada e imersa no estranhamento.  
118  
A eliminação da regulação sobre a relação capital/trabalho, serviço ao qual o Estado  
neoliberal se dedica, catalisa a transformação do ser social em empresas que concorrem entre  
si. É a base material de um convencimento ideológico, que se dá pela interiorização das  
deformações sociais na psique do ser, demonstrando que “aquilo que aparece invertido na  
ideologia é expressão de um mundo invertido” (Iasi, 2017, p. 108). Só assim foi possível  
converter a classe trabalhadora em “empreendedores de si mesmos”, a serem responsabilizados  
por manter, inclusive, os meios de produção utilizados na exploração de si mesmos, operada  
via aplicativos. O trabalhador entende-se como “proprietário de capital humano” (Dardot;  
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Laval, 2023, p. 346). E assim seguem como meros detentores de sua força de trabalho, sem  
sequer encontrar onde pô-la à venda.  
E se o trabalhador não está mais 14 horas por dia confinado à fábrica, como outrora,  
tem sua vida transformada em um impulso permanente para o trabalho de sua empresa/corpo.  
E tudo isso, porque não é o capitalismo, e nem tampouco o neoliberalismo em si, apenas um  
regime de acumulação, mas um conjunto de relações sociais que avança na reificação e  
reproduz no ser social as características necessárias à reprodução do capitalismo decadente.  
Dardot e Laval (2023, p. 24), entretanto, afirmam categoricamente que “a sociedade  
neoliberal não é reflexo de uma lógica do capital”. Concordamos mais uma vez. Ela não é  
reflexo, pois é A lógica irracional do capital em tempos de decadência societária. A lógica  
organizativa que permite que o hiato existente entre a riqueza imaterial negociada pelo capital  
fictício e a riqueza real socialmente produzida possa ser mitigado. E essa mitigação só pode ser  
dada pela captura de valores reais, visto que o capital portador de juros nada produz (Iamamoto,  
2007), que no fundo público, formado pelo trabalho, encontra recurso fundamental ao  
distensionamento de uma inquebrantável crise de liquidez.  
2.2 - A crítica ao marxismo que não leu Marx  
De fato, não é possível esperar de Marx uma decodificação do neoliberalismo ou  
subsídios suficientes para a análise do conjunto das relações contemporâneas. A obra de Marx  
não configura um saber total, e sua epistemologia é subordinada ao modo de ser do objeto que  
investiga, o que determina seu caráter ontológico. Isto quer dizer que a teoria do conhecimento  
proposta por Marx não se destina a elaborar uma teoria geral do ser genérico (Netto, 2009) pois  
o conhecimento decorre precisamente do ser socialmente determinado ao qual nos pomos a  
estudar, sendo tal objeto também determinante da forma de conhecê-lo.  
119  
Esta concepção metodológica hipoteca o conhecimento à perquirição sucessiva da  
realidade que, para ser apreendida, demanda esforços investigativos permanentes, já que o real  
é um processo dinâmico contraditório e em constante transformação. Aventar a hipótese de que  
Marx, Rosa, Lênin ou Trotsky bastariam para a leitura das relações contemporâneas seria um  
erro atroz e a primeira mutilação do método Marxiano. Negá-los, contudo, não acarreta um erro  
menor.  
2.2.1 - Em defesa do marxismo  
É no próprio desenvolvimento da sociedade burguesa que a História se consolida como  
o guia imprescindível para a compreensão do movimento da sociabilidade humana ao longo do  
Natália Perdomo dos Santos  
tempo; e demonstra que nela somente é permanente a sua incapacidade de manter-se estática.  
A dialética e a história vertebram a filosofia da práxis, desenvolvida por Marx, no curso da sua  
obra. É justamente a materialidade em movimento que permitiu a descoberta da lei do valor,  
regente da sociedade burguesa em todas as suas fases. É esta que sustenta a perspectiva  
revolucionária que compreendeu a amovibilidade da realidade, na qual “os homens fazem sua  
própria história, mas não a fazem como querem” (Marx, 1986, p. 17). Isto resulta de uma  
concepção  
do mundo da natureza, da história e do espírito como um processo, isto é,  
como um mundo sujeito à constante mudança, transformações e  
desenvolvimento constante, procurando também destacar a íntima conexão  
que preside este processo de desenvolvimento e mudança. (Engels, 1979, apud  
Netto, 2010, n.p.)  
Desenvolver-se – o que não necessariamente se equipara a uma ideia valorativa de  
positividade e progresso – é condição da sociabilidade humana, acelerada pelo salto ontológico  
alçado através do trabalho. O capitalismo, que é contradição em processo, dinamiza essa  
capacidade como nenhuma outra forma social e no curso do neoliberalismo, não poderia ser  
diferente. Esta concepção cambiante e contraditória da vida social atravessa a obra Marxiana e  
é, de fato, surpreendentemente vulgar a acusação de que aos olhos do marxista a história poderia  
apresentar-se sempre igual, pois nada pode ser menos marxista do que tal afirmação.  
A leitura de Marx e do marxismo realizada por Dardot e Laval objetivamente bebe mais  
do estruturalismo, que também influenciou a crítica de Foucault, referência hors concours12 dos  
autores. Consiste aí o primeiro erro de Dardot e Laval, que os impede de ir além dos detratores  
clássicos do marxismo e se não servirá de arrimo aos que seguirão, muito os ajudará.  
Categoricamente, podemos afirmar que os autores miram em Marx, mas atingem o  
maniqueísmo desdobrado do que chamou Lefebvre (1979) de dia-mat, ou dialética materialista  
estalinista.  
120  
Em tempo, a lógica do capital não é, para Marx, o motor da história; ao contrário, a  
lógica do capital torna-se um entrave ao desenvolvimento das forças produtivas, entendidas  
como um sistema que vai além do desenvolvimento da tecnologia, que abarca a natureza e a  
humanidade em sua objetividade e subjetividade. Por isso, a crise que atravessamos e que tem  
a radicalização do neoliberalismo como desdobramento, tampouco poderia ser entendida pelo  
marxista como uma crise qualquer, como afirmam os franceses.  
Importa lembrar que é sobre isso que Rosa Luxemburgo tratava quando bradava  
“socialismo ou barbárie". Ela demonstrava não a existência de um caráter teleológico da história  
12 Fora de concurso ou referência incomparável.  
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Neoliberalismo: a lógica irracional do capitalismo em decadência  
em Marx, ou do que nossos autores chamariam de determinismo da “ruína final”. Não se trata  
em nenhuma hipótese o que inclusive traria muito conforto e descanso aos lutadores de  
tratar o socialismo como um dado inescapável, que um dia chegará. Trata-se apenas de  
historicizar o capital que, como qualquer produto da humanidade, não pode ser eterno e que, se  
não for socialmente superado, ainda assim ruirá na barbárie que caracteriza a sua força  
civilizatória.  
Estamos, pois, de acordo com Barreto (2022, n.p.) e dizemos apenas o seguinte: “Se ao  
correr o monstro pega e ao ficar o monstro come, mate o monstro”. Se seremos capazes de  
matar o insaciável monstro da burguesia, que quanto mais come, mais tem fome, já é outro  
assunto. Enquanto isso, a síntese de Rosa se demonstra fiel à realidade, pois, dia após dia se  
avizinha de nós não o socialismo, mas revela-se a barbárie como a única face que se mantém  
viva de uma sociedade que, ao permanecer, apodrece sobre suas próprias bases.  
O fato é que, verdadeiramente, o motor da história seria, para Marx, a contradição. Mais  
especificamente, a das classes em luta. E o que Dardot e Laval que nem sequer consideram  
as classes não parecem compreender, é que o capitalismo e sua estratégia neoliberalizante se  
modificam justamente para que esta sociedade permaneça. E é essa transformação que oculta  
aos desatentos o caráter conservador por ela portado. Conservadorismo este que ergueu uma  
sociedade capaz de criar as condições de superação do sofrimento coletivo, mas que não o faz,  
pois tal superação contradita a sua própria existência.  
121  
Lamentavelmente, quando tentam ser irônicos, nossos autores acertam na realidade: a  
burguesia, e não apenas para o marxismo, é mesmo um sujeito coletivo que perdura no tempo  
ainda, acrescentamos por conta própria. Isso não que quer dizer que ela seja um sujeito eterno,  
assim como tampouco foram os Tzares na Rússia; fato que não os impediu de perdurar muito  
mais no tempo do que a própria burguesia aparentemente perdurará enquanto classe dominante,  
haja vista a degradação do planeta legada à nossa e às gerações porvindouras. Por isso,  
inclusive, é que o marxismo permanece atual, como foi bem observado pelos autores já na  
introdução de A nova Razão do Mundo. Permanece atual e mais atual do que nunca, pois,  
gostem ou não Dardot e Laval, o neoliberalismo, e as suas tragédias, seguem sendo explicadas  
pela Lei do valor.  
Os franceses afirmam que os marxistas fazem da “economia a única dimensão do  
neoliberalismo” (Dardot; Laval, 2023, p. 24). Ora, a crítica liberal da existência de um  
fatorialismo economicista na concepção de Marx não é nova e abstém-se do rico debate acerca  
do processo de formação da consciência que será determinada pelas relações travadas na  
Natália Perdomo dos Santos  
materialidade da vida pelos seres sociais, os quais antes de satisfazer as necessidades da  
fantasia, precisam satisfazer as necessidades do estômago, como bem demonstrou Marx (2014).  
Tivessem Dardot e Laval se debruçado seriamente sobre a obra de Marx, poderiam  
capturar não apenas as implicações que a materialidade da vida traz à construção da  
subjetividade quando se estão em jogo questões substanciais, como a ameaça à garantia da  
reprodução biológica do ser. Seria ainda possível compreender que “As ideias da classe  
dominante são, em cada época, as ideias dominantes, isto é, a classe que é a força material  
dominante da sociedade é, ao mesmo tempo, sua força espiritual dominante.” (Marx; Engels,  
2007, p.47). Isso quer dizer que se a consciência do entregador de aplicativo, que vê no espelho  
um empreendedor competitivo, não faz dele nada mais que um reprodutor de ideias que não são  
suas e que tampouco correspondem à realidade de uma superexploração aparentemente  
autogerida.  
Tampouco “a estranha faculdade do neoliberalismo de se estender por toda parte apesar  
de suas crises e das revoltas que suscita em todo o mundo” (Dardot; Laval, 2023, p. 21), lhes  
pareceria assim tão estranha, se tivessem novamente examinado com atenção a obra Marxiana.  
Foi esta que revelou o caráter eminentemente expansionista do capitalismo, que permitiu sua  
constituição como uma universalidade. Este modo de ser não involuiu; ao contrário. O  
neoliberalismo justamente é resultado e dinamizador do processo de mundialização do capital,  
como afirma Chesnais (1996), que associa o caráter expansionista do capitalismo sob a direção  
do capital portador de juros a uma dada política e a uma dada ideologia.  
122  
É ainda o neoliberalismo a forma mais capaz de fazer do Estado um capitalista total  
ideal (Mandel, 1982), que a qualquer custo precisa criar contratendências de crescimento  
econômico, habilitado a criar as condições adequadas para a reprodução de um novo modo de  
ser, necessário a sua manutenção. E tudo isso só se torna possível graças à faculdade portada  
pela sociedade burguesa de se estender por toda parte, apesar de suas crises e das revoltas que,  
desde a Primavera dos Povos de 1848, passou a suscitar pelo mundo.  
Considerações finais  
Dardot e Laval querem nos dizer que suas pesquisas revelam a verdadeira face  
neoliberal, e seus artifícios de poder, que resultam na sujeição dos indivíduos. Essa sujeição  
não seria uma relação puramente vertical, pois a gerência do Estado teria se espraiado  
socialmente, norteando o comportamento individual, controlando suas almas e corpos e  
impondo a cada um o controle de si mesmo. Os indivíduos/empresas que competem entre si,  
no entanto, resultam de uma “multiplicidade de processos heterogêneos” (Dardot; Laval, 2023,  
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Neoliberalismo: a lógica irracional do capitalismo em decadência  
p. 34) que engendram a tal nova racionalidade do mundo, que os autores expõem como um  
processo livre de teleologia. Não indicam a quem tais processos beneficiam ou ferem,  
justamente porque, segundo eles, não há o que chamam de “orquestramento”. O processo social  
trata-se, assim, da simples obra do caos, capaz de proporcionar um engajamento múltiplo,  
aleatório e independente de um ultrapassado interesse de classe. O desenvolvimento social não  
porta mais sentido e finda-se em si mesmo, admitindo fundamentos incognoscíveis.  
Dardot e Laval, em seu neoidealismo pós-estruturalista, são capazes de perceber e  
descrever características concretas da sociabilidade neoliberal e alcançam consequências  
genuínas deste processo. Fortalecem-se ainda na dificuldade enfrentada pelos marxistas, que,  
sob as influências da Terceira Internacional, pouco desenvolveram estudos substanciais sobre  
o movimento da subjetividade no curso do processo histórico contemporâneo. No entanto, seu  
ultra-subjetivismo não atinge o núcleo duro que responde pelas inegáveis transformações  
operadas no ser social, restritos que estão à epiderme do problema sobre a qual flutuam.  
Os franceses não percebem, principalmente, que a crise do neoliberalismo nada mais é  
que a incapacidade por ele portada para cumprir a tarefa de recompor as taxas de lucro, ainda  
que a política dos mais distintos governos, dos mais distintos países portem como finalidade  
primeira a garantia da transferência do maior quantum possível de valor real para encarnar os  
capitais fictícios. E, nesta direção, seja para garantir a apropriação do fundo público, o  
financiamento da guerra, ou a espoliação do que ainda resistiu a ser expropriado, a  
irracionalidade neoliberal é a lógica que expressa o capitalismo decadente, que só pela  
mediação da violência e do cerceamento irrestrito do ser pode manter-se de pé.  
123  
Se o neoliberalismo lhes parece a nova razão do mundo no qual o exercício do poder,  
não tem razão de ser, conforme sintetizam Dardot e Laval, tal construção se confunde com os  
elementos do irracionalismo por trás de seus autores. Estes, importa salientar, tal qual o Estado  
neoliberal, constituem sua obra em perfeita compatibilidade com o capitalismo tardio, na  
medida em que não o enfrenta. Há, portanto, um conteúdo conservador nos autores, ainda que  
este se apresente numa forma transgressora, pois seus argumentos obliteram os fundamentos  
do neoliberalismo e não podem dar conta de nada além do que está imediatamente posto.  
Dardot e Laval descreditam o marxismo, pois não os interessa romper as margens da  
sociedade burguesa. Daí surge o fatalismo que os impede de identificar a construção de “uma  
nova razão no mundo”, comprometida com a emancipação humano-genérica. Afinal, é o  
neoliberalismo que lhes importuna e nada mais. Tais aliados da crítica precisam ser, portanto,  
questionados. E para isso, invocamos novamente a poesia dos anos 1980: “Quem é o inimigo,  
quem é você?” (Russo, 1984). Ou, ainda, de que serve a crítica que não ajuda na construção das  
Natália Perdomo dos Santos  
duras lutas que precisam ser travadas para derrotar não apenas a forma contemporânea que o  
capital utiliza para seguir, mas a totalidade de uma sociabilidade para a qual o lucro vale mais  
que a chance de seguirmos vivos?  
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125  
A “questão da terra” no Brasil: heranças e  
permanências na cidade, no campo e na floresta  
The “land question” in Brazil: legacies and permanence in the city,  
countryside and forest  
Tânia Maria Ramos de Godoi Diniz*  
Caroline Magalhães Lima**  
Raphael Martins de Martins***  
Resumo: A análise do processo de constituição  
da propriedade da terra, na formação social  
Abstract: The analysis of the process of  
constitution of land ownership, in the Brazilian  
social formation, finds in slavery and large  
landed property, with their production focused  
on overseas interests, unavoidable categories  
for understanding historical determinations.  
Using Marxian categories and Marxist  
interpreters, we make notes on the issue of land,  
explaining inheritances and permanence that  
mark its dispute in the city, in the countryside  
and in the forest, in Brazil today. This analytical  
key is fundamental for the work of social  
workers, in understanding the meanings of the  
dynamics of production and reproduction of  
capitalist social relations and identifying the  
necessary mediations to face the manifestations  
of the social issues that takes on new  
complexities in times of reconfiguration of  
globalized capitalism.  
brasileira, encontra na escravidão  
latifúndio, com sua produção voltada aos  
interesses de além-mar, categorias  
incontornáveis para compreensão de  
determinações históricas. A partir de categorias  
marxianas de intérpretes marxistas,  
e
no  
a
e
realizamos apontamentos sobre a “questão da  
terra”, explicitando heranças e permanências  
que marcam sua disputa na cidade, no campo e  
na floresta, no Brasil dos dias atuais. Essa chave  
analítica é fundamental para o trabalho de  
assistentes sociais, na apreensão dos sentidos da  
dinâmica da produção e reprodução das relações  
sociais capitalistas  
e
identificação das  
mediações necessárias ao enfrentamento das  
expressões da “questão social”, que assume  
novas complexificações em tempos de  
reconfiguração do capitalismo mundializado.  
Palavras-chaves: Formação sócio-histórica  
Keywords:  
Brazilian  
socio-historical  
brasileira; “Questão social”; Serviço Social.  
formation; Social issues; Social Work.  
* Doutora em Serviço Social pela PUC/SP. Professora Adjunta da Universidade Federal de São Paulo. Coordenação  
Ampliada do GTPQAUASS – ABEPSS. Constrói o Fórum Nacional de Trabalho Social na Habitação. ORCID:  
**  
Doutora em Serviço Social (UERJ). Professora colaboradora do Mestrado Acadêmico em Serviço Social  
(MASS/UECE). Bolsista de pós-doutorado em Serviço Social pela CAPES. Coordenação do GTPQAUASS –  
ABEPSS (2022-2023). Militante da Frente de Luta Por Moradia Digna (FLMD – Ceará). ORCID:  
***  
Doutorando em Serviço Social pela UFRJ. Bolsista CAPES. Coordenação Ampliada do GTPQAUASS –  
ABEPSS. Militante da Frente de Luta Por Moradia Digna (FLMD – Ceará). Constrói o Fórum Nacional de  
Trabalho Social na Habitação. ORCID: https://orcid.org/0000-0001-8687-8196  
DOI: 10.34019/1980-8518.2024.v24.44261  
Esta obra está licenciada sob os termos  
Recebido em: 20/04/2024  
Aprovado em: 19/06/2024  
A “questão da terra” no Brasil: heranças e permanências na cidade, no campo e na floresta  
Introdução  
Esse artigo resulta de um esforço de reflexão coletiva a partir de estudos sobre o que  
chamamos de a “questão da terra”. Tomamos como objetivo explicitar heranças e  
permanências que marcam a disputa pela terra na cidade, no campo e na floresta, no Brasil  
dos dias atuais, com vistas a iluminar as dificuldades e contradições que atravessam o trabalho  
de assistentes sociais em tempos de financeirização da dinâmica capitalista. Para isso,  
lançamos mão de pesquisa bibliográfica a fim de recuperarmos a discussão do processo de  
formação sócio-histórica a partir das categorias de análise do método de Marx, buscando  
identificar as heranças, determinantes e desafios para a superação da “questão da terra” no  
Brasil.  
Entendemos por “questão da terra” os elementos da “questão social”1 que transpassam  
as esferas do urbano, do agrário e do ambiental, cuja linha que os tece e ponto comum é a terra.  
Os conflitos pela terra no campo, as contradições e disputas políticas sobre o Marco Temporal,  
o desmatamento e a auto-organização da resistência dos povos de floresta, a segregação  
socioespacial e a luta por moradia digna no ambiente urbano, dentre tantos exemplos, revelam  
que a produção do espaço, seja ele no campo, na cidade ou mesmo a preservação de nossos  
biomas naturais (florestas e matas, caatinga, cerrado) e a luta de classes se encontram em plena  
dinamicidade, no contexto em que o capital busca expandir seus lucros, sua concentração e  
centralização, o que demandará necessariamente a expropriação e apropriação de recursos da  
terra, do ar, das águas, do subsolo.  
127  
A “questão da terra” no processo de formação sócio-histórica brasileira  
O ser humano se faz ao produzir coisas, espaço e a si. A produção da vida material, sob  
o capitalismo, é condicionada à reprodução do capital. A terra torna-se arena da luta de classes,  
objeto de disputa pela sobrevivência da natureza, da humanidade, e do próprio capital, essa  
relação social que humaniza coisas e desumaniza pessoas. Em sua forma original, a terra é  
elemento natural, mas a partir do trabalho, se torna objeto de trabalho, matéria-prima, meio de  
produção universal, fonte de recursos necessários para suprir necessidades sociais, propriedade  
privada. Assim, de partida, o problema da terra no Brasil também deve ser compreendido no  
campo da análise das relações sociais de produção que regem o seu uso, pois o acesso à terra não  
pode, no capitalismo, ser concebido como mero acesso a uma coisa, mas como uma relação social.  
1
Utilizamos as aspas, tendo como referência a explicação de Santos (2012), na sua afirmação da existência real  
não da “questão social”, mas das suas múltiplas expressões, determinadas pelas desigualdades inerentes ao modo  
de produção capitalista.  
Tânia Maria Ramos de Godoi Diniz; Caroline Magalhães Lima; Raphael Martins de Martins  
O fato de milhares de pessoas serem obrigadas a morar em grandes cidades, sem que se  
extinga o monopólio da propriedade privada da terra, com a permanência do grande latifúndio no  
campo e na cidade, do avanço destrutivo sobre florestas e matas, permite que os proprietários de  
terra, que a compraram ou a usurparam, obtenham vultosos lucros, em forma de renda fundiária,  
simplesmente exigindo dos trabalhadores do campo, da cidade e dos povos tradicionais “um  
tributo em troca do direito de habitar a Terra” (Marx, 2017, p. 834). Marx (2015, p. 119)  
enfatizava que o capitalismo pressupõe a separação entre força de trabalho e meios de produção:  
Quaisquer que sejam as formas sociais de produção, os trabalhadores e os  
meios de produção permanecem sempre como seus fatores constitutivos. Mas,  
enquanto se encontram separados uns dos outros, são fatores de produção  
apenas em potencial. Para que se produza efetivamente, precisam ser  
combinados. O modo particular dessa combinação distingue as diferentes  
épocas econômicas da estrutura social. No caso presente, a separação entre o  
trabalhador livre e seus meios de produção constitui o ponto de partida dado,  
e vimos como e sob quais condições ambos são unificados na mão do  
capitalista – a saber, como modos produtivos de existência de seu capital.  
Este ato inicial é também contínuo e pressuposto permanente para que haja a compra e  
venda da força de trabalho: “Vimos anteriormente que a produção capitalista, uma vez  
estabelecida, não apenas reproduz essa separação no transcurso de seu desenvolvimento, como  
a amplia cada vez mais, até transformá-la na situação social imperante” (Marx, 2015, p. 115).  
Assim, a “empresa de produção de mercadorias” no capitalismo é, ao mesmo tempo, “empresa  
de exploração da força de trabalho” (Marx, 2015, p. 119).  
128  
É somente no capitalismo que a produção de mercadorias aparece como “predominante”  
(Marx, 2015, p. 115), mais especificamente que “toda produção de mercadorias se transforme  
em produção capitalista de mercadorias” (Marx, 2015, p. 118).  
O capitalismo pressupõe a venda da força de trabalho para que exista a produção de  
valor. Este é trabalho cristalizado, mas sob determinadas condições, ou seja, relações sociais de  
produção: “Marx investigou assim, o trabalho em sua qualidade criadora de valor e esclareceu  
pela primeira vez qual trabalho cria valor, por que e como ele o cria, descobrindo que o valor  
não é senão trabalho cristalizado desse tipo” (Engels, 2015, p. 96). A generalização da venda  
da força de trabalho exige a generalização concomitante da transformação do acesso aos meios  
de consumo por meio do mercado, ou seja, como mercadorias:  
[...] para que a massa dos produtores diretos, os trabalhadores assalariados,  
possa realizar a operação T-D-M, é preciso que ela encontre constantemente  
os meios de subsistência em forma comprável, isto é, em forma de  
mercadorias. Essa situação requer um alto grau de circulação dos produtos  
como mercadorias e, portanto, do desenvolvimento da produção mercantil.  
Tão logo a produção por meio do trabalho assalariado esteja generalizada, a  
produção de mercadorias deve se tornar a forma geral da produção. (Marx,  
2015, p. 117-8).  
Libertas, Juiz de Fora, v. 24, n. 1, p. 126-145, jan./jun. 2024. ISSN 1980-8518  
A “questão da terra” no Brasil: heranças e permanências na cidade, no campo e na floresta  
Para Marx, o divórcio entre condições de trabalho e produtores é fundamental para que  
o capital exista enquanto relação social. Segundo Marx (2017), a expropriação dos produtores  
de suas condições de trabalho é condição permanente da existência do próprio capital:  
Esse divórcio entre as condições de trabalho, de um lado, e os produtores, de  
outro, é o que forma o conceito de capital; um divórcio que tem início com a  
acumulação primitiva [...], aparece em seguida como processo constante na  
acumulação e na concentração do capital e, por fim, se expressa aqui na  
centralização de capitais já existentes em poucas mãos e na descapitalização  
de muitos (fenômeno no qual se converte agora a expropriação). (p. 286).  
A “questão da terra” no Brasil não deve ser investigada isoladamente – analisando  
apenas dados estatísticos ou o ordenamento jurídico, por exemplo -, exige-se localizar o objeto  
em relação ao processo de produção do capital em seus diversos momentos. Faz-se necessário  
também compreender a contradição capital/trabalho em relação ao espaço, mais precisamente  
a produção do espaço. Faz-se necessário apreender o movimento da forma e do conteúdo da  
produção do espaço (Martins, 2014) em nosso processo de formação sócio-histórico.  
Diversas são as interpretações sobre o processo de formação sócio-histórico brasileiro.  
Dados os limites desse texto, não poderemos nos aprofundar nesse debate, mas destacamos que  
entender nossa formação social envolve também apreender o processo de desenvolvimento das  
forças produtivas, suas determinações, contradições, antagonismos e movimentos.  
Partimos da exposição de que nossa formação colonial repercute atualmente em nossas  
relações econômica, política e social – que não podem ser dissociadas – interna e externamente,  
nas quais o Brasil se encontra em uma posição de dependência e subordinação ao capital  
imperialista. A formação do espaço social brasileiro participou do processo de acumulação  
primitiva com o uso da força de trabalho indígena, escrava africana e dos poucos colonos livres.  
A colonização serviu ao processo de acumulação primitiva. Segundo Marx (2018, p. 821):  
129  
A descoberta das terras auríferas e argentíferas na América, o extermínio, a  
escravização e o soterramento da população nativa nas minas, o começo da  
conquista e saqueio das índias Orientais, a transformação da África numa  
reserva para a caça comercial de peles-negras caracterizam a aurora da era da  
produção capitalista. Esses processos idílicos constituem momentos  
fundamentais da acumulação primitiva.  
Conforme Santos (2012), a constituição do capitalismo na formação social brasileira  
tem seu marco na invasão portuguesa. Se, anteriormente, a forma de propriedade da terra era  
comunal, organizada pelos povos originários, com a invasão a propriedade da terra assume a  
forma estatal (Tratado de Tordesilhas). O processo de colonização, a terra foi apropriada sob a  
forma de Sesmarias ou de mera posse a donatários, homens nobres portugueses, que deveriam  
Tânia Maria Ramos de Godoi Diniz; Caroline Magalhães Lima; Raphael Martins de Martins  
vir ao Brasil “ser dirigentes, empresários comerciais, mas não trabalhadores” (Santos, 2012, p.  
56).  
Com a fundação da plantation como modelo produtivo colonizador, cujas características  
eram a produção monocultora, a utilização de grandes extensões de terra (agricultura predatória,  
com rápido esgotamento do solo, desmatamento) e a escravização, o Brasil, processualmente,  
torna-se um fornecedor de artigos de exportação, enquanto colônia.  
A imposição do trabalho escravo resultou em um processo que deixa marcas de sua  
herança no tempo presente. O racismo permanece como instrumento enraizado no cotidiano,  
compõe a estrutura das relações sociais, expressando-se em formas diversas de relações de  
propriedade da terra. Segundo Silvio Almeida (2019, p.22), o racismo “é uma forma sistemática  
de discriminação que tem a raça como fundamento, e que se manifesta por meio de práticas  
conscientes ou inconscientes que culminam em desvantagens ou privilégios para indivíduos, a  
depender do grupo racial ao qual pertençam”. Vale destacar que o autor não entende o racismo  
como mero resquício do passado, mas como estruturante de nossa formação social e de nossa  
contemporaneidade (Almeida, 2019, p. 112).  
Do total de trabalhadores negros capturados do continente africano, quase 90% foram  
traficados no século XVIII, período que “coincide, não por acaso, com a dinamização do  
sistema capitalista pela transição tecnológica para novos processos de manufatura e a sua  
consolidação ideológica através do projeto iluminista de transformação social.” (Procópio,  
2021, p. 44). O racismo faz parte do projeto modernizador, que visava a consolidação do  
capitalismo, a partir do processo de acumulação primitiva de capital com a expropriação tanto  
das matérias primas (sendo a principal, a terra), quanto com a captura da renda da terra  
produzida pelo trabalho escravo.  
130  
Aqueles e aquelas que iriam trabalhar não teriam acesso à terra. O tráfico exigia um  
grande dispêndio de recursos para a importação de força de trabalho escrava, e as edificações  
para a cultura do açúcar eram custosas e complexas, necessitando da máxima economia (Lima,  
2023; Moura, 1959). Era preciso desenvolver o modelo produtivo da plantation defendendo as  
terras dos povos de outros países (franceses, holandeses etc.) e dos povos indígenas que  
resistiam. Daí, observa-se uma primeira contradição da lógica própria à acumulação primitiva:  
o trabalho escravo foi utilizado, no período mesmo em que, na Europa, se realizava a transição  
do trabalho servil para o livre para assegurar os latifúndios na Colônia, assim seria possível  
garantir o nível de acumulação que financiaria o capitalismo na Europa.  
Em 1850, após fortes pressões externas, o Brasil cessa o tráfico de escravos de África.  
Nesse contexto, surge a Lei das Terras de 1850. Os latifúndios e minifúndios, até tal legislação,  
Libertas, Juiz de Fora, v. 24, n. 1, p. 126-145, jan./jun. 2024. ISSN 1980-8518  
A “questão da terra” no Brasil: heranças e permanências na cidade, no campo e na floresta  
tinham como forma de propriedade a posse direta, reconhecida a partir da existência de uma  
cultura efetiva e de morada habitual. A Lei das Terras no contexto de desenvolvimento das  
forças produtivas, em que o mercado de terras se fazia necessário não apenas à obtenção de  
renda fundiária, mas também pela necessidade de criação de um “mercado de trabalho” para a  
nascente indústria (Oliveira, 1980), impediu que a população negra tivesse acesso a ela, assim  
como a futura força de trabalho imigrante europeia.  
A população brasileira em 1850 era de cerca de 7,2 milhões de pessoas, dos quais 30%  
estavam escravizadas (Lima, 2023). Nesse período, a Inglaterra já possuía um “mercado de  
trabalho” em pleno desenvolvimento, e se posicionava politicamente contra o modelo escravista  
nos países em que possuía esse interesse2. O modelo colonial de produção, baseado no  
escravismo, ainda possuía entraves ao processo de industrialização-urbanização brasileiro.  
O trabalho livre era exigência para o desenvolvimento do capitalismo, levando o Estado  
brasileiro a abolir a escravidão. O mercado da carne humana escravizada é substituído pelo  
mercado de terras. A terra entra processualmente no circuito da forma mercadoria, ocorrendo a  
transferência de capital imobilizado do escravo para a terra. O Estado passa, com a Lei das  
Terras, a realizar sua venda com registro cartorial, e o recurso obtido é utilizado para financiar  
o processo de imigração europeia, sob a lógica do eugenismo, para o trabalho livre nos  
latifúndios agroexportadores e na nascente indústria.  
131  
É preciso afirmarmos o óbvio: nossa classe trabalhadora livre surge de uma combinação  
processual, não sendo possível estabelecer como marco histórico a vinda de imigrantes  
europeus, tendo em vista que os trabalhadores negros (escravizados e livres) possuíam formas  
de organização políticas próprias (na luta pela abolição, participando de confederações,  
conjurações, rebeliões, greves etc.) e foram os primeiros a trabalhar nas nascentes indústrias  
aqui instaladas, fato que por muitos anos foi ocultado pelo racismo acadêmico e historiográfico.  
A formação da classe trabalhadora brasileira é marcada, portanto, pelo elemento racial  
e pela imigração no contexto de crise capitalista que atingiu fulcralmente o continente europeu.  
Sabemos que as crises são intrínsecas ao modo de produção capitalista, à sua dinâmica de  
acumulação e reprodução (Marx, 2017, p. 282). Essa dinâmica exige a expansão contínua, sua  
reprodução ampliada, levando à necessidade de criação de novos mercados, produtos,  
necessidades, tecnologias, espaços. A produção industrial é acompanhada pelo par dialético  
produção do espaço urbano.  
2
Combatia o tráfico e a escravidão em países como Brasil, mas defendia a escravidão nos Estados Unidos da  
América, principal exportador de matéria prima para a indústria têxtil inglesa. Sobre isso, ver Moura (1959).  
Tânia Maria Ramos de Godoi Diniz; Caroline Magalhães Lima; Raphael Martins de Martins  
O processo de industrialização e urbanização brasileiros se delineia a partir das  
necessidades de acumulação especificamente capitalistas. O modo como se deu a urbanização  
do Brasil foi funcional ao processo de acumulação de capital (Martins, 2014). Foi a coexistência  
de práticas e relações “arcaicas” e “modernas” que permitiu a acumulação de capital necessária  
ao processo de industrialização. Acumulação essa que só podia se dar se houvesse a transição  
“de uma situação em que a realização da acumulação dependia quase integralmente do setor  
externo, para uma situação em que será a gravitação do setor interno o ponto crítico da  
realização, da permanência e da expansão dele mesmo” (Oliveira, 2003, p. 60). Antes de uma  
dualidade entre o “arcaico” e o “moderno”, trata-se de uma relação dialética necessária ao  
processo de acumulação (Oliveira, 2003, p. 60).  
Fazendo um paralelo com relações de custo, o arquiteto Carlos Nelson Ferreira dos  
Santos insere como chave explicativa da força do fenômeno de periferização das cidades a  
relação que se estabelece entre custo zero e custo infinito. O autor busca com isso chamar  
atenção para o jogo de custos que se estabelece entre os extremos que vão do zero ao infinito.  
Ao ser lançado, um loteamento periférico apresenta enorme vantagem imediata aos seus futuros  
moradores, pois inicia com um custo econômico próximo de zero. É justamente esse baixo custo  
econômico que permite o estabelecimento desse estrato da classe trabalhadora. É também  
precisamente por isso “que eles se submetem a ir morar longe, em lugares desprovidos de  
qualquer facilidade urbanística”. As péssimas “condições de consumo coletivo” constituem-se  
no preço a ser pago para que tenham acesso a “tranquilidade e segurança da propriedade”. Dessa  
forma, o loteamento periférico surge como tendo um custo econômico próximo de zero e um  
custo social mais próximo do infinito, “quanto maior seja o vazio e o nada onde se implanta o  
loteamento” (Ferreira dos Santos, 1981, p. 39). Assim, o processo de urbanização do Brasil teve  
no loteamento irregular e na favela pilares fundamentais.  
132  
Não se pode compreender o processo de favelização das cidades brasileiras sem  
relacioná-lo com o papel desempenhado pelo Brasil na divisão internacional do trabalho. A  
favela foi funcional ao processo de industrialização do Brasil, pois permitiu a concentração de  
grandes massas trabalhadoras na cidade sem que isso comprometesse a acumulação e  
reprodução do capital. É nesse sentido também que se deve compreender a ação do Estado que  
colocou na ilegalidade/informalidade vasta parcela da classe trabalhadora.  
Sem relacionar o processo de desenvolvimento da chamada “cidade ilegal/informal”  
com o tipo de desenvolvimento econômico brasileiro não é possível compreender a função das  
medidas legislativas que deixaram como única alternativa a favelização das cidades. Se o  
processo de formação dos cortiços está diretamente ligado ao processo de luta que levou ao fim  
Libertas, Juiz de Fora, v. 24, n. 1, p. 126-145, jan./jun. 2024. ISSN 1980-8518  
A “questão da terra” no Brasil: heranças e permanências na cidade, no campo e na floresta  
da escravidão no Brasil (Chalhoub, 2006; Benchimol, 1990), o processo de favelização está  
diretamente ligado ao processo de desenvolvimento brasileiro que teve como carro chefe a  
indústria e a cidade (desfecho que somente foi possível com a concentração de grande massa  
trabalhadora3). O que se percebe é o esforço do Estado brasileiro no sentido de garantir a  
acumulação e a reprodução do capital. O Estado foi promotor de uma peculiar industrialização  
e urbanização do Brasil. Francisco de Oliveira (2003) interpretou muito bem esse duplo esforço  
que permitiu a modernização do Brasil.  
Industrialização e urbanização: desigualdades na conformação do espaço  
Os serviços necessários à industrialização são garantidos pela oferta abundante de mão  
de obra barata. Essa migração que ocorre do campo à cidade apresenta-se como distinta da  
descrita por Marx como constituinte do processo de acumulação primitiva ocorrido na  
Inglaterra. Mais do que um processo de “expropriação de propriedade”, há um processo de  
expropriação de excedente devido à posse transitória da terra:  
[...] o trabalhador rural ou o morador ocupa a terra, desmata, destoca, e cultiva  
as lavouras temporárias chamadas de ‘subsistência’; nesse processo, ele  
prepara a terra para as lavouras permanentes ou para a formação de pastagens,  
que não são dele, mas do proprietário. Há, portanto, uma transferência de  
‘trabalho morto’, de acumulação, para o valor das culturas ou atividades do  
proprietário, ao passo que a subtração de valor que se opera para o produtor  
direto reflete-se no preço dos produtos de sua lavoura, rebaixando-os  
(Oliveira, 2003, p. 43).  
133  
Esse mecanismo de expropriação permitiu que o campo fornecesse gêneros alimentícios  
(arroz, feijão, milho) aos grandes mercados urbanos a baixo preço, reforçando o processo de  
acumulação nas cidades. O desenvolvimento desigual do campo, com a “manutenção,  
ampliação e combinação do padrão ‘primitivo’ com novas relações de produção no setor  
agropecuário” (Oliveira, 2003, p. 43), resulta, portanto, em dois fenômenos fundamentais ao  
processo de urbanização e industrialização do Brasil, que rebaixam o preço da força de trabalho:  
primeiro, fornece imensos contingentes populacionais para a formação do “exército de reserva”  
das cidades; segundo, abastece as cidades com gêneros alimentícios “cujo preço é determinado  
pelo custo de reprodução da força de trabalho rural” (Oliveira, 2003, p. 43).  
O preço da força de trabalho era basicamente determinado por dois elementos: custo de  
alimentação e custos de bens e serviços genuinamente urbanos. Exatamente neste ponto se  
manifesta a importância do “exército de reserva”, pois sua grandeza permitia a existência de  
“uma estranha forma de ‘economia de subsistência’ urbana” (Oliveira, 2003, p. 46). Tudo isso  
3 Sem esquecer o papel exercido por essa imensa massa na oferta de serviços baratos nas cidades (Oliveira, 2003).  
Tânia Maria Ramos de Godoi Diniz; Caroline Magalhães Lima; Raphael Martins de Martins  
força o preço da força de trabalho urbana para baixo e, consequentemente, os salários reais. O  
mesmo pode ser visto com os trabalhadores do campo, que trabalham parte de seu tempo para  
grandes latifundiários, e na hora vaga, que deveria ser dedicada à recuperação das energias  
vitais, se transfere ao trabalho na terra, à prestação de serviços, à produção do espaço no campo.  
O espaço da classe trabalhadora nas cidades acaba reproduzindo a segregação  
socioespacial, a precariedade dos transportes e seu alto preço. Sem mobilidade, os moradores  
encontram-se frequentemente exilados em seus bairros precários. Além disso, a matriz de  
mobilidade urbana estabelecida (o automóvel), além dos congestionamentos, acarreta a  
poluição do ar: é responsável por 40 % das 2.400.000 toneladas de poluentes lançadas à  
atmosfera por ano na Região Metropolitana de São Paulo, por exemplo (Maricato, 2011).  
O Instituto de Análise Integrada do Risco Ambiental da Faculdade de Medicina da USP  
afirma que os picos de poluição do ar na cidade de São Paulo são acompanhados por picos de  
morte por doenças cardíacas, e provocando doenças respiratórias (Maricato, 2011, p. 79). Além  
disso, o uso do automóvel afeta também o campo e as florestas: a produção de álcool e  
biocombustível, apesar de menos poluentes, agravam o desmatamento, geram grandes  
“desertos” de soja e cana de açúcar, uso intensivo de agrotóxicos e fertilizantes, poluindo solo,  
ar e água, afetando a saúde de trabalhadores e comunidades do entorno. Soma-se a isso o  
processo de esvaziamento do campo pela substituição da força de trabalho humana por  
maquinário, ou mesmo o uso do trabalho análogo ao escravo. Já o combustível fóssil destrói a  
camada de ozônio repercutindo gravemente na saúde humana e nas mudanças climáticas em  
todo o planeta, refletindo sobre a elevação da temperatura, as chuvas e secas que afetam os  
ambientes urbanos, do campo e da floresta.  
134  
Maricato (2011) aponta o motivo da permanência da precariedade dos transportes  
públicos e do incentivo massivo nos transportes particulares: a relação entre a matriz  
rodoviarista e o PIB – “o produto das indústrias automobilísticas equivaleu a 13% do PIB em  
1999 e 19,8% do PIB dez anos depois, em 2009” (Maricato, 2011, p. 79). Com esse exemplo,  
buscamos apontar como a produção e a reprodução do capital têm a terra como mediação fulcral  
também nas cidades.  
Com o acesso ao transporte público reduzido, os trabalhadores segregados acabam por  
viver de forma isolada da centralidade planejada do urbano. No intuito de atender às demandas  
das “populações de baixo poder aquisitivo” nucleadas nos subúrbios das cidades, criou-se uma  
vasta gama de serviços: mercearias, bazares, lojas, oficinas de reparos etc., criando um  
comércio local (Oliveira, 2003, p. 68-9).  
O estudo do processo de formação das favelas, subúrbios e loteamentos periféricos  
Libertas, Juiz de Fora, v. 24, n. 1, p. 126-145, jan./jun. 2024. ISSN 1980-8518  
A “questão da terra” no Brasil: heranças e permanências na cidade, no campo e na floresta  
aponta que esses foram funcionais ao processo de industrialização e urbanização do Brasil,  
revelando um processo de espoliação, que, desde o fim da escravidão, adotou como pressuposto  
a segregação socioespacial. Negou à massa trabalhadora o acesso ao urbano propriamente, à  
centralidade, em suma, o direito à cidade. Contudo, essa foi a forma que não somente permitiu  
à indústria (em desenvolvimento) pagar baixíssimos salários (visto que o preço da moradia não  
compunha o valor da força de trabalho), mas também foi a forma encontrada para que as cidades  
brasileiras se constituíssem em grandes aglomerações urbanas (Martins, 2014), a partir da  
superexploração da força de trabalho, que se vendia às indústrias, comércios e serviços, mas  
usava seu tempo de descanso para produzir suas moradias, suas ruas, seus bairros.  
É precisamente por compreender a importância, no Brasil, da desigualdade social na  
formação do espaço urbano que Ermínia Maricato (2011) ressalta a relação legalidade e  
ilegalidade no uso e ocupação do solo urbano. Como o mercado imobiliário no Brasil é muito  
restrito, a maior parte do povo pobre acaba por se instalar em áreas que são desprezadas pelo  
mercado imobiliário (mananciais, morros etc.) e que têm sua ocupação, para fins de moradia,  
proibida por lei, ou em áreas sem serviço público satisfatório e distantes da centralidade de  
urbano. Ora, é exatamente essa desigualdade interna entre as diversas localidades de uma  
mesma cidade que permite a valorização diferenciada dos terrenos e imóveis (Martins, 2014).  
135  
Desigualdades sociais e a “questão da terra” no Brasil no século XXI.  
Como apontava Marx, o capitalismo, em seu movimento de concentração e  
centralização, realizará expropriações em nível predatório no sentido de manter sua produção e  
reprodução em escala crescente. Fosse no momento inicial de seu processo de desenvolvimento  
a partir da acumulação primitiva, seja em todo o vigor contemporâneo, as expropriações são  
praticadas contra a natureza, de forma a buscar garantir a produção e reprodução do capital,  
sendo a terra (ar, solo, águas e subsolo) o principal “objeto” consumido destrutivamente.  
A crise atual do capital, com a regência monopólica e financeirizada, expõe a gritante  
validade da Lei Geral de Acumulação Capitalista (Marx, 2018)4: cada vez mais temos visto a  
contradição entre produtores e proprietários da riqueza. Esses ampliam seu acúmulo nos  
4 “Quanto maiores forem a riqueza social, o capital em funcionamento, o volume e o vigor de seu crescimento e,  
portanto, também a grandeza absoluta do proletariado e a força produtiva de seu trabalho, tanto maior será o  
exército industrial de reserva. A força de trabalho disponível se desenvolve pelas mesmas causas que a força  
expansiva do capital. A grandeza proporcional do exército industrial de reserva acompanha, pois, o aumento das  
potências da riqueza. Mas quanto maior for esse exército de reserva em relação ao exército ativo de trabalhadores,  
tanto maior será a massa da superpopulação consolidada, cuja miséria está em razão inversa do martírio de seu  
trabalho. Por fim, quanto maior forem as camadas lazarentas da classe trabalhadora e o exército industrial de  
reserva, tanto maior será o pauperismo oficial. Essa é a lei geral, absoluta da acumulação capitalista.” (Marx,  
2018, p. 719-20).  
Tânia Maria Ramos de Godoi Diniz; Caroline Magalhães Lima; Raphael Martins de Martins  
processos de crise, como a vivenciada recentemente e acirrada com a pandemia global por  
Covid-19. A desigualdade abismal ampliada no período recente se reflete no que chamamos  
aqui de “questão da terra”, com impactos no campo, na cidade e na floresta.  
No Brasil atual, vemos a herança do modelo produtivo colonial da plantation impressa  
tanto no racismo imerso em nosso cotidiano, quanto no jogo da desigualdade do acesso à terra,  
em que aproximadamente 70% dos grandes proprietários de terra são brancos (IBGE, 2017). A  
Lei de Terras, aprovada e implementada em 1850, estabeleceu uma opção evidente pelo  
latifúndio, cuja repercussão histórica se imprime na divisão das terras cultiváveis ainda hoje:  
[...] apenas 0,7% das propriedades têm área superior a 2 mil hectares (20 km2),  
mas elas, somadas, ocupam quase 50% da zona rural brasileira. Por outro lado,  
60% das propriedades não chegam a 25 hectares (0,25 km2) e, mesmo tão  
numerosas, só cobrem 5% do território rural. Os dados são do Instituto  
Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra). (Senado Federal, 2020).  
O poder do latifúndio se espalha não apenas com o avanço dos lucros exorbitantes  
obtidos com a produção e exportação de commodities, mas também no âmbito midiático e  
político. Dos 513 deputados federais brasileiros, 324 compõem a Frente Parlamentar Mista da  
Agropecuária, junto a 50 dos 81 senadores5, cuja maioria é formada por homens brancos,  
empresários e de partidos conservadores. Esses definem legislações que impactam na dinâmica  
das relações entre ser humano e a natureza, estimulando o uso de agrotóxicos, subsídios  
custeados pelo fundo público, o latifúndio e a violência no campo, o desmatamento etc.  
O desmatamento no Brasil aumentou em 22,3% sua área desmatada, alcançando a marca  
de 8.245.284 hectares, sendo mais de 99% desses considerados ilegais (sem a comunicação  
oficial às autoridades) (Mapbiomas Alerta, 2022). Tal desmatamento ocorre principalmente nos  
biomas amazônico, do cerrado e da caatinga, em áreas em que se concentram populações  
tradicionais e indígenas. Essas últimas, têm historicamente lutado pelo reconhecimento e  
demarcação de suas terras, recentemente sofrendo um ataque direto aos seus direitos, com a  
aprovação do Marco Temporal (Lei n° 14.701/2023) pelo Legislativo, recorrendo ao Poder  
Judiciário. O Marco Temporal ataca os direitos dos povos originários e facilita o processo de  
expropriação das riquezas naturais do país. O direito originário sobre a terra, previsto no artigo  
231 da Constituição Federal de 1988, será posto em xeque com a aprovação da tese do Marco  
Temporal, que estabelece que as terras indígenas só podem ser demarcadas se  
comprovadamente tiverem ocupação desde 1988 (Lima, 2023). Tal medida visa a obtenção de  
mais terras pelos latifundiários e o saque de bens naturais, sendo defendida por organismos da  
136  
5 Dados extraídos de: https://fpagropecuaria.org.br/todos-os-membros/. Acesso em 25/07/2023.  
Libertas, Juiz de Fora, v. 24, n. 1, p. 126-145, jan./jun. 2024. ISSN 1980-8518  
A “questão da terra” no Brasil: heranças e permanências na cidade, no campo e na floresta  
burguesia agrária, como a Confederação da Agricultura e Pecuária do Brasil (CNA), que conta  
com recursos de empresas do próprio capital internacional.  
Com a aprovação do Marco Temporal pelo Legislativo, diversas entidades e ONGs  
(como a Articulação dos Povos Indígenas do Brasil, o Conselho Indigenista Missionário e  
WWF Brasil) denunciam o uso de terra indígena para agropecuária, os garimpos ilegais que  
poluem fozes de rios, a ameaça do desmatamento para comercialização de madeira ilegal, além  
da ameaça contra a vida das comunidades indígenas e de floresta e do etnocídio dos 89 povos  
em isolamento voluntário, apartados da violência dos homens brancos. Vimos a crueldade da  
sana capitalista contra os povos indígenas com o assassinato genocida das 570 crianças e adultos  
ianomâmis, intoxicados por mercúrio, mortos de fome, sem acesso a direitos básicos e à  
proteção social do Estado, violentados pelo garimpo irregular e ilegal (protegido pelo governo,  
que negou 21 pedidos de socorro de comunidades ianomâmis6) (Lima, 2023).  
Tal Marco Temporal reforça o processo de expropriação destrutiva da natureza e a  
concentração de terras. Essa concentração produz ainda o vislumbre de uma já presente e futura  
luta pela água potável, em que bacias hidrográficas têm sido expropriadas em todo o planeta, a  
partir da compra de terras e das licitações estatais em países dependentes. O acesso à água e ao  
esgotamento sanitário tem se tornado um negócio lucrativo em nosso país, tendência mundial  
desde os anos 1980 (Calisto; Alves, 2020). No Brasil, desde a aprovação da Lei nº 9.433/1997,  
já se prevê a gestão de recursos hídricos por empresas privadas, o que se amplificaria se  
aprovado o Projeto de Lei do Senado n° 495, de 2017, que alteraria a Política Nacional de  
Recursos Hídricos, e propõe a criação dos mercados de água no país. Se Marx denunciava a lei  
injusta sobre o furto da madeira ainda no século XIX, é preciso denunciar a venda de nossas  
bacias hidrográficas no século XXI. Segundo Dalila Calisto e José Josivaldo Alves (2020),  
coordenadores nacionais do Movimento das/dos Atingidos por Barragens (MAB), a criação de  
um mercado de água significa permitir que grandes grupos econômicos controlem e se  
apropriem de forma privada dos rios e das águas subterrâneas do Brasil.  
137  
Com o processo de mercantilização da natureza e da produção destrutiva, chegamos em  
um momento em que vivemos uma crise ambiental que atinge nossa sociabilidade, a ponto de  
colocar em risco a vida humana e de outros seres naturais no planeta, com o aquecimento global  
e os consequentes “desastres” socioambientais provocados pela ação humana predatória, em  
que como temos visto a grilagem de terras, a extração ilegal de minérios, a máfia do  
desmatamento, do tráfico de drogas, dentre outros, ameaçam a cultura e a vida dos povos de  
6
Tânia Maria Ramos de Godoi Diniz; Caroline Magalhães Lima; Raphael Martins de Martins  
floresta, do campo e repercutem diretamente nas cidades. Além disso, a produção poluente, o  
descarte irregular de resíduos e o consumo exacerbado reproduzem uma dinâmica produtiva  
insustentável, em que a extração da mais-valia é o foco, a qualquer custo, provocando  
consequências nefastas, com deslizamentos de terras, enchentes, disseminação de doenças,  
secas e fome, isolamento de comunidades, envenenamento dos solos, águas e ar etc.  
A fome é outro reflexo da contradição do capital, própria à sua lógica produtiva  
destrutiva e que se acentua como contradição no tempo presente, uma vez que nunca tivemos  
tantos artefatos tecnológicos e produção alimentícia, suficiente e sobrante, para satisfazer as  
necessidades humanas em nível planetário, mas concentrada e controlada por grandes  
conglomerados internacionais, como Nestlé, AB Inbev, PepsiCO, Danone, General Mills,  
Mondelez, Tyson Foods, JBS e Kraft-Heinz (Forbes, 2023), que no último ano lucraram 4,4  
trilhões de dólares e movimentaram US$ 50,8 trilhões. Contraditoriamente, estima-se que no  
início do século XXI, um terço da população mundial vivia em situação de fome e/ou pouco  
acesso à água potável (Ziegler, 2013). No caso do Brasil, segundo a Organização das Nações  
Unidas para a Alimentação e a Agricultura (FAO), 70,3 milhões de pessoas vivem em situação  
de insegurança alimentar moderada e 21,1 milhões em situação grave, ou seja, mais de 40% da  
população brasileira convive com a fome (Brasil, 2023).  
Segundo a Oxfam (2022), no período da “crise sanitária” houve uma exacerbação da  
concentração de renda e das desigualdades sociais em todo o planeta, em que empresas dos  
setores alimentício, farmacêutico, energético e tecnológico extraíram superlucros às custas do  
sofrimento de contingentes de trabalhadores, desempregados, adoecidos, enfrentando a fome e  
alta nos preços, recorrendo ao endividamento e/ou vivenciando a extrema necessidade. A  
pandemia ainda evidenciou outro processo crítico do capital: a expropriação do fundo público,  
que, no Brasil, é formado principalmente pela renda oriunda do trabalho, a partir de impostos  
indiretos, de caráter regressivo (Behring, 2021). Afirmamos, assim, que os processos de  
expropriação se dão de forma primária e secundária (Fontes, 2018), tanto na captura à força de  
riquezas, quanto naquelas construídas a partir de mecanismos normativos, ideológicos e bélicos  
(Lima, 2023), desenvolvidos a fim de garantir a produção anárquica de mercadorias.  
Tais expropriações somam-se ao processo de produção e realização do valor produzido  
pelo trabalho vivo, cada vez mais subsumido, submetido à superexploração, com a certificação  
do Estado a partir da retirada de direitos, das flexibilizações e precarizações, do estímulo ao  
individualismo e à concorrência empreendedora, da constante ofensiva ideológica e política de  
disseminação da cultura do consumo. Amplia-se a obsolescência programada, a  
descartabilidade, o desperdício, o desencantamento e desesperançar provocados pela sensação  
138  
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A “questão da terra” no Brasil: heranças e permanências na cidade, no campo e na floresta  
de não realização, pelo não alcance de padrões de consumo disseminados, e pelo fatalismo  
midiático ante à ameaça de esgotamento dos recursos naturais (Lima, 2023).  
Cada elemento exposto compõe uma ou múltiplas expressões da “questão social” na  
cotidianidade da vida de usuários/as das políticas sociais e públicas com as quais nossa  
profissão atua – direta ou indiretamente, intersetorialmente. É preciso, pois, que pensemos  
estratégias para enfrentar os desafios postos pela dinâmica contraditória do real, para a  
construção de outros horizontes, outras relações, que brotem do chão de nosso cotidiano, sejam  
no âmbito privado, seja no âmbito profissional.  
Enfrentando os desafios: para uma agenda do Serviço Social  
Nesses tempos de destrutividade global do capital emergem também novas formas de  
exploração do trabalho, redefinindo os contornos da precarização das condições de vida da  
classe trabalhadora, que é estrutural ao capitalismo e que expressa a própria crise de valorização  
do capital, convergindo com a derruição dos direitos, o desmonte da proteção social e com o  
agravamento da questão social (Druck, 2023).  
E diante desse contexto econômico e político, é exigência entender as determinações  
estruturais do capital e o lugar contraditório do Estado nesse processo que se constitui sob a  
lógica neoliberal. Como afirma Harvey (2012, p. 121), “o estado com seu monopólio de  
violência e suas definições de legalidade, tem papel crucial no apoio e na promoção desses  
processos (...) vem mantendo as lógicas territorial e capitalista do poder sempre interligados,  
ainda que não necessariamente convergentes”.  
139  
Pensar uma agenda do Serviço Social, de enfrentamento das manifestações da “questão  
social”, é partir de reflexões sobre o contexto social e político de um país regido pelas relações  
capitalistas de produção e reprodução social e por novas configurações do trabalho na  
contemporaneidade que rebatem na profissão e na organização política de assistentes sociais.  
Em outras palavras, não se pode falar de “questão social no Brasil, sem revelar seus processos  
históricos e políticos (Nogueira; Batistoni; Nozabielli, 2022, apud Yasbek).  
Trata-se de um exercício complexo porque exige desvendar as determinações internas e  
externas que constituem movimentos da realidade social, expressos, como vimos anteriormente,  
na permanência de desigualdades socioeconômicas, políticas e culturais, nos movimentos de  
um capitalismo periférico e dependente que, cada vez mais, concentra renda e propriedade  
privada, com vistas a sustentar projetos nacionais que sobrevivem na alternância de governos  
de regimes autoritários e democracias formais.  
Tânia Maria Ramos de Godoi Diniz; Caroline Magalhães Lima; Raphael Martins de Martins  
Uma agenda do Serviço Social, ainda que não pretenda ser exaustiva, deve ser  
alimentada com propostas teóricas e políticas profissionais insurgentes às relações sociais que  
emergem de uma sociedade cujos enigmas históricos, colonizadores e escravistas, revelam  
aspectos da sociabilidade capitalista. Daí a importância de voltar à história, inclusive para  
identificar coletivamente as implicações desse processo no desenvolvimento econômico e  
social, em vista do caráter particular assumido pelo capitalismo no Brasil.  
É necessário considerar as particularidades brasileiras com seu colonialismo interno,  
suas relações racializadas e generificadas e seus impactos na forma de ser e estar no mundo de  
homens e mulheres que sofreram essa colonização e esse racismo. As atividades econômicas  
para a valorização do capital financeiro mundial têm a manutenção da espoliação e do racismo  
como uma ação que perpetua e complementa a superexploração da força de trabalho, com  
salários baixos, aumento da jornada e intensificação do trabalho, garantindo o padrão de  
consumo das classes com alto poder aquisitivo.  
Portanto, o esforço é apreender o Serviço Social no movimento da história, na  
dinamicidade da vida em sociedade, na tarefa de explicar como a profissão contribui com o  
processo de produção e reprodução das relações sociais capitalistas (Iamamoto, 2019). E, nesse  
sentido, é preciso analisar o trabalho profissional nas suas múltiplas determinações, como  
trabalho humano abstrato e não somente como trabalho concreto que se esgota no valor de uso  
dos serviços prestados (Iamamoto, 2007).  
140  
Dessa forma, a linha histórica analítica apresentada demonstrou dinâmicas próprias em  
um país cuja diversidade é constitutiva do caráter étnico-racial e cultural de sua população, e  
cuja estrutura colonial, com a herança da escravização de povos africanos e com o genocídio  
dos povos originários, é indispensável na apreensão das relações desiguais, resultado de um  
processo de expropriação dos meios de trabalho e de exploração da riqueza socialmente  
produzida. Trata-se de um processo que é alimentado por uma burguesia rentista, incapaz de  
construir um desenvolvimento autônomo, submetida que está às determinações heterônomas  
com vistas a um crescimento econômico e integração mundial, sob condições específicas da  
produção e reprodução das relações capitalistas na atualidade.  
As políticas neoliberais vêm promovendo a manutenção das desigualdades, cujas  
explicações morais corrupções e populismos reforçam modelos europeus e norte-  
americanos de análises, ignorando as heranças históricas de um colonialismo que se perpetua,  
resultado de uma globalização que não cumpriu suas promessas, conforme afirma Ianni (s/d).  
A integração financeira e comercial imposta pelas regras neoliberais, com exportação de  
produtos primários e importação de tecnologias e maquinaria, ligada ao fato que o país não  
Libertas, Juiz de Fora, v. 24, n. 1, p. 126-145, jan./jun. 2024. ISSN 1980-8518  
A “questão da terra” no Brasil: heranças e permanências na cidade, no campo e na floresta  
perdeu a centralidade na produção de riquezas naturais, principalmente quando se olha para a  
Amazônia, aumenta as manifestações racistas e xenofóbicas e uma sistemática violação dos  
mais elementares direitos humanos. Com restaurações conservadoras ou mesmo com  
características fascistas, aprofundam as desigualdades no Brasil e entre as regiões e populações  
do país, sob o mote de diferentes crises econômica, política, social e ambiental.  
Em outras palavras, as transformações globais do capitalismo na sua forma neoliberal  
no Brasil, tem construído sofisticadas formas de oprimir e invisibilizar a pobreza, de  
criminalizar e exterminar os segmentos sociais denominados minorias como mulheres, negros  
e negras, população LGBTQI+, a par com uma concentração de renda e riqueza que implica em  
relações desiguais, injustas, profundamente excludentes e antidemocráticas. São relações  
sociais que convertem homens, mulheres, adultos, jovens e inclusive crianças, negros,  
indígenas, asiáticos em mercadorias para o capital, degradando o valor da venda de sua força  
de trabalho, ou seja, “é o trabalho abstrato levado a extremos, que captura, mobiliza e  
transforma processos sociais e atividades as mais disparatadas em sobrevalor” (Teles, 2006,  
174). Os processos de reconfiguração e reirarquização do capitalismo mundializado  
impulsionam a mercantilização das relações sociais em detrimento da banalização da vida.  
A ideologia dominante dos países centrais tem legitimado a modernidade capitalista e a  
ideia de que as desigualdades no contexto da globalização são superáveis por serem produto da  
“incapacidade de vários grupos humanos que não foram tão ‘bons e eficientes’ como os  
europeus”, conforme crítica de Barros (2021, p., grifos do autor). O capitalismo, com essa  
explicação, busca esconder as contradições das relações de subordinação estabelecidas com o  
mercado externo, as exigências impostas nas relações de produção para atender a acumulação  
do capital, a intensa e crescente exploração dos trabalhadores na periferia do capital (Paiva,  
Rocha, Carraro, 2010).  
141  
No mesmo diapasão, nestes tempos neoliberais a “questão social” passa a ser definida  
por suas expressões, em análises que não relacionam com a lei geral da acumulação capitalista,  
com a exploração do trabalho pelo capital e com as lutas dos/as trabalhadores/as contra essa  
exploração (Castelo, 2010). Concordamos com o autor, quando afirma que são outras as  
categorias que explicam a questão social: trabalho alienado, exploração, mais valia,  
pauperismo, acumulação e “pode ser entendida de forma mais precisa como a exploração do  
trabalho assalariado pelo capital e as lutas dos/as trabalhadores/as contra as relações sociais de  
produção capitalista e todas as suas formas de exploração, opressão e dominação” (Castelo,  
2010, p. 93). Essa afirmativa deve direcionar a atuação profissional.  
Tânia Maria Ramos de Godoi Diniz; Caroline Magalhães Lima; Raphael Martins de Martins  
A partir das contradições que a determinam, a “questão social” marca nossa profissão,  
inserida na divisão sociotécnica do trabalho como especialização do trabalho coletivo e, “como  
um dos principais temas no debate profissional, a questão social deve ser entendida como  
produto social historicamente determinado pelo modo de produção capitalista e pelas lutas  
modernas do movimento operário” (Castelo, 2010, p. 86).  
Como todos esses elementos impactam uma agenda do Serviço Social? O Serviço Social  
tem uma dupla dimensão: as condições sócio-históricas com seus limites e possibilidades e as  
respostas que têm caráter técnico profissional e ético-político e traduzem a maneira como os  
limites e possibilidades são analisados e transformados em intervenções na realidade social. E  
a intervenção aqui não tem uma associação mecânica com a atenção às demandas.  
Assim, em lugar de sucumbirmos nas águas turbulentas de nossa realidade brasileira,  
com sua burguesia rentista dominante e seus programas neoliberais, sustentando valores  
individualistas, devemos construir na vida cotidiana, os caminhos para uma sociedade justa e  
igualitária, comprometida com a liberdade e com os direitos. E isso deve ser feito com análise  
permanente da realidade, com diálogo com os sujeitos coletivos, sob uma fundamentação  
teórica e metodológica crítica, conhecimento técnico operativo, condições fundamentais para  
abordagens éticas e políticas do trabalho social.  
142  
Considerações Finais  
Em concordância com Cardoso (2011, p. 18), “as antigas e novas formas de  
expropriação da terra urbana e rural, do ponto de vista da reprodução ampliada do capital, são  
acionadas e reproduzidas, continuamente, no capitalismo do século XXI” e, nessa direção, é  
importante a identificação dos traços históricos e sociais que contribuem para o desenho  
explicativo da manutenção estrutural das desigualdades no Brasil que expressam as tensões e  
paradoxos e forjam um desenvolvimento desigual e combinado, particularizando a “questão  
social” e suas determinações no país.  
A tendência de mercantilização cada vez mais ampliada e radicalizada do acesso aos  
recursos naturais se apresenta na vida cotidiana, imprimindo a marca da desigualdade na  
dinâmica da luta de classes, que enfrenta os desafios da reinvenção de formas de resistência da  
classe trabalhadora, única cujo projeto societário é capaz de apontar alternativas emancipatórias  
e de estabelecimento de novas relações com o outro e com a natureza.  
Ao Serviço Social, reafirmando seus vínculos históricos e sociais estabelecidos com os  
movimentos sociais que lutam por liberdade e por direitos, cabe reafirmar uma agenda que  
defenda um trabalho profissional de assistentes sociais vinculado à prática de alianças com  
Libertas, Juiz de Fora, v. 24, n. 1, p. 126-145, jan./jun. 2024. ISSN 1980-8518  
A “questão da terra” no Brasil: heranças e permanências na cidade, no campo e na floresta  
diferentes segmentos de representação coletiva, fóruns, articulação de trabalhadores/as no  
sentido de reconhecimento na cena pública e visibilização das lutas sociais de segmentos da  
classe trabalhadora que resistem aos contextos da sociabilidade capitalista.  
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145  
(RE)produção social do capital no Brasil:  
flexibilidade da produção e do acesso a direitos  
Social (re)production of capital in Brazil:  
flexibility of production and access to rights  
Maria Augusta Bezerra da Rocha*  
Resumo: A produção social capitalista implica  
produção no sentido material de mercadorias  
mas também da reprodução social no sentido de  
como os seres sociais produzem e reproduzem  
sua vida material, suas ideias e seu cotidiano.  
Assim, com as mudanças no processo produtivo  
do paradigma fordista para toyotismo no  
cenário de crise estrutural do capital somado  
com o avanço neoliberal há repercussões na  
vida da classe trabalhadora. Desse modo, o  
estudo possui como objetivo analisar como a  
produção flexível (toyotismo) implica produção  
flexível e direitos flexíveis, retirados da classe  
trabalhadora brasileira, analisando o cenário  
recente pós-golpe de 2016. Realizou-se a partir  
de revisão de literatura sobre os principais temas  
do estudo Fordismo, Toyotismo, Produção  
social capitalista e contrarreforma somando-se  
com breve levantamento de indicadores sociais.  
Conclui-se que o avanço da acumulação flexível  
Abstract: Capitalist social production implies  
production in the material sense of goods but  
also social reproduction in the sense of how  
social beings produce and reproduce their  
material life, their ideas and their daily lives.  
Thus, with the changes in the production  
process from the Fordist paradigm to Toyotism  
in the scenario of capital's structural crisis  
combined with the neoliberal advance, there are  
repercussions on the life of the working class.  
Thus, the study aims to analyze how flexible  
production (Toyotism) implies flexible  
production and flexible rights, taken from the  
Brazilian working class, analyzing the recent  
post-coup scenario of 2016. It was carried out  
based on a literature review on the main themes  
of the study Fordism, Toyotism, Capitalist  
social production and counter-reformation,  
together with a brief survey of social indicators.  
It is concluded that the advancement of flexible  
accumulation and counter-reforms has  
worsened the precariousness of work and social  
inequality in the country.  
e
das contrarreformas tem agravado  
a
precarização do trabalho e a desigualdade social  
no país.  
Palavras-chaves:  
Acumulação flexível; Direitos flexíveis;  
Contrarreforma trabalhista; Brasil.  
(Re)produção  
social;  
Keywords: Social (re)production; Flexible  
accumulation; Flexible rights; Labor counter-  
reform; Brazil.  
* Doutoranda no Programa de Pós-Graduação em Serviço Social da Universidade Federal de Pernambuco (PPGSS-  
UFPE). Graduada e mestra em Serviço Social pela Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN). E-  
mail: augusta.b.rocha@gmail.com. ORCID: https://orcid.org/0000-0003-1133-2353  
DOI: 10.34019/1980-8518.2024.v24.43670  
Esta obra está licenciada sob os termos  
Recebido em: 27/02/2024  
Aprovado em: 10/06/2024  
(RE)produção social do capital no Brasil: flexibilidade da produção e do acesso à direitos  
Introdução  
A crítica arrancou as flores fantásticas do grilhão, não para que o homem  
carregue um grilhão sem fantasia, sem consolo, mas para que ele jogue fora o  
grilhão e a flor viva rebente (Marx, 2012b).  
No cenário do capitalismo mundial atual a desigualdade é tamanha que os milhões de  
trabalhadores e trabalhadoras que produzem a riqueza e de quase nada se apropriam de fato  
carregam um grilhão sem consolo: os 10 homens mais ricos do mundo têm hoje seis vezes mais  
riqueza do que os 3,1 bilhões mais pobres do mundo, conforme estudo recente da Oxfam (2022).  
No Brasil essa realidade não é diferente visto que os 20 maiores bilionários do país têm mais  
riqueza do que 128 milhões de brasileiros (60% da população), como aponta o relatório “A  
desigualdade Mata” da Oxfam (2022). Em estudo divulgado mais recentemente ainda, início de  
2024, o Instituto destaca que a riqueza dos cinco homens mais ricos do mundo aumentou 114%  
desde 2020 e que a pessoa mais rica do Brasil possui uma fortuna equivalente à metade mais  
pobre do Brasil, equivalente a 107 milhões de pessoas (Oxfam, 2024).  
Assim, cresce a desigualdade social na medida que aumenta a piora nas condições de  
vida e trabalho com a precarização estrutural do trabalho. O presente estudo se situa nesse  
contexto realizando uma interligação com as mudanças advindas no processo produtivo  
sobretudo atreladas ao paradigma fordista para o toyotismo no cenário de crise estrutural do  
capital (Mészáros, 2002) somado com o avanço ultraneoliberal (Behring, 2021).  
147  
Esse cenário impõe uma série de repercussões na vida da classe trabalhadora, pois a  
produção social no capital é também reprodução social da vida material e do acesso aos direitos.  
Desse modo, o estudo possui como objetivo analisar como a acumulação flexível e o toyotismo  
implicam em uma produção flexível e direitos flexíveis, cortados, retirados da classe  
trabalhadora brasileira, para isso analisando o cenário recente brasileiro pós-golpe de 2016, com  
as mudanças nos anos seguintes até o marco de 2022. Realizou-se a partir de revisão de  
literatura sobre os principais temas do estudo Fordismo, Toyotismo, Produção social capitalista  
e contrarreforma1 somando-se com breve levantamento de indicadores no recente estudo da  
Síntese de Indicadores Sociais do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE, 2022).  
O estudo encontra-se dividido além desta Introdução e das considerações finais em 3  
eixos que se debruçam respectivamente sobre: a centralidade do trabalho e a (re)produção social  
no capital, as mudanças da produção formal e direitos formais para produção flexível e direitos  
1
O termo foi utilizado para referir-se ao conjunto de reformas legislativas regressivas aos direitos, adotado por  
Behring (2003).  
Maria Augusta Bezerra da Rocha  
flexíveis, e por último reflete sobre essa realidade de flexibilização das relações produtivas e  
dos direitos sociais e trabalhistas na realidade brasileira.  
A centralidade do trabalho e a (re)produção social no capital  
Sim, todo amor é sagrado  
E o fruto do trabalho  
É mais que sagrado, meu amor  
A massa que faz o pão  
Vale a luz do seu suor  
Lembra que o sono é sagrado  
E alimenta de horizontes  
O tempo acordado, de viver  
(Guedes; Bastos, 1978)  
O trabalho é uma dimensão essencial na vida humana, do ponto de vista de produção de  
valores de uso enquanto uma condição para suprimento das necessidades, contribuindo no  
processo de humanização e na própria constituição do ser social. Assim, o trabalho é “um  
processo entre o homem e a Natureza, um processo em que o homem, por sua própria ação,  
media, regula e controla seu metabolismo com a Natureza” (Marx, 1996, p. 297).  
A partir dessa relação que se constrói por intermédio do trabalho um conjunto de  
objetivações e de transformações tanto da natureza quanto do ser social, em um movimento  
dialético que “ao atuar, por meio desse movimento, sobre a Natureza externa a ele e ao  
modificá-la, ele modifica, ao mesmo tempo, sua própria natureza” (Marx, 1996, p. 297). Essa  
dinâmica permite o desenvolvimento das forças produtivas e a complexificação do ser social.  
Porém, o trabalho que seria para realização dos seres sociais, é dado em condições  
objetivas, em relações sociais de produção que definem o caráter/posse da propriedade dos  
meios de produção e do usufruto das riquezas produzidas. Dessa forma, na sociedade onde  
impera o modo de produção capitalista, a propriedade privada dos meios de produção pertence  
a classe capitalista burguesa que compra no mercado meios de produção (capital fixo) e força  
de trabalho (capital variável) a fim de gerar mercadorias com valor de uso e valor de troca para  
serem vendidas e realizadas no mercado.  
148  
Aspecto importante é que o processo de produção não é somente de produção mas  
também uma unidade com o processo de formação de valor (valorização): “o processo de  
produção é processo de produção de mercadorias; como unidade do processo de trabalho e  
processo de valorização, é ele processo de produção capitalista, forma capitalista da produção  
de mercadorias” (Marx, 1996, p. 314). Nesse processo, põe-se em movimento o capital  
constante e o capital variável com uma diferença substancial, apenas a força de trabalho (capital  
Libertas, Juiz de Fora, v. 24, n. 1, p. 146-162, jan./jun. 2024. ISSN 1980-8518  
(RE)produção social do capital no Brasil: flexibilidade da produção e do acesso à direitos  
variável) produz mais-valor e não somente reproduz o seu valor cristalizado. Desse modo, a  
força de trabalho é trabalho vivo que além de reproduzir o seu próprio valor gera um valor a  
mais, a mais-valia.  
Por isso, o capitalista não quer apenas produzir valor de uso mas sim mercadorias “não  
só valor de uso, mas valor e não só valor, mas também mais-valia” (Marx, 1996, p. 305). E  
quem produz esse mais-valor é a classe trabalhadora como uma potência de transformação  
colocando em movimento sua capacidade produtiva e o funcionamento dos meios de produção.  
Com a constituição das relações sociais baseadas na exploração e expropriação do  
trabalho da sociedade onde impera o modo de produção capitalista pela classe social que  
monopoliza a propriedade privada dos meios de produção, o trabalho deixa de ser uma virtude,  
elemento básico para suprimento das necessidades e passa a se tornar um suplício, um  
“privilégio da servidão”. Dessas relações ocorrem rupturas essenciais, gerando processos de  
alienação e desumanização.  
Dessa forma, enquanto regime de acumulação pautado na busca incessante de  
acumulação de riquezas, o capitalismo se organiza a partir da produção social da riqueza pelos  
trabalhadores, mas da apropriação privada desta pela classe burguesa, desenvolvendo como  
consequência um conjunto de expressões de desigualdades denominado questão social2. Essa  
forma de organização é uma das formas de realização do capital enquanto uma relação social  
estabelecida através da separação dos trabalhadores e dos meios necessários para produção e  
reprodução da sua vida social (Mészáros, 2002).  
149  
Então, o sistema capitalista é expressão de uma forma de realização do capital sendo  
por isso uma maneira historicamente determinada de como os homens e mulheres produzem e  
reproduzem a sua vida social, conforme explicitam Iamamoto e Carvalho (2009):  
O processo capitalista de produção expressa, portanto, uma maneira  
historicamente determinada de os homens produzirem e reproduzirem as  
condições materiais da existência humana e as relações sociais através das  
quais levam efeito  
a
produção. Neste processo se reproduzem,  
concomitantemente, as ideias e representações que expressam estas relações e  
as condições materiais em que se produzem, encobrindo o antagonismo que  
as permeia (Iamamoto; Carvalho, 2009, p. 30).  
Assim, a produção social não é somente no sentido material de produção capitalista de  
mercadorias mas também da reprodução social no sentido de como os seres sociais produzem  
e reproduzem sua vida, suas ideias, sua consciência e seu cotidiano. Como alerta Marx (2012a)  
2
“[...] diz respeito ao conjunto das expressões das desigualdades sociais engendradas na sociedade capitalista  
madura, impensáveis sem a intermediação do Estado. Tem sua gênese no caráter coletivo da produção, contraposto  
à apropriação privada da própria atividade humana - o trabalho -, das condições necessárias à sua realização, assim  
como de seus frutos” (Iamamoto, 2001, p. 17).  
Maria Augusta Bezerra da Rocha  
essa concepção mostra que a história não termina se dissolvendo como “espírito do espírito”,  
na “autoconsciência” como abordam os idealistas mas sim de modo material na qual em cada  
sociedade “em cada um dos seus estágios encontra-se um resultado material, uma soma de  
forças de produção, uma relação historicamente estabelecida com a natureza e que os indivíduos  
estabelecem uns com os outros” (Marx, 2012a, p. 151).  
No capitalismo essa relação se baseia na contradição entre a produção voltada  
incessantemente para o lucro enquanto milhões de trabalhadores não se apropriam da própria  
riqueza que geram e vivem em condições tão aviltantes que não conseguem nem consumir itens  
básicos. A partir dessa lógica, o sistema do capital periodicamente entra em crises, como já  
sinalizava Marx e Engels (2008, p. 18): “crises comerciais que, repetidas, periodicamente e  
cada vez maiores, ameaçam a sociedade burguesa. Nas crises irrompe uma epidemia social que  
em épocas anteriores seria considerada um contra-senso – a epidemia da superprodução”.  
Dessa forma, as crises de duração e intensidade variadas fazem parte desse modo de  
produção, da sua forma de existência e funcionamento. Assim que o capital atravessou a crise  
de 1929 e o processo de reorganização tanto da esfera produtiva quanto das formas de garantir  
sua reprodução ampliada e a retomada das taxas de lucro, conforme tópico seguinte.  
Da produção formal e direitos formais à produção flexível e direitos flexíveis  
A crise econômica do capitalismo que ficou conhecida como época da grande depressão,  
a partir de 1929, manifestando-se como falta de demanda efetiva por produtos, acabou  
conduzindo o capitalismo a uma reestruturação da produção e da forma de gestão do trabalho  
que toma por base a proposta de Henry Ford3 e o chamado Fordismo.  
150  
A adoção desse modelo de gestão da força de trabalho buscava disciplinar os  
trabalhadores “em sistemas de produção novos e mais eficientes e em que a capacidade  
3
A data inicial simbólica do fordismo deve por certo ser 1914, quando Henry Ford introduziu seu dia de oito  
horas e cinco dólares como recompensa para os trabalhadores da linha automática de montagem de carros que ele  
estabelecera no ano anterior em Dearbon, Michigan. Mas o modo de implantação geral do fordismo foi muito mais  
complicado do que isso. [...] Ford também fez pouco mais do que racionalizar velhas tecnologias e uma detalhada  
divisão do trabalho preexistente, embora, ao fazer o trabalho chegar ao trabalhador numa posição fixa, ele tenha  
conseguido dramáticos ganhos de produtividade. Os Princípios da Administração Científica, de F. W. Taylor- um  
influente tratado que descrevia como a produtividade do trabalho podia ser radicalmente aumentada através da  
decomposição de cada processo de trabalho em movimentos componentes e da organização de tarefas de trabalho  
fragmentadas segundo padrões rigorosos de tempo e estudo do movimento -, tinham sido publicados, afinal, em  
1911. E o pensamento de Taylor tinha uma longa ancestralidade, remontando, através dos experimentos de  
Gilbreth, na década de 1890, às obras de escritores da metade do século XIX como Ure e Babbage, que Marx  
considerara reveladoras. A separação entre gerência, concepção, controle e execução (e tudo o que isso significava  
em termos de relações sociais hierárquicas e de desabilitaçáo dentro do processo de trabalho) também já estava  
bem avançada em muitas indústrias (Harvey, 2008, p. 121).  
Libertas, Juiz de Fora, v. 24, n. 1, p. 146-162, jan./jun. 2024. ISSN 1980-8518  
(RE)produção social do capital no Brasil: flexibilidade da produção e do acesso à direitos  
excedente fosse absorvida em parte por despesas produtivas e infra-estruturas muito necessárias  
para a produção e o consumo” (Harvey, 2008, 124).  
Desse modo, compreende-se que a produção em massa também demandava consumo  
em massa e um comportamento disciplinado dos trabalhadores, de modo que estivessem aptos  
para a produção e o sistema da linha de montagem. Por isso era preciso controlar e gerenciar o  
modo específico de viver e de pensar a vida.  
Desse modo, era preciso controlar e gerenciar o modo específico de viver e de pensar a  
vida, Gramsci (2008) nessa esteira analisa inclusive como as “Questões de sexualidade, de  
família, de formas de coerção moral, de consumismo e de ação do Estado estavam vinculadas  
[...] ao esforço de forjar um tipo particular de trabalhador adequado ao ‘novo tipo de trabalho e  
de processo produtivo‘” (Harvey, 2008, p. 121-122).  
Mas essas mudanças nas bases produtivas manifestam-se principalmente na Europa e  
nos Estados Unidos (EUA) enquanto características de países de capitalismo central e o EUA  
como país que atravessou rompimento da sua base colonial e avançava na mudança das bases  
produtivas com a incorporação de uma produção em escala, consumo em massa e na criação de  
um estilo de vida americano. Desse contexto que emerge o fenômeno político, ideológico e  
econômico do American Way of Life (Estilo de vida americano) no âmbito do americanismo:  
Fenômeno a um só tempo político, ideológico e econômico, o americanismo  
surge aos olhos de Antonio Gramsci como um modo de vida profundamente  
imbricado na esfera produtiva com o taylorismo como modelo de  
organização do trabalho e com o fordismo como mecanismo global de  
acumulação de capital (Braga, 2008, p. 12-13).  
151  
Assim, o americanismo política e ideologicamente propunha tentativas de gerência para  
refrear a combatividade classista do movimento sindical com altos salários e a difusão de  
ideologias proibicionistas entre as famílias operárias. Braga (2008) destaca como Gramsci  
mesmo no cárcere percebeu a junção do sistema de Taylor com a mecanização do ritmo  
produtivo advindo da linha de montagem, se estendendo da produção no chão de fábrica para a  
reprodução social da vida do operário. E isso se expressa na combinação de altos salários,  
reforço do proibicionismo para se ter trabalhador regulado sem uso de substâncias psicoativas,  
a regulação puritana dos hábitos sexuais e o estímulo e reforço pela propaganda do  
individualismo como antídoto ao associativismo de classe com o sindicato.  
Outro fator importante nessa regulação da força de trabalho e na estratégia do capital  
em recompor suas taxas de lucros, foi o papel exercido pelo Estado que assumiu uma variedade  
de obrigações. Baseando-se nas ideias do economista inglês John Keynes, o Fordismo somou-  
Maria Augusta Bezerra da Rocha  
se com o Keynesianismo que propunha a intervenção do Estado na economia de forma forte e  
firme promovendo um conjunto de investimentos públicos e gerando o pleno emprego.  
As políticas estatais dirigiam-se, então, para as áreas de investimento público em setores  
como o transporte, os equipamentos públicos enquanto vitais para o crescimento da produção  
e do consumo de massa e que também garantiam um emprego relativamente pleno, como aponta  
Harvey (2008). Também deveria investir e garantir um conjunto de políticas sociais com  
investimentos em seguridade social, assistência médica, educação, habitação, garantindo os  
direitos sociais dos trabalhadores, constituindo-se no chamado Estado de Bem-Estar Social.  
A partir dessa conjunção de elementos foi relativamente fácil racionalizar a produção e  
o trabalho, pois “combinando habilmente a força - a destruição do sindicalismo operário de  
alcance nacional - com a persuasão -, altos salários, benefícios sociais diversos, propaganda  
ideológica e política muito hábil, conseguindo-se, assim, basear toda a vida do país sobre a  
produção” (Gramsci, 2008, p. 38).  
Esse contexto capitalista de criar tanto um crescimento econômico estável como um  
aumento dos padrões de vida combinando Estado do bem-estar social, administração  
econômica keynesiana e controle de relações de salário perdurou por décadas, dos anos 1930  
até os anos 1970 marcando a fase dos “anos dourados” do capitalismo.  
No entanto, mesmo em sua fase áurea havia insatisfações e descontentamentos pois os  
benefícios advindos do fordismo e do Estado de Bem-estar social na vida material dos  
trabalhadores não eram universais para todos os segmentos da sociedade. Tendo em vista que  
como explica Harvey (2008, p. 132) “nem todos eram atingidos pelos benefícios do fordismo,  
havendo na verdade sinais abundantes de insatisfação mesmo no apogeu do sistema”. Essas  
desigualdades produziram lutas, disputas, tensões e consequentemente movimentos de  
reivindicação por parte de quem estava excluído, assim que surgiram “movimentos que giravam  
em torno da maneira pela qual a raça, o gênero e a origem étnica costumavam determinar quem  
tinha ou não acesso ao emprego privilegiado” (Harvey, 2008, p. 132).  
152  
Ao não terem acesso ao trabalho privilegiado da produção de massa, esses segmentos  
da força de trabalho também não tinham acesso às vantagens do consumo de massa tão  
propagandeadas. Desse conjunto de insatisfações emergem movimentos sociais e  
contraculturais sobretudo nos anos de 1960 como o movimento dos direitos civis nos Estados  
Unidos que segundo Harvey (2008, p. 132) "se tornou uma raiva revolucionária que abalou as  
grandes cidades. Nessa década também também ocorria o afloramento do movimento hippie  
e de mulheres assalariadas mal-remuneradas, sinalizando os amplos setores que possuíam  
demandas, contestações e críticas às desigualdades presentes na realidade.  
Libertas, Juiz de Fora, v. 24, n. 1, p. 146-162, jan./jun. 2024. ISSN 1980-8518  
(RE)produção social do capital no Brasil: flexibilidade da produção e do acesso à direitos  
Mesmo com essas tensões e contradições, o núcleo duro do Fordismo se manteve firme  
até 1973, dado o cenário macroeconômico de aguda recessão iniciando-se um processo de  
transição relativamente rápido do regime de acumulação. No entanto, esse sinais de recessão e  
de mudança no sistema produtivo a partir dos anos 1970 apontam para uma novidade histórica  
no âmbito das crises do capital, da qual Mészáros (2002, p. 795-796) chama atenção para 4  
aspectos fundamentais:  
(1) seu caráter é universal, em lugar de restrito a uma esfera particular (por  
exemplo, financeira ou comercial, ou afetando este ou aquele ramo particular  
de produção, aplicando-se a este e não àquele tipo de trabalho, com sua gama  
específica de habilidades e graus de produtividade etc.); (2) seu alcance é  
verdadeiramente global (no sentido mais literal e ameaçador do termo), em  
lugar de limitado a um conjunto particular de países (como foram todas as  
principais crises no passado); (3) sua escala de tempo é extensa, contínua, se  
preferir, permanente, em lugar de limitada e cíclica, como foram todas as  
crises anteriores do capital; (4) em contraste com as erupções e os colapsos  
mais espetaculares e dramáticos do passado, seu modo de se desdobrar poderia  
ser chamado de rastejante.  
A crise configura-se, assim, como estrutural do capital e possui segundo Mészáros  
(2002) uma processualidade incontrolável e profundamente destrutiva que gera produção e  
consumo supérfluos desconsiderando as necessidades humanas, contribuindo para a corrosão  
do trabalho. Esse componente de corrosão contribui para a precarização estrutural do trabalho  
consistindo em mais um componente vital da crise, conforme aponta Antunes (2009):  
153  
No meio do furacão da crise que agora atinge o coração do sistema capitalista,  
vemos a erosão do trabalho relativamente contratado e regulamentado,  
herdeiro da era taylorista e fordista, modelo dominante no século XX –  
resultado de uma secular luta operária por direitos sociais que está sendo  
substituído e [...] que oscilam entre a superexploração e a própria auto-  
exploração da força de trabalho em escala global caminhando em direção a  
uma precarização estrutural da força de trabalho em escala global. Isso sem  
falar na explosão de desemprego que atinge enormes contingentes de  
trabalhadores, sejam homens ou mulheres, estáveis ou precarizados, formais  
ou informais, nativos ou imigrantes (Antunes, 2009, p. 13).  
Percebe-se como o mundo do trabalho sofre as consequências das determinações  
societárias que impactam nas condições de contratação e regulamentação de milhões de  
trabalhadores/as. Essa situação se agrava ainda mais com as medidas de flexibilização das  
relações de trabalho (intensificação da expropriação do tempo de trabalho não pago), a corrosão  
dos direitos trabalhistas e as limitações de acesso às políticas sociais.  
Nesse chão histórico que se processa profundas mudanças nos processos de trabalho em  
que o cronômetro, a produção em série e em massa são substituídos pela produção flexível,  
novos padrões de produtividade e novas formas de máxima exploração da força de trabalho.  
Maria Augusta Bezerra da Rocha  
Resumindo essas mudanças nas formas de produção, gestão e controle da força de  
trabalho, Harvey (2008, p.140) sinaliza que a chamada acumulação flexível e o modelo toyotista  
em substituição ao fordismo “se apóia na flexibilidade dos processos de trabalho, dos mercados  
de trabalho, dos produtos e padrões de consumo”. Assim, os traços constitutivos do Toyotismo  
no geral se baseiam em uma produção sob demanda, justamente o contrário do padrão fordista  
de produção e consumo em massa, desse modo como ressalta Antunes (1995):  
A produção é variada, diversificada e pronta para suprir o consumo. É este  
quem determina o que será produzido, e não o contrário, como se procede na  
produção em série e de massa do fordismo. Desse modo, a produção sustenta-  
se na existência do estoque mínimo. O melhor aproveitamento possível do  
tempo de produção (incluindo-se também o transporte, o controle de qualidade  
e o estoque), é garantido pelo just in time (Antunes, 1995, p. 26).  
Elemento central dessas transformações e foco deste trabalho é que os desdobramentos  
dessa nova forma de gerar o processo produtivo também possuem desdobramentos na  
reprodução social da vida da classe trabalhadora e no seu acesso a direitos sociais e trabalhistas.  
Como aponta Antunes (1995) nesse contexto, assim como a produção os direitos são  
desregulamentados e flexibilizados, de modo a dotar o capital do instrumental necessário para  
adequar-se a sua nova fase. Com isso, “direitos e conquistas históricas dos trabalhadores são  
substituídos e eliminados do mundo da produção” (Antunes, 1995, p. 16).  
A precarização estrutural do trabalho com a crise estrutural do capital, as mudanças  
advindas com o toyotismo e a acumulação flexível impactam na realidade brasileira. Sobretudo  
vinculado aos impactos para a retirada dos direitos e conquistas históricas da classe trabalhadora  
em um país de capitalismo dependente e periférico, como será melhor debatido no tópico  
seguinte.  
154  
Neoliberalismo, conservadorismo e contrarreformas: a intensificação da  
flexibilidade e retirada de direitos no Brasil pós-golpe  
A partir da formação social nacional brasileira é possível apontar as raízes e marcas  
históricas que o país e seu povo carregam. Mas esse processo não pode ser entendido de forma  
endógena visto que o capital foi determinante na formação social, conformando “um  
capitalismo sui generis, que só adquire sentido se o contemplarmos na perspectiva do sistema  
em seu conjunto, tanto em nível nacional, quanto, e principalmente, em nível internacional”  
(Marini, 2005, p. 6).  
Essa estrutura define a dependência dos países periféricos, possuindo uma produção  
especializada para o mercado internacional, exploração intensiva da força de trabalho com  
baixa remuneração. Para a realidade brasileira periférica, a crise de 1929 implicou na queda do  
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(RE)produção social do capital no Brasil: flexibilidade da produção e do acesso à direitos  
comércio mundial afetando o setor de mercado externo e enfraquecendo as oligarquias  
agroexportadoras ou minero-exportadoras. Por isso, o país recebeu o “estímulo externo”  
atravessando mudanças políticas como a Revolução de 1930 e ao mesmo tempo criando  
condições que permitiram surgir, no Setor de Mercado Interno, um desenvolvimento autônomo,  
uma industrialização por substituição de importações (Singer, 1983).  
Esse processo de industrialização também é conduzido pelos traços do desenvolvimento  
dependente, se expressando também na forma que a burguesia conduziu esse processo.  
Despojando-se, assim, do sonho de ser a burguesia do capitalismo central, as classes  
possuidoras do Brasil tinham a tarefa de compreender a sua própria realidade, em termos de  
papéis e das tarefas históricas que poderiam desempenhar: “como e enquanto burgueses de uma  
sociedade de classes subdesenvolvida e dependente na era do capitalismo monopolista e do  
imperialismo total” (Fernandes, 1976, p. 362-263).  
Na contemporaneidade do capitalismo monopolista, diante do cenário de crise estrutural  
do capital sem precedentes, como aponta István Mészáros (2002), há um conjunto de  
implicações para o Brasil. Isto porque, com a predominância do capital financeiro, a "questão  
social" passa a condensar a própria “banalização do humano, que atesta a radicalidade da  
alienação e a invisibilidade do trabalho social e dos sujeitos que o realizam - na era do capital  
fetiche” (Iamamoto, 2010, p. 125).  
155  
As estratégias do capital nesse cenário de crise para recompor as taxas de lucro ganham  
destaque nos ideais neoliberais, cujo “remédio”, então, era claro: “manter um Estado forte, sim,  
em sua capacidade de romper o poder dos sindicatos e no controle do dinheiro, mas parco em  
todos os gastos sociais e nas intervenções econômicas” (Anderson, 1995, p. 11). O Estado  
reformado, então, para atender às novas necessidades do capital em crise, é colocado com o  
objetivo de assegurar liberdade de movimento para o capital financeiro e as contrarreformas  
que asseguram maior grau de exploração da força de trabalho.  
Sticovsky (2010) cita a austeridade fiscal no Brasil sob a influência do neoliberalismo,  
adotada na gestão do presidente Itamar Franco (PMDB 1993/1994), com a implementação do  
Plano Real, tendo sido aprofundada no governo de Fernando Henrique Cardoso (PSDB –  
1995/2002). Em 1999, por imposição do Fundo Monetário Internacional (FMI) e conforme  
recomendada pelo chamado “Consenso de Washington”, o governo brasileiro recebeu do  
capital as orientações das medidas de ajuste e de limitação da intervenção do Estado,  
direcionando a política fiscal para a criação do superávit primário e do pagamento da dívida  
pública, como solução do endividamento e da estagnação econômica.  
Maria Augusta Bezerra da Rocha  
Assim percebe-se como o orçamento público é um espaço de luta e disputa política,  
como afirma Salvador (2012), no qual estão presentes as diferentes forças da sociedade,  
buscando inserir seus interesses. Essa disputa adquire contornos específicos a partir de cada  
momento histórico como o da década de 1980/1990, assim que “os interesses dentro do Estado  
Capitalista são privados e, a partir da década de 1980, há um domínio hegemônico do capital  
financeiro” (Salvador, 2012, p. 5).  
Nesse contexto, como afirma Brettas (2012), a crise foi assumida pelos Estados por  
meio da dívida pública e “está sendo paga pela classe trabalhadora, via imposição de um ajuste  
fiscal que restringe direitos, contribui para o aumento do desemprego e precariza as condições  
de vida de grandes parcelas da população” (Brettas, 2012, p. 115).  
Essas medidas de estabilidade monetária seguiram sendo implementadas por sucessivos  
governos, inclusive os governos do Partido dos Trabalhadores (PT - 2004-2016), mesmo ao  
terem contribuído com políticas e programas sociais que enfrentaram a desigualdade. No  
período mais recente, acompanhamos os desdobramentos de mais um golpe de Estado de novo  
tipo, em 2016, que tirou o mandato presidencial legítimo da presidenta Dilma Rousseff (PT –  
2011/2016), criando condições para o ascenso da extrema direita nas eleições de 2018.  
Assim, com o aprofundamento da crise institucional e de um golpe jurídico- parlamentar  
e midiático, os governos neoliberais ampliaram no país o ajuste fiscal cujo caráter é permanente  
(Behring, 2021), tendo como principal medida um Novo Regime Fiscal (NRF) que limita por  
20 anos os gastos correntes do governo. Desde então, conforme os estudos de Shirley Samico  
e Sheila Samico (2020), baseados em dados da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios  
Contínua (PNAD Contínua) para o ano de 2019, os lares sem renda do trabalho bateram recorde,  
superando o pior momento desde a recessão de 2014-2016. Essas mudanças apontam para o  
que Behring (2021) sinaliza como aprofundamento do neoliberalismo brasileiro, entrando em  
uma nova fase:  
156  
Desde o golpe parlamentar, judiciário e mediático de 2016, há um novo  
momento do neoliberalismo no Brasil, adequado aos desdobramentos da crise  
do capitalismo que se agudizou nos últimos anos, com seus impactos  
deletérios para o Brasil. Apesar de algumas semelhanças discursivas e de  
medidas concretas com o projeto contrarreformista de FHC, não se trata mais  
da fase fundacional do neoliberalismo entre nós, mas de um novo, mais  
profundo e violento momento (Behring, 2021, p. 190).  
Behring (2021) chama atenção para esse terceiro momento do neoliberalismo no Brasil  
posto que com o golpe de 2016 e seus desdobramentos, adentramos em uma austeridade ainda  
mais profunda, com o ultraneoliberalismo. Apesar do cenário dramático que já se apontava com  
a radicalidade neoliberal do governo Temer, em 2018, a extrema direita com traços fascistas se  
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(RE)produção social do capital no Brasil: flexibilidade da produção e do acesso à direitos  
elege ao poder Executivo, sintetizada na figura de Jair Bolsonaro (PSL - 2019-2022), com apoio  
de frações da burguesia nacional e internacional, contando com uma base social caracterizada  
pela disseminação do ódio e de ataques à democracia, combinando neofacismo com  
ultraneoliberalismo.  
Isso aponta como a crise política e econômica vivenciada no país é mais grave e  
profunda, indicando expressões da sociedade burguesa em crise e em cenário de decadência  
ideológica4. Assim que tanto o fascismo em sua forma clássica no século XX e as expressões  
irracionais do neofascismo brasileiro possuem elementos em comum, visto que:  
[...] estão articuladas com uma crise econômica do capitalismo; apresentam  
uma crise de hegemonia no interior do bloco no poder disputa entre o grande  
e o médio capital, num caso, e disputa entre a grande burguesia interna e  
grande burguesia associada ao capital internacional, no outro; comportam uma  
aspiração da burguesia por retirar conquistas da classe operária; são agravadas  
pela formação abrupta de um movimento político disruptivo de classe média  
ou pequeno burguês; comportam uma crise de representação partidária da  
burguesia; são marcadas pela incapacidade dos partidos operários e populares  
de apresentarem solução própria para a crise política os socialistas e  
comunistas foram derrotados antes da ascensão do fascismo ao poder  
(Poulantzas, 1970) e o movimento democrático e popular no Brasil vem  
sofrendo uma série de derrotas desde o impeachment de Dilma Rousseff e  
revelando incapacidade de reação (Boito Jr., 2020, p. 117).  
Nesse sentido, conforme afirma Souza (2016, p. 210), a ideologia conservadora  
contemporânea como se apresenta no Brasil em suas tendências ideais, teóricas políticas “é  
portadora de uma tendência ao crescimento da intolerância e da agenda de ataques aos direitos  
civis, políticos e sociais”.  
157  
Nesse momento destaca-se a continuidade de realização do superávit primário como  
indicador importante para os rentistas e a maior captura e punção do fundo público para o  
pagamento da dívida pública. Isso tudo aliado ao congelamento e à redução de gastos sociais  
previstos na Emenda Constitucional nº 95/2016 que representa “um draconiano ajuste fiscal,  
que impede a expansão do orçamento, em particular, das despesas públicas discricionárias nas  
políticas de saúde, educação, ciência e tecnologia, infraestrutura” (Salvador, 2020, p. 4).  
4
Podem-se apontar momentos distintos do desenvolvimento da história da filosofia burguesa, em que um dado  
momento caracterizava-se pela centralidade da razão, conhecimento científico sem limites a essa produção e outro  
marcado pelos limites impostos ao conhecimento que encontre às raízes e questione as bases de legitimação  
burguesa. Coutinho (2010) auxilia nessa categorização ao dividir em dois momentos principais: o primeiro abrange  
os pensadores renascentistas até Hegel, caracteriza-se por um movimento ascendente, progressista que se orienta  
por elaboração racional, humanista e dialética; e o segundo, consiste na radical ruptura dessa tradição humanista  
e da modernidade entre 1830-1848 assinalada por uma progressiva decadência ideológica na qual ocorre o  
abandono mais ou menos completo das conquistas do período anterior. Isto porque a razão moderna com ascensão  
da burguesia é pautada no humanismo, historicismo e na dialética, no entanto ao afirmar-se enquanto classe  
dominante e não mais revolucionária, abandona esses três núcleos essenciais para o conhecimento científico,  
provocando um período de decadência ideológica, de ascensão de uma filosofia, como destaca Coutinho (2010),  
em que se percebe um abandono mais ou menos integral do terreno científico.  
Maria Augusta Bezerra da Rocha  
Nessa conjuntura que o Brasil foi palco de intensas contrarreformas com impacto nas  
condições de vida e trabalho da população brasileira, primeiro com Michel Temer e a Reforma  
Trabalhista5 (Lei nº 13.467/17) alterando um conjunto de normativas da Consolidação das Leis  
do Trabalho (CLT) precarizando as condições de trabalho e depois aprofundando-se no  
Governo Bolsonaro com a Reforma da Previdência6 (Emenda Constitucional nº 103) em 2019,  
que reformulou o cálculo de contribuição e criou uma idade mínima para aposentadoria  
dificultando o acesso a esse direito essencial. Essas contrarreformas sintetizam um processo de  
expropriação dos meios de vida dos trabalhadores e como aponta Behring (2021) vai gerar um  
generalizado e ainda mais amplificado contexto de empobrecimento da população no médio  
prazo.  
Nesse cenário que se aprovou em julho de 2017, e em vigor até hoje desde novembro  
daquele ano, a Lei nº 13.467/17, conhecida como Reforma Trabalhista, que em sua redação e  
proposta foi implementada com os objetivos de aumentar o número de postos de trabalho e a  
formalização dos vínculos no Brasil. Filgueiras (2019) ressalta como a Reforma alterou,  
suprimiu ou inclui mais de uma centena de artigos das normas de proteção ao trabalho,  
particularmente da Consolidação das Leis do Trabalho (CLT), abrangendo todos os aspectos  
das relações de trabalho.  
Em resumo, as mudanças propostas visam em quase sua totalidade cortar custos dos  
empresários na contratação e relação com os trabalhadores: “custos relacionados à contratação,  
à remuneração, aos intervalos e deslocamentos, à saúde e segurança, à manutenção da força de  
trabalho, à dispensa e às consequências jurídicas do descumprimento da legislação” (Filgueiras,  
2019, p. 15).  
158  
Na sua aprovação foi declarado que a Reforma visava beneficiar o comportamento dos  
empregadores, para que eles contratassem mais e isso ocorreria por meio da “flexibilização” da  
legislação. A “flexibilização” no entanto se constitui apenas em corte de direitos conquistados  
historicamente pela classe trabalhadora, pois: 1- a legislação trabalhista é flexível “para cima”,  
historicamente garante direitos mas não impede de negociar condições melhores; ou seja,  
aumentar a “flexibilização” significa reduzir direitos existentes; e 2- direitos que eram flexíveis  
5
O mais violento ataque sofrido pelos trabalhadores (as), especialmente para os jovens a ingressarem no regime  
6
geral da Previdência, é a combinação entre idade mínima - 65 anos para homens e 62 para mulheres - e o tempo  
de contribuição mínimo de 15 anos para mulheres e 20 para homens. Apenas com 30 (mulheres) e 35 (homens)  
anos de contribuição um (a) trabalhador (a) poderá receber o máximo a que tem direito, e claro, limitado pelo teto  
baixo da Previdência Social brasileira - fixado em R$6.101,06 em 2020 (Behring, 2021, p. 217-218).  
Libertas, Juiz de Fora, v. 24, n. 1, p. 146-162, jan./jun. 2024. ISSN 1980-8518  
(RE)produção social do capital no Brasil: flexibilidade da produção e do acesso à direitos  
na CLT, apenas em dadas situações específicas (como o pagamento de horas in itinere), foram  
eliminados (Filgueiras, 2019).  
Desse modo, em resumo, propunha-se que cortar custos (direitos) do trabalho  
estimularia a ampliação da contratação de trabalhadores pelo empresariado. No entanto,  
olhando para a realidade brasileira a taxa de desemprego e informalidade tem aumentado  
significativamente, de modo que a reforma não implicou em aumento de emprego nem na  
formalização dos trabalhadores. Além de não aumentar o emprego no Brasil, gerou uma falsa  
dicotomia e um dilema para os trabalhadores em que deveriam escolher entre ter um emprego  
ou lutar por direitos. Nessa lógica, defender salários e condições de trabalho é promover o  
próprio desemprego, portanto, seria como dar um “tiro no próprio pé”.  
Essa realidade é perceptível no cotidiano da vida dos/as trabalhadores/as brasileiros/as  
também através de estudos e pesquisas desenvolvidas por importantes institutos de pesquisa  
nacional, como o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) que produz um  
documento anual chamado Síntese de Indicadores Sociais, possibilitando acessar dados  
relativos às condições de vida, trabalho, pobreza e desigualdade no país, com base na Pesquisa  
Nacional por Amostra de Domicílios Contínua (PNAD Contínua).  
Com base em um de seus relatórios mais recentes (IBGE, 2022) expõe diversos  
indicadores sociais e econômicos em gráficos sobre a situação do mercado de trabalho  
brasileiro. Dentre eles destaca-se a taxa de desocupação7 , conhecida popularmente como  
desemprego, que em 2012 encontrava-se no patamar de 7,4% e em 2014 no patamar de 7% da  
população desempregada.  
159  
Ao passar dos anos, a taxa aumenta substancialmente: em 2019 (2 anos após a reforma  
trabalhista) a taxa estava no patamar de 11,8%, em 2020 chegou a 13,8% e em 2021 a 14% da  
classe trabalhadora brasileira (IBGE, 2022). Assim, entre 2014 e 2021 a taxa de desemprego  
no Brasil duplicou, demonstrando que 4 anos após a reforma trabalhista não só não foram  
gerados mais empregos como o número de trabalhadores desempregados aumentou.  
O estudo aponta, ainda, no que ocorreu aumento em relação ao mercado de trabalho:  
categorias de trabalhadores por conta própria (mais de 2 milhões ocupados) e entre os  
empregados sem carteira (mais de 1,1 milhão de ocupados). Enquanto ocorre esse aumento  
nas ocupações informais, o nível de ocupação (número de pessoas ocupadas sobre a população  
em idade ativa) havia registrado queda em 2015, sofreu outra intensa redução em 2020 e,  
mesmo que tenha subido um pouco em 2021, ficou bem abaixo do nível de 2019 (IBGE, 2022).  
7
Inclui as pessoas sem trabalho, que procuram trabalho e os que estão disponíveis para começar a trabalhar  
imediatamente, segundo definição do próprio IBGE. Disponível em: https://ibge.gov.br/explica/desemprego.php  
Maria Augusta Bezerra da Rocha  
Percebe, assim, que além de não gerar mais empregos e dinamizar a economia, a  
realidade brasileira pós-contrarreforma trabalhista é caracterizada pela corrosão e precarização  
do trabalho, com vínculos mais precários e informais. A interligação entre neoliberalismo,  
toyotismo e crise estrutural do capital (Mészáros, 2002) tem produzido, desse modo, uma  
ofensiva burguesa que encontra como núcleo central o ataque aos direitos trabalhistas, a captura  
do fundo público e a crescente exploração da força de trabalho.  
Considerações finais  
A produção social não é somente no sentido material de produção capitalista de  
mercadorias mas também da reprodução social no sentido de como os seres sociais produzem  
e reproduzem sua vida, suas ideias, sua consciência e seu cotidiano.  
Elemento central dessas transformações e foco deste trabalho é que os desdobramentos  
das mudanças no processo produtivo também possuem impactos na reprodução social da vida  
da classe trabalhadora e no seu acesso a direitos sociais e trabalhistas. Desse modo, com o  
avanço do neoliberalismo e do toyotismo a partir das últimas décadas do século XX, assim  
como a produção, os direitos são cada vez mais desregulamentados e flexibilizados.  
Em países de capitalismo periférico e dependente como o Brasil, esses rebatimentos são  
ainda mais intensos tendo em vista que possuem desde suas bases de formação social uma  
produção especializada para o mercado internacional e exploração intensiva da força de  
trabalho com baixa remuneração. Nesse momento de crise estrutural do capital (Mészáros,  
2002) e avanço do capital financeiro, as contrarreformas como a reforma Trabalhista além de  
não gerar mais empregos e dinamizar a economia tem agravado a corrosão e precarização do  
trabalho, com vínculos mais precários e informais.  
160  
Com isso, agrava-se a desigualdade social no país e os índices de desemprego e  
precarização da força de trabalho brasileira, como demonstrado na taxa de desocupação e nos  
índices de informalidade divulgados pelo IBGE (2022).  
Apesar das determinações concretas do capitalismo não estamos diante de um fatalismo  
histórico, tendo em vista que a história é um processo aberto e em disputa. E como na epígrafe  
deste artigo, o papel da crítica contribui para arrancar as flores fantásticas/fantasiosas do  
grilhão, não para que os homens e mulheres da classe trabalhadora carreguem o  
grilhão/opressão do cotidiano sem fantasia, sem consolo. Mas sim para que consigam jogar fora  
o grilhão da opressão capitalista e desenvolver coletivamente através da capacidade  
organizativa coletiva seja de lutas sociais mais amplas, seja no dia a dia na exigência de seus  
Libertas, Juiz de Fora, v. 24, n. 1, p. 146-162, jan./jun. 2024. ISSN 1980-8518  
(RE)produção social do capital no Brasil: flexibilidade da produção e do acesso à direitos  
direitos e denúncia da retirada sucessiva deles. Com base nessa aposta coletiva que outro tipo  
de sociedade pode florescer, para além do capital, no qual a flor viva possa rebentar.  
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MOTA, Ana Elisabete (Org.). O Mito da assistência social: ensaios sobre Estado, política e  
sociedade. 4 ed. São Paulo: Cortez, 2010.  
Libertas, Juiz de Fora, v. 24, n. 1, p. 146-162, jan./jun. 2024. ISSN 1980-8518  
Teoria social de Marx e Serviço Social: aportes  
para uma abordagem histórico-crítica  
Marx's social theory and Social Work: contributions to  
a historical-critical approach  
José Fernando Siqueira da Silva*  
Resumo: Este artigo debate o sentido da  
perspectiva histórico-crítica a partir da teoria  
social de Marx. Propõe dialogar com o Serviço  
Social como profissão no atual estágio de  
Abstract: This article discusses the meaning of  
the historical-critical perspective from Marx's  
social theory. It proposes to dialogue with  
Social Work as a profession in the current stage  
of capitalist accumulation, in the particular  
conditions of Latin America. The text, based on  
Marx's contribution and part of his tradition,  
dialogues with specialized bibliography and  
analyzes the proposed theme-object. To this  
end, it asks: a) what does historical-critical  
mean?; b) would it be possible to establish a  
propositional dialogue between an anti-  
capitalist tradition critical of the expanded  
reproduction of capital and a profession created  
in capitalism, in its monopolistic phase, with the  
aim of intervening in pauperism?; c) how to  
analyze this relationship with Latin America as  
an objective socio-historical basis? The article  
concludes that this debate is pertinent and  
necessary, although it is essential to consider the  
numerous tensions and contradictions inherent  
in this process.  
acumulação  
capitalista,  
nas  
condições  
particulares da América Latina. O texto,  
sustentado na contribuição marxiana e de parte  
de sua tradição, dialoga com bibliografia  
especializada e analisa o tema-objeto proposto.  
Para tanto, indaga: a) o que significa histórico-  
crítico?; b) seria possível estabelecer um  
diálogo propositivo entre uma tradição  
anticapitalista crítica à reprodução ampliada do  
capital e uma profissão criada no capitalismo,  
em sua fase monopolista, com o objetivo de  
intervir no pauperismo?; c) como analisar esta  
relação tendo a América Latina como base  
sócio-histórica objetiva? O artigo conclui que  
este debate é pertinente e necessário, ainda que  
seja fundamental considerar as inúmeras  
tensões e contradições inerentes a este processo.  
Palavras-chaves: Serviço Social; Marxismos;  
Keywords Social Work; Marxisms; historical-  
Histórico-crítico.  
critical.  
*
Assistente social, doutor em Serviço Social pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo e professor  
associado da Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho (UNESP/Franca - Departamento de Serviço  
DOI: 10.34019/1980-8518.2024.v24.44270  
Esta obra está licenciada sob os termos  
Recebido em: 21/04/2024  
Aprovado em: 24/05/2024  
José Fernando Siqueira da Silva  
Introdução  
Este artigo concentra vários anos de estudos e de pesquisas sobre o conjunto da obra  
marxiana e sua relação com o Serviço Social. Recupera e reorganiza, com certa marca pessoal,  
reflexões coletivamente realizadas em diversos encontros do Grupo de Estudos e Pesquisas  
Marxistas (GEPEM), vários debates que têm sido realizados na roda de conversas dedicada aos  
estudos de “O Capital” com a participação de um coletivo de assistentes sociais  
pesquisadoras(es) (sob a coordenação da professora Dra. Marilda Villela Iamamoto), bem como  
reúne inúmeras reflexões e diálogos travados em diversos espaços socioprofissionais,  
acadêmicos e de militância. Trata-se, portanto, de estudo contínuo, amplo, rigoroso,  
necessariamente incompleto, em pleno movimento, que recupera e amplia analises  
anteriormente sistematizadas pelo autor, inspirado no ponto de vista da categoria da totalidade,  
marcado por acúmulos e revisões, sempre empenhado em apanhar as mediações necessárias  
para o Serviço Social como profissão. Neste texto, foram reorganizadas anotações inicialmente  
sistematizadas para um curso ministrado em 2022 a assistentes sociais de Costa Rica1, bem  
como reflexões expostas em uma mesa de debates, em 2023, na Universidade Nacional del  
Centro de Buenos Aires (UNICEN-Tandil)2.  
Reprodução ampliada do capital, pauperismo e América Latina  
164  
Elucidar a relação entre pauperismo, reprodução ampliada do capital e América Latina  
é uma necessidade histórica. Não se trata, apenas, de um esforço epistemológico, mas de um  
procedimento científico empenhado em capturar a dinâmica do real como “lógica da coisa”  
(Marx, 2005, p. 39), suas múltiplas determinações, reconstruir categorias de análise como  
determinações de existência, formas de ser (Marx, 1989), estabelecer seus nexos causais,  
conexões explicativas (mediações), com o auxílio da razão pensante, orientada por aquilo que  
Lukács caracterizou como ontologia do ser social (Lukács, 2012, 2013 e 2010). As mediações  
não são criações racionais, embora se expressem teórica  
e
racionalmente  
(epistemologicamente), mas conexões reais que nos permitem explicar a realidade estudada, os  
vínculos, os elos que favorecem o conhecimento do objeto para além do que é imediatamente  
visível.  
1
Atividade realizada a partir de um convite feito pelo Colegio de Trabajadores Sociales de Costa Rica  
(COLTRAS).  
2
Mesa de encerramento do “Encuentro Latinoamericano de Profesionales, Docentes y Estudiantes de Trabajo  
Social”, composta juntamente com o professor Dr. Manuel W. Mallardi (UNICEN-Argentina) e a professora Dra.  
Mavi Rodrigues (UFRJ-Brasil).  
Libertas, Juiz de Fora, v. 24, n. 1, p. 163-186, jan./jun. 2024. ISSN 1980-8518  
Teoria social de Marx e Serviço Social: aportes para uma abordagem histórico-crítica  
Sendo assim, o objetivo não é interpretar o mundo impondo-lhe uma lógica que não lhe  
pertence, especulativa e decadente (Lukács, 1981, p. 109-131), mas, ao contrário, perseguir sua  
dinâmica materialmente posta, historicamente determinada, reproduzi-la mentalmente, atuar  
nela para transformá-la. Nisto, recuperar a potência humana como trabalho útil-concreto,  
emancipá-la humanamente (Marx, 2005) voltando-a contra processos de estranhamento social.  
A práxis social, como determinada relação entre teoria e prática tecida na história (Marx;  
Engels, 2007), é um ato humano-genérico possível e necessário, individual-coletivo, ainda que  
inexato e insuficiente, realizado por seres sociais que fazem história a partir do legado recebido  
por gerações. Por tanto, um complexo processo imbricado com a vida real de pessoas, com a  
sua reprodução social que, nas condições históricas do capitalismo, estabelece as classes sociais  
fundamentais, institui a propriedade privada dos meios de produção, separa o(a) trabalhador(a)  
de seus meios de produção, reduz o trabalho à força de trabalho, sua compra como trabalho que  
se aliena/estranha, se exterioriza como um objeto que não lhe pertence.  
Tal procedimento ontológico-científico é essencial para explicar a realidade em si, sua  
dinâmica, é fundamental para refletir criticamente sobre os limites e as potencialidades de uma  
profissão socialmente constituída na transição do século XIX ao século XX para intervir  
naquilo que foi caracterizado, genericamente, pelo pensamento conservador (Escorsim, 2011;  
Silva, 2015), a partir das lutas operárias travadas na segunda metade do século XIX, como  
questão social. Marcada por sua imprecisão, o sentido desta expressão pode ser melhor  
elucidado a partir dos estudos de Marx realizados na primeira metade dos anos 1840. Naquela  
oportunidade, incomodado e penalizado com a repressão realizada pelo governo do monarca  
Frederico Guilherme IV contra às pessoas que recolhiam lenha para se aquecerem do inverno  
alemão, o autor analisou e criticou um texto escrito por Arnold Ruge – identificado como “um  
prussiano” – sobre o rei da Prússia e a reforma social. Debatendo com esse representante da  
filosófica clássica alemã e analisando as propostas do parlamento inglês imbuídas de  
"humanismo" e malthusianismo no tratamento do pauperismo (no contexto marcado pela Lei  
dos Pobres e pelas workhouses), destaca Marx:  
165  
O parlamento inglês não se restringiu à reforma formal da administração. Ele  
detectou a fonte principal da condição aguda do pauperismo inglês na própria  
Lei dos Pobres3. O próprio meio legal contra a indigência social, a  
beneficência, favoreceria a indigência social. Quanto ao pauperismo em  
termos gerais, ele seria uma lei natural eterna (...). O parlamento inglês  
combinou essa teoria de caráter humanitário com o parecer de que o  
pauperismo seria a miséria infligida a si mesmo pelo trabalhador, não  
devendo, em consequência, ser prevenido com um infortúnio, mas reprimido  
e punido como um crime. (...) Depois, ela não encarou o avanço progressivo  
3 Todos o trechos em itálico foram originalmente destacados pelo autor.  
José Fernando Siqueira da Silva  
do pauperismo como consequência necessária da indústria moderna, mas  
como consequência do imposto inglês para os pobres. Ela compreendeu a  
penúria universal como uma mera particularidade da legislação inglesa. O  
que antes era derivado de uma falha na beneficência, passou a ser derivado de  
um excesso de beneficência. Por fim, a miséria foi vista como culpa dos  
miseráveis e, como tal, punida neles mesmos (...) apesar das medidas  
administrativas, o pauperismo foi se tornando a forma de uma instituição  
nacional, tornando-se, em consequência, inevitavelmente em objeto de uma  
administração ramificada e bastante ampla, uma administração que, todavia,  
não possui mais a incumbência de sufocá-lo, mas de discipliná-lo, perpetuá-  
lo (Marx, 2010, p. 34-35).  
Em seus estudos mais densos pautados pela crítica à economia política clássico-  
burguesa, determinado a decodificar a lógica do capital e da sociedade que permite sua  
reprodução ampliada, nisto o pauperismo, Marx analisa a composição orgânica do capital, ou  
seja, a relação entre capital constante (parte do capital investido nos meios de produção) e  
capital variável (aquela outra parte destinada à força de trabalho). Para explicar essa relação,  
Marx aprofunda as noções de composição do valor (como o capital é dividido em sua forma  
constante e variável) e a composição técnica (a dimensão material, a força de trabalho  
necessária para pôr em movimento certa quantidade de meios de produção) (Marx, 2013b, p.  
689-697). Embora inicialmente haja uma tendência inicial crescente de investir parte do capital  
– e, portanto, da mais-valia obtida – na força de trabalho (capital variável), a repetição do  
processo de produção de mercadorias em escala ampliada tende relativamente a diminuir parte  
da mais-valia investida em capital variável e a aumentar a proporção dedicada ao capital  
constante (meios de produção). Ou seja, gradativamente, no processo de intensificação e  
adensamento da produção capitalista, parte do capital acumulado é proporcionalmente maior  
para a tecnologia aplicada ao processo produtivo e menor para a manutenção da força de  
trabalho contratada (salários e despesas necessárias à reprodução dos trabalhadores – por  
exemplo, nas condições atuais, incluindo seus direitos). A consequência não poderia ser outra:  
a criação de um exército industrial de reserva e de segmentos excedentes – com diferentes  
denominações e perfis – da classe trabalhadora (aptos ou não para voltar ao trabalho) (Marx,  
2013b, p. 716-784).  
166  
É óbvio que esse processo não permaneceu o mesmo ao longo de 130 anos e em distintas  
e heterogêneas realidades. O que se propõe, com efeito, é que há uma tendência geral da  
produção capitalista – brilhantemente apontada por Marx – de, relativa e proporcionalmente,  
investir menos em capital variável e mais em capital constante, como uma lei tendencial,  
dinâmica, processo necessário à acumulação permanente de capitais, cuidadosamente  
administrado – nem sempre com sucesso – por meio de uma gestão econômica considerada  
adequada às instabilidades e às imprevisibilidades mundiais. Tudo isso está absolutamente  
Libertas, Juiz de Fora, v. 24, n. 1, p. 163-186, jan./jun. 2024. ISSN 1980-8518  
Teoria social de Marx e Serviço Social: aportes para uma abordagem histórico-crítica  
conectado ao desenvolvimento da tecnologia e da ciência4. Por isto, o capital pressupõe não  
apenas relações econômicas, mas relações humano-sociais. O capital é relação social de  
expropriação, acumulação e concentração/centralização da riqueza socialmente produzida.  
Isto sustenta o que Marx caracteriza como propriedade privada, ou seja, a relação entre a  
propriedade dos meios de produção postos em movimento por meio de determinada massa de  
força de trabalho comprada como qualquer mercadoria (ainda que seja uma mercadoria  
particular). Ambos potenciados pelo capital monetário inicialmente investido e  
continuadamente reposto pela repetição ampliada do processo produtivo: capital monetário  
inicial que se subdivide na produção (capital produtivo - meios de produção e força de trabalho  
acrescido de mais-valia) e capital mercadoria que se realiza na venda que completa seu ciclo  
(Marx, 2014b, p. 105-231)5. Este processo, como tratado por Marx no livro III de “O Capital”,  
necessariamente articulado ao capital comercial e portador de juros/fictício (Iamamoto, 2007),  
como processo geral que estabelece a taxa média de lucro e o divide entre capitalistas (Marx,  
2017, 175-948).  
Importante ressaltar a unidade-diversa contida nesse processo global, como forma de  
aparição do capital (monetário, produtivo, mercadoria, industrial, comercial e portador de juros  
– este último sua forma mais complexa e estranhada). Aqui, o trabalho excedente, produtor  
direto ou não de mais-valia, é a fonte do valor mistificada por relações fetichizadas,  
imediatamente simplificadas6. Isto estrutura o movimento geral do capital que repõe a sua forma  
monetária percorrendo um complexo processo, não imediatamente visível, cujo ciclo recomeça  
sempre acrescido por um sobrevalor, sem a necessidade de novo aporte inicial do próprio  
capitalista produtivo (Marx, 2014a, p. 233-446).  
167  
O pauperismo constitui o asilo para inválidos do exército trabalhador ativo e  
o peso morto do exército industrial de reserva. Sua produção está incluída na  
produção da superpopulação relativa, sua necessidade na necessidade dela, e  
juntos eles formam uma condição de existência da produção capitalista e do  
desenvolvimento da riqueza. O pauperismo pertence aos faux frais [custos  
mortos] da produção capitalista, gastos cuja maior parte, no entanto, o capital  
4 A sociedade burguesa desde sua fase concorrencial tem demonstrado, de forma não homogênea, uma tendência  
de expulsar a força de trabalho, intensificá-la e precarizá-la, com forte inserção e modernização tecnológica. Os  
dias atuais também reafirmam essa tendência, brilhantemente apontada por Marx já no século XIX. Sobre esse  
debate hoje, ver Antunes (1995; 2018), Mészáros (2002a; 2002b) ou, fora da tradição marxista, tomada como crise  
da sociedade salarial, as observações tecidas por Castel (1996).  
5 Vale lembrar que acumulação originária/primitiva do capital (Marx, 2013a, p. 785-833) – nisto o mercantilismo  
e o escravismo de pessoas negras/indígenas e extermínio dos povos originários -, exerceu e ainda exerce seu papel  
na acumulação, já que não se situa num passado distante –, reeditando-se no processo de concentração de dinheiro  
que funciona como capital monetário.  
6
Não por acaso, Marx adota um procedimento de estudo que perquire a trama dos processos, reconstruindo  
conexões/mediações, categorias e conceitos aparentemente idênticos e progressivamente adensados ao longo de  
sua análise. Por exemplo: trabalho/força de trabalho, as formas do dinheiro, valor/mais-valor, “preço do  
dinheiro”/juros, lucro/lucro médio, entre muitas outras formas aparentemente idênticas.  
José Fernando Siqueira da Silva  
sabe transferir de si mesmo para da classe trabalhadora e da pequena classe  
média (Marx, 2013b, p. 719).  
Os estudos de Marx sobre a sociedade do capital e sua reprodução ampliada, tecida em  
estreita relação com suas pesquisas anteriores desde a juventude, atingem sua maturidade em  
“O Capital”, como crítica da economia-política, dedicado a explicar o processo de produção do  
capital (livro I)7, o processo de circulação do capital (livro II) 8 e o processo global da produção  
capitalista (livro III)9. Longe de ser uma obra estritamente econômica, o livro é um estudo  
genial sobre a economia política que trata da produção e reprodução de determinada sociedade,  
a capitalista, suas diversas fases, em estreita unidade-diversa, que estabelece as bases para a  
produção/criação, circulação e expansão global do capital. Nisto, a formação de seres sociais  
concretos e as lutas travadas para a manutenção e ou ruptura de esta ordem societária, tendo  
como referência as contradições objetivas contidas nessa sociabilidade. Portanto, a revolução é  
uma categoria que se constrói a partir de determinações realmente existentes, sempre como  
possibilidade histórica. Desta forma, ela jamais se reduz a certo tipo de “assalto ao poder”  
(embora seja constituída por insurreições diversas), mas se constitui a partir das contradições  
realmente existentes na própria ordem burguesa, seu colapso geral (Mészáros, 2002a; 2002b).  
A transição do século XIX para o século XX impôs outro fluxo de transformações  
globais. A primeira grande crise de acumulação de capital da era industrial (1873-1896),  
alimentada por revoltas operárias, gerou uma forte reorganização produtiva que fez a transição  
do capitalismo concorrencial ao capitalismo monopolista (Hobsbawn, 1988; Netto, 1992). Esta  
fase da acumulação formou monopólios, reorganizou o capital industrial e bancário (como  
capital financeiro), redefiniu o papel dos estados nacionais e dos fundos públicos no  
desenvolvimento capitalista e na gestão da questão social, priorizando a infraestrutura  
necessária para a retomada da acumulação, bem como rearmou o antigo colonialismo, como  
neocolonialismo, exportando capitais adicionais que foram usados para modernizar ex-colônias  
e expandir os interesses imperialistas. Era o alvorecer da era monopolista do capital, como “fase  
superior do capitalismo” (Lenin, 2012), centrada em alguns pilares essenciais: a) a fusão de  
grandes grupos econômicos até então concorrentes, formando monopólios exercidos por meio  
de cartéis e trustes; b) o adensamento contínuo da financeirização e de seus desdobramentos,  
processo este possível por meio da fusão entre o velho capital bancário e o capital industrial; c)  
168  
7
Mercadoria/dinheiro, a troca, a transformação do dinheiro em capital e a mais-valia absoluta-relativa, salário,  
acumulação do capital (incluindo reprodução simples, lei geral da acumulação e acumulação primitiva/originária)  
8 Metamorfoses e ciclo do capital, sua rotação e reprodução/circulação do capital social total.  
9 Relação mais valor/lucro – taxa de lucro e taxa de mais valor; lucro/lucro médio; a tendência da queda tendencial  
da taxa de lucro; capital mercadoria/capital monetário como capital de comércio de mercadorias e de dinheiro –  
nisto o crédito e o capital fictício.  
Libertas, Juiz de Fora, v. 24, n. 1, p. 163-186, jan./jun. 2024. ISSN 1980-8518  
Teoria social de Marx e Serviço Social: aportes para uma abordagem histórico-crítica  
a captura orgânica dos estados nacionais como elementos intrínsecos à acumulação capitalista,  
momento em que os fundos públicos são fortemente utilizados para incrementar a acumulação.  
Nisso, o cenário do neocolonialismo, a exportação contínua de capitais e as disputas  
imperialistas por matérias-primas que levaram o mundo ao seu primeiro conflito bélico do  
século XX: 1914-1918. Nesse sentido, destaca Lenin (2012, p. 83 e 90):  
A posse de colônias é a única coisa que garante de maneira completa o êxito  
do monopólio contra as contingências da luta com o adversário, mesmo  
quando este procura defender-se mediante uma lei que implante o monopólio  
de Estado. Quanto mais desenvolvido está o capitalismo, quanto mais sensível  
se torna a insuficiência de matérias-primas, quanto mais dura é a concorrência  
e a procura de fontes de matérias-primas em todo o mundo, tanto mais  
encarniçada é a luta pela aquisição de colônias. (...) O imperialismo é o  
capitalismo na fase de desenvolvimento em que ganhou corpo a dominação  
dos monopólios e do capital financeiro, adquiriu marcada importância a  
exportação de capitais, começou a partilha do mundo pelos trustes  
internacionais e terminou a partilha de toda a terra entre os países capitalistas  
mais importantes.  
A gênese do Serviço Social está essencialmente ligada à fase imperialista/monopolista  
da acumulação capitalista (Netto, 1992), etapa que se impôs de forma heterogênea e com  
importantes mudanças nos últimos 140 anos. Nesse contexto, esta profissão tem conquistado  
um espaço na divisão sociotécnica do trabalho que se objetiva também como divisão sexual  
e étnico-racial como especialização do trabalho coletivo (Iamamoto; Carvalho, 1985;  
Iamamoto, 2007), particularmente no campo da regulação do pauperismo. Ou seja, o Serviço  
Social está relacionado às diversas atividades, serviços e políticas sociais voltadas à gestão das  
carências e necessidades da ampla e diversificada classe trabalhadora, especialmente de suas  
frações mais empobrecidas.  
169  
Todavia, estas observações não são suficientes para explicar a constituição do Serviço  
Social na América Latina na sua ampla diversidade, em um continente uno-múltiplo que ocupa  
determinado espaço da divisão internacional do trabalho. É essencial apontar como esse  
processo geral, indicado por Marx na segunda metade do século XIX, transitou à fase  
monopolista e desenvolveu-se ao longo do século XX na periferia do capital como parte de uma  
complexa totalidade social. Nisto, as particularidades da profissão nesta região. Sem esse  
procedimento ontológico-analítico (concreto-racional), que apanha o Serviço Social no  
movimento da história (Iamamoto; Santos, 2021), não é possível explicar sua natureza nessa  
região e o tipo de pauperismo e de opressões aqui objetivadas. Isto impacta as desigualdades  
sociais que constituem a natureza do capital nas periferias, altera o social, determina os serviços  
destinados à gestão do pauperismo, modifica decisivamente as condições objetivas para que se  
realize o trabalho profissional. Como insiste Iamamoto (1992), altera as condições objetivas do  
José Fernando Siqueira da Silva  
trabalho profissional e subjetivas das(os) assistentes sociais.  
Resumidamente, a América Latina tem particularidades que a marcam  
estruturalmente: foi impactada econômica, social e culturalmente, enquanto o mercantilismo  
solapava o feudalismo na Europa, especificamente a partir do século XVI10. A lógica  
mercantilista, centrada na pilhagem formalizada no pacto colonial, dizimou as culturas nativas,  
impôs o escravismo e o racismo contra negros e indígenas e destruiu culturas e povos muito  
heterogêneos. Além disso, estabeleceu uma lógica centrada na acumulação monetária  
comercial, especialmente nas fontes financeiras obtidas por meio de uma relação comercial  
desigual, que permitia que os recursos coloniais fossem extraídos a baixos custos e vendidos a  
preços muito mais elevados. Esse tipo de exploração de perfil comercial-original sustentou o  
mercantilismo e a acumulação primitiva do capital (Marx, 2013a, p. 785-833), essencial para a  
fase seguinte da revolução burguesa (a concorrencial/industrial), principalmente a partir da  
segunda metade do século XVIII (que eliminou ou subjugou as monarquias). Isto gerou uma  
mudança estrutural global ao generalizar o trabalho assalariado, concentrar trabalhadores(as)  
nas fábricas, explorar a força de trabalho de diferentes maneiras e transferir o centro da  
acumulação capitalista para a produção de mercadorias como capital monetário investido na  
produção, ou seja, capital produtivo subdividido, em determinada proporção, na compra de  
meios de produção e de força de trabalho.  
170  
Após a independência política dessa parte do Continente Americano situada, no geral,  
nos primeiro 40 anos do século XIX, parte da riqueza aqui produzida deixou de ser drenada às  
metrópoles pelo pacto colonial (Fernandes, 1987; 2009). Ao longo do século XIX, essa  
economia foi reorganizada a partir do legado colonial. Isto determinou os caminhos que foram  
trilhados pela diversa e heterogênea revolução burguesa e todo processo de modernização na  
América Latina e no Caribe, a partir das primeiras décadas do século XX. Este tipo de  
economia, na sua diversidade, tem reproduzido algumas características importantes que  
precisam ser aqui sumariadas.  
Após a Revolução Russa (1917) e duas guerras mundiais imperialistas (1914-1918 e  
1939-1945 – nas quais a extrema direita nazifascista prevaleceu até ser derrotada em 1945), o  
crescimento e o desenvolvimento da América Latina e do Caribe tornaram-se objeto de amplo  
debate e formulação de propostas de desenvolvimento, especialmente a partir da década de  
10 É preciso lembrar que esse processo não se impôs apenas como movimento econômico (embora ele tenha sido  
decisivo). Impactou as artes, o teatro, a música, a cultura em geral, a religião, a visão de mundo, entre outros  
aspectos da vida humana, processo que se expressou no que é universalmente caracterizado como o Renascimento.  
Nicolau Maquiavel, Leonardo Da Vinci e William Shakespeare são exemplos clássicos dessa época.  
Libertas, Juiz de Fora, v. 24, n. 1, p. 163-186, jan./jun. 2024. ISSN 1980-8518  
Teoria social de Marx e Serviço Social: aportes para uma abordagem histórico-crítica  
195011. Os estudos organizados pela Comissão Econômica para a América Latina e o Caribe  
(Cepal), insistiam que as dificuldades para o desenvolvimento da América Latina estavam  
relacionadas à ausência de estímulo contínuo à industrialização, processo que deveria ser  
coordenado, organizado, provocado e administrado pelos estados nacionais, contra o  
subdesenvolvimento. Esta orientação, cujo principal expoente no Brasil é Celso Furtado (2009),  
foi rejeitada pelos estudos de Cardoso e Faletto (1973) que insistiram na tese de que a existência  
da dependência externa impediria o desenvolvimento proposto pela Cepal. Reproduzindo certo  
tipo de crítica resignada, os autores reconhecem a dependência como marca estruturante da  
economia brasileira e, ao mesmo tempo, a tomam como algo dado na divisão internacional do  
trabalho. Sendo assim, a combinação econômica entre o interno e o externo, entre o centro e a  
periferia, seria procedimento necessário ao desenvolvimento extraindo “possíveis vantagens”  
desta relação. Em oposição a estas propostas, o grupo formulador da teoria marxista da  
dependência (TMD)12, ao contrário, com ênfase no que é caracterizado por essa tradição como  
superexploração do trabalho13, formula uma análise essencialmente anticapitalista: a superação  
do subdesenvolvimento exige uma ruptura socialista, já que a dependência somente pode  
produzir dependência (jamais seu oposto).  
A periferia do capitalismo foi estruturada como capitalismo dependente (Marini, 1973;  
Fernandes, 2009; Katz, 2020), impactada por uma formação social colonial (Chasin, 2000;  
Moura, 1988), embora seja relevante destacar que a dependência tenha se materializado como  
desenvolvimento desigual-combinado (Oliveira, 2003), explicitamente como modernização  
conservadora (Ianni, 2019). As bases desse complexo processo foram lançadas desde a primeira  
acumulação primitiva do capital, sob as condições do mercantilismo e do capitalismo  
comercial-original. Essa modernização do capital de perfil monopolista transformou a América  
Latina em um território que deveria fornecer matérias-primas baratas para a produção mundial  
a preços administrados e acessíveis, especialmente produtos agro mineiros, o que impacta a  
parcela da mais-valia investida como capital constante destinado à compra dos meios de  
produção nas regiões ditas centrais. Ou seja, é preciso buscar matérias-primas baratas em  
regiões "destinadas" a esse tipo de produção na divisão internacional do trabalho. Além disso,  
ofertar força de trabalho abundante e mais barata, categorizada pela Teoria Marxista da  
171  
11 Esse debate percorreu os governos de países da região entre as décadas de 1930 e 1950: Getúlio Vargas (Brasil),  
Perón (Argentina) e batllismo/neobatllismo (Uruguai) são exemplos importantes.  
12  
São expoentes deste grupo: Ruy Mauro Marini, André Gunder Frank, Theotonio dos Santos, Vania Bambirra,  
Orlando Caputo, Riberto Pizzarro, entre outros(as).  
13 Para a TMD, a categoria superexploração do trabalho constitui a natureza do capitalismo dependente e possui  
um sentido muito preciso: o pagamento da força de trabalho abaixo do valor médio necessário à sua reprodução,  
isto como mecanismo que compensa as perdas das burguesias nativas em relação às centrais.  
José Fernando Siqueira da Silva  
Dependência como superexploração.  
O que tem se constituído na periferia do capital, ainda que diversamente, são  
economias fundamentalmente agro mineiras destinadas à exportação, comprometidas com  
interesses econômicos externos. Essa é uma característica estruturante que permanece  
marcando essas regiões na atualidade, sustentada pela modernização permanente do  
agronegócio e da mineração extrativistas. Importante pontuar a diversidade deste complexo  
contexto. Países como Brasil, México14 e Argentina experimentaram, ao longo da história,  
surtos instáveis de industrialização, com maior ou menor ênfase na agricultura modernizada: o  
agrobusiness como indústria agrícola de alta tecnologia e produtora em larga escala. Outras  
realidades são bem diversas: as minas e as frutas chilenas; a carne bovina Uruguaia e Argentina;  
o gás natural e a mineração na Bolívia; o petróleo venezuelano; as frutas da América Central; a  
agricultura colombiana (café e pecuária); a pesca peruana (exportadora de óleo de peixe) e sua  
mineração; o Caribe essencialmente frutífero, canavieiro e turístico. Apenas alguns exemplos  
entre outros países que têm transitado por caminhos próximos ainda que diversos.  
As classes dominantes que se constituíram após a independência política do início do  
século XIX, continuaram vinculadas aos interesses externos e desconectadas das demandas  
nacionais (Fernandes, 2009; 1987)15. Esse processo tem sido reproduzido com o peso colonial  
do racismo, do patriarcalismo e do preconceito contra os povos indígenas, que impõe um perfil  
particular à questão social latino-americana na articulação entre classe, raça, etnia, gênero e  
diversidade sexual (e outras formas de opressão/discriminação)16. AAmérica Latina e o Caribe,  
então, reatualizaram sua inserção na divisão internacional do trabalho, reorganizando-se a partir  
do legado colonial (com desigualdades internas), em tempos imperialistas-monopolistas. Não  
há dúvida de que todo processo de modernização conservadora que sustentou a revolução  
burguesa diversificada em toda a região, é caudatária da tradição colonial (e não poderia ser de  
outra forma). É preciso dizer, não por acaso, que o Serviço Social teve sua gênese como  
profissão em toda a América Latina e Caribe, exatamente naquele período de intensas  
transformações e intensificação das lutas dos(as) trabalhadores(as), sob o peso histórico do  
172  
14 As conhecidas “maquilas” são exemplos da realidade mexicana de fronteira com o império. Expressam e se  
sustentam na lógica dependente. Consultar: https://www.youtube.com/watch?v=WUQgFzkE3i0  
15 Parte do progressismo latino-americano, especialmente os governos de países com importante mercado interno  
(Brasil, México e Argentina, por exemplo), têm estimulado propostas neodesenvolvimentistas articuladas a um  
fluxo industrial historicamente instável ou ausente na região. Isto tem gerado tensões internas significativas que  
impactam as economias locais, sem afetar, de forma alguma, a centralidade do mercado externo. Trata-se de um  
limite estrutural das economias dependentes (Marini, 1973), ainda que elas necessitem ser analisadas a partir de  
determinações contemporâneas.  
16  
De nossa parte, a luta antirracista compõe as lutas anticapitalistas. Nisso, a luta anticolonial nos parece mais  
frutífera, densa e ampla, quando comparada com as abordagens decoloniais e descoloniais, mais ou menos avessas  
à tradição europeia.  
Libertas, Juiz de Fora, v. 24, n. 1, p. 163-186, jan./jun. 2024. ISSN 1980-8518  
Teoria social de Marx e Serviço Social: aportes para uma abordagem histórico-crítica  
colonialismo e sua estrutura escravista, particularmente a partir dos anos vinte do século  
passado. Por isso, a profissão e a questão social aqui materializadas sofreram o impacto dessa  
tradição colonial.  
O que de fato prevaleceu na região a partir da segunda metade dos anos 1960 e início  
dos anos 1970, em diferentes momentos e formas, mas continuamente, foi o projeto imperialista  
liderado pelos Estados Unidos. Os golpes militares-empresariais em toda a região, também em  
resposta à Revolução Cubana de 1959 (Paraguai/Guatemala – 1954, Brasil/Bolívia – 1964, Peru  
– 1968, Uruguai e Chile – 1973, Argentina, 1962 e 1976, República Dominicana, 1978, por  
exemplo), reafirmaram uma espécie de modernização conservadora (Ianni, 2019), como  
desenvolvimento desigual-combinado (Oliveira, 2003), ou seja, um tipo de economia que gera  
certo tipo de riqueza com forte concentração que reafirmou profundas desigualdades, adaptou-  
se ao capitalismo mundial dos anos 1970, eliminou a oposição socialista ou os mais perigosos  
seguimentos democráticos, massacrou a oposição operária e promoveu um arrocho salarial  
significativo.  
Da mesma forma, cabe destacar que o processo de reconceituação latino-americano  
(1965-1975 – não exatamente), obviamente não nasceu de uma iniciativa endógena, apenas  
profissional, mas formou-se a partir de demandas concretas que constituem o movimento da  
história, objetivamente postas por uma sociedade periférica tensionada pela luta de classes, que  
se expressaram em carências e necessidades humano-sociais identificadas como questão social.  
Isso repercutiu na profissão, no seu espaço sócio-ocupacional, nos estudantes, nas  
universidades e na formação profissional. Portanto, o pauperismo, caudatário da gênese,  
expansão e consolidação da sociedade burguesa mundial, aqui se constituiu diferentemente das  
regiões ditas centrais, da “via clássica” (inclusive suas formas mais tardias), como parte de uma  
totalidade social estruturada como unidade-diversa.  
173  
É verdade, como assinalou Marini (1973), que a dependência somente pode gerar  
dependência. Ainda assim, não é menos importante frisar que esse processo criou algo muito  
particular que evidenciou profundas desigualdades que têm reafirmado, nos diferentes  
territórios latino-americanos (e, diversamente, em toda a periferia do capital), certo tipo de  
desenvolvimento – necessário à produção mundial – marcado pela desregulamentação,  
informalização, intensificação e exploração da força de trabalho. A partir dessa dura realidade,  
típica do atual processo de acumulação e de sua crise permanente, constituiu-se o que é hoje a  
questão social, suas múltiplas determinações e refrações.  
A dependência como modernização conservadora e desenvolvimento desigual-  
combinado, marca atual e produto sócio-histórico, tem enfrentado um cenário ainda mais  
José Fernando Siqueira da Silva  
complexo desde a crise capitalista dos anos 1970 e a crescente e gradual dominação neoliberal  
que foi objetivada nessa parte da América, a partir dos anos 1990 (modelo radicalmente  
aplicado no governo deAugusto Pinochet – Chile). São muito bem conhecidas as consequências  
imediatas disso: golpes brutais nos direitos da heterogênea classe trabalhadora; reestruturação  
das relações de trabalho (intensificação, precarização, terceirização, informalidade, uberização  
e digitalização – Antunes, 1995; 2018); transformação da classe trabalhadora em  
"colaboradora" ou pessoa jurídica (PJ); reorganização dos Estados, com profundas restrições  
ao financiamento das políticas sociais; amplo e complexo domínio das finanças como  
aprofundamento da era do monopólio (inclusive envolvendo a gestão de recursos destinados à  
pobreza); cortes de gastos voltados aos direitos sociais expressos em discursos governamentais  
sobre responsabilidade fiscal e teto de gastos (sempre em relação ao social); privatização  
intensa e radical (ou, pelo menos, incentivo explícito às parcerias público-privadas); a  
mercantilização dos direitos básicos e fundamentais (saúde, educação e aposentadorias – entre  
outros); programas sociais específicos voltados à extrema pobreza, por tempo determinado,  
com avaliação permanente, visando não estimular a "vagabundagem" dos desempregados; isto,  
certamente, sustentado em uma economia dependente, modernizada, desigual-combinada e  
produtora de desigualdade extrema.  
Caberia, então, insistir que o estudo desta complexa realidade e a formulação de  
alternativas no campo da práxis social e profissional (diferentes, mas articuladas), precisam  
estimular a crítica permanente, reconstruir processos materialmente postos, perseguir o  
movimento da realidade inspirado no ponto de vista da totalidade, portanto, saturar esse  
processo de história e de historicidade. Sendo assim, análises mecânicas e “chapadas”, feitas  
acriticamente desde “modelos teóricos”, precisam ser questionadas ou, pelo menos, revisitadas  
criticamente. É preciso retomar abordagens e propostas que têm orientado os estudos recentes,  
mesmo aquelas que possuem validade atual e se situam explicitamente no campo da  
emancipação humana (incluindo o próprio Marx, considerando suas pistas geniais e  
inelimináveis). Como analisar, no atual estágio de acumulação capitalista, a realidade da  
periferia do capital com suas marcas indeléveis e a crise estrutural do capital (Mészáros,  
2002b)? Como situar a profissão e o Projeto Ético-Político Profissional do Serviço Social  
brasileiro, construído a partir das condições objetivas do final século XX, nesse contexto de  
avanço do complexo e não homogêneo conservadorismo reacionário (Sant’Ana; Silva, 2020)?  
Nisto, defesas bem-intencionadas deste legado crítico da profissão no Brasil são relevantes, mas  
inofensivas se não estiverem contaminadas pela concretude da história.  
174  
Ao contrário do que anunciou Francis Fukuyama, estimulado pela queda da URSS e  
Libertas, Juiz de Fora, v. 24, n. 1, p. 163-186, jan./jun. 2024. ISSN 1980-8518  
Teoria social de Marx e Serviço Social: aportes para uma abordagem histórico-crítica  
pelo êxtase neoliberal, a história não acabou! O neoliberalismo não é outro capitalismo: trata-  
se da forma histórica concreta que impõe receitas necessárias à acumulação continuada,  
concentrada e centralizada do capital. Sendo assim, não existe outro capitalismo mais humano,  
“não selvagem”, que alimenta os sonhos reformistas e teses de que a revolução seria  
desnecessária. Criticar o neoliberalismo é importante, mas tendo como foco o capitalismo e o  
capital. Esse deve ser o sentido exato do anticapitalismo. O que existe atualmente é o  
capitalismo sem roupagens, supostamente “livre” das ameaças anticapitalistas, genuíno, sem  
“papas nas língua”; o capitalismo sendo capitalismo, valorizando o valor, o capital como  
relação social que expropria e privatiza continuadamente. E isto se expressa na luta e na  
consciência de classe, reedita o estranhamento social junto aos(às) trabalhadores(as), reorganiza  
as ideias defendidas pelas classes dominantes e suas frações. Não por acaso os setores mais  
reacionários da burguesia têm enfatizado o ódio e o autoritarismo, distorcendo valores como a  
liberdade e a democracia. O fazem como se fossem defensores radicais da moral, da  
anticorrupção e da antipolítica, reduzindo a zero qualquer tipo de explicação minimente  
comprometida com a verdade da realidade objetivamente existente. Não se impõem apenas  
como ideologias, mas como mentiras explícitas.  
Mas existe algo muito importante nesses tempos históricos extremos (Hobsbawn,  
1996): o capital e a sociedade que permite sua reprodução ampliada (o capitalismo), em uma  
era de radicalização das pautas monopolistas-liberais comandados pela fração financeira do  
capital, não têm demonstrado capacidade de administrar a crise estrutural. As ondas longas  
de crescimento, seguidas de crises e forte recuperação econômica – como se viu na segunda  
metade do século XIX e até os trinta gloriosos anos (1945-1975) – foram substituídas por crises  
constantes e baixíssimo crescimento global (Mészáros, 2002a; Silva, 2020). Além disso, a crise  
175  
ambiental se impõe como gravíssima,  
o
pauperismo,  
o
desemprego  
e
a
precariedade/intensificação do trabalho se aprofundaram em várias partes do mundo (para além  
da periferia do capitalismo). Esta tensão, inconciliável, se impõe como social, política, cultural,  
ambiental e econômica, ao mesmo tempo. Não estamos apenas vivendo a superexploração na  
periferia do capital desde nossas marcas históricas, mas também a profunda precarização  
laboral e o crescimento das desigualdades nas regiões tradicionalmente centrais, um tipo de  
exploração que reafirma, ao mesmo tempo, a superexploração e a aniquilação de importantes  
setores da classe trabalhadora que vendem sua força de trabalho, processo este amplo e  
diverso, com características ainda mais densas nas zonas periféricas. A consequência é real e  
trágica: o crescimento da extrema direita, a polarização, o culto à guerra, a negação dos traços  
mínimos que compõem a democracia política, o recrudescimento do autoritarismo de classe, a  
José Fernando Siqueira da Silva  
negação de direitos básicos, a reedição de formas de xenofobia, racismo, discriminação de  
diferentes tipos, destruição da natureza, fundamentalismo religioso e a defesa dos mais fortes e  
"predestinados ao sucesso" como empreendedores livres. Isto tem nome: barbárie em tempos  
marcados por grandes mudanças geopolíticas, em que as peças de xadrez ainda são movidas  
principalmente pelo "velho" Tio Sam, embora seguidas de perto pelo Frankenstein asiático-  
chinês. Nisso, a pandemia é apenas a cereja de um complexo bolo!  
Nesse ponto, vale perguntar: o que o Serviço Social tem a ver com tudo isso? Como  
temos lidado com esse cenário complexo? Que tipo de abordagem profissional seria apropriada  
considerando o legado sócio-histórico latino-americano e caribenho e o atual cenário de crise  
estrutural do capital? Como reposicionar o Projeto Ético-Político Profissional do Serviço Social  
brasileiro nessas condições sócio-históricas? A defesa dele não pode ser um protocolo de boas  
intenções que reafirmam a especulação e o idealismo. E esta é uma lição já ressaltada pelos  
jovens Marx e Engels (2007).  
Perspectiva histórico-crítica e Serviço Social: o debate de raiz marxista  
O debate histórico-crítico no Serviço Social de base marxista precisa reconhecer uma  
importante característica registrada há décadas por José Paulo Netto (1989): não existe um  
Serviço Social marxista17. O que existe é uma profissão, composta por profissionais  
historicamente determinadas(os), como sujeitos históricos possíveis, que atuam em condições  
particulares, inseridas(os) na divisão social do trabalho capitalista, que se revela diversamente  
e desigualmente como força de trabalho de homens, mulheres, brancos(as), negros(as),  
indígenas, entre outros perfiz, cuja ação profissional lida prioritariamente com os setores mais  
expostos da diversa classe trabalhadora que se universaliza e se unifica na classe social. Isto,  
obviamente, não significa que não se possa imprimir um sentido às profissões a partir de  
tradições teóricas heterogêneas, com maior ou menor fidelidade a uma delas (Silva, 2022). Ou  
seja, não são as profissões que assumem certa tradição teórica, mas os sujeitos que colocam  
essa profissão em prática, inspirados por certa contribuição teórica para descrever ou explicar  
a realidade.  
176  
É preciso reconhecer, ainda, a tensão permanente entre uma profissão cuja gênese  
vincula-se a grupos conservadores e/ou reacionários, essencialmente de perfil religioso-  
fundamentalista e médico-higienista no contexto da luta de classes, e uma teoria social  
comprometida com a crítica radical e a superação da ordem do capital. O Serviço Social é uma  
17  
Nem positivista, fenomenológico, pós-moderno, entre outras denominações articuladas a tradições racionais,  
irracionais, estruturalistas ou pós-estruturalistas (Silva, 2022).  
Libertas, Juiz de Fora, v. 24, n. 1, p. 163-186, jan./jun. 2024. ISSN 1980-8518  
Teoria social de Marx e Serviço Social: aportes para uma abordagem histórico-crítica  
profissão que possui limites objetivos cujos profissionais operam políticas que regulam o  
pauperismo, as desigualdades estruturais, nas condições particulares da América Latina. O  
trabalho profissional das(os) assistentes sociais tem sido desenvolvido em condições muito  
particulares, levando em conta demandas sociais complexas inscritas na luta permanente entre  
capital e trabalho, no processo de acumulação capitalista que concentra e centraliza  
permanentemente a riqueza socialmente produzida.  
Dito isto, caberia perguntar: qual a utilidade de uma teoria social do porte do marxismo  
para uma profissão que lida com a gestão do pauperismo? Esse caminho não enfatizaria o  
diálogo com uma tradição teórica oposta ao que seria necessário a essa profissão? Não seria  
romântico, um ato de pura especulação, tentar articular uma teoria social crítica ao capital,  
revolucionária, e uma profissão que se justifica e se legitima exatamente no capitalismo, na fase  
da acumulação explicitamente monopolista, na gestão das desigualdades socialmente  
produzidas (Siqueira, 2020)?  
É preciso considerar, desde a perspectiva histórico-crítica de raiz marxista, que as  
profissões têm limites específicos que não podem ser apagados pela força do desejo. Elas estão  
inscritas no mercado de trabalho capitalista que, por sua vez, estabelece as bases materiais para  
a atuação das(os) assistentes sociais que vendem sua força de trabalho, mediada pelo estado  
capitalista no campo contraditório das políticas sociais e/ou da gestão da pobreza extrema  
(Iamamoto, 2007). Mas será que as(os) profissionais só reproduzem essa base material? Estão  
condenadas(os) a serem dominada(os) por ela? Não necessariamente. Isso também depende da  
capacidade delas(es) exercerem seu poder criativo-relativo como sujeitos possíveis, que  
intervém na realidade concreta como sujeito/objeto, considerando as condições estabelecidas  
pelo seu espaço sócio-ocupacional e processos sociais complexos que afetam as(os)  
profissionais objetiva e subjetivamente.  
177  
Sabe-se que as intenções das(os) profissionais podem ser diferentes daquelas que  
compõem os espaços institucionais. Reconhecer isto é relativamente simples, mas certamente  
importante. Não se deseja profissionais que sejam reprodutores passivos da ordem, nem parece  
adequado acreditar em profissionais idealistas que especulativamente se sobrepõem a limites  
objetivos apagando-os por decreto (Silva, 2013). Então, que tipo de relacionamento seria  
oportuno? Impõe-se aqui a relevância da abordagem histórico-crítica, de raiz marxista, embora  
essa tradição teórica possa imediatamente parecer inadequada, especialmente aos olhos  
daqueles que desejam adaptar-se a ordem, “administrá-la responsavelmente”. Ou seja, a  
capacidade de ler criticamente essa realidade, de reconstruí-la revelando sua própria lógica e  
verdade, oferece melhores condições para que as(os) assistentes sociais proponham alternativas  
José Fernando Siqueira da Silva  
interessantes. Isto é possível e necessário e se constitui contraditoriamente. Explicitar as  
desigualdades sociais, suas múltiplas refrações, perscrutá-las, explorá-las teórica e praticamente  
a partir de suas bases materiais, mesmo nos espaços criados para gerenciá-la, é a forma mais  
produtiva de questioná-las no próprio espaço profissional. A tradição dialética de Marx oferece  
excelentes condições para isto, orientada pela perspectiva da totalidade (Marx, 1989; Lukács,  
2012).  
O Serviço Social inspirado na perspectiva histórico-crítica-marxista, não opera apenas  
o instituído, não admite modelos de aplicação previamente elaborados pela "lógica iluminada”  
da ciência burocratizada e decadente. O "modelo" não é ter modelos que sejam aplicados, mas  
profissionais que pensem/proponham ações desde a realidade com a qual lidam cotidianamente,  
parte constituinte da totalidade social, uma realidade repleta de múltiplas mediações e  
complexos sociais não imediatamente visíveis. Por isto, é preciso reconstruir determinações  
objetivamente dadas, inicialmente invisíveis, para propor um trabalho profissional capaz de  
criar espaços criativos, ricos, mas contraditórios e originalmente estabelecidos para manter a  
ordem. Ou seja, não se trata de apagar magicamente o vínculo estrutural entre capitalismo,  
capital, instituições e o próprio espaço sócio-ocupacional do Serviço Social, mas de explicitar  
suas contradições, agindo com e nelas, revelando-as, debatendo-as, extraindo delas demandas  
genuinamente humanas ocultas pela "gestão responsável e possível da pobreza", por propostas  
empresariais ditas "emancipatórias" (Silva, 2013; Moljo; Silva, 2020). Se, por um lado, as  
profissões e os profissionais não podem ser idealizados e supervalorizados, por outro é  
igualmente problemático atribuir-lhes um cunho exclusivo de dominação e reprodução da  
ordem.  
178  
Do ponto de vista histórico-crítico-marxista, a(o) assistente social não lida com  
“problemas sociais”, como “questões profissionais e sociais”, mas com demandas materiais de  
sujeitos sociais, como seres sociais que se constituem a partir de processos históricos complexos  
gestados na ordem do capital monopólico e não plenamente dominados pelos seres sociais nele  
inseridos. O "objeto da profissão" não está na mente das(os) profissionais que atuam na gestão  
direta do pauperismo e das diversas opressões ali colocadas, nem é determinado pelas(os)  
profissionais que cientificamente investigam esses processos. O que tem sido caracterizado  
como questão social e suas refrações, existe objetivamente na realidade independentemente das  
intenções e do que pensam as(os) assistentes sociais. Portanto, não se trata de um esforço  
marxista-epistemológico reconhecer os vínculos estruturais entre o pauperismo, o capital e a  
sociedade que possibilita a sua produção e reprodução social. Esta é uma imposição ontológico-  
real (Lukács, 2012).  
Libertas, Juiz de Fora, v. 24, n. 1, p. 163-186, jan./jun. 2024. ISSN 1980-8518  
Teoria social de Marx e Serviço Social: aportes para uma abordagem histórico-crítica  
As demandas com as quais assistentes sociais trabalham – violências diversas, as  
pessoas que vivem nas ruas, a falta de recursos para viver, os inúmeros conflitos que se  
expressam imediatamente nos núcleos familiares, as migrações/imigrações, as diversas  
opressões, a ausência de direitos, os problemas relacionados ao trabalho (desemprego,  
informalidade, precariedade, intensificação e desregulamentação), entre outras tensões  
cotidianas (imediatamente apresentadas como "problemas sociais", isolados e individuais) –,  
possuem dinâmicas que independem dos desejos das(os) profissionais e precisam ser  
devidamente explicadas. Este processo teórico-prático não pode ser simplesmente apagado  
(como se fosse um problema de "gestão prática da pobreza"), nem pode ser descrito apenas por  
profissionais da "teoria", pelo conhecimento produzido por cientistas completamente distantes,  
"neutros" e desconectados dos assuntos que se propõem a estudar e/ou intervir.  
Aqui se impõe outra característica essencial da orientação histórico-crítica de raiz  
marxista: a ciência e o conhecimento não são teóricos e práticos, mas teórico-práticos, pois a  
práxis social e profissional exigem a explicação da dinâmica da realidade, a análise de  
complexos sociais ricos em determinações, considerando as particularidades profissionais e a  
dimensão ético-política desse processo. Não separa quem estuda e quem pratica, embora se  
reconheça, na divisão social, sexual e étnico-racial do trabalho, por necessidades objetivas, a  
ênfase em uma ou outra dimensão. Mais do que isso, não se trata de impor a teoria à prática (ou  
o contrário), estabelecendo "modelos de intervenção", mas de estimular um processo que visa  
conhecer a realidade, sua dinâmica e lógica, com a qual as(os) assistentes sociais lidam  
cotidianamente. Isto requer um esforço teórico-prático que teoriza a prática e, ao mesmo tempo,  
praticamente desafia abordagens teóricas que não são fechadas, estáticas. A teoria, então, não  
deve ser "aplicada", mas sim iluminar o estudo da dinâmica real, seu movimento historicamente  
reconstruído e existente, explicá-la a partir de sua própria lógica e, desde aí, repensar a prática  
com suas devidas mediações profissionais.  
179  
Considerando o que foi aqui proposto e valorizando a capacidade crítica de profissionais  
atuarem em espaços contraditórios, sem arranjos ingênuos, especulativos e românticos, a  
abordagem histórico-crítica inspirada em Marx e em sua tradição requer alguns pressupostos  
essenciais18:  
a) profissionais intelectualmente preparadas(os), culturalmente ricas(os), amplamente  
18  
Os tópicos que serão apresentados a seguir, foram resumidamente apresentados em um mesa de debates no  
“Encuentro Latinoamericano de profesionales, docentes y estudiantes de Trabajo Social”, realizado em maio de  
2023 na Universidade Nacional del Centro de Buenos Aires (UNICEN-Tandil). Esse conteúdo, sistematizado e  
publicado em castelhano, foi aqui retomado e adensado a partir das anotações originais (Silva, 2023).  
José Fernando Siqueira da Silva  
ligadas(os) à vida social para além das profissões (Netto, 1996). Aqui surge um problema  
concreto relacionado a uma formação quase sempre limitada, condições materiais precárias  
para a dedicação ao estudo e à pesquisa, bem como processos de alienação/estranhamento social  
que moldam e limitam a consciência do ser social, restringindo-a à esfera imediata da vida. Por  
esta razão, o cuidado com a formação profissional e intelectual das(os) assistentes sociais tem  
sido objeto de preocupação também da tradição histórico-crítico-marxista na profissão;  
b) conexão com problemas genuinamente humanos, intenção e capacidade de  
reconstruir mentalmente, histórica e criticamente, a lógica da própria realidade (Marx, 1989;  
2005a; 2005b), a verdade que a constitui, sua dinâmica objetivamente existente  
independentemente do que pensam as(os) profissionais. Vale perguntar: quem são as pessoas  
com quem trabalhamos? Essa tentativa não deve ser apenas acadêmica, mas intelectual, ou seja,  
não pode se limitar à formação de acadêmicos isolados no mundo universitário, estimuladores  
da "decadência ideológica" (Lukács, 1981). Deve dialogar criticamente com as diversas  
instâncias da vida profissional e social – sindicatos, movimentos sociais, lutas sociais  
comprometidas com problemas genuinamente humanos – como práxis profissional e social,  
como seres humano-sociais;  
c) é fundamental articular, mas não confundir, as competências necessárias e as  
condições objetivas existentes nos espaços de atuação profissional e de militância. Estas  
instâncias são necessariamente articuladas, ainda que não sejam idênticas. A experiência  
profissional contamina a prática militante e vice-versa. Mas, embora a crítica radical seja uma  
necessidade para qualquer situação, a posição ocupada por profissionais/militantes, o nível de  
abrangência e as possibilidades dessas dimensões intervirem na realidade não são as mesmas.  
As estratégias e os instrumentos são igualmente diferentes. Por essa razão, as mediações  
objetivamente existentes e reconstruídas mentalmente para orientar o trabalho profissional e a  
atuação militante, são diferentes, ainda que lidem com a mesma sociabilidade: a sociedade do  
capital. Isto requer habilidade e cuidado intelectual, teórico-prático, para analisar a relação  
dinâmica, de ampla unidade-diversa, entre as singularidades imediatamente colocadas, ou seja,  
o modo como processos complexos aparecem, a universalidade que estabelece determinações  
universais-gerais que informam todas as realidades e as particularidades que revelam processos  
específicos imediatamente postos e universalmente articulados, objetivados em um  
determinado espaço e contexto sócio-histórico (Lukács, 2012). Impõe-se, aqui, a totalidade  
composta por múltiplas mediações que necessitam ser reconstruídas, perquiridas e  
cuidadosamente analisadas;  
180  
d) embora se reconheça que as(os) assistentes sociais têm sido chamadas(os) a intervir  
Libertas, Juiz de Fora, v. 24, n. 1, p. 163-186, jan./jun. 2024. ISSN 1980-8518  
Teoria social de Marx e Serviço Social: aportes para uma abordagem histórico-crítica  
nas diversas refrações da questão social, muitas vezes de perfil terminal, é preciso reconhecer  
que elas(es) podem atuar diversamente nestes contextos. Uma mulher negra ou indígena,  
impactada pelo pauperismo, atingida por múltiplas opressões, que busca um atendimento  
pontual nos Centros de Referência de Assistência Social (proteção básica ou especial) na  
periferia do capital, certamente quer resolver/amenizar uma carência imediata. Apesar de essa  
pessoa se apresentar dessa forma a partir das circunstâncias necessárias para sobreviver, ela é  
um ser social rico em determinações, com demandas e necessidades diversas, mediatamente  
colocadas, ou seja, não necessariamente reveladas-visibilizadas no momento da busca por um  
recurso individual para satisfazer carências aparentemente pontuais. A(o) assistente social  
pode simplesmente conceder ou não o recurso solicitado, fazer o que lhe foi pedido  
institucionalmente, sentindo-se feliz ou não com isto, acreditando que está exercendo sua  
atividade profissional com competência. Ou, por outro lado, atender o que é objeto inicial da  
atenção não apenas porque a instituição lhe demanda para isto, mas porque se trata de uma  
carência humana objetiva que não pode ser explicada apenas a partir de “problemas sociais  
individuais”. Pode-se perguntar: isso muda alguma coisa? Evidente que sim! Muda a forma  
como se lê a realidade, como a explicamos, a maneira como nos colocamos diante do  
imediatamente apresentado. Este procedimento certamente tem impacto no trabalho  
profissional (do atendimento inicial básico aos encaminhamentos sugeridos), nas propostas  
elaboradas, ajuda a levar a profissão aos seus limites, a criar e recriar alternativas, a indicar  
demandas que não foram imediatamente expostas, considerando as condições objetivas e  
subjetivas para tal (Iamamoto, 1992). Além disso, permite que a(o) profissional articule as  
forças potenciais, locais ou não, ligadas ao espaço profissional em que se atua indicando a  
necessidade de estudos e de pesquisas permanentes;  
181  
e) as(os) assistentes sociais, em seus diversos espaços sócio-ocupacionais, não podem  
simplesmente negar as demandas instituídas, produto de complexas articulações entre as reais  
necessidades sociais e o desejo de controle da luta de classes e das desigualdades. Ao mesmo  
tempo, e isso é igualmente importante, o histórico-crítico não pode ser reduzido a uma proposta  
acriticamente conformada a uma determinada prática instituída, como se ecleticamente o  
método de análise da realidade pudesse ser diferente do método de intervenção sobre ela.  
Portanto, o histórico-crítico, de raiz marxista, requer práticas coerentes com esta tradição,  
mesmo que se considere o contexto altamente contraditório. Como lidar com isso, considerando  
que as(os) assistentes sociais são assalariadas(os) e cobradas(os) para cumprir obrigações  
institucionais? Trabalhar a contradição, a partir do que é imediatamente apresentado pelas  
pessoas que buscam um serviço, perscrutá-lo, negá-lo e superá-lo, revelá-lo a partir de suas  
José Fernando Siqueira da Silva  
demandas genuinamente humanas, mediatamente presentes em um pedido individual, é a chave  
para um trabalho profissional histórico-crítico. Isso não elimina os problemas, que são  
estruturais, mas os tensiona permanentemente desde o trabalho profissional. Por exemplo:  
embora a fome seja uma carência humana que precisa ser satisfeita imediatamente (algo  
essencial), é importante que a abordagem profissional vá além disto, articulando-a com outras  
carências e necessidades que expliquem o que foi imediatamente apresentado. Ainda que comer  
seja essencial, alimentar-se corretamente, saudavelmente, expandir o debate para a qualidade  
dos alimentos, como são produzidos e com qual finalidade, é absolutamente importante  
(Sant’Ana, et al., 2021). Isto possibilita não só o enfrentamento da fome imediata, mas também  
contribui com a elucidação da complexidade do tema e de qual ser social estamos falando, seus  
determinantes: mulher, periférica, indígena, negra ou branca, com filhos, que vive certo  
cotidiano, desempregada, subempregada, precária, explorada, que sofre diversas formas de  
violência, com carências e necessidades unidas heterogeneamente como classe trabalhadora. O  
trabalho profissional deve revelar isso, permitir que tais demandas sejam expostas e trabalhadas  
como potências criativas que explorem vácuos informativos/formativos vistos como  
desnecessários. O que fazemos e o que não devemos fazer? O que deixamos de fazer e  
poderíamos fazer? Quais outras(os) profissionais dividem o espaço de trabalho profissional? É  
possível contar com elas(es)? Em que medida? Quais as regras institucionais e suas demandas?  
Como lidar com elas? Desconsiderar isto significa, com efeito, abandonar a profissão às traças,  
desconsiderá-la como instância potencialmente interessante, necessária, ainda que ela  
efetivamente tenha alcance restrito. A questão central é saber lidar com demandas  
imediatamente postas desde o ponto de vista histórico-crítico, sempre, gostemos ou não, de  
forma imperfeita, limitada e contraditória, contribuindo para que as pessoas formem suas  
consciências sobre a sociabilidade que vivem (incluindo as(os) profissionais), revelando as  
causas que impedem níveis crescentes de emancipação social;  
182  
f) a perspectiva histórico-crítica aqui destacada, deve analisar e conhecer todas as  
tendências teóricas que informam a profissão (mesmo as mais conservadoras-reacionárias). Não  
há dúvidas: o conhecimento é essencial para debater e propor, criticar concretamente, sem  
especulações idealistas. Em outras palavras, para atuar como profissional-militante, no sentido  
aqui proposto, é necessário conhecer as diferentes perspectivas, debater suas teses,  
posicionando-se diante delas teórica e praticamente (Silva, 2022, p. 61-106). O pluralismo  
(Coutinho, 1991), em seu sentido amplo e profundo, requer o conhecimento dos diferentes, não  
para propor uma síntese eclética, mas para estabelecer os limites dos diferentes, suas fronteiras,  
estimular a crítica permanente, indicar e defender alternativas com orientação social explícita.  
Libertas, Juiz de Fora, v. 24, n. 1, p. 163-186, jan./jun. 2024. ISSN 1980-8518  
Teoria social de Marx e Serviço Social: aportes para uma abordagem histórico-crítica  
A profissão Serviço Social está em disputa e expressa, reflete, projetos societários  
concretamente em tensão na realidade. Ressaltar a necessidade de conhecer as perspectivas que  
compõem a realidade, não significa acreditar na unidade acrítica entre elas como uma “colcha  
de retalhos” ou uma “caixa de ferramentas” utilizada sem critérios. Ao contrário, o pluralismo  
exige tensionar, teórica e praticamente, permanentemente, dissensos, incoerências,  
inconsistências e projetos diferentes, seu elo de classe, negando o caminho fácil da síntese  
eclética (Silva, 2022; 2013). Além disso, é preciso ter em mente que conhecer as diferentes  
teses, inclusive as mais regressivas e reacionárias, tem o sentido exato de criticá-las ou combatê-  
las adequadamente, pois não há espaço para, no sentido do pluralismo aqui proposto, relativizar  
posições, justificar preconceitos e proposições fascistas, ou inspiradas neles, que impedem a  
emancipação humana do ser social: xenofobia, homofobia, machismo, racismo, entre outras  
formas de opressão.  
Portanto, é preciso insistir que o trabalho profissional não está previamente estabelecido,  
mas deve ser construído a partir de uma dinâmica complexa que articule a realidade  
institucional, as demandas das pessoas que buscam determinado serviço, os elementos que  
estruturam a sociabilidade, a capacidade crítica que exige profissionais preparadas(os) e a  
articulação com as lutas sociais anticapitalistas. Não há dúvida sobre um aspecto decisivo: uma  
formação mais ou menos rica, articulada a condições objetivas melhores ou pouco favoráveis a  
um trabalho profissional criativo, certamente tem influência positiva ou negativa nesse cenário.  
A ausência destes elementos ou a falta de articulação entre eles compromete a abordagem  
histórico-crítica de base marxista, reduzindo o trabalho profissional exclusivamente à gestão de  
tensões estruturais (Esquivel, 2005 e 2021). O que se deve medir como capacidade profissional?  
A sua potência para operar o instituto adequadamente? Do ponto de vista aqui analisado as  
demandas institucionais não são insignificantes, mas imediatas e acríticas. O que foi instituído  
precisa ser dessecado, superado, revelado, criticado e elucidado a partir de suas intenções, de  
sua ideologia.  
183  
Considerações finais  
A perspectiva histórico-crítica de raiz marxista é essencial para o Serviço Social. Esta  
necessária interlocução se impõe para aquelas(es) assistentes sociais que consideram  
importante, no processo de formação e do trabalho profissional, ocupar criticamente e  
prepositivamente o contraditório e complexo espaço sócio-ocupacional da regulação da pobreza  
na ordem monopolista do capital. Isto, todavia, não pode se realizar sem a reconstrução das  
mediações que constituem a América Latina e o Caribe como parte da periferia do capital, no  
José Fernando Siqueira da Silva  
atual estágio de acumulação capitalista. Nisto, o que vem sendo caracterizado como questão  
social, suas refrações.  
Qual é o modelo, ou quais são os modelos, para o Serviço Social? O modelo não é ter  
modelos, mas exercer a potência do sujeito histórico relativo incluindo as possibilidades  
contraditórias e os limites reais que compõem os espaços profissionais. Ou seja, o histórico-  
crítico, de raiz marxista, não é mais um modelo a ser aplicado. Ao contrário, nega modelos,  
receitas, aplicações de qualquer espécie, exige um sujeito ativo que atue na história – onde se  
situa a profissão – sempre de forma relativa (não plena), construindo conhecimentos a partir da  
realidade, analisando sua dinâmica, reconstruindo categorias que expliquem o ser social. Desde  
aí, decodifica mediações, exerce a práxis – como relação de unidade-diversa entre teoria e  
prática – também profissional, não isoladamente, compromete-se com a realidade e com a  
defesa da vida de seres sociais concretos, suas carências e necessidades. Por isto, é também um  
compromisso ético-político – incluindo profissional – que rejeita “neutralidades”, questiona  
diversas formas de ciências descritivas e opõe-se a todas as orientações e posturas  
obscurantistas e de base fascista.  
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Totalidade concreta, capitalismo e Serviço Social  
Concrete totality, capitalism and Social Work  
Alexandra Aparecida Leite Toffanetto Seabra Eiras*  
Resumo: O artigo evidencia a relação entre  
totalidade concreta e capitalismo, a partir da  
argumentação de Marx e Engels e do diálogo  
com pesquisadores marxistas na atualidade.  
Trata-se de um estudo preliminar para  
compreender os fundamentos históricos das  
perspectivas críticas/contestatórias ao Serviço  
Social Tradicional, emergentes nas décadas de  
1960-1970, no plano desta totalidade, de um  
modo global. Parte-se da análise da produção  
teórica da pesquisa em rede “Movimento de  
Reconceituação do Serviço Social na América  
Latina: determinantes históricos, interlocuções  
internacionais e memória” (Argentina, Brasil,  
Chile, Colômbia, Espanha, EUA, Portugal e  
Abstract: The article highlights the relationship  
between concrete totality and capitalism, based  
on the arguments of Marx and Engels and the  
dialogue with current Marxist researchers. This  
is a preliminary study to understand the  
historical foundations of critical/contestatory  
perspectives on Traditional Social Work,  
emerging in the 1960s-1970s, at the level of this  
totality, in a global way. It starts from the  
analysis of the theoretical production of the  
network  
research  
“Social  
Work  
Reconceptualization Movement in Latin  
America: historical determinants, international  
interlocutions and memory” (Argentina, Brazil,  
Chile, Colombia, Spain, USA, Portugal and  
United Kingdom) carried out during the senior  
post-doctorate – CNPq/PUC-SP.  
Reino Unido) realizada durante  
doutorado sênior – CNPq/PUC-SP.  
o
Pós-  
Palavras-chaves:  
Totalidade  
concreta;  
Keywords: Concrete totality; Capitalism;  
Capitalismo; Serviço Social; Fundamentos  
históricos.  
Social Work; Historical foundations.  
Introdução  
A motivação para redigir este texto originou-se da proposta de investigação de pós-  
doutorado1 sobre o tema “Ação profissional crítica2 no Serviço Social: fundamentos históricos  
e teórico-metodológicos”.  
*
Assistente social, doutora em Serviço Social (UFRJ). Pós-doutorado em Serviço Social, (PUC-SP), bolsista PDS-  
CNPq, 2022/2023. Professora titular Faculdade de Serviço Social (Graduação e Pós-graduação) da Universidade  
Federal de Juiz de Fora. ORCID: https://orcid.org/0000-0003-4095-7950  
1 Vínculo com o Programa de Estudos Pós-graduados da PUC-SP, sob a supervisão da Profa. Dra. Maria Carmelita  
Yazbek com acesso à bolsa, no período de dezembro de 2022 a agosto de 2023, através de concorrência ao Edital  
CNPq 25/2021, PDS.  
2 Aação profissional crítica é aqui compreendida como expressão sintética da orientação profissional, consideradas  
as dimensões teórico-metodológica, ético-política e técnico-operativa nela contidas.  
DOI: 10.34019/1980-8518.2024.v24.44257  
Esta obra está licenciada sob os termos  
Recebido em: 20/04/2024  
Aprovado em: 11/06/2024  
Alexandra Aparecida Leite Toffanetto Seabra Eiras  
Um dos objetivos dessa proposta foi a análise do material bibliográfico produzido pela  
pesquisa “O Movimento de Reconceituação do Serviço Social na América Latina (Argentina,  
Brasil, Chile e Colômbia): determinantes históricos, interlocuções internacionais (Espanha,  
EUA, Portugal, Reino Unido) e memória (1960-1980)3.  
Parti da constatação elaborada no decorrer de minha inserção nos debates e simpósios4  
realizados no âmbito dessa pesquisa, de que os processos sociais que engendram a perspectiva  
crítica – contestatória ao Serviço Social Tradicional5 são semelhantes e articulam-se ao  
desenvolvimento das relações sociais capitalistas. Esta análise exigia a compreensão desses  
processos de modo articulado, tomados em sua totalidade.  
Deste modo, a compreensão da perspectiva crítica ao SST tem como fundamento  
histórico a análise da totalidade das relações sociais capitalistas e consistiu no objeto da  
pesquisa de pós-doutorado, cuja hipótese norteadora indicava a possibilidade de caracterizar o  
“Serviço Social crítico” enquanto expressão desta dinâmica, em um plano global (Eiras, 2022,  
p. 16).  
Durante a pesquisa de pós-doutorado retomei algumas elaborações no âmbito da teoria  
social de Marx, para o que foi crucial a participação no segundo ciclo do Seminário de Estudos  
sobre o Capital6 e percebi a necessidade de apreensão da totalidade não somente como  
referência a um processo articulado e conectado a outros complexos mais amplos (totalidade  
enquanto complexo de complexos), mas como uma instância contraditória, que desde o  
capitalismo, tornou-se observável em si mesma, através das mediações e objetivações em um  
plano global, que envolvem todos os territórios deste planeta, seus povos e culturas, o que  
constitui uma totalidade concreta.  
188  
Neste artigo, desenvolverei alguns aspectos dessa argumentação, expostos no item 1, e  
no segundo item, apresentarei uma síntese da análise realizada sobre a profissão, a partir da  
produção da pesquisa sobre o Movimento de Reconceituação do Serviço Social na América  
3 Conforme explicarei adiante, neste artigo.  
4 A referida investigação foi coordenada pelas Profas. Dras. Marilda V. Iamamoto e Cláudia Mônica dos Santos no  
período de 2016 a 2021, financiada pelo CNPq. Foram realizados quatro simpósios internacionais, 02 na  
FSS/UFJF, 01 na Universidade de Caldas, Colômbia, 01 na FSS/UFJF e ESS/UERJ. Além desses simpósios,  
aconteceram três workshops, realizados virtualmente, durante o ano de 2021, com registro dos debates suscitados  
pelo material já elaborado pelas diferentes equipes.  
5 “A prática empirista, reiterativa, paliativa e burocratizada dos profissionais, parametrada por uma ética liberal-  
burguesa e cuja teleologia consiste na correção desde um ponto de vista claramente funcionalista de resultados  
psicossociais considerados negativos ou indesejáveis, sobre o substrato de uma concepção (aberta ou velada)  
idealista e/ ou mecanicista da dinâmica social, sempre pressuposta a ordenação capitalista da vida como um dado  
fatual ineliminável” (Netto, 1991, p. 118).  
6
Iniciativa acadêmica da professora Marilda V. Iamamoto, coordenado por uma equipe interinstitucional,  
vinculada à pesquisa em rede “O Serviço Social na história: questão social e movimentos sociais – América Latina  
e Europa”, desdobramento da investigação anterior sobre o MRLA.  
Libertas, Juiz de Fora, v. 24, n. 1, p. 187-211, jan./jun. 2024. ISSN 1980-8518  
Totalidade concreta, capitalismo e Serviço Social  
Latina (MRLA) e suas interlocuções internacionais, abrangendo o período de 1960 a 1980,  
durante o qual as perspectivas críticas ao SST emergiram nos países analisados.  
Dada a densidade do tema, sobretudo no item 1, recorri à inserção de referências teóricas  
e comentários explicativos em notas de rodapé.  
Capitalismo e totalidade concreta  
Já no século XIX, Marx e Engels (2001) indicaram que o desenvolvimento universal das  
forças produtivas atingira uma “existência empírica real” no capitalismo. Tal desenvolvimento  
implicou no fato de que a história dos seres humanos passou a se desenrolar no plano da história  
mundial. Para os autores,  
[o desenvolvimento das forças produtivas7,8] é uma condição prática prévia  
absolutamente indispensável, pois, sem ele, a penúria se generalizaria, e,  
com a necessidade, também a luta pelo necessário recomeçaria, e se cairia  
fatalmente na mesma imundície anterior. Ele é também uma condição prática  
sine qua non, porque unicamente através desse desenvolvimento universal das  
forças produtivas é possível estabelecer um intercâmbio da massa ‘privada de  
propriedade’ simultaneamente em todos os povos (concorrência universal) e  
torna cada um deles dependente das revoluções dos demais; e porque,  
finalmente, coloca homens que vivem empiricamente a história universal em  
lugar de indivíduos que vivem num plano local (Marx e Engels, 2001, p. 31-  
33).  
Essa perspectiva enunciada por Marx e Engels evidencia a particularidade histórica que  
se processa, sobretudo, a partir do desenvolvimento das forças produtivas sob o capitalismo9.  
Tal desenvolvimento se expressa em um plano que extrapola “o local”.  
189  
7 “Produzir a vida, tanto a sua própria vida pelo trabalho, quanto a dos outros pela procriação, nos aparece, portanto,  
a partir de agora, como uma dupla relação: por um lado como uma relação natural, por outro como uma relação  
social – social no sentido em que se entende com isso a ação conjugada de vários indivíduos, sejam quais forem  
suas condições, forma e objetivos. Disso decorre que um modo de produção ou um estágio industrial determinados  
estão constantemente ligados a um modo de cooperação ou a um estágio social determinados, e que esse modo de  
cooperação é, ele próprio, uma “força produtiva’; decorre igualmente que a massa das forças produtivas acessíveis  
aos homens determina o estado social, e que se deve por conseguinte estudar e elaborar incessantemente a ‘história  
dos homens’ em conexão com a história da indústria e das trocas” (Marx e Engels, 2001, p. 23-24).  
8
“O poder social, isto é, a força produtiva multiplicada que nasce da cooperação dos diversos indivíduos,  
condicionada pela divisão do trabalho, não aparece a esses indivíduos como sendo sua própria força conjugada,  
porque essa própria cooperação não é voluntária; [..] ela lhes aparece, ao contrário, como uma força estranha,  
situada fora deles, que não sabem de onde ela vem nem para onde vai, que, portanto, não podem mais dominar e  
que, inversamente, percorre agora uma série particular de fases e de estágios de desenvolvimento, tão  
independentemente da vontade e da marcha da humanidade, que na verdade é ela que dirige essa vontade e essa  
marcha da humanidade” (Marx e Engels, 2001, p. 30).  
9 Pierre Villar (1980) indica duas passagens do livro A ideologia Alemã, às quais não pude identificar igualmente,  
na versão que utilizo em português. Essas passagens trazem elementos para a compreensão das forças produtivas  
e da divisão do trabalho, em um plano que extrapola o nível local. “Não apenas a relação de uma nação com outra,  
mas também inteira organização interna dessa mesma nação depende do grau de desenvolvimento da sua produção  
e das suas relações internas e externas. O grau de desenvolvimento das forças produtivas de uma nação é indicado,  
do modo mais claro, pelo grau de desenvolvimento a que chegou a divisão do trabalho. Toda nova força produtiva  
(...) traz como consequência um novo desenvolvimento na divisão do trabalho (...). Os diversos estágios de  
desenvolvimento da divisão do trabalho são igualmente formas diversas de propriedade; ou seja, cada novo estágio  
Alexandra Aparecida Leite Toffanetto Seabra Eiras  
Os autores anteviram no modo de produção capitalista, uma dada materialidade  
fundante de uma “história universal”10 e as possibilidades abertas neste processo, para o  
conjunto dos povos, com impacto em termos da liberdade e autonomia individuais, em uma  
perspectiva emancipadora para os seres humanos, tomados coletiva e individualmente.  
Assim, evidencia-se que a emergência da totalidade concreta está relacionada ao  
processo histórico assentado material e objetivamente no desenvolvimento das forças  
produtivas sob o capitalismo, que envolve nessa dinâmica, o planeta, integrando no processo  
de produção/reprodução social, as diferentes regiões/territórios.  
No plano teórico-analítico, a compreensão dessa objetivação ocorre pela Economia  
Política e pela Crítica à Economia Política elaborada por Marx e Engels.  
A partir desses pressupostos, observa-se através de Rubin (2014), que a gênese deste  
processo aconteceu no decorrer do período conhecido como “mercantilismo” (séculos XVI e  
XVII)11.  
Nesta direção, Rubin (2104, p. 40) argumenta:  
No final da Idade Média já se apresentavam os sinais de que a economia  
regional ou citadina estava em fase de declínio [...] A economia regional era  
baseada numa combinação do manso senhorial rural com as guildas urbanas;  
[...] a decomposição se deu [pelo] rápido desenvolvimento de uma economia  
monetária, a expansão do mercado e a força crescente do capital mercantil.  
190  
da divisão do trabalho determina também as relações entre os indivíduos e o material, o instrumento e o produto  
do trabalho” (Marx e Engels in Villar, 1980, p. 106). “O desenvolvimento da força produtiva do trabalho pressupõe  
uma cooperação em ampla escala; como tão-somente partindo desse pressuposto é possível organizar a divisão e  
a combinação do trabalho, economizar os meios de produção concentrando-os em massa, criar meios de trabalho  
que já materialmente só podem ser empregados em comum, por exemplo, os sistema de máquinas; como forças  
imensas da natureza podem ser obrigadas a servir à produção em aplicação tecnológica da ciência” (Marx – O  
Capital, in Villar, 1980, p. 125).  
10 Após analisar a obra de Marx, buscando sua relação com o campo de pesquisa da história, na perspectiva do  
historiador, Villar conclui: “Marx combina em cada uma de suas páginas não apenas – como observou Schumpeter  
– teoria econômica e análise histórica, mas também, numa intrincadíssima rede, a teoria da história e a história da  
teoria, um conjunto que o próprio Schumpeter não conseguiu alcançar, apesar do poder de seu pensamento e de  
sua grande erudição; Schumpeter só teve êxito na história da teoria. [...] Também para O Capital – se quisesse  
defini-lo com relação ao tema ‘Marx e a história’ – deveria dizer, como para a Ideologia Alemã, que não é um livro  
de história, mas é obra de um historiador” (Villar, 1980, p. 126). É interessante que Villar termina esse artigo  
indicando no item 5, o título, “A história universal como resultado”. Embora ele não explique essa concepção  
(ainda que a tenha exposto a partir da análise dos textos de Marx, dentre os quais se destaca a Ideologia Alemã),  
fica subentendido que esse é o caminho para ele, enquanto historiador marxista. Aesse respeito, também me parece  
que a obra de Hobsbawm, sobretudo, o estudo sobre as “Eras” (Das Revoluções, Do Capital, Dos Extremos) foi  
elaborada buscando uma amplitude histórica (de análise de dados e processos) no nível global.  
11  
“A era do capital mercantil (ou capitalismo primevo) abrange os séculos XVI e XVII, tendo sido uma era de  
enormes transformações na vida econômica da Europa Ocidental, com o desenvolvimento extensivo do comércio  
marítimo e o predomínio do capital comercial” (Rubin, 2014, p. 39) “Assim como uma compreensão completa da  
economia capitalista é impossível sem o conhecimento da época da acumulação capitalista primitiva, tampouco  
pode haver uma compreensão correta da evolução da economia política contemporânea sem um conhecimento  
geral dos economistas da era mercantilista” (Rubin, 2014, p. 35) “Embora isso possa ocorrer de modo menos  
visível e com maior complexidade, ainda pensamos que as exigências da política econômica concreta exercem um  
poderoso impacto sobre a orientação das ideias econômicas” (Rubin, 2014, p. 30).  
Libertas, Juiz de Fora, v. 24, n. 1, p. 187-211, jan./jun. 2024. ISSN 1980-8518  
Totalidade concreta, capitalismo e Serviço Social  
Naquele período, as trocas comerciais foram intensificadas e o mercado tornou-se uma  
esfera importante para as transações monetárias, expandindo-se “além-mar”. A disputa pelas  
melhores condições para a venda e comercialização de mercadorias ampliou-se na relação entre  
diferentes regiões, envolvendo a disputa pelas rotas e territórios.  
De acordo com Rubin (2014, p. 41), “o comércio colonial trouxe enormes lucros aos  
mercadores europeus e permitiu-lhes acumular consideráveis capitais monetários, adquirindo  
matérias-primas coloniais a preços irrisórios e vendendo-as na Europa a um preço muito maior”.  
Além disso, possibilitou uma “fluência de metais preciosos, um aumento nas trocas comerciais  
e o estabelecimento de uma economia monetária” (Rubin, 2014, p. 42).  
Rubin (2104) destaca o rápido enriquecimento da burguesia comercial e o declínio no  
padrão de vida dos camponeses, artesãos e operários, face ao aumento dos preços (encarecendo  
as provisões) motivado pela depreciação da moeda, cujo valor caíra pela facilidade de extração  
dos metais preciosos. Os salários por sua vez, não acompanharam o aumento real dos preços.  
Para o autor “o empobrecimento dos camponeses e dos artesãos apareceu como um resultado  
inevitável da dissolução da ordem feudal no campo e das guildas nas cidades” (Rubin, 2014, p.  
43).  
Em síntese,  
191  
o que ocorreu na era do capital mercantil (os séculos XVI e XVII) foi a  
acumulação de enormes quantias de capital nas mãos da burguesia comercial  
e um processo de separação dos produtores diretos (artesãos e, em parte,  
camponeses) em relação aos meios de produção – isto é, a formação de uma  
classe de trabalhadores assalariados. Uma vez obtido o domínio no campo do  
comércio exterior, a burguesia penetrou naqueles ramos da indústria voltados  
à exportação. Os trabalhadores artesãos dessas indústrias foram subordinados  
ao mercador-empreendedor que, com a ajuda do comércio exterior, impondo  
seu controle sobre a indústria caseira, proporcionou ao capitalismo celebrar  
suas primeiras vitórias (Rubin, 2014, p. 45)12.  
Segundo Rubin (2014, p. 55),  
as políticas do período mercantilista posterior, implementadas para expandir  
o comércio exterior e promover o desenvolvimento dos transportes e das  
indústrias orientadas à exportação – desenvolvimento do qual aquele comércio  
dependia –, eram mais adequadas a um grau superior do desenvolvimento do  
capitalismo mercantil do que as políticas da primeira fase do mercantilismo  
[...] o mercantilismo desenvolvido era expansionista, visando à máxima  
extensão do comércio exterior, à conquista de colônias e à hegemonia do  
12  
“Processualmente, alteram-se a escala e as concepções que envolveriam as trocas mercantis, inaugurando as  
formulações que precederam à Economia Política. Ao contrário da visão liberal, que veria as relações de comércio  
internacional de maneira idêntica às relações do comércio interno, isto é, como relações entre indivíduos, os  
mercantilistas concebiam as relações de comércio externo como relações entre nações, uma lógica que não  
dispensava o uso da força, do poderio militar e da expansão do domínio colonial, marcada por exploração,  
dominação e violência” (Calabrez, 2020, p. 51).  
Alexandra Aparecida Leite Toffanetto Seabra Eiras  
mercado mundial” (grifos meus).  
Assim, durante o mercantilismo instaura-se um novo patamar de interação,  
objetivamente, no plano de uma totalidade concreta, ultrapassadas as fronteiras continentais,  
pela via marítima. Rubin (2014) analisou historicamente esse processo e indicou os elementos  
(resumidos anteriormente) que já estavam em desenvolvimento e que abriram alternativas  
exploradas pela nova classe e pelos países (Estados-Nação) em formação.  
Por conseguinte, a expansão dos territórios sob hegemonia europeia significou a  
abertura de um caminho para o conhecimento do planeta em sua totalidade e para a anexação  
de domínios; asseverou o desenvolvimento dos transportes marítimos e o estabelecimento de  
relações mercantis no plano internacional que fundaram a possibilidade da divisão internacional  
do trabalho e a necessidade de “cooperação” e interdependência no plano da produção material.  
Por sua vez, na análise de Marx (2020) é inerente ao capitalismo a finalidade precípua  
de valorização e acumulação. Assim, a expansão da produção engendra várias “necessidades”,  
dentre elas, a aquisição de matéria-prima a baixo custo e a conquista de novos mercados para  
venda das mercadorias produzidas (circulação). A consolidação do modo de produção  
capitalista ocorrerá consoante aos processos de produção e circulação de mercadorias nas  
diferentes formas de organização analisadas por Marx (2020) – manufatura, maquinaria e  
grande indústria, com as exigências inerentes a elas e seus impactos nas relações entre as  
diferentes regiões13.  
192  
A reprodução ampliada do capitalismo significou também reprodução em nível  
planetário, na configuração de uma totalidade concreta articulada materialmente às forças  
produtivas sob o domínio do capital, com a objetivação de instâncias em um plano global:  
“Mercado Mundial”, “Divisão internacional do trabalho” são instituições objetivamente  
relacionadas a esse processo histórico.  
Torna-se relevante indicar que os lugares de territórios, povos e culturas foram alterados  
pelo processo de expansão das relações sociais capitalistas e a elas submetidos –, América  
Latina, América do Norte e Europa ocupam posições bem distintas, mas, integradas à dinâmica  
de produção/apropriação da riqueza, à produtividade do trabalho sob a lógica capitalista, que  
abriu possibilidades inéditas para o desenvolvimento do gênero humano14.  
13 A esse respeito, a análise de James O’ Connor (1977) sobre o século XX é bem instigante, no sentido de destacar  
a presença de organizações empresariais vinculadas a setores diferentes da economia, interligados entre si, mas  
com particularidades nas condições de produção e organização do trabalho e na disputa política entre a própria  
classe burguesa/capitalista. São eles: o setor concorrencial, o monopolista e o estatal, indicando a complexidade  
interna na organização da produção, na particularidade dos países e a centralidade político-econômica dos setores  
monopolistas, nas relações internacionais entre as nações.  
14 Algumas das reflexões que permeiam este artigo explicitam a influência da produção de Lukács (Para uma  
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Totalidade concreta, capitalismo e Serviço Social  
Totalidade concreta, contradição e correlação de forças  
A totalidade evidenciada nesta argumentação é permeada pela contradição, na unidade  
e antagonismo entre capital e trabalho, como explicitarei durante este tópico. Ela é constituída  
também por correlações de forças assimétricas, de domínio e submissão, “intra” e “entre” as  
classes fundamentais, atravessadas pelas disputas entre países e territórios. Tal dinâmica  
“exigiu” o desenvolvimento estratégico de aparatos institucionais, jurídico-normativos e  
políticos-militares, no plano global, mundial.  
Entretanto, esta totalidade concreta é constituída pelo desenvolvimento das forças  
produtivas em um plano global, atrelado a um processo novo: a produção e apropriação da  
riqueza a partir da divisão internacional do trabalho, envolvendo o conjunto dos países,  
territórios e continentes. Não obstante a contradição fundante e as assimetrias na correlação de  
forças, a totalidade concreta é uma produção coletiva, e mantém-se continuamente, neste  
âmbito, permeando simultaneamente, todas as formas de vida e a existência humana neste  
planeta.  
Observa-se, como argumentei no item anterior, que nas relações sociais capitalistas  
ocorreram interações e intercâmbios com a natureza, em nível planetário. Desenvolveram-se a  
cooperação e a interdependência submetidas à finalidade de valorização e à acumulação de  
capital, que simultaneamente, atrelou as alternativas e as escolhas locais/regionais coletivas e  
individuais ao plano da totalidade. Esta totalidade tornou-se concreta, a partir e para a  
continuidade dessas relações sociais, dirigindo-as e regulando-as, por complexos processos  
econômicos, políticos, normativos, construídos historicamente15.  
193  
Assim, a expansão e a consolidação das relações sociais capitalistas, envolvendo todo o  
planeta, engendrou uma totalidade concreta complexa e contraditória, prenhe de disputas e  
tensões16, que se tornaram constitutivas dos demais complexos nela implicados.  
ontologia do ser social). Embora eu não seja especialista na leitura e compreensão de sua obra, dela me apropriei  
em algumas referências fundamentais, como a concepção de ser social e a particularidade histórica do gênero  
humano.  
15  
Institucionalização de complexos, normas e procedimentos que regulam as trocas entre povos, territórios e  
nações, em termos das mercadorias e do trabalho humano nelas contido (aqui entendidos conforme a concepção  
marxiana). Complexos contraditórios, voláteis, atravessados pelas correlações de forças que também exigem novas  
estratégias econômico-político-militares para conquista, ampliação e/ou manutenção do poder.  
16 Ainda que a organização dos Estados Nacionais, atrelada às necessidades mercantis de regulação e domínio  
entre países e territórios, bem como a emergência de sindicatos e partidos políticos delimite campos de ação  
internamente aos países, a materialidade e a dimensão das relações sociais capitalistas assentam-se na estruturação  
e consolidação de uma totalidade concreta, a partir da qual os países, as classes fundamentais – burguesia e  
proletariado, se movimentam.  
Alexandra Aparecida Leite Toffanetto Seabra Eiras  
Alterou-se a materialidade a partir da qual se assenta a existência e a experiência  
humanas, implicando no desenvolvimento do ser social em uma perspectiva de universalidade,  
fundada nesta materialidade.  
O modo de vida no plano local/regional, econômico-sociocultural de cada território  
desta “Terra”, tornou-se parte dessa nova condição material que passa a constituir a história dos  
povos e a impor constrangimentos.  
Desse modo, no período mercantilista permeado pela expropriação da terra, durante a  
acumulação primitiva (Marx, 2018, 2020), a burguesia, classe nascente, exerceu um papel  
econômico-político fundamental no enfrentamento ao Antigo Regime e às monarquias  
absolutistas. Embora as particularidades dos processos evidenciem as diferenças na constituição  
da burguesia enquanto classe, operou-se uma transformação objetiva que constituiria novas  
relações sociais e novas instituições políticas. E a burguesia emergirá enquanto classe  
hegemônica no plano mundial, cujos interesses foram transformados em “interesses universais”  
para o “desenvolvimento e progresso das sociedades”, através do capitalismo17.  
Todavia, Marx (2018, 2020) evidenciou de modo preciso, a relação de unidade e de  
antagonismo entre capital e trabalho: no processo de produção (indicando a relação entre capital  
constante e capital variável e a apropriação do mais valor) e nas relações sociais capitalistas  
(constituição das classes sociais, burguesia e proletariado). Também identificou as tensões e  
disputas entre interesses no interior da classe burguesa, derivados da concorrência inerente ao  
modo de produção capitalista.  
194  
A criação de mecanismos de resistência e de enfrentamento, diante das contradições  
postas pelo capitalismo engendra possibilidades de consciência e subjetivação, que foram  
relevantes para a organização do proletariado em sindicatos e partidos políticos. Considera-se  
ainda, que o processo de constituição da burguesia enquanto classe e o seu protagonismo  
revolucionário (Coutinho, 1972) impulsionaram novos horizontes de ação que estimularam as  
reivindicações e lutas por liberdade e igualdade, pleiteando sua extensão real a cada indivíduo.  
A esse respeito, Shlomo Sand (2023) descreve a década de 1840 como um período de  
crise, destacando que o inverno de 1847 foi muito rigoroso em todo o continente e houve  
escassez de alimentos. Nesse contexto, os protestos sociais eclodiram e houve uma ampla  
disseminação da propaganda liberal e democrática, sendo que a igualdade cívico-política foi  
17 NaAmérica Latina, ainda durante o século XX, a estratégia e ideologia desenvolvimentista destacam o progresso  
urbano-industrial para promover a superação do “atraso” e do “subdesenvolvimento” dos países em nosso  
continente, aparentemente, privilegiando os interesses nacionais de elevação ao patamar civilizatório dos países  
centrais.  
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Totalidade concreta, capitalismo e Serviço Social  
reivindicada e promovida por novos movimentos, que fizeram com que o ano de 1848 ficasse  
conhecido como a “Primavera dos Povos”. O autor relata que na Suíça os cantões liberais  
impuseram-se aos conservadores, eclodindo revoltas em várias regiões da península italiana,  
nas principais cidades da Confederação germânica (Berlim e Império Austro-húngaro, Polônia  
e Boêmia), além de França.  
Assim, toda a Europa, à excepção da Rússia experimentou uma agitação  
intensa em que se entrelaçavam reivindicações sociais, políticas e  
nacionalistas. Mas esses acontecimentos não permitiram ver surgir uma  
esquerda organizada e claramente identificada, nem qualquer movimento  
político importante capaz de canalizar os protestos e de provocar uma  
mudança de regime (Sand, 2023, p. 59)18.  
A “Primavera dos povos”, no ano de 1848 e a “Comuna de Paris”, em 1871, evidenciam  
as tensões e contradições em curso, movendo-se nesta nova materialidade posta pelo modo de  
produção/reprodução capitalista. Os horizontes revolucionários pautados na noção de igualdade  
coadunam-se com processos de organização sindical e político-partidária do proletariado.  
A classe operária em expansão enfrenta a burguesia em condições desiguais de poder e  
sofre violências e repressões desmensuráveis, em proporção aos atos revolucionários durante a  
Primavera dos Povos19 e a Comuna de Paris. Aburguesia impõe-se pelo uso da força e distancia-  
se de seu papel progressista (Coutinho, 1972). E, conforme a análise de Ianni “a comuna não  
foi derrotada pela burguesia francesa. Esta se revelou incapaz de derrotá-la. Precisou chamar as  
tropas alemãs. Os exércitos inimigos de ontem, nas batalhas de Verdun e Metz, aliaram-se na  
luta contra o proletariado” (1988, p. 99).  
195  
Contudo, a unidade entre capital e trabalho, a exigência de valorização e acumulação  
engendrada pelo capitalismo, não permitia eliminar a classe operária, sendo preciso forjar  
estratégias para legitimação dos interesses hegemônicos no capitalismo e manutenção da sua  
força de trabalho.  
Assim, a unidade e antagonismo entre capital e trabalho também engendraram um  
campo de possibilidades, oscilando entre os interesses e exigências de valorização/acumulação  
e os processos de organização da classe operária, através dos quais obtiveram-se as conquistas  
e melhorias nas condições de trabalho e de vida, nas sociedades capitalistas; não como algo  
linear, mas como resultado de reivindicação, organização, embates políticos e enfrentamentos  
reais, inclusive com estratégias de paralisação e greves.  
18 O que se explica também, a meu ver, pela bárbara repressão que se seguiu aos protestos.  
19 “O espectro do comunismo já assustava a Europa por volta de 1848. E foi exorcizado nesse mesmo ano. Depois  
disso, durante muito tempo ficaria impotente como o são de fato os espectros” (Hobsbawm, 2005, p. 19).  
Alexandra Aparecida Leite Toffanetto Seabra Eiras  
A unidade e o antagonismo simultâneos colocaram alternativas que se assentavam na  
defesa, horizonte e construção da democracia, sobretudo, como argumenta Sand, na perspectiva  
e disputa pela efetivação da igualdade (Sand, 2023), que para o autor, constitui um ponto de  
convergência – que ele evidencia em sua análise, entre os diferentes movimentos e partidos de  
esquerda, desde o século XVIII20.  
É importante destacar que também foram criadas formas de organização e resistência  
combinadas com estratégias de internacionalização e de superação das perspectivas localistas e  
regionais, que se expressam, inclusive, de modo evidente, no Manifesto do Partido Comunista,  
em 1848 e nas “Internacionais Comunistas”.  
De acordo com Shlomo Sand, “o primeiro comunismo de Marx e Engels, embora  
reconheça as entidades nacionais, tem aspiração global: começará por germinar, claro, no  
interior de cada nação, mas resultará num triunfo universal” (Sand, 2023, p. 79, grifos meus).  
Sand (2023) distingue a heterogeneidade de perspectivas no âmbito da Primeira  
Internacional, o que levará a rupturas posteriores naquele movimento, sobretudo entre  
socialistas e anarquistas. Embora ele evidencie a expansão das concepções críticas ao  
capitalismo e das posições anticapitalistas, também crescem aquelas social-democratas, de  
cunho reformista (Netto, 2001).  
Sand (2023) também destaca o protagonismo de Marx e Engels na Internacional  
Comunista e a influência do marxismo nos partidos políticos presente na primeira assembleia  
da Segunda Internacional, em 1889, presidida por Engels. Ele afirma que “a maioria dos  
partidos representados já se definiam como marxistas e aparentemente tinham feito da luta de  
classes a sua orientação estratégica”. Conclui que “o velho sonho de Marx de um movimento  
operário internacional, com a revolução socialista gravada no seu estandarte, parecia estar a  
materializar-se” (Sand, 2023, p. 86)21.  
196  
É notório que junto à consolidação do capitalismo, à medida em que a produção e  
circulação de mercadorias exigia força de trabalho e expansão do consumo, e a regulação das  
trocas consolidava a objetivação do mercado com o uso do dinheiro, submetendo as demais  
formas de produção à lógica capitalista, vai se materializando naquela relação de unidade e  
20 Embora o autor analise a trajetória da esquerda no plano internacional centrando-se na análise da igualdade, ele  
também reconhece que “continua hoje inteiramente válida a brilhante análise que faz [Marx] da diferença entre  
valor de uso e valor de troca, com a hegemonia absoluta deste último, uma análise segundo a qual o capital não  
tem por vocação satisfazer as necessidades dos seres humanos, mas antes produzir cada vez mais capital. A sua  
visão da mais-valia, produzida pelos trabalhadores e extorquida pelos patrões, que é fonte da acumulação de  
capital, tornou-se dominante e foi retomada por todas as correntes do socialismo nas suas críticas à exploração”  
(Sand, 2023, p. 83).  
21  
“Ao longo desse período, o marxismo não parou de se desenvolver: por toda a Europa, havia pensadores a  
afirmarem-se abertamente marxistas” (Sand, 2023, p. 85).  
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Totalidade concreta, capitalismo e Serviço Social  
antagonismo, um novo modo de vida e de integração social tendo o trabalho assalariado um  
papel crucial. Capital e trabalho crescem e tornam-se centrais nas sociedades capitalistas, e as  
classes fundamentais são as protagonistas e disputam, em uma correlação de forças assimétrica,  
a direção da sociedade e/ou Estado e/ou a superação do capitalismo.  
No plano da Economia, Hobsbawm (2004, p. 418-419) destaca quatro alterações  
fundamentais, no período de 1870 em diante: a nova era tecnológica (baseada na eletricidade e  
no petróleo, turbinas e motor a explosão e maquinaria com uso do ferro, ligas, metais não-  
ferrosos, indústria química); economia de mercado de consumo doméstico (à exemplo dos  
EUA, com o aumento da população e da renda); deslocamento do monopólio da Inglaterra  
(competição internacional entre economias industriais rivais – inglesa, alemã, norte-americana  
pelas dificuldades de lucratividade), levando à concentração e ao controle de mercado.  
Tal rivalidade desembocou na divisão do globo, entre as potências rivais, como reserva  
para os negócios. De acordo com Hobsbawm,  
Numa escala global, esta dicotomia entre áreas desenvolvidas e  
subdesenvolvidas (teoricamente complementares), embora não nova em si  
mesma, começou a tomar uma forma reconhecidamente moderna. O  
desenvolvimento da nova forma de desenvolvimento/dependência iria  
continuar com apenas breves interrupções até a queda geral na década de 1930  
[...]. [Altera-se a configuração política, afetando o livre-comércio, a partir de  
1880. E, junto a esse processo, novas demandas impactaram os Estados  
nacionais], vindas de baixo por proteção contra os capitalistas, por segurança  
social, por medidas públicas contra o desemprego e um salário-mínimo por  
parte dos trabalhadores, tornaram-se audíveis e politicamente eficazes [...]  
Três novas tendências emergentes nas tensões confusas da depressão  
econômica [...] emergência de partidos e movimentos de classe operária,  
geralmente com uma orientação socialista (cada vez mais marxista); partidos  
demagógicos antiliberais e antissocialistas; e a terceira tendência a  
emancipação dos partidos e movimentos nacionalistas de massa de sua antiga  
identificação ideológica com o radicalismo liberal (Hobsbawm, 2004, p. 419-  
422).  
197  
As relações sociais capitalistas comportam assim, um movimento dialético, assente na  
materialidade do processo de produção e reprodução do capital, que também se manifesta no  
plano de organização das classes fundamentais, na perspectiva de defesa de seus interesses e de  
disputa sobre a riqueza socialmente produzida.  
Para a burguesia, trata-se de manter a lucratividade nos negócios e sobreviver às  
oscilações inerentes ao sistema capitalista, e nesse esforço, angariar força política em prol dos  
seus interesses particulares. Para o operariado/proletariado, trata-se de conquistar condições  
para a sua sobrevivência, e ao mesmo tempo, disputar os resultados do trabalho coletivo, pelo  
acesso à riqueza socialmente produzida.  
Alexandra Aparecida Leite Toffanetto Seabra Eiras  
Ao mesmo tempo, a obra de Marx e Engels, na análise rigorosa do movimento do  
capital, indicou os limites inerentes ao capitalismo, e apontou a necessidade de sua superação.  
Essa análise possibilitou entender o capitalismo em suas contradições e alimentou o horizonte  
de lutas em prol de outro projeto societário, opondo-se diretamente ao reformismo e à social-  
democracia, e de modo contundente, ao liberalismo.  
A totalidade concreta assente na consolidação do capitalismo, complexifica-se pela  
unidade e antagonismo entre as classes, e a luta de classes, embora mais evidente nos países e  
“territórios nacionais”, se estende, através de estratégias que também expressam um movimento  
global, de internacionalização, o que irá se intensificar, durante o século XX, não obstante os  
“nacionalismos” que caracterizam as duas guerras mundiais.  
A revolução russa (1917) e a construção do socialismo soviético relacionam-se a esse  
acúmulo de forças no âmbito das lutas do operariado, e de sua organização no plano político-  
sindical-partidário nacional e internacional, e impactou de modo significativo na correlação de  
forças que enfrentou o projeto capitalista, sobretudo no período posterior à segunda Guerra  
Mundial, no século XX.  
Por sua vez, o Estado de Bem-estar social, associado às lutas reformistas, às estratégias  
de reivindicação e lutas social-democratas, teve a sua expansão nesse período (1945 em diante)  
e evidenciou-se nas conquistas obtidas pela classe trabalhadora nos países centrais, justamente  
em uma conjuntura na qual a correlação de forças entre as classes fundamentais esteve posta  
no plano global/mundial, a partir do enfrentamento entre os projetos socialista e capitalista.  
A disputa entre a União das Repúblicas Socialistas Soviéticas (URSS) e o bloco  
capitalista liderado pelos Estados Unidos da América (EUA) constituiu uma correlação de  
forças no plano político-militar, em uma conjuntura que foi favorável também para o projeto  
social-democrata, para a difusão do Estado de Bem-estar social, de suas premissas e horizontes  
democráticos.  
198  
Neste sentido, a estratégia desenvolvimentista para a América Latina, desde o período  
posterior à segunda Guerra Mundial, foi uma resposta econômica-político-ideológica ao projeto  
socialista, no intuito de promover os interesses, estilo de vida e horizontes próprios ao  
capitalismo.  
Contudo, pela configuração da totalidade concreta  
e
seus complexos  
institucionalizados, fica patente a hegemonia das relações sociais capitalistas, objetivamente,  
na relação de subordinação das transações no mercado mundial, à lógica e à finalidade de  
acumulação crescente de capital. Conforme Mészáros (2002), o socialismo soviético não foi  
além do capital, o que, a meu ver, coaduna com a percepção do autor, segundo a qual, não é  
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Totalidade concreta, capitalismo e Serviço Social  
possível construir o socialismo isoladamente, nem mesmo como projeto articulado a diferentes  
países e regiões. A superação das relações sociais capitalistas exigiria, então, entendimentos,  
estratégias e ações articuladas globalmente?  
A análise aqui desenvolvida evidenciou que o capitalismo é uma relação social em um  
plano global, levando-me a supor que, para superá-lo é necessária uma alteração nessa  
magnitude que incorpore a riqueza socialmente produzida e o grau de desenvolvimento das  
forças produtivas articuladas mundialmente, ou senão, essas conquistas humano-genéricas  
estarão sujeitas ao retrocesso, à fragmentação e isolamento entre os países e regiões,  
retrocedendo-se historicamente.  
Para os países periféricos, essa situação os colocaria em uma posição ainda mais difícil.  
Dado o processo histórico, contínuo, de exploração/apropriação de suas riquezas pelos países  
centrais e o aumento populacional para atender às necessidades de mão-de-obra, um grande  
contingente de pessoas estaria exposto ao caos de uma provável derrocada econômico-  
financeira, sujeitas a relações de poder violentas e/ou anômicas, ou à “barbárie”.  
Se esta análise estiver correta, a alternativa histórica a ser construída está na articulação  
internacional, global, alterando a correlação de forças hegemônicas e vertendo os resultados  
dessas conquistas para os países periféricos, para a classe trabalhadora e subalternizada desses  
países e dos países centrais, em busca de equalizar as condições de vida, acesso à alimentação,  
saúde, moradia, locomoção e tempo livre (liberado pelos avanços na produção) em um plano  
internacional.  
199  
Em síntese, a argumentação anterior permite indicar a particularidade das relações  
sociais capitalistas no sentido de criar, historicamente, uma interação global, interdependente,  
constituindo instâncias e organizações em uma totalidade concreta. Ou seja, a particularidade  
histórica das relações sociais capitalistas se expressa em um plano universal, concreto,  
envolvendo a totalidade do planeta.  
Isso ocorreu progressivamente e expressa uma tendência que continua se desdobrando,  
historicamente e que se objetiva, através da:  
1. Estruturação do mercado internacional, mundializado  
2. Divisão internacional do trabalho, cooperação e interdependência na  
produção/reprodução social  
3. Controle político-militar estratégico em um plano global, sob o domínio das  
nações “mais desenvolvidas”  
4. Instituições Políticas e pactuações internacionais que regulam as relações entre  
países e territórios  
5. Contradições entre as classes, em um plano global  
6. Disputas e correlação de forças intraclasses, em um plano global  
Alexandra Aparecida Leite Toffanetto Seabra Eiras  
7. Subordinação dos Estados nacionais aos processos econômicos e político-  
estratégicos orientados pelo interesse global de manutenção das relações sociais  
capitalistas  
Por sua vez, o Serviço Social vincula-se às demandas históricas de manutenção e  
reprodução da força de trabalho, em um período de consolidação das relações sociais  
capitalistas, desde o final do século XIX, e, constitui-se enquanto profissão na divisão social e  
técnica do trabalho a partir da estruturação de serviços e políticas sociais direcionadas aos  
trabalhadores, à massa da população, com perfis diferenciados de acesso ao trabalho, ou dele  
alijada, ou já sem condições de exercê-lo (Iamamoto e Carvalho, 2005; Netto, 2001; Faleiros,  
1982).  
A profissão se institucionalizou e expandiu durante o século XX, e, naquele contexto,  
no período de 1960 a 1980, colocaram-se as possibilidades para a emergência de perspectivas  
críticas ao SST, simultaneamente, em diferentes países. No próximo item, indicarei algumas  
das razões que explicam essa emergência em todos os países analisados na referida pesquisa  
sobre o MRLA.  
Totalidade concreta e a emergência simultânea de perspectivas críticas no Serviço  
Social (1960-1980)  
200  
Adotei a perspectiva teórico-metodológica histórico-crítica no intuito de apreender as  
conexões entre os processos, no plano da totalidade concreta das relações sociais capitalistas,  
uma vez que a proposta do estágio pós-doutoral foi de apreender os fundamentos históricos que  
tornaram possível a emergência de perspectivas críticas ao SST, nos sete países analisados, na  
América Latina, nos EUA e na Europa, no lapso temporal de 1960 a 1980.  
Analisei 32 materiais, entre artigos, capítulos de livros e livros publicados22 (Tabela 01),  
em relação à investigação realizada no período de 2017-2021. Utilizei um roteiro contendo os  
itens: título, autores, país analisado, ano de publicação e veículo de divulgação; e em termos de  
conteúdo, observei as referências à perspectiva de totalidade e os autores mencionados; a  
análise sobre o Serviço Social na relação com o país e o MRLA, e a caracterização ou descrição  
da perspectiva crítica feita pelos autores.  
22  
Capítulos dos livros: Perpspectivas histórico-críticas no Serviço Social – América Latina, Europa e EUA; A  
história pelo avesso; La reconceptualización del Trabajo social em Colombia: analisis histórico-crítico de las  
décadas 1960-1970 e El movimiento de la reconceptualización del Trabajo Social en Colombia.  
Libertas, Juiz de Fora, v. 24, n. 1, p. 187-211, jan./jun. 2024. ISSN 1980-8518  
Totalidade concreta, capitalismo e Serviço Social  
Tabela 01: Textos analisados por país.  
País  
Argenꢀna  
Chile  
Material analisado  
06  
07  
05  
06  
03  
01  
01  
02  
01  
32  
Colômbia  
Portugal  
Espanha  
EUA  
RU  
EUA e RU  
MRLA e SSR  
Total  
Fonte: artigos e capítulos de livros publicados/pesquisa em rede sobre o MRLA, tabela organizada pela autora,  
agosto de 2023.  
Inicialmente, ative-me à “dimensão de totalidade” e ao modo como ela foi referenciada  
no material analisado, identificando as mediações postas em evidência pelos autores no texto  
ou pela bibliografia utilizada por eles, para explicar a relação do Serviço Social com a totalidade  
das relações sociais capitalistas.  
201  
Neste sentido, a produção da pesquisa sobre o MRLA já continha apropriações do  
Serviço Social na particularidade histórica das relações sociais capitalistas, na perspectiva de  
análise dos processos em sua totalidade. As mediações históricas também foram explicitadas  
pelos(as) investigadores(as), expostas na relação com a profissão em cada país.  
Assim, no relatório de pós-doutorado (Eiras, 2023)23, evidenciei as mediações históricas  
e os conteúdos transversais, considerando o movimento peculiar das relações sociais  
capitalistas que envolve o conjunto dos países e regiões, em uma história que se tornou universal  
(Marx e Engels, 2001).  
Deste modo, no período posterior ao término da Segunda Guerra Mundial, criaram-se  
estratégias político-econômicas expressas na institucionalização de organizações (ONU, OEA,  
UNESCO, FMI, Banco Mundial etc.), que atuaram em um plano global, ensejando uma  
articulação econômico-social e político-ideológica, alinhada aos interesses do capitalismo, sob  
a liderança dos EUA. Tais organizações foram muito eficientes na divulgação de referências  
23 O conteúdo que exponho neste item é parte das considerações finais do relatório de pós-doutorado, inédito.  
Alexandra Aparecida Leite Toffanetto Seabra Eiras  
democráticas, como a concepção de bem-estar social, e combinaram-se com a estratégia  
desenvolvimentista.  
O Serviço Social já estava consolidado em alguns países, como nos EUA e no Reino  
Unido, e, intensificou sua organização no plano internacional, criando espaços coletivos de  
articulação, no plano mundial24. Além disso, participou junto aos organismos internacionais  
(ONU, OEA, UNESCO) da divulgação das concepções de bem-estar e paz social, associados à  
noção de bem-comum.  
Nos países periféricos, a profissão foi demandada a se inserir nos processos de  
organização e desenvolvimento de comunidade (Argentina, Chile, Colômbia, Espanha e  
Portugal), em um período de alterações na organização do trabalho no campo e nas cidades, e  
de grande movimentação de pessoas para os centros urbanos face à industrialização.  
No âmbito da totalidade concreta, já nos anos 1960 havia indícios dos limites das  
relações sociais capitalistas, em termos de cumprir as promessas de levar o desenvolvimento,  
progresso/modernização e o bem-estar a “todos os países e regiões”, conforme as referências  
e experiências feitas nos países centrais. Assim também, na produção material, no que se refere  
à finalidade contínua de valorização do capital, atinge-se alguns dos limites, já analisados por  
Marx (2020, 2018) como tendências do processo de produção/reprodução capitalista, que se  
materializam nesta fase do capitalismo tardio (Mandel, 1982). Em relação à essa crise de  
valorização, os(as) pesquisadores(as) referenciam-na apropriando-se da argumentação de  
Mandel, O capitalismo tardio, e sua explicação das ondas longas de crescimento, das crises  
cíclicas e do esgotamento/limite do processo de valorização, colocando-se a condição de crise  
estrutural25, desde o final da década de 1960.  
202  
Nesta direção, apesar de os países centrais terem usufruído de melhores condições de  
vida – pleno emprego, salários maiores, acesso ao consumo (status de classe média), acesso à  
habitação, educação, saúde, previdência e assistência social, tendo um conjunto de proteções  
sociais com capacidade para efetivação e universalização nalguns países da Europa –, a  
totalidade desse processo não se sustentaria indefinidamente e colocaria novas inflexões já nos  
24 A UCISS foi criada em 1922, em Bruxelas, na Bélgica, enquanto “entidade confessional” já reunia “escolas  
católicas de Serviço Social, associações católicas de assistentes sociais e membros individuais [...] com “status  
consultivo junto ao Conselho Econômico e Social da ONU, UNESCO, FAO e OEA” (VIEIRA, 1980, p. 51). A  
Primeira Conferência Internacional de Serviço Social (C.I.S.S), ocorreu em Paris, 1928 e possibilitou a criação da  
Associação Internacional de Escolas de Trabalho Social (AIETS ou IASW) e da Federação Internacional de  
Trabalhadores Sociais (FITS ou IFSW), organizações autônomas em relação às igrejas cristãs.  
25 Cessa a alternância entre ondas de crescimento, seguidas de crise, conforme análise de Mandel (1982). As crises  
tornam-se constantes, estruturais. Nesse sentido, pode-se observar que o desenvolvimento (econômico-social),  
associado ao modo de produção capitalista, como progresso e modernização cede lugar a um processo complexo  
de estagnação e destruição de recursos humanos e ambientais. Torna-se evidente o caráter autofágico e destrutivo  
em nível global que subordina pessoas e natureza à finalidade de valorização e acumulação.  
Libertas, Juiz de Fora, v. 24, n. 1, p. 187-211, jan./jun. 2024. ISSN 1980-8518  
Totalidade concreta, capitalismo e Serviço Social  
anos 1970, em uma conjuntura desfavorável para o enfrentamento ao capitalismo, com o  
progressivo descrédito do socialismo enquanto projeto societário e a dissolução da URSS,  
durante os anos 1980.  
É importante destacar que houve até o início dos anos 1970, uma preocupação  
estratégica em manter a hegemonia político-econômica do capitalismo, na disputa com o  
socialismo. Nessa tensão, a contradição e a correlação de forças entre capital e trabalho (no  
plano da totalidade concreta das relações sociais capitalistas, em nível global) tendeu a um  
certo equilíbrio, condição que possibilitou/engendrou a alternativa social-democrata, expressa  
no Estado de Bem-Estar Social. Parecia possível articular capitalismo e democracia e, seria  
preciso apenas alcançar o nível de industrialização e desenvolvimento, existente nos países  
centrais.  
Essa concepção, presente na estratégia desenvolvimentista promoveu,  
contraditoriamente, a divulgação de referências ideológicas como igualdade, liberdade e  
autonomia individual, associadas à concepção de bem-estar social. E, penso que o  
tensionamento entre projetos societários distintos (capitalismo X socialismo) foi fundamental  
para o favorecimento de pautas coletivas, disputadas na luta de classes, em cada país. Sob tais  
condições, parecia possível alcançar uma civilidade, para o conjunto das nações, estendendo  
os benefícios do progresso e da industrialização aos países periféricos.  
203  
Todavia, no cerne da “unidade/antagonismo” entre capital e trabalho, as lutas e  
movimentos sociais dos anos 1960 e 1970 também estavam em sintonia com o acúmulo  
político-organizativo da classe trabalhadora (no âmbito político-partidário-sindical), suas  
aspirações sociais – cidadania e democracia, inclusive no âmbito da disputa pelas condições de  
trabalho e salário, e emergência de valores ético-morais contestatórios à moral burguesa  
hegemônica (contestação da família patriarcal, reivindicação de igualdade entre gênero, etnia,  
respeito às diferenças étnicas, etárias, de gênero e sexualidade).  
Na América Latina o acúmulo político-organizativo da classe trabalhadora no século  
XX, desde à industrialização (ainda que movida pelo processo de substituição de importações  
do período das guerras mundiais e ao impulso desenvolvimentista liderado pelos EUA, no pós-  
segunda Guerra Mundial) resultou em lutas efetivas. Os embates para o desenvolvimento de  
sociedades com cidadania e democracia não cessaram, desde então. Enfrentaram, inclusive os  
golpes e as ditaduras forjadas para reprimir as pautas progressistas e/ou a expansão do  
socialismo.  
Ou seja, além da disputa político-militar por territórios (da Guerra Fria, entre EUA e  
URSS) intensificou-se a disputa no plano ideológico engendrando-se alternativas políticas que  
Alexandra Aparecida Leite Toffanetto Seabra Eiras  
impulsionaram as concepções de “bem-estar social”, de “paz social” e integração harmoniosa  
dos indivíduos à sociedade.  
A “integração entre os povos” torna-se um horizonte, em um plano internacional,  
partilhando de referências democráticas, progressistas; a ONU, a OEA são construções próprias  
desse processo, e constituem-se porta-vozes dessa ideologia. Por elas, diz-se que o  
desenvolvimento precisa alcançar a todos e isso deveria repercutir em melhoria das condições  
de vida e acesso a condições de sobrevivência para todos os povos.  
Nesse processo histórico, desenvolvem-se políticas de bem-estar social, em ressonância  
com as necessidades de manutenção, formação e qualificação da força de trabalho, próprias da  
fase monopolista neste período do capitalismo tardio (nos termos de Mandel, 1982), mas  
também nutridas por referências ideológicas democráticas vindas dos países centrais enquanto  
alternativas tensionadas pela conjuntura de disputa entre socialismo e capitalismo. Dentre elas,  
as políticas de seguridade social e de assistência social são reconhecidas e torna-se possível a  
institucionalidade e legitimidade do Serviço Social, enquanto profissão, vinculada ao interesse  
e/ou âmbito público, à defesa do “bem-comum” / “bem-estar” e da integração à ordem social  
hegemônica.  
Tais condições históricas explicam a expansão da profissão no período posterior à  
segunda Guerra Mundial, e a partir de suas contradições, a emergência de perspectivas  
críticas no Serviço Social pode ser compreendida na dinâmica desta totalidade concreta,  
enquanto expressão da falência do modelo de “bem-estar” e de seus horizontes democráticos.  
204  
Serviço Social e perspectivas críticas  
A partir das informações e análises realizadas com base na pesquisa sobre o MRLA e  
suas interlocuções internacionais, tornou-se evidente que as bases históricas que explicam as  
formulações do SST estiveram relacionadas à expansão das políticas e dos serviços sociais via  
Estado Social ou Estado de Bem-estar social.  
É nessa esfera que se processou a relação da profissão com a perspectiva de integração  
do indivíduo à sociedade pela via do trabalho, da qualificação, da manutenção da força de  
trabalho (previdência e assistência social) ou acesso à sobrevivência e o flagrante alinhamento  
dessas concepções com as perspectivas teórico-metodológicas do positivismo-funcionalismo.  
Nessas bases, o Serviço Social tornou-se uma profissão autônoma em relação às suas  
protoformas, anteriormente vinculadas às instituições religiosas e às suas ações  
caritativas/filantrópicas.  
Libertas, Juiz de Fora, v. 24, n. 1, p. 187-211, jan./jun. 2024. ISSN 1980-8518  
Totalidade concreta, capitalismo e Serviço Social  
Nos países europeus o Estado de Bem-Estar Social foi a esfera pela qual a profissão  
cresceu, ocupando os espaços sócio-ocupacionais abertos, nessa nova formatação da divisão  
social e técnica do trabalho, no âmbito da prestação de serviços sociais.  
Nas perspectivas críticas26 os(as) assistentes sociais evidenciam os problemas efetivos  
em promover a integração e a adaptação do indivíduo à sociedade, em uma conjuntura de  
alterações nos processos de trabalho, mercado de trabalho e nas políticas sociais, que vão se  
adensando desde a metade dos anos 1960 27.  
Aesse respeito, nos países aqui analisados (EUAe RU) os métodos clássicos do Serviço  
Social estadunidense, alinhados com o referencial teórico-positivo-funcionalista, tornam-se  
incompatíveis com essa nova condição histórica.  
No RU abrem-se alternativas para a intervenção profissional com coletivos e os  
problemas atingem uma magnitude diferente, com lutas, manifestações e disputas de recursos,  
que tensionam as respostas institucionais do Estado e os posicionamentos das diferentes  
profissões28.  
Nos EUA, as concepções críticas também são elaboradas e difundidas, denunciando os  
limites da política social estadunidense e o comprometimento dos assistentes sociais com as  
agências de prestação de serviços, em detrimento dos interesses dos(as) “clientes” (Eiras et al,  
2017; 2021).  
205  
Na América Latina o Estado Social se organizou de modo mais restrito, através da  
mediação e “comprometimento” com uma legislação social que regulava as relações entre  
capital e trabalho, e por institucionalizar mecanismos de proteção social, ainda muito seletivos  
e focalizados. Na Argentina, Chile e Colômbia as vertentes críticas explicitam o lugar de  
subordinação e dependência da América Latina, em relação aos países centrais, opondo-se aos  
EUA e ao “imperialismo”.  
26 Em cada país houve peculiaridades e distinções em relação às perspectivas críticas ao SST que não constituíram  
objeto de análise neste artigo, mas podem ser apreendidas na produção da pesquisa, sobretudo nos livros  
organizados por Iamamoto e Santos (2021); Eiras, Moljo e Duriguetto (2022). Isso transparece inclusive nas  
denominações do Serviço Social Crítico ou Serviço Social Radical, nos EUA e no RU e nas propostas de  
reconceituação do Serviço Social na América Latina. Reitero que destaquei a emergência dessa crítica, como algo  
comum e transversal aos países analisados.  
27 O investimento das empresas multinacionais na produção industrial em países periféricos, atraentes pela matéria  
prima e abundância de força de trabalho de baixo custo, incentivadas pela política de favorecimento da estratégia  
desenvolvimentista, bem como o salto tecnológico-industrial do Japão na microeletrônica terão impacto  
significativo sobre os países centrais, tanto na competição entre as empresas monopolistas, como na redução de  
ofertas de postos de trabalho, na indústria, para os trabalhadores dos países centrais.  
28 A análise da revista Case Com evidencia as concepções críticas do Serviço Social Radical, no decorrer dos anos  
1970 (Bognono, 2020).  
Alexandra Aparecida Leite Toffanetto Seabra Eiras  
Já em Portugal e Espanha, também situados na periferia do desenvolvimento capitalista,  
há particularidades que evidenciam a funcionalidade da profissão aos regimes autoritários de  
Salazar e Franco, e o engajamento de assistentes sociais nas lutas pela democratização dos  
respectivos países (Silveira; Silva, Martins, Carrara, Perelló, 2021).  
Ali, diferente do Serviço Social latino-americano, a formação dos profissionais ainda  
não havia reivindicado uma condição de autonomia em relação a produção de conhecimentos e  
pelo reconhecimento de seu espaço acadêmico e profissional. Essa condição aliada à  
aproximação linguística (português e espanhol) explicam a interlocução dos profissionais  
portugueses e espanhóis com a produção do MRLA, e, através dela, a assimilação do conteúdo  
crítico ao SST, sobretudo nas décadas de 1960 e 1970.  
Desse modo, recusa-se, de modo semelhante, na periferia do capitalismo, a influência  
teórica do Serviço Social estadunidense, mantendo-se a ênfase na busca de conhecimentos  
próprios do Serviço Social, sua especificidade, teoria, metodologia, agora alinhados com a  
realidade nacional, periférica, e com as suas perspectivas de reforma ou transformação. Ou  
seja, as vertentes críticas na América Latina (Argentina, Chile e Colômbia) e Europa ibérica  
também se dividem entre o horizonte social-democrata (na luta por reformas e implementação  
do Estado de Bem-Estar Social) e o horizonte socialista29.  
Nesses países, não foi possível realizar a integração via mercado de trabalho ou via  
políticas sociais, pois em ambos os casos, as condições de empregabilidade e de proteção social  
eram muito diferentes dos países centrais.  
206  
Já o assistencialismo criticado pelo MRLA referencia-se mais ao caráter filantrópico da  
assistência social (extremamente focalizado) diante das necessidades sociais existentes, bem  
como face à perspectiva de efetivação real de direitos sociais na América Latina.  
Enquanto nos EUA e no RU há pressões para a manutenção das políticas de emprego e  
expansão da cidadania, incluindo a diversidade de trabalhadores, de gênero e étnico-racial, na  
América Latina há enfrentamentos e pressões para o reconhecimento dos direitos sociais, da  
cidadania e da democracia, diante de conjunturas e governos que “convergem” para o  
autoritarismo, através de golpes e instauração de ditaduras violentas, repressoras dos  
movimentos progressistas e/ou socialistas (como na Argentina e no Chile).  
As relações sociais capitalistas se mostraram limitadas para o desenvolvimento global  
da democracia – igualdade, liberdade, autonomia individual. A estratégia desenvolvimentista  
29 Por sua vez, as lutas pelo projeto socialista na América Latina (sobretudo no Chile, com Allende) e em Portugal  
(Revolução dos Cravos) evidenciaram as limitações do socialismo implementado/reivindicado isoladamente.  
Libertas, Juiz de Fora, v. 24, n. 1, p. 187-211, jan./jun. 2024. ISSN 1980-8518  
Totalidade concreta, capitalismo e Serviço Social  
mostrou-se irrealizável. E, diante do arrefecimento do antagonismo entre capital e trabalho no  
plano global, ocorreu o avanço das forças reacionárias, impactando no declínio das forças  
progressistas e das referências democráticas do Estado de bem-estar social.  
Termina-se o período analisado, com a vitória da estratégia neoliberal, que nega a social-  
democracia e ataca o socialismo, disputando e minando as condições concretas para o exercício  
democrático; desfazendo as concepções de igualdade, liberdade e autonomia individual,  
enquanto horizontes político-ideológicos vinculados ao capitalismo.  
Considerações finais  
Uma das intenções da pesquisa de pós-doutorado, exposta neste artigo, foi compreender  
os fundamentos históricos presentes na emergência da perspectiva crítica ao SST na Argentina,  
Chile, Colômbia, Espanha, EUA, Portugal, Reino Unido, através das informações e da  
produção elaborada na pesquisa em rede sobre o Movimento de Reconceituação do Serviço  
Social na América Latina e suas interlocuções internacionais.  
Partiu-se da hipótese que a emergência da perspectiva crítica/contestatória ao SST  
nesses países, no período de 1960-1980, teve como fundamento histórico a inserção da  
profissão na totalidade concreta das relações sociais capitalistas.  
Foi necessário explicitar a compreensão desta totalidade concreta para entender o  
processo nesta dimensão transversal aos países analisados, por isso, recorremos à Marx e  
Engels, e aos historiadores no campo do marxismo, para formular, ainda que de modo inicial,  
essa explicação sobre o processo histórico global que se instaura com o desenvolvimento das  
relações sociais capitalistas perpassado pela contradição (unidade e antagonismo) entre capital  
e trabalho.  
207  
Neste sentido, esta compreensão da totalidade concreta visa explicar o vínculo da  
profissão com a globalidade das relações sociais capitalistas. Na segunda metade do século XX,  
a dinâmica desta totalidade envolveu as estratégias institucionais de difusão das concepções de  
bem-estar, bem-comum e paz social, sobretudo através da ONU, UNESCO, OEAe a vinculação  
das organizações do Serviço Social a esse processo, as quais também se configuraram em um  
plano internacional. Não obstante as distinções entre os países, em sua inserção central ou  
periférica, os debates presentes no Serviço Social estiveram fixados em torno de dois projetos  
centrais: a defesa do projeto desenvolvimentista articulado às concepções de bem-estar social,  
e a contestação ou a crítica mais radical dos limites deste projeto dada a dinâmica das relações  
sociais capitalistas.  
Alexandra Aparecida Leite Toffanetto Seabra Eiras  
Aanálise apresentada neste artigo contribui para a apreensão dos fundamentos históricos  
da profissão nesta totalidade concreta. Evidenciou-se, assim, o caráter global das necessidades  
humanas e sociais da classe trabalhadora e das requisições postas historicamente para a  
profissão durante o século XX que se concretizam em uma totalidade, permeando o conjunto  
dos países conectados a essa dinâmica. A semelhança na institucionalização da profissão e na  
estruturação das respostas profissionais, bem como na contestação e na emergência de  
perspectivas críticas ao SST, deve-se ao compartilhamento histórico de uma realidade comum,  
na qual o intercâmbio e a difusão ideológica das concepções de bem-estar social, paz social e  
bem-comum e a organização do Serviço Social no plano internacional também evidenciam a  
interação e comunicação entre esses processos.  
Anovidade deste artigo está na análise global desses processos e na explicitação de suas  
características comuns, postas em evidência. Penso ter contribuído para a análise das  
perspectivas críticas no Serviço Social, em estreito diálogo com as formulações de Iamamoto e  
Carvalho (2005), Iamamoto (2007), Netto (2001) e Yazbek (2018), sobretudo na assimilação  
do escopo teórico-metodológico adotado por esses(as) destacados(as) pesquisadores(as).  
Por sua vez, analisei a produção sobre os países de língua hispânica, na América Latina.  
Não fiz a análise da relação entre Serviço Social brasileiro e o MRLA30. Ao que parece, pela  
investigação realizada até o momento, a institucionalidade do Serviço Social brasileiro, sua  
organização político-profissional e alianças explícitas com os interesses da classe trabalhadora,  
bem como sua inserção e produção acadêmica em estreito diálogo com a teoria social marxista,  
é uma situação singular, no plano internacional, que não ocorreu em nenhum outro país. É uma  
peculiaridade de nosso país, que no decorrer dos anos 1980 construiu uma posição ético-política  
hegemônica, de cunho emancipatório e anticapitalista 31.  
208  
A análise dessa particularidade histórica do Brasil seguirá sendo tratada pelos(as)  
pesquisadores(as) brasileiros(as), na fase atual da pesquisa em rede. E, certamente, teremos  
mais elementos para refletir a esse respeito, dentro dos próximos anos.  
Concluo este artigo, ratificando a compreensão de que as relações sociais capitalistas  
não permitiram avanços em prol de interesses coletivos e comuns ao gênero humano. A partir  
dos anos 1970 os limites no processo de valorização do capital (conforme a apreensão da teoria  
30  
Neste pós-doutorado analisei a relação entre o Serviço Social no Brasil e em Portugal, conforme capítulo de  
livro elaborado em coautoria com Carla F. Carrilho, intitulado, Perspectivas histórico-críticas: interações entre  
Brasil e Portugal (1974-1995) (no prelo, Editora UFJF-Selo PPG-SS).  
31 Essa posição consolida-se no início da década de 1990, confirmando sua legitimidade enquanto direção social,  
junto à categoria profissional. Ganha institucionalidade, colocando-se como referência para a formação e para a  
produção no âmbito profissional.  
Libertas, Juiz de Fora, v. 24, n. 1, p. 187-211, jan./jun. 2024. ISSN 1980-8518  
Totalidade concreta, capitalismo e Serviço Social  
do valor trabalho em Marx, 2020, 2018) são enfrentados pelo capital, extrapolando a esfera  
produtiva/industrial, subordinando outras esferas da vida social e do trabalho ao processo de  
valorização, tornando necessária uma nova lógica e hegemonia, no âmbito da financeirização,  
a qual cria outra institucionalidade na relação de dominação entre os países centrais e  
periféricos. Os organismos internacionais, ONU, UNESCO, OEA, perdem o protagonismo, e o  
FMI e o Banco Mundial passam a atuar de modo incisivo e recorrente para a difusão da  
estratégia neoliberal.  
Ao que parece, a difusão desses horizontes para todos os povos foi a alternativa  
construída como resultado da contradição posta na unidade/antagonismo entre capital e  
trabalho, em um plano global, em uma correlação de forças que disputava um projeto alternativo  
ao capitalismo. Sem essa correlação de forças e essa disputa, a democracia assentada na  
concepção de bem-estar social, no âmbito das relações sociais capitalistas, encontra-se  
ameaçada.  
Ao reconhecer o avanço material e tecnológico, constante no desenvolvimento das  
forças produtivas sob o capitalismo, constituinte de uma história universal, nos termos de Marx  
e Engels (2001), expressos na configuração de uma totalidade concreta, não coaduno com as  
violações e destruições efetuadas sob sua hegemonia. Não posso deixar de mencionar a  
violência e a destruição processada, sobretudo nos países do continente americano e africano  
(mas não só), com a aniquilação e submissão dos povos indígenas, a inescrupulosa escravização  
dos povos africanos e todo o aparato de controle e subordinação do trabalho humano ao  
interesse precípuo do mercado e depois, da reprodução/acumulação do capital, com as terríveis  
violações da vida humana dos trabalhadores e das trabalhadoras nos países centrais e  
periféricos, em relação à economia capitalista.  
209  
Considero tal realização histórica como resultado complexo, que ao promover a  
subsunção do trabalho ao capital (Marx, 2020), construiu, contraditoriamente, a possibilidade  
material de liberação do gênero humano em relação ao trabalho, de diminuição do tempo  
dedicado à sobrevivência, criando-se alternativas de autonomia individual e coletiva (Lukács,  
2012; Mandel, 1982).  
Até os anos 1960, a disputa entre os dois projetos societários no plano global  
possibilitava que alianças fossem formadas em um desses campos. Mas, a bipolarização esteve  
subordinada às relações sociais capitalistas, ou seja, no plano da totalidade concreta, não houve  
superação do capital.  
Desde os anos 1980 lidamos com a predominância das relações sociais capitalistas, em  
um plano de interdependência (que inclui centro e periferia) no qual o “progresso” não é mais  
Alexandra Aparecida Leite Toffanetto Seabra Eiras  
um horizonte para todos. Embora a dinâmica das relações sociais capitalistas no plano da  
totalidade se expresse na exploração do trabalho, de recursos ambientais de amplos territórios,  
de tantos povos e culturas, subsumidos à lógica de mercado e à valorização/acúmulo contínuo  
de capital, ainda assim, esse complexo assimetricamente interdependente constitui um  
patrimônio do gênero humano. Trata-se, então, de reconhecer e reivindicar o patrimônio  
histórico-material construído com o trabalho, a morte, o suor e as lágrimas de milhões de  
pessoas?  
Finalizo agradecendo às e aos integrantes da pesquisa em rede: esta análise tornou-se  
possível em virtude da produção deste coletivo de pesquisadores(as), da América Latina e da  
Europa, que se dedicaram a compreender o MRLA na Argentina, Brasil, Chile e Colômbia e  
suas interlocuções internacionais, com Portugal, Espanha, Reino Unido e Estados Unidos.  
Referências bibliográficas  
BOGNONO, A. D. F. O projeto ético-político profissional brasileiro e as possibilidades de  
interlocução internacional: aproximações ao Serviço Social Radical do Reino Unido. Tese  
de Doutorado, UFRJ, 2020.  
CALABREZ, F. Introdução à economia política. O percurso histórico de uma ciência social.  
E-book. Editora Intersaberes, 2020. Acesso pela biblioteca virtual da UFJF, fevereiro de  
2023.  
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211  
A tradição marxista na formação em Serviço  
Social na Universidade Federal do Piauí1  
Marxist teory in social work education at the  
Federal University of Piauí  
Sofia Laurentino Barbosa Pereira*  
Resumo: Analisa-se a influência da tradição  
marxista na formação profissional no curso de  
graduação em Serviço Social da Universidade  
Federal do Piauí, nas quatro propostas  
curriculares implantadas na trajetória do curso,  
de 1976 a 2012. Trata-se de um estudo de  
caráter bibliográfico e documental, pautado no  
método dialético crítico, que analisa currículos,  
programas de disciplinas, relatórios, trabalhos  
de conclusão de curso, dissertações, teses etc. O  
estudo contribui com a literatura sobre os  
Abstract: The influence of the marxist teory on  
professional education in the undergraduate  
course in social work at the Federal University  
of Piauí is analyzed in the four curricular  
proposals implemented during the course's  
trajectory, from 1976 to 2012. This is a  
bibliographic and documentary study, based on  
the critical dialectical method, which analyzes  
curriculum, subject programs, reports,  
monographs, dissertations, theses etc. The study  
contributes to the literature on the foundations  
of social work and its interlocution with Marx's  
social teory, revealing the theoretical-  
methodological trends, directions and projects  
of profession and society built in the education  
in the historical course of the UFPI course.  
fundamentos do Serviço Social  
e
sua  
interlocução com o pensamento social de Marx,  
revelando as tendências teórico-metodológicas,  
as direções e os projetos de profissão e de  
sociedade construídos nos processos formativos  
no percurso histórico do curso da UFPI.  
Palavras-chaves: Serviço Social; Formação  
profissional; Tradição Marxista; Universidade  
Federal do Piauí.  
Keywords  
Social  
Work;  
Professional  
education; Marxist theory; Federal university of  
Piauí.  
1 O artigo apresenta resultados parciais da pesquisa realizada no estágio pós-doutoral no Programa de Estudos Pós-  
Graduados em Serviço Social da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP), que se insere como  
subprojeto da pesquisa “Memória e História do Serviço Social no Piauí”, financiado pelo Conselho Nacional de  
Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq), o qual se articula ao Programa de Extensão “Memória do  
Serviço Social no Piauí”, cadastrado na Pró-Reitoria de Extensão e Cultura da UFPI.  
*
Doutora em Políticas Públicas (UFPI). Professora do Departamento de Serviço Social e do Programa de Pós-  
Graduação em Políticas Públicas da Universidade Federal do Piauí. Bolsista de Produtividade em Pesquisa do  
Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq). ORCID: https://orcid.org/0000-0003-  
DOI: 10.34019/1980-8518.2024.v24.43626  
Esta obra está licenciada sob os termos  
Recebido em: 23/02/2024  
Aprovado em: 10/06/2024  
A tradição marxista na formação em Serviço Social na Universidade Federal do Piauí  
Introdução  
O Serviço Social, no decorrer de sua trajetória, orientou-se por diferentes fundamentos  
teórico-metodológicos, na busca de explicar e intervir sobre a realidade, que expressam as  
direções adotadas pela profissão. Assim, o positivismo, o funcionalismo, a fenomenologia, o  
estruturalismo, a teoria marxiana e marxista, as tendências pós-modernas, dentre outras  
vertentes do conhecimento social das quais o Serviço Social dialoga ao longo de sua história,  
manifestam distintos projetos de profissão, de formação e de sociedade.  
A interlocução do Serviço Social com a tradição marxista ocorre a partir de meados de  
1960 na América Latina e, no Brasil, ganha força principalmente a partir de 1980, o que  
configura uma nova matriz teórica à profissão, tendo importantes contribuições para a categoria,  
no campo do ensino, da pesquisa, do exercício profissional, da organização política, da pós-  
graduação, da autoimagem da profissão, dentre outros. No âmbito da formação, foi com o  
espraiamento da perspectiva de intenção de ruptura que o currículo mínimo das escolas de  
Serviço Social no país, de 1982, passa a ser guiado pelos fundamentos teórico-metodológicos  
pautados no pensamento social de Marx.  
Esse processo resultou na construção do Projeto Ético-Político do Serviço Social  
brasileiro, que conquista hegemonia nos anos 1990 e consolida os rumos e direções imprimidos  
à profissão na década anterior. Haurido na tradição marxista, o novo projeto profissional se  
materializa no Código de Ética de 1993, na Lei de Regulamentação da profissão e nas Diretrizes  
Curriculares da Associação Brasileira de Ensino e Pesquisa em Serviço Social (Abepss) de  
1996, posicionando-se em defesa da liberdade, da emancipação humana, da justiça social, da  
equidade, da democracia, dos direitos humanos e dos interesses da classe trabalhadora,  
“vinculado ao processo de construção de uma nova ordem societária, sem dominação,  
exploração de classe, etnia e gênero” (Brasil, 2012, p. 24).  
213  
Desde então, tem se ampliado a literatura sobre os fundamentos históricos, teóricos e  
metodológicos do Serviço Social no Brasil, sobretudo a partir das contribuições do pensamento  
social de Marx. Todavia, são escassos os estudos voltados para a reconstrução histórica e a  
compreensão das tendências teórico-metodológicas na formação profissional nas distintas  
regiões, com destaque aqui para o Nordeste2 e, especificamente, o estado do Piauí3.  
2
Merecem destaque as pesquisas desenvolvidas na Universidade Federal de Pernambuco que vem contribuindo  
com a literatura acadêmica sobre o debate das particularidades dos fundamentos sócio-históricos do Serviço Social  
no Nordeste, cujos resultados podem ser verificados nas coletâneas: “A reconstrução histórica do Serviço Social  
no Nordeste” (Silveira Junior, 2021), “O serviço social na particularidade do Nordeste (1940-1980)” (Silveira  
Junior, 2022) e o “Serviço Social no Nordeste” (Mota; Vieira; Amaral, 2021). As publicações chamam a atenção  
sobre a necessidade de aprofundar investigações que desvelem as particularidades da profissão na região.  
3
São raros os estudos voltados para a reconstrução histórica do Serviço Social no Piauí de forma abrangente,  
Sofia Laurentino Barbosa Pereira  
De tal modo, o presente artigo pretende contribuir com o adensamento dessa discussão,  
ao analisar a influência da tradição marxista na formação acadêmico-profissional no curso de  
graduação em Serviço Social da Universidade Federal do Piauí (UFPI), nas quatro propostas  
curriculares implantadas na trajetória do curso, de 1976 a 2012.  
Trata-se de um estudo de caráter bibliográfico e documental, com abordagem  
qualitativa, que utilizou como dados de informação documentos institucionais de fonte diversa  
da UFPI, tais como: currículos, programas de disciplinas, relatórios, atas de reuniões, dentre  
outros. Foram levantados também documentos nacionais do Serviço Social e do Ministério da  
Educação, como currículos mínimos, resoluções, pareceres e legislações. Realizou-se ainda  
revisão da bibliografia histórico-profissional existente sobre o Serviço Social no Brasil e no  
Piauí, assim como das produções de Trabalhos de Conclusão de Curso de Serviço Social da  
UFPI, com ênfase nos estudos sobre o ensino e a formação profissional, além de dissertações,  
teses, relatórios de pesquisas e memoriais de docentes ativos(as) e aposentados(as) do referido  
curso.  
O estudo parte de uma concepção de história apreendida no método materialista  
dialético crítico, entendida não como mera cronologia, linear ou sucessão de acontecimentos  
passados, mas como movimento, processo dinâmico, dialético, permeado de contradições,  
produto das relações sociais, constituindo-se como “síntese de múltiplas determinações, isto é,  
unidade do diverso” (Marx, 2008, p. 258). Essa concepção, pautada no método de Marx,  
permeou todo o percurso investigativo, na busca em apreender o movimento histórico do real e  
atingir a essência dos fenômenos, suas contradições e sua transformação social e histórica.  
Espera-se contribuir com as análises acerca da reconstrução histórica do Serviço Social  
no Piauí, a partir de uma perspectiva de totalidade, que busca captar as mediações da profissão  
na sociedade, para apreender as particularidades em sua relação com o todo. Deste modo, visa  
colaborar com o acervo da profissão e com lacunas existentes, especialmente acerca do curso  
de Serviço Social da UFPI, que completará cinquenta anos de existência em 2026,  
permanecendo como o primeiro e único a ofertar esta formação em uma instituição de ensino  
superior pública em solo piauiense.  
214  
dentre os quais se evidenciam as publicações de Setubal (1987), Guimarães (1995, 2003), Ferreira, Silva e  
Guimarães (2021a; 2021b), além de (poucas) teses, dissertações e monografias de docentes e discentes do curso  
da UFPI.  
Libertas, Juiz de Fora, v. 24, n. 1, p. 212-235, jan./jun. 2024. ISSN 1980-8518  
A tradição marxista na formação em Serviço Social na Universidade Federal do Piauí  
A trajetória da formação em Serviço Social na UFPI, os fundamentos teórico-  
metodológicos e a influência do marxismo  
Os registros da chegada da primeira assistente social no Piauí datam de 1947, contratada  
pela Legião Brasileira de Assistência, pela necessidade de um profissional “técnico que  
soubesse utilizar melhor os recursos humanos e materiais disponíveis” (Setubal, 1983, p. 127).  
Desde então, por quase três décadas, os(as) assistentes sociais que atuavam em solo piauiense  
eram formados(as) em outras regiões, até 1976, quando foi criado o primeiro curso de Serviço  
Social no Estado, na Universidade Federal do Piauí (UFPI), inaugurada poucos anos antes, em  
1968, no contexto da Ditadura Militar.  
Em 1977 foi implantado o primeiro currículo pleno do curso da UFPI, atrelando-se ao  
currículo mínimo de 1970, aprovado pelo Conselho Federal de Educação (CFE), pelo Parecer  
nº 242/70, que trazia como obrigatórias as disciplinas de: sociologia, psicologia, economia,  
direito e legislação social, política social, teoria do Serviço Social, ética profissional e Serviço  
Social de caso, grupo e comunidade (Brasil, 1970). Assim, embora a categoria no país, já  
avançasse nos questionamentos e críticas ao conservadorismo, a proposta curricular vigente  
nacionalmente ainda reforçava os postulados funcionalistas, articulados a uma perspectiva  
desenvolvimentista, que atendia aos interesses do Estado autocrático burguês.  
Compreende-se o currículo mínimo de 1970 no âmbito da perspectiva modernizadora  
do Serviço Social que, segundo Netto (2015), é a primeira expressão do processo de renovação  
da profissão no Brasil tendo, de um lado, um conteúdo reformista no seio da profissão, ao visar  
a sua laicização e validação teórica, com base na matriz estrutural-funcionalista, através da qual  
a profissão adquire um cariz moderno e tecnicista. De outro lado, tem um caráter conservador,  
uma vez que mantém a atuação profissional voltada a adequação do indivíduo a sociedade, na  
lógica da harmonia social e que, portanto, é funcional ao capitalismo e ao Estado ditatorial  
vigente.  
215  
O primeiro currículo pleno do curso de Serviço Social da UFPI acompanhou a lógica da  
proposta curricular nacional – como pode ser observado, por exemplo, na fragmentação dos  
conteúdos voltados para a tríade “caso, grupo e comunidade” – mas também possuía suas  
particularidades – com destaque a grande carga horária dos conteúdos de psicologia. Isso  
demonstra que a formação tinha influência norte-americana, sendo guiada por uma concepção  
psicanalista e centrada no indivíduo, pautando-se ainda em uma visão funcionalista da  
realidade. O objetivo da formação estabelecido no referido currículo revela essa perspectiva:  
“proporcionar ao aluno conhecimento técnico-científicos e ajudá-lo a desenvolver-se, para  
Sofia Laurentino Barbosa Pereira  
iniciar sua profissão de Assistente Social, de modo a atender os reclamos de uma civilização  
em mudança e contribuir na promoção do indivíduo, grupo e comunidade” (UFPI, 1976).  
Importante ressaltar que no período de implantação do primeiro currículo de Serviço  
Social da UFPI, no cenário nacional, a categoria vivenciava seu processo de renovação e  
iniciava o diálogo com a tradição marxista, o que expressava a busca pelo rompimento com o  
conservadorismo. Acompanhando esse movimento, na esfera da formação profissional,  
ampliava-se a discussão sobre a necessidade de reformulação curricular, que culminou na  
aprovação de um novo currículo pleno pelo CFE, em 1982. Nessa direção, o projeto formativo  
da UFPI ainda não acompanhava as discussões que aconteciam na profissão no Brasil. Dessa  
forma,  
[...] a escola de Serviço Social piauiense não adotava uma postura teórica  
pautada no materialismo histórico ou dialético. E nem mesmo introduz  
algumas disciplinas em seu currículo pleno, relacionadas a esse tema. [...]  
Percebe-se que o primeiro currículo pleno, quando na época implementado, já  
se encontra defasado, desatualizado e inadequado diante da realidade e do  
próprio movimento nacional de revisão do currículo mínimo vigente (Silva,  
2003, p. 39 apud Rosa; Silva; Nascimento, 2003, p. 1).  
Conjectura-se que isso ocorreu em decorrência da conjuntura ditatorial vivenciada,  
considerando que, mesmo não estando presente no documento curricular, há registros de  
docentes e discentes do curso de Serviço Social da UFPI engajados(as) na militância política  
da época e que tinham afinidade com a corrente marxista e, por isso, sofriam repressão dentro  
da universidade, como explicita o relato a seguir, de professora do referido curso que vivenciou  
esse momento histórico ainda enquanto estudante:  
216  
[...] Era época de clandestinidade dos marxistas, e as universidades eram  
cheias de “dedos duros”, de pessoas vigiando pra entregar pra ser preso [...]  
porque pelo caminho da clandestinidade, como estudante, eu fui recrutada por  
um partido marxista [...] então os meus primeiros textos foram escondidos dos  
professores e dos colegas, eram mimeografados, escondidos e enrolados em  
sacos plásticos, distribuídos na surdina, escondidos em telhados, porque se  
fossem descobertas qualquer leitura marxista, a gente poderia ser preso, como  
terrorista (Professora 3). (Silva, 2019, p. 41).  
O relato revela como os conteúdos da formação em Serviço Social passavam pelo crivo  
do regime autocrático burguês, assim como a censura e perseguição política sofrida por  
docentes e discentes na UFPI. Identificam-se, nesse momento, as primeiras aproximações com  
as abordagens marxistas, que se dão principalmente pelo viés posto pela militância política, tal  
qual acontecia no cenário nacional, como analisa Netto (2015), o que obscureceu as fronteiras  
entre a profissão e o militantismo e gerou um primeiro contato enviesado com o marxismo, pela  
dificuldade de acesso as obras originais do autor.  
Libertas, Juiz de Fora, v. 24, n. 1, p. 212-235, jan./jun. 2024. ISSN 1980-8518  
A tradição marxista na formação em Serviço Social na Universidade Federal do Piauí  
Assim, embora predominasse uma perspectiva conservadora no primeiro currículo da  
UFPI, com seus fundamentos positivistas e funcionalistas, existiam segmentos progressistas e  
críticos no âmbito do processo formativo nesse período, que iniciavam o diálogo com o  
pensamento marxista. Isso se deu especialmente através da inserção no movimento estudantil e  
nas organizações da categoria, como a Associação Profissional de Assistentes Sociais do Piauí  
e o Sindicato de Assistentes Sociais do Estado, que se inseria em um processo mais amplo de  
mobilização e articulação da sociedade civil no Brasil e no Piauí, na luta pela redemocratização.  
Como resultado, Guimarães (1990a) ressalta que, na prática, parte do corpo docente do  
curso de Serviço Social da UFPI passou a conduzir mudanças nas suas disciplinas e trazendo  
para discutir conteúdos que perpassavam as questões vivenciadas pela profissão naquela  
conjuntura. A exemplo disso, ao analisar planos de disciplinas da época, sobretudo do início da  
década de 1980, é possível observar, ainda que de forma pontual, a adoção de conteúdos sobre  
a reconceituação da profissão, a disputa entre capital / trabalho, os movimentos populares, a  
questão social, dentre outros, assim como a presença de bibliografias de autores de tradição  
marxista, como Antonio Gramsci. Esse é um elemento importante que reitera a existência de  
disputas pela direção e pelos fundamentos teórico-metodológicos e ético-políticos da formação  
em Serviço Social na UFPI desde o seu primeiro currículo.  
Na década de 1980 ocorreu o processo de reformulação do projeto de formação de  
Serviço Social da UFPI que culminou na aprovação do segundo currículo pleno, em 1987. Este  
foi um período rico de historicidade, marcado pela reorganização da sociedade civil e por  
amplas lutas pela democratização do país e, no âmbito do Serviço Social, pela organização  
política da categoria, que avançava na construção de um projeto profissional crítico e articulado  
com as lutas da classe trabalhadora. No curso da UFPI, as transformações vivenciadas na  
realidade brasileira e piauiense atravessaram os debates acadêmicos e os muros da  
Universidade, passando a fazer parte do currículo construído:  
217  
A proposta de revisão curricular pressupõe a busca de superação de um  
modelo de formação profissional alienado das condições históricas da  
realidade brasileira, exigindo um esforço coletivo de análise estrutural e  
conjuntural dessa realidade, visando apreender sua dinâmica (UFPI, 1987, p.  
8).  
Buscou-se a construção de um projeto de formação sintonizado com as transformações  
vivenciadas na sociedade brasileira e com a categoria no país. No cenário nacional, havia sido  
aprovado um novo currículo mínimo para os cursos de Serviço Social em agosto de 1982,  
estabelecido no Parecer nº 412/1982 do CFE, fruto de um processo de revisão iniciado no final  
da década de 1970, sob coordenação da então Associação Brasileira de Escolas em Serviço  
Sofia Laurentino Barbosa Pereira  
Social (Abess), que envolveu diversos cursos de Serviço Social do país, assim como contou  
com a participação do movimento estudantil. O referido currículo buscava uma visão mais  
ampla da realidade, de forma a “capacitar o aluno para compreender e analisar de forma crítica  
a realidade histórico-estrutural e o contexto institucional, onde se processa a prática do Serviço  
Social, habilitando-o a propor e operar alternativas de ação” (Brasil, 1982).  
Com o novo currículo, o processo formativo da UFPI passava a romper com uma  
perspectiva mais tradicional e conservadora da profissão e adotava uma orientação crítica, que  
compreendia o Serviço Social inserido na realidade sócio-histórica, claramente influenciada  
pela corrente de pensamento marxista. A proposta curricular visava formar profissionais  
dotados de:  
Clara compreensão da estrutura e conjuntura sócio-econômica e política a  
nível local, regional e nacional; consistente base teórico-metodológica que  
possibilite posicionamento crítico sobre a inserção do Serviço Social nos  
processos históricos das realidades sociais concretas; comprometido com uma  
ação efetiva na realidade social concreta, considerando alternativas da prática  
interventiva do Serviço Social que se colocam tanto no campo das ações do  
Estado quanto junto aos movimentos sociais populares (UFPI, 1987).  
Assim, há avanços qualitativos em relação a proposta curricular anterior, na busca por  
formar profissionais críticos, capazes de intervir sobre demandas locais, regionais e nacionais,  
perpassando a compreensão da estrutura, a necessidade de embasamento teórico-metodológico  
e a dimensão investigativa da profissão. Fica explícito, portanto, no perfil profissional e nos  
objetivos, a direção política do projeto de formação da UFPI, articulado a um projeto de  
sociedade crítico ao capitalismo, em sintonia com o movimento realizado pelo Serviço Social  
no cenário nacional.  
218  
Sabe-se que a interlocução do Serviço Social com a tradição marxista acontece a partir  
da década de 1960, sendo apenas na década de 1980 que há referência efetiva a teoria social de  
Marx na literatura da profissão, no cenário da renovação da profissão no país, com ênfase na  
intenção de ruptura (Netto, 2015), sobretudo a partir da publicação da obra “Relações Sociais  
e Serviço Social no Brasil” (Iamamoto; Carvalho, 2007). No Piauí, essa aproximação e  
influência mais direta da teoria de Marx na formação se deu de forma tardia, sendo observada  
explicitamente a partir de 1987, com a revisão curricular. Esse é um elemento fundamental do  
novo currículo: a vertente marxista como fundamento teórico-metodológica na formação.  
Em pesquisa monográfica realizada por Silva (2019), foi questionado a docentes do  
curso da UFPI sobre como se deu o processo de transição do Serviço Social tradicional para um  
currículo mais crítico, sobretudo a partir da introdução da teoria social de Marx no processo de  
formação, sintetizados nos depoimentos a seguir:  
Libertas, Juiz de Fora, v. 24, n. 1, p. 212-235, jan./jun. 2024. ISSN 1980-8518  
A tradição marxista na formação em Serviço Social na Universidade Federal do Piauí  
Eu integrei a comissão de apoio a revisão curricular, aí nesse processo a gente  
já começou a introduzir disciplinas que tivesse a discussão desses  
fundamentos da teoria mais crítica. [...] Nós começamos a trabalhar não só os  
anteriores fundamentos, mas já introduzir sobretudo a partir de Marx, a  
influência marxista no Serviço Social [...] A gente queria formar um  
profissional investigativo, crítico, que tivesse um posicionamento político,  
mas que tivesse uma boa bagagem teórica e técnica também (Professora 2).  
(Silva, 2019, p. 39).  
O que mais se discutia naquele momento era exatamente a superação de uma  
matriz funcionalista que dominava a intervenção profissional, sobretudo, na  
perspectiva de culpabilizar os indivíduos pela sua condição de desigualdade  
social, pela sua condição de desemprego, pela sua condição de... enfim, de um  
modo geral, pela sua condição social (Professora 4). (Silva, 2019, p. 47-48).  
Dessa forma, o novo currículo implementado no curso da UFPI se assenta sob a vertente  
marxista, perpassando toda a lógica da formação, desde os objetivos do curso, o perfil  
profissional formado, a organização curricular, as disciplinas e os conteúdos ministrados. Em  
outro momento, é destacado sobre a importância das abordagens marxistas para a formação em  
Serviço Social na UFPI:  
A teoria marxista, a partir do que o Marx propôs por meio do método de  
análise da realidade, contempla a necessidade que a gente tem de compreender  
a realidade na sua totalidade, em relação aos determinantes sociais que são  
amplos. [...] A gente entendeu que o positivismo limitava muito do ponto de  
vista de você se reduzir apenas aos fatos sociais, sem fazer a articulação com  
o contexto. Através do marxismo não, você tem um olhar para esse contexto  
e perceber aquilo que está acontecendo, e quais as implicações que isso tem  
do ponto de vista da repercussão sobre a sociedade [...] na medida em que ele  
questiona a ordem social e estabelece outras perspectivas de análise dessa  
realidade social (Professora 2) (Silva, 2019, p. 42).  
219  
No currículo que eu estava, a gente teve uma formação muito centrada na  
teoria marxista, e inclusive, a gente estudava não apenas Marx como o teórico  
mais importante, o fundamentador da teoria, mas a gente estudava Gramsci.  
[...] Avaliando daqui pra lá, eu percebo que a gente tinha uma formação muito  
sólida e muito interessante dentro dessa perspectiva marxista (Professora 4).  
(Silva, 2019, p. 47).  
Com certeza, esse conjunto de conhecimentos que o aluno adquire que tem a  
ver com esse aporte da teoria social de Marx, vai servir de bases pra leitura  
crítica da realidade, então, a compreensão da mais-valia como elemento  
fundamental à exploração do trabalho excedente e trabalho não pago, quer  
dizer, a consciência desse modelo e uma série de outros conceitos que diz  
respeito a como funciona o sistema produtivo capitalista vai gerar a  
possibilidade de um profissional que compreenda como funciona o sistema  
econômico nacional (Professora 6) (Silva, 2019, p. 55).  
Assim, a formação em Serviço Social na UFPI, a partir do segundo currículo pleno,  
passa a ser direcionada pela tradição marxista, tendo ainda uma ampliação significativa de  
conteúdos de base teórica no âmbito das Ciências Sociais, sobretudo na discussão sobre o  
Sofia Laurentino Barbosa Pereira  
materialismo histórico e dialético, que estava presente nas ementas nas disciplinas de filosofia,  
teoria sociológica e teoria do Serviço Social. Além disso, as discussões sobre sociedade  
capitalista, questão social, classes sociais, movimentos populares, dentre outras categorias que  
dialogam com o pensamento social de Marx, estavam presentes em diversos momentos do  
referido currículo.  
Sob a vigência da proposta curricular, percebe-se de forma mais direta as discussões  
sobre a reconceituação e autores de importante tradição marxista presentes nos Trabalhos de  
Conclusão de Curso de Serviço Social. Esse processo estava em consonância com o vivenciado  
pela categoria no cenário nacional, em que a profissão avançava na produção acadêmica,  
sobretudo resultante das interpretações pautadas na teoria de Marx, o que contribuiu para a  
conquista da maioridade intelectual da profissão.  
A pesquisa assume, assim, um papel decisivo na conquista de um estatuto  
acadêmico que possibilita aliar formação com capacitação, condições  
indispensáveis tanto a uma intervenção profissional qualificada, quanto à  
ampliação do patrimônio intelectual e bibliográfico da profissão, que vem  
sendo produzido especialmente, mas não exclusivamente, no âmbito da pós-  
graduação stricto senso (Guerra, 2009, p. 702)  
A articulação com as Ciências Sociais e, sobretudo, com a tradição marxista foi  
fundamental para o avanço de uma cultura da pesquisa e da ciência no Serviço Social brasileiro.  
A conquista da hegemonia da teoria social de Marx na literatura especializada da profissão, em  
meados da década de 1980, repercutiu na ampliação da produção do conhecimento produzido  
pelo Serviço Social no país e na consolidação da sua maturidade intelectual, o que também pode  
ser observado no âmbito da formação na UFPI, especialmente a partir do segundo currículo.  
A proposta curricular também apresentava conteúdos voltados a discussão da matriz  
teórica funcionalista, de forma secundária, além de situar outras matrizes, mais  
superficialmente. A compreensão sobre essas vertentes teóricas que influenciaram e  
influenciam o modo de ser e de fazer do Serviço Social em sua história, sinaliza uma busca pelo  
pluralismo na formação no referido currículo, entretanto, é necessário problematizar até que  
ponto não se beira ao ecletismo.  
220  
Pluralismo, como bem analisa Coutinho (1991, p. 13), compreendido como:  
[...] a necessidade do debate de ideia. É através da troca de ideias, da discussão  
com o diferente, que podemos afinar nossas verdades, fazer com a teoria se  
aproxime o mais possível do real. Não há ciência que esgote o real, pois a  
ciência é sempre aproximativa. Então, é absolutamente necessário o debate de  
ideias, no sentido de esclarecer nossas posições em relação a aproximação a  
uma verdade cada vez mais abrangente.  
Libertas, Juiz de Fora, v. 24, n. 1, p. 212-235, jan./jun. 2024. ISSN 1980-8518  
A tradição marxista na formação em Serviço Social na Universidade Federal do Piauí  
O ecletismo, ao contrário, seria conciliar pontos de vista inconciliáveis, posições  
incompatíveis, como ocorreu em diversos momentos da trajetória do Serviço Social em que, na  
busca incessante por uma teorização ou uma metodologia de ação, a profissão abraçou modelos  
teóricos incompatíveis entre si. Essa herança permanece sob o segundo currículo do curso de  
Serviço Social da UFPI que, mesmo com esforço em se aproximar da matriz marxista, ainda se  
organizava sob estruturas funcionalistas.  
Essa perspectiva é assinalada por Frazão (1993), a partir de pesquisa monográfica  
realizada com estudantes que cursavam o referido currículo:  
O currículo prioriza duas matrizes teóricas. Essas matrizes são trabalhadas no  
curso sendo, o funcionalismo, o momento “alienado” do serviço social; e o  
materialismo histórico e dialético, o momento de superação, de libertação. O  
materialismo histórico e dialético se coloca como a corrente teórica mais  
importante na formação profissional, é repassada como se fosse a única “luz”  
para o serviço social. O funcionalismo, apesar de garantido nas disciplinas,  
não ocupa lugar de destaque, é sempre colocado como se fosse a grande  
“vergonha” do serviço social, o responsável por prática desenvolvida sem um  
posicionamento crítico (Frazão, 1993, p. 62).  
Nessa direção, é inclusive citado alguns documentos, que a corrente de inspiração  
marxista era apresentada na formação em Serviço Social da UFPI como um “dogma”, enquanto  
o conteúdo sobre o funcionalismo não era devidamente apreendido em sua essência, gerando  
compreensão meramente polarizada e imediatista sobre as duas perspectivas teórico-  
metodológicas (UFPI, 1990a). Isso sinaliza uma concepção frágil e dicotômica das teorias,  
contraditória com o método histórico dialético, o que indica uma apreensão enviesada dos  
fundamentos teórico-metodológicos no projeto formativo.  
221  
Isso resultou no que Quiroga (1991) denomina como invasão da lógica positivista no  
pensamento de Marx na formação em Serviço Social na época. Essa problemática estava  
presente em diversos cursos de Serviço Social do Brasil que implementaram o currículo mínimo  
de 1982, o que resultou em uma apropriação do marxismo mais como uma metodologia, em  
detrimento do seu patamar de teoria social.  
Importante retomar a análise de Netto (2015), ao afirmar que a primeira aproximação  
do Serviço Social brasileiro com a tradição marxista se deu forma problemática, em um  
“marxismo sem Marx”, gerando uma apropriação secundária, enviesada e eclética da teoria.  
Esse cenário fornece pistas importantes para compreender algumas das limitações encontradas  
no segundo currículo do curso de Serviço Social da UFPI, no que diz respeito a incorporação,  
com certa fragilidade teórica, da vertente marxista, como pode ser observado na passagem a  
seguir de docente do referido curso na época:  
[...] num primeiro momento, a minha aproximação e a apropriação das  
Sofia Laurentino Barbosa Pereira  
diferentes matrizes teóricas ainda estavam muito ligadas às leituras de  
segundas, terceiras ou mais interpretações do pensamento dos principais  
autores que falavam dessas teorias; outras vezes, a apropriação do Marxismo,  
por exemplo, se dava a partir de leituras de marxistas que positivavam Marx  
e seu pensamento, bem analisado na obra de Quiroga (1991). A divulgação  
dos livros de Martinelli (1989), Iamamoto e Carvalho (1986), Iamamoto  
(1992, 1998) e Netto (1991,1992) foram fundamentais para o meu “despertar”  
para uma leitura mais aprofundada e crítica dos clássicos e dos principais  
representantes das diversas correntes teóricas que influenciavam o Serviço  
Social. E essa nova postura profissional, de ler os principais clássicos dessas  
correntes teóricas ganhou força quando da realização do meu mestrado  
(Guimarães, 2017, p. 24-25).  
Além da necessidade de leitura direta da obra marxiana, outro elemento problemático  
se dava pela insuficiente capacitação do corpo docente acerca de novos conteúdos postos com  
a revisão curricular. Isto, pois, o quadro docente da UFPI, naquele momento, advinha de uma  
formação tradicional que dispunha de parca discussão teórica e ausência de conteúdos voltados  
a tradição marxista. Ademais, naquela época, eram poucos os cursos de mestrado e doutorado  
em Serviço Social existentes no país e, no geral, eram concentrados em outros Estados e regiões,  
o que dificultava a formação pós-graduada por docentes da UFPI, de modo que no período da  
implantação do segundo currículo apenas dois professores(as) do quadro eram mestres e o  
restante apresentava somente o título da graduação.  
Essa dinâmica era observada em todo o país, em que “via de regra, os professores de  
Serviço Social, frente as exigências atuais do projeto de formação profissional, deparam-se com  
a séria dificuldade: ter que ensinar teoria sem a necessária formação teórica” (Carvalho, 1986,  
p. 29). Isto, pois, como defendia Netto (1991, p. 94), “o ensino dos conteúdos pertinentes à  
tradição marxista depende, em primeiríssimo lugar, da qualificação dos quadros docentes. Isto  
implica uma preparação de base geralmente longa e um sistemático e contínuo trabalho  
intelectual”, e isso ainda aparecia como um desafio a ser enfrentado pelo corpo docente de  
Serviço Social da UFPI. Enfrentava-se o difícil desafio de “aprender a desaprender”, como dizia  
o poeta Fernando Pessoa (1965).  
222  
Essa questão reverberou em outras fragilidades no segundo currículo da UFPI, como a  
fragmentação entre os conteúdos de “teoria, método e história” do Serviço Social, que foram  
criados na busca pela superação da tríade de Serviço Social de “caso, grupo e comunidade”.  
Essa problemática já era observada no currículo mínimo de 1982, conforme analisa Netto  
(1986), que critica o “corte” realizado entre teoria e metodologia, e o divórcio destas com a  
história, que expressam uma compartimentalização na formulação do projeto curricular. Para o  
autor, a própria fragmentação desses conteúdos revela, em sua essência, uma concepção  
funcionalista da realidade:  
Libertas, Juiz de Fora, v. 24, n. 1, p. 212-235, jan./jun. 2024. ISSN 1980-8518  
A tradição marxista na formação em Serviço Social na Universidade Federal do Piauí  
Se eu me volto a pensar o Serviço Social [...] de que nós vamos ter uma teoria,  
uma história e um método – está diretamente ligado a quê? À concepção  
positivista [...] estrutural-funcionalista; de supor que eu posso cortar um  
fenômeno da realidade, abstraí-lo, estudá-lo em si e depois remetê-lo à  
totalidade social (Netto, 1986, p. 54).  
O modo como esses conteúdos eram trabalhados no projeto formativo expressava uma  
concepção positivista da realidade, incompatível com a teoria social de Marx e que, portanto,  
tende ao ecletismo (Netto, 1986). Essas e outras questões analisadas pelo autor acerca das  
“ambiguidades” do currículo de 1982, resgatam “velhos dilemas” da categoria, como o debate  
acerca da existência de uma metodologia e uma teoria própria do Serviço Social, decorrentes  
da busca por um estatuto técnico-científico para a profissão, que são herança de uma visão  
positivista.  
Desse modo, muitas das dificuldades encontradas no segundo currículo do curso de  
Serviço Social da UFPI eram reflexo da proposta curricular nacional vigente, que trazia  
determinadas imprecisões teóricas e atualizava velhos dilemas da formação profissional, sob  
novas roupagens.  
Esses elementos provocaram uma tendência teoricista na formação profissional, que  
privilegiava a discussão teórica por si mesma, de forma fragmentada da compreensão da  
realidade concreta, refletindo no perfil dos(as) profissionais que eram formados(as) naquele  
momento que, muitas vezes, tinham uma visão “heroica” do Serviço Social, como destacado  
no trecho a seguir, retirado de relatório sobre o referido currículo do curso da UFPI:  
223  
[...] No geral, os discentes: consideram a profissão como o “poder de  
transformar” a sociedade; buscam receitas que deverão ser postas em prática,  
na realidade profissional; são muito críticos, mas sem uma: “consistente” base  
teórico-metodológica; “clara compreensão” da estrutura e conjuntura. [...] Em  
síntese, o perfil do profissional que se pretende formar termina sendo aquele  
dotado, sobretudo, da capacidade crítica. E isso, crítica, pela crítica  
(Guimarães, 1990b, p. 4-5).  
Essa concepção se coaduna com a perspectiva messiânica da profissão, assim  
denominada por Iamamoto (2015, p. 22), entendida como “uma visão heroica do Serviço Social  
que reforça unilateralmente a subjetividade dos sujeitos, a sua vontade política sem confrontá-  
la com as possibilidades e limites da realidade social”. Carvalho (1986) já sinalizava essas  
tendências em várias escolas de Serviço Social no país no processo de implementação do  
currículo mínimo de 1982, que traziam um estudo mecânico de conceitos e uma visão formalista  
e a-histórica do conhecimento, sem se articular efetivamente com a realidade ou com a  
intervenção profissional.  
Sofia Laurentino Barbosa Pereira  
Esses elementos também evidenciam a necessidade de maior articulação entre as  
dimensões teórico-metodológica e interventiva na formação profissional que, segundo  
entrevista com discentes formados(as) pelo referido currículo da UFPI, era necessário para a  
formação “sair do nível teórico e investir na instrumentalização” (UFPI, 1990b, p. 10).  
Apesar disso, são incontestáveis os avanços trazidos pelo segundo currículo pleno de  
1987 para a formação em Serviço Social na UFPI, sobretudo na busca pelo rompimento com o  
conservadorismo na profissão e pela aproximação com a tradição marxista. Conforme análise  
de Guimarães (2017), o referido projeto curricular perseguiu os anseios da “intenção de  
ruptura”, expressando, portanto, o movimento vivenciado pelo Serviço Social na realidade  
brasileira, refletindo ainda a dinâmica de efervescência social e política do país naquele  
momento. Intenção de ruptura, compreendida por Netto (2015), no cerne do processo de  
renovação do Serviço Social no Brasil, como uma perspectiva que:  
[...] possui como substrato nuclear uma crítica sistemática ao desempenho  
“tradicional” e aos seus suportes teóricos, metodológicos e ideológicos. Com  
efeito, ela manifesta a pretensão de romper quer com a herança teórico-  
metodológica do pensamento conservador (a tradição positivista), quer com  
os seus paradigmas de intervenção social (o reformismo conservador). [...] Na  
sua evolução e explicitação, ela recorre progressivamente à tradição marxista  
(Netto, 2015, p. 206).  
No entanto, como visto, o segundo currículo apresentava resquícios de continuidade  
com o anterior, revelando novos desafios e limites que precisariam ser enfrentados. Foi diante  
desse cenário que foi realizada uma nova revisão curricular, no sentido de materializar os  
avanços trazidos e superar as fragilidades, visando ainda dinamizar a formação em Serviço  
Social da UFPI para responder as novas exigências e necessidades postas à profissão.  
Nessa direção, em 1994 foi aprovado o terceiro currículo pleno do curso, implementado  
em um cenário de grandes transformações sociais, políticas e econômicas no país e na profissão.  
Na conjuntura nacional, vivenciavam-se os ventos democráticos após a aprovação da nova  
Carta Magna, que consagrava uma nova relação entre Estado e sociedade civil, sendo conhecida  
como “Constituição Cidadã”. O início da década de 1990 também foi marcada por importantes  
avanços para o Serviço Social, com a aprovação do Código de Ética de 1993 e da Lei de  
Regulamentação da profissão. Ao mesmo tempo, foi nesse contexto que se desenvolveu a  
contrarreforma do Estado que, sob o discurso de crise fiscal, coloca em pauta uma agenda  
neoliberal, atendendo a orientação dos organismos econômicos internacionais, a qual impacta  
as políticas sociais, o mundo do trabalho e provoca o agravamento da questão social. Essas  
questões da realidade atravessaram os debates da categoria e permearam a reformulação  
curricular do curso de Serviço Social da UFPI.  
224  
Libertas, Juiz de Fora, v. 24, n. 1, p. 212-235, jan./jun. 2024. ISSN 1980-8518  
A tradição marxista na formação em Serviço Social na Universidade Federal do Piauí  
O referido currículo tinha como objetivo geral: “formar profissionais com competência  
teórico-metodológica e técnica para compreender e intervir na realidade social brasileira e  
piauiense, atentos para as novas questões que se apresentem frente a esta realidade” (UFPI,  
1994, p. 11).  
O novo currículo passou a incluir conteúdos sobre o marxismo, o positivismo, o  
funcionalismo, a fenomenologia, o estruturalismo e as tendências teóricas pós-modernas. Essa  
mudança visava superar as limitações da proposta anterior, que estava centrada no materialismo  
dialético de Marx e abordava o positivismo apenas de forma superficial. Assim, a formação no  
curso de Serviço Social da UFPI avançava em direção ao pluralismo, mas permanecia com a  
centralidade das discussões inspiradas na abordagem marxista.  
Além disso, há incorporação de conteúdos voltados a compreensão e aos debates que  
ganham foco nos fins da década de 1980 no cerne das Ciências Humanas e Sociais, como a  
crise da modernidade e da razão, que gera a ampliação da discussão sobre as denominadas  
teorias pós-modernas, bem como seus impactos na produção do conhecimento e no Serviço  
Social, conforme explica Simionatto (2019):  
Os embates em torno da chamada “crise dos paradigmas” ou das “grandes  
narrativas” e o proclamado fim das ideologias e das utopias colocaram em  
xeque o projeto da modernidade e os sistemas globalizantes de explicação da  
vida social. A razão dialética, até então afirmada como um conhecimento que  
é também ferramenta de luta política e social e, portanto, de transformação  
revolucionária da sociedade, é desqualificada em favor das tendências pós-  
modernas e sua contraposição ao marxismo (Simionatto, 2019, p. 94).  
225  
O terceiro currículo do curso de Serviço Social incorpora esse debate, em consonância  
com o movimento vivenciado pela categoria no cenário nacional, no qual essas questões se  
apresentavam como parte das discussões da reformulação curricular no país na década de 1990.  
Cabe evidenciar que, enquanto era aprovado em 1994 o terceiro currículo pleno de  
Serviço Social na UFPI, em 1996 ocorria a reformulação de um novo currículo mínimo para as  
escolas de Serviço Social do país e a aprovação das Diretrizes Curriculares da Abepss. Além  
disso, nesse período, também eram definidas um conjunto de medidas pelo Governo Federal  
que iriam afetar a estrutura de todos os currículos dos cursos do Brasil, com a aprovação da Lei  
de Diretrizes e Bases da Educação (LDB), o que também desencadeia um amplo processo de  
discussão sobre os rumos da formação profissional.  
Fruto de debates e construções coletivas da categoria, as Diretrizes Curriculares  
expressam um projeto de formação para o Serviço Social brasileiro que se alinha a um projeto  
societário em que a educação é concebida como direito social e dever do Estado, conformando  
o Projeto Ético-Político da profissão, ao lado do Código de Ética de 1993 e da Lei nº  
Sofia Laurentino Barbosa Pereira  
8.662/1993, direcionado por bases teórico-metodológicas críticas e perspectivas ético-políticas  
emancipatórias.  
Em 2007, o curso de graduação em Serviço Social da UFPI implementa o seu Projeto  
Pedagógico, alinhado à proposta nacional, que deu base para o quarto currículo. No ano de  
2012, o Projeto Pedagógico do Curso (PPC) sofre alguns ajustes, na reestruturação de conteúdos  
e disciplinas. O referido projeto se organiza a partir de três núcleos de fundamentação, em  
conformidade com as Diretrizes Curriculares: Núcleos de Fundamentos Teórico-Metodológicos  
da Vida Social, Núcleo de Fundamentos da Formação Sócio-Histórica da Sociedade Brasileira  
e Núcleo de Fundamentos do Trabalho Profissional. Esses núcleos congregam os conteúdos que  
precisam ser apreendidos no processo formativo, desdobrando-se em áreas de conhecimento,  
que traduzem o conjunto de componentes curriculares, de forma a romper com a visão  
formalista do currículo, antes reduzido a matérias e disciplinas, assim como ultrapassar o modo  
de apreensão fragmentada dos conteúdos e do conhecimento. Portanto, manifestam “níveis  
diferenciados de apreensão da realidade social e profissional, subsidiando a intervenção do  
Serviço Social” (Abess/Cedepss, 1996, p. 9).  
Assim, os núcleos representam um conjunto de conteúdos necessários para a formação  
profissional que se articulam como eixos estruturadores do projeto formativo, compreendidos  
como uma unidade, a partir de uma perspectiva de totalidade:  
226  
Compreender essa lógica de articulação dos núcleos de fundamentação é  
entender os fundamentos da profissão e o próprio método materialista-  
histórico e dialético que ancora essa concepção, pois parte do entendimento  
de que os conteúdos dos núcleos não estão desconectados de uma  
materialidade – o processo de produção e reprodução da vida social –, mas  
explicita as dimensões de universalidade, particularidade e singularidade na  
leitura e apreensão da realidade concreta. Essas dimensões são fundamentais  
para que, na formação, o aluno possa apreender os processos pelos quais o  
trabalho profissional se desenvolve, entendendo que essa leitura é condição  
necessária para se ultrapassar as demandas imediatas presentes no cotidiano  
profissional (Maroneze; Fortune, 2023, p. 141).  
A questão social ganha centralidade na formação profissional com as Diretrizes  
Curriculares, concebida como a base de fundação sócio-histórica da profissão. Dessa forma, a  
concepção de questão social trazida no projeto de formação da Abepss expressa o debate  
amadurecido pela categoria, sobretudo desde a década de 1980, que compreende, como sintetiza  
Netto (2001), a questão social como constitutiva da sociabilidade capitalista, expressão das  
relações de contradição e exploração entre capital e trabalho, portanto, uma compreensão à luz  
da teoria social de Marx.  
Em consonância com a proposta nacional, o Projeto Pedagógico do curso de Serviço  
Social da UFPI também dá centralidade ao tema. Na estrutura curricular, a discussão sobre a  
Libertas, Juiz de Fora, v. 24, n. 1, p. 212-235, jan./jun. 2024. ISSN 1980-8518  
A tradição marxista na formação em Serviço Social na Universidade Federal do Piauí  
questão social aparece de forma transversal, tanto como conteúdo ministrado em diversas  
disciplinas, como nos pressupostos balizadores da formação, nos objetivos do curso e nas  
competências e habilidades esperadas pelos(as) egressos(as). É introduzida uma disciplina com  
a nomenclatura “Questão Social”, com carga horária de 60 horas, com seguinte ementa:  
“Emergência, significados, desenvolvimento e configuração da questão social no Brasil,  
destacando as dimensões gerais da questão social na contemporaneidade” (UFPI, 2012, p. 59).  
Além disso, a discussão está presente tanto em ementas e bibliografias de outros componentes  
curriculares, como Fundamentos Históricos Teóricos e Metodológicos do Serviço Social,  
Oficina de Expressões e Vivências de Questão Social no Piauí, Processo de trabalho, Política  
Social e Seminário de Prática.  
Iamamoto (2015) ressalta que, com as Diretrizes Curriculares da Abepss, a formação  
passa a ter como foco, além da questão social, na discussão sobre o trabalho profissional, o que  
é um avanço importante comparado com as propostas curriculares anteriores, que traziam uma  
concepção limitada de “prática”, apreendida de forma segmentada e dicotômica da teoria. O  
debate sobre o trabalho vem adquirindo maior visibilidade na categoria desde meados de 1980,  
a partir do diálogo com a teoria social de Marx, que passa a compreender a profissão como  
especialização do trabalho coletivo, inscrita na divisão social e técnica do trabalho e inserida  
na relação contraditória das classes sociais.  
227  
Assim, Iamamoto (2015, p. 95) defende que “transitar do foco da prática ao trabalho  
não é uma mudança de nomenclatura, mas de concepção”, que tem como subsídio o pensamento  
de Marx. Implica apreender o trabalho como categoria central na produção e reprodução na  
vida social, chave para compreensão das relações econômicas e sociais, que atravessam o  
exercício profissional do(a) assistente social. Assim, é inegável que essa concepção é inspirada  
na tradição marxista.  
De tal modo, no cerne das mudanças postas pelas Diretrizes Curriculares da Abepss,  
está a centralidade do debate sobre o trabalho profissional, o que é verificado no PPC da UFPI,  
como destaca o trecho a seguir:  
A nova lógica curricular tem o trabalho como central na constituição do ser  
social. Neste horizonte é colocado para o processo de formação profissional o  
entendimento do processo de trabalho do assistente social no cerne do debate  
teórico-metodológico que possibilite uma apreensão crítica do ideário  
profissional (UFPI, 2012, p. 20).  
A importância da compreensão do Serviço Social enquanto trabalho e a centralidade  
dessa categoria na formação profissional é trazida no depoimento de uma docente do curso de  
Serviço Social da UFPI:  
Sofia Laurentino Barbosa Pereira  
[...] A categoria trabalho leva a gente pensar o próprio exercício profissional,  
como o trabalho, o que nos associa a categoria, a classe trabalhadora. Então,  
esse é um elemento fundamental para o nosso Projeto Ético-Político, que é a  
defesa dos interesses dessa classe trabalhadora, da qual nós nos incluímos. [...]  
A alienação é um elemento central também porque a gente compreende que o  
processo de alienação mesmo associado aos processos de trabalho. Ele  
também permite que a gente compreenda que nós estamos inseridos em  
processos que podem levar à alienação, se a gente não ultrapassar o  
imediatismo, o tarefismo, esse praticismo sem teoria. [...] Eu compreendo que  
essas categorias elas não são conceitos, são categorias que expressam a  
realidade como ela é, e compreender é fundamental (Professora 5). (Silva,  
2019, p. 51).  
O trecho anterior assinala para uma concepção de trabalho pautada na teoria crítica de  
Marx, que concebe o(a) assistente social enquanto trabalhador assalariado e, portanto, inserido  
nas contradições inerentes a classe trabalhadora. Esse é um marco fundamental que separa  
substantivamente o Projeto Pedagógico atual dos currículos anteriores do curso de Serviço  
Social da UFPI que, até então, tinham uma compreensão limitada do exercício profissional  
enquanto “prática” ou “intervenção”.  
Assim, essa concepção do Serviço Social enquanto trabalho, que fundamenta o projeto  
de formação profissional, possibilitou ainda um avanço no debate sobre as dimensões técnico-  
operativas, articuladas a teórico-metodológico e ético-política, inexistente nos currículos  
anteriores. No caso do terceiro currículo pleno há um avanço, entretanto, permanece o foco nos  
fundamentos teóricos do Serviço Social, que trabalhavam de forma fragmentada tanto a história  
da profissão quanto a dimensão interventiva.  
228  
As Diretrizes Curriculares colocam como princípios que fundamentam a formação  
profissional:  
Rigoroso trato teórico, histórico e metodológico da realidade social e do  
Serviço Social, que possibilite a compreensão dos problemas e desafios com  
os quais o profissional se defronta no universo da produção; e reprodução da  
vida social.  
Adoção de uma teoria social crítica que possibilite a apreensão da totalidade  
social em suas dimensões de universalidade, particularidade e singularidade  
(Abess/Cedepss, 1996, p. 6)  
Esses princípios delineiam um perfil profissional com capacitação teórico-  
metodológica, ético-política e técnico-operativa para a apreensão crítica do processo histórico  
como totalidade (Abess/Cedepss, 1996). Dessa forma, é nítido que o projeto formativo do  
Serviço Social é calcado em uma perspectiva histórico-crítica, orientada pela tradição marxista:  
As diretrizes da ABEPSS asseguram o pluralismo teórico, mas possuem uma  
clara orientação da formação profissional fundada na teoria social crítica de  
Marx e na tradição marxista, que orienta a compreensão da sociedade  
capitalista de modo crítico, que considera as expressões da questão social  
como objeto de intervenção do serviço social e o trabalho como categoria-  
Libertas, Juiz de Fora, v. 24, n. 1, p. 212-235, jan./jun. 2024. ISSN 1980-8518  
A tradição marxista na formação em Serviço Social na Universidade Federal do Piauí  
chave para compreender a relações econômicas e sociais (Boschetti, 2004, p.  
26).  
É possível verificar conteúdos específicos voltados para a compreensão do pensamento  
social de Marx e de abordagens marxistas em diversos componentes do Projeto Pedagógico,  
que citam diretamente, em suas ementas ou bibliografias, Marx ou marxismo, tais como:  
Introdução ao Serviço Social, Fundamentos Históricos Teóricos e Metodológicos do Serviço  
Social, Economia Política, Iniciação a Política, Pesquisa Social, Processo de Trabalho e  
Seminário Temático. As obras citadas de Marx nas bibliografias são: A ideologia Alemã;  
Contribuição à crítica da Economia Política; O Capital; e Manifesto do partido comunista.  
Além dessas, existem diversas disciplinas que trabalham em seus conteúdos autores da  
tradição marxista, sobretudo na literatura do Serviço Social crítico, pós-reconceituação. Dentre  
os mais citados no PCC estão: José Paulo Netto (11), Marilda Iamamoto (9), Carmelita Yazbek  
(5), Ana Elizabete Mota (5), Ivanete Boschetti (4), Elaine Behring (3) e Vicente Faleiros (3),  
que expressam um pouco da vasta produção teórica construída pelo Serviço Social brasileiro a  
partir da interlocução com o pensamento marxista.  
Há uma diversidade de autores e interpretes da abordagem marxista. Dentre os  
pensadores reconhecidos da tradição do marxismo clássico citados no Projeto Pedagógico estão  
Gramsci, Lenin e Lukács. Alguns outros autores de abordagem marxista que se destacam são:  
Louis Althusser, Eric Hobsbawm, Ernest Mandel e Karel Kosic. Todavia, são pouco citados,  
presentes sobretudo como bibliografia no componente curricular de Seminário Temático II, que  
tem como ementa o estudo marxismo. Esse fato não implica, entretanto, que esses autores não  
sejam incorporados nos planos de outras disciplinas, a depender das escolhas dos(as) docentes  
que as ministram.  
229  
Observa-se ainda um maior espraiamento de autores de abordagem marxista no país  
permeando a bibliografia de outros componentes curriculares, como Fundamentos Históricos  
Teóricos e Metodológicos do Serviço Social (FHTM), Questão Social, Política Social,  
Sociedade Civil e Movimentos Sociais. É o caso de Carlos Nelson Coutinho, Florestan  
Fernandes, Octavio Ianni e Francisco de Oliveira.  
Assim, a teoria social de Marx orienta o PPC de Serviço Social da UFPI, que se alinha  
a perspectiva hegemônica no Projeto Ético-Político da profissão, conforme é possível observar  
em todo o documento curricular, nos pressupostos formativos, nos objetivos do curso, nas  
ementas e bibliografias das disciplinas. Todavia, isso não significa que o mesmo não seja  
pautado no pluralismo, seguindo inclusive os direcionamentos das Diretrizes Curriculares, que  
apresentam como princípio que fundamenta a formação:  
Sofia Laurentino Barbosa Pereira  
Exercício do pluralismo como elemento próprio da natureza da vida  
acadêmica e profissional, impondo-se o necessário debate sobre as várias  
tendências teóricas, em luta pela direção social da formação profissional, que  
compõem a produção das ciências humanas e sociais (Abess/Cedepss, 1996,  
p. 7).  
Essa concepção se alinha ao princípio do Código de Ética de 1993, que defende a  
“garantia do pluralismo, através do respeito às correntes profissionais democráticas existentes  
e suas expressões teóricas, e compromisso com o constante aprimoramento intelectual” (Brasil,  
2012, p. 24). Pluralismo, como analisado anteriormente, compreendido como debate de ideias  
e concepções de mundo, “um modo de convivência entre correntes de pensamento, pois  
reconhece, aceita a existência de diferentes posições, opiniões e pensamento” (Yazbek, 2019,  
p. 51). Essa perspectiva também permeia o PPC da UFPI, que apresenta como princípio que  
fundamenta a formação: “pluralismo teórico como eixo na construção da direção social da  
formação profissional” (UFPI, 2012, p. 18).  
Nessa direção, as disciplinas de Seminário Temático discutem as distintas correntes  
teóricas que dialogam com o Serviço Social, como positivismo / funcionalismo, marxismo,  
fenomenologia, estruturalismo, dentre outras. Além dessas, os componentes curriculares de  
FHTM também têm em seu conteúdo a compreensão das distintas matrizes do pensamento  
social que orientam a profissão em sua trajetória, assim como os rebatimentos das teorias pós-  
modernas no Serviço Social na contemporaneidade. Na disciplina de Ética profissional, o  
pluralismo é apresentado como princípio do Código de Ética de 1993, o que exige a apreensão  
das diferentes orientações ético-políticas da profissão em sua trajetória e seus fundamentos  
teórico-metodológicos. Tem-se ainda o componente de Pesquisa Social que discute as matrizes  
teóricas e os métodos na pesquisa social, com foco no método em Marx.  
230  
Assim, os(as) discentes formados(as) no curso de Serviço Social da UFPI têm, ao longo  
do seu processo formativo, a possibilidade de conhecer e dialogar sobre as distintas matrizes  
teóricas das Ciências Sociais e compreender sobre sua influência na profissão e na realidade,  
tendo os fundamentos orientadores pela tradição marxista como hegemônico.  
Outro aspecto importante trazido pelas Diretrizes Curriculares é a centralidade da  
pesquisa na formação em Serviço Social, ao considerar as “dimensões investigativa e  
interventiva como princípios formativos e condição central da formação profissional, e da  
relação teoria e realidade”, assim como a “indissociabilidade nas dimensões de ensino, pesquisa  
e extensão” (Abess/Cedepss, 1996, p. 6). De tal modo, é ultrapassada a concepção da pesquisa  
apenas como disciplina, constituindo-se como um dos princípios e condição da formação  
profissional, possibilitando uma postura investigativa que deve ser transversal a todo o processo  
Libertas, Juiz de Fora, v. 24, n. 1, p. 212-235, jan./jun. 2024. ISSN 1980-8518  
A tradição marxista na formação em Serviço Social na Universidade Federal do Piauí  
formativo, de forma a garantir que “[...] o perfil do/da profissional contivesse a determinação  
dialética da busca da superação da aparência pela mediação da investigação em direção ao  
concreto pensado” (Pontes, 2023, p. 96).  
O Projeto Pedagógico de Serviço Social da UFPI está em consonância com essa  
perspectiva, ao estabelecer não apenas disciplinas de pesquisa social, monografia, oficinas,  
como também prevê a utilização de instrumentos avaliativos do processo de ensino-  
aprendizagem que estimulem a realização de pesquisas, trabalhos científicos etc. A dimensão  
investigativa também é fomentada na vivência do estágio supervisionado, na busca por articular  
pesquisa e trabalho profissional. Além disso, está previsto no projeto a inserção de estudantes  
em grupos e núcleos de pesquisa, em programas de iniciação científica, em eventos científicos,  
a produção de artigos para apresentação em congressos, dentre outros, que são contabilizados  
como carga horária para as atividades complementares. Cabe evidenciar que todo esse processo  
foi dinamizado pela qualificação do corpo docente que, na implementação do PPC, passou a  
ser formado integralmente por mestres(as) e doutores(as).  
As temáticas latentes no projeto de formação vão ganhando espaço nas pesquisas  
dos(as) discentes e docentes do curso, tais como: políticas sociais, seguridade social, proteção  
social, direitos sociais, cidadania, transformações no mundo do trabalho, expressões da questão  
social, processos de trabalhos do(a) assistente social, movimentos sociais, dentre outros. No  
geral, observa-se um alinhamento dos estudos com a tradição marxista, a partir da análise pelo  
método dialético crítico ou pelas bibliografias utilizadas, mas também há pesquisas que  
dialogam com outras tendências teóricas, embora sejam em número reduzido.  
231  
Considerações finais  
O artigo pretendeu contribuir com a literatura acerca do Serviço Social no Piauí, a partir  
de um olhar investigativo para os seus fundamentos, subsidiado por uma análise na dialética  
crítica. Compreender as particularidades e os significados sócio-históricos da profissão e da  
formação nos distintos estados e regiões é fundamental para retroalimentar os estudos de  
reconstrução histórica do Serviço Social no Brasil e para enfrentar os desafios postos na  
contemporaneidade, na medida em que “a história é a fonte de nossos problemas e a chave de  
suas soluções” (Iamamoto, 2015, p. 203).  
A análise da trajetória da formação no curso de Serviço Social da Universidade Federal  
do Piauí ao longo de quase cinco décadas revela, mais do que os registros curriculares, marcas  
temporais, que articulam interesses individuais e coletivos, visões de mundo, tendências  
Sofia Laurentino Barbosa Pereira  
teórico-metodológicas, projetos de profissão e de sociedade distintos, que só podem ser  
compreendidos a partir de sua inserção na realidade sócio-histórica do Brasil e do Piauí.  
Em seu surgimento, em 1976, permeava no curso de Serviço Social da UFPI um  
currículo guiado por uma perspectiva conservadora de profissão e de sociedade, permeado por  
fundamentos funcionalistas, que atendia a lógica da proposta curricular nacional vigente em  
1970 e aos interesses do Estado ditatorial. Apenas a partir de 1987 é possível verificar a  
influência da tradição marxista no projeto de formação, com a reformulação curricular na UFPI,  
alinhado ao currículo mínimo de 1982, que acompanhava os importantes acontecimentos  
históricos, sociais, políticos e econômicos vivenciados pelo Serviço Social e pela sociedade no  
país e no Estado na época. Assim, o segundo currículo pleno apresenta avanços fundamentais  
em relação ao anterior, com uma visão ampla e crítica sobre a profissão e a realidade, mas ainda  
trazia fragilidades teórico-metodológicas, que evidenciavam, dentre outros elementos, a  
necessidade de uma melhor compreensão acerca da teoria social de Marx, as quais o terceiro  
currículo, aprovado em 1994, buscou superar. Em 2007, com a aprovação do Projeto  
Pedagógico à luz das Diretrizes Curriculares da Abepss, o curso de Serviço Social da UFPI  
consolida uma direção social crítica na formação, tendo o pensamento marxista como  
fundamento teórico-metodológico hegemônico, mas dialogando com outras matrizes do  
conhecimento, em uma perspectiva pluralista.  
232  
O aprofundamento de estudos acerca dos fundamentos do Serviço Social e das  
contribuições da tradição marxista para a profissão é fundamental, sobretudo na realidade atual,  
em que o avanço do ultraneoliberalismo e neoconservadorismo tem colocado profundos  
desafios para a defesa do Projeto Ético-Político da profissão, que se coloca radicalmente oposto  
a essas perspectivas, vinculado a construção de uma nova ordem societária sem dominação,  
opressão e exploração. No que tange a política de educação, o crescimento da privatização, do  
ensino à distância, da precarização da formação e o sucateamento das universidades públicas  
reforçam a importância do fortalecimento de um projeto formativo pautado em princípios ético-  
políticos emancipatórios e fundamentos teórico-metodológicos críticos, tal qual apregoa as  
Diretrizes Curriculares da Abepss.  
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235  
Relação Serviço Social e movimentos sociais a  
partir dos fundamentos do Serviço Social  
Relationship between Social Work and social movements from the  
foundations of Social Work  
Kathleen Pimentel dos Santos*  
Resumo: O presente artigo busca discutir o  
processo de aproximação da relação entre  
Serviço Social e Movimentos Sociais a partir  
dos seus fundamentos, a fim de compreender  
como esta temática vem sendo incorporada nas  
pesquisas e produções dos/as assistentes sociais.  
Trata-se de uma pesquisa exploratória, de  
abordagem qualitativa, cujas fontes são de  
natureza bibliográfica. Em seus resultados  
preliminares, evidencia-se que, quantitativa e  
qualitativamente, ainda que os processos  
Abstract: This article seeks to discuss the  
process of approximation of the relationship  
between Social Work and Social Movements  
from its foundations, in order to understand how  
this theme has been incorporated into the  
research and production of social Workers. This  
is an exploratory research, with a qualitative  
approach, whose sources are of a bibliographic  
nature. In its preliminary results it is evidenced  
that, quantitatively and qualitatively, although  
the approximative processes of this relationship  
are hegemonically imprinted in its professional  
project, the theme of Social Movements  
presents a reduction among the number of  
researches and productions in the area of Social  
Work.  
aproximativos  
dessa  
relação  
estejam  
hegemonicamente impressos no seu projeto  
profissional, a temática dos Movimentos  
Sociais apresenta redução entre o número de  
pesquisas e produções da área do Serviço  
Social.  
Palavras-chave: Serviço Social; Movimentos  
sociais; Fundamentos; Formação profissional;  
Prática profissional.  
Keywords: Social services; Social movements;  
Fundamentals; Vocational training; Professional  
practice.  
Introdução  
O Serviço Social brasileiro tem marcado uma trajetória de ruptura com o  
conservadorismo1, empreendendo esforço teórico e político para ultrapassagem do viés  
*
Mestranda em Serviço Social pela Universidade Federal de Sergipe. Bolsista CAPES. Integrante do Grupo de  
Estudos e Pesquisas em Fundamentos, Formação e Políticas Sociais (GEPSSO). Membro do Núcleo de Estudos e  
Pesquisas em Marxismo e Serviço Social (NEPMASS). Orcid: https://orcid.org/0000-0002-6539-6056  
1 O Projeto Profissional do Serviço Social institui-se hegemonicamente, não de forma homogênea. Isso significa  
que o conservadorismo declina, mas não desaparece completamente, não sendo um impeditivo para estar presentes  
nas disputas de diferentes projetos societários e profissionais. Nos lembra autores como Braz e Teixeira (2009) e  
Yazbek (2009) que o pluralismo teórico presente na categoria permite que diferentes matrizes de pensamentos se  
apresentem e disputem a hegemonia entre si, dentre ele a defesa de correntes teóricas conservadoras.  
DOI: 10.34019/1980-8518.2024.v24.41838  
Esta obra está licenciada sob os termos  
Recebido em: 13/08/2023  
Aprovado em: 23/02/2024  
Relação Serviço Social e movimentos sociais a partir dos fundamentos do Serviço Social  
empirista e pragmático presente na tendência conservadora. O marco desse processo se deu com  
o Movimento de Reconceituação latino-americano, sob movimentações de superação do  
Serviço Social Tradicional em meados da década de 1960, alcançando o Brasil como  
Movimento de Renovação Profissional na segunda metade dos anos 1970.  
Adissolução dos fundamentos tradicionais do Serviço Social acompanhou as tendências  
presentes na dinâmica capitalista em ordem monopólica. O tensionamento entre as  
mobilizações populares e o projeto reformista autocrático-burguês fomentou o repensar, em  
nível teórico, prático e político, de autocrítica da profissão, imprimindo uma tendência mais  
crítica à sua direção profissional. As alterações político-ideológicas foram possibilitadas pela  
emersão das organizações de classe dos trabalhadores e a interlocução com a tradição marxista  
(Moro; Marques, 2011).  
Nesse ínterim, com a construção do Projeto Profissional de Ruptura, norteado pela teoria  
social marxista, e em intenso debate com entidades próprias da profissão, reelaboraram-se a Lei  
de Regulamentação da Profissão e o Código de Ética Profissional com o objetivo de “[...] atuar  
com mais efetividade na defesa dos direitos humanos e no compromisso com os movimentos  
sociais, em consonância com os interesses da classe trabalhadora e suas organizações sociais”  
(Souza; Castro, 2013, p.2).  
Forma-se o pressuposto de que o processo de aproximações entre o Serviço Social e os  
Movimentos Sociais permite que essa temática permeie tanto as produções dessa categoria  
profissional, quanto seja eixo da formação e prática/exercício profissional. Diante disso, este  
trabalho objetiva identificar o panorama atual da incorporação da temática dos Movimentos  
Sociais como objeto de investigação dos/as assistentes sociais, a partir de pesquisas e da  
literatura existente.  
237  
Para alcançar esse objetivo, o artigo estrutura-se em duas seções. Primeiro, expõe como  
ocorre a construção da relação entre Serviço Social e Movimentos Sociais segundo os  
fundamentos da profissão. Na segunda seção, apresenta o panorama atual da incorporação dos  
Movimentos Sociais como eixo da formação, da prática e das produções teóricas da categoria  
profissional.  
As análises e os resultados aqui apresentados foram desenvolvidos através de pesquisa  
bibliográfica, buscando compreender os elementos teóricos que circunscrevem os fundamentos  
do Serviço Social e sua relação com os movimentos sociais, bem como a incorporação do debate  
sobre movimentos sociais na produção de conhecimento da profissão. Trata-se de uma pesquisa  
de natureza qualitativa e exploratória, à luz do materialismo histórico-dialético.  
Kathleen Pimentel dos Santos  
Fundamentos do Serviço Social brasileiro e sua relação de aproximação com os  
movimentos sociais  
O Serviço Social surge no Brasil na década de 1930, confluindo respostas aos  
desdobramentos do capitalismo, diante do contexto econômico e social que onerava fortemente  
os/as trabalhadores/as, aprofundando o tensionamento entre a classe trabalhadora e o Estado,  
enquanto representante dos interesses da classe dominante. Nesse momento, o Serviço Social  
emerge como ação movida pelo Estado e vários setores particulares da burguesia, com forte  
referência nas doutrinas sociais da Igreja Católica sob influência europeia (especialmente no  
ideário franco-belga) e no pensamento tomista e neotomista (Yazbek, 2009) e ao viés reformista  
do pensamento conservador.  
Isso denota que os primeiros objetivos político-sociais do Serviço Social brasileiro se  
orientaram por posicionamentos de cunho humanista conservador, distantes dos ideários liberal  
e marxista, igualmente apartados dos interesses das classes populares. O viés reformista de  
tendência empiricista e pragmatista do pensamento conservador prevaleceu na profissão até o  
final da década de 1950 sob os princípios teóricos e políticos do Serviço Social Tradicional2.  
Mudanças no contexto econômico e político dão a tônica da “erosão”, termo utilizado  
por Netto (1996), do tradicionalismo. Com a crescente industrialização e urbanização  
desencadeadas na realidade brasileira na década de 1950, cumprindo o projeto  
desenvolvimentista, e a chegada do regime autocrático burguês na década de 1960, têm-se a  
exponenciação das refrações da questão social, sendo tratadas pelo Estado ditatorial através de  
políticas sociais crescentemente centralizadas e focalizadas, fazendo surgir novas instituições  
públicas de planejamento e execução dessas políticas.  
238  
De acordo com Netto (1981, p. 74), dada a complexificação da contextualidade  
sociopolítica, há requisição de um novo padrão de desempenho profissional, posto que “os  
padrões de intervenção do Serviço Social tradicional são incompatíveis com o mínimo de  
eficácia que a modernização social implementada [...] desde 1964 pela ditadura brasileira  
exige”.  
Embutido às alterações conjunturais, a superação do tradicionalismo reúne um esforço  
teórico e político a partir “da recusa de uma ação mais burocratizante e na busca por reformas  
sociais [...]” em que a categoria profissional busca “um método de trabalho social de perspectiva  
mais crítico, atuante e propositivo, diante das particularidades da realidade social” (Pereira;  
2
Para Netto (1996, p. 60), o Serviço Social Tradicional é compreendido como a “prática profissional empirista,  
reiterativa, paliativa e burocratizada. Esse, fundamenta-se em uma ética liberal burguesa e sua teleologia consiste  
na correção funcionalista de resultantes psicossociais considerados negativos ou indesejáveis, sempre pressupostos  
a ordenação capitalista da vida como um dado factual ineliminável”.  
Libertas, Juiz de Fora, v. 24, n. 1, p. 236-250, jan./jun. 2024. ISSN 1980-8518  
Relação Serviço Social e movimentos sociais a partir dos fundamentos do Serviço Social  
Oliveira, 2019, p. 144). Assim, em um movimento contraditório, ocorre o processo de  
ultrapassagem do Serviço Social Tradicional com a emergência do Movimento de  
Reconceituação de caráter latino-americano, denominado no Brasil de Movimento de  
Renovação. Kamitani (2007) ressalta que a Reconceituação acompanhou uma conjuntura de  
fortalecimento da organização dos trabalhadores e o crescimento da luta de classes, como  
corolário do declínio da onda longa expansiva do capital no final dos anos 1960, que ocasionou  
uma crise de impactos grandiosos na década seguinte, exponenciando as contradições  
capitalistas.  
A busca teórica do Serviço Social levou a categoria profissional, dos anos 1960 aos anos  
1980, à seminários e congressos que construíram os diálogos e debates que marcam o  
Movimento de Renovação, constituído, segundo Netto (1996), em três principais tendências. A  
primeira, a modernização conservadora, que ao mesmo tempo que moderniza, mantém um  
aspecto conservador, aparece como direção ao Serviço Social na metade dos anos 1960, sendo  
uma perspectiva que oferece um aparato técnico aos valores tradicionais da profissão. Segundo  
Yazbek (2009, p. 8), “incorpora abordagens funcionalistas, estruturalistas e positivistas voltadas  
a mediação do desenvolvimento social e do enfrentamento da marginalidade e da pobreza na  
perspectiva de integração da sociedade”. Com relação a reatualização do conservadorismo,  
surgiu em meados dos anos 1970 e recebe inspiração da fenomenologia, centrando nas práticas  
individuais e, segundo Yazbek (2009), priorizando as concepções de pessoa, diálogo e  
transformação dos sujeitos.  
239  
A última tendência, hoje compreendida como hegemônica no interior da profissão,  
iniciada em meados dos anos 1970 e início dos anos 1980, difere das outras tendências por ser  
a única perspectiva com proposta de completa superação ao conservadorismo, e denomina-se  
Intenção de Ruptura. Apresenta bases teórico-metodológicas e prático-profissionais com  
ruptura ao tradicionalismo profissional (Netto, 1996) demarcando, no plano ídeo-político, o  
rompimento com o histórico conservadorismo do Serviço Social.  
É na crise e declínio do regime da autocracia burguesa, com a abertura política e o  
retorno à cena política de diversos sujeitos políticos coletivos “[...] como sindicatos, partidos e  
movimentos sociais, com vistas aos processos de mobilização, organização e reinvindicação  
dos direitos e políticas sociais” (Paulista, 2009, p. 72), que essa perspectiva ultrapassa as  
discussões universitárias e alcança diversos segmentos profissionais.  
Segundo Yazbek (2009), essa tendência remete a profissão à consciência de sua inserção  
na sociedade de classes, configurando uma aproximação com o marxismo, trazendo para o  
Serviço Social latino-americano a teoria social de Marx como matriz teórica. Apesar de  
Kathleen Pimentel dos Santos  
inicialmente essa aproximação ocorrer empobrecida e marcada por um forte pragmatismo  
através de manuais populares e partidários e não nas fontes originais (Silva, 2007), nos anos  
1980 verifica-se a interlocução com as fontes marxianas, imprimindo uma direção ao  
pensamento e à ação social do Serviço Social brasileiro, conferindo-lhe uma maturidade  
intelectual à profissão.  
Nesse movimento, a maturação acadêmica e profissional adquirida no processo de  
renovação permitiu ao Serviço Social a possibilidade de posicionamento e defesa junto aos  
sujeitos coletivos que se manifestam no cenário social brasileiro (Moro; Marques, 2011).  
Afirmam Moro e Marques (2011, p. 26) ao falar de Santos (1985) que  
[...] a descoberta do assistente social enquanto parte da classe trabalhadora o  
leva a alternativas políticas e profissionais junto aos movimentos sociais,  
intensificando as aspirações democráticas e populares, ampliando os espaços  
de participação, poder e pressão desta categoria profissional.  
Yazbek (2009) chama atenção que a incorporação e a construção da hegemonia de novos  
referenciais teórico-metodológicos e interventivos da profissão se desenvolveu sob um amplo  
debate pela categoria profissional, marcado pelo pluralismo de diferentes tendências, mas que  
concebe a hegemonia da tradição marxista. Com a introdução do referencial marxista e o  
aprofundamento das dimensões profissionais do Serviço Social a partir de um esforço de leitura  
de realidade mais crítica e um amplo debate com a categoria profissional, que,  
progressivamente, o comprometimento político com a classe trabalhadora foi incorporado na  
atuação dos/as assistentes sociais.  
240  
Moro e Marques (2011) apontam que essa escolha ético-política foi sentida inicialmente  
por meio da articulação político-organizativa da profissão via entidades da categoria, com  
destaque para Associação Nacional dos Assistentes Sociais (1983), pela integração de um  
segmento de profissionais envolvidos com as lutas presentes na sociedade. Essa iniciativa  
reunia o empenho em fortalecer os vínculos da profissão com as lutas gerais empreendidas pela  
classe trabalhadora, além de “garantir o encaminhamento das demandas específicas da  
categoria, tais como o plano de cargos e carreiras dos servidores públicos federais (PCC) e as  
condições de trabalho, salário e carga horária dos assistentes sociais” (Moro; Marques, 2011, p.  
26).  
De acordo com Abramides e Cabral (2009, p. 97) essa vinculação – entidades e lutas  
sociais – fortalece “[...] a inter-relação do exercício profissional com os movimentos sociais de  
luta por direitos, que ganha estatura no âmbito da luta institucional, a partir da promulgação da  
Constituição em 1988”. A permanência da inserção profissional nas instâncias de luta dos/as  
trabalhadores, a manutenção da dimensão político-organizativa para a rearticulação do Serviço  
Libertas, Juiz de Fora, v. 24, n. 1, p. 236-250, jan./jun. 2024. ISSN 1980-8518  
Relação Serviço Social e movimentos sociais a partir dos fundamentos do Serviço Social  
Social com os movimentos sociais e o aprofundamento da sua concepção vem com o  
amadurecimento teórico e intelectual da profissão (Moro; Marques, 2011). Possibilitado, não  
exclusivamente, mas essencialmente pela maioridade alcançada pela teoria social marxista.  
Esse referencial teórico, posteriormente, é incorporado pela maioria da categoria, e dota  
a profissão de clareza quanto sua natureza e utilidade social (Araújo, 2008). Moro e Marques  
(2011, p. 27, grifos dos autores), esclarecem que é justamente o reconhecimento e “[...]  
organização dos assistentes sociais como trabalhadores e com trabalhadores que se pode pensar  
o estabelecimento de um vínculo orgânico do Serviço Social com os movimentos sociais”.  
Abase marxista incorporada nos referenciais profissionais como recusa e enfrentamento  
do conservadorismo profissional, que rompe com a [...] visão a-histórica e técnico burocrática  
que marcou a origem da profissão (Araújo, 2008) estão materializadas no projeto ético-político  
do Serviço Social. Elementarmente, esse projeto profissional que congrega a imagem ideal da  
profissão, os valores que a legitimam, sua função social e seus conhecimentos teóricos e  
interventivos, etc. (Netto, 2006), vincula-se “[...] a um projeto societário que propõe a  
construção de uma nova ordem social, sem exploração/dominação de classe, etnia e gênero”  
(Netto, 1999, p. 15).  
A escolha ético-política adotada e maturada no projeto de ruptura construiu uma relação  
aproximativa com os movimentos sociais no âmbito da formação profissional, na ação político-  
organizativa da categoria e na prática profissional. Duriguetto (2014), ao se aproximar da  
relação interventiva do Serviço Social com os processos de mobilização e organização popular,  
aponta as diretivas instituídas que correspondem a essa perspectiva, como a Lei de  
Regulamentação Profissional (1993) e o Código de Ética Profissional (1993), destacando que  
ultrapassam a dimensões normativas, estabelecendo-se como orientações táticos-estratégicas e  
ético-políticas. Importa destacar os trechos dos referidos documentos, apresentados pela autora,  
que explicitam a defesa da relação da ação profissional do Serviço Social com as lutas coletivas.  
A Lei de Regulamentação Profissional (1996), em seu art. 4º, parágrafo IX, determina  
como competência do/a assistente social “prestar assessoria e apoio aos movimentos sociais em  
matéria relacionada às políticas sociais, no exercício e na defesa dos direitos civis, políticos e  
sociais da coletividade”. No Código de Ética (1993), a relação com as lutas coletivas aparece  
como direito profissional, em “apoiar e/ou participar dos movimentos sociais e organizações  
populares vinculados à luta pela consolidação e ampliação pela democracia e dos direitos de  
cidadania” (art. 12º, alínea b), e “respeitar a autonomia dos movimentos populares e das  
organizações das classes trabalhadoras” (art. 13º, alínea c).  
241  
A relação de vinculação entre o Serviço Social e os movimentos sociais, de igual  
Kathleen Pimentel dos Santos  
maneira, aparece no âmbito da formação profissional incorporada e reafirmada nas Diretrizes  
Curriculares de 1996, a fim de contemplar o perfil profissional crítico por meio “da unidade  
entre teoria e prática, mediante a transversalidade das dimensões teórico-metodológica, ético-  
política e técnico-operativa, tendo como ponto de referência os pressupostos das Diretrizes  
Curriculares” (Marozene; Britto; Ferreira, 2018, p.7).  
A trajetória analisada até aqui, através da compreensão dos fundamentos do Serviço  
Social, possibilitou acompanhar a consolidação de um projeto profissional e de uma formação  
que preconiza a relação teoria-prática afinada com as lutas coletivas, subsidiando uma atuação  
profissional compromissada com as classes populares. Não diferentemente, pelo caráter  
investigativo da profissão, a relação da profissão com os processos de mobilização popular deve  
ser incorporada nas pesquisas e produções teóricas das/os assistentes sociais.  
Incorporação da temática movimentos sociais nas pesquisas e produções do Serviço  
Social: o debate enquanto profissão investigativa e interventiva  
A preocupação em acompanhar a temática da relação Movimentos Sociais e Serviço  
Social na conjuntura atual revela-se pela própria natureza investigativa da profissão, com o  
reconhecimento de que o “desenvolvimento da investigação pelo profissional, no nível da razão  
dialética, possibilita uma visão crítica e reflexiva sobre os elementos da realidade, buscando  
promover a ultrapassagem de uma concepção meramente superficial para a busca pela essência  
dos fenômenos” (Costa; Gonçalves, 2020, p. 125).  
242  
Sem a intenção de sobrepor o âmbito formativo ao exercício profissional, ou ainda  
simplificar a relação teoria-prática, mas a fim de realçar que os debates e discussões dentro da  
formação profissional podem frutificar intervenções mais especializadas no que se refere a  
atuação junto aos movimentos sociais, considerando que “do conhecimento não se extraem  
diretamente indicativos para a ação, para a prática profissional e interventiva. Mas não se terá  
uma prática eficiente e inovadora se ela não estiver apoiada em conhecimentos sólidos e  
verazes” (Netto, 2011, p. 21).  
A defesa dessa perspectiva aparece com a interlocução com o marxismo, que  
proporcionou maturidade intelectual a profissão no âmbito do impulso à criação dos cursos de  
pós-graduação a partir dos anos 1970, que foi o espaço em que a área se apropriou do debate  
intelectual contemporâneo das Ciências Sociais e se desenvolveu na pesquisa sobre a natureza  
de sua intervenção, de seus procedimentos, sua formação, história e a realidade onde se insere  
como profissão. Acentralidade da pesquisa é reforçada nas Diretrizes Curriculares (1996) como  
um componente essencial da formação e do exercício profissional e destaca-se também como  
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Relação Serviço Social e movimentos sociais a partir dos fundamentos do Serviço Social  
como instrumento para o profissional analisar, dialogar com a realidade e subsidiar alternativas  
a ela (Silva, 2007).  
Essa adoção e defesa da atitude investigativa dos/as assistentes sociais aparece como  
imprescindível, posto que a realidade enfrentada pela prática profissional é uma fonte de  
conhecimentos e o conhecimento dessa realidade é essencial para responder as demandas postas  
por ela (Costa; Gonçalves, 2020). Diante disso, acaba por tornar imperativo alinhar os temas  
que constituem o universo interventivo da profissão a profissão. Considerando a temática  
movimentos sociais como presente nos instrumentos normativos da profissão, e dado os  
desdobramentos que acometem as lutas e os movimentos sociais na conjuntura neoliberal a  
partir dos anos 1990, a colocam (ou não) na ordem das pesquisas dos/as assistentes sociais.  
Estudos e pesquisas já demonstram essa preocupação. Iamamoto (2011, p. 461), ao  
verificar a categorização dos eixos temáticos dos projetos de pesquisa dos Programas de Pós-  
Graduação em Serviço Social, aponta que “[...] a área temática com menor investimento na  
pesquisa refere-se aos conflitos e movimentos sociais, processos organizativos e mobilização  
popular”. Completa essa preocupação a pesquisa de Guimarães (2022), ao analisar os projetos  
políticos-pedagógicos de cursos presenciais da região Nordeste3 e notar algumas tendências no  
âmbito acadêmico: a discussão acerca das lutas e movimentos sociais não aparece, ao menos  
em termos de conteúdos e referências, mediada pela relação com a profissão e seu exercício  
profissional; o trabalho profissional de assistentes sociais com movimentos sociais não assume  
um lugar expressivo de debate; a presença de lógicas antagônicas e estranhas aos debates  
coletivos da categoria, indicando expressivas disputas teóricas e políticas expressas por dentro  
da formação.  
243  
Um ponto central para compreender esse cenário está nos processos que acompanham  
a educação superior. Guimarães (2020, p. 44), aponta que a aprovação das Diretrizes  
Curriculares pelo Conselho Nacional de Educação/Ministério de Educação (CME/MEC)  
representa um contraponto à direção social da formação profissional dos/as assistentes sociais,  
resultando em “distorções, reducionismos e esvaziamentos em relação à proposta original  
formulada para a formação de assistentes sociais no Brasil, com implicações importantes para  
os rumos da formação e do exercício profissional”. As consequências se acumulam posto que  
os pressupostos norteadores da concepção de formação profissional  
desaparecem e princípios como a adoção de uma teoria social crítica, a  
3 Guimarães (2020), determina dentro do universo de 90 Unidades de Formação Acadêmica (UFA) uma amostra  
de pesquisa 27 (vinte e sete) projetos político-pedagógicos de cursos presenciais da região nordeste, o equivalente  
a 30% do nosso universo de análise. Destes projetos pedagógicos, contabilizam-se 17 (22,97%) do total de cursos  
privados da região e 11 (68,75%) do total de cursos públicos. Amostra que nos pareceu representativa para os  
propósitos da nossa investigação.  
Kathleen Pimentel dos Santos  
indissociabilidade nas dimensões de ensino, pesquisa e extensão, a ética como  
princípio formativo perpassando a formação e o exercício do pluralismo em  
luta pela direção social da formação profissional foram suprimidos e/ou  
sofreram gritantes alterações no sentido do seu rebaixamento. Os núcleos de  
fundamentação sofrem os maiores reducionismos e aparecem desconfigurados  
em sua lógica, assim como desaparecem as matérias básicas e as concepções  
contidas nas diretrizes da ABEPSS para disciplinas, seminários temáticos,  
oficinas, etc. Tudo fica a cargo das definições dos colegiados de curso  
(Guimarães, 2020, 44-45).  
Notamos mais intimamente esse processo relacionado a tematização dos movimentos  
sociais na nova proposta do CNE/MEC quando vimos desaparecer do perfil profissional sua  
relação com os movimentos sociais. Em sua nova elaboração, não há mais menção aos  
movimentos sociais em seu conteúdo, referindo-se que o perfil profissional atenda “[...]  
usuários do Serviço Social no conjunto das relações sociais e no mercado de trabalho”4. Essa  
retração também é sentida quando observamos que o ensino da relação profissional com os  
movimentos sociais não consta no conteúdo da nova organização curricular, contrariando a  
proposta original das Diretrizes Curriculares de 1996 em que essa temática compreende três  
Matérias Básicas, e do que considera o documento da Comissão de Especialistas, de 1999, que  
as consolidam, onde aparecem em quatro Tópicos de Estudo (ABEPSS, 2022).  
Esses contrapontos no âmbito formativo têm sua preocupação intensificada quando  
retomamos a dimensão investigativa enquanto capaz de capacitar o/a assistente social para a  
leitura da realidade no seu exercício profissional, para captar as mediações e as possibilidades  
de construção de estratégias para o atendimento das demandas e para construção de ações  
qualificadas, como nos lembram Costa e Gonçalves (2020). O impacto disso, considerando a  
unidade investigação-intervenção, vem sendo sentida na retração do trabalho profissional junto  
aos movimentos sociais, constatado através de um diminuto número de produções que relatam  
experiências de assistentes sociais em organizações e movimentos sociais.  
244  
Pesquisas e estudos demarcam esse panorama, ilustrando que embora a temática não  
desapareça no seio da profissão, não alcançam espaço de prioridade. Silva (2009), ao analisar  
a publicização de trabalhos no decurso de três décadas nas edições da Revista Serviço Social e  
Sociedade, aponta que, embora a temática movimentos sociais populares, organização popular  
e lutas sociais esteja entre as temáticas pesquisadas, há uma redução considerável no interesse  
pelo tema quando na década de 1979-1989 as publicações marcam 5,79%; na década seguinte,  
1990-1999, essa abordagem é de 4,36%, acentuando-se na década de 2000-2009, com apenas  
4
Anteriormente, o texto colocava no horizonte do perfil profissional os movimentos sociais como espaço de  
atuação e articulação, assim constava “Profissional que atua nas expressões da questão social, formulando e  
implementando propostas para seu enfrentamento, por meio de políticas sociais públicas, empresariais, de  
organizações da sociedade civil e movimentos sociais” (ABEPSS, 1996).  
Libertas, Juiz de Fora, v. 24, n. 1, p. 236-250, jan./jun. 2024. ISSN 1980-8518  
Relação Serviço Social e movimentos sociais a partir dos fundamentos do Serviço Social  
1,34%.  
Constata-se, portanto, que a tendência verificada por Duriguetto (2014), em que a  
tematização e atuação profissional e as relações com os movimentos sociais sofre uma curvatura  
nos pós-1990 se comparado aos anos 1980, se mantém e se acentua. Continua essa constatação  
quando nos aproximamos nos estudos de Dal Moro e Marques (2011), apontando que no  
período de 1995-2008, dentre os trabalhos publicados nos anais do Encontro Nacional de  
Pesquisadores em Serviço Social (ENPESS) e do Congresso Brasileiro de Assistentes Sociais  
(CBAS), somente 3,82% abordam a temática dos movimentos sociais. Observa também que os  
trabalhos que tratam de experiências de intervenção profissional junto aos movimentos sociais  
não ultrapassam mais que 6%.  
No que se refere a década seguinte, podemos observar através da sistematização  
realizada pela ABEPSS (2022)5, que a discussão sobre a temática dos movimentos sociais possa  
representar “[...] um tema oculto no debate profissional”, com “pouca visibilidade nas análises  
do Serviço Social (Dal Moro; Marques, 2011, p. 32), mesmo com o crescente número de  
pesquisas e estudos realizados na área do Serviço Social, além do seu reconhecimento na  
produção de conhecimento. Isso porque, analisando quantitativamente, verificamos que, dos  
4954 trabalhos aprovados nos eventos do Congresso Brasileiro de Assistentes Sociais (CBAS),  
Encontro Nacional de Pesquisadores em Serviço Social (ENPESS), Encontro Nacional de  
Política Social (ENPS) e a Jornada Internacional de Políticas Públicas (JOINPP), entre 2011-  
2015, apenas 353 se encaixam no eixo dos movimentos sociais, não ultrapassando 7%,  
conforme Dias (2021 apud ABEPSS, 2022).  
245  
Em termos qualitativos, podemos ainda observar algumas tendências. Os trabalhos  
identificados nas edições ENPESS de 2012, no CBAS de 2013 e no ENPESS de 2014 que  
tratam dos movimentos sociais são marcados pela prevalência do debate teórico em  
comparativo às discussões que tratam a prática concreta, considerando que, do total de 169  
trabalhos identificados no eixo que aborda essa temática, nas três edições, majoritariamente  
estão concentrados em reflexões teóricas.  
5 A ABEPSS (2022), ao lançar o documento “Subsídios para o debate sobre as lutas e os movimentos sociais na  
formação profissional em Serviço Social”, sistematiza os dados dos relatórios de gestão do GTP Movimentos  
Sociais e Serviço Social dos anos 2013/2014, 2015/2016, 2017/2018 e 2019/2020, além de produções acerca do  
estado da arte da temática de movimentos sociais nos ENPESS e CBAS, entre elas Dias (2021).  
Kathleen Pimentel dos Santos  
Tabela 1. Publicações sobre Movimentos Sociais nos CBAS e ENPESS (2012-2014)  
Trabalhos sobre  
movimentos  
sociais  
Reflexões a  
partir da prática  
concreta  
Total de  
trabalhos  
Evento  
Debate teórico  
ENPESS (2012)  
CBAS (2013)  
1343  
1288  
940  
52  
78%  
34,61%  
66%  
22%  
48  
9,5%  
34%  
ENPESS (2014)  
69  
Fonte: ABEPSS (2022).  
A situação verificada é levada como preocupação na hipótese de Dias (2021) na qual  
surge o questionamento se a categoria profissional estaria distante dos movimentos sociais. As  
reflexões também se acumulam em torno da graduação e pós-graduação. Através da  
sistematização da ABEPSS (2022), identificamos nos apontamentos de Dias (2021), ao analisar  
os projetos pedagógicos dos cursos de Serviços Sociais de universidades públicas, que, embora  
a temática dos Movimentos Sociais não esteja ausente sob forma de disciplinas, os resultados  
demonstram “que a formação, apesar da direção hegemonicamente crítica e progressista,  
proporciona baixa aproximação dos discentes de Serviço Social com o debate de movimentos  
sociais e experiências nestes espaços” (Dias, 2021 apud ABEPSS, 2022, p. 40).  
Essa notável dissolução da relação do Serviço Social com a tematização das lutas e  
movimentos sociais, verificada nessa exposição, pode significar uma relação com o avanço  
neoliberal a partir dos anos de 1990. A programática do neoliberalismo tem empreendido um  
ataque às lutas e movimentos sociais como estratégia de reorganização do capital, subvertendo,  
em nível ídeo-político, as lutas coletivas ao processo de criminalização e penalização, o que  
acaba, não sem resistências, comprometendo as organizações populares nas aproximações com  
os espaços institucionais e extra institucionais.  
246  
Outro ponto importante de relação conjuntural liga-se intimamente ao próprio projeto  
profissional do Serviço Social, diante do seu processo de constituição que levou ao seu  
desenvolvimento a força política dos setores progressistas da profissão, que apreenderam e  
incorporaram a força política dos movimentos e organizações dos trabalhadores do final da  
década de 1970, como nos lembra Duriguetto (2014). Acrescenta Netto (2006), que as  
contribuições e a continuação do projeto ético-político profissional do Serviço Social, diante  
do tensionamento trazido pelas forças neoliberais, dependem da absorção da maioria do corpo  
profissional e do fortalecimento dos movimentos democráticos e populares, que foram  
fragilizados e pressionados nos últimos anos.  
Ainda sobre o aspecto conjuntural que pode, em algum grau, vincular-se a essa retração  
com os movimentos sociais, é o esforço da ofensiva conservadora que, com a influência da pós-  
Libertas, Juiz de Fora, v. 24, n. 1, p. 236-250, jan./jun. 2024. ISSN 1980-8518  
Relação Serviço Social e movimentos sociais a partir dos fundamentos do Serviço Social  
modernidade e as regressões operadas pelo neoliberalismo, conduzem a uma tendência de  
tecnificação do Serviço Social, subsumindo-o ao pragmatismo e ao empirismo. Para Mota e  
Amaral (2014, p. 41), estes desafios postos pela atual conjuntura “insiste em reduzir o projeto  
profissional a sua viabilidade prática, tecnificando-o e imprimindo uma racionalidade e  
instrumentalidade negadora dos seus princípios e propósitos”. Compreendemos, assim, que  
perder a ligação com as lutas e movimentos sociais significa fragilizar o projeto profissional da  
profissão, além de opor-se a Lei de Regulamentação enquanto competência profissional e negar  
um direito profissional posto no Código de Ética.  
Suplementa esse debate que a comprovada vinculação do Serviço Social aos  
movimentos sociais liga-se aos fundamentos ético-políticos da profissão, fazendo que na  
espreita dessa relação se encontre um conjunto de possibilidades de intervenções para fortalecer  
as lutas e movimentos sociais. Para Duriguetto (2014), essas possibilidades se encontram no  
fomento à organização e mobilização dos sujeitos, seja no desenvolvimento de ações junto aos  
movimentos e as lutas sociais, no sentido de identificar suas demandas, de contribuir na  
formulação de estratégias para defesa e acesso dos seus direitos, de reforçar a importância da  
participação desses movimentos nos fóruns, conselhos e conferências e incentivar a troca de  
experiências com outros movimentos e organizações populares. De igual maneira, a partir de  
alianças com as instâncias representativas dos interesses populares, em que os/as assistentes  
sociais podem contribuir para a discussão das políticas e construção de alternativas para as suas  
reivindicações, a partir, principalmente, da socialização de informações sobre essas políticas  
com base no que se verifica na sua atuação profissional.  
247  
Considerações finais  
O Serviço Social se liga aos movimentos sociais, ainda que maneira conservadora, desde  
o início da profissão, quando estabelece relação com a base de militância tradicional da Igreja  
Católica. A superação dessa vinculação tradicional emerge com o Movimento de  
Reconceituação, especificamente dentro do movimento histórico de Intenção de Ruptura, a  
partir do rompimento com as bases tradicionais/conservadoras e com um questionamento dos  
pilares fundamentais da sociedade capitalista.  
O movimento de intenção de ruptura ocorre paralelo a abertura do movimento  
democrático no Brasil, e constrói, a partir desse momento, um vínculo orgânico do Serviço  
Social com os movimentos sociais e as lutas coletivas pela redemocratização do país. Essa  
relação da categoria profissional junto aos movimentos e lutas sociais consolida-se com o  
projeto profissional e o estabelecimento da Lei de Regulamentação Profissional, o Código de  
Kathleen Pimentel dos Santos  
Ética e as Diretrizes Curriculares.  
Apesar do vínculo com as lutas e movimentos sociais, o panorama atual demostra que  
essa relação se apresenta fragilizada a partir de três pontos, quantitativa e qualitativamente:  
primeiro, há uma diminuição no número de produções dos/as assistentes sociais que abordem  
essa temática; segundo, no ensino superior, no nível de graduação e pós-graduação, o debate  
dessa vinculação não está sendo privilegiado, representando pouco investimentos nas  
pesquisas, além de referências que não abordam sua relação com o trabalho profissional; por  
fim, que o número de trabalhos publicizados que tratem de relatos e/ou experiências do  
exercício profissional em âmbito extra institucionais é pouco expressivo.  
A preocupação com esse cenário é reforçada quando ao Serviço Social a dimensão  
investigativa é parte essencial da sua intervenção, indicando que é necessário conhecer para  
poder intervir. Condensando esse pressuposto aos estudos com as lutas e movimentos sociais,  
encontramos que o crescente processo de desmobilização das lutas coletivas organizadas,  
engendrada pelo capital, pode obnubilar o processo de vinculação e relação com o Serviço  
Social. Ainda, é possível estender essa preocupação para o movimento interno da profissão,  
com a indicação de um retorno mais notável de práticas mais empiristas e pragmáticas dentro  
da categoria profissional, chamando à uma visão de psicologização dos indivíduos,  
comprometendo efetivamente a direção política do atual projeto profissional.  
248  
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A fundamentação dos direitos humanos:  
tradições teóricas e aproximação ontológica  
The grounds of human rights:  
theoretical traditions and ontological approach  
Luís Guilherme Nascimento de Araujo*  
Clovis Gorczevski**  
Resumo: O objetivo deste estudo é, num  
primeiro momento, abordar as bases históricas e  
filosóficas das tradições teóricas dominantes  
nos discursos de direitos humanos, a saber, a  
europeia, a anglo-saxã e a norte-americana.  
Posteriormente, busca-se oferecer uma  
fundamentação dos direitos humanos como  
categoria de base ontológica, que é afirmada a  
partir das particularidades do ser social como  
ser automediador através do trabalho e na  
dinamicidade imanente das suas relações como  
ser histórico. A pesquisa foi elaborada por meio  
Abstract: The objective of this study is, at first,  
to address the historical and philosophical bases  
of the dominant theoretical traditions in human  
rights discourses, namely, the European, Anglo-  
Saxon and North American traditions.  
Afterwards, we seek to offer a grounding of  
human rights as an ontologically based  
category, founded on the particularities of the  
social being as a self-mediating being through  
work and on the immanent dynamism of its  
relations as a historical being. The research was  
elaborated through the theoretical-conceptual  
technique, with bibliographic procedure.  
da  
técnica  
teórico-conceitual,  
com  
procedimento bibliográfico.  
Palavras-chaves:  
Direitos  
humanos;  
Keywords: Human rights; Grounding;  
Fundamentação; Ontologia.  
Ontology.  
Introdução  
Considera-se que a fundamentação dos direitos humanos nunca deixou de ser tarefa  
central e, por isso, possui, ainda hodiernamente, expressiva relevância, muito em função da  
premência de construção de um aparato jurídico-institucional que seja suficiente para conduzir  
os complexos processos que a efetivação desses direitos impõe. Nesse contexto, uma apreensão  
*
Doutorando em Direito pelo Programa de Pós-Graduação em Direito da Universidade de Santa Cruz do Sul  
(Unisc), com Bolsa PROSUC/Capes, modalidade II. Mestre em Direito pela Unisc. ORCID:  
** Doutor em Direito pela Universidad de Burgos (Espanha). Docente do Programa de Pós-Graduação em Direito  
da Universidade de Santa Cruz do Sul (Unisc). ORCID: https://orcid.org/0000-0002-0511-8476  
DOI: 10.34019/1980-8518.2024.v24.41952  
Esta obra está licenciada sob os termos  
Recebido em: 28/08/2023  
Aprovado em: 23/02/2024  
Luís Guilherme Nascimento de Araujo; Clovis Gorczevski  
crítica dos direitos humanos, que perpassa por uma retomada da problemática da sua  
fundamentação, contribui de maneira significativa para a intricada tarefa que é os concretizar.  
O objetivo deste artigo é abordar as tradições teóricas clássicas dos direitos humanos,  
propondo-se, após, uma abordagem desses direitos como categoria inserta em um quadro de  
referência ontológico. Busca-se, com isso, contribuir para um entendimento crítico das mais  
proeminentes tradições teóricas dos direitos humanos, desenvolvendo-se, como contraponto,  
uma sua fundamentação desde uma perspectiva ontológica, que parte da dinamicidade imanente  
do ser social e da sua processualidade histórica. Quanto à metodologia, empregou-se a técnica  
de pesquisa teórico-conceitual, pelo procedimento bibliográfico.  
Fundamentos histórico-filosóficos das tradições teóricas de direitos humanos  
O discurso científico e, mais especificamente, o discurso jurídico são eminentemente  
atravessados por dinâmicas sócio-históricas que acabam por estruturar suas teses, fundamentos,  
premissas e princípios. Essa constatação, por mais simples e apressada que seja, não constitui  
uma unanimidade, razão pela qual afirmá-la resulta num imediato posicionamento teórico que  
necessita ser justificadamente defendido. Entende-se que o, ou, os conceitos de direitos  
humanos constituem, também, objeto de disputa a partir dessas diferentes posturas, sendo  
apontados ora como universais e a-históricos, ora como axiomas normativos, ora como  
processos sociais contingentes. Neste tópico, serão abordadas duas tradições teóricas dos  
direitos humanos que expressam alguns desses entendimentos, a saber, a europeia e a norte-  
americana.  
252  
Segundo Gallardo (2014), dois entendimentos estão no epicentro dos debates  
contemporâneos acerca dos direitos humanos e são os que dão ensejo ao notório distanciamento  
entre o que se prega e o que se faz nessa matéria. São eles: a tentativa de fundamentar os direitos  
humanos desde uma proposta filosófica unilateralizada, universalizante, e, doutro lado, a ideia  
de que uma fundamentação desses direitos não se faz mais necessária ou nem mesmo é possível  
de ser acordada. Essas duas leituras são o que estruturam as grandes tradições teóricas, europeia  
e anglo-saxã, de fundamentação dos direitos humanos elegidas por Herrera Flores (1989).  
A tradição europeia de direitos humanos, conforme aduz o autor espanhol (1989),  
desenvolve-se por meio de uma acepção de embate contra os absolutismos estabelecidos na  
Europa no quadro histórico de superação do feudalismo. Nesse processo, fundamentado por um  
jusnaturalismo racionalista, o direito é colocado como instrumento racionalmente pactuado  
entre os indivíduos para a proteção contra o poder absoluto, dessacralizado pela ideia de  
natureza humana, não mais divina, contexto no interior do qual os direitos humanos devem ser  
Libertas, Juiz de Fora, v. 24, n. 1, p. 251-263, jan./jun. 2024. ISSN 1980-8518  
A fundamentação dos direitos humanos: tradições teóricas e aproximação ontológica  
descobertos e produzidos pelo espírito racional, desde que procedentes de procedimentos  
constituídos no pacto social. Os direitos naturais do ser humano são base das legislações e  
convenções erigidas nas revoluções burguesas, notadamente a francesa, mas são atravessados  
por uma lógica política, que estabelece uma necessidade de pacto prévio constitutivo da  
sociabilidade mesma.  
Nas palavras de Trindade (2012, p. 35), essa “construção intelectual de um direito  
natural de base racional [...] foi socialmente apropriada com muita facilidade pela burguesia  
revolucionária como arma ideológica de combate”. Nesse contexto, é constituído um sentido  
político de reivindicação por direitos, que projeta no reconhecimento estatal o elemento final  
objetivo desses processos. Os direitos humanos, dessa forma, são conquistados e impostos  
politicamente, sendo este o procedimento adequado para a sua consecução, o que resulta numa  
fundamentação de base formal, ainda que estruturada por um discurso político que a confere  
certa dinamicidade.  
A partir dessa tradição, portanto, tem-se um primado do procedimento, do pacto e da  
forma sobre o conteúdo, fazendo com que os aspectos formais dos direitos humanos sejam  
elevados a fundamento e proporcionando, assim, as premissas filosóficas para a separação  
teórica do direito e, conjuntamente, dos direitos humanos, da sua complexidade e  
conflituosidade inerentes. Esse passo é promovido, destacadamente, pelo positivismo jurídico,  
caudatário do racionalismo científico nascido no decorrer dos séculos 17 e 18. Ao estruturar-se  
sobre a forma, essa tradição abre espaço para uma ambiguidade teórica representativa, que ora  
aponta para a completa relativização na fundamentação dos direitos humanos, assumindo a  
possibilidade de múltiplos fundamentos, e ora afirma, de maneira peremptória, que a  
fundamentação se faz suficientemente presente nos textos das declarações internacionais e das  
constituições.  
253  
Por um lado, abre-se espaço para pensar os direitos humanos fora da totalidade social,  
com uma fragmentação de interesses sociais enclausurados em si mesmos, demarcados  
teoricamente por um multiculturalismo pós-político que, ainda que aberto às heterogeneidades  
culturais, não deixa de estar balizado pelo monismo do direito institucionalizado (Sousa Santos,  
1997). Por outro, tem-se um discurso que prega uma clivagem entre a instância filosófica e a  
instância política dos direitos humanos, entre a teoria e a prática desses direitos, tratando de  
estabelecer que a fundamentação por meio das declarações universais expressa suficientemente  
o consenso filosófico da comunidade internacional acerca de valores humanos fundamentais e  
aposta na busca dos direitos humanos como tarefa unicamente política (Bobbio, 2004).  
Luís Guilherme Nascimento de Araujo; Clovis Gorczevski  
Numa ou noutra direção, a tradição europeia ignora ou deliberadamente prejudica a  
complexidade dos direitos humanos que reside, justamente, na dialética das suas instâncias  
teórica e política e, igualmente, nos seus contornos filosóficos engendrados pela relação entre  
o particular e o universal. Consoante manifesta criticamente Žižek (2010), em matéria de  
direitos humanos, o universal sem particular se torna uma forma ideológica de dominação e  
opressão, assim como o particular que não se relaciona com a universalidade se transforma em  
um jogo pós-político de interesses particulares.  
A tradição anglo-saxã, cuja influência é notável sobre a tradição norte-americana, por  
sua vez, não se estrutura a partir de uma contenda histórica contra instituições feudais ou mesmo  
absolutistas, mas num contexto de criação da estrutura institucional sem modificação radical  
das relações econômicas e sociais, muito a partir de um consenso pré-estabelecido em torno de  
princípios morais tidos universais. Uma das razões que dá ensejo a essa característica é que a  
Inglaterra passou por processos de superação de políticas absolutistas mais precocemente na  
sua história. Conforme Trindade (2012), em razão disso, as noções de liberdade individual, de  
autonomia política e de restrições ao Estado já possuíam maior desenvolvimento e angariavam  
peso de axioma no discurso jusfilosófico e político, tanto no evolver do parlamentarismo inglês  
quanto na elaboração dos moldes republicanos estadunidenses.  
Nesse aspecto, no âmago das tradições anglo-saxã e norte-americana, o consenso  
moral precede ao pacto político e os direitos humanos são algo de abstrato e anterior às  
instituições. A tarefa principal do jogo político é estabelecer procedimentos e estruturas  
condizentes com a prática de direitos dados aprioristicamente. Herrera Flores (1989) aponta  
que a obra de Rawls assinala de eficazmente essas tradições, vez que se desenvolve a partir da  
ideia de um consenso quanto a uma cultura de valores públicos, tipicamente liberais, que, por  
sua vez, será o fundamento para constituição dos procedimentos institucionais e voltados à  
concretização dos pré-estabelecidos princípios.  
254  
Consoante Trindade (2012, p. 88), as Declarações e a Constituição norte-americanas  
“Além de limitarem o poder arbitrário dos governantes sobre a pessoa [...], ampliavam a  
autonomia dos indivíduos em relação ao Estado”. Ou seja, os direitos humanos, diante dessas  
tradições, são assumidos e justificados desde uma ideia de liberdade por meio da qual as forças  
sociais possuem capacidade de autorregulação espontânea. O estabelecimento da ordem pública  
e das suas dinâmicas concretas, assim, deve ser resultante do exercício das vontades individuais  
que veem nesse espaço coletivo uma potencialidade de ameaça à busca pelos interesses  
particulares. Há, assim, uma clareza da separação entre espaços públicos e privados, colocando  
Libertas, Juiz de Fora, v. 24, n. 1, p. 251-263, jan./jun. 2024. ISSN 1980-8518  
A fundamentação dos direitos humanos: tradições teóricas e aproximação ontológica  
determinados direitos como armas ou ferramentas contra outros, isto é, os direitos privados são  
axiologicamente opostos aos direitos do domínio público.  
Compreende-se que ambas tradições limitam as potências inerentes ao discurso voltado  
à promoção e proteção de direitos humanos. Por um lado, a tradição europeia atribui prioridade  
de forma sobre conteúdo, carregando um discurso infecundo, incapaz de enfrentar as demandas  
dos indivíduos empíricos que apontam para além da esfera jurídica e institucional, e, por outro,  
as tradições anglo-saxã e norte-americana simbolizam a relevância e a urgência da disputa  
ideológica quanto aos direitos humanos, vez que se empenham em conferir validade universal  
a valores classistas particulares em detrimento das múltiplas visões de mundo que buscam  
espaços para a própria afirmação. Quanto a essas limitações, Sánchez Rubio (2014, p. 27)  
sublinha:  
Devido ao positivismo, estabeleceu-se uma cultura formalista que entende o  
direito como simples técnica de regulação construída e imposta por uma  
autoridade concreta. O Estado enquanto instituição centraliza a capacidade de  
produção do direito e o Poder Judiciário acaba sendo seu principal órgão  
interpretativo. [...] Com o jusnaturalismo, defensor da imutabilidade dos  
valores ou de seu estabelecimento prévio, acaba por descontextualizá-los e  
separá-los do conjunto de relações e ações humanas que são as que realmente  
os constroem e lhes confere significado, não sendo de competência exclusiva  
de uma casta de especialistas dizer o que é a liberdade, a igualdade e a  
dignidade humana.  
255  
Os direitos humanos, se encarados a partir dessas perspectivas, são apreendidos desde  
instâncias que forçosamente os abstraem das dinâmicas concretas que catalisaram a sua  
existência mesma. Isto é, são ignorados ou mesmo ideologicamente ocultados os indivíduos,  
processos e lutas históricas que conformaram a institucionalização e normatização de demandas  
sociais por condições de sobrevivência e de dignidade. As tradições europeia, anglo-saxã e  
norte-americana, baseando-se ora num positivismo formalista estanque, ora num jusnaturalismo  
individualista abstrato, constituem-se como obstáculos que o imaginário jurídico dominante  
impõe aos processos que, ainda que historicamente ligados a uma instância normativa ou  
propriamente jurídica, apontam para um mundo de relações, necessidades, tensões e dinâmicas  
que vão muito além do direito moderno.  
Conforme a leitura de Horkheimer (1980, p. 132), o pensamento crítico “considera  
conscientemente como sujeito a um indivíduo determinado em seus relacionamentos efetivos  
com outros indivíduos e grupos, em seu confronto com uma classe determinada [...] em  
vinculação com o todo social e a natureza”. Retomando Žižek (2010), nesta mesma orientação,  
trata-se de tornar evidente e pressuposta a dialeticidade entre o universal e o particular sem que,  
com isso, cometa-se o equívoco de reduzir um ao outro. Nesse aspecto, a teoria crítica se  
Luís Guilherme Nascimento de Araujo; Clovis Gorczevski  
candidata como base teórica que não toma o indivíduo por isolado, tampouco aponta numa  
generalidade de indivíduos o seu fundamento.  
Além dessas problemáticas, tem-se o fato de que as referidas tradições permitiram,  
desde os seus nascedouros, práticas diametralmente opostas à garantia e preservação das  
dignidades individual ou coletiva. Gallardo (2019, p. 56) faz o seguinte destaque:  
As leituras do Direito natural, antigo e moderno, que contêm a possibilidade  
de negar direitos humanos àquelas cujas práticas não coincidem com uma  
moral universal decidida autoritariamente, isto é, pelo poder econômico,  
político e cultural. A leitura do direito positivo ou histórico, que pode incluir  
violações legais a esses direitos, porque sua realidade é inteiramente jurídica  
ou formal [...], questão que só pode ser protegida por pactos interestatais e  
tribunais internacionais, cujo caráter não é necessariamente popular e,  
facilmente, pode ser antipopular.  
Trindade (2012), no mesmo sentido, identifica que os processos revolucionários  
burgueses pouco estiveram fundamentados por uma visão ou projeto social e inclusivo de  
sociedade. Quanto às limitações da Revolução Americana, é notória a segmentação quanto aos  
povos originários da região e quanto às massas de pessoas escravizadas e importadas do  
continente africano. O autor (2012, p. 82) afirma que “embora índios e escravos constituíssem  
a maioria da população, não podia mesmo fazer parte das cogitações dos colonizadores levar  
até eles o espinhoso debate sobre direitos “naturais” do homem”. No que toca à Revolução  
Francesa, limites similares são perceptíveis quanto à formalização de direitos de liberdade  
individual e igualdade civil que, na realidade concreta, significaram a troca de alguns  
privilégios de classe por outros, em detrimento de uma grande parte da população que  
permaneceu enfrentando as agruras da miséria.  
256  
Dessa maneira, ao se consolidarem dominantes no discurso jurídico apreensões fechadas  
e limitadas de direito e de direitos humanos, cria-se uma inevitável plataforma para a  
segmentação e exclusão daqueles elementos, instituições, interpretações, indivíduos e grupos  
que não se constituem nas molduras daquilo que se considera hegemônico, oficial, moral.  
Inúmeros são os exemplos históricos que atestam uma sintomática facilidade e uma alarmante  
recorrência da lesão a direitos básicos de dignidade de indivíduos, grupos e da natureza, por  
ações ou omissões deliberadas, atrelada a uma manutenção do discurso de defesa e promoção  
de direitos humanos sem que se perceba se tratar de uma contradição performativa ou artifício  
retórico.  
Partindo-se dessas compreensões quanto aos limites dos discursos mais tradicionais de  
diretos humanos, buscar-se-á, no tópico que segue, discorrer sobre um caminho alternativo para  
a sua fundamentação. Considera-se, assim, que o resgate de um pensamento de base ontológica  
Libertas, Juiz de Fora, v. 24, n. 1, p. 251-263, jan./jun. 2024. ISSN 1980-8518  
A fundamentação dos direitos humanos: tradições teóricas e aproximação ontológica  
pode contribuir para o enfrentamento desses limites ideológicos ao exercício e efetivação de  
direitos humanos, ao buscar arrimo teórico em categorias que atestam as particularidades da  
sociabilidade humana em função das necessidades decorrentes da atividade automediadora.  
Busca-se, com isso, reconhecer a legitimidade dos múltiplos movimentos, indivíduos e  
demandas por dignidade, sem impor a esses processos complexos demarcações jurídicas,  
morais ou procedimentais.  
Fundamentação dos direitos humanos desde um quadro de referência ontológico  
Ateoria crítica dos direitos humanos, aludindo, inicialmente, ao jurista espanhol Herrera  
Flores (2009), parte de uma constatação quanto à universalização da ideologia liberal  
individualista, calcada na competitividade e na exploração do trabalho pelo capital, que, somada  
ao formalismo monista, é fundadora de um movimento de homogeneização axiológica. Contra  
isso, o autor estabelece um compromisso à teoria crítica quanto à emancipação humana com  
base noutra racionalidade, que coloca em primeiro plano a satisfação das necessidades básicas  
dos indivíduos e não a manutenção e o cumprimento da ordem do capital. O intento estabelecido  
de reinventar os direitos humanos, então, possui início com o reconhecimento das insuficiências  
da sua fundamentação como está posta e também dos limites estruturais que a  
contemporaneidade impõe para o seu efetivo cumprimento (Herrera Flores, 2009).  
Assumindo como corolário essa intuição, buscar-se-á propor os direitos humanos como  
uma categoria essencialmente sustentada por um quadro de referência ontológico, que se  
expressa fenomenicamente por meio de processos sociais de lutas por condições de dignidade  
individual e/ou coletiva, envolvendo aí elementos históricos que variam em composição e  
estrutura. A referência que se faz à ontologia é premente vez que o seu esquecimento ou sua  
negação serviram como fundamentos para a edificação de consagradas abordagens ideológicas  
do direito, irradiando premissas nas tradições teóricas que predominam nos domínios dos  
direitos humanos.  
257  
Essa negação, na esteira do que concebe Lukács (2018, p. 26) tem razão de ser, na  
história da filosofia, no abandono de questionamentos quanto à especificidade do ser social e,  
simultaneamente, do ser-em-si do mundo, em favor do desenvolvimento de teorias nas quais  
“podia ser realizada qualquer disposição metodológica, qualquer manipulação dos objetos,  
desde que não envolvesse uma contradição lógico-formal”. Essa inclinação resultou, no  
entendimento do filósofo húngaro, na emergência de correntes teóricas despreocupadas com o  
conhecimento ontológico, das coisas-em-si, e das categorias fundamentais do ser social,  
Luís Guilherme Nascimento de Araujo; Clovis Gorczevski  
eminentemente dedicadas à facilitação da manipulação da realidade objetiva em favor de  
determinados empreendimentos.  
Estabeleceu-se, assim, um pensamento científico e uma base filosófica conformados  
com certos papéis que lhe foram histórica e estruturalmente incumbidos pela ordem social  
existente, consolidada, tornando-o parte do processo moderno de divisão do trabalho tanto no  
sentido de o aperfeiçoar, quanto no de o justificar. Horkheimer (1980) aponta que a teoria  
tradicional, nesse movimento, carrega essas características de assumir um papel  
ideologicamente positivo na totalidade vigente, de relacionar-se de forma obscura e alienada  
quanto à satisfação das necessidades mais gerais da humanidade, enfim, de participar  
ativamente de processos renovadores da vida dessa totalidade.  
Nas palavras de Lukács (2018, p. 42), essa tendência acaba por significar a “eliminação  
definitiva de todos os critérios objetivos de verdade, procurando substituí-los por  
procedimentos que possibilitem uma manipulação ilimitada, corretamente operativa, dos fatos  
importantes na prática”. Tendência que afetou manifestamente a teoria do direito, seja por meio  
do desenvolvimento do positivismo formalista, com a proposta de isolamento epistemológico-  
metodológico do direito, com vistas a uma autonomia científica deste, ditada pela técnica  
jurídica, ou, ainda, com a influência do idealismo subjetivista no evolver dos princípios  
jurídicos jusnaturalistas que fundamentam, em larga medida, as tradições teóricas dos direitos  
humanos afirmativas da universalização de um sujeito moral abstrato.  
258  
Portanto, um pensamento de base ontológica para os direitos humanos abdica da  
abstração e do formalismo autorreferentes para empreender o reconhecimento do ser-  
precisamente-assim do mundo e, consequentemente, dos fatores concretos que conformam os  
horizontes de possibilidade para a ação nos múltiplos contextos desses direitos. Esse  
movimento de elevação do ontológico como ponto de referência predominante para o  
gnosiológico permite conceber a atividade puramente teórica como apenas um dos  
componentes da dialética imanente ao ser social. As instâncias do ser penetram a do conhecer  
e, nas palavras de Chasin (2009, p. 58), a racionalidade é tida como “produto efetivo da relação,  
reciprocamente determinada, entre a força abstrativa da consciência e o multiverso sobre o qual  
incide a atividade, sensível e ideal, dos sujeitos concretos”.  
Essa constatação e posicionamento críticos são conduzidos pela “interrogação recíproca  
entre teoria e mundo” (Chasin, 2009, p. 58), propícia à uma fundamentação dos direitos  
humanos que, quando captados como processos, exigem dos seus atores compreensão das  
legalidades e das necessidades imanentes às estruturas diante das quais agem e das quais  
demandam. Trata-se, assim, com Herrera Flores (1989, p. 27) de “descobrir qual é o processo  
Libertas, Juiz de Fora, v. 24, n. 1, p. 251-263, jan./jun. 2024. ISSN 1980-8518  
A fundamentação dos direitos humanos: tradições teóricas e aproximação ontológica  
a partir do qual os direitos humanos começam a ter sentido para nós”, ao invés de estabelecer  
um núcleo conceitual a partir do qual agir.  
No dizer de Horkheimer (1980, p. 131), “[...] o reconhecimento crítico das categorias  
dominantes na vida social contém ao mesmo tempo a sua condenação”. Nesse sentido, pensar  
os direitos humanos desde uma primazia do ontológico sobre o gnosiológico exige ressignificar  
o que é teoria e qual o seu papel nas dinâmicas que, na contemporaneidade, envolvem as lutas  
por esses direitos. É alternar o locus da verdade científica para o terreno da prática histórica e  
conceber uma atividade teórica intrínseca e necessariamente ligada a essa atividade prática.  
Consoante afirmação de Chasin (2009, p. 85) é fundamental ter a “Teoria [...] como descoberta,  
não como jogo especulativo, reducionismo abstrativante ou versão arbitrária, imputativa de  
significado”. Tem-se que um quadro de referência ontológico, assim, é capaz de traçar  
parâmetros teóricos e práticos indispensáveis para a atuação nos processos de direitos humanos,  
inacabados e inacabáveis.  
Para além da relevância dessa mirada crítica, é premente apontar categorias que  
compõem o complexo do ser social e que, assim, assumem função destacada na análise e  
condução de processos relativos aos direitos humanos desde esse quadro referencial. Nesse  
sentido, é fundamental ter claro que a ideia de totalidade dialética de sujeito e objeto, saber e  
ser, indivíduo e sociedade, não significa a redução de uma instância a outra ou a simplificação  
das suas relações. Como alerta Sartori (2021), dois equívocos são possíveis no ímpeto de  
apreensão do ser-propriamente-assim da totalidade social, a saber, o reducionismo econômico  
que estabelece a produção material da vida como mecanicamente determinante dos demais  
domínios, bem como a fetichização de complexos do ser social como instâncias autônomas,  
caso das concepções abstratas e formalistas que fragmentam o saber científico.  
259  
Assim, o destaque de Lukács (2013) é de que a totalidade é um complexo de complexos,  
em que a reprodução do todo é dependente da autonomia relativa de cada parte, ao mesmo  
tempo em que a reprodução social específica somente se efetiva em termos totalizantes. Como  
assevera Sartori (2021, p. 310), a conformação da totalidade “enquanto tal depende da  
autonomia dos complexos parciais [...], ao mesmo tempo em que esta autonomia não pode  
figurar senão como um fator, um momento do desenvolvimento do todo”. Existem aí, portanto,  
complexos ontológicos específicos que se relacionam dialeticamente na totalidade e o  
conhecimento de um está atrelado ao conhecimento das especificidades do outro e das  
respectivas possibilidades de recíprocas determinações.  
Nesse ponto, o teórico húngaro Mészáros (2016, p. 46) afirma que “não há como  
apreender o fator antropológico específico (“humanidade”) [...], a menos que seja concebido  
Luís Guilherme Nascimento de Araujo; Clovis Gorczevski  
com base na totalidade ontológica historicamente em desenvolvimento (“natureza”) à qual ele,  
em última instância, pertence”. Em consequência disso, a fim de obter maior dimensão e clareza  
quanto ao “fator antropológico”, quanto àquilo que ontologicamente caracteriza a instância  
social do ser, Mészáros (2016), no mesmo sentido de Lukács (2013), faz referência à  
centralidade e à especificidade da relação que o ser humano trava com a natureza, mediada por  
uma autêntica atividade produtiva e autoprodutiva, isto é, pelo trabalho.  
É com essa tônica que se torna possível uma aproximação, sempre cuidadosa, de uma  
ideia de essência ou natureza humana desde Marx (2010) e da tradição marxista,  
destacadamente a partir de Lukács (2013) e Mészáros (2016). Ainda que inserta num contexto  
categorial bastante rico e que não seja utilizada de maneira peremptória pelos autores, pode-se  
ponderar que o traço ontológico determinante do ser social, algo como natureza propriamente  
humana, para estes, reside na tripla relação, dialeticamente determinada, composta pelo o  
homem, a natureza e a sua atividade produtiva (o trabalho). Dessa forma, tem forma a ideia do  
trabalho como atividade de mediação entre o homem e a natureza, e, também, de automediação  
para o próprio homem, como aquela constitutivamente humana. Sobre isso, Mészáros (2016, p.  
135) sustenta:  
Ele (Marx) nega que o ser humano seja um ser essencialmente egoísta, pois  
não aceita algo como natureza humana fixa (ou, de fato, qualquer coisa fixa).  
Na visão de Marx, o ser humano por natureza não é nem egoísta nem altruísta.  
Ele é feito, por sua própria atividade, naquilo que ele é a qualquer tempo.  
Assim sendo, se essa atividade for transformada, a natureza humana egoísta  
de hoje mudará no devido tempo.  
260  
Nessa toada, ainda seguindo Mészáros (2016, p. 102), “O conceito mesmo de “natureza  
própria do homem” necessariamente implica a automediação ontologicamente fundamental do  
ser humano com a natureza por meio de sua própria atividade produtiva (e autoprodutiva)”. Isto  
é, a atividade teleológica automediadora, o trabalho, como canalização de forças vitais físicas  
e mentais dos indivíduos para se alcançar determinado fim ligado à satisfação de necessidades,  
coloca-se como um substrato de toda a interação humana, como a categoria que funda o ser  
social.  
Em razão disso, a transformação da natureza passa a ser considerada um processo de  
constante de objetivação. Significa dizer que o que é objetivado no mundo concreto pela ação  
teleológica não é algo espontaneamente natural, mas uma inovação do pôr teleológico, uma  
nova essência que assinala o fato de que a reprodução social é a reprodução incessante do novo  
a partir do recém criado. Tem-se, pois, inéditos elementos no campo da individualidade,  
produtora e produzida, e um novo campo da totalidade social do gênero humano, em constante  
reprodução que sempre aponta para o social.  
Libertas, Juiz de Fora, v. 24, n. 1, p. 251-263, jan./jun. 2024. ISSN 1980-8518  
A fundamentação dos direitos humanos: tradições teóricas e aproximação ontológica  
A categoria do trabalho como atividade produtiva e autoprodutiva, nesse contexto, é a  
essência do ser social. O trabalho ascende à categoria ontológica fundante a partir da série de  
elementos que reúne e que compõem o cerne das funções mais determinantes dessa instância  
do ser (Lessa, 2012). O trabalho dá origem a um ciclo de inovações de necessidades que fazem  
da realidade social um contexto fluido, o qual se altera e se complexifica na medida em que o  
ser humano age. Esse quadro referencial tem como consequência que “aquilo que emerge como  
a “essência da natureza humana” não é o egoísmo, mas a socialidade (isto é, “o conjunto” das  
relações sociais” [...])” (Mészáros, 2016, p. 136).  
Essa socialidade mediada, determinada pela atividade produtiva, essa continuidade no  
fluxo do ser social, está implicada pelo caráter reflexivo da relação homem e natureza,  
inicialmente direcionada para a satisfação de necessidades primárias, naturais, básicas, que  
torna a produzir novas necessidades, cada vez mais “humanizadas”. O indivíduo e o produto do  
seu trabalho são momentos de um mesmo conjunto dialético e, assim, a produção inicial de  
meios para a satisfação das necessidades, o “primeiro ato histórico” (Marx; Engels, 2007), cria  
novas necessidades que não dadas na constituição biológica, necessidades propriamente sociais  
(Heller, 1986).  
Nesse aspecto, Heller (1986) considera que na dinâmica de um corpo social, a primazia  
é do momento da produção, vez que é ela que cria novas necessidades, assim como essa criação  
de necessidades se encontra em correlação com as já existentes. Essa tendência de objetivação  
e criação de necessidades indica, pois, o seu caráter ativo. Necessidades implicam ação,  
atitudes, o que, consequentemente, faz com que a capacidade para a atividade concreta seja uma  
das maiores necessidades do ser humano (Heller, 1986).  
261  
Ato contínuo, tendo o trabalho como categoria fundante, por sua vez conduzido pela  
satisfação de necessidades, apreende-se um quadro referencial para os direitos humanos que os  
afasta da racionalidade formalista, calcada em critérios de existência, validade e eficácia  
jurídicas, e também da racionalidade abstrata jusnaturalista e liberal, que abstrai dos sujeitos  
suas necessidades e os coloca como sujeitos de interesse (Heller, 1986) ou de preferências  
(Hinkelammert, 2006). Tem-se, pois, que os interesses e as preferências estão, antes,  
subordinadas à satisfação de necessidades. Nas palavras de Hinkelammert (2006, p. 46,  
tradução nossa), “Como o sujeito antecede a seus fins, o circuito natural da vida antecede ao  
sujeito”, sendo o ser humano não um sujeito com necessidades, mas um sujeito necessitado,  
condicionado à submissão seus fins e preferências à inserção da sua atividade (auto)produtiva  
no circuito natural da vida social.  
Em vista disso, as categorias que embasam o quadro de referência ontológico da  
Luís Guilherme Nascimento de Araujo; Clovis Gorczevski  
filosofia do direito e dos direitos humanos são sustentadas a partir dos traços fundamentais do  
ser social que somente se realizam nas relações entre os indivíduos e a natureza, mediadas pela  
atividade produtiva. Assim sendo, compreende-se que os direitos humanos, desde uma  
aproximação ontológica, podem ser apreendidos como uma categoria que aponta para além dos  
limites do jurídico. Fundada, portanto, na busca por condições de dignidade, individual ou  
coletiva, condicionada pela satisfação de necessidades socialmente constituídas, em face de  
estruturas produtivas historicamente estabelecidas.  
Considerações finais  
A teoria dos direitos humanos sofreu com reducionismos a partir das perspectivas mais  
consagradas para sua fundamentação, seja pelo prisma do formalismo positivista, seja pela  
abstração do idealismo liberal individualista. As tradições europeia, anglo-saxã e, junto desta,  
a norte-americana, conformam-se, assim, como as principais fontes desses reducionismos que  
acabaram se desenvolvendo por caminhos que somente dificultaram o vislumbre de saídas e  
soluções para a clivagem notoriamente existente entre os discursos e as práticas em sede de  
direitos humanos.  
Diante desse contexto, buscou-se, neste trabalho, abordar essas tradições com foco nas  
suas limitações e, ato contínuo, apresentar perspectivas desde uma mirada ontológica.  
Compreende-se, assim, que uma filosofia de base ontológica tem a contribuir no evolver de  
práticas que apreendem a complexidade das demandas de direitos humanos e permite toma-los  
como uma categoria dotada de processualidade e historicidade próprias. As categorias  
fundantes e mais essenciais do ser social, portanto, constituem-se como um quadro referencial  
rico para a superação da abstração dos direitos humanos, calcando-se na natureza  
automediadora e socializada do ser humano como ponto exordial para a constituição de  
estruturas teóricas e institucionais capazes de satisfazer necessidades constantemente  
complexificadas pela prática histórica.  
262  
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Socialização da política versus privatização do  
Estado: elementos para reposicionar a democracia  
em tempos de crise orgânica – representação e  
representatividade  
Socialization of politics versus privatization of the State: elements to  
reposition democracy in times of organic crisis – representation and  
representativeness  
Bárbara T. Sepúlveda*  
Miriam Krenzinger**  
Resumo: Propomo-nos nesse artigo a questionar  
as formas políticas existentes no Brasil. Buscou-  
se problematizar, assim, em que medida a  
representação político-partidária sob uma  
sociedade periférica, estruturada a partir de uma  
lógica colonialista, escravista e sexista, logra  
alcançar os grupos subalternos, com destaque  
para as mulheres negras, que se constituem como  
avesso do sujeito que historicamente ocupa esse  
lugar, o homem branco. Tal cenário complexifica-  
se na contemporaneidade, tendo em vista o  
rearranjo no mundo capitalista em virtude da crise  
que se coloca a partir da década de 1970, que no  
Brasil significará a negação das conquistas  
constitucionais de 1988, ocasionando uma  
descrença na política, uma crise de representação  
que se soma a crise econômica. Trata- se de uma  
pesquisa bibliográfica, em que se faz uso de  
algumas categorias gramscianas. Nossa hipótese é  
que as demandas por representatividade espelham  
as lutas em torno da democratização da sociedade  
e do Estado brasileiro.  
Abstract: In this article, we propose to question  
existing political forms in Brazil. We sought to  
problematize, therefore, to what extent political-  
partisan representation in a peripheral society,  
structured based on a colonialist, slave and sexist  
logic, manages to reach subaltern groups, with  
emphasis on black women, who constitute  
themselves as the opposite of the subject who  
historically occupies this place, the white man.  
This scenario becomes more complex in  
contemporary times, given the rearrangement in  
the capitalist world due to the crisis that emerged  
from the 1970s, which in Brazil will mean the  
denial of the constitutional achievements of 1988,  
causing disbelief in politics,  
a
crisis of  
representation that adds to the economic crisis.  
This is a bibliographical research, in which some  
Gramscian categories are used. Our hypothesis is  
that the demands for representation mirror the  
struggles surrounding the democratization of  
society and the Brazilian State.  
Palavras-chaves: Estado; Socialização da  
política; Formação social brasileira; Mulher  
negra.  
Keywords: State; Socialization of politics;  
Brazilian social formation; Black woman.  
* Assistente social, doutora em Serviço Social, professora do curso de Serviço Social da Universidade Estadual de  
** Assistente social, doutora em Serviço Social, professora do curso de Serviço Social da Universidade Federal do  
DOI: 10.34019/1980-8518.2024.v24.41730  
Esta obra está licenciada sob os termos  
Recebido em: 30/07/2023  
Aprovado em: 15/04/2024  
Socialização da política versus privatização do Estado: elementos para reposicionar a democracia em  
tempos de crise orgânica representação e representatividade  
Introdução  
A mulher negra brasileira tem sido historicamente representada a partir das figuras da  
doméstica, mãe preta ou mulata1, apresentando uma maior dificuldade em ocupar os espaços  
públicos a partir de outro lugar, como é o caso da política institucional, evidenciando as  
particularidades de uma experiência racializada do gênero. Por outro lado, a crescente  
organização desses sujeitos, em coletivos, ONGS, associações de bairro, as têm qualificado, de  
forma a deslocar a norma, que celebra a política institucional como lugar do homem branco.  
Entende-se que o acesso das mulheres negras à política institucional acaba por responder  
a necessidade genuína de formulação de políticas públicas inclusivas, pela quebra do monopólio  
político decisório, que não alcança os descendentes mais diretos de um sistema colonial  
reprodutor de desigualdades. Nesse espaço, oferecem um olhar singular, justamente por sua  
condição marginal, uma espécie de forasteira, nos moldes daquilo que aponta Collins (2016),  
no que diz respeito às intelectuais negras nas Universidades norte-americanas. Sua presença  
ainda implica na quebra de estereótipos funcionais a uma sociedade estruturada sob o racismo,  
das imagens construídas para nós. A democratização da sociedade brasileira passa, sob esse  
prisma, pela representatividade, como aspecto mesmo de uma representação partidária  
renovada, tendo como norte o projeto em que se pauta a Constituição de 1988, a expansão dos  
direitos de cidadania a uma população frequentemente ignorada, a possibilidade de ampliação  
do Estado brasileiro.  
265  
Tendo em vista esse horizonte, organizamos o presente artigo em três seções, além dessa  
introdução e das considerações finais.  
Na primeira delas, intitulada Sociedade Civil, emancipação e socialização da política,  
recorremos às formulações de Gramsci (2017), a fim de apreender algumas das mediações  
necessárias para compreensão do desenvolvimento e das mudanças no funcionamento do  
Estado moderno; mas também o processo pelo qual se torna permeável às classes e grupos  
subalternos, o que o autor chamará de Estado Ampliado. Além da questão da classe, pontua-se  
a importância de consideramos, na formulação de uma teoria do Estado e das lutas para sua  
ampliação, a questão racial e o sexo/gênero.  
Na segunda seção, Os limites do Estado Ampliado no Brasil, problematiza-se o  
processo de ampliação do Estado brasileiro, entendendo que há particularidades que devem ser  
levadas em conta, particularidades essas que respondem à sua formação sócio-histórica, à  
economia e às formas políticas correspondentes. Nesse sentido, pontua- se o que caracterizaria  
1 Para saber mais, ler Lélia Gonzalez- Racismo e Sexismo na Cultura Brasileira (1984).  
Bárbara T. Sepúlveda; Miriam Krenzinger  
o Brasil, seu desenvolvimento capitalista, a mudança de chave com a constituição de 1988 e a  
guinada neoliberal na década de 1990.  
Na última seção, Crise orgânica, representação e representatividade, parte-se da  
análise da crise econômica e política que se instaura no Brasil, para se problematizar os limites  
de nossa democracia e a necessidade de renovação dos sentidos da representação político-  
partidária, tendo em vista sua constituição historicamente elitista, o que só aprofunda os  
processos de privatização do Estado. Retoma- se a atuação das mulheres negras em prol do  
projeto democratizante, entendendo que tal projeto, alinhado à Constituição de 1988, não se faz  
sem a devida abertura do Estado brasileiro aos grupos historicamente excluídos da política  
institucional: a representação que não se faz sem representatividade.  
Sociedade civil, emancipação e socialização da política  
Na abordagem marxiana do Estado a dimensão fundamental a se considerar é a ideia de  
que a produção seja o núcleo central da vida social. Uma economia determinada pela lógica de  
produção burguesa assumirá as particularidades dessa configuração, também no que se refere  
às formas políticas adotadas pela sociedade, garantindo-lhe sustentação. Essas definições,  
inicialmente jurídicas, para se materializarem de fato, tornaria necessário a adoção da repressão  
e o emprego da violência, que no Estado encontra respaldo oficial e legal. Vê-se dessa forma o  
desenvolvimento de todo um aparato burocrático e repressivo que dará corpo a esse Estado, no  
intuito de preservar as relações econômicas (Behring e Boschetti, 2011).  
266  
A novidade que Gramsci (2017) traz para essa análise é o peso que dá a política, tanto  
quanto Marx deu às relações econômicas. O cuidado, nesse caminho, tal qual adverte Coutinho  
(2010), é não o associar a um politicismo vulgar (a política não está acima da economia), mas  
entender as particularidades históricas que levam o autor dos Cadernos do Cárcere a buscar  
outro caminho.  
A economia segue sendo determinante em Gramsci (2017), uma vez que a existência de  
classes antagônicas, representadas pela burguesia e proletariado, condiciona a de governantes  
e governados, já demonstrado o caráter classista do Estado. Mas a novidade aqui está na  
ampliação daquilo que chamou de sociedade civil, a partir do processo de socialização da  
produção, que levou a uma maior liberdade e recuo das barreiras naturais e econômicas; ganhos  
reais em termos de autonomia, inclusive para os que, até então, viam-se excluídos das decisões  
políticas, essas também gradualmente socializadas (Coutinho, 2010). Há, nesse sentido, uma  
relação direta a se observar:  
Libertas, Juiz de Fora, v. 24, n. 1, p. 264-281, jan./jun. 2024. ISSN 1980-8518  
Socialização da política versus privatização do Estado: elementos para reposicionar a democracia em  
tempos de crise orgânica representação e representatividade  
Quanto mais se ampliar a socialização da política, quanto mais a sociedade  
civil for rica e articulada, tanto mais os processos sociais serão determinados  
pela teleologia (pela vontade coletiva organizada) e tanto menos se imporá a  
causalidade automática e espontânea da economia (Coutinho, 2010, p. 99).  
Aqui, embora a burguesia siga operando o Estado, sua atuação passa pelo crivo de uma  
sociedade civil amadurecida pelos processos de socialização da política. Não há o automatismo  
que levou Marx a designação do Estado como comitê a executar a vontade da burguesia, isso  
em virtude do desenvolvimento histórico, das mudanças e mediações operadas no interior da  
sociedade burguesa.  
Ao componente dinâmico da produção, que no transcurso do seu desenvolvimento  
forçaria a progressiva diminuição do trabalho necessário e em decorrência disso, maior  
liberdade para a atuação humana; Gramsci (2017) adiciona ainda a própria natureza da  
burguesia, a revolucionar a função do Estado. Isto porque, ao contrário das classes precedentes,  
essencialmente conservadoras (no sentido de não buscar assimilar as demais), a burguesia põe  
a si mesma como em eterno movimento, como que capaz de assimilar a todos, ideológica e  
economicamente.  
O seu Estado é, nesse sentido, um Estado educador. Ideais como igualdade e liberdade,  
assim como uma moral burguesa e o próprio Direito, chegam ao conjunto da sociedade, que a  
burguesia espelha. Tais valores passam a compor o Estado, manifestos, tal qual apontam  
Demier e Gonçalves (2017), na forma política democracia liberal representativa, que nasce e se  
desenvolve conforme floresce o próprio capitalismo.  
267  
A política a ser operada nessa configuração de Estado implica num tipo de consenso,  
sem o qual o Estado moderno perde legitimidade (notadamente nas sociedades que Gramsci  
(2017) chama ocidentais)2, ainda que, no esforço de garantir sua dominação, a burguesia lance  
mão daquele Estado restrito, coercitivo.  
Tem-se dessa forma a distinção de “dois momentos da articulação do campo estatal: o  
Estado em sentido estreito (unilateral), e o Estado em sentido amplo, dito integral” (Buci-  
Glucksmann, 1980, p. 127). O primeiro identifica-se com o governo, com as funções  
burocráticas, administrativas e propriamente coercitivas, como o exército, a polícia, os  
tribunais, etc. O segundo, “a tomada em consideração do conjunto dos meios de direção  
intelectual e moral de uma classe sobre a sociedade, a maneira como ela poderá realizar sua  
hegemonia” (p. 128), que encontra expressão na sociedade civil, em escolas, igrejas, jornais, e  
2 Não se refere a uma questão geográfica, mas ao próprio desenvolvimento da sociedade civil. Dessa forma, nas  
sociedades tidas como orientais, o Estado era tudo, a sociedade civil pouco se desenvolvera, enquanto as ocidentais  
experimentaram seu adensamento e complexificação.  
Bárbara T. Sepúlveda; Miriam Krenzinger  
outros equipamentos, que Gramsci (2017) chamará de aparelhos privados. Desses dois  
momentos inseparáveis tem-se a fórmula gramsciana: Estado = ditadura + hegemonia.  
Vê-se dessa forma, que na perspectiva gramsciana do Estado, a dominação dos aspectos  
propriamente políticos- coercitivos por parte da burguesia são insuficientes. A garantia das  
condições ótimas para a exploração capitalista viria requerer dela a capacidade de elevar seu  
projeto político particular ao lugar de um projeto político nacional, ou dito de outra forma, “que  
apresentasse os seus interesses particulares como os interesses gerais da nação” (Demier e  
Gonçalves, 2017, p. 18), dirigindo-a também ideologicamente a partir da sociedade civil.  
Embora a burguesia detenha melhores condições de exercer hegemonia sobre o conjunto  
da sociedade, que ativa ou passivamente passa a compartilhar de seus projetos e visões de  
mundo, não foi capaz de impedir a ocupação do Estado por outros grupos, que não se deixaram  
assimilar e/ou cooptar, e para os quais a coerção também apresentou limites (quando o fascismo  
aberto não é opção). Esse Estado “ocupado” seria gradualmente absorvido pela sociedade civil,  
quando sua expressão político-coercitiva deixará enfim de existir, dando vida ao que Gramsci  
(2017) chama de Sociedade Regulada.  
A classe, aqui o lugar que se ocupa na produção (se detentor dos meios de produção ou  
se vendedor da sua força de trabalho), é central na análise marxista do Estado. Contudo, é  
preciso que nos atentemos a outras lógicas de dominação e opressão que se fazem presentes na  
sociedade, e pelas quais também se constituiu o Estado moderno. Destacam-se, nesse sentido,  
a raça e o sexo/gênero.  
268  
A compreensão de um Estado, que para além de burguês, também se constitui pela  
branquitude, é dada pela noção de um contrato racial, algo como um conjunto de acordos  
formais ou informais mantidos entre os membros brancos (extensivo às mulheres desse grupo  
racial) a fim de categorizar a população não branca como inferior, subpessoas, de modo que se  
justifique ocupar “posição civil subordinada em regimes políticos brancos ou governados por  
brancos, que os brancos já habitam ou estabelecem, ou em transações com esses regimes na  
condição de estrangeiros[...]”. O Estado ocidental, no qual generalizam- se as noções de  
cidadania, emancipação e socialização da política, ainda é esse mesmo Estado, embora se  
silencie quanto seu fundamento racial. Busca, sobretudo, um privilégio diferencial dos brancos  
enquanto grupos em relação aos demais3 (Mills, 2023, p. 43).  
Já na esfera do sexo/gênero, a fundação do Estado ocidental incorporou uma separação  
entre a esfera pública e a esfera privada, assumindo uma configuração jurídica e institucional  
3
É importante lembrar que, embora nem todas as pessoas brancas estejam conscientes desse pacto, todas são  
beneficiarias dele.  
Libertas, Juiz de Fora, v. 24, n. 1, p. 264-281, jan./jun. 2024. ISSN 1980-8518  
Socialização da política versus privatização do Estado: elementos para reposicionar a democracia em  
tempos de crise orgânica representação e representatividade  
apoiada em valores tidos como masculinos (Sacchet, 2012). Tanto quanto no contrato racial,  
essa espécie de contrato sexual também é frequentemente escamoteada nas teorias que se  
ocupam de debatê-lo. Segundo Pateman (2023), o contrato sexual seria o meio pelo qual os  
homens transformam seu direito “natural” sobre as mulheres, de um período pré-moderno, em  
direito patriarcal civil, agora na forma da lei (quem vota; quem pode ser proprietário; quem  
responde por si).  
O Estado moderno, conforme vemos, tem um fundamento classista, racista e sexista.  
Mas ao fundar uma ordem secular, de um poder que emana dos homens, acabou por fornecer  
meios de questionamento, de busca por uma situação que não é, mas que poderia ser.  
Trabalhadores, negros e mulheres, ao se apropriarem desses discursos, encaparão lutas em favor  
da radicalização da democracia, e de uma igualdade de fato.  
Em Marx (2010) entendemos a secularização como fundamento próprio da emancipação  
política, e esta, como aspecto essencial da construção da cidadania moderna, falando mais  
especificamente da Europa. Embora se trate de um processo limitado, dentro da ordem vigente,  
é passo intransponível na realização da emancipação humana. Assim, segundo o autor;  
A dissociação do homem em judeu e cidadão, em protestante e cidadão, em  
homem religioso e cidadão, essa dissociação não é uma mentira frente a  
cidadania, não constitui uma forma de evitar a emancipação política, mas é a  
própria emancipação política, ela representa o modo político de se emancipar  
da religião (Marx, 2010, p. 42).  
269  
E dessa forma a religião deixa de ser o espírito do Estado, agora um Estado político, de  
cidadãos genéricos, um Estado terreno, passível de lutas praticas. Lembremos, o Estado  
medieval tinha por base o direito divino, sociedades rígidas e fechadas. O que ocorre com a  
emergência do Estado moderno é justamente um deslocamento dessa base, por um processo de  
desenvolvimento das relações econômicas (a própria ascensão da burguesia), que se estenderia,  
nas palavras de Bobbio (1987, p. 50) “para além do governo da casa, de um lado, e do aparato  
dos poderes públicos, de outro”.  
A cidadania decorre, assim, de uma ideia de igualdade, sem a qual o Estado moderno e  
a democracia liberal representativa, como sua organização e expressão política, não teria se  
erguido. A tradição marxista demonstrou, porém, os fundamentos da constituição dessa forma  
política: a propriedade capitalista. Suas leis e instituições reduzem-se a aparência por trás das  
quais a burguesia exerce poder. O que aconteceu, a despeito dos interesses dessa classe, é que  
“as lutas contra essas aparências tornou-se então a via para uma democracia real” em que a  
igualdade e a liberdade seguiriam “encarnadas nas próprias formas de vida material e da  
experiência sensível”, não mais mera aparência (Rancière, 2014, p. 9).  
Bárbara T. Sepúlveda; Miriam Krenzinger  
É a sociedade civil, composta por uma série de instituições (os aparelhos privados de  
hegemonia), tais como partidos políticos, associações, sindicatos, jornais, dentre outros, o que  
logra forçar uma maior democratização da sociedade, uma vez aceita a natureza mundana-  
secular do Estado, e decretada a igualdade, ainda que formal, entre os homens (sua emancipação  
frente a esse Estado, sua cidadania). Assim, a socialização da política estaria relacionada  
justamente a possibilidade de tematização de questões e propostas a partir dos vários  
instrumentos existentes na sociedade civil e a expectativa de que tomem a forma de uma lei,  
direito ou serviço a partir do Estado.  
Um exemplo, nesse sentido, é dado por Rancière (2014). Diz respeito às lutas em torno  
do salário, que se deram no intuito de demonstrar que não se tratava de algo circunscrito a  
relação senhor e servo, patrão e empregado, e, portanto, privado, mas uma questão a ser  
regulada pelo Estado. Como esse, outros também passam a ser tematizados, envolvendo não  
somente o reino da produção, mas o voto feminino, questões de sexualidade, educação, saúde,  
meio ambiente, raça. Não por acaso o autor identifica o que chama de novo ódio à democracia,  
essa que se quer real demais, e o respectivo esforço de reapropriação que as oligarquias  
empreendem na tentativa de repor o poder ora perdido, em meio a ampliação da esfera do  
público.  
Ao também se voltar para essa ampliação, Bobbio (1987, p. 51) demonstra como no  
processo de emancipação dos sujeitos e da sociedade em relação ao Estado, e sua organização  
na sociedade civil, seguiu-se, um caminho inverso, algo próximo de uma reapropriação desse  
Estado pela sociedade. O Estado que, sobretudo no século XX, avança no sentido das garantias  
sociais, mal se distinguiria “da sociedade subjacente que ele invade por inteiro através da  
regulação das relações econômicas”, mas a muito não se restringindo a elas. Completa o autor:  
270  
Observou-se, de outra parte, que a este processo de estatalização da sociedade  
correspondeu um processo inverso mas não menos significativo de  
socialização do Estado através do desenvolvimento das várias formas de  
participação nas opções políticas, do crescimento das organizações de massa  
que exercem direta ou indiretamente algum poder político, donde a expressão  
“Estado Social” pode ser entendida não só no sentido de Estado que permeou  
a sociedade mas também no sentido de Estado permeado pela sociedade  
(Bobbio, 1987, p. 51).  
Bobbio (1987) defende a impossibilidade de uma conclusão. Estado e sociedade civil  
atuariam como dois momentos necessários, distintos, mas interdependentes. Ainda que partindo  
do pensamento gramsciano, acaba assumindo limitações conceituais e políticas. Ignora o  
conteúdo revolucionário dado pela Sociedade Regulada, quando o Estado, em sua expressão  
restrita, seria absorvido pela sociedade civil, dando fim ao dilema que propõe. Também não  
Libertas, Juiz de Fora, v. 24, n. 1, p. 264-281, jan./jun. 2024. ISSN 1980-8518  
Socialização da política versus privatização do Estado: elementos para reposicionar a democracia em  
tempos de crise orgânica representação e representatividade  
presenciou a onda conservadora que, pós-década de 1970, volta-se justamente contra esse  
Estado social.  
Há mais alguns pontos a se considerar. Um Estado Social ou uma eventual socialização  
do Estado, não foi um fenômeno generalizável ao conjunto dos países capitalistas. Mesmo suas  
formas conhecidas, representadas no Welfare State europeu, dependeu da reunião de certas  
condições, numa conjuntura histórica específica, e não foram capazes de destituir o caráter de  
classe desse Estado. Tal qual advertem Demier e Gonçalves (2017, p. 23):  
ainda que sua existência só tenha sido alcançada por meio de décadas e  
décadas de lutas dos trabalhadores pela efetivação de direitos sociais, civis e  
políticos, a democracia representativa, enquanto uma das formas políticas  
assumidas pelo Estado capitalista, não deixa de ser, nunca, uma forma de  
dominação política do capital sobre o trabalho.  
Os limites e as potencialidades dessas lutas não estão dadas a priori, mas constroem-se  
na realidade concreta e na história. São nesses termos que se torna compreensível o quão  
socializada a política é, e como isso impacta na construção de um Estado mais ou menos  
permeado pela sociedade civil e, nesse caminho, aberto a ação dos grupos subalternos.  
Os limites do "Estado Ampliado" no Brasil  
Nas Veias Abertas da América Latina, Galeano (2000) lembra o massacre impetrado  
pelos colonizadores europeus contra os povos nativos nessa porção do planeta. Cavalos e  
bactérias teriam sido responsáveis pela morte de milhões. Aqueles que resistiram seriam  
subjugados pelo “casamento” da cruz com a espada, respectivamente igreja católica e Estados  
colonizadores, os quais marcharam juntos no saque às riquezas da América.  
271  
O tráfico negreiro, muito lucrativo, acabaria por suplantar a servidão indígena, ao que a  
“descoberta” por parte da igreja de que o “índio”, na verdade, tinha alma, contribuiu bastante.  
Dessa forma, milhões de africanos são sequestrados e trazidos ao continente como mão de obra  
escravizada, compondo o quadro geral que alimentou, substancialmente, o desenvolvimento da  
Europa, não nos esquecendo de todo o terror, a violência e o racismo característicos.  
Não é possível entender a realidade política e a estruturação do Estado brasileiro sem  
que entendamos sua inserção nos processos de dominação e exploração colonial a que esteve  
sujeita a América Latina, na alvorada capitalista. E esse movimento implica em ao menos dois  
processos fundamentais, que correm conectados: o primeiro corresponde aos recursos gerados  
pela exploração das colônias, que financiariam mais tarde o estabelecimento de manufaturas, e  
a própria revolução industrial. O segundo, por outro lado, nos mostra como tal exploração  
acabou impedindo que as regiões saqueadas também se industrializassem, passando a meros  
Bárbara T. Sepúlveda; Miriam Krenzinger  
fornecedores de produtos primários. Fosse ouro, prata, açúcar, ou outro qualquer, a economia  
colonial estruturou- se em função das necessidades do mercado europeu e a seu serviço, o que  
se mostrou algo difícil de ser superado, mesmo após o fim da era colonial (Galeano, 2000).  
Uma burguesia que se molda aos interesses estrangeiros dará vida a Estados igualmente  
orientados a partir de fora. O liberalismo, e o conjunto de leis e práticas políticas  
correspondentes, chegam ao continente como que filtrados, o que dificulta mesmo os ganhos  
restritos experimentados pelos trabalhadores europeus, sobretudo no que se refere à  
generalização da ideia de cidadania, a igualdade que serve de base ao Estado moderno. Não há  
emancipação política em territórios que convivam com a escravidão (a desigualdade é sua base),  
em meio a sociedades fechadas; o desenvolvimento da sociedade civil fica igualmente  
comprometido sem que a produção seja socializada, sem terra e sem indústria.  
Fernandes (2006), ao tratar especificamente do Brasil, mostra como tal realidade  
implicou num tipo de deformação do regime de classes, pela formação de uma sociedade  
altamente segregada, social e racialmente. O esforço de superar o ranço colonial esbarraria  
assim numa condição estrutural: nosso escravismo tardio, expressão cunhada por Moura,  
(2019), conformou instituições e práticas do Estado; mobilizou ideologicamente, através do  
racismo, a própria sociedade brasileira. Por outro lado, a dependência externa se refletiria na  
dificuldade de se construir relações mais equânimes com os países industrializados, e um  
projeto autônomo de desenvolvimento.  
272  
Um padrão de dominação autocrático, num contexto de não generalização da igualdade,  
levaria negação dos conflitos sociais, e uma deslegitimação dos movimentos e demandas dos  
“de baixo”, operando a perpetuação de uma rígida estrutura social, funcional ao capitalismo  
dependente (Fernandes, 2006). Aquela tematização e/ou publicização das condições de vida e  
trabalho vivenciada pela população, própria dos processos de socialização da política, é, nesse  
sentido, abafada. O Estado opera assim segundo uma lógica privada, a partir da ideologia do  
mando e do favor, e, portanto, da subordinação, do arbítrio cenário em que florescem os  
coronéis, latifúndios e “carteiradas”.  
No trato da questão racial, esse Estado, como demonstra Ferreira (2000), viabilizará  
todo um aparato coercitivo, não somente a partir de regulações, mas pela criação de espaços  
propriamente ditos e alvos específicos, no exercício do monopólio da violência. A autora  
lembra os açoites no pelourinho, as torturas e execuções, a perseguição aos capoeiristas (sob a  
desculpa da vadiagem), e às religiões de matriz africana. Raça ainda se faz presente na  
estruturação do Estado brasileiro nas manobras ideológicas que lograram naturalizar o lugar  
dos homens e mulheres negras: O branqueamento e democracia racial. Nega-se o racismo,  
Libertas, Juiz de Fora, v. 24, n. 1, p. 264-281, jan./jun. 2024. ISSN 1980-8518  
Socialização da política versus privatização do Estado: elementos para reposicionar a democracia em  
tempos de crise orgânica representação e representatividade  
imputa-se aos próprios negros a responsabilidade pela precariedade em que vivem, ao mesmo  
tempo em que se acusa as vozes destoantes de radicais.  
Pontua- se que essas formas autoritárias de se fazer política no Brasil não representam  
a ausência e/ou fraqueza de mobilização e luta popular. Registram-se na história do país  
inúmeras revoltas e insurreições; dentre escravizados, fugas, rebeliões, quilombos, formas de  
resistência que se contrapõe a ideia da passividade das camadas populares. Uniam-se e  
investiam energia nas suas próprias organizações, fora da esfera do Estado (Velloso, 1990), o  
que evidencia novamente nossa particularidade diante do modelo de revolução burguesa  
realizada na Europa, com operários, cidadãos frente ao Estado, organizando-se a partir de  
grandes partidos, greves, etc. algo que no Brasil só ocorrerá no século XX.  
Na análise realizada por Coutinho (2010), a particularidade da formação social e política  
brasileira torna-se compreensível à luz da categoria gramsciana de Revolução Passiva. Nesse  
tipo de configuração, ao mínimo lampejo de uma vontade popular organizada, uma reação das  
classes dominantes força uma restauração, com a devida exclusão das forças populares, ao que  
se segue alguma renovação, sempre dentro da ordem. Essa espécie de forma elitista e  
antipopular de desenvolvimento capitalista marcaria todo nosso processo histórico,  
perpetuando, com poucas variações, os mesmos grupos no poder, ao passo que demais estratos  
da sociedade, ao que acrescentamos: os descendentes mais diretos do sistema colonial e  
escravista permanecem fora dele.  
273  
Iamamoto (2008) adota como caminho para a compreensão dos processos de  
desenvolvimento do Brasil, a noção de modernização conservadora. Nela, o novo emerge sem  
que o velho seja superado. Ao contrário do que algumas análises de ordem marxistas poderiam  
prever, por aqui a modernização capitalista se fez a despeito da ausência de uma revolução  
burguesa “clássica”. O latifúndio pré-capitalista e a dependência externa adéquam-se,  
conformam-se ao novo padrão. O primeiro transforma- se em empresa capitalista agrária, o  
segundo, sob um cenário de internacionalização, acaba por contribuir para uma maior  
urbanização e mais complexa estrutura social.  
Demier (2012), como Coutinho (2010), também se inspira no autor sardo. Apresenta o  
que chama de via bonapartista no desenvolvimento do país, o que teria garantido, por um  
percurso, o qual define como sinuoso, errático e intrinsecamente contrarrevolucionário, nossa  
modernização capitalista. Isso a partir da sucessão de regimes políticos cujo resultado foi a  
transformação do Brasil em uma sociedade de massas, ainda que profundamente desigual e  
combinada.  
Bárbara T. Sepúlveda; Miriam Krenzinger  
A ação desses regimes políticos afirma, em última análise, a primazia do Estado como  
motor da modernização brasileira, não a burguesia. Aliás, ponto comum entre os três autores.  
A modernização do país envolve ainda a imposição de certos padrões de conduta e valores  
culturais tidos como universais. Esse Estado promotor, destaca-se, era um Estado europeizado.  
Não nos esqueçamos assim de demarcar o não lugar de negros, nordestinos e outros grupos  
(Velloso, 1990). O Brasil moderno havia de ser branco.  
A maturação de nossa sociedade civil dar-se-á sob a ditadura civil militar que toma o  
poder a partir de 1964. Paradoxalmente, a atitude coercitiva do Estado brasileiro, num momento  
de aprofundamento e modernização do capitalismo, em sua face monopolista, forneceu as  
condições de emergência de quadros políticos combativos (Coutinho, 2010). Era necessário  
ampliar a produção industrial, as comunicações, a pós-graduação e uma infinidade de outras  
áreas. Constituíram- se novos intelectuais, renovados aparelhos privados de hegemonia.  
Tornamo-nos uma sociedade ocidental.  
Os anos de 1980 e a redemocratização trouxeram a possibilidade histórica de mudança.  
Vislumbrou-se, a partir de então, condições internas favoráveis para a minoração de nosso  
autoritarismo social, expressão de Dagnino (2004) - de uma dinâmica naturalizada de negação  
do direito. A irrupção na cena política de sujeitos coletivos, com a tematização de questões  
tornadas fundamentais (saúde, moradia, proteção à infância, direito de minorias, etc.) forçaram  
a abertura do Estado brasileiro. A criação dos conselhos de direito e de política, das  
conferências, previstas na nova Constituição, e mais tarde, as experiências de orçamento  
participativo, ampliaram os sentidos da nossa democracia, para além da lógica restrita do voto.  
Uma linguagem de direitos fora, nesse sentido, instaurada, o que lembramos, nos  
marcos do capitalismo não garante igualdade real. Como Gramsci (2017) alerta na sua crítica  
aos utopistas, leis arbitrárias não teriam tal poder. O que vemos surgir é um novo pacto social,  
uma inflexão na cultura política brasileira, capaz de imprimir uma nova racionalidade: o direito  
a ter direitos. A superação de uma relação entre o Estado e as demandas populares, estabelecida  
a partir da “recorrente exclusão da participação popular nos processos de decisão política”  
(Durigueto, Souza e Silva, 2009, p. 14).  
274  
Certo que o conflito não poderia mais ser negado. Nenhuma restauração daria conta de  
anular os efeitos das lutas populares que explodiram naquele período, isto por que, elas  
conquistaram uma base material própria, autônoma, entre antigas e novas instituições da  
sociedade civil. A partir delas, novos consensos foram criados, alinhados aos interesses dos  
trabalhadores, das mulheres, negros, crianças, população LGBTQIAP+, entre outros, forçando  
a ampliação do Estado brasileiro. Contudo, é preciso lembrar a emergência do projeto  
Libertas, Juiz de Fora, v. 24, n. 1, p. 264-281, jan./jun. 2024. ISSN 1980-8518  
Socialização da política versus privatização do Estado: elementos para reposicionar a democracia em  
tempos de crise orgânica representação e representatividade  
neoliberal, que avança no país na década de 1990, e que passa a disputar, inclusive  
ideologicamente, espaço com o projeto democratizante, construído na década anterior.  
O projeto neoliberal tem implicado em perdas significativas no campo da política, na  
lógica da participação, também no que tange aos direitos de cidadania, agindo, segundo Braga  
(1996), no sentido de passivação do Estado, que perde suas funções reguladoras, em benefício  
do Mercado. O conjunto de ideais e valores sobre os quais se expandiu a lógica do direito,  
expresso na Constituição de 1988, passa agora a conviver com a defesa do enxugamento do  
Estado, tese disseminada entre os vários aparelhos privados atrelados à burguesia, nacional e  
internacional, para quem “a multiplicidade das demandas acerca dos serviços e gastos públicos  
inflaciona e sobrecarrega o sistema político” (Durigueto, 2008, p. 90). Tendo em vista as  
questões de ordem estrutural que recaem sobre a população negra brasileira, esta acaba por  
sofrer mais fortemente os impactos dos cortes e reformas regressivas efetuadas a partir desse  
ideário, frente a um Estado que encolhe.  
Crise orgânica, representação e representatividade  
As sociedades modernas, tipicamente ocidentais, segundo a tradição gramsciana,  
experienciaram a expansão da democracia, com suas variantes locais, como um fenômeno mais  
ou menos geral a partir do século XX. O modelo predominante fora, sobretudo, o da democracia  
liberal e/ou representativa, baseado no sufrágio universal, no parlamentarismo e na expansão  
da ideia de cidadania.  
275  
Demonstrado o caráter classista do Estado moderno, a representação igualmente não  
escapa a uma lógica historicamente elitizada- “uma representação das minorias que têm título  
para se ocupar dos negócios comuns”. Em países como o Brasil, marcado pelo colonialismo e  
escravidão, essa minoria corresponderia a um grupo restrito de homens pertencentes às classes  
mais abastadas, predominantemente brancas. Democracia e representação não são, assim,  
diretamente identificáveis, sobretudo se falamos de uma democracia real, não realizável na  
sociedade não igualitária (Ranciére, 2014, p. 69).  
O que Ranciére (2014) nos ensina é que aquilo que chamamos de democracia  
representativa, na verdade, compõe uma forma mista de funcionamento do Estado,  
fundamentada inicialmente no privilégio das elites “naturais”, e só depois desviada pelas lutas  
democráticas, o que aqui compõe o que viemos chamando de socialização da política. Tão  
pouco o sufrágio universal seria consequência natural da democracia. Nasceu da oligarquia, ao  
que acrescentamos o racismo e a misoginia inerentes, desviado pela luta democrática, pelos  
setores até então excluídos, mas perpetuamente reconquistado pela oligarquia. Votar, ser  
Bárbara T. Sepúlveda; Miriam Krenzinger  
votado, quando o que está em jogo são interesses destoantes dos dominantes (sejam assentados  
na classe, na raça, gênero ou qualquer outro) subverteu, na verdade, a lógica natural da  
representação, o que possibilitou conquistas reais para a população, direitos sociais amplos,  
comumente associados ao contexto europeu no pós-segunda guerra, e que alcança o Brasil, em  
certa medida, na década de 1980.  
Sob essa análise, uma eleição não garante que a voz do povo seja de fato ouvida, como  
se repete reiteradamente. Essa possibilidade, embora sempre limitada, estaria relacionada à  
capacidade desse povo- as classes e os grupos que a compõem- de se fazer representar,  
consideradas as condições históricas, econômicas e políticas, dadas estrutural e  
conjunturalmente.  
Na contemporaneidade, pós- crise do capital dos anos 1970, o que se verifica é  
justamente a limitação do uso democrático do sistema político, e aquelas conquistas,  
possibilitadas pelo avanço das lutas democráticas passam a ser atacadas. Há um recuo da  
democracia, que assume, para Demier e Durigueto (2017), a forma de uma democracia blindada  
aos interesses populares, em nome de se retomar e garantir as taxas de lucro.  
Embora eleições continuem a ocorrer, isto está longe de significar que os programas  
defendidos pelos candidatos vindos dos meios populares, quando vitoriosos, sejam  
implementados de fato, tanto em virtude dos limites da política interna e externa (dívida pública,  
restrições orçamentárias, pressões de organismos multilaterais), quanto pelo que os autores  
identificam como uma espécie de revezamento, em que dois blocos político- partidários, um  
conservador e outro composto por partidos do campo social democrata, assumem um programa  
contra reformista, de cunho neoliberal. No caso desses últimos, à revelia de um discurso  
alinhado às demandas populares, reduzido, na prática, às políticas públicas focalizadas na  
extrema pobreza e/ou programas sociais compensatórios.  
276  
Não estranhamente uma crise de representação, manifesta na distância, descrença e/ou  
apatia entre representantes e representados tem se colocado como mais um desafio, num cenário  
já tornado dramático pelo neoliberalismo, que solapa os sentidos da cidadania numa escala  
global, mas especialmente bárbaro na periferia. Há um clima geral de possibilismo, ao que tem  
acarretado a ressignificação e respectivo esvaziamento de valores democráticos. Soma-se à  
crise econômica, uma crise política, fenômeno descrito por Gramsci (2017) sob a rubrica da  
Crise Orgânica.  
Gramsci (2017) teorizou a Crise Orgânica como contexto em que a classe dirigente  
perde seu papel junto aos representados, embora siga dominante. O fato de se manifestar em  
meio a uma crise econômica prejudica a capacidade material dos grupos e classes articularem  
Libertas, Juiz de Fora, v. 24, n. 1, p. 264-281, jan./jun. 2024. ISSN 1980-8518  
Socialização da política versus privatização do Estado: elementos para reposicionar a democracia em  
tempos de crise orgânica representação e representatividade  
um novo projeto, que alcance e implique o conjunto da sociedade, ou seja, que se estabeleça  
uma hegemonia, abrindo uma lacuna, que pode vir a ser preenchida pelos que ele chama de  
homens providenciais ou carismáticos, por um tipo de equilíbrio estático, em que prevalece a  
imaturidade, tanto de progressistas como de conservadores. Acentua que:  
O processo é diferente em cada país, embora o conteúdo seja o mesmo. E o  
conteúdo é a crise de hegemonia da classe dirigente, que ocorre porque a  
classe dirigente fracassou em algum grande empreendimento político para o  
qual pediu ou impôs pela força o consenso das grandes massas (Gramsci,  
2017, p. 61).  
Para Gomes e Rojas (2017) há uma relação direta entre a agenda neoliberal, que se  
instaurou nos países da América Latina, e a estratégia de passivação do Estado, que implica na  
crise de representação. Dito de outra forma, a construção de contra tendências e busca de espaço  
para a valorização do capital, num contexto de crise econômica, se dá sob uma lógica da  
regressão social (o inverso de um Estado socializado). Ganham espaço o apelo e/ou retorno às  
instituições tradicionais; o que mais tem de atrasado e conservador em termos de projetos  
políticos (a oligarquia retoma o Estado).  
No Brasil esse fenômeno alcança maior expressão nas jornadas de junho de 2013, o que  
redundou no processo de impedimento da presidenta Dilma Roussef e ascensão do governo  
Bolsonaro, de extrema direita, atestando as tais formas mórbidas de política que oportunamente  
estabelecem- se por ocasião da crise de representação (Bianchi, 2017; 2019).  
277  
Mas, o fundamental no que diz respeito aos objetivos postos por esse artigo é entender  
até que ponto essa crise logrou reposicionar os sentidos da representação, também entre  
progressistas. Quer dizer, em que medida os questionamentos em torno das formas políticas  
existentes, conservadoras e nesse ponto, reacionárias, repercutiram de forma a recriar novos  
caminhos e personagens para a luta democrática, que façam frente a naturalização das  
desigualdades e preconceitos. Defendemos a hipótese de que as demandas em torno de  
representatividade espelham as lutas em torno de uma maior democratização da sociedade e do  
próprio Estado brasileiro, ressignificando e renovando a representação.  
Embora em número ainda menor, mulheres negras, indígenas, transexuais4, alcançam  
visibilidade na cena pública, oferecendo um contraponto aos políticos tradicionais, homens  
brancos de classe alta. Longe de mero identitarismo5, o que se presencia é justamente a  
4 Dentre as quais, destacamos Talíria Petrone, Jack Rocha, Sônia Guajajara, Célia XaKriabá, Erika Hilton, Duda  
Salabert.  
5
Não negamos os riscos e prejuízos de uma política essencialista, apenas defendemos que para além deles, a  
representatividade pode favorecer a representação, produzindo ambientes mais diversos, dando voz a sujeitos  
marginalizados.  
Bárbara T. Sepúlveda; Miriam Krenzinger  
reformulação da representação, é reforma moral pautada na ideia de representatividade (não  
estranhamente teve político baiano, Estado brasileiro com maior número de pessoas negras,  
acusado de escurecer a pele).  
Efetivamente, uma política pautada na representatividade avança no sentido de garantir  
um olhar singular e íntimo sobre a realidade de grupos que compõem a população brasileira,  
facilmente ignorada por políticos tradicionais, mesmo no campo progressista, que se apegam a  
pautas gerais, negligenciando a complexidade que se constituem as relações e os sujeitos em  
sociedade.  
Quando falamos de mulher negra, sem o entendimento de como gênero inscreve o corpo  
racializado, ou de como raça imprime uma experiência de gênero com outros significados, não  
se alcança a lógica salarial do mercado de trabalho, em que mulheres negras seguem na base da  
pirâmide, recebendo menos que a mulher branca e o homem negro. Igualmente não se  
compreende as desigualdades no que se refere ao acesso à aposentadoria, quando mulheres  
negras apresentam maior dificuldade em acessar um trabalho formal (lembremos de toda  
resistência envolvida na regularização do trabalho doméstico no Brasil, onde são maioria). Ou  
porque são as maiores vítimas de violência obstétrica... ou ainda, como padrões de beleza e  
feminilidade associado à brancura, e sua publicização pelas várias mídias, repercutem na auto-  
estima e na forma como as mulheres negras acessam (ou não acessam) um relacionamento  
amoroso.  
278  
Essas e outras questões não inviabilizam ou enfraquecem as lutas em torno da  
democratização da sociedade brasileira, mas na verdade, as ressignifica. Geral e particular não  
se excluem.  
Além desse olhar singular, que também educa, enquanto forasteiras de dentro (Outsider  
Within), nos moldes daquilo que aponta Collins (2016), para demarcar a experiência e agência  
das mulheres negras em espaços de poder – a presença de mulheres negras entre as eleitas para  
representar a população ainda propiciaria o desmantelamento das "narrativas discriminatórias  
que sempre colocam minorias em locais de subalternidade. Isso pode servir para que, por  
exemplo, mulheres negras questionem o lugar social que o imaginário racista lhes reserva"  
(Almeida, 2019, p. 68).  
O cuidado, além de não reduzirmos a questão da falta de poder de todo um grupo a  
mera visibilidade (a representatividade é sempre institucional e não estrutural), é  
entendermos que nem sempre o representante espelha suas demandas (lembremos um jovem  
parlamentar negro, ex-MBL, que tem se colocado abertamente contra às cotas). Trata-se de  
sujeitos diversos. Ainda assim, não deixa de ser uma conquista. Não se pode menosprezar a  
Libertas, Juiz de Fora, v. 24, n. 1, p. 264-281, jan./jun. 2024. ISSN 1980-8518  
Socialização da política versus privatização do Estado: elementos para reposicionar a democracia em  
tempos de crise orgânica representação e representatividade  
“força da eleição ou o reconhecimento intelectual de um homem negro e, especialmente, de  
uma mulher negra [...] quando se trata de uma realidade dominada pelo racismo e pelo  
sexismo” (Almeida, 2019, p. 68).  
Contudo, insistimos: a luta democrática é coletiva. Seu resultado também só tem  
sentido na medida em que alcança mais pessoas. As mulheres negras brasileiras, ocupadas  
dessa luta, entenderam isso.  
O trabalho junto aos movimentos sociais possibilitou o acúmulo necessário ao  
amadurecimento político desses sujeitos. Na aproximação com a política institucional, viu-se a  
possibilidade histórica de se alcançar outros grupos e de promover mudanças significativas a  
partir do Estado, pela tematização da realidade vivida pela população negra, sua inclusão na  
agenda governamental. A partir daí ganham vida discussões que englobam educação, acesso à  
emprego e renda, cuidados em saúde, cotas em concurso público, processos de reconhecimento  
de quilombos, entre outros, que se desdobram em leis e materializam-se em políticas públicas.  
Essas e outras conquistas democratizantes veem-se ameaçadas diante do avanço do  
projeto neoliberal, que encontra na crise política e econômica instalada no país um cenário ainda  
mais propício para realização das suas contrarreformas. Embora a eleição de Lula da Silva para  
seu terceiro mandato, represente uma vitória frente à barbárie da extrema direita, não seria  
prudente negar a conjuntura desfavorável. A nossa democracia segue blindada.  
Nesse cenário é justamente a população negra, especialmente as mulheres negras, quem  
mais sofre. Sua experiência escancara o racismo o estrutural, que impõe a elas, seus filhos e  
companheiros, uma realidade marcada pela violência e pela precariedade das condições de vida  
e trabalho. Votar e ser votada, ainda que não se traduza imediatamente em políticas públicas  
que façam frente a realidade, é um começo, é expectativa que movimenta o jogo político.  
279  
Considerações finais  
Numa sociedade tão desigual quanto a brasileira, a conservação de um modelo  
representativo montado sob bases elitistas, serve apenas a reprodução de tal estado de coisas.  
No cenário atual essa constatação assume ares ainda mais problemáticos, pela imposição de  
reformas restritivas, sob a hegemonia do capital financeiro, pela disseminação de um ideário  
minimalista quanto aos direitos outrora conquistados. Mais do que nunca, os sentidos da  
representação partidária sob uma democracia burguesa (em si mesmo limitada), passam a ser  
questionados. Quem, de dentro do poder, de fato nos representa?  
A descrença na política, a ausência de direção moral, em meio a sensação de "mais do  
mesmo" ajusta- se bem a agenda neoliberal. Mas a democracia não é estática, é “ação que  
Bárbara T. Sepúlveda; Miriam Krenzinger  
arranca continuamente dos governos oligárquicos, o monopólio da vida pública e da riqueza, a  
onipotência sobre a vida” (Rancière, 2014, p. 121). Tal afirmação nos lembra as lutas que  
lograram alterar a lógica inicial da representação, socializar a política, e ampliar o Estado, isso,  
muitas vezes, a despeito dos interesses das classes dominantes.  
A representatividade pode servir a representação, no sentido de uma reformulação ou  
renovação, possibilitando um canal por meio do qual as demandas de grupos historicamente  
subalternizados adquirem visibilidade, ao mesmo tempo em que oferece a quebra de  
estereótipos que alimentam essa subalternidade. Socializar a política, o Estado ou mesmo a  
sociedade brasileira, implica, sim, em nos vermos mais em quem nos representa. É educativo,  
orgânico e emancipatório.  
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Quem construiu o "Caes do Porto"? As marcas  
das relações raciais e da superexploração  
Who built the "Caes do Porto"? The marks of race relations and  
overexploitation  
Gustavo Gonçalves Fagundes*  
Thiago Vinicius Mantuano da Fonseca**  
Resumo: O centenário porto construído no Rio  
de Janeiro é obra de engenharia que nos alcança  
no presente. Neste artigo, objetivamos  
demonstrar quem eram, como viviam e em que  
condições laboravam os produtores diretos de  
tamanha empreitada. Para o entendimento  
aprofundado deste processo naqueles canteiros  
de obras, sobrelevam-se as socialmente  
generalizadas marcas das corroídas relações  
raciais no pós-abolição, bem como está  
caracterizada a superexploração da força de  
trabalho engajada em tamanha construção.  
História e Teoria Social devem responder: quem  
construiu o “caes do porto”?  
Abstract: The centenary port built in Rio de  
Janeiro is a work of engineering that reaches us  
today. In this article, we aim to demonstrate who  
they were, how they lived and under what  
conditions the direct producers of such an  
undertaking worked. For an in-depth  
understanding of this process at those  
construction sites, the socially generalized  
marks of corroded racial relations in the post-  
abolition period are highlighted, as well as the  
overexploitation of the workforce engaged in  
such construction. History and Social Theory  
must answer: who built the “caes do porto”?  
Palavras-chaves:  
Porto;  
Racismo;  
Keywords: Port; Racism; Overexploitation.  
Superexploração.  
Introdução  
As páginas a seguir trazem entendimento do racismo enquanto uma tecnologia de  
dominação e da compreensão da sua reprodução a partir das relações de trabalho que  
prevaleceram no processo de destruição/construção do Porto do Rio de Janeiro, ente 1904 e  
1914. Em alusão ao que o atual Ministro dos Direitos Humanos e da Cidadania do Brasil, Silvio  
* Doutorando e mestre em Serviço Social pela UFRJ. Assistente social pela UFF. ORCID: https://orcid.org/0000-  
**  
Doutor em História pela UFF. Professor Visitante Adjunto de História do Atlântico no PPGH/DFCH-UESC.  
Nota: Agradecemos as indicações do professor Luiz Cláudio Moisés Ribeiro (UFES) que motivaram a associação  
da reflexão teórica com a pesquisa empírica, acabando por redundar na elaboração em coautoria deste artigo.  
DOI: 10.34019/1980-8518.2024.v24.42315  
Esta obra está licenciada sob os termos  
Recebido em: 24/09/2023  
Aprovado em: 12/04/2024  
Quem construiu o "Caes do Porto"? As marcas das relações raciais e da superexploração  
de Almeida (2019), afirma sobre sua obra, o texto aqui apresentado não se restringe às  
discussões de raça ou da opressão racial, mas sim do conjunto da teoria social. O que no caso  
da presente abordagem diz respeito ao mundo do trabalho, a conformação da classe trabalhadora  
e sua composição racial, os processos produtivos que era engajada, bem como seus métodos de  
organização e mobilização em um determinado período histórico. Essa demarcação se faz  
necessária para evitar estreitar ou isolar o estudo das condições de vida e trabalho da população  
negra, como se o mesmo não compreendesse de forma global as relações de trabalho sob o  
desenvolvimento capitalista.  
A perspectiva que integra as categorias de raça e classe é fruto do entendimento das  
determinações sócio-históricas que estruturaram a sociedade brasileira, a qual impõe um caráter  
sistêmico ao racismo. Dessa forma, entendemos que a abordagem não se apoia em meros atos  
isolados, mas sim num processo histórico que criou subalternidades e favorecimentos entre os  
diferentes grupos raciais. Portanto, tal qual o autor supracitado, partimos da concepção  
estrutural do racismo. Logo, as relações do caso aqui examinado também estão inseridas na  
corrosão social produzida pela opressão racial, mas também no capitalismo dependente que se  
construía no Brasil.  
Depois de três décadas de frustrações com os chamados “melhoramentos portuários” no  
Rio de Janeiro, da reprodução em escalas aperfeiçoadas, mas ainda muito limitadas, da operação  
portuária baseada em trapiches e das elaborações frustradas de diferentes concessionários em  
seus projetos para o porto do Rio de Janeiro, é exemplar a forma como o Estado Nacional  
brasileiro tomou a iniciativa de transformá-lo radicalmente. Os historiadores convencionaram  
(Benchimol, 1990; Lamarão, 1991, Velasco e Cruz, 1998) creditar a “reforma do porto” ao  
governo federal e, secundariamente, à empresa que a executou a empreiteira inglesa C. H.  
Walker & C. a maior parte dos serviços, mas pouco ou nada foi esclarecido sobre aqueles  
sujeitos que venderam suas forças vitais e capacidades criativas para consecução da maior obra  
pública em um século de Brasil independente. De fato, desde o arcabouço legal preparatório até  
a fiscalização das obras no campo, é possível asseverar que aquela obra pública era expressão  
de uma radical transformação urbana e operacional há muito ansiada tanto pelas classes  
dominantes acampadas no Estado Nacional, quanto pelos trabalhadores que penavam na  
operação portuária então estabelecida (Albuquerque, 1983).  
283  
Trazemos o necessário debate de esmiuçar as relações raciais contidas em tal  
empreitada. Com intuito de reconhecer a composição racial daqueles trabalhadores, a  
importância e o risco dos/nos ofícios desempenhados naqueles canteiros de obras, mas  
Gustavo Gonçalves Fagundes; Thiago Vinicius Mantuano da Fonseca  
especialmente as implicações do racismo na transição do mundo do trabalho no início do século  
XX, cuja observação é possível através da investigação sobre a construção do porto.  
Assim, importa apontar o destino dos brasileiros responsáveis pela produção da riqueza  
nacional no período que sucede a conquista da abolição. Nos apoiaremos nas contribuições de  
Clóvis Moura (1988; 2014; 2021) para expor a construção de mecanismos de barragem social  
contra os trabalhadores negros após o processo abolicionista, um movimento organizado pelo  
Estado Nacional enquanto mediação opressora e com firme impacto na transição da escravidão  
em direção ao assalariamento. Sua dimensão englobou aspectos jurídicos-políticos e todo um  
arcabouço ideológico. Em Florestan Fernandes (2008), temos uma abordagem sobre a  
integração do negro na sociedade de classes, o que traz a consolidação da estrutura social e  
econômica capaz de impor à população negra uma localização inferiorizada em relação aos  
brancos.  
Esse percurso histórico de transição do regime de trabalho é corroído por elementos que  
até hoje estão introjetados no imaginário social. Nesse sentido, as obras do porto do Rio de  
Janeiro ganham centralidade, visto que ali podemos perceber não só a estrita relação de venda  
da força de trabalho como também as potencialidades de organização e mobilização no pós-  
abolição. No caso em tela, fica claro um nível de consciência sobre sua condição de classe que  
se desdobra a partir do acúmulo da experiência de classe dos trabalhadores negros, consciência  
esta, em grande medida, legatária das experiências vividas por esses sujeitos na sociedade  
escravista.  
284  
Registrada a responsabilidade e iniciativa do governo federal, bem como a execução C.  
H. Walker & C., outras empresas e agentes privados, não é justo esquecer os produtores diretos  
da infraestrutura que permaneceu com grande relevância operacional para o país durante seis  
décadas e que nos alcança, materialmente, até os dias de hoje entre a Praça Mauá e o Canal  
do Mangue. Para tanto, é possível integrar o entendimento sobre a construção/constituição  
material do porto e a formação/composição da classe trabalhadora na capital da República.  
Partimos da premissa de que o projetado, reprojetado e, finalmente, executado no porto  
do Rio de Janeiro (1903-1914) não foi uma mera reforma. Ao contrário, era um esforço  
coordenado de destruição/construção da principal repartição fiscal do país e uma das mais  
importantes infraestruturas ao alcance e serviço dos capitais que aqui se acumulavam  
(Mantuano, 2022). A disruptiva transformação da natureza, constituição material e  
equipamento do porto o emancipou do alcance limitado do capital comercial, simbolizado nos  
trapiches que continuaram existindo sem a centralidade de outrora para operação portuária do  
Libertas, Juiz de Fora, v. 24, n. 1, p. 282-318, jan./jun. 2024. ISSN 1980-8518  
Quem construiu o "Caes do Porto"? As marcas das relações raciais e da superexploração  
Rio de Janeiro. Construiu-se um porto de escala e cariz industrial, se impôs uma materialidade  
que viabilizava a operação portuária hegemonicamente capitalista na capital da República e este  
processo foi condicionado e tomado pelo capital financeiro a associação entre o banco que há  
muito era financiador externo da dívida pública brasileira, N. M. Rothschild & Sons, e dos  
empreiteiros da maior parte das obras, C. H. Walker & C., ambos britânicos.  
O esforço para construção do porto do Rio de Janeiro foi gestado e parido coadunando  
com a ortodoxia econômica vigente, ratificando a subordinação brasileira ao imperialismo  
capitalista (Singer, 2006), pelas vias dos acordos com os grandes capitais, da articulação com  
as representações nacionais das classes dominantes, dos contratos junto aos financiadores e  
executores empresariais das obras. Aprofundou-se, em suma, o essencial da República  
Oligárquica: a dependência econômica, as desigualdades sociais e a própria questão racial  
(Oliveira, 2006).  
Embora significasse uma mudança material de magnitude inigualável e de repercussões  
larguíssimas, a radical transformação do porto do Rio de Janeiro não surgiu de um novo status  
quo, assim como não deu azo a mudança deste, antes, o reforçou. Neste artigo buscamos  
evidenciar como a superexploração do trabalho dos indivíduos, majoritariamente brasileiros e  
negros, que guardavam para si apenas suas forças vitais e conhecimentos como serventes,  
pedreiros e mestres de obras, especialmente, mas também como canteiros, metalúrgicos,  
marceneiros, marítimos, carregadores etc.. Entendê-los como agentes é fundamental para o  
conhecimento das relações laborais de indisfarçável clivagem nacional e racial que  
viabilizaram a realização das demolições e obras que construíram um dos maiores portos do  
mundo.  
285  
Em suma, não é possível conhecer a História Urbano-Portuária do Rio de Janeiro sem  
responder a seguinte questão: quem fez as dragagens? Quem participou dos aterramentos?  
Quem erigiu aqueles armazéns? Quem construiu o “caes do porto” do Rio de Janeiro?  
Sobre Superexploração e Dependência no entrelaço das relações raciais  
Os trabalhadores que protagonizaram as obras do porto do Rio de Janeiro e a própria  
dinâmica econômica que originou tal empreitada não surgiram com o alvorecer do século XX.  
É preciso nos debruçarmos sobre a dimensão particular da formação brasileira em seus  
meandros socioeconômicos, inclusive para que possamos compreender o racismo enquanto  
parte estrutural e estruturante do processo em tela.  
Partimos do que Ruy Mauro Marini aponta ser o caráter dependente do capitalismo  
brasileiro:  
Gustavo Gonçalves Fagundes; Thiago Vinicius Mantuano da Fonseca  
O que deveria ser dito é que, ainda quando se trate realmente de um  
desenvolvimento insuficiente das relações capitalistas, essa noção se refere a  
aspectos de uma realidade que, por sua estrutura global e seu funcionamento,  
não poderá desenvolver-se jamais da mesma forma como se desenvolvem as  
economias capitalistas chamadas avançadas. É por isso que, mais do que um  
pré-capitalismo, o que se tem é um capitalismo sui generis, que só adquire  
sentido se o contemplamos na perspectiva do sistema em seu conjunto, tanto  
em nível nacional, quanto, e principalmente, em nível internacional (Marini,  
2005, p. 138).  
A constatação de estarmos submetidos a um capitalismo dependente nos permite  
adentrar tendências que dão legalidade teórica ao que se desdobra na sociedade brasileira. Por  
apresentar uma integração subordinada ao mercado mundial capitalista, assim como o conjunto  
da América Latina, temos a implicação de um intercâmbio desigual de mercadorias.  
Ressaltamos que esse processo coaduna com a vigência da escravidão em pleno século  
XIX, momento em que homens negros e mulheres negras trabalhavam de forma compulsória  
para seus senhores. Período histórico apontado como segunda escravidão, entre 1790 e 1888,  
(Tomich, 2011) ou escravismo tardio, que corresponde ao interregno de 1850 e 1888, (Moura,  
2014), recortes temporais que contribuem na interpretação dos acontecimentos da escravidão  
durante seu apogeu produtivo e de corpos escravizados, plena vinculação com o  
desenvolvimento capitalista até os acontecimentos jurídicos-políticos que acompanharam sua  
desagregação.  
286  
O processo de subjugação das economias dependentes em relação as centrais propiciava  
uma perda de valor nas trocas mercantis entre as primeiras em favor das últimas. Marini  
compreende essa dinâmica e desenvolve a categoria da superexploração da força de trabalho  
como um mecanismo de compensação a essa sucção de valor das nações dependentes, o que se  
configura em uma sui generis compleição da relação capital e trabalho.  
Nas palavras do autor:  
[...] a participação da América Latina no mercado mundial contribuirá para  
que o eixo de acumulação na economia industrial se desloque da produção de  
mais-valia absoluta para a de mais-valia relativa, ou seja, que a acumulação  
passe a depender mais do aumento da capacidade produtiva do trabalho do  
que simplesmente da exploração do trabalhador. No entanto,  
o
desenvolvimento da produção latino-americana, que permite à região  
coadjuvar com essa mudança qualitativa nos países centrais, dar-se-á  
fundamentalmente com base em maior exploração do trabalhador (Marini,  
2005, p. 144, grifo nosso).  
Ao nos aprofundarmos de forma mais detida na referida elaboração teórica, percebemos  
que a reflexão trata das economias das nações latino-americanas e a constituição dos pilares da  
dependência. Visto que “a criação da grande indústria moderna seria fortemente obstaculizada  
se não houvesse contato com os países dependentes, e tido que se realizar sobre uma base  
Libertas, Juiz de Fora, v. 24, n. 1, p. 282-318, jan./jun. 2024. ISSN 1980-8518  
Quem construiu o "Caes do Porto"? As marcas das relações raciais e da superexploração  
estritamente nacional” (p. 142) e aponta que “é a partir desse momento que as relações da  
América Latina com os centros capitalistas europeus se inserem em uma estrutura definida: a  
divisão internacional do trabalho” (p. 141). Ressaltamos ainda que compõem a elaboração a  
preocupação em diferenciar situação colonial de dependência, onde “ainda que se dê uma  
continuidade entre ambas, não são homogêneas” (p. 141).  
A superexploração não se resume a uma condição laboral degradante, ela é um  
mecanismo de compensação frente a inserção subordinada dos países da América Latina no  
mercado mundial e consequente intercâmbio desigual de mercadorias. Uma desigualdade que  
resulta na cessão de valor por parte da nação desfavorecida (dependente) em favor das nações  
beneficiadas. Logo, “o mero fato de que umas produzam bens que as outras não produzem, ou  
não o fazem com a mesma facilidade, permite que as primeiras eludam a Lei do Valor” (Marini,  
2005, p. 152), fenômeno que compõe um dos pilares do que vem a ser a dependência. Essa  
transferência valor implica deterioração da acumulação de capital da classe brasileira e frente a  
inserção subordinada ao mercado mundial, compunha os termos de troca do Brasil enquanto  
nação já na virada do século XIX para o XX.  
Frisamos a incompatibilidade da superexploração com regimes escravistas, justamente  
pela previsão de compra e venda da força de trabalho como também do seu vigor enquanto  
mecanismo de compensação, que reside na contrapartida para que os países dependentes  
reponham a massa de valor perdida na transferência de valor. Dessa forma:  
287  
Aforça de trabalho, na superexploração, além de estar submetida à exploração  
capitalista nas determinações mais gerais da Lei do Valor, está também,  
submetida às determinações específicas desta, sob as quais é agudizada sua  
tendência negativamente determinada, que atua de modo sistemático e  
estrutural sob as condições dependentes, provocando desgaste prematuro da  
força de trabalho e/ou a reposição de seu desgaste de tal maneira em que a  
substância viva do valor não é restaurada em condições normais (isto é, nas  
condições sociais dadas), ocorrendo o rebaixamento do seu valor (Luce, 2018,  
p. 155)  
Compreendemos, a luz da clássica elaboração de Marini e da atualização elaborada por  
Mathias Seibel Luce (2018), a vigência de quatro manifestações específicas da superexploração  
da força de trabalho: a) pagamento da força de trabalho abaixo do seu valor; b) o prolongamento  
da jornada de trabalho além dos limites normais; c) o aumento da intensidade além dos limites  
normais; d) o hiato entre o elemento histórico moral do valor da força de trabalho e a  
remuneração do trabalhador. É a partir dessa particular expressão das relações de produção  
capitalista a que estão submetidos o conjunto dos trabalhadores brasileiros.  
Adrian Sotelo Valencia (2023) orienta que Marini formula a superexploração da força  
de trabalho em um alto nível de abstração e que de nenhuma maneira abre mão dos elementos  
Gustavo Gonçalves Fagundes; Thiago Vinicius Mantuano da Fonseca  
sociológicos e políticos, como a luta de classes, Estado e poder. “Esses componentes, ao passo  
que interagem como mediações, no plano concreto, a sobredeterminam, seja no sentido  
de aumentá-la ou moderá-la” (p. 20). Isso implica que a superexploração, como qualquer  
fenômeno social, pode ser analisada - inclusive é a forma adotada nos termos realizados por  
Marini - em um determinado nível de abstração teórico-metodológico e isso não impede a  
constituição de mediações para captar seu movimento real e com isso vislumbrar suas  
particularidades. Dessa forma, na compreensão da superexploração, não se deve esquecer a  
“forma como se entrelaça com o Estado e com a dinâmica da luta de classes que a modula, seja  
no sentido de elevá-la ou no sentido de revertê-la em favor dos interesses da classe  
trabalhadora” (p. 26). Nesse sentido, consideramos que o racismo é um determinante  
fundamental na conformação das classes, nas suas experiências, fazer-se e isso se revela em  
elemento chave para o entendimento da superexploração.  
Isso traz a discussão acerca da determinação de um valor normal para a força de  
trabalho. Adiantamos o entendimento de que tal valor se constitui por aspectos históricos e  
conjunturais. Assim, a vigência do racismo enquanto estrutural na formação econômica e social  
brasileira se constitui em um elemento para compor o valor da força de trabalho. Almeida  
(2019, p. 35) afirma que o racismo carrega em si um caráter sistêmico, já que não pode ser  
resumido a meros atos isolados ou expressões discriminatórias, mas “de um processo que  
condições de subalternidade e de privilégio que se distribuem entre grupos raciais se  
reproduzem nos âmbitos da política, da economia e das relações cotidianas”. Por isso, o racismo  
deve ser entendido como estrutural, “decorrência da própria estrutura socia, ou seja, do modo  
‘normal’ com que se constituem relações políticas, econômicas, jurídicas e até familiares” (p.  
50).  
288  
Clóvis Moura (2021), ao trazer indicações sobre como o trabalhador negro transita de  
um bom escravo na percepção senhorial para um mau cidadão na concepção da classe  
dominante, nos oferece pistas contundentes, principalmente pela combinação do Estado  
enquanto mediação opressora. Responsável por moldar e organizar o mercado de trabalho e a  
vigência de um arcabouço ideológico que corroeu o imaginário social o que eximindo com  
maior profundidade na obra de Weber Lopes Goés (2018) com teorias racialistas sobre as  
capacidades e habilidades intelectuais dos trabalhadores negros.  
Não será, atualmente, mau cidadão aquele negro livre que procura, através da  
sua conscientização, levantar o problema da situação racial do Brasil e  
encontrar soluções, globais ou parciais, para ela? Ou será bom cidadão negro  
aquele que aceita o status quo e procura ser apenas divertimento, objeto para  
o branco (como já fora no tempo da escravidão), espécie de mercadoria que  
se vende nos momentos em que a indústria turística procura se desenvolver no  
Libertas, Juiz de Fora, v. 24, n. 1, p. 282-318, jan./jun. 2024. ISSN 1980-8518  
Quem construiu o "Caes do Porto"? As marcas das relações raciais e da superexploração  
país e, com esta atitude de subalternização, regride socialmente até uma franja  
próxima à do antigo escravo?  
Não será, porém, bom cidadão o negro que não aceita a discriminação racial,  
o seu confinamento nas favelas, mocambos e alagados, as restrições que são  
feitas à sua cor no mercado de trabalho e em muitas instituições, e procura, de  
uma forma ou de outra, encontrar saída para o impasse atráves da sua  
participação em movimentos projetivos?  
É visto ainda como mau cidadão negro aquele que vive nas favelas, nos  
cortiços, nos mocambos nordestinos e se situa nas mais baixas camadas  
sociais, como operário não qualificado, doméstica, mendigo, biscateiro,  
criminoso ou alcoólatra. É exatamente aquele segmento descendente do  
escravo, hoje apenas negro livre, porém que não foi, ainda, incorporado, na  
sua grande maioria, a não formalmente, à sociedade civil, como cidadão. O  
negro doente. Avitaminado. Deformado por doenças carenciais. Preterido no  
trabalho. Vivendo nos terreiros de umbanda e candomblé. Fazendo uso da  
medicina popular para curar moléstias que atingem, com maior índice de  
incidência, as áres ecológicas para onde foi inexoravelmente jogado (Moura,  
2021, p. 29).  
Esse imbróglio se desdobra no período de transição do regime de trabalho no Brasil,  
quando a escravidão definha com a dinâmica da luta dos escravizados e o movimento  
abolicionista e com a posterior ascensão do mundo do trabalho assalariado. Ou seja, as obras  
portuárias no Rio de Janeiro são compreendidas ainda nesse recorte temporal.  
Corroboramos com a concepção defendida por Silvio Almeida sobre o racismo não ser  
uma herança direta ou mero resto da escravidão, “até mesmo porque não há oposição entre  
modernidade/capitalismo e escravidão” (Almeida, 2019, p. 183). Logo, o racismo é parte  
constitutiva das estruturas do capitalismo.  
289  
Fagundes (2022) aponta o exército industrial de reserva como mecanismo central na  
relação entre superexploração e racismo estrutural, justamente por buscar na crítica da  
economia política as categorias para as implicações negativas na elaboração do valor da força  
de trabalho.  
A existência do exército industrial de reserva compreende o controle do valor da força  
de trabalho, visto que “produzir uma população excedente relativa, isto é, excedente em relação  
à necessidade média de valorização do capital, é uma condição vital da indústria moderna”  
(Marx, 2017, p. 709), o que a “grosso modo, os movimentos gerais do salário são regulados  
exclusivamente pela expansão e contração do exército industrial de reserva” (Marx, 2017, p.  
712). Tal definição avança em seus contornos ao se constatar, nos termos de Ruy Mauro Marini,  
a existência de um avolumado número de trabalhadores ausentes dos postos de trabalho como  
pressuposto fundamental para vigência da superexploração. E é na transição do regime de  
trabalho escravizado para o trabalho assalariado que primeiro conseguimos observar a  
racialização do processo de constituição de um exército industrial de reserva racializado no  
Gustavo Gonçalves Fagundes; Thiago Vinicius Mantuano da Fonseca  
Brasil. Ou seja, um avolumado e racializado exército industrial de reserva se constitui a partir  
da igualdade jurídica das relações legais de trabalho.  
Florestan Fernandes, ao abordar a integração do negro na sociedade de classes, nos  
auxilia na observação desse fenômeno.  
Onde a produção se encontrava em níveis baixos, os quadros da ordem  
tradicionalista se mantinham intocáveis: como os antigos libertos, os ex-  
escravos tinham de optar, na quase totalidade, entre a reabsorção no sistema  
de produção, em condições substancialmente análogas às anteriores, e a  
degradação de sua situação econômica, incorporando-se à massa de  
desocupados e de semi-ocupados da economia de subsistência do lugar ou  
outra região. Onde a produção atingia níveis altos, refletindo se no padrão de  
crescimento econômico e de organização do trabalho, existiam reais  
possibilidade de criar um autêntico mercado de trabalho: aí, os ex-escravos  
tinham de concorrer com os chamados “trabalhadores nacionais”. [...] Em  
consequência, ao contrário do que se poderia supor, em vez de favorecer, as  
alternativas da nova situação econômica brasileira solapavam, comprometiam  
ou arruinavam, inexoravelmente, a posição do negro nas relações de produção  
e como agente de trabalho (Fernandes, 2008, p. 31-32).  
Clóvis Moura (2021) afirma que “uma sistemática de peneiramento contra o ex-escravo,  
após a Abolição, permeou as oportunidades de integração na sociedade capitalista emergente”  
(p. 31). Essa realidade imprimiu uma dimensão ideológica da representação dos homens negros  
e mulheres negras enquanto sujeitos responsáveis por sua própria condição, retirando de cena  
os aspectos jurídicos-políticos (nos termos moureanos) que justificam tal situação.  
290  
“No caso específico do negro brasileiro, que além de ter vndo da situação  
inicial de escravo, pertence a uma etnia que possui uma determinada marca,  
segundo os padrões brancos, o problema se agrava e surge, em consequência,  
uma série de barragens e razões justificatórias, capazes de impedir a sua  
ascenão social massiva. Desta forma, os valores etnocêntricos das classes  
dominantes representam uma redoma ideológica que tem como função  
impedir a mobilidade vertical dos seus estratos inferiores” (Moura, 2021, p.  
37).  
No curso do centenário da abolição o autor adensou os debates sobre o tema da situação  
da população negra após a liberdade do cativeiro. Aponta que um acúmulo de combinações  
determinou a imposição dos trabalhadores negros enquanto superpopulação relativa logo nas  
primeiras décadas do século XX. Seja a trajetória histórica do trabalho compulsório, o que  
impedia o acúmulo de bens materiais, ou mesmo o vendaval de teorias racialistas que corroía o  
imaginário social em sentido de inferiorizar essa parcela da população.  
Temos ainda, sob a dinâmica das relações capitalistas, a criação de estereótipos sobre o  
indivíduo não-branco:  
Indolentes, cachaceiros, não-persistentes para o trabalho e, em contrapartida,  
por extensão, apresenta-se o trabalhador branco como o modelo perseverante,  
honesto, de hábitos morigerados e tendências a poupança e à estabilidade no  
emprego. Elege-se o modelo branco como sendo o do trabalhador ideal  
Libertas, Juiz de Fora, v. 24, n. 1, p. 282-318, jan./jun. 2024. ISSN 1980-8518  
Quem construiu o "Caes do Porto"? As marcas das relações raciais e da superexploração  
(Moura, 1988, p. 69).  
As obras no porto do Rio de Janeiro estão inseridas nesse contexto, os trabalhadores –  
brancos e negros, nacionais e estrangeiros protagonistas dessa empreitada. Omitir as relações  
raciais desse episódio é incorrer em equívocos teóricos e também políticos. Aqueles sujeitos  
organizaram entidades de classe, lutaram por melhores condições de trabalho e colocaram no  
debate público uma série de elementos que devem ser recuperados para ilustrar as experiências  
que conformam a classe trabalhadora em nosso país.  
A Força de Trabalho nas obras portuárias  
No dia em que a Muralha da China ficou pronta,  
para onde foram os pedreiros?  
(Brecht, 1935)  
Na construção do porto do Rio de Janeiro participaram milhares de trabalhadores,  
contramestres, operários, peões, pedreiros e serventes de obras que arriscavam as suas vidas  
pela mera reprodução de sua existência e, indeliberadamente, acabaram contribuindo para  
aquilo que era tido como um grande feito.  
Pensamos como Marcel Van der Linden: aqueles trabalhadores foram levados aos  
canteiros de obras premidos contra a miséria, por sua sobrevivência e de suas famílias (Linden,  
2013). Já Marcelo Badaró Mattos (2008) demonstra como a alongada experiência da escravidão  
e o convívio entre escravizados, ex-escravizados e livres especialmente nos ambientes de  
trabalho rebaixaram os padrões de vida e trabalho possíveis aos sujeitos que construíam a  
classe trabalhadora no Rio de Janeiro do pós-abolição.  
291  
O espaço radicalmente transformado era, antes, constituído de rica diversidade social e  
pobreza material generalizada, ali residia e/ou trabalhava o homem simples (Mantuano; Oliveira  
Junior; Honorato, 2016). É necessário pontuar que essa diversidade não pode ser simplificada.  
As questões das divisões nacionais e raciais não constituíam apenas um dado a ser levado em  
conta pelas autoridades para quantificar e classificar os sujeitos no mundo do trabalho. A  
própria visão dos trabalhadores estava balizada por sua existência enquanto brasileiro,  
português, espanhol, carioca, baiano, branco ou negro. Em determinada medida, estas  
identidades funcionavam como uma solda de partes que eram unidas a quente no mundo  
trabalho, mas também criavam obstáculos ao processo de tomada de consciência da classe.  
Estes obstáculos evidentemente não eram intransponíveis, mas é claro constituíam-se em uma  
clivagem da classe trabalhadora que foi conscientemente produzida pelas classes dominantes  
(Chalhoub, 2001).  
Gustavo Gonçalves Fagundes; Thiago Vinicius Mantuano da Fonseca  
Trata-se de entender a experiência de classe como oriunda dos conflitos na desagregação  
da escravidão, principalmente no contexto singular das relações de trabalho no cenário urbano.  
A construção do porto do Rio de Janeiro foi central não só pela sua magnitude para a engenharia  
da época, mas também no que concerne ao fazer-se da classe trabalhadora, dado o contexto das  
relações raciais.  
Gracyelle Costa Ferreira (2020), em sua tese de doutorado, se debruça sobre os  
trabalhadores negros na origem da política social no Brasil. Habitualmente, são três os  
segmentos de trabalhadores entendidos como protagonistas desse processo: ferroviários,  
portuários e marítimos. Entretanto, afirma também que pouco se aborda sobre as relações  
étnico-raciais às quais esses sujeitos estavam inseridos e bem pouco sobre a tradição de lutas e  
mobilizações que esses sujeitos encamparam. Em específico sobre os trabalhadores que  
transitavam ou mesmo laboravam diretamente no porto, Ferreira aponta que em finais dos  
oitocentos já era observada uma concentração elevada de trabalhadores negros na Região  
Portuária, seja nos processos de trabalho, ou na organização coletiva para preservação dos seus  
interesses de classe.  
Essa constatação não tem o intuito de imputar à parcela negra do proletariado brasileiro  
uma característica inata de relação com o movimento organizado de trabalhadores e suas  
mobilizações. O que se busca é situar esse conjunto como também pertencente à classe  
trabalhadora do país, não apenas a partir da sua localização na estrutura produtiva, como  
também no seu pertencimento a esse coletivo de indivíduos. A autora demonstra com riqueza  
analítica como o constante abastecimento do exército industrial de reserva pela crescente  
imigração acabava acarretando como consequência da exploração da miséria e brutal entrega  
à sobrevivência dos sujeitos desterritorializados um rebaixamento das perspectivas dos  
trabalhadores brasileiros, especialmente os negros.  
292  
A situação demonstra como os empregadores se valeram da abundância da  
mão de obra estrangeira pouco qualificada. Sim, porque ao contrário do que  
comumente se diz, muitos dos que vieram para o Brasil não tinham profissão  
definida ou trato para o trabalho urbano, seja ele fabril ou de outro cariz. Daí  
muitos deles recorrerem ao trabalho no porto. Ou seja, a tentativa de expulsão  
dos trabalhadores negros de postos ocupados durante a escravidão não pode  
ser ainda hoje considerada do ponto de vista da “incapacidade técnica” desses  
sujeitos, mas de um projeto de Estado articulado por concepções deterministas  
sobre raça e nação. Esse projeto ao mesmo tempo foi parte da formação de um  
mercado que se pretendia assalariado de trabalho no Brasil. O aumento da  
oferta de trabalhadores com os imigrantes da Europa, associado à tentativa de  
extermínio da população negra modulou esse projeto racializado de civilidade  
capitalista no país. Um projeto que visou minar dos livres e libertos negros as  
condições para assalariamento e inserção em atividades de prestígio ou com  
maiores condições para mobilidade econômica (Ferreira, 2020, p. 108-109).  
Libertas, Juiz de Fora, v. 24, n. 1, p. 282-318, jan./jun. 2024. ISSN 1980-8518  
Quem construiu o "Caes do Porto"? As marcas das relações raciais e da superexploração  
Por outro lado, é preciso ter em mente que portugueses pobres foram ostensivamente  
emigrados para o Rio de Janeiro e, aqui, brutalmente explorados muitas vezes, inclusive por  
seus patrícios. A disputa pelo mercado de trabalho, realidade tão rara se considerarmos o  
conjunto do país, explica por que, no período de afirmação nacional, os ódios e rancores se  
voltaram contra eles, concorrentes mais presentes ante aos nacionais pelas vagas nas obras do  
porto, especialmente aquelas mais bem remuneradas, que exigiam alguma habilidade e  
ofereciam melhores condições salariais e laborais (Menezes, 1996).  
Gladys Sabina Ribeiro demonstra como a intensa exploração do trabalho imigrante,  
nomeadamente português, determinou até mesmo como aqueles lusitanos eram apelidados:  
“burros sem rabo” (Ribeiro, 2017, p. 232). Ribeiro faz importante debate sobre a ideologia do  
trabalho que nos interessa na medida em que estava fundada nas noções de disciplina, dedicação  
e competência no âmbito profissional, e estas eram requeridas constantemente em obras tão  
grandes e complexas como as do porto. As condições árduas da luta pela sobrevivência –  
salários baixos, abundância da força de trabalho habitação escassa e em condições precárias –  
serviam para incutir nos membros da classe trabalhadora que eles tinham de competir uns com  
os outros no intuito de garantir a reprodução material de suas existências.  
No entanto, havia uma dimensão de solidariedade que brotava na contramão das  
disputas raciais e entre nacionais, especialmente quando o embate contra o capital se travava  
de maneira aberta (Fausto, 1977).  
293  
É nesse quadro sociolaboral e de construção da classe trabalhadora no Rio de Janeiro  
que massas de operários da construção civil, naval, da indústria de transformação e dos  
transportes foram mobilizados, direta ou indiretamente, para construção da maior obra pública  
ordenada pelo Estado Nacional brasileiro.  
Estes sujeitos estavam divididos em oito frentes de trabalho para destruição/construção  
do porto: nas oficinas na Ponta da Areia, em Niterói; na Baía de Guanabara, engajados nos  
trabalhos de dragagem e descarte do material dragado para além da barra; na construção do  
cais; nos aterramentos; na destruição e construção das infraestruturas urbanas e portuárias; na  
construção do Canal do Mangue; na pedreira do morro do Senado; e na pedreira do morro da  
Saúde. Importante notar que C. H. Walker & C. não desempenhou todos estes trabalhos, sendo  
responsáveis pelos que envolviam a dragagem e construção do canal, do cais, dos aterramentos  
e de parte dos armazéns internos ao cais. A própria Comissão Fiscal e Administrativa das Obras  
do Porto do Rio de Janeiro1 doravante, CFAOPRJ realizou diretamente, bem como através  
1 A Comissão Fiscal e Administrativa das Obras do Porto do Rio de Janeiro foi criada pelo governo federal para  
Gustavo Gonçalves Fagundes; Thiago Vinicius Mantuano da Fonseca  
da contratação de terceiros, obras, serviços e fornecimentos fundamentais para o projeto.  
Também é importante que se diga que, naquele momento, obras conexas, complementares e/ou  
subordinadas a destruição/construção do porto foram realizadas tanto pelo governo federal,  
quanto pela municipalidade do Distrito Federal (Benchimol, 1990, p. 316-317), ampliando a  
oferta de trabalho na construção civil.  
A destruição/construção do porto do Rio de Janeiro envolveu uma ampla gama de  
ofícios atribuídos aos trabalhadores e profissões atribuídas aos agentes que ordenavam as  
atividades laborais, em distintas especialidades e níveis de formação. A partir de onze relatórios  
anuais do Ministério da Indústria, Viação e Obras Públicas (1904-1908) e do seu sucessor, o  
Ministério da Viação e Obras Públicas (1909-1914), perscrutamos a constância à citação de  
categorias de trabalhadores engajadas nas obras. Identificamos exatas 30 categorias na seção  
“Porto do Rio de Janeiro” dos referidos relatórios. Estas exprimiam com exatidão o fazer dos  
produtores diretos, mas também dos agentes que projetavam, formulavam, fiscalizavam e  
administravam aquelas obras. Para tanto, excluímos a designação desses sujeitos por expressões  
genéricas e abrangentes como “trabalhadores das obras”, “empregados” ou, simplesmente,  
“operários”.  
A unidade escolhida como critério para quantificação foi a ocorrência por relatório(s)  
em que dada categoria aprecia ao menos uma vez. De forma que vedamos a distorção dos dados  
a partir de uma amostra nas informações oferecidas pela fonte, pois se contássemos o número  
de vezes em que cada categoria foi citada reunindo todos os relatórios, os pedreiros e os  
engenheiros poderiam parecer super-representados.  
294  
administrar, fiscalizar e conservar a construção do porto do Rio de Janeiro, bem como executar e contratar obras  
acessórias (Decreto 4.969, 18 de setembro de 1903). A comissão estava sob a direta ascendência do Ministério da  
Indústria, Viação e Obras Públicas e tinha autonomia sobre a gestão das rendas que a Caixa Especial do Porto tinha  
por direito auferir.  
Libertas, Juiz de Fora, v. 24, n. 1, p. 282-318, jan./jun. 2024. ISSN 1980-8518  
Quem construiu o "Caes do Porto"? As marcas das relações raciais e da superexploração  
Imagem 1: Nuvem de Palavras Representativa das Categorias de Trabalhadores e Profissionais nas Obras  
Portuárias do Rio de Janeiro (1904-1914).  
Fonte: Elaboração própria com base em BRASIL. Ministério da Indústria, Viação e Obras Públicas. Proposta e  
Relatório. Rio de Janeiro: Imprensa Nacional, 1905-1909; BRASIL. Ministério da Viação e Obras Públicas.  
Proposta e Relatório. Rio de Janeiro: Imprensa Nacional, 1910-1915.  
295  
O resultado desta elaboração é o que se vê na Imagem 1. Pedreiros e engenheiros foram  
citados em todos os relatórios, sendo que apenas os serventes de obras2, operários em metais e  
canteiros foram citados em mais da metade destes relatórios, e por isso aparecem coloridos.  
Todos as demais categorias foram citadas em, ao menos, um e até cinco relatórios, quanto maior  
o tamanho da fonte na imagem, em mais relatórios dada categoria foi citada. A variedade das  
categorias demonstra a sofisticação das obras e acabamentos. A historiografia pontua, devida e  
tradicionalmente, a ostensiva importância dos engenheiros nas obras públicas. No entanto, o  
que podemos ver é que trabalhadores como pedreiros, serventes de obras, canteiros e  
metalúrgicos são, sistematicamente, nublados em seu fazer laboral. Foram estes produtores  
diretos que destruíram/construíram o porto do Rio de Janeiro, no alvorecer do século XX.  
Optamos por focar nos operários da construção civil, indústrias e ofícios conexos por  
constituírem a maior parte dos contratados diretamente por C. H. Walker & C., outras empresas  
dedicadas à construção do porto e pela própria CFAOPRJ. A constituição de um mercado de  
trabalho já era uma realidade em construção na cidade do Rio de Janeiro. No início do recorte  
2 Esta categoria é a reunião das expressões análogas “servente de obras” e “servente de pedreiro”.  
Gustavo Gonçalves Fagundes; Thiago Vinicius Mantuano da Fonseca  
cronológico desta investigação, os operários da construção civil acumulavam-se, acima da  
média, residindo nas quatro freguesias portuárias por fator óbvio: a proximidade do principal  
mercado de trabalho em seu labor as obras do porto e as reformas urbanas. Evidentemente  
que essa situação pode ter sido atenuada após uma década de obras decorridas, mas certamente  
era um fato de peso no arranque daquele processo.  
Segundo o Recenseamento do Rio de Janeiro (1906), 7833 “operários em edificações”  
uma fração importante da força de trabalho naquelas obras residiam nas freguesias  
portuárias no princípio do processo de destruição/construção do porto, o que significava  
relevantes 24.6% frente ao total destes na cidade. Dentre as 25 freguesias urbanas e suburbanas  
da cidade, a Gamboa se destacava como a quarta maior concentração destes operários, Santa  
Rita era a sexta, Santana a décima primeira e São Cristóvão a décima segunda.  
Tabela 1: Operários em Edificações no Rio de Janeiro (1906).  
Operários da  
Brasileiros  
%
Estrangeiros  
%
TOTAL  
Construção Civil  
Rio de Janeiro  
Gamboa  
Santa Rita  
Santana  
São Cristóvão  
14810  
1490  
639  
448  
985  
46.6%  
37.2%  
30.8%  
26.1%  
59.2%  
16990  
1491  
1436  
1273  
681  
53.4%  
62.8%  
69.2%  
73.9%  
40.8%  
31800  
2371  
2075  
1721  
1666  
Fonte: RIO DE JANEIRO (cidade). Recenseamento do Rio de Janeiro (Districto Federal, 1906). Rio de Janeiro:  
296  
Officina de Estatística, 1907.  
Não chega a constituir um dado impressionante, mas 7826 destes operários em  
edificações nas freguesias portuárias eram homens, apenas 7 eram mulheres. Também não  
surpreende o grau de instrução naquelas freguesias. Dentre os homens com mais de 20 anos,  
eram analfabetos: 26.6% em Santa Rita, 33.6% em Santana, 35.6% na Gamboa, 26.5% em São  
Cristóvão. Um dado que impressiona é a proporção de estrangeiros dentre os operários em  
edificações nas freguesias portuárias. Conforme é possível observar na Tabela 1, estes  
operários eram majoritariamente estrangeiros sobretudo, portugueses e espanhóis na cidade  
e, especialmente, nas freguesias portuárias mais adensadas, em 1906. Não à toa, aquelas obras  
atraíam muitos estrangeiros.  
É fato que o governo não impôs padrões rígidos para as condições de trabalho e salariais  
dos operários contratados por C. H. Walker & C., muito menos o fazia através da execução via  
CFAOPRJ. No entanto, isto não deve levar a crer que a composição dos produtores diretos  
daquela obra era, majoritariamente, branca e europeia. Conhecedores da composição nacional  
dos residentes nas imediações das obras, o governo resolveu fazer uma única exigência quanto  
a contratação do pessoal técnico, administrativo e operário: no “Contracto Entre o Governo  
Libertas, Juiz de Fora, v. 24, n. 1, p. 282-318, jan./jun. 2024. ISSN 1980-8518  
Quem construiu o "Caes do Porto"? As marcas das relações raciais e da superexploração  
Federal e C. H. Walker & Comp., Limited, com sede em Londres, para a execução das obras  
de melhoramento do porto do Rio de Janeiro” (Brasil, 1904, p. 538), segundo a cláusula LIII,  
dois terços dos contratados pelos empreiteiros ingleses deveriam ser brasileiros (Brasil, 1904,  
p. 550), mas não há nenhuma evidência quanto a fiscalização desse compromisso.  
Infelizmente, não nos é possível trabalhar com dados provenientes de informações  
censitárias a respeito da composição racial dos operários em edificações nas freguesias  
portuárias. Por força de designação abertamente eugenista, os censos de 1906 e 1920  
simplesmente não inquiriram os entrevistados sobre sua raça ou cor. Segundo Anjos (2013, p.  
110):  
Assim, mesmo no Censo de 1920, no qual o quesito racial não foi pesquisado,  
em seu texto de introdução é assinalado que o Brasil atingiria a pureza étnica  
através da miscigenação e da imigração europeia [...] o censo, uma publicação  
garantida pelo estado, endossava uma visão de sociedade e nação  
peculiarmente racista como “científica”.  
Consideramos como abertamente aceita pela historiografia a hipótese de que, no começo do  
século XX, as freguesias portuárias do Rio de Janeiro constituíam território marcadamente  
negro. Nas palavras de Roberto Moura (1995, p. 64):  
Achando progressivamente vagas no trabalho regular oferecido pela indústria,  
pela construção e pelo comércio, mas sempre em desvantagem com o  
concorrente branco, nacional ou estrangeiro, a presença do negro no Rio de  
Janeiro se tornaria tradicional no cais do porto. A maioria, entretanto, seria  
expelida para ocupações acessórias ou claramente marginais às órbitas oficiais  
do trabalho, aparecendo secundariamente, e sendo mobilizada em maior  
número em situações especiais, como nas obras da cidade, sempre servindo  
como um exército proletário de segunda linha que, manipulado pelos  
empresários, facilitaria a manutenção do baixo preço pela mão-de-obra.  
297  
A proporção de pessoas negras nas freguesias de Santa Rita, Santana, Gamboa e São  
Cristóvão é, mais recente e rigorosamente, vista como acima da média no computo geral da  
cidade, no início do século XX. No entanto, não deve ser exagerada, até para que entendamos  
plenamente a realidade social que os sujeitos negros encaravam (Honorato, 2016).  
De toda forma, associando as características socioprofissionais de operários da  
construção civil a sua elevada concentração habitacional nas freguesias portuárias, sendo estas  
com expressiva presença negra, presumivelmente, podemos indiciar em termos gerais aquilo  
que as amostras oferecidas por outras fontes comprovam pontualmente.  
Retornemos, então, ao ponto de reflexão sobre a magnitude daquelas obras e da força  
de trabalho que suscitavam. Obtivemos escassas referências quanto ao número de trabalhadores  
nas oficinas e canteiros das obras do porto, e é claro que as evidências são raras devido a relação  
capital-trabalho, a sofisticação, tamanho e relevância da própria construção do porto. A forma  
Gustavo Gonçalves Fagundes; Thiago Vinicius Mantuano da Fonseca  
contratual mais recorrente naquelas obras era a contratação de indivíduos ou turmas por jornada  
ou tarefa, os tão conhecidos “jornaleiros”. Exceção feita às oficinas de C. H. Walker & C., na  
Ponta da Areia, e um pequeno grupo de contratados de forma fixa pela CFAOPRJ como  
ajudantes de ordens e serviços de urgência (Brasil, 1904, dec. 5031), a maioria absoluta dos  
trabalhadores contratados para atuar nas diferentes frentes daquelas obras tinham vínculo frágil  
e efêmero, experiência penosa e remuneração incompatível com os elevados níveis de  
produtividade e o quão arriscado era seu trabalho (Benchimol, 1990, p. 231).  
Na cerimônia de início obras do porto, em 29 de março de 1904, cerca de 1.500  
operários compareceram à Praça Municipal e em embarcações nas imediações daquela orla,  
onde viram passar o presidente da República, representantes da C. H. Walker & C. e demais  
representações que participaram de cerimônia e banquete nos escritórios do edifício da  
Companhia Docas Nacionais. No entanto, apenas duas pequenas comissões foram recebidas  
pelas autoridades no interior do recinto. Mesmo assim, estavam sob a direta responsabilidade  
de engenheiros que os “ciceroneavam” e, assim, hipocritamente, eram tratados:  
Como uma nota muito feliz dessa deslumbrante festa, a mais bela a que temos  
assistido, damos abaixo a descripção do almoço aos operários, que, para dizer  
a verdade, eram os legítimos donos da extraordinária festa. [...]  
Os operários do canal eram representados por uma commissão de 25 homens,  
acompanhada dos Drs. Lucas Bicalho e Alfredo Niemeyer, engenheiros das  
obras que ali estão sendo feitas, e os da dragagem representados por uma  
commissão de 35 operarios, acompanhados do respectivo engenheiro,  
Adolpho Magalhães. [...]  
298  
Todos os trabalhadores traziam à lapela do casaco o distinctivo da empresa -  
um laço de fita azul e branco (O Malho, 02/04/1904, p. 19, grifos nossos).  
Perseveremos em temos quantitativos: um ano após o início das obras, por ocasião do  
movimento grevista que os atingiu, Joseph Walker responsável pela empreiteira inglesa no  
Brasil – declarava ter sob seu comando e trabalhando normalmente “dois mil e tantos operários”  
(A Notícia, 09/05/1905, p. 2); provocada por ofício de Francisco Bicalho, em 1908, C. H.  
Walker & C. declarava manter 1100 operários, diariamente, distribuídos da seguinte forma  
naquele momento: 150 nas oficinas da Ponta da Areia; 100 na plataforma de lançamento da Ilha  
de Santa Bárbara; 120 nas dragagens; 470 nas pedreiras, aterramentos e cais; e 260 na  
construção dos armazéns (Brasil, 1908). Essas três evidências históricas demonstram que  
Walker dispunha, ao mínimo, de mil a dois mil homens para as obras que executava.  
Entretanto, o quantitativo nos canteiros de Walker não basta. Fica patente que, embora  
aquele empreiteiro inglês tenha recebido o primeiro e mais abrangente contrato, não realizou  
exclusivamente, nem foi a única empresa a atuar na construção do porto. Do Balanço Contábil  
da CFAOPRJ, após dois anos e três meses de atividade, ao final de 1905, extraímos que aquela  
Libertas, Juiz de Fora, v. 24, n. 1, p. 282-318, jan./jun. 2024. ISSN 1980-8518  
Quem construiu o "Caes do Porto"? As marcas das relações raciais e da superexploração  
repartição havia contratado enquanto “pessoal jornaleiro” e “pessoal provisório” cerca de 1200  
trabalhadores avulsos, contratados de forma rotativa e em volumes variáveis diretamente pelo  
poder público (Brasil, 1905).  
O orçamento da estrutura funcional da comissão previa 106 servidores como “pessoal  
do quadro” para administração e fiscalização das obras. Para efeito de comparação, todo o  
Ministério de Indústria, Viação e Obras Públicas, excetuando as empresas sob seu controle,  
contava com 207 servidores no ano anterior (Brasil, 1904), o que nos leva a crer que tamanho  
aparato de orçamento e pessoal era minimamente compatível com as projetadas funções que  
cabiam à comissão e demandavam centenas, senão mais de um milhar, de trabalhadores  
concomitante e diretamente contratados.  
Posto isso, não é exagero assegurar que, na maior parte de nosso recorte cronológico,  
as obras do porto do Rio de Janeiro dispuseram de trabalhadores na ordem dos milhares em  
diferentes frentes, comandadas por agentes de Estado e empresas privadas, direta ou  
indiretamente. A contratação de 1200 trabalhadores pela CFAOPRJ, ao longo de 27 meses,  
antecedendo, portanto, o início formal das obras, demonstra que as atividades preparatórias  
concernentes aos projetos e planos para destruição/construção do porto já podiam servir para  
estipulação da forma e composição das relações laborais dominantes nos futuros canteiros de  
obras. Também é indício do volume de braços requerido para as frentes de trabalho  
complementares às dos empreiteiros ingleses e promovidas diretamente ou contratadas junto a  
outros empreiteiros e fornecedores pela comissão.  
299  
Ante o já exposto sobre a superexploração da força de trabalho, façamos uma inflexão  
sobre a vigência da categoria no período aqui analisado. Segundo Luce, a superexploração pode  
ser encontrada quando a submissão do trabalho ante ao capital é agravada pelo cariz dependente  
de economias nacionais funcionalizadas em patamares rebaixados pelo centro do capitalismo  
mundial. Sistema este pensado nos termos de uma totalidade internamente desigual e em que  
as classes dominantes estrangeiras e nacionais, consorciadas no caso brasileiro submetem  
certos povos (pela força ou através de constrangimentos vários) ao jugo imperialista, com graus  
diferenciados de dominação e mediação, mas, via de regra, visando mantê-los dependentes e  
limitados no avanço das suas forças produtivas:  
Aforça de trabalho, na superexploração, além de estar submetida a exploração  
capitalista nas determinações mais gerais da Lei do Valor, está também,  
submetida às determinações específicas desta, sob as quais é agudizada sua  
tendência negativamente determinada, que atua de modo sistemático e  
estrutural sob as economias dependentes, provocando o desgaste prematuro  
da força de trabalho e/ou a reposição de seu desgaste de tal maneira em que a  
substância viva do valor não é restaurada em condições normais (isto é, nas  
Gustavo Gonçalves Fagundes; Thiago Vinicius Mantuano da Fonseca  
condições sociais dadas), ocorrendo o rebaixamento do seu valor (Luce, 2018,  
p. 155).  
Não é demais lembrar que o caso em tela é sobre a destruição/construção de um porto  
pago pelo fundo público com financiamento e seus altos encargos por um banco inglês que  
condicionou o empréstimo para realização da obra à contratação de uma empreiteira inglesa,  
sua cliente há muito tempo.  
Francisco de Oliveira nos lembra que essas manifestações não se esgotavam no  
ambiente de trabalho, ou apenas em seus desdobramentos necessariamente, mas se disseminam  
por toda as dimensões da vida dos trabalhadores. O sociólogo lembra do fenômeno das favelas  
e a autoconstrução, que demandava mais trabalho em tempo que deveria ser de descanso, como  
opção recorrente de habitação para classe trabalhadora (Oliveira, 2006, p. 39). Em artigo  
recente, Pereira (2023) historiciza a questão da ocupação do morro da Providência pelos  
trabalhadores com as piores condições de trabalho e vida residentes nas proximidades dos seus  
locais de trabalho, exatamente nas freguesias portuárias.  
Vejamos, então, como as obras do porto do Rio de Janeiro reproduziram as  
desigualdades sociais então estabelecidas, ao ponto da gravidade característica da categoria de  
superexploração do trabalho. Voltemos ao orçamento da estrutura funcional e ao Balanço  
Contábil da CFAOPRJ para depreender como as desigualdades estavam radicalmente expressas  
no funcionamento daquele órgão. A estrutura funcional decretada quando da constituição da  
comissão empenhava-se em pagar 696:440$000 em salários anuais para o “pessoal do quadro”.  
Para efeito de comparação, os servidores de todo MIVOP, excetuando as empresas sob seu  
controle, receberam 358:626$930 em 1903 (Brasil, 1904). A comissão não era apenas grande,  
seu corpo técnico deveria ser muito bem remunerado. Ao presidente da comissão, ao diretor  
técnico e ao diretor gerente estavam previstos, entre “ordenados” e “gratificações”, rendimentos  
base de 24:000$000 anuais; já aos serventes da secretaria, tesouraria, contabilidade e  
demolições estavam previstos salários de 1:440$000 anuais (Brasil, 1903).  
300  
Do Balanço Contábil da CFAOPRJ, após dois anos e três meses de atividade, ao final  
de 1905, a CFAOPRJ havia pagado 1.334:854$804 em salários do “pessoal do quadro”;  
enquanto o “pessoal jornaleiro” e o “pessoal provisório” receberam 3.705:064$086, o que nos  
faz concluir grave desproporcionalidade, pois haviam apenas 106 sujeitos no “pessoal do  
quadro”, já os jornaleiros e provisórios eram na ordem de mais de mil trabalhadores. Esses  
valores totalizavam o número realmente impressionante de 5.039:918$890 pagos em salários  
ao longo de 27 meses, um valor mensal médio de 186:663$662. Estas cifras eram inimagináveis  
para qualquer empresa privada de grande porte naquele momento. Estes valores significavam  
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Quem construiu o "Caes do Porto"? As marcas das relações raciais e da superexploração  
17.3% do despendido pela comissão. Os valores pagos em salários eram a segunda maior  
rubrica de despesas em seu balanço, destacando-se os valores recebidos por C. H. Walker & C.,  
que já alçavam 7.100:404$416 (Brasil, 1905).  
A primeira constatação a se fazer é que os salários nas obras do porto, nas avenidas, no  
canal do Mangue e nas demais reformas urbanas eram, via de regra, vistos como mais elevados  
que nos demais canteiros de obras da cidade. Segundo o semanário Os Annaes, com  
aproximadamente um ano de obras e serviços transcorridos, os empreiteiros ingleses  
reclamavam dos salários que pagavam aos operários (Os Annaes, 18/05/1905, p. 297). A base  
da argumentação de Walker residia na diferença de câmbio que, apreciado naquele momento  
face ao momento do ato de primeira contratação dos trabalhadores, valorizava os salários  
mesmo que mantidos em termos nominais.  
Com a inflação relativamente controlada nos primeiros anos das obras, os operários  
contratados por Walker, em 1904, tiveram módico ganho salarial mesmo sem reajuste nominal.  
O contrato entre o governo federal e os empreiteiros ingleses vigia recentemente e, nele, haviam  
algumas poucas restrições para admissões, manutenções e demissões de operários. No entanto,  
a associação entre a grande quantidade de trabalhadores necessários para consecução de suas  
atividades, a profusão de obras pela cidade e a própria organização de classe constrangiam  
momentaneamente o intento dos capitalistas ingleses, que era o seguinte: “Já tentaram reduzir  
os salários dos operarios, que não gozam de reducção nas suas despezas de moradia, de  
vestuario, e reagiram por meio de uma greve” (Os Annaes, 18/05/1905, p. 297-298).  
Os operários que a reportagem se refere eram canteiros trabalhadores que talhavam,  
moldavam e preparavam as pedras de cantaria para o cais nas oficinas da Ponta da Areia, em  
Niterói. Durante o primeiro ano de trabalho receberam de 6$000 a 8$000 pelo seu “jornal”, o  
que fazia variar o seu salário anual entre 1:200$000 e 2:400$000, dependendo das  
oportunidades de serviço e da negociação com o patrão. Walker, então, decidiu mudar a forma  
de cálculo do assalariamento desses operários, passando a oferecer um rendimento por  
produtividade: 7$000 por metro de pedras trabalhadas. Os operários exigiam 18$000 pela  
mesma tarefa, valor proporcionalmente compatível com o que já eram remunerados  
anteriormente naquelas oficinas. Ou seja, segundo a comissão de canteiros grevistas, na prática,  
os empreiteiros ingleses pleiteavam um rebaixamento em seus salários. O argumento do patrão  
era simples e perverso: a nova forma de remuneração e o valor proposto por tarefa era o que se  
praticava mais correntemente nas cidades do Rio de Janeiro e de Niterói. Em meio a esta queda  
de braço salarial, a Associação de Classe dos Operários em Pedreiras foi ao socorro dos  
301  
Gustavo Gonçalves Fagundes; Thiago Vinicius Mantuano da Fonseca  
grevistas e comunicou aos jornais que o “movimento paredista” naquelas oficinas havia se  
generalizado, contanto com mais de 300 operários mobilizados (Jornal do Brasil, 1905, p. 4).  
Para pôr os valores discutidos em perspectiva, perscrutemos o assalariamento mais geral  
de duas categorias profissionais que integravam grande parte da força de trabalho em que se  
baseou o processo que investigamos. Eulália Lobo nos apresenta o assalariamento nominal e  
anual de serventes de obras e pedreiros, entre 1900 e 1914, os quais compõe o Gráfico 1.  
As linhas no gráfico demonstram duas tendências distintas: os serventes de obras não  
parecem ter sido valorizados em termos nominais, mesmo com a grande oferta de trabalho  
acarretada pelas reformas urbanas e construção do porto; já os pedreiros, viveram uma  
valorização não só nominal, mas também real devido ao fato de que, em todo período, a  
inflação estava sob relativo controle e os preços variavam pouco, se mantendo abaixo do grande  
ascenso inflacionário nos últimos anos do século anterior até o momento de maior atividade  
construtora nos canteiros do porto e da expansão do mercado de trabalho na construção civil. É  
fato que a própria comissão pagava ligeiramente melhor que a média salarial, daí depreendemos  
que os salários praticados por Walker e outros empreiteiros menores eram os de “mercado”. Os  
salários dos pedreiros se enfraqueceram de acordo com que as obras terminavam e,  
especialmente, com o encerramento da CFAOPRJ. Segundo os levantamentos de Lobo, o  
salário nominal, médio e anual dos pedreiros decresceu em 47.8%, entre 1908 e 1914.  
No ano em que foi entregue o último armazém é possível notar uma excrescência: os  
serventes de obras receberam mais que os pedreiros, tendo o acréscimo relevante em seu salário  
nominal na série. Muito provavelmente, isso se deu porque, naquele momento, os trabalhos de  
reparos e manutenção de obras novas deveriam ser reforçados.  
302  
Gráfico 1: Salários Nominais Médios e Anuais de Serventes de Obras e Pedreiros no Rio de Janeiro (1900-1914)  
2500000  
2:244$219  
2000000  
1500000  
1000000  
500000  
0
1:169$997  
1900 1901 1902 1903 1904 1905 1906 1907 1908 1909 1910 1911 1912 1913 1914  
Servente de Obra  
Pedreiro  
Fonte: LOBO, Eulália. Historia do Rio de Janeiro: do Capital Comercial ao Capital Industrial e Financeiro.  
Rio de Janeiro: IBMEC, 1978, p. 804-805.  
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Quem construiu o "Caes do Porto"? As marcas das relações raciais e da superexploração  
O subemprego e ocupações de menor qualificação estavam na ordem do dia, o que tinha  
o significado de rebaixamento nas condições de vida. Portanto, “a competição individual no  
mercado de trabalho em termos de emergência de novos segmentos profissionais que se  
formam, em extratos interiorizados, aguça o preconceito de cor ou de “raça” (Moura, 2021, p.  
77). A digressão sobre a diferenciação salarial nos ajuda a ilustrar a dinâmica do mundo do  
trabalho no principal empreendimento do país, que se realizou em sua capital. O autor,  
inclusive, aponta que a ebulição de preconceitos raciais não se restringe aos negros, visto que  
eclodem sempre “que grupos profissionais, populacionais ou minorias nacionais procuram  
vender a sua força de trabalho por preço mais barato do que aquele pelo qual era comprado  
antes”, uma opressão que deve ser compreendida como “consequência e não causa da disputa  
do mercado de trabalho” (Moura, 2021).  
O fato é que houve notórios avanços nos projetos, nos planos, nas técnicas e tecnologias  
empregadas na destruição/construção do porto. A incorporação de conhecimento à engenharia  
nacional que a este processo foi inerente garantiu, em grande medida, grande parte dos ganhos  
de produtividade não só obtidos pontualmente, mas incorporados ao ramo da construção civil  
com essa experiência. A promessa de que a criação daquele porto era um resultado promissor  
para o fortalecimento da economia nacional era fortalecida com os avanços galgados com a  
própria obra. No entanto, tudo isto não foi o suficiente para que o assalariamento dos serventes  
melhorasse expressivamente e, ao final das contas, depois de algum ganho, as perdas no  
assalariamento dos pedreiros foram severas. A primeira manifestação da superexploração –  
pagamento da força de trabalho abaixo do seu valor está, aqui, evidenciada.  
303  
Este fato era agravado pelo desrespeito em forma de atraso salarial perpetrado por C. H.  
Walker & C. Foi possível levantar informações na seção Queixas do Povo do Jornal do Brasil  
que se referem a, no mínimo, quatro ocorrências (09/11/1905; 29/09/1909; 22/12/1909;  
29/12/1909) em que trabalhadores de distintas frentes de trabalho expressavam seu  
descontentamento por essa razão. O natal de 1909 foi perturbador para os empregados por  
Walker. Através de pedidos de publicação no jornal, apelavam pelo pagamento do seu salário  
de novembro, vencido há semanas, antes dos festejos de fim de ano (Jornal do Brasil, 1909, p.  
11). Ademais, esses sujeitos habitavam uma cidade em franco processo de monopolização e  
especulação imobiliária. Weid (2017) pontua que uma passagem de bonde das linhas da Rio  
Light poderia variar, de acordo com o trajeto e com a classe do assento, entre 100 e 500 réis. Já  
Carvalho demonstra como o peso da habitação se acentuou sugando os parcos rendimentos dos  
trabalhadores, especialmente a partir da administração municipal de Pereira Passos (Carvalho,  
1995).  
Gustavo Gonçalves Fagundes; Thiago Vinicius Mantuano da Fonseca  
A situação de fragilidade social e a pobreza patente dos trabalhadores das obras do porto  
provocaram uma resposta dos empreiteiros ingleses com o intuito de dirimir as consequências  
de tal situação social que afligiam seus canteiros, especialmente para manutenção de sua  
vitalidade física e capacidade de trabalho, mas também cumprindo o papel de combater os  
comportamentos ou práticas consideradas recrimináveis. Para tanto, associado a clérigos  
metodistas, Joseph Walker viabilizou financeiramente a fundação do Instituto Central do Povo  
(Brito, 2019).  
A segunda manifestação da superexploração o prolongamento da jornada de trabalho  
além dos limites normais fica muito evidente na supracitada greve dos operários canteiros das  
oficinas de Walker na Ponta Areia. Um dos grandes receios do governo federal era que as obras  
se alongassem e extrapolassem em muito os orçamentos determinados o que era muito comum  
em obras públicas naquele tempo e acabou se confirmando para o caso , especialmente por  
que os recursos financeiros para consecução das obras foram obtidos através de empréstimos  
tomados no exterior e por que o porto do Rio de Janeiro ainda era a principal aduana da  
República (Mantuano, 2022). De forma que a fiscalização do governo se propunha a incidir não  
só sobre ação dos empreiteiros ingleses, mas também diretamente sobre os funcionários de  
escritório e operários contratados por Walker. Pela cláusula XXII do contrato entre as partes, a  
CFAOPRJ tinha a prerrogativa de ordenar a dispensa de qualquer trabalhador, a qualquer  
momento. A causa de atrasos que mais atemorizava o governo e a empresa eram justamente as  
greves operárias, isso fica expresso no contrato pela cláusula LIII: caso as paralisações  
paredistas ocorressem, haveria suspensão automática dos prazos de parte a parte (Brasil, 1904,  
p. 538-553).  
304  
Como já vimos, em maio de 1905, trabalhadores brasileiros e estrangeiros, brancos e  
negros, cruzaram os braços contra as condições salariais e a imprevisibilidade da jornada de  
trabalho impostas pelos empreiteiros ingleses. Esses trabalhadores tiveram a oportunidade de  
forma mais desimpedida por serem contratados em regime perene e terem posição,  
relativamente aos jornaleiros, de maior força ante ao empregador. Assim noticiava um periódico  
carioca:  
Fomos os primeiros a noticiar a greve do pessoal de canteiros da Ponta da  
Areia, em Nicheroy, pessoal este pertencente às obras do porto. Deu origem a  
essa manifestação paredista o facto do sr. Walker, empreiteiro daquelle serviço  
não se sujeitar a exigencia que seus operarios lhe fizeram do augmento de  
salario e delimitação de horas de trabalho (A Notícia, 29/05/1905, p. 1, grifos  
nossos).  
O movimento grevista foi relatado pelo ministro da Indústria, Viação e Obras Públicas  
como um estorvo para obras desprovido de legitimidade, da seguinte forma: “O serviço da  
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Quem construiu o "Caes do Porto"? As marcas das relações raciais e da superexploração  
dragagem prosseguiu com regularidade durante o anno, tendo sido apenas interrompido, por  
alguns dias, no mez de junho, devido á coacção exercida por grevistas sobre o pessoal das  
dragas e batelões de transporte” (Brasil, 1906, p. 570).  
Imagem 2: Operários na Inauguração de um Armazém (1908).  
305  
Fonte: RIO DE JANEIRO (cidade). Série Fotografias. Coleção Augusto Malta. Operários em Inauguração de  
Armazém. Rio de Janeiro: Arquivo Geral da Cidade do Rio de Janeiro, 1908 [circa].  
A fundação do Centro Internacional dos Pintores, em 1902; da Associação de Classe  
União dos Pedreiros, em 19033; da Sociedade de Carpinteiros e Artes Correlativas, em 1903;  
da Associação de Classe dos Operários em Pedreiras, em 19054; a interação e a participação  
destas na fundação da Federação das Associações de Classe, em 1905, (Batalha, 2009;  
Goldmacher, 2009) demonstram que o momento de radicais transformações vivido no Rio de  
Janeiro demandava uma resposta organizativa a altura por parte da classe trabalhadora, e isto  
fazia parte do seu próprio processo de formação.  
Na pose produzida por Augusto Malta5, dezenas de trabalhadores se aglomeram frente  
a um dos armazéns quando da sua inauguração. A Imagem 2 foi selecionada por privilegiar os  
3
Organização de caráter beneficente e de luta por melhoria nas condições salariais e de trabalho, especialmente  
na reivindicação por “colocação” de sócios em postos de trabalho e pelo disciplinamento das oito horas de trabalho  
diárias (Batalha, 2009, p. 183).  
4 Meses antes da renhida greve dos canteiros da oficina de C. H. Walker & C. na Ponta da Areia.  
5 Augusto Malta foi o primeiro fotógrafo da administração municipal do Rio de Janeiro, contratado pelo prefeito  
Gustavo Gonçalves Fagundes; Thiago Vinicius Mantuano da Fonseca  
reais construtores do porto, nela fica patente o elemento humano que dava vida àquelas obras e  
as relações raciais inerentes ali inerentes. Pouco importava ao autor os materiais para/de  
construção acumulados no pé da imagem, um telheiro improvisado à esquerda, ou o veículo  
sobre o qual os trabalhadores se acumulavam para deixar flagrar-se. Nesta imagem, Malta  
decidiu reunir os trabalhadores das obras do porto num plano geral em que o humano ganha  
relevância por seu acúmulo em volume apreciável cerca de cem pessoas e, muito  
provavelmente em contrapartida deste intento, os operários devem ter visto a oportunidade de  
exibir a bandeira da União dos Pedreiros, como é possível constatar no alto e à esquerda de  
quem visualiza a foto. Aproximada e detalhada, a fotografia demonstra uma maioria de negros  
posados para imagem produzida por Malta, o que reforça sua participação não só na esfera  
produtiva do empreendimento, mas também, supomos, na construção dos instrumentos de luta  
da classe trabalhadora ali conformada.  
A criação de organizações das categorias da classe trabalhadora era medida de proteção  
necessária ante ao quadro que expunha os trabalhadores a condições tais de intensidade no  
trabalho que lhes eram ofensivas a sua própria integridade física e elevavam o risco de vida  
naqueles canteiros de obras.  
A terceira manifestação da superexploração o aumento da intensidade do trabalho  
além dos limites normais pode ser vislumbrada a partir de informações tão simples quanto o  
registro factual de que a temperatura máxima registrada na cidade, em 1908, chegou a 37 graus  
celsius na sombra; e a umidade relativa do ar média, entre 1904 e 1911, era de 77% (Rio de  
Janeiro, 1914, p. 33-47). É possível especular que em canteiros de obras, oficinas e pedreiras a  
sensação térmica era ainda mais penosa para o exercício de atividades que necessitavam de  
intenso desempenho, com agilidade e grande força física. O quadro se mostra ainda mais grave  
quando nos deparamos com a informação que centenas deles residiam alojados em barracões  
em pleno canteiro de obras, na Ilha das Moças (Jornal do Brasil, 1906, p. 3).  
306  
O levantamento de informações em outras seções do Jornal do Brasil Desastre e  
Morte; Desastre; Suicídio; Santa Casa, Posto de Assistência Municipal, Afogados e Aggressões  
colaboram com o entendimento da dura, precária, tensa, arriscada e insalubre realidade dos  
trabalhadores das obras do porto. Nestas colunas do jornal que, reiteradamente, abria suas  
Francisco Pereira Passos para fotografar as reformas e obras de urbanização do Rio de Janeiro, iniciadas em 1903.  
Fotógrafo da municipalidade por mais de trinta anos (1903-1937), Malta atuava comprometido com projetos que  
privilegiavam o urbano em suas lentes, informando com suas imagens aquilo que os poderes federal e municipal  
queriam difundir a partir de sua visualização. As suas fotografias colaboravam com a imagem que estes poderes  
gostariam de construir da emergente metrópole brasileira - a segunda maior cidade do Hemisfério Sul -, procurando  
eternizar um Rio de Janeiro idealizado e em constante processo de “melhoramento” (Silva 2018). As imagens  
captadas por Malta, são pertencentes ao acervo do Arquivo Geral da da Cidade do Rio de Janeiro.  
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Quem construiu o "Caes do Porto"? As marcas das relações raciais e da superexploração  
páginas para denúncias a respeito daquelas obras, conseguimos identificar 59 casos de  
infortúnio, negligência e violência nas frentes de trabalho da destruição/construção do porto do  
Rio de Janeiro. A maioria dos casos (39) não tinham o local da ocorrência especificado,  
simplesmente sendo noticiado como acontecido nas “obras do porto”, mas alguns casos eram  
relatados em aparelhos flutuantes (5), caixões (4), andaimes (3), oficinas (3), pedreiras (3),  
embarcações (1) e trilhos (1). O gráfico a seguir demonstra a distribuição entre as motivações  
para as ocorrências relatadas nos 59 casos levantados, em que se pode aduzir as condições  
objetivas em que desempenhavam os trabalhos necessários para consecução das tão relevantes  
obras portuárias.  
Gráfico 2: Motivações para as Notícias Trágicas e/ou Violentas nas Obras do Porto (1904-1914).  
1
1
4
12  
23  
18  
Queda em Grande Altura no Sólido  
307  
Desabamento, Esmagamento, Choque, Atropelamento ou Impacto com Ferimento  
Queda na Água e/ou Afogamento  
Brigas e Agressões  
Mal súbito  
Suicídio  
Fonte: Elaboração própria com base em: Jornal do Brasil, Rio de Janeiro, [vários números], 1904-1914.  
Estes 59 casos envolviam 71 homens diretamente atuantes nas obras do porto, dos quais  
67 podem ser apontados como operários ou trabalhadores. A maioria dos homens era  
categorizada genericamente (66), mas em alguns poucos casos (5) foram reconhecidos como  
pedreiros, pintor, guarda-freio e engenheiro. Destas 71 pessoas, a maioria não tinha  
nacionalidade expressa (36), mas 22 eram portugueses, 6 “nacionais” ou brasileiros, 5  
espanhóis e 2 italianos, o que confirma a relevante presença de estrangeiros naquelas obras. A  
média das idades declaradas era relativamente elevada, de 37 anos. No entanto, apenas 14  
desses sujeitos tiveram a cor suscitada: 8 pretos, 5 pardos e 1 branco. Estas informações nos  
impõem, novamente, a evidência da existência de negros naquelas obras portuárias e, ainda  
mais, nos obriga a ressaltar a prática da distinção racial quando havia a necessidade de assinalar  
eventos com consequências infelizes ou funestas.  
Gustavo Gonçalves Fagundes; Thiago Vinicius Mantuano da Fonseca  
Dos 71 sujeitos que constam nas notícias deste levantamento, 42 tiveram o registro do  
seu falecimento na própria nota do jornal. Conforme o caso de um trabalhador português que  
faleceu instantaneamente por uma queda em grande altura no sólido:  
DESASTRE E MORTE NAS OBRAS DO PORTO  
Trabalhador nas obras do porto, na ilha das Moças, Jose Francisco Joaquim,  
de nacionalidade portuguesa, 33 anos de edade, casado e morador à praia  
Formosa, foi hontem victima de um desastre que lhe resultou a morte. Estava  
elle em um dos grandes andaimes ali existentes, quando caiu de grande altura,  
morrendo instantaneamente. Pelo dr. Azevedo Amaral, médico das obras, foi  
constatada a morte do infeliz trabalhador, cujo cadáver foi transportado para  
a casa de sua residência (Jornal do Brasil, 07/05/1905, p. 6).  
O relatório apresentado por Lauro Muller sobre aquele ano lamentava a morte de um  
dos funcionários do quadro da CFAOPRJ, após ser “victima de uma queda”. Entretanto,  
colocava o óbito noticiado pelo Jornal do Brasil em meio ao quantitativo de “acidentes”  
ocorridos nas obras da C. H. Walker & C. naquele ano, mesmo sem registrar a consequência  
funesta de, ao menos, um destes:  
Os acidentes havidos nos trabalhos da empresa, durante o anno findo, foram  
em numero de quatro, sendo dous no aparelho n. 1 e dois no aparelho n. 2, e  
motivados por quedas de operários dentro ou fora da enseccadeira.  
A Commissão teve igualmente de registrar a dolorosa perda de um de seus  
auxiliares, o tenente Dr. Aristides Ferreira Bandeira, victima de uma queda na  
noite de 30 de novembro, de cujas concequencias veio a falecer a 3 de  
dezembro (Brasil, 1906, p. 577).  
308  
Para entendermos o caráter diverso da periculosidade a que estavam expostos os  
trabalhadores, optamos por reproduzir a chocante morte do brasileiro e pardo Antônio Mendes:  
“[...] na occasião em que trabalhava como guarda-freio em um comboio de aterro, cahiu no leito  
da linha de modo tão desastrado que foi colhido pelas rodas dos "wagons" ficando cortado ao  
meio” (Jornal do Brasil, 10/02/1909, p. 5, grifo nosso). As quedas na água aconteciam devido  
aos operários serem atingidos, arremessados ou terem se desequilibrado de flutuantes e  
embarcações, como se pode ver na Imagem 3. Na maior parte das vezes também redundavam  
em falecimentos, como no caso do português José Reis que se desequilibrou de uma chata e  
acabou por perecer afogado, mesmo com os esforços de seus companheiros para salvá-lo (Jornal  
do Brasil, 23/12/1907, p. 5).  
O trabalho de menores de idade na destruição/construção do porto do Rio de Janeiro é  
outra dimensão da realidade que as notícias nos revelam. O Correio da Manhã noticiou que as  
crianças brasileiras José Firmino e Durão foram às vias de fato, após acalorada discussão,  
enquanto laboravam na Ilha das Moças. Após luta corporal, “Durão desvencilhando a mão  
direita puxou de uma faca e cravou-a nas costellas, do lado esquerdo, de Firmino. Este baqueou  
exangue, e o aggressor evadiu-se” (Correio da Manhã, 08/08/1906, p. 3). No entanto, as brigas  
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Quem construiu o "Caes do Porto"? As marcas das relações raciais e da superexploração  
e agressões mais comuns eram entre trabalhadores e seus chefes imediatos, como no caso de  
Ignácio que agrediu o encarregado José Augusto da Fonseca com uma pá (Jornal do Brasil,  
07/06/1908, p. 5).  
Trabalhar nas obras do porto era arriscado. Havia um certo reconhecimento das  
autoridades públicas a esse respeito. Em Niterói, o delegado de polícia Nascimento Silva  
resolveu interpelar Joseph Walker no sentido de “acautelar” a vida dos operários nas oficinas  
da Ponta Areia face aos “constantes desastres” lá ocorridos (Jornal do Brasil, 10/10/1906, p. 3).  
Imagem 3: Posição de uma Ensecadeira Quando Locada (1904-1911[?]) Recorte.  
309  
Fonte: RIO DE JANEIRO (estado). Coleção Fotográfica de Emygdio Ribeiro. Álbum das Obras do Porto do Rio  
de Janeiro (1913). Posição de uma enseccadeira quando locada. Localização: 025. Rio de Janeiro: Arquivo  
Público do Estado do Rio de Janeiro, 1904-1911[?].  
Emygdio Ribeiro6 procurava registrar a grandiosidade dos flutuantes enquanto  
componentes infraestruturais das obras no trabalho de construção do cais, mas, conforme é  
6
Emygdio Ribeiro era engenheiro de ofício, funcionário público na carreira pela Prefeitura do Distrito Federal  
desde a década de 1890, sendo cedido ao Ministério da Indústria, Viação e Obras Públicas, passou a exibir suas  
habilidades técnicas de fotógrafo em Niterói, por suas relações políticas, e isso passou a ser instrumentalizado em  
seu ofício de origem (Turazzi 2012). O compromisso das imagens produzidas por Ribeiro era com a engenharia, a  
posição técnico-política dos engenheiros no contexto republicano e os frutos de suas atividades. Esse compromisso  
pôde ser acentuado devido ao fato de que, em meio ao trabalho de fotógrafo da CFAOPRJ, ele se aposentou das  
Gustavo Gonçalves Fagundes; Thiago Vinicius Mantuano da Fonseca  
possível se constatar na Imagem 3, acabou flagrando as arriscadas posições em que os  
trabalhadores eram aglomerados e se deslocavam, na muralha e na própria ensecadeira. Além  
da precariedade de certos veículos e materiais empregados nas técnicas construtivas, é possível  
ver além do que o engenheiro-fotográfo gostaria de eternizar: os sujeitos brancos, em posição  
e vestimentas de autoridade ou mesmo os caracteristicamente operários, olham diretamente  
para câmera e posam para fotografia; já o trabalhador negro em uma embarcação mais próxima  
da ensecadeira sequer posiciona seu rosto de frente para câmera no momento da produção da  
imagem.  
A postura deste trabalhador negro é, minimamente, manifestação de quem não sabe ou  
não se importa com o registro fotográfico. Talvez o fizesse por ter questões mais graves para  
se preocupar. Para se ter uma ideia, apenas em 1908, o consultório médico das CFAOPRJ  
realizou 2695 curativos, 160 consultas e 50 visitas à domicílio (Brasil, 1909, p. 327).  
Hoje, é difundido que o trabalho em câmaras comprimidas acarreta diversos riscos à  
saúde de quem labora em tais condições, ainda mais se 1- a exigência física for grande; 2- se a  
calibragem da compressão for desmedidamente alta; 3- se as jornadas forem demasiadamente  
longas; 4- se não houver nenhuma proteção individual, especialmente a auricular, devido ao  
grande ruído das máquinas de ar comprimido; 5- se não houver a necessária descompressão em  
câmara específica e repouso (Hachich et al, 2008, p. 402). Toda extensão dos 3355 metros  
lineares de cais foi realizada pela técnica de caixão perdido a ar comprimido, dentro de onde os  
trabalhadores nivelavam, limpavam e terminavam de dessecar o leito submarino para que este  
recebesse os volumes de pedra e o concreto componentes da fundação.  
310  
Em nenhuma das fontes compulsadas percebe-se qualquer procedimento ou  
preocupação para preservação da saúde dos trabalhadores, não há qualquer menção ao pós-  
trabalho nos caixões mantidos a ar comprimido. Ao contrário, as jornadas escorchantes e  
imprevisíveis, as tarefas cada vez mais exigentes e arriscadas, e a premência de entregar a obra  
nos prazos contratados corroboram com a avaliação no sentido contrário.  
O ambiente de trabalho nas obras do porto pode ser caracterizado como insalubre por  
suas condições materiais, sendo agravadas pelas condições ambientais dos locais em que  
estavam instaladas. Um indício disto é a notícia que dá conta do falecimento de um trabalhador  
preto que não teve a identidade reconhecida e foi encontrado morto, às portas de um barracão  
das obras do porto. O homem aparentava ter 70 anos de idade, estava vestido e foi encontrado  
suas atividades na Prefeitura do Distrito Federal e, assim, pôde dedicar sua larga experiência como engenheiro e  
grande habilidade como fotógrafo exclusivamente às obras do porto do Rio de Janeiro.  
Libertas, Juiz de Fora, v. 24, n. 1, p. 282-318, jan./jun. 2024. ISSN 1980-8518  
Quem construiu o "Caes do Porto"? As marcas das relações raciais e da superexploração  
caído no chão, às 14 horas. Ao Jornal do Brasil, o inspetor daquela circunscrição especulava a  
causa da morte: “[...] não aparentava ferimentos nem contusões, parecendo tratar-se de um caso  
de insolação” (Jornal do Brasil, 11/12/1905, p. 2).  
As mortes nas obras do porto tornaram-se assunto corriqueiro e, como tudo que corria  
pelas ruas da cidade, acabaram tendo lugar na crônica de João do Rio.  
Imagem 4: Trecho de “Os Humildes”, Crônica de João do Rio (1909).  
311  
Fonte: RIO, João do. Cinematographo (Chronicas Cariocas). Porto: Lello & Irmão, 1909, p. 197.  
O nível rebaixado das condições em que determinado grupo social e/ou racial vende sua  
força trabalho, o que se configura em disputa no mercado contra outros agrupamentos nacionais  
e/ou raciais (minoritários ou não) é um aspecto já mencionado por Moura como parte da  
equação que redunda na difusão do preconceito de racial. Sendo este uma consequência e não  
a causa da disputa no mercado de trabalho. Portanto, agudizar os conflitos no mundo do  
trabalho, ainda que por ocupações laborais degradantes, possibilita uma pressão negativa no  
valor da força de trabalho. Logo, patrões e empresários dos diversos ramos se favoreciam com  
a opressão racial por poder remunerar de forma mais barata, exigir jornadas mais longas e mais  
intensas dos agrupamentos já oprimidos, o que aqui apontamos ser o caso dos trabalhadores  
negros.  
Gustavo Gonçalves Fagundes; Thiago Vinicius Mantuano da Fonseca  
Imagem 5: Trabalhadores em Frente as Campânulas no Interior de uma Ensecadeira Flutuante (1904-1911[?]).  
312  
Fonte: MINAS GERAIS (estado). Coleção Nelson Coelho de Senna. Operários no Interior de um Flutuante  
Usado na Construção do Cais do Porto da Cidade do Rio de Janeiro. Localização: NCS-137(42). Belo  
Horizonte: Arquivo Público Mineiro, 1904-1911[?].  
O descaso com as vestimentas, a inexistência de qualquer proteção individual, as  
arriscadas formas de trânsito e a própria constituição material precária das embarcações,  
flutuantes e canteiros de obras onde os trabalhadores laboravam, corroboram com a avaliação  
de que naqueles canteiros grassava a superexploração do trabalho. A Imagem 5 não foi  
selecionada para compor o Álbum das Obras do Porto do Rio de Janeiro (1913) (Turazzi,  
2012), mas é parte de uma coleção de cópias encontradas no acervo do deputado mineiro Nelson  
Coelho de Senna. A fotografia excluída do álbum que deveria ser eternizado mostra aquilo que  
sustentamos: trabalhadores negros posam ao lado da campânula que coroava o mecanismo a ar  
comprimido, alguns deles seguram ferramentas de trabalho; ao seu lado, todo de branco, de  
chapéu e sapatos, provavelmente um engenheiro da empreiteira executora ou da fiscalização  
governamental. Este avanço técnico era fundamental para realização da obra conforme  
projetada, mas contrasta com a precariedade das condições materiais de trabalho e,  
fundamentalmente, as condições pessoais em que os trabalhadores se apresentam na imagem.  
Libertas, Juiz de Fora, v. 24, n. 1, p. 282-318, jan./jun. 2024. ISSN 1980-8518  
Quem construiu o "Caes do Porto"? As marcas das relações raciais e da superexploração  
A vulnerabilidade social destes trabalhadores era instrumentalizada para forma como se  
davam as relações de trabalho nas obras portuárias. É importante pontuar que as relações  
laborais eram tensas e problemáticas em todo processo de destruição/construção do porto, não  
apenas nas partes sob o comando de C. H. Walker & C. A própria condução pelos engenheiros  
da CFAOPRJ era questionada, como se vê na seguinte notícia:  
Os operários das Obras do Porto, destacados na secção da Avenida do Mangue,  
queixam-se de que lhes são infligidos máos tratos por um engenheiro das  
respectivas obras, sem que dêem motivos para tal procedimento. Dizem os  
reclamantes que quando não se submettem às desarazoadas ordens do  
engenheiro, são espancados e demitidos (Jornal do Brasil, 20/12/1909, p. 7,  
grifos nossos).  
Os episódios de abuso nas relações laborais se tornaram mais recorrentes e graves após  
alguns anos de obras decorridas. Quanto mais se avança no recorte cronológico, mais é possível  
se deparar com casos de conflitos comuns do cotidiano da construção civil que passaram a  
redundar em suspensões e demissões. Em 1909, Benedicto Medina foi levado ao extremo após  
desmoralização aberta e suspensão aplicada pelo seu superior por chegar ao trabalho  
embriagado. Ao chegar em casa, o trabalhador ingeriu grande quantidade de ácido fênico e foi  
encontrado morto por seus vizinhos (Jornal do Brasil, 17/07/1909, p. 6).  
A realidade é que os casos acima relatados demonstram um progressivo distanciamento  
dos produtores diretos dos resultados de seu trabalho. Conforme os primeiros metros de cais  
eram consolidados, tomava forma o porto do Rio de Janeiro e os operários que o construíram  
passaram a ser, gradativamente, afastados. Quanto menor era a demanda por trabalho naquelas  
obras, mais rígidos e abusivos eram os encarregados, bem como menores eram os salários.  
Munidos dessas informações, é possível avaliar a quarta manifestação da  
superexploração da força de trabalho: o distanciamento histórico moral do valor da força de  
trabalho daquilo que, efetivamente, os trabalhadores tinham acesso. É evidente que o  
funcionamento do porto construído por aqueles operários permitiria o Rio de Janeiro continuar  
a receber um sem-número de mercadorias a serem consumidas na cidade e/ou integrarem a  
produção e circulação de outros bens e serviços produzidos e instalados na capital. A promessa  
era que ao novo porto se garantiria capacidades superiores com aquela obra, ao ponto de  
(re)atrair o comércio e pessoas em novo, diversificado, adequado e revigorado fluxo. Os  
contornos da greve dos operários na Ponta da Areia demonstram que, ao menos uma parte deles,  
tinham consciência da envergadura do que participavam.  
313  
Prometeu-se àqueles operários não apenas o seu parco salário, mas que eles seriam “os  
legítimos donos da extraordinária festa” – nas palavras da reportagem de O Malho e que  
Gustavo Gonçalves Fagundes; Thiago Vinicius Mantuano da Fonseca  
aquela obra pública retornaria em melhores condições para vida de todos. Certamente que as  
coisas que passaram a frequentar aquele cais mudaram o senso comum na dimensão do  
consumo, inclusive na classe trabalhadora, introduzindo novos gostos e necessidades gerais.  
Deixamos um questionamento aos leitores: é possível asseverar que aqueles trabalhadores os  
“legítimos donos” – participaram dos louros obtidos com a construção do porto aquela  
“extraordinária festa”?  
Considerações finais  
Acreditamos que a reflexão contida nessas páginas possa avançar no destrinchar da  
história social do trabalho no Brasil, principalmente por dar rosto e voz aos trabalhadores que  
construíram a riqueza nacional. A ênfase dada aos trabalhadores negros ocorre justamente por  
estes serem, de forma recorrente, omitidos da trajetória de conformação da classe trabalhadora  
em nosso país. A opção por utilizar o porto do Rio tem relação direta com a relevância desse  
empreendimento, o detalhar documental, das imagens e dados nos ajudam a definir a presença  
marcante dos trabalhadores negros nessa iniciativa.  
Ressaltamos, tal qual exposto anteriormente, a participação efetiva desses sujeitos,  
homens e mulheres, no fazer-se da classe trabalhadora no Brasil. Um traço que se realiza não  
somente na venda da força de trabalho no pós-abolição ou no trabalho e presença massiva no  
aparato produtivo, mas principalmente pela experiência de classe acumulada e desenvolvida  
nas trajetórias de lutas e resistências. As greves e organizações operárias vinculadas às obras  
do porto não surgiram por mera espontaneidade ou uma iluminação mágica, a herança de classe  
foi responsável direta por impulsionar aqueles trabalhadores na defesa de melhores condições  
de vida e trabalho. Temos, assim, a constatação da população negra como protagonista dos  
enfrentamentos de classe.  
314  
Obviamente, os trabalhadores do porto não se restringiam aos negros. E essa diversidade  
de sujeitos é mencionada para abordar a complexidade da conformação da classe trabalhadora  
brasileira. Apontar este fato está longe de ser uma intenção de reduzir a potencialidade da sua  
participação ou retirar de cena a opressão racial. Pelo contrário, auxilia na demonstração de  
como a relação entre nacionais (brancos, negros e descendentes diversos) e estrangeiros  
(portugueses em sua maioria) foi corroída pelo racismo. O que se origina como disputa por  
espaço no mercado de trabalho, algo presente na sociabilidade capitalista, uma busca por  
melhores possibilidades para vender sua força de trabalho, passa a ser introjetada pela opressão  
racial. Uma ideologia de dominação que não fica isolada nos atos individuais, mas que se reflete  
Libertas, Juiz de Fora, v. 24, n. 1, p. 282-318, jan./jun. 2024. ISSN 1980-8518  
Quem construiu o "Caes do Porto"? As marcas das relações raciais e da superexploração  
em mecanismos de barragem social e em última instância no rebaixamento das condições de  
vida e trabalho.  
Buscamos aqui analisar a obra do porto e as relações entre seus trabalhadores em toda  
sua complexidade enquanto um laboratório do que viria se tornar o conjunto das relações  
laborais e raciais no Brasil. Conforme apontado na presente reflexão, um empreendimento  
dessa magnitude não ficou alheio à dinâmica de nossa formação econômica e social. Portanto,  
percebemos ali as marcas da dependência e de seu traço mais marcante: a superexploração da  
força de trabalho. E que dada a vigência estrutural do racismo em nossa sociedade, é por isso  
agudizada em um sentido negativo.  
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O homem para todas as estações: irracionalismo  
e neokantismo na sociologia de Max Weber  
Man for all seasons: irrationalism and neo-Kantianism in  
Max Weber's sociology  
Gabriel Magalhães Beltrão*  
Resumo: A sociologia de Max Weber emerge  
em uma Alemanha em que o irracionalismo era  
uma perspectiva ideológica muito forte. Deste  
ambiente intelectual marcado pelo pessimismo  
cultural (Löwy) o sociólogo de Heidelberg não  
passou incólume: na esteira de Georg Lukács,  
busca-se apresentar neste artigo as raízes  
irracionalistas do pensamento weberiano, sua  
Abstract: Max Weber's sociology emerged in a  
Germany where irrationalism was a very strong  
ideological perspective. From this intellectual  
environment marked by cultural pessimism  
(Löwy), the Heidelberg sociologist did not pass  
unscathed: in the wake of Georg Lukács, this  
article seeks to present the irrationalist roots of  
Weber's thought, its connection with the deeply  
subjectivist and fatalist ideological universe of  
Germany in its imperialist phase. However,  
these roots in Weber's thinking did not develop  
to the point of preventing him from erecting an  
epistemology that praises reason and science,  
moving away to a certain extent from the  
mythical and escapist thinking of German  
irrationalism. The author is presented as a  
beautiful synthesis of the "Head of Janus" that  
characterizes bourgeois thought of decadence  
(Coutinho), a "man for all seasons" (Mészáros),  
capable of synthesizing irrationalism and  
logical-formal reason, nihilism and the heroic  
resignation of life in bourgeois sociability in his  
theoretical corpus.  
conexão com  
profundamente subjetivista  
o
universo ideológico  
fatalista da  
e
Alemanha na fase imperialista. Entretanto, tais  
raízes do pensamento de Weber não se  
desenvolveram a ponto de o impedir de erigir  
uma epistemologia que enaltece a razão e a  
ciência, afastando-se em certa medida, do  
pensamento  
mítico  
e
escapista  
do  
irracionalismo alemão. O autor é apresentado  
como uma bela síntese da “Cabeça de Janus”  
que caracteriza o pensamento burguês da  
decadência (Coutinho), um “homem para todas  
as estações” (Mészáros), capaz de sintetizar no  
seu corpus teórico o irracionalismo e a razão  
lógico-formal, o niilismo e a resignação heroica  
da vida na sociabilidade burguesa.  
Palavras-chaves:  
Irracionalismo;  
Razão  
Keywords: Irrationalism; Formal reason;  
formal; Decadência ideológica.  
Ideological decadence.  
* Doutorando em Serviço Social pela Faculdade de Serviço Social/UFAL, mestre em Sociologia pelo Instituto de  
Ciências Sociais/UFAL, graduado em Ciências Sociais pelo Instituto de Ciências Sociais/UFAL. Professor EBTT  
de Sociologia do Instituto Federal de Alagoas. ORCID: https://orcid.org/0000-0001-8002-1589  
DOI: 10.34019/1980-8518.2024.v24.42805  
Esta obra está licenciada sob os termos  
Recebido em: 08/11/2023  
Aprovado em: 15/05/2024  
Gabriel Magalhães Beltrão  
1 - Decadência ideológica e a emergência do irracionalismo  
Na aurora da Modernidade, nos idos do século XV, as inovações sociais que emergem  
do interior da sociedade feudal produzem consequências ideológicas com alto potencial  
disruptivo. O crescente protagonismo do capital mercantil e o fortalecimento da produção  
manufatureira vai, paulatinamente, “assentando as bases para uma nova concepção de mundo,  
a qual coincide com um renovado interesse dessas classes pela riqueza material (…) e pela  
reivindicação do papel que ocupa o trabalho manual artesanal” (Gianna, 2022, p. 31). Do  
Renascimento até a primeira metade do século XIX, a burguesia pode ser considerada “porta-  
voz do progresso social, seus representantes ideológicos podiam considerar a realidade como  
um todo racional, cujo conhecimento e consequente domínio eram uma possibilidade aberta à  
Razão humana” (Coutinho, 1972, p. 8). A classe social emergente estava em conflito, ora aberto  
ora velado, com a sociedade feudal e seus ideólogos, de modo que a filosofia burguesa da época  
“codifica os princípios últimos e a concepção geral de mundo, próprios a este vasto movimento  
progressivo e libertador, que tão profundamente reformou a sociedade” (Lukács, 1979, p. 31).  
Dos renascentistas até Hegel, ápice do pensamento progressista burguês, os ideólogos  
sintetizavam – a despeito da heterogeneidade interna – valores que marcam essa etapa  
progressista da Modernidade. Nas palavras de Coutinho:  
Podemos resumi-lo, esquematicamente, em três núcleos: o humanismo, a  
teoria de que o homem é um produto de sua própria atividade, de sua história  
coletiva; o historicismo concreto, ou seja, a afirmação do caráter  
ontologicamente histórico da realidade, com a consequente defesa do  
progresso e do melhoramento da espécie humana; e, finalmente, a Razão  
dialética, em seu duplo aspecto, isto é, o de uma racionalidade objetiva  
imanente ao desenvolvimento da realidade (que se apresenta sob a forma de  
unidade dos contrários), e aquele das categorias capazes de apreender  
subjetivamente essa racionalidade objetiva, categorias que englobam,  
superando, as provenientes do ‘saber imediato(intuição) e do ‘entendimento’  
(intelecto analítico) (Coutinho, 1972, p. 14).  
320  
Segundo Lukács, entretanto, as revoluções 1830 e, principalmente, de 1848 produziram  
um efeito político e ideológico indelével sobre a burguesia: esta perde sua pulsão progressista  
apresentada até então, quando do seu embate com o feudalismo e suas reminiscências,  
convertendo-se numa classe social conservadora, orientada à preservação e à eternalização do  
realmente existente. O pensamento burguês desde então passa a refletir este compromisso social  
com o tempo presente, depurando-se, portanto, do humanismo, do historicismo e da razão  
dialética presentes na sua trajetória anterior.  
Deve-se frisar aqui que a decadência ideológica do pensamento burguês não se deve  
necessariamente a uma clara intencionalidade de classe dos ideólogos, mas principalmente ao  
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O homem para todas as estações: irracionalismo e neokantismo na sociologia de Max Weber  
avanço inaudito da mercantilização e o seu corolário, a fetichização de todas as esferas da vida  
humana. Nestas condições postas pelo capitalismo maduro – e que serão radicalizadas durante  
a fase imperialista – a atividade dos homens “tende a se ocultar à sua própria consciência, a  
converter-se na essência oculta e dissimulada de uma aparência inteiramente reificada”  
(Coutinho, 1972, p. 24). Assim, “Todas as relações sociais entre os homens aparecem sob a  
forma de relações entre coisas, sob a aparência de realidades ‘naturais’ estranhas e  
independentes da sua ação” (Coutinho, 1972, p. 24). O pensamento burguês da decadência  
expressa justamente essa coagulação da consciência à aparência fetichizada, a sua submissão  
ao espontaneísmo de uma sociedade reificada, eclipsando-se, portanto, a essência da realidade  
social: as relações sociais historicamente postas. Nas palavras de Coutinho:  
Esse traço essencial do pensamento decadente – o de ser um pensamento  
fetichizador – manifesta-se em todas as suas orientações, ‘racionalistas’ ou  
irracionalistas, ‘objetivistas’ ou subjetivistas, positivistas ou existencialistas.  
Nenhuma delas transcende a mera descrição da imediaticidade (Coutinho,  
1972, p. 25).  
A ciência e a filosofia sofrem uma inflexão com a decadência ideológica: despem-se do  
intuito da fase progressista de erigir uma concepção de mundo com base no reflexo  
desantropomorfizador, mirando a crítica do presente e o progresso emancipador da humanidade.  
A partir da segunda metade do século XIX, diversamente, emerge a tendência do pensamento  
burguês ao agnosticismo, “o qual pretende que não podemos nada saber da essência verdadeira  
do mundo e da realidade e que este conhecimento não teria aliás nenhuma utilidade para nós”  
(Lukács, 1979, p. 33). À ciência compete o papel de operacionalizar um conhecimento  
especializado, cujo objeto é artificialmente delimitado pelo sujeito cognoscente, criando-se uma  
série de ciências especializadas; à filosofia, por sua vez, compete o papel de “vigiar para que  
ninguém ultrapasse os limites definidos pelas ciências” (Lukács, 1979, p. 34), repudiando por  
princípio qualquer tentativa de se elaborar uma concepção de mundo coerente. Prevalece, desta  
maneira, a perspectiva segundo a qual o realmente existente, a sociedade capitalista e suas  
contradições intrínsecas, é uma condição ineliminável sobre a qual a consciência humana pode,  
na melhor das hipóteses, conhecer os fenômenos desconexos da totalidade social, bloqueando-  
se, assim, qualquer perspectiva ideológica orientada pelo vir a ser da realidade social. Segundo  
Gianna:  
321  
Esta tendência apologética que se esconde em tal “especialização míope”, uma  
vez que instaura uma ruptura aberta com a unidade contraditória dos  
fenômenos e suas mediações com o complexo de complexos. Em outras  
palavras, a ruptura com a totalidade acarreta a instauração de “barreiras  
artificiais” e “pseudocientíficas” entre os diferentes campos do conhecimento.  
Assim, produz-se uma forçação sobre o objeto porquanto ele é fragmentado  
em dimensões artificiais que obnubilam e colocam de lado seu dinamismo,  
Gabriel Magalhães Beltrão  
impondo-o cortes artificiais e a abordagem de aspectos parciais impostos pelo  
sujeito da pesquisa (Gianna, 2022, p. 121).  
O agnosticismo sob traços positivistas ou neokantianos se constitui enquanto um  
racionalismo funcional à reprodução ampliada do capital, visto ser um padrão de racionalidade  
sintonizado com a manipulação das variáveis empíricas necessárias à vida cotidiana na  
sociabilidade burguesa. No campo das ciências naturais, o agnosticismo satisfaz as  
necessidades do capital ao legitimar a cognição da natureza de forma suficiente para  
impulsionar o desenvolvimento das forças produtivas. Está obstaculizado, entretanto, qualquer  
“expressividade do ponto de vista histórico-universal”: “tais investigações limitam-se a  
domínios particulares, cuidadosamente delimitados, sem desempenharem o menor papel  
positivo na construção de uma concepção do mundo (de uma ética e de uma ontologia)  
científica” (Coutinho, 1972, p. 23). No campo das emergentes ciências sociais, o agnosticismo  
aprisiona a racionalidade à positividade mistificada da vida social burguesa, eclipsando a  
“malha de mediações objetivas inscritas na processualidade que ela sinaliza”, impedindo de se  
atingir um grau de cognição que “supera[e] a faticidade epidérmica da empiria” (Netto, 2005,  
p. 140)1. Assim como no caso das ciências naturais, este padrão de racionalidade é funcional à  
reprodução da sociedade do capital, conforme nos diz Netto:  
(…) pode oferecer diretrizes capazes para uma manipulação de variáveis  
empíricas da vida social, pode sistematizar a experiência do senso comum  
(indo além dela) no sentido de localizar nexos causais não perceptíveis numa  
observação aleatória, pode (no limite) elaborar uma explicação global  
reflexiva, intelectiva, para as evidências do movimento social (Netto, 2005, p.  
140).  
322  
Essa aceitação da imediaticidade como limite intransponível para o conhecimento (a  
chamada positividade) implica na aceitação acrítica da “alienação entre a vida pública e vida  
privada, entre a subjetividade individual e objetividade social”: em vez de se constituírem em  
dois momentos distintos de uma mesma realidade contraditória, “são transformados em fetiches  
falsamente autonomizados” (Coutinho, 1972, p. 26). Avida pública é identificada como a esfera  
da realidade regida pela imperiosa especialização das atividades, pela supremacia do intelecto  
e o banimento da sensibilidade, esta última excluída do domínio público e exilada na vida  
privada fetichizada – deseconomizada e hipostasiada. Dada esta cisão típica da razão formal  
(não dialética) - esta antinomia entre o “eu” e o mundo, entre o supostamente autêntico  
1
“Escusa dizer que aqui reina a Verstand, não a Vernunft: ‘O entendimento determina e mantém firmes as  
determinações. A razão é negativa e dialética, porque resolve no nada as determinações do intelecto; é positiva,  
porque cria o universal e nele compreende o particular (Hegel)’” (Netto, 2005, p. 140).  
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(privado/intuição) e o inautêntico (público/intelecto) -, emerge-se uma duplicidade do  
pensamento decadente burguês à qual Coutinho define como a “Cabeça de Janus”:  
Tanto o “intelecto” que se fixa nas formas coaguladas da ação humana ou nos  
“dados” homogeneizados, sem transcendê-los em busca de uma totalidade  
concreta, quanto a intuição hipostasiada que se fixa na imediaticidade da  
“vivência”, tanto o positivismo agnóstico quanto o irracionalismo  
existencialista capitulam diante do imediato, são incapazes de recompor no  
pensamento a essência dialética da objetividade. Em suma, aceitam como  
“condição humana” o dilaceramento histórico (historicamente condicionado)  
que a alienação capitalista – através da burocratização da práxis – introduz na  
vida humana (Coutinho, 1972, p. 30).  
A “coexistência sincrônica” (Coutinho, 1972, p. 30) entre o agnosticismo  
positivista/neokantiano e o irracionalismo não significa, entretanto, que se deva negligenciar  
suas diferenças. Segundo Lukács, o pensamento burocratizado e avesso à ideologia do  
agnosticismo precisa ser complementado – como “Cabeça de Janus” – por uma filosofia  
“interessante”, capaz de atrair aquela parcela da intelligentzia que demonstra incômodo com a  
cotidianidade burguesa cada vez mais reificada diante do avanço da etapa imperialista do  
capitalismo. Tratar-se-ia, portanto, de erigir um pensamento crítico, realmente distinto do gélido  
e necrosado agnosticismo, capaz de atrair aquela camada social insatisfeita com algumas  
manifestações da reificação. Esta camada social, entretanto,  
conhece cada vez menos a estrutura econômica da sociedade burguesa e se  
mostra mesmo cada vez menos inclinada a estudá-la enquanto problema  
filosófico. Certamente o tom da crítica torna-se aparentemente mais agressivo,  
mas quase diz respeito somente à cultura propriamente dita e à moral  
individual, isto é, problemas que interessam diretamente aos intelectuais  
enquanto camada social. Essa “intelligentzia” afasta-se, portanto,  
voluntariamente, dos problemas econômicos, políticos e sociais e é  
precisamente esse abandono que equivale ao respeito muito escrupuloso dos  
limites que foram traçados à filosofia pela burguesia imperialista (Lukács,  
1979, p. 38).  
323  
A crítica irracionalista à razão toma esta abstratamente, em total desvinculação à  
determinação social dos conteúdos e das formas que esta assume na processualidade histórica.  
Ou seja, a apologia à intuição em oposição à razão eleva a racionalidade formal-abstrata  
(Verstand) – típica da práxis manipulatória do cotidiano burguês – à condição universal da  
inteligibilidade, deslegitimando em absoluto a razão dialética (Vernunft). Diz Lukács que o  
irracionalismo “surgiu e operou em permanente luta contra o materialismo e contra o método  
dialético” (Lukács, 2020, p. 12), visto que este último, mesmo que na sua forma hegeliana,  
representava a “defesa histórica e de uma melhor formulação do conceito de progresso”,  
ultrapassado os limites do Iluminismo. As “diferentes etapas do irracionalismo surgiram como  
respostas reacionárias a problemas da luta de classes” (Lukács, 2020, p. 14). “O primeiro  
Gabriel Magalhães Beltrão  
período importante do irracionalismo moderno surge (…) em oposição ao conceito histórico-  
dialético idealista de progresso” através da pena de Schelling e Kierkegaard, refletindo a reação  
feudal à Revolução Francesa e à ideia burguesa de progresso. Após a Primavera dos Povos  
(1848) e, principalmente, a Comuna de Paris (1871), “a concepção de mundo do proletariado,  
o materialismo histórico e dialético, passa à condição de adversário, cuja natureza essencial  
determina o desenvolvimento do irracionalismo. O novo período terá Nietzsche como o  
primeiro e mais importante representante” (Lukács, 2020, p. 12).  
A despeito da heterogeneidade interna do irracionalismo, Lukács afirma que há  
“problemas metodológicos e de conteúdo” comuns suficientes para produzir uma forte coesão  
e unidade. Diz: “A depreciação do entendimento e da razão, a glorificação da intuição, a  
gnoseologia aristocrática, a recusa do progresso sócio-histórico, a criação de mitos são, dentre  
outros, motivos que encontramos em quase todo pensador irracionalista” (Lukács, 2020, p. 15).  
A apologética indireta do capitalismo inerente ao irracionalismo se deve ao fato de que nele o  
destino do homem do imperialismo é hipostasiado à condição de destino humano em geral2. O  
fatalismo diante de um mundo inautêntico, sombrio, paradoxalmente se converte em reconforto  
de “uma existência voltada sobre si, isolada de toda a vida pública e cujo equilíbrio repousa  
precisamente num pessimismo total a respeito do mundo exterior” (Lukács, 1979, p. 44)3. Em  
outros termos:  
324  
uma de suas mais importantes tarefas sociais para a burguesia reacionária  
consiste em oferecer ao homem certo confort no terreno da concepção de  
mundo, a ilusão de uma liberdade completa, a ilusão da independência  
pessoal, da superioridade moral e intelectual – quando seu comportamento o  
vincula em todos os seus atos reais à burguesia reacionária, colocando-o  
incondicionalmente a seu dispor (Lukács, 2020, p. 26).  
Para o filósofo húngaro, a teoria do conhecimento do agnosticismo neokantiano é a base  
mesma da teoria do conhecimento do irracionalismo, sem deixar de reconhecer que esta última  
representa “uma evolução considerável em relação à do período precedente” (Lukács, 1979, p.  
2
Importante ressaltar que Lukács entende que tanto a apologética indireta quando a apologética direta são  
inerentes ao universo ideológico do pensamento burguês da decadência. Enquanto a primeira vela sua apologia ao  
mundo burguês apresentando sua repulsa ao inautêntico como uma espécie de grito desesperado, mas impotente e  
blasé, lastreando uma resignação passiva; a segunda busca prescindir do universo dos valores, deslegitimando-os  
em prol de uma resignação entusiasmada ao existente, legitimando, portanto, uma práxis social manipulatória ao  
sabor da cotidianidade burguesa.  
3
No mesmo sentido, diz Coutinho: “A subjetividade erige-se idealmente na única fonte de valores autênticos,  
desprezas concretamente todas as mediações sociais, denunciadas como o reino da alienação. Mas esta  
subjetividade inteiramente vazia, convertida em mera negação abstrata do real, procura desesperadamente  
encontrar um Absoluto pleno de sentido. Nesta busca, as filosofias da subjetividade revelam um traço  
profundamente religioso (ainda que se trate de uma religiosidade ateia) e, desse modo, uma vinculação espiritual  
com formas de vida pré-capitalistas. Com o passar dos tempos, o combate à vida pública converte-se numa luta  
contra a democracia e numa defesa de posições ‘aristocráticas’ no plano ético e mesmo no político” (Coutinho,  
1972, p. 33).  
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41). Pode-se afirmar que há no irracionalismo um aprofundamento do idealismo subjetivo sob  
uma empáfia de que suas antinomias teriam sido superadas. Expliquemos: enquanto que no  
pensamento kantiano há um ser em si para além das capacidades cognoscitivas do sujeito  
cognoscente, o irracionalismo ao mesmo tempo que segue as premissas da revolução  
copernicana pondo o sujeito no centro do processo de conhecimento, inova quando “escamoteia  
seus limites [agnósticos], apresentando a questão de uma maneira a parecer admitir  
implicitamente que as ideias e as noções que existem apenas na consciência são elas mesmas  
realidades objetivas” (Lukács, 1979, p. 47). Assim, “ideias e realidades são idênticas para eles”  
(Lukács, 1979, p. 48), dando-se um passo no idealismo subjetivo que os antecessores não  
ousaram dar. Segundo Lukács, a criação de mitos é o meio encontrado para “superar” o  
idealismo subjetivo, radicalizando-o. O mito enquanto construção do espírito “opõe-se  
primeiramente ao conhecimento científico”, representando uma atitude, “uma relação com o  
mundo que seria, por assim dizer, de uma essência superior à que é acessível ao conhecimento  
científico e que vai até mesmo condenar a ciência” (Lukács, 1979, p. 50). Assim, mantém-se  
“de um lado a teoria do conhecimento do idealismo subjetivo herdada do agnosticismo, mas,  
por outro lado, estamos em presença de uma função completamente nova desse agnosticismo,  
função que consiste em criar um novo pseudo-objetivismo, franqueando o limite que o separa  
do mito” (Lukács, 1979, p. 51).  
325  
O “novo objetivismo” seria atingindo por intermédio de um novo instrumento do  
conhecimento, a intuição, que se oporia ao pensamento racional e discursivo. Longe de se  
constituir em um momento do processo de conhecimento, a intuição adquire um lugar  
preponderante destinada a cumprir o papel de abandonar o formalismo da razão. O  
irracionalismo serve-se “do falso aspecto da intuição para abandonar aparentemente tanto o  
formalismo do conhecimento como o idealismo subjetivo e o agnosticismo, conquanto  
conservando-os sobre bases que parecem inatacáveis” (Lukács, 1979, p. 53). Apenas a intuição  
conduziria o sujeito a uma “realidade de essência superior e qualitativamente diferente daquilo  
que é acessível à reflexão discursiva” (Lukács, 1979, p. 53). Lukács ironiza ao afirmar que os  
“serviços apreciáveis” da intuição conduzem a “realidades” de natureza arbitrária e  
incontrolável. Segundo Coutinho, a “intuição - contraposta não apenas ao intelecto, mas à  
racionalidade em geral – é agora um instrumento inteiramente antropomorfizador, (…) simples  
projeção na realidade exterior (concebida como caos) de vivências e experiências subjetivas”  
(Coutinho, 1972, p. 34).  
O conhecimento suprarracional do período imperialista cumpre o papel de proporcionar  
ao pensamento burguês uma concepção de mundo, uma filosofia interessada, ideologizada,  
Gabriel Magalhães Beltrão  
diversamente à frieza do agnosticismo. À apologética direta desta última soma-se a apologética  
indireta do irracionalismo, cujo elemento mais importante é “transformar, mistificando-a, a  
condição do homem do capitalismo imperialista em uma condição humana geral e universal”  
(Lukács, 1979, p. 57). Ademais, tudo que “é social, racional e conforme às leis da evolução será  
declarado inumano e inimigo da personalidade. A personalidade será declarada antirracional e  
irracional por sua própria natureza” (Lukács, 1979, p. 57).  
2 - Weber: visão de mundo irracionalista e epistemologia positivista neokantiana  
Lukács em A Destruição da Razão afirma que Weber conscientemente se coloca como  
um adversário do irracionalismo, mas não faltariam “nuanças irracionalistas” na sua sociologia.  
Mais: o autor alemão “em sua luta contra esse irracionalismo o eleva a um grau ainda mais alto”  
(Lukács, 2020, p. 532). Weber, segundo esta interpretação, teria expulsado o irracionalismo da  
sua metodologia, da análise dos fatos, “apenas para introduzi-lo como base ideológica de sua  
imagem de mundo, e isso com uma decisibilidade até então desconhecida na Alemanha”  
(Lukács, 2020, p. 537). Sua rigorosa cientificidade não teria passado de “um caminho para o  
estabelecimento definitivo do irracionalismo como visão de mundo” (Lukács, 2020, p. 537),  
contribuindo decisivamente para o “assalto irracionalista” da intelectualidade alemã,  
desviando-a, portanto, do materialismo histórico e da alternativa socialista. Weber teria  
produzido um “ateísmo religioso” menos abertamente romântico, mitológico, em relação aos  
seus predecessores, mais cauteloso para não “perder o contato com a cientificidade”, afinal, “os  
imperativos do valor de troca em expansão apresentavam a ciência e a tecnologia (…) com suas  
inevitáveis exigências práticas” (Mészáros, 2004, p. 212).  
326  
Na esteira do pensamento lukacsiano, buscaremos tecer considerações sobre as bases  
filosóficas neokantianas de Weber, às quais o conduz a efetivar “pela primeira vez a transição  
real do neokantismo imperialista para a filosofia da existência irracionalista” (Lukács, 2020, p.  
537). É sobre esta visão de mundo irracionalista que emerge de forma ambígua a sua  
metodologia orientada a consolidar a sociologia alemã, sem que “essa depuração metodológica  
contra o irracionalismo” ocorra cem por cento.  
2.1 - Pensamento neokantiano e o aprofundamento do subjetivismo  
A decadência ideológica do pensamento burguês passa necessariamente pela negação  
do idealismo objetivo de Hegel e pela radicalização do idealismo subjetivo kantiano, cujo  
desfecho pode ser – ainda que não necessariamente – o mergulho no irracionalismo. O  
pensamento de Kant não deixa de oscilar entre o materialismo (realismo) e o idealismo  
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O homem para todas as estações: irracionalismo e neokantismo na sociologia de Max Weber  
subjetivo, está calcado na “antinomia entre o dogmatismo (a objetividade injustificada) e o  
ceticismo (relativismo)” (Lukács, 1979, p. 17). Kant parte da premissa de que há uma realidade  
verdadeiramente distinta da consciência do sujeito cognoscente, não nega jamais a existência  
da coisa em si, ainda que a considere incognoscível. O agnosticismo kantiano não avança a  
ponto de dissolver a realidade (o em si) na consciência, com isso, o conhecimento acessível ao  
sujeito é sempre aquém da verdade em termos ontológicos. Partindo desta premissa, Kant se  
ocupa com a lógica interna do entendimento. Diz Kant: “embora um conhecimento possa ser  
inteiramente conforme a forma lógica, isto é, não se contradiga a si mesmo, pode ainda estar  
sempre em contradição com o objeto” (apud Oliveira, 2008, p. 104). Pois bem, o neokantismo  
da decadência ideológica intensifica o subjetivismo ao silenciar sobre o em si, convertendo-o  
num não problema filosófico. Conforme Lukács, a “aspiração máxima do neokantismo e  
igualmente do positivismo e neopositivismo será eliminar completamente o ser da esfera da  
consciência” (apud Oliveira, 2008, p. 103), e com base nesta depuração acelerar o  
relativismo/subjetivismo/agnosticismo.  
Kant foi capaz de instaurar a dicotomia típica do pensamento burguês (ser e dever ser/ser  
e objeto, etc.), convertendo-se num filósofo universal na sociabilidade burguesa. Segundo  
Mészáros, encontrou um “lugar para a fé” ao mesmo tempo que afirmou a ciência, conciliando  
os antagonistas da sua época (dupla verdade). Weber, diz o marxista húngaro, também conciliou  
os inconciliáveis através de “duas estratégias intelectuais complementares”: por um lado, a  
“extrema relativização dos valores, acompanhada da glorificação da subjetividade arbitrária e  
de suas acomodações dúbias à ‘exigência da época’” (Mészáros, 2004, p. 211); por outro, o  
corte epistemológico capaz de excluir os juízos de valor, “o princípio orientador necessário e  
suficiente da objetividade científica”, capaz de tornar a história e o mundo social acessíveis à  
investigação científica, “sob condição de que tal empreendimento fosse dirigido para a  
construção de ‘tipos ideais’, conforme as exigências da ‘neutralidade ideológica’” (Mészáros,  
2004, p. 213). Dada essa capacidade de Weber de conciliar o profundo relativismo (idealismo  
subjetivo) de substrato fatalista (desencanto do mundo) com a defesa da universalidade da  
ciência - cujo resultado “deverá ser admitido como correto também por um chinês” (Weber,  
2011, p. 23) -, Mészáros o define como “um homem para todas as estações”, cuja  
“versatilidade” está adequada à evolução da realidade capitalista.  
327  
A visão de mundo weberiana visa criar uma alternativa burguesa a Marx, mediante a  
fuga “ao condicionamento das decisões individuais pelas circunstâncias postas” (Oliveira,  
2008, p. 97). Trata-se da defesa de escolhas puramente subjetivas por parte dos indivíduos, que  
é associada à ideia burguesa de liberdade. Cada indivíduo (mônada) é alçado à condição de  
Gabriel Magalhães Beltrão  
sujeito que significa e escolhe os valores “conforme sua consciência e sua concepção de  
mundo” (Weber, 2011, p. 16). O mundo não tem sentido per si, são os homens movidos por  
valores que atribuem sentido a ele: trata-se da significação cultural, base necessária do  
conhecimento científico – neste ponto Weber se distancia dos positivistas clássicos para quem  
a neutralidade axiológica é possível e necessária de ponta a ponta do processo de conhecimento  
(veremos mais a frente). A discussão kantiana acerca da coisa em si é um não problema para  
Weber, algo puramente metafísico. O equívoco, segundo Weber, seria imaginar que o sentido  
do mundo, sua verdade histórica, é decifrável pela razão. Essa indecifrabilidade não se deve à  
sua incognoscibilidade, como em Kant, mas sim ao fato de que a verdade histórico-ontológica  
é inexistente (neokantismo). Trata-se, portanto, de criá-la subjetivamente enquanto um  
“sentido/verdade” para nós (“nos cabe criá-lo nós próprios”), para o sujeito que age no mundo  
movido por valores (visão/concepção de mundo), “sentido” o qual, por sinal, jamais terá 1º)  
validade ontológica e mesmo 2º) científica sob os cânones do positivismo neokantiano de  
Weber (“’concepções de mundo’ jamais podem ser produto do avanço de um saber empírico”).  
Em suas palavras:  
É destino de uma época cultural que provou do fruto da árvore do  
conhecimento ter que saber que não podemos discernir o sentido do  
andamento do mundo nem mesmo da mais completa investigação, mas que  
nos cabe criá-lo nós próprios, que “concepções de mundo” jamais podem ser  
produto do avanço de um saber empírico, e que portanto os ideais mais  
elevados, que mais intensamente nos comovem, agora e sempre só se efetivam  
no combate com outros ideais tão sagrados para outros quanto os nossos são  
para nós (Weber, 2011, p. 21).  
328  
Cohn afirma que a ênfase de Weber em afirmar o caráter radicalmente destituído de  
sentido intrínseco ao mundo, cabendo aos “próprios homens outorgarem significado a alguns  
entre os infinitos eventos que o constituem, como condição prévia para o seu conhecimento e  
também para agirem nele” (Cohn, 1979, p. 102), é uma nítida influência de Nietzsche. Segundo  
o especialista na obra do sociólogo alemão, “Se há uma presença de Nietzsche em Weber, ela é  
sem dúvida incomparavelmente mais forte e mais fecunda que a de qualquer ‘neokantiano’,  
mas ainda é filtrada e atenuada, sem ir às últimas consequências” (Cohn, 1979, p. 103). Tratar-  
se-ia de um meio privilegiado de Weber na elaboração do seu esquema teórico.  
Pois bem, o relativismo dos valores em Weber parece dar eco ao paradoxo inerente ao  
irracionalismo: este ao mesmo tempo que detecta um ambiente asfixiante e mortal para o sujeito  
(indivíduo), reflexo hipostasiado/universalizado das condições sócio-históricas do capitalismo  
no seu estágio imperialista, apregoa ao indivíduo um escapismo místico diante da leitura  
escatológica de mundo. Diz Mészáros que seu discurso sobre valores na esfera da  
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O homem para todas as estações: irracionalismo e neokantismo na sociologia de Max Weber  
subjetividade isolada, exclui a priori a possibilidade de uma articulação coerente e  
objetivamente viável das ‘visões de mundo’ e dos valores a elas associados sobre uma base  
coletiva e socialmente eficaz” (Mészáros, 2004, p. 215). A prática histórica é o campo por  
excelência da “fé”, da crença, “jamais pode ser produto de um saber empírico”, o que há é um  
conflito insolúvel entre os valores. Não há bases ontológicas – classes sociais – nem científicas  
– cuja universalidade é puramente lógico-formal – que permitam a ultrapassagem da  
subjetividade isolada de forma orgânica e sistêmica4, como podemos detectar na citação abaixo:  
E não se disputa apenas, como hoje gostamos de acreditar, entre “interesses  
de classes”, mas também entre “concepções de mundo” – sem prejuízo,  
naturalmente, de que na questão de qual concepção de mundo o indivíduo  
defende torna-se decisiva, entre outras coisas – mas em muito alto escala - , o  
grau de afinidade eletiva entre ela e o seu “interesse de classe” – admitindo-  
se aqui esse conceito só aparentemente unívoco. (…) quanto mais ampla a sua  
importância cultural, tanto menos é acessível uma resposta unívoca a partir  
do material do conhecimento empírico, tanto mais incidem nele os axiomas  
últimos da crença e das ideias de valor (Weber, 2011, p. 20, negrito nosso).  
Essa atomização do sujeito expressa no relativismo dos valores é típica do  
irracionalismo, contudo, Cohn afirma que Weber não avança às últimas consequências da sua  
premissa filosófica, recuando para não cair no irracionalismo pleno. Como metaforicamente diz  
o ditado popular: Weber levanta a bola, mas se nega a cortar. Lukács diz que “fica faltando  
apenas um passo para o domínio absoluto do irracionalismo, um passo para que se renuncie  
decididamente aos ‘desvios’ do intelecto e da cientificidade” (Lukács, 2020, p. 537). “O fato é  
que Weber não expõe como se constituem esses valores” (Oliveira, 2008, p. 99), trata-se de  
axiomas, como dito acima. Ancorado em Mészáros, Oliveira sintetizam bem esse aspecto  
irracionalista do pensamento de Weber:  
329  
Existe o politeísmo de deuses e demônios pelos quais os indivíduos devem  
optar; porém, Weber não nos dá nenhuma informação a propósito de onde  
nasceram tais espiritualidades. Em um passe de mágica, elas estão dadas no  
imediato da vida social e é isso que importa ao sociólogo. Tanto para Weber  
quanto para a mitologia indiana, as espiritualidades são um fato. O processo  
da história que as engendrou não se releva (Oliveira, 2008, p. 99, negrito  
nosso).  
4
Em Weber, assim como em Durkheim, o “normal” é a continuidade, não a ruptura na história das sociedades.  
Seja por intermédio da dominação tradicional ou da racional-legal, a preservação das sociedades está posta, afinal,  
a contradição não é elemento intrínseco da vida social. Desta forma, a mudança só pode ocorrer por uma variável  
exógena, estranha ao ir sendo da sociedade. Em Weber, a dominação carismática é o fator explicativo para as  
transformações sociais, o que expressa sua filiação ao irracionalismo: as paixões e os sentimentos provocados pelo  
líder carismático, dotado de uma intuição criadora, cai como um “tiro de pistola” sobre uma sociedade e a  
desbarata. Nesta chave de leitura de natureza irracionalista, a mudança social é em si irracional e os sujeitos  
coletivos que operam a mudança são “massas” ignaras (e perigosas) movidas pelos sentimentos, mudanças as  
quais, ao fim e ao cabo, apenas irão surtir o efeito de substituir uma elite por outra, bem ao saber da teoria das  
elites de substrato reacionário (Pareto).  
Gabriel Magalhães Beltrão  
2.2 - Uma visão teleológica da história: razão hipostasiada e a “jaula de aço”  
Antes de avançarmos à defesa que Weber faz de uma ciência absolutamente formal –  
sem conteúdo histórico-ontológico – e supostamente axiologicamente neutra, faz-se necessário  
apresentar o sentido de história que caminha pari passu à sua relatividade dos valores. Não  
havendo sentido imanente à realidade, sequer uma atribuição de sentido subjetivo unívoco, o  
que impera é – ou deveria ser – o caos, a mais completa anarquia caleidoscópica do mundo.  
Entretanto, o que se observa em Weber é que o relativismo dos valores em luta insolúvel está  
subsumido a uma teleologia da história – um verdadeiro Deus ex machina que ao final de seu  
ciclo aprisiona o homem numa jaula de aço. Segundo Wood:  
Longe de levar a teoria social a superar as imperfeições do determinismo  
marxista, Weber a reduziu a uma teleologia pré-marxista, em que toda a  
história é um movimento no mais das vezes tendencioso a favor do  
capitalismo, em que o destino capitalista é sempre percebido nos movimentos  
da história, e em que as diferenças entre as várias formas sociais estão  
relacionadas aos modos particulares com que incentivam ou obstruem o  
movimento histórico único (Wood, 2011, p. 129, negrito nosso).  
Segundo a autora, Weber pressupõe a existência do que ele deveria explicar: o  
capitalismo. “Não havia necessidade de explicar um processo histórico único, mas apenas de  
descrever os obstáculos e sua remoção” (Wood, 2011, p. 131). O “interesse próprio [Homo  
economicus] guiado pela razão produziria o capitalismo” (Wood, 2011, p. 131). Nas palavras  
do próprio autor:  
330  
Para nosotros, un acto de economía “capitalista” significa un acto que  
descansa en la expectativa de una ganancia debida al juego de recíprocas  
probabilidades de cambio; es decir, en probabilidades (formalmente) pacíficas  
de lucro. (…) Cuando se aspira de // modo racional al lucro de tipo  
capitalista, la actividad correspondiente se basa en un cálculo de capital  
(Wood, 2011, p. 46, negrito nosso).  
(…)  
Lo que nos interesa señalar es que lo decisivo de la actividad económica  
consiste em guiarse en todo momento por el cálculo del valor dinerario  
aportado y el valor dinerario obtenido al final, por primitivo que sea el modo  
de realizarlo. En este sentido, ha habido “capitalismo” y “empresas  
capitalistas” (incluso con relativa racionalización del cálculo del capital)  
en todos los países civilizados del mundo, hasta donde alcanzan nuestros  
conocimientos: en China, India, Babilonia, Egipto, en la Antigüedad helénica,  
en la Edad Media y en la Moderna (Wood, 2011, p. 47, negrito nosso).  
Para Weber o capitalismo é antidiluviano, sendo identificável in nuce em todas as épocas  
e sociedades. É sinônimo de racionalização da atividade econômica tendo em vista um fim  
preciso: o lucro. Entre o capital mercantil da Antiguidade e o modo de produção capitalista  
haveria, portanto, uma relação orgânica, um movimento progressivo de afirmação de  
parâmetros estruturais eternalizados: o cálculo econômico/racionalização. Weber define o  
Libertas, Juiz de Fora, v. 24, n. 1, p. 319-339, jan./jun. 2024. ISSN 1980-8518  
O homem para todas as estações: irracionalismo e neokantismo na sociologia de Max Weber  
capitalismo - “com seletividade ideológica tendenciosa e a circularidade típico-ideal” – como  
uma “’cultura’ em que o ‘princípio orientador é o investimento do capital privado’” (Mészáros,  
2004, p. 75), num sentido supostamente “puramente econômico” em que a economia capitalista  
“existe em todos os lugares onde as pessoas se dedicam à busca do lucro comercial” (Wood,  
2011, p. 149). Segundo a autora, a exclusão dos “fatores sociais” – relações sociais de produção,  
formas de propriedade - da conceituação de capitalismo impede a “explicação da dinâmica  
específica de um modo capitalista de produção”, o “capitalismo moderno se torna mais um  
exemplo da mesma coisa – mais livre, mais maduro, mas sem qualquer diferença fundamental”  
(Wood, 2011, p. 149). Assim, a tautologia weberiana se afirma no capitalismo moderno em  
virtude da remoção dos impedimentos políticos e, principalmente, religiosos à plena afirmação  
da racionalidade econômica (cálculo econômico). Conforme Wood:  
A questão, para Weber, é sempre como o desenvolvimento da racionalidade  
econômica é acelerada ou retardada por instituições e valores não econômicos.  
Na Antiguidade clássica, assim como em muitos outros tempos e lugares, a  
atividade econômica burguesa foi restringida por forças externas a ela,  
especialmente a obstrução dos princípios econômicos pelos políticos, ou por  
crenças religiosas contrárias à racionalidade econômica (Wood, 2011, p. 150).  
Weber, de forma seletiva e arbitrária, pinça elementos fenomênicos do capitalismo - os  
quais, por sinal, não são inerentes ao capitalismo propriamente dito, ao modo de produção  
surgido na Europa Ocidental entre os séculos XVIII e XIX, mas estão presentes no antidiluviano  
capital mercantil e os universaliza, desistoricizando-os a fim de convertê-los em atributos  
inerentes à vida humana. A história, nestes termos, converte-se na marcha progressiva rumo a  
um futuro já presente desde sempre no passado. Obnubila-se, assim, a dimensão sócio-histórica  
do presente capitalista em benefício das classes dominantes, afinal, o que é o presente senão a  
afirmação plena desta dynamis anistórica? De forma não dialética, a descontinuidade/ruptura  
é sacrificada às custas da continuidade, a racionalidade econômica supra-histórica assume, no  
presente, a sua plenitude, à qual recebe o nome de Modernidade. O racionalismo moderno e  
Ocidental é específico por não ter encontrado obstáculos de tipo mental à condução da vida  
econômica de maneira puramente racional. Aética protestante cumpre no pensamento de Weber  
o papel de desobstrução das “vias” que conduzem ao capitalismo moderno, visto que engendra  
no homo economicus uma prática econômica plenamente racional, depurada de entraves éticos  
de natureza religiosas do passado.  
331  
A Modernidade em Weber assume feições anistóricas: enquanto racionalização  
econômica, esteve presente de forma larval desde o passado mais remoto e atinge a sua  
plenitude na Europa como consagração de um desígnio da história, superando-se o devir  
histórico (fim da história). Em Weber, qualquer iniciativa política que contradiga a  
Gabriel Magalhães Beltrão  
racionalidade econômica está fadada ao infortúnio, tratando-se de postura irracional. Segundo  
Mészáros,  
o tipo weberiano de abordagem ‘sistemática’ das contradições historicamente  
específicas da sociedade capitalista as desistoriciza, transformando as  
características estruturais (…) em uma matriz categorial na qual a  
‘modernidade’ (com seus ‘dissabores’) e a ‘racionalização’ (considerada  
responsável por tais dissabores e ‘desencantos’) ocupam a posição central  
(Mészáros, 2004, p. 76).  
Ao soldar a racionalidade ao antidiluviano cálculo econômico com fins de lucro, bem  
como ao identificar a racionalização ao amadurecimento dessa racionalidade sob os impulsos  
da ética protestante, Weber suprime a concretude sócio-histórica que explica a gênese e a função  
social da razão na sociedade capitalista, hipostasiando-a. Sem esta base fundante, a razão torna-  
se sinônimo de dominação, assim como a Modernidade se converte na plenitude desta  
dominação do homem pela razão (jaula de aço). Acinzenta-se não apenas o passado, mas  
principalmente o futuro. Descarta-se “a especificidade histórica a favor de uma noção genérica  
de ‘modernidade’. Continuamos com Mészáros:  
Como resultado, a problemática marxiana da ‘reificação’ – com suas  
consequências revolucionárias para a superação da ordem social capitalista –  
tem de ser abandonada por completo, e trocada por um discurso idealista  
sobre a ‘racionalização’ e a ‘realização da razão na história’. Além disso,  
liquida-se até aquele grau de objetividade e historicidade que ainda estava  
contido, embora de modo infeliz, dentro da estrutura do discurso hegeliano  
sobre a modernidade. Em seu lugar nos é oferecido um retorno – via Max  
Weber – a um idealismo transcendental kantiano privado de sua agudeza  
crítica (Mészáros, 2004, p. 78, negrito nosso).  
332  
Como havíamos apontado acima, a postura weberiana de identificar a razão à práxis  
manipulatória/burocrática - a um conjunto de regras formais, impessoais e calculáveis que  
submetem e esmagam a subjetividade dos indivíduos, a um conjunto de procedimentos formais  
homogeneizadores e que descarta à irracionalidade tudo que lhe escapa - é típica do período da  
decadência ideológica da burguesia. A razão e a esfera pública contrapõem-se à intuição e à  
vida privada, conformando o binômio autenticidade-inautenticidade. Segundo o sociólogo de  
Heidelberg, “O destino de nossa época é caracterizado pela racionalização e pela  
intelectualização e, acima de tudo, pelo ‘desencantamento do mundo’” (apud Mészáros, 2004,  
p. 214). À medida que a ética protestante suprimiu os entraves ético-religiosos ao pleno  
desenvolvimento da razão – leia-se razão formal-abstrata –, o corolário foi dissipar os  
sentimentos religiosos de outrora e que conectavam o indivíduo ao Absoluto na sua  
cotidianidade, tornando-a cheia de sentido. Continua Weber: “Foram justamente os valores  
fundamentais e mais sublimes que se afastaram da vida pública, refugiando-se no reino  
transcendental da vida mística ou na fraternidade das relações humanas diretas e pessoais”  
Libertas, Juiz de Fora, v. 24, n. 1, p. 319-339, jan./jun. 2024. ISSN 1980-8518  
O homem para todas as estações: irracionalismo e neokantismo na sociologia de Max Weber  
(apud Mészáros, 2004, p. 214). Weber atribui esta racionalização desencantadora do mundo a  
“forças impessoais”, obviamente a fim de ocultar a fonte histórico-social da universalização da  
razão burocrática: o capital enquanto relação social. A vida pública perde o sentido, reduz-se à  
práxis manipulatória, despe-se, portanto, de que qualquer dimensão emancipatória. Os valores  
fundamentais recolhem-se à subjetividade isolada e à sua vida mística. Diz Lukács em A  
Destruição da Razão:  
Com isso, a visão de mundo de Max Weber deságua no “ateísmo religioso” do  
período imperialista. A vida desencantada em virtude da ausência e do  
abandono de Deus mostra-se como a fisionomia histórica do presente, a que é  
preciso aceitar como condição histórica, mas que forçosamente provoca uma  
profunda tristeza, uma profunda nostalgia pelos tempos antigos e ainda não  
“desencantados” (Lukács, 2020, p. 535).  
Lukács reconhece, entretanto, que há em Weber uma ambivalência neste ponto: por um  
lado, “a falta de perspectiva do ‘ateísmo religioso’” do sociólogo o leva “mais longe que Dilthey  
e o próprio Simmel”, seus antecessores. “Como Jaspers, surge aqui imediatamente um ponto de  
contato com o niilismo dos pensadores existencialistas” (Lukács, 2020, p. 536); por outro lado,  
Lukács afirma que a postura de Weber “é menos abertamente romântica do que na maior parte  
dos ‘ateístas religiosos de sua época” (Lukács, 2020, p. 536). Seu ateísmo religioso seria mais  
“plástico”, segundo o marxista húngaro, “procurando com mais vigor não perder o contato com  
a cientificidade” (Lukács, 2020, p. 536). Segundo Löwy, Weber no seio do irracionalismo  
alemão – ao qual define como “pessimismo cultural”5 – pertencia ao grupo dos românticos  
resignados, isto é, “os que não acreditavam na possibilidade de restauração dos valores pré-  
modernos, e muito menos em uma utopia futura” (Löwy, 2014, p. 45). Ainda segundo Löwy, a  
“crítica” weberiana – à qual Lukács definiria como apologética indireta, não uma crítica  
propriamente dita – pregava uma “resignação heroica”, “a negação de qualquer ilusão e  
aceitação do destino moderno” (Löwy, 2014, p. 45). Lukács cita um trecho de Weber que nos  
parece corroborar com a definição de “resignação heroica” – cujo conteúdo épico certamente  
se restringe à intelligentsia pequeno burguesa, não ao proletariado explorado e mesmo à  
burguesia imersa na racionalidade econômica dos seus microcosmos produtivos. Diz Weber:  
333  
Donde podemos extrair um ensinamento de que não basta insistir e ansiar para  
que as coisas mudem: fazer nosso trabalho e cumprir as exigências do dia tanto  
humana quanto profissionalmente. As quais são claras e simples, se cada um  
sabe encontrar e escutar o demônio que sustenta o fio de sua vida (apud  
Lukács, 2020, p. 536).  
5“O pessimismo deles pode levar a uma espécie de visão trágica do mundo, baseada na convicção desesperada de  
que não existe nenhum meio de conter ou impedir o triunfo da civilização capitalista moderna, considerada uma  
fatalidade” (Löwy, 2011, p. 44).  
Gabriel Magalhães Beltrão  
2.3 - O recuo de Weber diante das suas premissas irracionalistas  
Como já apontado acima, Weber recua e bloqueia os desdobramentos potenciais da sua  
visão de mundo de natureza irracionalista. Ainda assim, pavimenta o caminho para o niilismo  
existencialista que desemboca no nazifascismo nos anos seguintes. No campo da teoria do  
conhecimento, Cohn diz que Weber é uma espécie de “Nietzsche tornado ‘positivo”: “quando  
há ameaça de limites críticos do pensamento serem atingidos, ele recua onde Nietzsche  
prossegue” (Cohn, 1979, p. 107). Enquanto o irracionalismo até as últimas consequências  
desdobra a irracionalidade do mundo para a teoria do conhecimento, alçando a intuição em  
instrumento privilegiado do saber, “Weber jamais chega ao ponto de negar a ideia de que se  
possa alcançar uma verdade científica a respeito da história e da sociedade, ainda que  
particularizada” (Cohn, 1979, p. 107). Conforme Oliveira, “Não há nada de místico na teoria  
weberiana do conhecimento” (Oliveira, 2008, p. 108). O próprio Weber ironiza: “Quem quer  
ter visões, que vá ao cinema” (apud Lukács, 2020, p. 533). Oliveira sintetiza nos seguintes  
termos:  
Ainda que padecesse de algumas fendas irracionais, Weber não deve ser  
equiparado a Scheler e Simmel quanto à concepção de ciência. Nestes dois  
últimos, a porta de entrada para o irracionalismo descomedido está  
completamente franqueada; já em Weber, está somente entreaberta (Oliveira,  
2008, p. 110).  
334  
Weber não está preocupado em “desmascarar radicalmente os valores e suas  
manifestações históricas”, “mas parte da vigência empírica e particular deles, para preocupar-  
se com o método adequado para estabelecer relações entre eles que possam ser aceitas como  
válidas por todos os que aceitam a verdade como valor legítimo, e a ciência como um modo de  
atingi-la” (Cohn, 1979, p. 107).  
Segundo a concepção neokantiana de cientificidade de Weber, o significado cultural do  
sujeito-pesquisador mira um fragmento da infinitude, configurando-se o momento inicial do  
fazer científico. O caos que é a realidade “só pode ser ordenado pela circunstância de que (…)  
unicamente um segmento da realidade individual possui interesse e significado para nós”  
(Weber, 2011, p. 54). Portanto, apenas alguns aspectos dos fenômenos particulares merecem  
ser conhecidos, justamente aqueles que conferimos significação, “pois apenas eles são objeto  
da explicação causal” (Weber, 2011, p. 54). Trata-se de um ato de escolha do sujeito-  
pesquisador selecionar o que pesquisar, sob que ângulo isso se dará. “A relevância não pertence  
ao objeto; ela submete-se à eleição arbitrária do cientista social” (Oliveira, 2008, p. 114).  
O meio científico necessário que permite a imputação de causalidade é o tipo ideal. Este  
nada tem a ver com julgamentos de valor, “não tem absolutamente nenhuma conexão com  
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O homem para todas as estações: irracionalismo e neokantismo na sociologia de Max Weber  
juízos de valor”. Trata-se de um construto puramente lógico, axiologicamente neutro e sem  
nenhuma conexão com o ser em si. Conforme Oliveira: “Leal aos pressupostos do relativismo  
burguês, Weber designa ao sujeito do conhecimento a tarefa de imputar sentido ao objeto  
mediante a construção de tipos ideais” (Oliveira, 2008, p. 112). Weber alerta que a construção  
de tipos ideais e a análise comparativa da realidade empírica deve ter sentido lógico, o que exige  
“autocontrole científico” do pesquisador, que deve se comportar enquanto cientista, afastando-  
se dos seus valores. Oliveira oferece-nos uma excelente distinção entre o positivismo clássico  
de Durkheim e o positivismo neokantiano de Weber no que tange à participação dos valores no  
processo de conhecimento. Diz:  
Abre-se um parêntese para dizer que Weber não fala de juízos de valor. Tanto  
quanto para Durkheim, Weber também pressupõe uma ciência social isenta  
dos juízos de valor. Durkheim não admite absolutamente nenhuma ingerência  
dos valores, sejam juízos ou referências; o cientista social “deve colocar-se  
face aos fatos sociais esquecendo tudo o que pensa saber, como face ao  
desconhecido” (Durkheim, 1975: 142). Ao contrário do sociólogo francês,  
Weber assinala que a referência a valores é necessária para a escolha do  
objeto; a diferença é tênue mas é uma autêntica diferença: a orientação é dada  
por uma concepção de mundo particular ao sujeito e não por julgamentos  
valorativos ou preconceitos (Oliveira, 2008, p. 114, negrito nosso).  
Weber, como já dito, fomenta o irracionalismo, mas se afasta das suas últimas  
consequências no terreno do conhecimento. Assim, segundo Oliveira, o tipo ideal significa um  
recuo diante do psiquismo de outros autores, como Simmel e Scheler, por exemplo. Como um  
construto puramente lógico, desprovido de contradições, Weber se afasta do método intuitivo –  
típico do irracionalismo – e resgata a necessidade das categorias do entendimento (pensamento  
discursivo), típico do agnosticismo burguês.  
335  
Weber, diferentemente daqueles desses autores e de Nietzsche, interessa-se por fazer  
ciência, insistindo no caráter causal da explicação em ciências sociais. Aqui, vale uma breve  
reflexão sobre o que Weber entende por causalidade. Segundo Cohn, a categoria de causalidade  
cria embaraços a Weber em virtude da sua visão de mundo. É um absurdo, para ele, imaginar  
que seja possível uma “regressão causal exaustiva” que capte sua plena realidade: “Apenas  
colocamos em relevo as causas a que se podem atribuir, num caso concreto, os elementos  
‘essenciais’ de um acontecimento” (Weber, 2011, p. 54). Na sua ótica,  
qualquer fenômeno singular resulta de uma infinidade de causas; a análise  
causal só adquire caráter empiricamente verificável quando toma como  
unidades as ações de sujeitos individuais; é impossível encontrar uma causa  
final ou sequer fundamental em relação às demais para a história ou para  
sociedades tomadas como um todo; (…) uma relação causal estabelecida para  
relacionar processos históricos (…) não é unívoca, mas pode ser lida nos dois  
sentidos possíveis, vale dizer, pode aparecer invertida em outra análise  
igualmente legítima (Cohn, 1979, p. 109).  
Gabriel Magalhães Beltrão  
Cohn diz que o recurso à fórmula da “afinidade eletiva” é uma alternativa encontrada  
por Weber para contornar seus embaraços com a categoria de causalidade. Tanto Cohn quanto  
Löwy tratam a afinidade eletiva como pouco precisa e demasiadamente complexa dentro do  
pensamento weberiano. Ainda assim, o marxista franco-brasileiro concorda em dizer que “o  
conceito de afinidade eletiva é inseparável de sua atitude pluralista, de sua rejeição de toda  
monocausalidade e de todo determinismo unilaterial” (Löwy, 2014, p. 70). Tudo indica que a  
categoria de afinidade eletiva conecta a epistemologia weberiana com sua visão de mundo  
neokantiana, imprimindo-lhe a marca do relativismo, aspecto inclusive utilizado para se fazer  
um contraponto à suposta monocausalidade do marxismo – que atribuiria tudo à causa  
econômica6. Não “apenas se dissolve de modo subjetivista o conjunto da realidade social  
objetiva, mas também se cria para as situações sociais uma complexidade aparentemente  
coerente, mas que no fundo é extremamente confusa” (Lukács, 2020, p. 531).  
Por fim, breves considerações sobre o estatuto da verdade científica em Weber. 1º) A  
verdade científica é possível e necessária, responde às exigências práticas da sociedade que  
provou do fruto da árvore do conhecimento. Weber se afasta, portanto, no irracionalismo pleno  
que negava a verdade científica em benefício de um suposto “conhecimento superior” obtido  
por fora dos cânones do pensamento discursivo, pela via da intuição; 2º) a verdade das ciências  
sociais é consequência de um construto lógico (tipo ideal) e da imputação causal operada pelo  
sujeito cognoscente – ambos momentos de forma axiologicamente neutra. A verdade é,  
portanto, forma desprovida de conteúdo de sentido ontológico; 3º) a verdade científica é  
universal no que tange à sua legitimidade, não à sua amplitude, como queria o positivismo  
clássico. A análise causal prende o pesquisador às regras universalmente aceitas do método  
científico, e “assegura o caráter também universal de suas conclusões” (Cohn, 1979, p. 110),  
ou seja, válido como conhecimento para todos os interessados - inclusive para um chinês. Weber  
se afasta, portanto, de Durkheim e do caráter nomológico da sua sociologia, cujo naturalismo  
contrasta com a visão neokantiana de mundo do sociólogo alemão. Segundo este, todo  
336  
6
Quanto a esta questão, vale trazer aqui as considerações de Wood que problematizam a autoproclamada  
pluricausalidade weberiana: “Os admiradores de Weber gostam de louvar sua concepção multidimensional da  
causação social. (…) Esse pluralismo causal, é o que se afirma, produz uma história melhor que a produzida pela  
abordagem monística de Marx. (…) o pluralismo causal de Weber foi conquistado a um custo considerável. (…)  
A autonomia, na verdade a definição, do poder político ou militar em relação ao ‘econômico’ tal como Weber os  
entende depende de uma concepção universalizadora do econômico que é peculiar a uma forma social capitalista  
– que pressupõe uma clara separação entre o poder econômico e o militar e político. (…) Para Weber, existe apenas  
um modo de atividade econômica, essencialmente capitalista, que pode estar presente ou ausente de vários graus.  
(…) Para Weber, essas formas extraeconômicas são na realidade externalidades que agem sobre, incentivam ou  
inibem, aceleram ou retardam, mas nunca transformam fundamentalmente o único, universal e trans-histórico  
modo de ação verdadeiramente econômica. Então, quem é eurocêntrico, teleológico e reducionista?” (Wood, 2011,  
p. 153).  
Libertas, Juiz de Fora, v. 24, n. 1, p. 319-339, jan./jun. 2024. ISSN 1980-8518  
O homem para todas as estações: irracionalismo e neokantismo na sociologia de Max Weber  
conhecimento científico pressupõe valores, o que implica em prismas/perspectivas/angulações  
sempre diversas, o que contrasta com as leis aplicáveis às ciências da natureza. Oliveira assim  
arremata essa concepção de verdade para Weber, distinguindo-a do naturalismo nomológico do  
positivismo clássico:  
Pondo a verdade sob um matiz puramente lógico, o sociólogo consegue  
destituí-la de seu caráter objetivo, isto é, a concordância entre as  
representações e o movimento real do objeto. Weber não possui a ingenuidade  
naturalista de Durkheim, mas a sua ideia de verdade é igualmente universal  
em um certo sentido: sendo o conceito típico logicamente correto, ele  
apresenta-se como verdadeiro “também a um chinês”. Assim, no mesmo  
instante, é uma verdade relativa, por ser referente às valorações subjetivas do  
sujeito da ciência, e universal, uma vez que detém a logicidade exigida pelo  
método compreensivo. O subjetivo particular transforma-se em objetivo  
universal em um salto antidialético, sem qualquer mediação (Oliveira, 2008,  
p. 147).  
Considerações finais  
Ellen Wood diz que Max Weber traz em sua obra “dois dos principais temas da cultura  
intelectual ocidental” (Wood, 2011, p. 153) do final do século XX. Por um lado, Weber traria a  
“convicção triunfalista de que o progresso atingiu seu destino no capitalismo moderno e na  
democracia liberal – a glorificação do ‘mercado’ e do ‘fim da história’” (Wood, 2011, p. 153);  
por outro, traz consigo o pessimismo de uma visão de mundo irracionalista, fitando com o  
misticismo mais despudorado que anima o pós-modernismo.  
337  
Como um “homem para todas as estações”, conforme Mészáros o define, Weber parece  
personificar em si mesmo a “Cabeça de Janus” que conforma o pensamento burguês desde a  
sua decadência ideológica. Enquanto pensador comprometido com sua classe e seu país na  
corrida imperialista, Weber fez questão de produzir uma obra cuja ideia-força é suprimir o  
socialismo como projeto político emancipatório do terreno da legitimidade histórica. Assim  
como Nietzsche a seu tempo, “Weber articulou o seu pensamento tendo em mente o socialismo  
como principal adversário” (Mészáros, 2004, p. 216). Com este fim, Weber elaborou uma  
teleologia da história que hipostasiou o capitalismo. Mais: identificou-o à racionalidade  
econômica, ao cálculo com fim de obtenção de lucro, depurando a razão do seu caráter crítico  
e emancipador oriundo do Iluminismo. Satisfaz com isso a perspectiva da sua classe, que desde  
1848 colocou a razão dialética como inimiga número um a ser combatida, primeiramente com  
Hegel e posteriormente com Marx. A Modernidade, portanto, é sinônimo de racionalização  
plena, livre de entraves religiosos como outrora. A mesma racionalização que desencanta o  
mundo - dissipando um após outro os encantos místicos que articulavam o indivíduo ao  
Absoluto e davam-lhe sentido à vida – e revoluciona a técnica e a produção, o aprisiona. Sai de  
Gabriel Magalhães Beltrão  
cena o sentido da vida proveniente dos Deuses e surge a dominação impessoal e absoluta da  
razão. Cai-se, por fim, na “jaula de aço” da Modernidade.  
Weber, desta forma, segue a tradição Iluminista no que tange à sua crença na razão e na  
sua vitória definitiva sobre os Deuses, obviamente destituindo-a da capacidade crítica e  
emancipatória. A economia de mercado e a democracia liberal são, para Weber, as principais  
expressões da racionalização/burocratização da vida moderna. Ambas teriam a capacidade de  
castrar qualquer perspectiva de vir a ser histórico. Segundo Mészáros, o Weber nacionalista  
alemão divergiu de muitos dos seus colegas irracionalistas ao defender que a democracia liberal  
– inexistente na Alemanha semiparlamentarista – era o meio necessário para que o país  
ascendesse ao rol de países imperialistas, não um regime aristocratizado ao sabor dos  
reacionários – como em certa medida era o caso da monarquia dos Hohenzollerns. Para o  
sociólogo de Heidelberg, a jaula de aço inerente à vida burocratizada moderna – a qual passa  
pela democracia liberal - não tende a produzir crítica e antagonismo, mas uma “resignação  
heroica”, como diz Löwy. Em Weber, a elitização/aristocratização da política brota da própria  
democracia liberal e surte efeitos mais profícuos para um país com ideais imperialistas do que  
um regime de ranço feudal.  
Com base nesse raciocínio, Mészáros justifica a difusão de Weber no pós-2º Guerra na  
Europa e nos EUA: com sua visão de mundo fatalista associada à sua epistemologia de substrato  
neokantiano e de desfecho positivista, Weber estava bem situado para ser a antípoda do  
marxismo. Ademais, sua posição política favorável à democracia liberal – com destaque na  
constituição da República de Weimar – o capacitava a ser alçado a paladino da democracia  
contra os “totalitarismos” (leia-se o socialismo e o fascismo). Essa faceta de Weber expressaria  
a sua face voltada à apologética direta do capitalismo.  
338  
Contudo, conforme a leitura de Lukács, a outra face da “Cabeça de Janus” é justamente  
a apologética indireta do capitalismo, a sua imagem do mundo fortemente comprometida com  
o irracionalismo alemão. Conforme procuramos apresentar nesse artigo, o Weber enquanto  
homem político é fortemente comprometido com a Alemanha e seus interesses imperialistas, o  
que não o permite que se deixe mergulhar totalmente no irracionalismo, mas está, digamos,  
com metade do seu corpo nele. Sua consideração de que a Modernidade é sinônimo de  
racionalização a qual conduz à burocratização da vida traz o atalho para o escapismo, para o  
misticismo irracionalista, que, nos tempos atuais, engrossa as fileiras da extrema direita e do  
neofascismo em variados países, imperialistas e dependentes. Diante de uma Alemanha  
fortemente industrializada, mas alijada das possessões coloniais, e de um forte e vigoroso  
movimento operário socialdemocrata, a visão de mundo pessimista de Weber muito mais do  
Libertas, Juiz de Fora, v. 24, n. 1, p. 319-339, jan./jun. 2024. ISSN 1980-8518  
O homem para todas as estações: irracionalismo e neokantismo na sociologia de Max Weber  
que apenas fomentar a resignação, pode ter contribuído para disseminar o clima intelectual que  
posteriormente endossou o reacionarismo chauvinista do nazifascismo. Afinal, como afirma  
Lukács, “não há nenhuma tomada de posição filosófica ‘inocente’”: “a possibilidade de uma  
ideologia fascista, reacionária e agressiva está contida objetivamente em toda a expressão  
filosófica do irracionalismo” (Lukács, 2020, p. 34).  
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WOOD. E. M. Democracia contra o capitalismo: a renovação do materialismo histórico. São  
Paulo: Boitempo, 2011.  
339  
VI MINEPS 2017: Esporte, Organismos  
Internacionais e Neoliberalismo  
VI MINEPS 2017: Sport, International Organizations  
and Neoliberalism  
Marcelo Paula de Melo*  
Emanoel Borges Candal**  
Fernando Henrique Carneiro***  
Resumo: Por meio da atuação dos Organismos  
Internacionais em diversos campos é possível  
analisarmos as relações entre as transformações,  
características e estratégias das ações burguesas  
em seus programas e ações políticas. Esse texto  
Abstract: Through the work of International  
Organizations in various fields, it is possible to  
analyze the relationships between the  
transformations, characteristics and strategies  
of bourgeois actions in their programs and  
political actions. This text intends to investigate  
the indications and recommendations of the VI  
Conference of Ministers and Senior Officials of  
EF and Sport (MINEPS), held in Kazan  
(Russia) in 2017. Especially, we intend to  
investigate the relationship of these indications  
and recommendations to public policies of  
Sport, Physical Education and Leisure.  
Throughout the reflections, it was possible to  
perceive an EF focused on the diffusion of  
values in the landmarks of capital, especially  
with characteristics of association with  
neoliberal structural demands due to high  
unemployment and informality.  
pretende  
investigar  
as  
indicações  
e
recomendações da VI Conferência de Ministros  
e Alto Funcionários da EF e do Esporte  
(MINEPS), realizada em Kazan (Rússia) no ano  
de 2017. Especialmente, intentamos investigar a  
relação dessas indicações e recomendações para  
as políticas públicas de Esporte, Educação  
Física e Lazer. Ao longo das reflexões, foi  
possível perceber uma EF voltada à difusão de  
valores nos marcos do capital, em especial com  
características de associação às demandas  
estruturais neoliberais pelo alto desemprego e  
informalidade.  
Palavras-chaves: UNESCO, Educação Física,  
Keywords: UNESCO; Physical Education;  
MINEPS 2017 e Neoliberalismo.  
MINEPS 2017 and Neoliberalism.  
*
Mestre em educação (UFF); doutor em Serviço Social (UFRJ), professor da EEFD-UFRJ. ORCID:  
** Mestre em Educação (UFRJ) e professor da SME-RJ. ORCID: https://orcid.org/0000-0002-3277-0398  
***  
Mestre e doutor em Educação Física (UNB) e professor do Instituto Federal de Goiás. ORCID:  
DOI: 10.34019/1980-8518.2024.v24.43596  
Esta obra está licenciada sob os termos  
Recebido em: 21/02/2024  
Aprovado em: 24/04/2024  
VI MINEPS 2017: Esporte, Organismos Internacionais e Neoliberalismo  
Introdução  
Por meio da atuação dos Organismos Internacionais em diversos campos é possível  
analisarmos as relações entre as transformações, características e estratégias das ações  
burguesas em seus programas e ações políticas. A conformação de organismos supostamente de  
ajuda técnica, compostas seja por indicações governamentais, seja por técnicos contratados por  
esses organismos, acaba conferindo às ações políticas dos Organismos Internacionais uma  
conotação de ação com vistas à solução de problemas de diversas naturezas. Não sendo uma  
intervenção direta de países capitalistas centrais sobre outros capitalistas dependentes ou  
mesmo recém saídos de processos de libertação nacional e\ou colonial, os programas e políticas  
públicas chancelados e\ou diretamente executadas por equipes desses organismos raramente  
recebem alcunha de ação para realizar interesses de classe (burguesa). Essa característica acima  
indicada é mais forte nos programas, políticas e projetos das agências do Sistema das  
Organizações das Nações Unidas. A Educação Física, por sua vez, não fica de fora destas  
indicações e também é fruto de variadas produções por parte destas organizações.  
Esse texto buscará estudar um campo particular de ação da ONU, através de suaAgência  
Especial para a Educação, Ciência e Cultura (ONU-UNESCO). Abarcando suas proposições  
para o campo da Educação Física (EF), Esporte e Lazer, queremos destacar a Conferência de  
Ministros e Alto Funcionários da EF e do esporte (MINEPS). Com edições em 1976 (Montreal,  
Canadá), 1988 (Moscou, URSS), 1999 (Punta del Este, Uruguai), 2004 (Atenas, Grécia), 2013  
(Berlim, Alemanha), tendo sua mais recente versão em 2017 (Kazan, Rússia). A MINEPS é um  
encontro mundial de autoridades e organizações ligadas ao campo para debater e atualizar  
questões pertinentes ao que eles definem como “Educação Física e Esportes”, englobando  
direcionamentos no prisma das políticas públicas em EF fora do espaço escolar e dentro dele.  
Nas palavras da própria apresentação da conferência:  
341  
A MINEPS é a única plataforma global deste tipo no mundo. Os resultados da  
MINEPS não só ajudam a estabelecer a direção geral do programa de  
educação física e esporte da UNESCO, como também norteiam a implantação  
de políticas e práticas efetivas por governos no mundo todo (ONU-UNESCO,  
2013, p. 1).  
Esse texto pretende investigar as indicações e recomendações da VI Conferência de  
Ministros e Alto Funcionários da EF e do Esporte (MINEPS), realizada em Kazan (Rússia) no  
ano de 2017. Especialmente, intentamos investigar a relação dessas indicações e  
recomendações para as políticas públicas de Esporte, Educação Física e Lazer como expressão  
da realização dos embates entre classes sociais que conformam nosso tempo histórico. Ao longo  
do trabalho, refletimos sobre perguntas norteadoras desta pesquisa, que são explicitadas abaixo:  
Marcelo Paula de Melo; Emanoel Borges Candal; Fernando Henrique Carneiro  
1) É possível identificar apontamentos nos documentos da ONU-UNESCO para o campo da  
EF que se relacione com a estruturação neoliberal atual, em especial questões como reforma do  
Estado, as novas configurações do mundo do trabalho, a flexibilização e as ações de tentativa  
de naturalização da precariedade? 2) Como esse elemento se materializa nas políticas  
recomendadas nesse relevante documento?  
A escolha dos documentos chaves da MINEPS 2017 (ONU-UNESCO, 2017a; 2017b)  
se dá pela relevância que ocupam no cenário internacional para o campo e sua não separação  
entre si, sendo pilares de reivindicações deste organismo internacional, além de se relacionarem  
com outros aspectos mais gerais, tais como as Metas de Desenvolvimento do Milênio, aAgenda  
2030 para o Desenvolvimento Sustentável (ONU-UNESCO, 2015) dentre outros. Para maior  
especificidade em relação a forma de análise dos documentos da EF produzidos pela UNESCO  
já citados (ONU-UNESCO, 2017a; 2017b, ONU-UNESCO, 2015), realizaremos análise  
documental.  
A importância dos organismos internacionais tem sido cada vez maior no que diz  
respeito aos encaminhamentos para as políticas mundiais. Essas organizações não somente  
cumprem papel de formulação e indicação das políticas, mas também de produção de relatórios  
e constatações do movimento capitalista que norteiam as possíveis ações futuras e as avaliam.  
Assim, garantem a divisão internacional do trabalho em diferentes prismas, através da  
educação, da ciência e da cultura, como o caso direto da UNESCO (Organização das Nações  
Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura), fundada em 1946 que centraliza sua atuação,  
em especial no campo da educação, das ciências humanas e sociais, cultura, ciências naturais,  
comunicação e informação. Outros organismos aparecem como centrais e em relação  
indissociável entre eles para a consolidação da organização social nos marcos capitalistas, como  
o Banco Mundial e o Fundo Monetário Internacional intimamente ligados à reafirmação do  
fortalecimento do capitalismo em nível global.  
342  
As aproximações das discussões da Educação Física com Serviço Social intensificaram-  
se nas últimas décadas. Foram comuns a realização de estudos de Pós graduação por parte de  
professores e professoras de Educação Física no âmbito de programas de Serviço Social. Os  
debates acerca do esporte e outros elementos da cultura corporal como direitos sociais (Penna,  
2011; Melo, 2011; Athayde, 2014), as relações Estado e Sociedade civil com avanço de projeto  
neoliberal e suas implicações nas Políticas de Esporte e lazer (Melo, 2011; Andrade, 2018), as  
contradições dos grandes eventos esportivos para sociedade Brasileira (Figueiredo, 2017) foram  
objetos de estudos variados de professores e professoras de Educação Física em Programas de  
Pós-graduação em Serviço Social. Tendo como pano de fundo as mudanças nas dinâmicas das  
Libertas, Juiz de Fora, v. 24, n. 1, p. 340-358, jan./jun. 2024. ISSN 1980-8518  
VI MINEPS 2017: Esporte, Organismos Internacionais e Neoliberalismo  
lutas entre as classes sociais na atual fase da sociedade burguesa, essa bebida da Educação  
Física ao Serviço Social, significou situar seus elementos centrais aos princípios éticos políticos  
de uma bibliografia crítica- com aproximações variadas ao marxismo- que foi pouco presente  
inicialmente na Educação Física. A qualificação ético-política das discussões da Educação  
Física, assumindo a radicalidade do marxismo, deve-se também a essa aproximação.  
Políticas sociais e capitalismo neoliberal  
O capitalismo contemporâneo vem expressando evidências cada vez mais significativas  
sobre sua característica extremamente efetiva de elevar, em larga escala, o nível de expropriação  
e exploração da força de trabalho e da natureza. Faz isso como supostas expressões de liberdade,  
mas com índices humanitários cada vez mais preocupantes. A precarização da vida, a  
desregulamentação e flexibilização do trabalho, altas taxas de desemprego e a informalidade  
em nível mundial são características que podem ser percebidas. É também perceptível um  
aspecto importante em meio a tantos indícios de extrema pauperização, como os discursos de  
romantização destas condições de precariedade estruturados, a partir de uma lógica  
meritocrática e distante da totalidade. Estes são acompanhados da justificativa de características  
meramente individuais, atribuindo o difícil momento do capitalismo à postura dos trabalhadores  
ou ao âmbito “natural” da própria engrenagem produtiva mundial. Com isso, busca-se dificultar  
a associação direta, pelas maiorias populares, de suas difíceis condições de vida, com as  
premissas básicas do projeto neoliberal e ao próprio modo de produção capitalista. É possível  
perceber o avanço de espaços supostamente motivacionais, proposta de caminhos para o  
empreendedorismo e exaltação de exceções- que como nos ensina a matemática apenas  
confirma a regra- que ascenderam socialmente, por meio do trabalho e da vida precária,  
colocando-os como exemplos de postura e de julgamento moral ao restante da população.  
Fontes (2017) alerta para o estratégico e complexo processo educativo a que os  
trabalhadores são submetidos, onde por trás ocorre o aumento da concentração de riqueza e  
controle e, consequentemente, desigualdade e desemprego. Tal processo tenta naturalizar assim  
as retiradas de direitos de forma passiva e quase automática por parte do próprio trabalhador  
com a urgência legítima de atender às suas necessidades materiais imediatas de existência.  
Como afirma Fontes (2017, p. 49):  
343  
Os Estados capitalistas realizaram um duplo movimento: reduziram sua  
intervenção na reprodução da força de trabalho empregada, ampliando a  
contenção da massa crescente de trabalhadores desempregados, preparando-  
os para a subordinação direta ao capital. Isso envolve assumir, de maneira  
mais incisiva, processos educativos elaborados pelo patronato, como o  
empreendedorismo e, sobretudo, apoiar resolutamente o empresariado no  
Marcelo Paula de Melo; Emanoel Borges Candal; Fernando Henrique Carneiro  
disciplinamento de uma força de trabalho para a qual o desemprego tornou-se  
condição normal (e não apenas mais ameaça disciplinadora.  
A crítica ao Estado capitalista não é em absoluta a proposição de uma situação social de  
vida pré ou não estatal. Como mostra Mészaros (2015, p. 16), “apenas os apologistas  
interesseiros do sistema do capital podem acusar os defensores da alternativa socialista de  
pedirem uma “anarquia utópica sem lei”. Nada poderia ser mais longe da verdade”.  
Mais ainda, a reprodução das relações sociais capitalistas não tem predileção a priori  
por qualquer modalidade estatal ou adjetivo acerca de sua lógica de funcionamento. O processo  
histórico mostra que não há nenhuma barreira a priori entre desenvolvimento de relações sociais  
capitalistas e formas abertamente ditatoriais. Não por acaso,  
As formações estatais do sistema do capital nunca poderiam cumprir suas  
funções corretivas e de estabilização exigidas (e, assim, prevalecer sobre as  
tendências potencialmente perturbadoras) sem sobreporem-se a todas as  
resistências encontradas como um corpo alienado par excellence de tomada  
de decisão global. (...) Consequentemente, dada a sua função absolutamente  
crucial no processo de reprodução social global, o tipo de defesa legitimadora  
do Estado próprio do metabolismo social estabelecido não pode assumir  
qualquer outra forma senão a sobreposição a todo custo (Mészáros, 2015, p.  
17/8).  
O neoliberalismo, enquanto expressão da dinâmica de organização societal capitalista  
nos últimos 40 anos, parece apontar para uma suposta pacificação da luta de classes por meio  
da distância estabelecida, por exemplo, na relação patrão x trabalhador, no aguçamento da  
competição entre os próprios trabalhadores (diminuindo sua própria noção enquanto classe) e  
na própria estratégia de diminuir a capacidade de percepção de detenção dos meios de produção  
e do próprio processo produtivo. Por outro lado, as contradições também se acirram. Embora  
tenhamos características específicas deste momento histórico, é importante observar que  
estamos diante de brusca potencialização das relações capitalistas e da extração de mais-valia  
(não de sua supressão realizada pelo avanço tecnológico ou características estruturais outras de  
sociedade). O alerta de Elaine Behring (2023) acerca da ofensiva ultraneoliberal no mundo  
serve com nitidez para definirmos essa época.  
344  
A diminuição do trabalho sindicalizado por meio da expressão da precarização de  
trabalho por aplicativo não é a mesma coisa que dizer que fim da luta de classes. Apenas que  
os trabalhadores e trabalhadoras ultraprecarizados não conseguem mecanismos coletivos de  
defenderem-se da realização dos interesses de classes de seus novos patrões- agora fundos de  
investimento invisíveis a olhos nus em companhias globais. Não existe demonstração mais  
cabal da luta de classes que essa, ainda que os resultados sejam trágicos aos trabalhadores e  
trabalhadoras.  
Libertas, Juiz de Fora, v. 24, n. 1, p. 340-358, jan./jun. 2024. ISSN 1980-8518  
VI MINEPS 2017: Esporte, Organismos Internacionais e Neoliberalismo  
A expressão de menor precariedade existencial aos trabalhadores e trabalhadoras na  
segunda metade do século XX - a experiência breve e geograficamente localizada do estado  
social europeu -, justamente onde o movimento sindical, popular e de partidos de esquerdas  
fortíssimos, indica que foi a luta de classes dos de baixo que a viabilizou. Assim como sua  
débâcle e destruição deve ser compreendida como expressão da luta de classe burguesa com  
vistas elevar os níveis de exploração da força de trabalho por diversos mecanismos, incluindo  
a internacionalização extrema da produção capitalista, algo então inédito e em processo de  
aprofundamento. No momento em que senão fim da luta de classes, mas, sobretudo seu  
esvaecimento como elemento da explicação - e também e principalmente - da ação política  
efetiva nas diversas sociedades são celebrados ou tratados com naturalidade vemos que diversas  
expressões da realidade social seguem indicando a existência de interesses objetivos  
antagônicos e inconciliáveis.  
Esses processos são manifestações efetivas da luta de classes. Em muitos casos por não  
haver seja uma classe trabalhadora de tipo industrial- algo impossível em países de então  
recentíssima industrialização- seja um partido comunista com muitos adeptos, as lutas de  
libertação anticolonial não foram tomadas como expressão das lutas de classes.  
Com esses elementos apresentados, podemos refletir sobre algumas características que  
se apresentam atualmente. O conjunto de reformas amplamente difundidas, em especial no  
campo trabalhista, previdenciário, da legislação ambiental e dos direitos sociais de maneira  
geral tem sido reforçado como naturais ao processo de recuperação econômica e ganham  
extrema centralidade na conjuntura político-econômica. Tais reformas se dão com intensidade  
nos países periféricos do capital, mas também se acirram em polos centrais como a Europa e  
EUA. Não são poucos os casos de ações, por parte dos Estados, que vêm estruturando reformas  
em diferentes frentes sociais, em especial desde o início dos anos 1990, parecendo ocorrer com  
maior intensidade nos ataques aos direitos e no avanço da repressão aos movimentos contrários  
nesta segunda década do século XXI com a ascensão, inclusive, de setores de extrema direita  
em escala global.  
345  
Granemam (2017) afirma que as políticas sociais na atualidade, diferente dos anos de  
ouro do capitalismo mundial, deixam de ser centrais à dinâmica de acumulação e realização de  
lucros. Contrariamente tornam-se uma barreira na medida em que exigem direcionamentos do  
fundo público para atender às demandas da classe trabalhadora. É esse quadro explicativo que  
possibilita à compreensão de como uma série de ataques em diversos países à conquistas dos  
trabalhadores são levados adiante, malgrado o cinismo reinante de seus defensores. A  
privatização das políticas sociais, nas suas mais variadas formas e mecanismos, é parte central  
Marcelo Paula de Melo; Emanoel Borges Candal; Fernando Henrique Carneiro  
desse quadro.  
Ao passo em que lidamos com políticas que se apresentam como avanços e se  
estabelecem na esperança salvacionista e com o discurso da utilização da tecnologia, por  
exemplo, para melhora de questões sociais, é possível perceber, por outro lado, fortes  
contradições. Estas se apresentam pelos limites essenciais às relações da divisão internacional  
do trabalho/lugar político-econômico que os países periféricos ocupam, não rompendo,  
portanto, com a estruturação do capitalismo mundial, sequer focalizando a análise nesta origem.  
Pelo contrário, o aparecimento de medidas e ações estatais e/ou empresariais que se apresentam  
como solucionadores de específico problema, tendem a reforçar e reproduzir a lógica de boas  
ações no sentido moral e distanciar a análise crítica ao movimento real do capitalismo mundial  
globalizado que lucra com as desigualdades. Importante destacar as recorrentes ações, em  
diversos campos sociais, que assumem caráter “compensatório” tendo em seus eixos estruturais  
as ações filantrópicas e discursos para o desenvolvimento de países com alto índice de  
desigualdade e pobreza propagandeadas como ações salvadoras de males sociais típicos da  
dinâmica de exploração do capitalismo.  
Com isso, se faz central que não desvinculemos estas medidas com a dinâmica de classes  
no mundo em que se estrutura a sociedade capitalista e a relação de exploração que se intensifica  
em momento de agudização da crise. É importante atentarmos que os organismos internacionais  
estão intrinsecamente ligados às políticas desenvolvidas nos países periféricos, que, por sua  
vez, ocupam lugares na divisão internacional do trabalho e cumprem papéis importantes para a  
sustentação do capitalismo mundial. Papéis estes de serem redutos de grande exploração e de  
expropriações cada vez mais intensas às populações trabalhadoras, embora em muitas vezes  
estas sejam propagandeadas como única solução e/ou com discurso legitimador de mais e mais  
expropriação (como o caso dos variados cortes em gastos públicos).  
346  
VI MINEPS 2017 como materialização da ação  
AMINEPS é um encontro mundial de autoridades e organizações ligadas ao campo para  
debater e atualizar questões pertinentes as políticas públicas de Educação Física, Esportes e  
Lazer, fora do espaço escolar e dentro dele. Na apresentação da conferência, encontramos as  
seguintes informações: A MINEPS como plataforma global; seus resultados não só ajudam a  
estabelecer a direção geral do programa de educação física e esporte da UNESCO, como  
também norteiam a implantação de políticas e práticas efetivas por governos no mundo todo  
(ONU-UNESCO, 2013, p. 1).  
A VI Conferência Internacional de Ministros e Altos Funcionários responsáveis pela  
Libertas, Juiz de Fora, v. 24, n. 1, p. 340-358, jan./jun. 2024. ISSN 1980-8518  
VI MINEPS 2017: Esporte, Organismos Internacionais e Neoliberalismo  
Educação Física e Esportes, realizada em Kazan (Rússia, de 13 a 15 de julho de 2017), foi  
sistematizada em um documento de 62 páginas. Está dividido em “AGRADECIMENTOS”,  
“VISÃO DO CONJUNTO”, “PRINCIPAIS PONTOS DE DEBATE” e as cláusulas  
encaminhadas na conferência. Constam também três anexos. São eles: “PLANO DE AÇÃO”;  
relatoria, falas e programação intitulada “ORDEM DO DIA ANOTADA” e “LISTA DE  
PARTICIPANTES”. Estiveram presentes 97 Estados membros, 1 Estado não membro, 7  
organizações intergovernamentais e 53 organizações não governamentais. É possível  
identificar, no último anexo do documento, empresas e instituições, confederações esportivas  
nacionais, universidades privadas, além de federações internacionais esportivas (ONU-  
UNESCO, 2017a, p.53-57). Está expresso que a VI MINEPS teve como centralidade a análise  
e os apontamentos para materialização dos encaminhamentos realizados na V MINEPS (2013)  
e pela Carta Internacional da Educação Física (2015), como é possível identificar abaixo:  
MINEPS VI se centró en la aplicación de la Declaración de Berlín, que se  
aprobó en MINEPS V, celebrada en Berlín (Alemania) en 2013, y de la Carta  
Internacional de la Educación Física, la Actividad Física y el Deporte. La  
Conferencia tenía cuatro objetivos principales: i) reconocer el marco de  
seguimiento de las políticas de deporte de MINEPS como un instrumento útil  
de carácter voluntario para propiciar la convergencia y la cooperación  
internacionales en la evaluación de los avances alcanzados en la formulación  
de políticas deportivas; ii) reconocer la información concreta recopilada por  
los grupos de trabajo en la que se basará el marco; iii) comprometerse a  
reforzar los vínculos entre la formulación de políticas deportivas y los  
Objetivos de Desarrollo Sostenible; y iv) comprometerse a cooperar a escala  
internacional en iniciativas específicas. Estos objetivos sirvieron de base para  
la aprobación del Plan de Acción de Kazán (ONU-UNESCO, 2017a, p. 4).  
347  
Vale, então, ressaltar os objetivos centrais elencados no documento no tópico citado. No  
item I, o norteamento de reconhecimento das proposições da MINEPS, como instrumento para  
propiciar a convergência nas políticas, revela a preocupação para o desenvolvimento das  
políticas do campo nos países, expressando, assim, a posição de se ter um projeto de difusão  
das mesmas com um determinado direcionamento. No item III, a citação aos objetivos do  
chamado Desenvolvimento Sustentável aparece mais uma vez, assim como na Carta  
Internacional, demonstrando a articulação das ações variadas dos encaminhamentos da  
conferência com o documento geral da ONU, associando o campo da Educação Física ao  
(suposto) cumprimento destes objetivos. São eles:  
1- erradicação da pobreza; 2- fome zero; 3- boa saúde e bem-estar; 4-  
educação de qualidade; 5- igualdade de gênero; 6- água limpa e saneamento;  
7- energia acessível e limpa; 8- emprego digno e crescimento econômico; 9-  
indústria, inovação e infraestrutura; 10- redução das desigualdades; 11-  
cidades e comunidades sustentáveis; 12- consumo e produção responsáveis;  
13- combate às alterações climáticas; 14- vida debaixo d´água; 15- vida sobre  
a terra; 16- paz, justiça e instituições fortes; 17- parcerias em prol das metas  
Marcelo Paula de Melo; Emanoel Borges Candal; Fernando Henrique Carneiro  
(ONU, 2016).  
Os “Objetivos de Desenvolvimento do Milênio” (ONU, 2000), nos anos 1990,  
totalizavam oito. Há um crescimento deste quantitativo de objetivos, a repetição fundamental  
da totalidade dos problemas indicados e o adiamento constante de metas anteriores junto a  
elaboração de novas metas em novas agendas e programas. No site da conferência é possível  
perceber novamente a centralidade dessas relações, conforme podemos observar no trecho  
abaixo, desdobrando em demais ações futuras compromissadas com a relação entre Educação  
Física e tais documentos gerais da ONU. Vejamos:  
Como a UNESCO está comprometida em alinhar seus programas e atividades  
com a Agenda 2030 das Nações Unidas para o Desenvolvimento Sustentável  
e os 17 Objetivos de Desenvolvimento Sustentável, o MINEPS VI fornecerá  
uma plataforma para discutir educação física, atividade física e esporte, à luz  
de sua contribuição para alcançar os ODS. (..) Os seguintes ODS são  
particularmente relevantes: 3: Garantir uma vida saudável e promover o bem-  
estar para todos, em todasas idades; 4: Garantir uma educação de qualidade  
inclusiva e equitativa e promoveroportunidades de aprendizagem ao longo  
da vida para todos; 5: Alcançar a igualdade de gênero e empoderar todas as  
mulheres e meninas;8: Promover crescimento econômico sustentado,  
inclusivo e sustentável,emprego pleno e produtivo e trabalho decente para  
todos; 10: Reduzir a desigualdade dentro e entre países;11: Tornar cidades  
e assentamentos humanos inclusivos, seguros, resilientese sustentáveis;  
assim como 16: Promover sociedades pacíficas e inclusivas para o  
desenvolvimentosustentável, fornecer acesso à justiça para todos e construir  
instituições efetivas, responsáveis e inclusivas em todos os níveis. Antes e  
durante o MINEPS VI, os Estados Membros e os movimentos esportivos serão  
convidados a compartilhar exemplos de boas práticas. (...) Essa intenção de  
vincular as atividades esportivas à Agenda 2030 reconhece a necessidade de  
um impacto positivo dos investimentos no esporte no desenvolvimento.  
Portanto, será importante que uma estrutura para os formuladores de políticas  
contenha indicadores mensuráveis e um compromisso de todas as partes  
interessadas em operacionalizar intenções de desenvolvimento ao planejar  
programas, projetos e eventos (ONU-UNESCO, 2017b).  
348  
O processo citado, no final do trecho acima, também dialoga com as formulações das  
políticas, indicando de forma ainda mais profunda o interesse de articulação com a efetivação  
dos objetivos de documentos gerais do sistema ONU-UNESCO. Tal questão se confirma no  
próprio documento final da conferência. Temos:  
El CIGEPS decidió que MINEPS VI se centraría en hacer una llamada a la  
acción para llevar a la práctica los compromisos de los ministros asumidos en  
la Declaración de Berlín y las expectativas y normas consagradas en la Carta  
Internacional de la Educación Física, la Actividad Física y el Deporte en el  
marco de los Objetivos de Desarrollo Sostenible y la Agenda 2030. Por lo  
tanto, pareció oportuno adoptar un nuevo marco para vincular los tres  
documentos (ONU-UNESCO, 2017a, p. 12).  
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VI MINEPS 2017: Esporte, Organismos Internacionais e Neoliberalismo  
Encontramos com mais ênfase questões a serem aprofundadas e discutidas relacionadas  
diretamente aos processos de naturalização das contradições do capitalismo, como indicações  
que acirram as políticas de reformas que vêm sendo tocadas como supostas soluções para a  
crise (em especial para países periféricos); o caráter educativo da Educação Física dentro dos  
marcos hegemônicos e de pacificação da luta de classes como solucionadora de conflitos e para  
o que chamam de “uma cultura de paz a partir do ensino de valores socialmente aceitos” (ONU-  
UNESCO, 2017a, 2017b); o direcionamento para a ação da sociedade civil como garantidora  
dos direitos sociais (inclusive como parceiras das escolas públicas estatais) por meio do  
incentivo das chamadas relações público- privadas; a forte visão salvacionista em relação as  
práticas corporais. O aprofundamento do projeto neoliberal, com seus conhecidos resultados,  
tem na naturalização da privatização da ação estatal por meio de organismos supostamente sem  
fins de lucro um de meios mais expressos de efetivação.  
Abaixo, podemos observar norteamentos que serão desdobrados, posteriormente, no  
documento e que vão demonstrar de forma mais concreta as questões colocadas anteriormente:  
II. Potenciar al máximo la contribución del deporte al desarrollo sostenible y  
la paz II.1 Mejorar la salud y el bienestar de todos a cualquier edad II.2 Lograr  
que las ciudades y los asentamientos sean inclusivos, seguros, resilientes y  
sostenibles II.3 Brindar una educación de calidad y promover el aprendizaje  
permanente para todos y la adquisición de competencias a través del deporte  
II.4 Construir sociedades pacíficas, inclusivas y equitativas II.5 Facilitar el  
crecimiento económico y el empleo pleno y productivo y el trabajo para todos  
II.6 Promover la igualdad entre hombres y mujeres y empoderar a las mujeres  
y a las niñas II.7 Garantizar modalidades de consumo y producción sostenibles  
y adoptar medidas urgentes para combatir el cambio climático y sus efectos  
II.8 Construir a todos los niveles instituciones eficaces e inclusivas que rindan  
cuentas (ONU-UNESCO, 2017a, p. 13).  
349  
No trecho que levanta a percepção relacionada ao tema das contribuições da Educação  
Física para o “desenvolvimento econômico, o emprego pleno e produtivo e o trabalho para  
todos” (citado no tópico II.5 da citação anterior), podemos constatar o deliberado tratamento  
como sinônimos aos conceitos de emprego e trabalho, parte determinante da naturalização da  
flexibilidade, do voluntariado e de uma educação relacionada aos marcos empreendedores  
/empresariais, sendo estes apontamentos para atingir o que chamarão de “emprego pleno” e  
“aumento da produtividade”, se estreitando aos apontamentos realizados anteriormente que  
analisam os aspectos da uberização do trabalho. O trecho abaixo, que analisa a conjuntura para  
as ações relacionadas a essa problemática, expressa este direcionamento:  
El atractivo del deporte para los jóvenes hace de este un marco valioso para  
iniciativas de empleabilidad (meta 4.4), como por ejemplo de formación  
empresarial (metas 8.5 y 8.6). El voluntariado también contribuye de forma  
importante. Puede cosecharse más beneficio económico de las políticas  
deliberadas destinadas a incrementar las contribuciones voluntarias de  
Marcelo Paula de Melo; Emanoel Borges Candal; Fernando Henrique Carneiro  
funcionarios, orientadores, padres y otros grupos que aportan beneficios  
sociales y de salud mediante el apoyo a programas de actividades físicas y  
deportivas eficaces en función de los costes (ONU-UNESCO, 2017a, p. 17).  
Vale ressaltar que as metas estão em diálogo com as metas de desenvolvimento  
sustentável da agenda 2030. Especialmente a meta 4.4. indica: “Até 2030, aumentar  
substancialmente o número de jovens e adultos que tenham habilidades relevantes, inclusive  
competências técnicas e profissionais, para emprego, trabalho decente e empreendedorismo”  
(ONU-UNESCO, 2017a, p. 18). O tópico 4.4 é emblemático na categorização e no apontamento  
de uma educação que se associa diretamente à crise no mercado de trabalho, sobretudo no que  
diz respeito aos jovens. As chamadas “habilidades relevantes” acompanhadas ao  
empreendedorismo demarcam o posicionamento de forma clara, no sentido educativo da  
juventude para naturalização dessas condições de trabalho. Também o movimento da entrada  
na informalidade como alternativa do desemprego deixa como questionamento uma  
duplicidade perversa nos apontamentos das metas de desenvolvimento citadas pelo trecho da  
VI MINEPS trazido. Aponta-se a busca pelo pleno emprego ao mesmo tempo em que o  
empreendedorismo e a construção de habilidades necessárias para a contemporaneidade  
figuram como centrais. Chama atenção também no trecho do documento citado a forte presença  
do voluntariado.  
Há uma contradição entre informalidade e emprego digno na vida material do  
trabalhador. Sendo assim, o trecho citado evidencia-se como contraditório, mas ao mesmo  
tempo como naturalizador da resiliência para a precariedade através dos sentidos pedagógicos  
da Educação Física e seu campo econômico. Tais dados que demonstram sentido inversos às  
metas, revelam também a intrínseca relação entre a pauperização, acirramento da desigualdade  
e da exploração com o capitalismo, sendo estes condicionantes fundamentais de seu modus  
operandis.  
350  
No momento em que a crise sistêmica e estrutural do sistema metabólico do capital não  
dá nenhuma mostra de arrefecimento, com o aprofundar de suas contradições em termos de  
exploração do ser humano e do meio ambiente, seguem aparecendo vãs esperanças que ajustes  
na atuação estatal seria uma possível solução desses problemas. Como mostra Mészaros (2015,  
p. 15),  
As tentativas de medidas corretivas do Estado- desde intervenções militares  
perigosas para enfrentar colapsos financeiros graves em escala monumental,  
incluindo operações de resgate do capitalismo privado realizado pela sempre  
crescente dívida pública da ordem de trilhões de dólares- parecem agravar os  
problemas, apesar das vãs garantias em contrário. (...) Por que as soluções  
tradicionais do Estado não conseguem produzir os resultados esperados? O  
Estado, tal qual constituído historicamente, é mesmo capaz de resolver todos  
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VI MINEPS 2017: Esporte, Organismos Internacionais e Neoliberalismo  
os nossos problemas ou o Estado como tal tornou-se um dos principais  
contribuintes para o agravamento de seus próprios problemas e para sua  
insolubilidade crônica?  
Na parte do documento intitulado “Principais Pontos de Debate” há a presença relatada  
de debates acerca da importância da inclusão de minorias historicamente marginalizadas.  
Também há referência mais freqüente a convenções internacionais relacionadas à temática, com  
a preocupação em estabelecer ações para o acesso de pessoas com deficiência, além da  
necessidade de enfrentamento na disparidade das desigualdades de gênero e de sexo, com o  
apontamento de estreitamento de parcerias entre organizações esportivas e programas geridos  
pelas comunidades com as escolas (ONU-UNESCO, 2017a, p. 6). O segundo tema “Potenciar  
al máximo la contribución del deporte al desarrollo sostenible y la paz” contou com debates da  
articulação direta entre o esporte e os objetivos, em especial traçando princípios.  
(...) El ponente principal destacó cuatro principios que deberían guiar la  
articulación de las políticas. En primer lugar, una política dirigida a potenciar  
al máximo la contribución del deporte debería reflejar datos e investigaciones,  
basándose en una teoría del cambio. En segundo lugar, para potenciar al  
máximo su impacto, el deporte debería integrarse en las políticas y los  
programas en toda una serie de ámbitos políticos. En tercer lugar, las  
contribuciones pueden realizarse a través del deporte y en el deporte. En  
cuarto lugar, es importante determinar con atención los ODS a los que puede  
contribuir el deporte, en lugar de considerarlo como un catalizador general  
(ONU- UNESCO, 2017a, p. 6-7).  
351  
O quarto princípio demonstra uma maior preocupação com a sistematização que  
relacione especificamente os objetivos e metas de desenvolvimento sustentável com o esporte,  
superando a visão de que o mesmo seria um catalizador geral independente do objetivo. Assim,  
esse movimento acaba elevando, de certa forma, o acúmulo, a objetividade e a profundidade  
dos encaminhamentos para o campo da Educação Física e esporte enquanto políticas sociais,  
revelando uma maior preocupação na efetiva implementação do projeto hegemônico de forma  
mais qualitativo. Outro elemento que reforça tal análise de aprofundamento é o ponto de debate  
principal seguinte desta mesma temática, conforme podemos observar abaixo:  
Varios representantes de Estados Miembros se refirieron al hecho de que la  
capacidad que tiene el deporte de contribuir a la consolidación de la paz no  
conduce al cese de los conflictos y del uso de armas de fuego durante  
competiciones deportivas. En cambio, la guerra y los conflictos son un  
obstáculo para los programas de deportes, educación física y actividad física.  
Se propuso la formación de un grupo de trabajo internacional que examine  
116 cómo el deporte puede contribuir verdaderamente a la paz (ONU-  
UNESCO, 2017a, p. 7).  
Outro ponto de destaque é o retorno à articulação com a agenda 2030, a partir,  
principalmente, de dois tópicos. Um se referindo à presença do esporte no preâmbulo do  
documento de metas e o seguinte, reivindicando a citação direta do campo da EF, expressando  
Marcelo Paula de Melo; Emanoel Borges Candal; Fernando Henrique Carneiro  
“preocupação” com sua ausência nas metas e objetivos da agenda. Isso pode ser observado em:  
4. Destacando que en el preámbulo de la Agenda 2030 se reconoce que el  
deporte es un importante facilitador del desarrollo sostenible y la paz, 5.  
Expresando nuestra preocupación por que, salvo el reconocimiento general  
del deporte como facilitador, no se haga mención alguna de la educación  
física, la actividad física o el deporte en ninguno de los objetivos y metas de  
la Agenda 2030 (ONU-UNESCO, 2017a, p. 9).  
No tópico 16, é possível identificar novamente a função do campo esportivo para a  
consolidação da operação nos marcos dominantes da potência de formação valorativa do  
esporte, articulando-o, inclusive, com a facilitação da transição entre escola e trabalho. Afirma  
que:  
Reconociendo la importante función que desempeñan los jóvenes para  
potenciar al máximo la contribución del deporte al desarrollo sostenible y la  
paz, así como la fuerza positiva que puede tener el deporte para conseguir que  
los niños vayan a la escuela, apoyar las posibilidades de empleo de los jóvenes  
y facilitar la transición de la escuela al trabajo (ONU-UNESCO, 2017a, p. 10).  
Tal trecho aponta para uma concepção de esporte nos marcos de funcionamento social  
dominante e podendo se articular às características contemporâneas do capitalismo em intensa  
precariedade das condições de vida e trabalho. Para além de particularidades nacionais, o ponto  
em comum das reformas trabalhistas foi a desproteção social e a precarização da vida.  
Ressaltaremos a parte “Redacción de las esferas políticas principales y específicas” por  
sintetizar as visões de forma mais evidente sobre as principais esferas políticas, revelando com  
maior clareza os posicionamentos que norteiam a organização e os trabalhos da VI MINEPS.  
Primeiramente, podemos citar a descrição da primeira esfera política principal, conforme  
podemos visualizar abaixo:  
352  
Establecer alianzas entre múltiples interesados la gran diversidad de formas y  
contextos de la educación física, la actividad física y el deporte sugiere que  
gran parte de la importancia que revisten para la sociedad civil reside en su  
variedad y adaptabilidad. A fin de materializar por completo su potencial, es  
necesaria la cooperación entre sectores públicos, como la sanidad, la  
educación, el desarrollo urbano, las infraestructuras y el transporte, e  
interesados del sector privado, para elaborar y aplicar legislación, reglamentos  
y planes de acción nacionales. Estas medidas, llevadas a cabo en sinergia,  
promueven la continuidad de la práctica y el acceso a la actividad física a  
cualquier edad. Su objetivo es promover la autonomía, en un contexto tanto  
individual como colectivo, y evitar que se abandone la práctica (debido, por  
ejemplo, a la edad, a circunstancias de la vida, a condiciones sociales y de  
salud, a la discriminación). Es necesario definir, desarrollar y compartir  
conjuntos de herramientas y otros mecanismos de apoyo en pro de esta  
colaboración intersectorial (ONU-UNESCO, 2017a, p. 14).  
Essa descrição demonstra norteamento claro de apontamentos para as políticas, a partir  
dos processos de parcerias público-privadas entre Estado e o setor privado com foco em direitos  
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VI MINEPS 2017: Esporte, Organismos Internacionais e Neoliberalismo  
básicos fundamentais, como o caso da saúde, da educação, desenvolvimento urbano, transporte  
e infraestrutura. Tal direcionamento para materializar estes direitos que se tornam serviços na  
lógica privada, supostamente consolidaria a possibilidade de acesso à atividade física,  
aumentando a autonomia e diminuindo a evasão destas práticas por conta da idade e condições  
materiais da vida.  
Há forte relação entre a idade de trabalho e a evasão e diminuição das práticas corporais.  
Tal afirmativa, no trecho citado, é universalizante para um mundo profundamente desigual e  
cada vez mais precário em condições básicas de vida e de direitos, justamente pelo processo de  
intensificação neoliberal, de enxugamento do Estado e de forte relação entre o mesmo e as  
grandes empresas do setor privado, além da sua intensa desresponsabilização nas mais variadas  
áreas de direitos sociais. Sendo assim, o trecho corrobora o projeto neoliberal, em sua essência,  
e inverte o movimento do real como véu para a justificativa dele mesmo e da solução da  
precariedade com mais precariedade.  
Mais adiante, ainda nas descrições, especificamente na linha cinco da segunda esfera  
política principal denominada “POTENCIAR AL MÁXIMO LA CONTRIBUCIÓN DEL  
DEPORTE AL DESARROLLO SOSTENIBLE Y LA PAZ”, é possível perceber a relação base  
encaminhada pela MINEPS entre educação física, emprego, produção e trabalho, conforme  
podemos observar abaixo:  
353  
II.5 Facilitar el crecimiento económico y el empleo pleno y productivo y el  
trabajo para todos Puede constatarse en diversos contextos la contribución de  
la educación física, la actividad física y el deporte al crecimiento económico,  
el aumento de la productividad y el empleo. Se calcula que la industria del  
deporte contribuye con hasta el 1% del producto interno bruto mundial y  
estimular el desarrollo del sector puede generar más beneficios. Potenciar al  
máximo el turismo deportivo de eventos y el turismo activo de ocio, en  
particular, puede ser de ayuda en este empeño (meta 8.2). El atractivo del  
deporte para los jóvenes hace de este un marco valioso para iniciativas de  
empleabilidad (meta 4.4), como por ejemplo de formación empresarial (metas  
8.5 y 8.6). El voluntariado también contribuye de forma importante. Puede  
cosecharse más beneficio económico de las políticas deliberadas destinadas a  
incrementar las contribuciones voluntarias de funcionarios, orientadores,  
padres y otros grupos que aportan beneficios sociales y de salud mediante el  
apoyo a programas de actividades físicas y deportivas eficaces en función de  
los costes (meta 8.3) (ONU-UNESCO, 2017a, p. 17).  
Salta aos olhos o trecho no qual se associa o atrativo dos jovens para o esporte à  
oportunidade de formação empresarial (em citação às metas 8.5 e 8.6 da agenda 2030). Tal  
relação reforça o entendimento de que há, no esporte, as possibilidades de difusão de valores  
empreendedores e a utilização do mesmo como instrumento de difusão destes. Logo, em  
sequência, novamente, aparece a reafirmação da contribuição do voluntariado para os  
Marcelo Paula de Melo; Emanoel Borges Candal; Fernando Henrique Carneiro  
benefícios econômicos, além de finalizar articulando a EF e os benefícios sociais e de saúde  
com as possibilidades de parcerias também no sentido voluntarista com diferentes grupos  
sociais.  
A substituição de postos de trabalho perdidos via robotização e ou maior maquinização  
do processo produtivo na indústria, agricultura e serviços gerou o fetiche de que esse manancial  
de postos de trabalho perdidos seria reabsorvido em campos novos de atividade capitalista. Os  
trabalhos precarizados em elaboração e entrega de refeições, assim como outras formas de  
trabalhos mediadas por empresas de aplicativos, em hipótese alguma são suficientes para  
garantir a existência de trabalhadores e suas famílias com mínimo de dignidade. De acordo com  
David Harvey (2018, p. 15):  
A criação, por meio do desemprego tecnologicamente induzido, de um  
exército industrial de reserva, põe em foco as adaptações tecnológicas capazes  
de poupar mão de obra. Inovações que melhorar a eficiência e a coordenação,  
ou aceleram os tempos de rotação na produção e na circulação, produzem  
quantidades maiores de mais valor para o capital (...). Novas tecnologias e  
inovação de produtos andam de mãos dadas.  
Não por acaso, o desafio pedagógico dos mantenedores diretos ou indiretos da ordem  
do capital é apresentar soluções mágicas e superficiais para problemas que exigiram soluções  
radicais e antisistêmicas. Mészáros (2015, p. 25) afirma não ser surpresa que, diante da  
impossibilidade de qualquer proposição estruturalmente equitativa, o pensamento e projeto  
liberal de sociedade no máximo defenda uma ordem “mais equitativa, o que sempre significou  
muito menos que equitativa”. Os momentos da apologia indireta da ordem são constantes. A  
defesa de que somente com crescimento econômico é possível minorar a pobreza e  
desigualdade não dizem que isso se deve ao fato de não arranharem estruturalmente a  
desigualdade social, de renda e patrimônio que marcam as sociedades existentes. Como defende  
Mészáros (2015, p. 25-26)  
354  
Não surpreende, portanto, que simultaneamente ao desenrolar da crise  
estrutural do sistema do capital, o então tendencioso liberalismo reformatório  
rapidamente se metamorfosiasse em uma forma mais agressiva do  
neoliberalismo apologético do Estado. (...). Durante muito tempo, a promessa  
gratuita de todos os tipos de apologias do capital- (...)- foi que o bolo a ser  
distribuído crescerá eternamente, trazendo felicidade plena para  
absolutamente todos. A distribuição abundante cuidará de tudo, ninguém  
deveria se preocupar com os problemas da produção. Porém, o bolo  
simplesmente se recusou a crescer, de modo a corresponder a qualquer  
variedade da projetada “maior felicidade”. A crise estrutural do capital tinha  
posto fim a essas fantasias.  
A propaganda deliberada da chamada ESG por parte dos apologistas burgueses (sejam  
entidades empresariais, seus congêneres nas grandes mídias ou suas fundações e prepostos nas  
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VI MINEPS 2017: Esporte, Organismos Internacionais e Neoliberalismo  
universidades) é apenas a mais nova versão de um prato requentado. Uma adaptação de sigla  
em inglês adotada em diversos países, a ESG é o acrônimo para Environmental, Social and  
Corporate Governance. Uma tradução para Governança Ambiental, Social e Corporativa.  
Considerações finais  
Chama atenção, no discurso materializado nos documentos e nas ações destes  
organismos, forte aspecto pacificador e filantrópico, além de uma objetividade nas ações do  
campo da EF no sentido “salvacionista” de aspectos sociais precários que a própria dinâmica  
capitalista apresenta, em essência. Ao longo do documento analisado e de outras produções em  
diálogo, foi possível observar as inúmeras citações ao que chamaram de “valores e habilidades  
intrínsecos à sociedade do século XXI”, a resiliência como objetivo a ser buscado pelas  
populações vítimas de intensa precariedade ou de situações de calamidade ambientais e  
político-econômicas realizadas pelo capital. Além disso, através da aproximação com a  
educação básica e outros espaços da educação não formal, em que a EF possa estar inserida,  
em especial em projetos sociais, há uma busca por difusão do empreendedorismo e,  
consequentemente, a romantização do trabalho precário. Foi possível observar também a  
materialização de algumas ações burguesas, não necessariamente em diálogo direto às  
produções analisadas, mas com claro estreitamento, a partir da utilização do esporte como  
parâmetro para a educação nos marcos neoliberais, explorando suas características de  
superação, meritocracia etc. Sendo assim, demonstra como as novas configurações de um  
mundo do trabalho uberizado, flexível e o aprofundamento da crise estrutural têm também a EF  
como braço de tentativa de pacificação da luta de classes para a coparticipação dos  
trabalhadores ao sistema que os oprime diariamente. Outro elemento marcante são as inúmeras  
indicações que aparecem de forma central nos documentos para as parcerias público-privadas  
com a sociedade civil através de ONGs, mas também com empresas internacionais de diversos  
ramos para a efetivação, com sucesso, de todas as indicações e políticas presentes nos  
documentos, direcionando assim à desresponsabilização do Estado para com os direitos  
fundamentais construídos em luta pelos (as) trabalhadores (as) ao longo de toda a história,  
transformando estes direitos em serviços e colocando-os na lógica privada. Não por acaso, o  
desafio pedagógico dos mantenedores diretos ou indiretos da ordem do capital é apresentar  
soluções mágicas e superficiais para problemas que exigiram soluções radicais e antisistêmicas.  
É possível observar também um avanço qualitativo nas produções no que diz respeito à  
estrutura dos documentos e seus encaminhamentos, em especial através da preocupação da  
análise contínua das ações, do fortalecimento de diagnósticos das políticas e da criação de  
355  
Marcelo Paula de Melo; Emanoel Borges Candal; Fernando Henrique Carneiro  
acompanhamento internacional para as materializações encaminhadas, em especial pela VI  
MINEPS.  
Ao longo das reflexões, foi possível perceber uma EF voltada à difusão de valores nos  
marcos do capital, em especial com características de associação às demandas estruturais  
neoliberais pelo alto desemprego e informalidade. A tentativa de construção do imaginário  
empreendedor pelos valores da EF perpassa, com destaque, todos os documentos da segunda  
década do século XXI, citados ao longo deste trabalho. Apesar do reconhecimento da EF  
tematizar outras produções culturais, são os esportes e os exercícios físicos para a “saúde e  
bem-estar” que balizam fundamentalmente todos os documentos, não tendo concretamente  
políticas de fortalecimento da Cultura Corporal local. Quando acontece, se dão em sentidos da  
mercantilização e apagamento de potenciais críticos que possam romper com a estrutura social  
capitalista. Outra característica que podemos perceber é a reivindicação de uma EF inclusiva,  
mas sem se articular à concretude destas possibilidades, pois não rompe com a exclusão  
intrínseca ao capital, só a reforça ao longo de todas as formulações de diferentes formas, sendo  
construído estes documentos também por atores de interesses privados. Sendo assim, o discurso  
da inclusão nestas linhas, estão a serviço da ordem dominante, apesar de também serem  
elementos da pressão do movimento do real. A partir desses entendimentos, podemos afirmar  
que a EF é também parte de um projeto de classe e atua para sua consolidação, a nível mundial,  
sendo articulada e atualizada junto às demandas contemporâneas do capital.  
356  
Os objetivos de apresentação de crítica à atuação da aparelhagem estatal como  
garantidor das condições objetivas e subjetivas da dominação burguesa e\ou reprodução das  
relações sociais capitalistas não tem a pretensão de um vislumbre de uma sociedade sem formas  
coletivas de gestão da vida social. Como afirma Mészaros (2015) essa mais que necessária  
crítica ao Estado “não pode significar que passaremos a defender a transformação de nossa  
inevitável modalidade de reprodução social em algum tipo de comunidade utópica de vila  
utópica” (p. 89). Pensar no intercâmbio entre produtores livremente associados não é o mesmo  
que paraíso na Terra. Mais que do isso um prenúncio de um futuro, importa aqui reconhecer  
que a  
crítica radical ao Estado no capital em nossa época está diretamente  
relacionada ao seu- cada vez mais perigoso- fracasso histórico em cumprir  
suas funções corretivas vitais que são requisitadas pelo processo reprodutivo  
material antagônico. Como resultado, o agora Estado em falência (a dolorosa  
realidade de nosso tempo, a despeito de quantos trilhões endividados são  
despejados no buraco sem fundo do capital) pode apenas por em perigo o  
processo metabólico social geral, em vez de solucionar a crise (Mészáros,  
2015, p. 94).  
Libertas, Juiz de Fora, v. 24, n. 1, p. 340-358, jan./jun. 2024. ISSN 1980-8518  
VI MINEPS 2017: Esporte, Organismos Internacionais e Neoliberalismo  
Mais ainda, a reprodução das relações sociais capitalistas não tem predileção a priori  
por qualquer modalidade estatal ou adjetivo acerca de sua lógica de funcionamento. O processo  
histórico mostra que não há nenhuma barreira a priori entre desenvolvimento de relações sociais  
capitalistas e formas abertamente ditatoriais.  
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militar: entrevista com Inez Stampa*  
Carina Berta Moljo**  
Carina Moljo: Querida Inez, antes de mais nada, em nome da revista Libertas, queria  
agradecer por nos conceder a entrevista. Você possui uma importante trajetória intelectual no  
âmbito do Serviço Social, na docência, na pesquisa, na extensão, ocupando espaços importantes  
de representação profissional, mas também fora do âmbito profissional, a exemplo da sua  
trajetória no Arquivo Nacional. A sua produção intelectual transita entre o estudo das lutas  
sociais de forma ampla e o estudo dos fundamentos do Serviço Social, especialmente  
direcionado às tendências da produção de conhecimento na cena contemporânea. Poderia nos  
falar sobre estes dois eixos?  
Inez Stampa: Olá, Carina. Em primeiro lugar, obrigada pelo convite. É sempre um  
prazer falar com você e com as leitoras e os leitores da Libertas.  
Para que possamos, efetivamente, compreender os fundamentos de Serviço Social, é  
necessário que façamos um investimento anterior na própria história brasileira. Essa é uma  
condição necessária para que possamos entender a chamada questão social, isto é, para que essa  
expressão não seja simplesmente um chavão manobrado de forma displicente, mas sim algo  
ancorado num entendimento histórico e social mais profundo da realidade brasileira.  
Considero impossível falar sobre formação e fundamentos do Serviço Social sem falar  
* Possui graduação em Ciências Sociais (1988) e em Serviço Social (1997) pela Universidade do Estado do Rio de  
Janeiro, mestrado (2000) e doutorado (2007) em Serviço Social pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de  
Janeiro e pós-doutorado em Sociologia e Antropologia pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (2014). É  
professora associada do Departamento de Serviço Social da Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro.  
Atuou na assessoria ao Centro de Referência das Lutas Políticas no Brasil (1964-1985) - Memórias  
Reveladas/Arquivo Nacional. Foi coordenadora de Programas Profissionais Serviço Social na CAPES - Colégio  
Humanidades (2018-2022). Membro do Comitê de Assessoramento Serviço Social do CNPq (2023-2026).  
Pesquisadora CNPq.  
** Assistente Social formada pela UNR, Rosario, Argentina (1992), mestrado (1999), doutorado (2003) e pós-  
dourado em Serviço Social (2005) pela PUC/SP; pós-doutorado em Serviço Social (2018) pela UFRJ. Professora  
titular da Faculdade de Serviço Social UFJF (graduação e pós-graduação). Pesquisadora CNPq.  
DOI: 10.34019/1980-8518.2024.v24.44928  
Esta obra está licenciada sob os termos  
Recebido em: 17/06/2024  
Aprovado em: 19/06/2024  
Entrevista com Inez Stampa  
das lutas políticas no país e, entre elas, as lutas travadas durante a ditadura civil-militar  
inaugurada em 1964. Por um lado, porque parte da categoria de assistentes sociais participou  
ativamente das lutas travadas durante a ditadura, como registram os documentos da vigilância  
e da repressão, como os acervos do Serviço Nacional de Informações (SNI) e das diversas  
Delegacia de Ordem Política e Social (DOPS)1. Além disso, assistentes sociais participaram  
fortemente da organização das greves do ABC paulista, bem como participaram de movimentos  
de resistência à ditadura, militando em organizações de contestação ao regime. Muitas foram  
“fichadas”, perseguidas, presas, torturadas e até mesmo exiladas.  
Por outro lado, durante o período houve o chamado movimento de Reconceituação do  
Serviço Social. Esse movimento, que se espalhou por praticamente toda a América Latina,  
criticava as bases conservadoras do Serviço Social. Boa parte dos profissionais latino-  
americanos, Brasil incluso, questionou a tradicional atuação conservadora da profissão,  
propondo uma espécie de rompimento. Claro, essa é uma simplificação. O movimento não foi  
homogêneo e nem andou numa direção só. Mas sua importância é inegável. No Brasil, um  
marco desse processo de renovação foi o Congresso da Virada (1979), ainda durante a ditadura.  
A partir desse congresso, a profissão realmente deu uma virada à esquerda, como propõe o  
nome pelo qual ficou conhecido o evento, que demarca uma ruptura com o conservadorismo  
profissional ao assumirmos enquanto categoria a defesa dos interesses históricos da classe  
trabalhadora. Alguns falam mesmo em “intenção de ruptura”, mas o fato é que o nosso projeto  
ético-político – ainda hegemônico, apesar de todas as investidas conservadoras – deve muito a  
esse processo.  
360  
De forma mais ampla, eu estudo sobretudo o movimento de organização dos  
trabalhadores, como sindicatos e suas articulações com movimentos sociais. No contexto  
específico da ditadura, meu interesse é na atuação do próprio serviço social, mas sempre  
buscando saber como essas trabalhadoras e trabalhadores resistiram.  
Em relação à produção do conhecimento, considero que, em face da investida mais  
recente do conservadorismo, tanto no Brasil como no mundo, com o golpe de 2016 e outros  
eventos internacionais similares, é muito importante entender o que o serviço social está  
produzindo e, também, como está produzindo, isto é, conhecer as tendências atuais da produção  
1
O que chamo de DOPS são as unidades de polícia política de cada estado, responsável pela repressão, por  
exemplo, a comunistas, anarquistas, sindicatos e movimentos sociais. Isto vem desde a Primeira República.  
Estavam estruturadas a partir de delegacias, divisões ou departamentos da polícia civil de cada estado da federação.  
A função do órgão era lidar com problemas de ordem política e de ordem social. Havia muitas dificuldades para  
quem fosse fichado no DOPS. O candidato a um emprego, por exemplo, em um período da ditadura militar,  
precisava apresentar um "Atestado de Antecedentes Políticos e Sociais", mais conhecido como "atestado  
Ideológico", que era fornecido pelas DOPS, mas somente a quem não tinha ficha no órgão.  
Libertas, Juiz de Fora, v. 24, n. 1, p. 359-366, jan./jun. 2024. ISSN 1980-8518  
O Memórias Reveladas e o desmonte da política pública de abertura dos arquivos da ditadura militar  
do conhecimento no serviço social sem perder de vista a centralidade do trabalho e das lutas  
políticas anticapitalistas. Isso não é afastar a riqueza que outras mediações podem trazer para a  
produção de conhecimento, como as questões de gênero, a questão ambiental, a questão racial  
e outras. Essas pautas são históricas da esquerda, e não se deve entrega-las ao liberalismo fajuto  
de grandes conglomerados empresariais e seus apetrechos ideológicos, sejam esses privados ou  
incrustados na administração pública.  
O serviço social brasileiro vem construindo uma produção de conhecimento que faz  
uma crítica radical à ordem burguesa, na maioria das vezes, e a seus rebatimentos nas  
manifestações da questão social. Existe aí uma articulação dialética entre a desigualdade de  
classe, as opressões de gêneros, de orientação sexual, de raça, de geração, ciclos de vida, dentre  
outras contradições do modelo de sociabilidade vigente. É, portanto, uma área de conhecimento  
da maior importância para a sociedade brasileira, pois procura compreender e explicar a  
natureza dos problemas nacionais e latino-americanos em relação às contradições entre estado,  
sociedade e mercado na ordem do capitalismo através de conhecimento crítico, articulado ao  
trabalho profissional e às respostas a essas contradições.  
Carina Moljo: Neste ano “des-comemoramos” os 60 anos do golpe civil-militar no  
Brasil. Você coordenou o projeto “Memórias Reveladas”, que justamente busca conhecer e  
relembrar o nosso passado recente. Poderia nos falar sobre o projeto? Como surgiu? A sua  
consolidação e relevância, mas também o desmonte que vem sofrendo nos últimos anos?  
Inez Stampa: O Memórias Reveladas, oficialmente Centro de Referência das Lutas  
Políticas no Brasil (1964-1985) – Memórias Reveladas, é resultado direto da pressão exercida  
por movimentos sociais, por organizações de trabalhadores e trabalhadoras, e por militantes de  
direitos humanos no sentido de se buscar o que popularmente ficou conhecido como a “abertura  
dos arquivos da ditadura”.  
361  
Gestado a partir de 2005, mas oficialmente instituído pelo governo federal em 2009, o  
Memórias Reveladas faz parte dos chamados “mecanismos de Justiça de Transição”, e teve um  
papel muito importante, por exemplo, em relação à Lei de Acesso a Informações (Lei  
12.527/2011), à Comissão Nacional da Verdade e à Comissão deAnistia. É uma política pública  
desenvolvida no âmbito da área de arquivos do país, e tem, dentre outras funções, o objetivo  
principal de articular, em uma rede de cooperação e informações arquivísticas, instituições que  
custodiam acervos sobre o período da ditadura militar iniciada em 1964, permitindo que  
documentos do período sejam preservados, digitalizados e colocados à disposição da sociedade  
brasileira, incluindo vítimas e familiares de vítimas de graves violações de direitos humanos,  
Entrevista com Inez Stampa  
pesquisadores, estudantes, além de promover e estimular debates, estudos e produção de  
conhecimento sobre a temática.  
No total, foram recolhidos, preservados e abertos para consulta pública mais de 13  
milhões de páginas de documentos textuais do período da ditadura, além de fotografias, vídeos  
e documentos sonoros. Essa documentação está acessível pela Internet, no endereço  
Desde 2016 o Memórias Reveladas começou a enfrentar problemas cada vez mais  
graves. No período bolsonarista, a pressão contra os servidores que atuavam no Memórias  
Reveladas foi notável, mas, pelo menos, conseguimos preservar algumas das funções técnicas  
do centro de referência.  
A partir de 2023, contudo, o que foi recolhido de documentação dá pouco mais do que  
um punhado de documentos, e mesmo assim só depois de muita crítica interna e externa. Isso  
é particularmente grave porque continuam desaparecidos os acervos dos órgãos de inteligência  
das Forças Armadas, como o CISA (Aeronáutica), o CIE (Exército) e o Cenimar (Marinha),  
órgãos responsáveis, cabe destacar, pela grande maioria das graves violações de direitos  
humanos perpetradas por motivos políticos durante a ditadura.  
Além disso, todos os projetos apresentados pela equipe do Memórias Reveladas foram  
rejeitados ou ficaram sem resposta por parte da atual administração do órgão. Não dá nem para  
dizer que essa paralisação é resultado da suposta determinação recente de não rememorar o  
golpe de 1964, porque tudo está parado desde 2023. Tem quem ponha na conta do Lula tudo  
de errado nessa área, mas isso me parece que é mais uma estratégia para ocultar interesses  
paroquiais e manter a imagem de “crítico”.  
362  
Dentre os projetos paralisados, também se encontrava a proposta de retomada da  
digitalização dos acervos das Delegacias de Ordem Política e Social (DOPS).  
Em notas oficiais e através de manifestos chapa-branca, a direção-geral do Arquivo  
Nacional e o Ministério da Gestão e Inovação em Serviços Públicos (MGI), que subordina o  
Arquivo Nacional, vem afirmando que a responsabilidade pela preservação e digitalização dos  
acervos DOPS é exclusivamente dos estados da federação. Não sei quem anda compondo essas  
notas, mas esse é o mesmo argumento deturpado que era utilizado pelos gestores bolsonaristas.  
Na verdade, o Memórias Reveladas foi criado exatamente para integrar acervos de  
diferentes procedências e proveniências, como a documentação estadual e a documentação  
federal que, em conjunto, foram consideradas Patrimônio Mundial da Humanidade pelo  
Programa Memória do Mundo (Memory of the World), da Unesco. Quem elaborou a candidatura  
foi o próprio Arquivo Nacional durante a gestão do professor Jaime Antunes da Silva, e sua  
Libertas, Juiz de Fora, v. 24, n. 1, p. 359-366, jan./jun. 2024. ISSN 1980-8518  
O Memórias Reveladas e o desmonte da política pública de abertura dos arquivos da ditadura militar  
apresentação à ONU coube ao governo federal, que, voluntariamente, assumiu obrigações de  
natureza internacional em relação a essa documentação.  
O Memórias Reveladas precisa voltar a ser compreendido como um programa  
estratégico no âmbito da área de arquivos do país. Mas, para tanto, será também preciso  
recuperar as funções técnicas do Arquivo Nacional, duramente atingidas durante o período  
bolsonarista e ainda não recuperadas pelo terceiro governo Lula.  
O desmonte, curiosamente, veio acompanhado de homenagens e propostas de  
homenagem pessoal a mim. A expectativa é que eu fizesse “política” e entrasse no jogo, mas  
eu preferi me aposentar do que emprestar meu nome para o que considero ser o desmonte do  
Memórias Reveladas. A gente perde algumas coisas certamente mais importantes do que  
homenagens oficiais, mas, como se diz, não perde o sono.  
Carina Moljo: Recentemente foi publicado pelo Intercept2 uma entrevista sua, na qual  
denunciava o abandono atual do Arquivo Nacional e do Projeto Memórias Reveladas. O artigo  
mostra a importância do projeto que reúne uma rede de mais de 160 arquivos, que possibilitaram  
a Comissão Nacional da Verdade, resolverem, por exemplo, o caso do deputado federal Rubens  
Paiva, do PTB, desaparecido e assassinado em 1971 por agentes da repressão política. Como  
foi coordenar um projeto de tamanha magnitude e de tamanha importância política e histórica?  
Inez Stampa: A palavra responsabilidade talvez não seja adequada ou suficiente para  
descrever, mas, enfim, foi uma enorme responsabilidade. Sem me alongar muito, há uma  
dimensão institucional superior, relacionada à promoção da democracia e de luta pela não  
repetição dessas violações – realidade tão dura, ainda, para os nossos trabalhadores e  
trabalhadoras das periferias, favelas e campo; bem como uma dimensão pessoal, que me  
emociona muito, relacionada a tantos e tantas militantes aguerridos/as e a seus familiares,  
alguns dos quais pude conhecer nessa trajetória de mais de quinze anos à frente do Memórias  
Reveladas. Uma terceira dimensão está, ainda, relacionada à promoção de boas práticas na área  
de arquivos, de integração de instituições na tentativa de construir uma ação da política nacional  
de arquivos. Tudo isso num contexto de limitações orçamentárias, políticas e administrativas.  
Muitas vezes de conflito aberto, outras de ações estratégicas mais reservadas, mas sempre de  
luta e inconformismo. O que eu posso dizer é que, até 2023, o Memórias Reveladas nunca foi  
faz-de-conta.  
363  
2
Entrevista com Inez Stampa  
Carina Moljo: Em 2019 você teve a sua vida funcional investigada mediante um PAD  
(processo administrativo disciplinar), indicado pelo então ministro de Justiça e Segurança  
Pública, Sergio Moro, numa nítida perseguição política. Queríamos nos solidarizar com você e  
com os outros funcionários que foram perseguidos. Como você analisa este tipo de  
comportamento num governo eleito pelo voto popular? Quais as diferenças e semelhanças com  
o que aconteceu entre 1964- 1985?  
Inez Stampa: Obrigada. Acho que precisamos fazer dois movimentos. O primeiro, de  
reconhecer que são tempos diferentes, com dinâmicas e desafios diferentes, o que nos sugere  
que precisamos ter algum cuidado com as comparações. Por mais dura que tenha sido a pressão  
contra mim e outros servidores do Arquivo Nacional e do Memórias Reveladas, nós nunca nos  
sentimos em risco físico, e isso faz um mundo de diferença. Por outro lado, a permanência de  
pressões políticas em plena República democrática também não pode ser subestimada, primeiro  
pelo potencial que tem de causar danos a suas vítimas, pois nem toda dor é física, e, em segundo  
lugar, porque esse fato não parece ter sido isolado, mas sim replicado na administração pública  
– veja-se, por exemplo, o que ocorreu na Fundação Nacional dos Povos Indígenas (Funai), que,  
assim como o Memórias Reveladas e o Arquivo Nacional, também se encontrava, à época,  
vinculado ao Ministério da Justiça durante a gestão Moro. Esses fatos devem nos alertar a  
respeito das limitações democráticas do tempo presente. Octavio Ianni escreveu, no início dos  
anos 1980, um livro sobre a ditadura, que ele qualificou de “ditadura do grande capital”.  
Vivemos hoje uma democracia, mas são muitas as limitações de uma “democracia do grande  
capital” que, apesar de não ser a mesma coisa, tem mais em comum com a ditadura de 1964 do  
que nos seria confortável, talvez, reconhecer.  
364  
Carina Moljo: Você considera que no Brasil existe uma preocupação pela recuperação  
da memória histórica? Como avalia o momento atual?  
Inez Stampa: Talvez nada ilustre melhor o quadro preocupante que a memória nacional  
enfrenta do que o incêndio que destruiu, em 2018, o Museu Nacional. Num país acostumado  
com desastres em sucessão, quase sempre resultantes de ausência ou de deficiência na  
implementação de políticas públicas, esse foi um golpe duro de aceitar em virtude da  
irreversibilidade e da magnitude do prejuízo que experimentamos.  
A área de arquivos, por seu turno, tem um grave problema de visibilidade. Ela é bem  
menos conhecida e bem compreendida do que, por exemplo, a área de museus.  
O resultado é que, ainda que ela também tenha sofrido graves prejuízos nos últimos  
anos, esses prejuízos se tornam menos evidentes para a sociedade. O Arquivo Nacional,  
Libertas, Juiz de Fora, v. 24, n. 1, p. 359-366, jan./jun. 2024. ISSN 1980-8518  
O Memórias Reveladas e o desmonte da política pública de abertura dos arquivos da ditadura militar  
principal instituição arquivística brasileira, sofreu um princípio de incêndio em 2022,  
felizmente rapidamente controlado. Mas o órgão também perdeu orçamento, competências e  
autonomia, no que parece claramente ser um movimento em direção à privatização efetiva de  
parte de seus serviços – ainda que sob o manto de benignos “repasses à sociedade civil” e com  
discurso “modernizante” e “inclusivo”. Essas perdas, reforçadas no governo Bolsonaro, mas  
ainda em curso, envolvem prejuízos não somente para a memória nacional de forma mais  
ampla, mas, igualmente, para a gestão de arquivos de forma mais específica. Os arquivos são  
instituições complexas, e essa complexidade, infelizmente, nem sempre é bem traduzida pela  
própria área para o debate público.  
Carina Moljo: Ainda existem poucos centros de Documentação e Memoria no âmbito  
do Serviço Social. Quais as estratégias possíveis para construir acervos históricos no âmbito  
das Universidades? Qual o papel das nossas entidades (ABEPSS/CFESS/ENESSO) neste  
processo?  
Inez Stampa: Eu acredito que essa é uma questão extremamente relevante, pelo  
potencial positivo que podem trazer para a autorreflexão da área de serviço social. Mas é bom  
lembrar que a criação de arquivos e centros de documentação deve ser pautada em normas  
técnicas e em boas práticas consagradas. É preciso investimento e compromisso, mas o saber  
fazer é igualmente essencial. Se associarmos conhecimento técnico e saber fazer com as  
modernas tecnologias da informação e comunicação (TICs), teremos arquivos e centros de  
documentação mais baratos e eficientes em nossa área, projetos mais factíveis e duradouros.  
Para tanto, um dos melhores caminhos que eu conheço, com a experiência que tive no Arquivo  
Nacional, é o trabalho em rede, que articula e conjuga esforços e recursos. Acredito que as  
nossas entidades podem ser o lugar perfeito para pautar e lutar pela constituição desses centros  
de documentação. Precisamos, de fato, levar essa discussão para esses espaços e lutar para que  
também no serviço social a memória seja valorizada e preservada.  
365  
Carina Moljo: Gostaria de deixar uma mensagem, sobretudo, para as novas gerações  
de assistentes sociais e de cidadãos?  
Inez Stampa: Tudo indica que essa será uma quadra histórica de grandes desafios.  
Retrato disso não é somente a ascensão da ultradireita em todo o mundo, mas, igualmente, o  
crescimento de segmentos oportunistas em funções de mando no campo dito progressista.  
Nada disso deve nos levar ao desespero ou à inação, pois, ao mesmo tempo, a classe  
trabalhadora dá sinais evidentes de vitalidade: de ser a classe que, de fato, tem o sol a frente,  
Entrevista com Inez Stampa  
cujos grandes feitos estão no tempo futuro e não no pretérito.  
Nesse contexto complexo – pois somente nas retrospectivas ligeiras o processo histórico  
não tem contradições – é importante lembrar que há, na conjuntura recente no Brasil, a  
desqualificação da produção do conhecimento voltado para a defesa dos direitos do trabalho,  
de negação da centralidade do trabalho, por exemplo. Esse ataque advém de setores que atuam  
fortemente na defesa do capital, e em estreita colaboração e articulação com as classes  
hegemônicas, independente da roupagem conservadora ou progressista de que se utilizam. O  
discurso é diferente, mas esses grupos têm em comum interesses políticos, econômicos e sociais  
pautados em abjeta apologia do capital e do imperialismo, conduzindo a formas similares de  
negacionismo e de irracionalismo nas formas de interpretação da realidade.  
Esses processos podem parecer novos no discurso, mas são, na verdade, antigos, uma  
vez que são funcionais à defesa da ordem burguesa e das frações parasitárias do capital em um  
quadro societário global de grave crise econômica e política, e que em boa medida foram  
aprofundadas com a crise sanitária da Covid-19, ainda não superada em sua totalidade.  
Nesses tempos tão duros que a gente está vivendo, obviamente que são muitos desafios  
e que eles não podem ser tomados como missão exclusiva do serviço social, mas sim devem  
ser articulados com um projeto societário mais amplo que lute pela emancipação humana na  
construção de uma sociedade sem exploração de qualquer ordem de dominação, seja de classe,  
raça, etnia, gênero, orientação sexual e tantas outras; que da crise surjam o mundo novo de que  
nos falou Gramsci3 e o homem do futuro, de que nos falou Brecht4: que possam, finalmente,  
nascer, que possamos construir ou reconstruir um país melhor e uma política autêntica, fruto de  
mudanças profundas e estruturais em nossa sociedade, e que atravessemos esse período de  
grandes atribulações e profundas incertezas, pois tudo parece apontar que vivemos uma época  
de transição, em que as tendências antigas vão desaparecendo enquanto a gente espera pelas  
novas que estão ainda se formando.  
366  
Cumpre, ao mesmo tempo, lutar contra os “monstros”; o futuro está em aberto. Haverá,  
certamente, outras batalhas, haverá provavelmente outras derrotas sofridas, mas, com base nas  
lições aprendidas, teremos, também, resistências e outras vitórias – tenho muita esperança e,  
com toda a franqueza, estou certa disso. Estamos no jogo, resistindo, e as contradições estão  
presentes e atuando; são elas que determinam o futuro.  
3 Citação de Antonio Gramsci em Cadernos do Cárcere: “O velho mundo agoniza, um novo mundo tarda a nascer,  
e, nesse claro-escuro, irrompem os monstros”.  
4 O poema de Brecht “Aos que vierem depois de nós”, escrito às vésperas da Segunda Guerra Mundial, é dirigido  
a leitores futuros que, tendo nascido num mundo diferente, não conseguirão compreender o que foi vivido naquele  
tempo de crise. Naquele tempo, tão distante e tão próximo, quando “havia só injustiça e nenhuma indignação”.  
Libertas, Juiz de Fora, v. 24, n. 1, p. 359-366, jan./jun. 2024. ISSN 1980-8518  
Tradução  
“Não está escuro ainda, mas está chegando lá”:  
Crises globais, Serviço Social e resistência*  
Iain Ferguson**  
Michael Lavalette***  
Resumo: Na terceira década do século XXI, enfrentamos uma série de crises interligadas que  
ameaçam a própria base da vida no Planeta Terra. Estas incluem uma crise ambiental; uma  
pandemia de COVID-19 que se estima ter causado mais de 15 milhões de mortes em todo o  
mundo; uma crise econômica contínua; uma crise política, com o crescimento de partidos e  
governos de extrema-direita numa escala não vista desde a década de 1930; e a crescente  
competição interimperialista, com a ameaça de guerra nuclear agora maior do que em qualquer  
momento desde a crise dos mísseis cubanos de 1962. A partir de uma análise marxista,  
argumentamos que as raízes destes fenômenos residem na busca incansável do capitalismo  
global pelo lucro à custa do meio ambiente e da vida na Terra. A parte central do texto explora  
as três principais formas pelas quais a profissão de serviço social tem historicamente respondido  
a desafios semelhantes – conivência, conformidade e resistência – e avalia a contribuição que  
o serviço social hoje pode dar no desafio às forças reacionárias e na promoção de uma agenda  
que coloca em primeiro plano a satisfação das necessidades humanas, os direitos humanos, o  
meio ambiente e o anti-racismo, com especial destaque para as novas redes mais radicais que  
surgiram nos últimos anos.  
*‘It’s not dark yet but it’s getting there’: Global crises, social work and resistance. Texto publicado originalmente  
em: Edited Collection: Kamali, M. (ed.) (2023) Revolutionary Social Work: Promoting Systemic Changes,  
London: Routledge. Reproduzido com a permissão de Taylor & Francis Group para a revista Libertas, concedida  
em junho de 2024. Traduzido por: Giovanna Canêo – Assistente Social, doutoranda em Serviço Social pela  
(PUC/SP; Liverpool Hope University); Jhulia Salviano da Silva – mestre em Saúde Pública (Robert Gordon  
University/Reino Unido); Pedro Gabriel Silva – doutor em Serviço Social (Universidade de Jÿvaskÿla/ISCTE-  
Instituto Universitário de Lisboa) e em Estudos Contemporâneos (Universidade de Santiago de Compostela),  
Professor Auxiliar na Universidade de Trás-os-Montes e Alto Douro/Portugal; Shirleny Pereira de Souza Oliveira  
– doutora em Serviço Social (PUC/SP); e revisado por Antoniana Defilippo – doutora em Serviço Social (UFRJ),  
Professora Adjunta da UFF/Rio das Ostras. Tradutores e revisora integram a pesquisa “Serviço Social Radical no  
Reino Unido: Os fundamentos histórico-críticos do Serviço Social britânico na contemporaneidade”, coordenado  
por Antoniana Defilippo, vinculada à Rede Internacional de Pesquisadores e à pesquisa “O Serviço Social na  
história: questão social e movimentos sociais – América Latina e Europa”, financiada pelo CNPQ.  
**  
Iain Ferguson é professor aposentado na University of the West of Scotland, lecionando em Serviço Social e  
Política Social. É editor consultivo da Critical and Radical Social Work: an International Journal, membro do  
Conselho Editorial do International Socialism Journal e autor de Politics of the Mind: Marxism and Mental Distress  
(Bookmarks, 2ª ed., 2023) e Global Social Work in a Political Context: Radical Perspectives, juntamente com  
Michael Lavalette e Vasilios Ioakimidis (Policy Press, 2018).  
***  
Michael Lavalette é professor do Departamento de Serviço Social, Cuidado e Justiça da Liverpool Hope  
University. Publicou amplamente sobre serviço social radical e movimentos sociais contemporâneos e é co-editor  
do periódico Critical and Radical Social Work.  
DOI: 10.34019/1980-8518.2024.v24.44930  
Esta obra está licenciada sob os termos  
Recebido em: 18/06/2024  
Aprovado em: 19/06/2024  
Autor  
Introdução: aprofundamento das crises  
Ambos crescemos no oeste da Escócia nas décadas de 1960 e 1970. A crise dos mísseis  
cubanos de 1962 e a ameaça real de guerra nuclear que representava ainda estavam frescas na  
mente das pessoas – especialmente para aquelas como nós que viviam perto da principal base  
nuclear do Reino Unido, em Faslane. Não era incomum avistar membros de vários grupos  
religiosos com placas ou cartazes com as palavras “O fim do mundo está próximo” e, embora  
formulássemos as nossas preocupações de forma diferente, estas pessoas captavam uma  
sensação de mau presságio em relação ao que o futuro poderia ou não reservar.  
Neste capítulo, não queremos soar como velhos adivinhos marxistas do pessimismo e  
da destruição (embora, como será óbvio, é o marxismo, enquanto tradição viva, que informa  
tanto a nossa análise teórica como a nossa atuação política). Mas, como sugere a letra de Bob  
Dylan no título do capítulo, não é preciso ser um fanático religioso para reconhecer que a  
situação em que nos encontramos - “nós”, neste caso, significando a humanidade como guardiã  
da vida na Terra - dificilmente poderia ser mais grave. O filósofo marxista Walter Benjamin,  
em sua tese “Sobre o Conceito de História” (1940), caracterizou o capitalismo como uma  
locomotiva fora de controle que se precipita sobre os trilhos em direção ao abismo. Nossa visão  
é que isso capta algo de pungente sobre a crise existencial que o capitalismo está criando para  
a humanidade. Aqui, vamos nos referir a apenas a quatro das ameaças prementes.  
368  
Em primeiro lugar, temos a crise ecológica. Acima de tudo, isto significa alterações  
climáticas provocadas pelo homem. As temperaturas globais aumentaram drasticamente desde  
o início da Revolução Industrial, tendo a velocidade da mudança (a “Grande Aceleração”) sido  
particularmente acentuada desde o final da Segunda Guerra Mundial. Os gases de “efeito  
estufa”, metano e dióxido de carbono, foram lançados na atmosfera, provocando o aumento das  
temperaturas, o degelo dos glaciares e a subida do nível dos mares, o que introduziu uma  
instabilidade significativa nos nossos sistemas meteorológicos e climáticos. Durante a maior  
parte do Holoceno (a fase geológica que permitiu o florescimento da civilização humana), a  
quantidade de dióxido de carbono (CO2) na atmosfera oscilou entre 180 partes por milhão  
(ppm) e 240 (ppm). Dados recentes colocam os níveis de CO2 em 410 ppm - e a 450 ppm,  
sendo irreversíveis, ocorrerão alterações climáticas catastróficas. Se não forem tomadas  
medidas imediatas, de acordo com as tendências atuais, atingiremos este limite nas próximas  
décadas (Angus, 2017; Ferguson et al, 2018).  
Mas o impacto do capitalismo no nosso sistema ecológico não se limita às alterações  
climáticas. O capitalismo trata a natureza e seus recursos como mercadorias que devem ser  
“usadas”, destruídas, compradas e trocadas com fins lucrativos. E isto conduziu à degradação  
Libertas, Juiz de Fora, v. 24, n. 1, p. 367-386, jan./jun. 2024. ISSN 1980-8518  
Título  
do mundo natural.  
A degradação da terra pelo capitalismo levou ao que marxistas como John Bellamy  
Foster (Foster et al, 2010) chamaram de “rupturas metabólicas” significativas. Este conceito  
deriva de Marx em O Capital (Volume 3), onde ele escreve sobre a “ruptura irreparável no  
processo interdependente do metabolismo social” (1981, p. 946). Aqui, Marx discutia a ruptura  
na interação metabólica entre a humanidade e o resto da natureza que emana da produção  
agrícola capitalista. Por exemplo, Marx assinala as formas como a agricultura capitalista destrói  
e corrói a camada superior do solo, ao não repor a terra. Mas outras “rupturas metabólicas”  
resultam de fatores como a construção de represas, que alteram o percurso dos rios e interferem  
no abastecimento de água. Ou os poluentes que são injetados nos cursos das águas e nas reservas  
de água, destruindo a vida vegetal e animal e tornando inúteis as reservas vitais de água. Estas  
rupturas metabólicas são mais um exemplo da relação destrutiva do capitalismo com o nosso  
sistema ecológico.  
O capitalismo dos combustíveis fósseis também conduziu à extinção em massa de  
espécies a uma escala nunca vista desde a destruição dos dinossauros há cerca de 66 milhões  
de anos. O que é referido como a “Sexta Extinção em Massa” significa que mais de 500 espécies  
de animais terrestres estão à beira da extinção e é provável que se percam dentro de 20 anos  
(Earth.Org, 2021).  
369  
É evidente. Quatrocentos anos de capitalismo provocaram uma imensa destruição no  
nosso planeta e o tempo está, literalmente, se esgotando. Nosso mundo está em chamas e o  
capitalismo está empurrando a humanidade para uma crise existencial. Como Benjamin  
argumenta, precisamos de uma mudança sistêmica para interromper o “processo de evolução  
histórica que conduz à catástrofe” (Lowy, 2016, p. 9).  
Um outro elemento da crise ecológica é a pandemia de Covid-19. Trata-se de uma  
catástrofe que, em nível mundial, já custou a vida de mais de 4 milhões de pessoas, deixou  
outros milhões com a Covid Longa e com problemas de saúde mental. Mas, como  
demonstraram o biólogo radical Rob Wallace (2016) e o geógrafo radical Mike Davis (2006;  
2020), isto está longe de ser um desastre “natural”. Pelo contrário, é a consequência do desejo  
incessante por lucro do capitalismo neoliberal, que também cria as condições para a zoonose.  
Em particular, o impacto da chamada “revolução da pecuária” criou oportunidades  
significativas para os agentes patogênicos ultrapassarem as fronteiras das espécies. As enormes  
fábricas agrícolas, onde milhares de bovinos e suínos e centenas de milhares de frangos são  
criados de forma intensiva, criaram aquilo a que Wallace chama de “placa de Petri” para o  
desenvolvimento de novos vírus. No entanto, esta situação é acompanhada pela destruição  
Autor  
contínua das florestas e pela expulsão dos agricultores pobres das suas terras, o que, em  
conjunto, força os agricultores a entrarem mais profundamente nas florestas existentes, onde  
entram em contacto com animais selvagens. Em conjunto, tudo isto cria condições para a  
ocorrência de zoonoses.  
Em “O monstro bate à nossa porta: a ameaça global da crise aviária” (2006), Mike Davis  
levantou o espectro de uma doença pandêmica que passasse dos animais para os seres humanos  
e a devastação que isso poderia causar. Na edição revista, The Monster Enters (2020), ele  
observa que, em muitos aspectos, tivemos “sorte” com a Covid-19 e que era possível - e  
continua a ser possível - que uma doença muito mais virulenta pudesse atravessar espécies e  
causar uma destruição muito maior na vida humana do que a Covid-19. A sua conclusão é que,  
enquanto o capitalismo continuar a criar animais da forma como o faz atualmente e enquanto  
as florestas continuarem a serem destruídas no ritmo atual, não devemos ficar surpreendidos  
com a possibilidade de, em dada altura, nas próximas semanas, meses ou anos, ocorrer outra  
pandemia devastadora.  
Uma segunda ameaça que enfrentamos é a crise econômica. A economia global ainda  
não se recuperou totalmente da crise financeira de 2008. E o preço do resgate dos bancos e da  
salvação do capitalismo, desde então, tem sido pago por milhões de pessoas da classe  
trabalhadora em toda a Europa, sob a forma de cortes nas políticas sociais e uma política de  
austeridade que fez cair o nível de vida dos trabalhadores, das pessoas com deficiência e  
aposentados (Cavero; Poinasamy, 2013).  
370  
Agora está evidente que os governos buscam que os custos da “recuperação da  
pandemia” sejam suportados pelas comunidades da classe trabalhadora. Em todo o mundo,  
vários sistemas de proteção ao emprego, postos em prática durante a pandemia, estão chegando  
ao fim, ameaçando um corte massivo de postos de trabalho. As economias estão sofrendo com  
baixas taxas de crescimento e de inflação - “estagflação” - a um nível que não se registrava  
desde a década de 1970. A pandemia também revelou uma crise na logística e nas linhas de  
abastecimento neoliberal. As práticas de trabalho “just-in-time” preferidas da era neoliberal  
global estão resultando na escassez de componentes, matérias-primas e produtos alimentares  
em todo o mundo (Dominic Rushe et al, 2021).  
Um refrão frequentemente ouvido no início da atual pandemia foi “não podemos voltar  
a ser como éramos antes”. Porém, a verdade é que, a menos que haja uma resistência muito  
maior do que a que temos visto até agora, mais uma vez serão as pessoas comuns em todo o  
mundo que pagarão o custo da crise da Covid através do desemprego, do colapso dos padrões  
de vida e do desmoronamento dos serviços de saúde e de assistência social.  
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Título  
Em terceiro lugar, há a crise política. A adoção, desde a década de 1990, de políticas  
neoliberais por antigos partidos social-democratas em todo o mundo (e a incapacidade das  
novas formações de esquerda, como o Syriza na Grécia, o Podemos na Espanha e o  
“Corbynismo” no Reino Unido, para resistir às pressões do capitalismo global) levou a um  
colapso do apoio da classe trabalhadora a esses partidos e ao crescimento do apoio à extrema-  
direita e aos partidos neofascistas em todo o mundo, do Brasil à Índia, da França aos EUA.  
Em todo o mundo, os governos de direita têm tentado minar algumas das conquistas que  
resultaram dos movimentos sociais da década de 1960. Houve tentativas de fazer retroceder os  
direitos das mulheres (como, por exemplo, as políticas antiaborto no Texas [Maier et al, 2021],  
ou a descriminalização da violência doméstica na Rússia nos casos em que a vítima não sofre  
ferimentos “graves” [Spring, 2018]). Testemunhamos as formas mais flagrantes de racismo  
institucionalizado (talvez mais claramente nos numerosos exemplos de racismo policial nos  
EUA). A islamofobia institucionalizada foi incorporada na legislação em grande parte da  
Europa (nomeadamente na França e na Suíça [ver, por exemplo, Abdelkader, 2017]) e na Índia,  
após a aprovação da lei discriminatória - Lei da Cidadania (Alteração), em 2020 (Bajoria,  
2021). Enquanto no Brasil o governo avançou ainda mais para atacar os direitos dos povos  
indígenas e as suas campanhas contra os interesses mineiros ilegais (Wallace, 2021). E, é claro,  
isto está em paralelo com a crescente hostilidade do Estado aos refugiados e imigrantes em  
grande parte do mundo (Crawley; Skleparis, 2018).  
371  
Finalmente, todos acima estão se desenvolvendo num contexto de crescente rivalidade  
interestatal e imperialista. Embora a recente retirada ocidental do Afeganistão represente um  
golpe significativo para o prestígio dos EUA e do Reino Unido, não cessou o impulso  
competitivo para a guerra entre Estados. Os EUA e o Reino Unido continuam a apoiar Israel  
em seus conflitos com os palestinos, com grupos na Síria e com o Irã. AArábia Saudita utiliza  
bombas e aviões de fabricação britânica para aterrorizar a população do Iêmen. Durante o verão,  
navios de guerra britânicos “apareceram” em águas controladas pela Rússia ao largo da  
Crimeia. O embargo dos EUA a Cuba prossegue em ritmo acelerado. Mas é a evolução das  
tensões entre os EUA, o Reino Unido, aAustrália e a China que mais preocupa. O acordo militar  
AUKUS aumentou as tensões com a China nos mares do Sul da China, enquanto a corrida  
espacial EUA/China assume tons cada vez mais sombrios com o lançamento dos testes de  
mísseis “hipersônicos” da China. Uma corrida ao armamento entre potências nucleares  
fortemente armadas representa mais uma grave ameaça para o nosso mundo e para a  
humanidade.  
Não há dúvida de que muito está em jogo. E a questão que queremos colocar neste  
Autor  
capítulo é simples: onde está o Serviço Social em tudo isto? Que contribuição pode dar o  
Serviço Social, uma profissão global formalmente empenhada na justiça social e na capacitação  
e libertação das pessoas (como a definição global de Serviço Social deixa claro), para desafiar  
as forças reacionárias e para promover uma agenda que coloque em primeiro plano a satisfação  
das necessidades humanas, os direitos humanos, o meio ambiente e o antirracismo?  
Por razões óbvias, a contribuição que os assistentes sociais podem dar para enfrentar  
estas ameaças globais será provavelmente relativamente limitada. A inserção de muitos  
assistentes sociais em agências estatais (ou em ONGs que dependem do Estado ou de empresas  
privadas para o seu financiamento) limita seriamente a sua capacidade de se envolverem em  
ações políticas no âmbito do seu papel profissional como assistentes sociais. Além disso, a  
erosão bem documentada da prática do Serviço Social pela imposição de práticas e prioridades  
gerenciais e orientadas para o mercado nas últimas décadas, resultou na criação do que  
chamamos de Serviço Social Neoliberal (Ferguson, 2008; Harris, 2014), que tem reduzido ainda  
mais a possibilidade de se envolver numa prática progressista ou criativa, quer sob a forma de  
trabalho comunitário, quer sob a forma de trabalho terapêutico com indivíduos. Assim, para  
enfrentar estas ameaças existentes serão necessárias forças sociais muito mais poderosas do que  
os assistentes sociais, forças à altura dos grandes movimentos sociais e movimentos de classe  
dos anos 1960 e, mais recentemente, durante a primavera Árabe de 2011.  
372  
Dito isto, no passado, os assistentes sociais tinham frequentemente uma visão muito  
mais ambiciosa do seu papel do que muitos parecem ter atualmente. Descrevendo as atividades  
dos assistentes sociais nos EUA no período anterior à Primeira Guerra Mundial, por exemplo,  
Michael Reisch e Janice Andrews escreveram:  
Em retrospectiva, poucos assistentes sociais radicais durante a Era  
Progressista (a década anterior à Primeira Guerra Mundial) tinham objetivos  
conscientemente revolucionários em seu cotidiano de trabalho. Cem anos  
mais tarde, os seus resultados parecem muito mais reformistas do que radicais.  
Ainda assim, a sua ênfase na justiça social, a sua análise das condições  
socioeconômicas em termos estruturais ou sistêmicos, o seu enfoque em  
questões de classe social, as suas ligações a movimentos organizados por  
feministas e afro americanos, e as suas ligações a sindicalistas radicais e  
partidos políticos de esquerda representavam uma ameaça à ordem política  
estabelecida que os contemporâneos não podiam ignorar (Reisch; Andrews,  
2002, p. 35).  
Como devemos, então, encarar o papel do Serviço Social em relação aos desafios que  
enfrentamos atualmente?  
Infelizmente, não há garantias quanto à forma como a profissão responderá a estas  
ameaças e desafios. Como observou o acadêmico britânico Bill Jordan, o Serviço Social tem  
desempenhado vários papéis em sistemas contrastantes de proteção social e tem servido a uma  
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Título  
série de interesses políticos:  
A sua grande virtude - o fato de ser infinitamente adaptável às circunstâncias  
- também o torna aberto à exploração para qualquer tipo de finalidades  
políticas (Jordan, 1984).  
Na próxima seção, discutiremos algumas das formas como os assistentes sociais  
responderam a grandes desafios políticos no passado, para ver o que podemos aprender com a  
nossa própria história. Se quisermos navegar pelas crises contemporâneas, faríamos bem em  
aprender com o conhecido aforismo de George Santayana: “Aqueles que não se lembram do  
passado estão condenados a repeti-lo” (1905/2018).  
O passado controverso e disputado do Serviço Social  
Se olharmos para a história do Serviço Social, podemos ver que, em grande medida, a  
profissão tem respondido aos problemas sociais de várias formas, cada uma delas moldada pelas  
perspectivas políticas dominantes no Serviço Social. Internacionalmente, o Serviço Social  
Internacional sempre foi uma profissão controversa e disputada, com diferentes tradições,  
identificadas por Midgley como a tradição corretiva ou de trabalho de caso, a tradição  
desenvolvimentista e a tradição ativista ou radical (Midgley, 2001).  
Neste capítulo, o nosso foco principal será a terceira destas tradições. Isto não se deve  
ao fato de ser a tradição dominante - na realidade, sempre foi uma tradição muito minoritária -  
nem ao fato de não existirem pontos fortes nas outras duas tradições - existem - mas por duas  
razões principais.  
373  
Em primeiro lugar, porque, ao contrário das outras duas tradições, a tradição radical  
encara explicitamente o Serviço Social como uma atividade política, tanto no sentido de ser  
uma criação da política social como no sentido de ter uma obrigação ética de se envolver nas  
questões políticas do momento. Em segundo lugar, do nosso ponto de vista, com base na nossa  
experiência de envolvimento ao longo de quase duas décadas na Social Work Action Network  
no Reino Unido (sobre a qual falaremos mais adiante), estamos atualmente a assistir a um  
renascimento dessa tradição, de que falaremos a seguir.  
Antes disso, porém, é necessário considerar algumas das formas pelas quais a profissão  
respondeu a grandes desafios políticos ou éticos no passado. Sugerimos que estas respostas  
tenham, geralmente, assumido uma das três formas principais - conivência, conformidade ou  
contestação - e daremos exemplos de cada uma delas.  
Em segundo lugar, identificamos alguns dos fatores que deram origem à mais recente  
experiência de contestação (aquilo a que um de nós chamou em outro texto: “o novo radicalismo  
do Serviço Social”). Por fim, argumentamos que, historicamente, o marxismo foi importante na  
Autor  
formação da teoria e da prática do Serviço Social Radical no passado e continua a oferecer uma  
base sólida para uma práxis do Serviço Social no século XXI, incluindo a explicação e a  
oposição a diferentes formas de opressão.  
Conivência  
Aprimeira resposta que iremos considerar é a conivência e a cooperação com as práticas  
opressivas do Estado. Há uma narrativa dominante em grande parte da literatura sobre Serviço  
Social que vê o Serviço Social como uma profissão essencialmente benigna, enraizada na ética  
kantiana e preocupada principalmente em ajudar as pessoas. De fato, pode ser verdade que a  
maioria dos assistentes sociais, na maior parte do tempo, tem “boas intenções”. No entanto, a  
realidade da prática do Serviço Social tem estado frequentemente longe de ser benigna. Como  
defendemos em nosso livro Global Social Work in a Political Context1, o Serviço Social tem  
suas próprias “histórias horríveis”.  
Em primeiro lugar, temos a experiência do Serviço Social na Alemanha nazi,  
provavelmente o ponto mais baixo da história da profissão. Walter Lorenz, Tim Kunstreich e  
outros documentaram a forma como as competências de diagnóstico dos assistentes sociais  
foram utilizadas no âmbito dos programas sociais eugenistas do regime nazi para separar os  
“merecedores” dos “indignos”, aqueles que sofriam de transtornos mentais ou com deficiência  
intelectual, que seriam então considerados elegíveis para a esterilização compulsória ou para o  
extermínio. Como Lorenz observou:  
374  
Mantendo-se fiéis à sua tarefa profissional com um ar de neutralidade de  
valores e distanciamento científico (especialmente depois de os assistentes  
sociais “não conformes” e “politicamente ativos” terem sido despedidos ou  
presos), eles não se sentiram responsáveis pelas consequências das suas  
avaliações e podem mesmo não ter tido consciência de todas as implicações  
que o seu trabalho tinha no contexto nacional (Lorenz, 2006).  
Estima-se que cerca de 70.000 pessoas com transtornos mentais ou com deficiência  
intelectual foram sistematicamente exterminadas na Alemanha entre 1939 e 1941, um número  
que aumentou para cerca de 250.000 no final da Segunda Guerra Mundial (Holocaust  
Encyclopedia).  
Um segundo exemplo vem da Grécia. Uma pesquisa realizada por Vasilios Ioakimidis  
revelou o papel desempenhado sob liderança do Serviço Social grego durante décadas de tensão  
política e de supressão dos direitos civis que culminaram numa Junta Militar de sete anos (1967-  
74). Tal como Ioakimidis demonstrou, grande parte da resistência contra a ditadura veio dos  
1 Sem tradução no Brasil.  
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jovens, sobretudo alunos de escolas e estudantes universitários. Quando os militares tiveram  
dificuldade em controlar os “jovens indisciplinados” e muitos professores pareciam estar  
demasiado politizados para lidar com a questão, a "Greek Association of Social Workers"  
(GASW) contatou a ditadura, oferecendo todo o apoio dos assistentes sociais no controle destes  
jovens indisciplinados.  
Em resposta, o Ministro do Bem-estar Social da ditadura fez circular um memorando  
intitulado “Disposições relativas aos assistentes sociais e à sua utilização profissional”,  
sugerindo que:  
O Governo grego, durante a reforma geral do trabalho em curso, se ocupará  
de todas as exigências restantes do Serviço Social… Por outro lado,  
apreciamos muito a contribuição dos assistentes sociais na implementação  
construtiva dos nossos programas sociais. O Ministério dos Serviços Sociais  
tomará todas as medidas adequadas para uma organização vantajosa e  
coerente dos assistentes sociais em comissão (Ioakimidis, 2011, p. 515).  
O GASW celebrou essa colaboração, assegurando ao Coronel Papadopoulos, chefe da  
junta militar, que os assistentes sociais gregos estavam bem preparados para lidar com questões  
de ajustamento social, e sublinhando que os assistentes sociais: “estão cientificamente melhor  
preparados do que os professores para prevenir as tribulações sociais [nas escolas]” (Ioakimidis  
2011).  
Trata-se, lembrem-se, de uma ditadura cruel, ativamente empenhada em utilizar todos  
os meios, incluindo a tortura, para reprimir os ativistas pró-democracia.  
375  
Um terceiro exemplo vem do Reino Unido e diz respeito ao UK Child Migrants Scheme.  
Entre o final do século XIX e o início da década de 1970, cerca de 150.000 crianças que se  
encontravam em instituições de acolhimento e que provinham de meios pobres foram enviadas  
da Grã-Bretanha para a Austrália, o Canadá e outras colônias britânicas. Num esquema que foi  
apoiado por algumas das principais instituições de caridade para crianças do Serviço Social do  
Reino Unido, estas crianças foram enviadas para repor a força de trabalho nestes países e, no  
caso da África do Sul, isto incluiu a garantia de que as crianças eram selecionadas com base na  
sua 'boa raça branca' (Bean e Melville 1989). Muitas das crianças passaram a trabalhar como  
mão de obra barata nas fazendas, enquanto outras foram abusadas - física, emocional e  
sexualmente - em lares de acolhimento, orfanatos estatais e instituições religiosas. As crianças  
eram frequentemente informadas - falsamente - de que os seus pais tinham morrido, enquanto  
os pais recebiam poucas informações sobre o destino de seus filhos. Os sobreviventes  
afirmaram que foram separados dos irmãos e irmãs e sujeitos a abusos físicos e sexuais brutais  
por parte daqueles que deveriam estar promovendo seus cuidados.  
Em 2010, os primeiros-ministros da Grã-Bretanha e da Austrália pediram desculpas  
Autor  
publicamente aos sobreviventes pelos abusos de que foram vítimas. No entanto, este continua  
a ser um dos episódios mais vergonhosos da história do Serviço Social britânico (e australiano).  
Sejamos claros. Não estamos argumentando que todos os assistentes sociais na  
Alemanha, durante a era nazista, eram membros do partido nazista e nem sequer,  
necessariamente, eleitores nazistas, ou companheiros de viagem ou “apoiadores” num sentido  
consciente (embora alguns fossem, sem dúvida, tudo isto). Tampouco estamos sugerindo que  
todos os assistentes sociais na Grécia eram apoiadores conscientes da Junta, ou que os  
assistentes sociais britânicos eram racistas que abusavam de crianças.  
● No entanto, os assistentes sociais, em cada um dos exemplos anteriormente citados, se  
tornaram burocratas “inconsequentes/irrefletidos”, exemplos daquilo a que Arendt  
(1963/2006) poderia chamar de “banalidade do mal”.  
Em sua análise do assassino nazista Adolph Eichmann, a autora sugere que Eichmann  
era uma mediocridade e um personagem insípido, embora empenhado nas suas tarefas. Ele era  
alguém que, devido à sua “inconsequência/irreflexão”, praticava “atos maus sem más  
intenções” e nunca se “percebia completamente o que estava fazendo” devido a uma  
“incapacidade (...) de pensar do ponto de vista de outra pessoa”. Sem empatia básica, ou sem  
qualquer profundidade na sua compreensão do mundo, “cometeu crimes em circunstâncias que  
tornaram (...) impossível para ele saber ou sentir que [estava] agindo de forma errada”. Para  
Arendt, ele era um exemplo da natureza sem rosto do perverso nazismo.  
376  
Sem pensamento crítico, sem reflexão e sem empatia, o assistente social pode  
facilmente tornar-se um “burocrata inconsequente/irrefletido” que executa tarefas nas quais  
pode torná-lo uma pequena engrenagem na máquina repressiva do Estado e um profissional que  
é conivente com os poderosos.  
Conformidade: neutralidade profissional  
Se uma resposta à pressão política tem sido a conivência ativa com políticas estatais  
opressivas, uma resposta mais comum tem sido retratar o Serviço Social como uma profissão  
politicamente neutra, uma profissão que, de alguma forma, está “acima da política”. Esta visão  
estreita e despolitizada do Serviço Social, que é também uma caraterística definidora daquilo a  
que se tem chamado Serviço Social Neoliberal, tem sido promovida pelos governos do Reino  
Unido, tanto Trabalhista como Conservador, durante mais de duas décadas. Ao lançar o novo  
currículo de Serviço Social na Inglaterra e no País de Gales em 2002, por exemplo, a então  
Ministra da Saúde Jacqui Smith argumentou:  
Libertas, Juiz de Fora, v. 24, n. 1, p. 367-386, jan./jun. 2024. ISSN 1980-8518  
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O Serviço Social é um trabalho muito prático. Trata-se de proteger as pessoas  
e de mudar as suas vidas, e não de ser capaz de dar uma explicação fluente e  
teórica sobre as razões que as levaram a ter dificuldades em primeiro lugar”  
(Smith, 2002).  
A conformidade tem alguns elementos em comum com a conivência, na medida em que  
exige que o assistente social implemente as políticas do Estado, mas não se trata da  
implementação “inconsequente/irrefletida” e desinteressada de regras autoritárias como nos  
referimos acima. No âmbito da conformidade, a maioria dos trabalhadores estará consciente,  
até certo ponto, das consequências das políticas para os usuários dos serviços, às suas famílias  
e às comunidades, mas sentirá que “não há alternativa viável”.  
No entanto, na realidade, negar a natureza política do Serviço Social não significou que  
este tenha permanecido eticamente puro - na verdade, muito pelo contrário. Na prática,  
significou que os assistentes sociais frequentemente permaneceram em silêncio quando  
deveriam ter se manifestado, não desafiando as políticas e práticas que contribuem para a  
opressão ou a desigualdade e, em vez disso, prosseguindo um enfoque restrito nos métodos e  
tecnologias do Serviço Social em busca de respeitabilidade profissional.  
Contestação: um Serviço Social de resistência  
Se a resposta dos assistentes sociais quando confrontados com a repressão política tem  
sido, por vezes, a conivência ativa ou, mais comumente, o silêncio e a “continuação do  
trabalho”, também é verdade que, historicamente, tem havido uma terceira resposta, de  
resistência ativa à opressão, de tomada de partido por parte dos assistentes sociais. Essa resposta  
é frequentemente associada ao movimento do Serviço Social Radical que se desenvolveu na  
Grã-Bretanha, no Canadá, na Austrália e nos EUA durante o início da década de 1970,  
alimentado pela ascensão dos grandes movimentos sociais da década de 1960 - o movimento  
das mulheres, o movimento dos direitos civis dos negros, etc. Algumas das principais  
características desse movimento foram:  
377  
- Uma ênfase na desigualdade estrutural e não nas falhas individuais;  
- Uma crítica ao Estado de Bem-Estar Social como opressivo e controlador;  
- Defesa de uma relação diferente entre trabalhadores e clientes;  
- Uma ênfase nas abordagens coletivas;  
- Para alianças entre assistentes sociais e coletivos de usuários dos serviços;  
- A tomada de consciência de que “os assistentes sociais também são trabalhadores” e o  
crescente envolvimento dos sindicatos dentro do Serviço Social.  
É importante notar que o Serviço Social Radical era visto pelos seus adeptos não como  
um método, mas como uma abordagem, ou, nas palavras dos autores:  
O Serviço Social Radical, é sentido, é essencialmente a compreensão da  
Autor  
posição dos oprimidos no contexto das estruturas sociais e econômicas em que  
vivem (Bailey; Brake, 1975, p. 9).  
Esse movimento foi muito importante. Mas, como já defendemos em outro texto, a  
tradição do Serviço Social Radical é mais antiga do que o movimento dos anos 1970 (Lavalette;  
Ferguson, 2008). Por exemplo, num discurso proferido em 1910, Jane Adams, na época  
Presidente da Associação Nacional de assistentes sociais dos EUA, poderia argumentar:  
Um grupo que tradicionalmente foi levado à ação pela 'piedade para com os  
pobres', chamamos 'Caridosos'; o outro, maior ou menor em cada geração, mas  
sempre movido pelo 'ódio à injustiça', designamos como os Radicais”  
(Addams, 1910, p. 68).  
Desde o final do século XIX até meados do século XX, houve um número significativo  
de “pioneiros radicais” que defendiam um tipo diferente de Serviço Social. Para além de Jane  
Addams (nos EUA), a lista inclui, entre outras, pessoas (na sua maioria mulheres) como Bertha  
Cappen Reynolds (EUA), Mentona Mosser (Suíça), Irena Sendler (Polónia), Esme Rodgers  
(Austrália), Mary Jennison e Bessie Touzel (Canadá) e Mary Hughes e Emmeline Pethick (Grã-  
Bretanha).  
Num artigo em que se discute a importância das pioneiras canadenses do Serviço Social  
Radical, Jennissen e Lund (2018) descrevem os temas do seu artigo de uma forma que é  
aplicável a todas as mulheres acima referidas:  
378  
[Elas são] “assistentes sociais radicais”, ou seja, assistentes sociais que  
defendiam pontos de vista de esquerda com críticas ao capitalismo embasadas  
na classe. As mulheres de nossa amostra, todas formadas em Serviço Social,  
eram feministas, socialistas e comunistas convictas ou simpatizantes dessas  
causas; suas contribuições para a profissão eram embasadas por idéias  
marxistas. Elas eram politicamente ativas e se opunham à desigualdade de  
classe, raça e gênero. Compreendiam a importância do trabalho assalariado,  
dos sindicatos, dos partidos políticos e de como essas estruturas se relacionam  
com os trabalhadores. Eram intelectuais e prolíficas na escrita, apresentações  
e participação em conferências; eram internacionalistas comprometidos com  
a paz. Por fim, eram extremamente corajosas, recusando-se a se esquivar de  
suas convicções políticas, apesar da demissão e perseguição por parte do  
Estado e das forças conservadoras da sociedade (2018, p. 46/47).  
Além disso, devemos enfatizar que o ativismo e a resistência do Serviço Social nem  
sempre se limitam ao mundo da língua inglesa. Um dos exemplos mais importantes de práxis  
radical, embora ainda não seja suficientemente conhecido no Ocidente, é o Movimento de  
Reconceituação que se desenvolveu na América Latina nos anos 1960 (Critical and Radical  
Social Work, 2021). O Movimento de Reconceituação tinha suas raízes no marxismo e foi  
influenciado por três perspectivas contemporâneas: as ideias de conscientização de Paulo  
Freire, elementos extraídos da teologia da libertação e a influência dos movimentos sociais que  
estavam surgindo na América Latina naquela época.  
Libertas, Juiz de Fora, v. 24, n. 1, p. 367-386, jan./jun. 2024. ISSN 1980-8518  
Título  
Um dos principais pontos a serem observados em relação a todos os assistentes sociais  
radicais e os movimentos que mencionamos é que eles não existiam isoladamente. Eles faziam  
parte de redes de Serviço Social Radical que haviam mergulhado em movimentos relevantes e  
significativos para a mudança social: associações de direitos e sufrágio das mulheres,  
organizações sindicais e de classe, grupos pacifistas, antiguerra e anti-imperialistas, campanhas  
pelos direitos dos imigrantes, refugiados e comunidades de baixa renda. Eles se envolveram, se  
inspiraram e aprenderam com o engajamento nesses movimentos progressistas; foi o  
envolvimento neles que criou a oportunidade de trazer a percepção dos movimentos para suas  
atividades de Serviço Social. Dessa forma, buscaram desenvolver uma teoria e prática de  
Serviço Social que desafiasse as estruturas opressivas do capitalismo e contribuísse para a luta  
a favor de um tipo diferente de sociedade.  
Mais recentemente, e assim como outros movimentos progressistas, o Serviço Social  
Radical (e o Serviço Social de forma mais geral) tornou-se um alvo de governos e formações  
políticas da Nova Direita que ganharam destaque no início dos anos 1980 com as eleições de  
Margaret Thatcher no Reino Unido e Ronald Reagan nos EUA. Em sua maior parte, o Serviço  
Social Radical esteve recuado durante a longa noite do neoliberalismo. Há sinais, no entanto,  
de que as coisas estão começando a mudar. Nos últimos anos, houve uma resistência crescente  
por parte dos assistentes sociais em todo o mundo ao impacto das políticas neoliberais, tanto na  
vida das pessoas que usam os serviços quanto no trabalho profissional cotidiano do assistente  
social.  
379  
Diversos fatores contribuíram para o surgimento desse novo radicalismo: a ira em  
relação às políticas de austeridade impostas a pessoas de baixa renda e pessoas com deficiência,  
após a crise financeira de 2008, o impacto de movimentos sociais mais amplos, como o  
movimento Occupy Wall Street em 2011, a solidariedade com os refugiados que fogem de  
guerras e perseguições, e assim por diante.  
Mas, se há um único fator que alimenta essa resistência, é a rejeição, por parte dos  
trabalhadores de todo o mundo, do modelo de Serviço Social voltado para o mercado que tem  
sido promovido pelos governos do Reino Unido e de outros países desde a década de 1990 e  
que continua a ser o modelo dominante em muitas partes do mundo. A influência desse modelo  
ficou evidente em uma série de seminários on-line organizados em conjunto, pela Federação  
Internacional de Assistentes Sociais e pela Social Work Action Network, em 2020, para discutir  
as respostas do Serviço Social à pandemia de Covid (agora publicada como um e-book  
[Lavalette et al, 2020]).  
De forma positiva, os participantes da Grécia, Chile, África do Sul, Palestina e outros  
Autor  
países relataram maneiras novas e imaginativas que os assistentes sociais desenvolveram para  
manter contato com os usuários dos serviços durante a crise, para reduzir o isolamento social e  
proteger a saúde mental. Também houve relatos inspiradores de assistentes sociais que  
estabeleceram vínculos com as novas organizações de ajuda mútua que estavam surgindo em  
todos os lugares e o desafio que isso representava para os modelos neoliberais de Serviço Social,  
contrário aos riscos.  
No entanto, de forma menos positiva, muitos assistentes sociais relataram que, em seus  
espaços sócio-ocupacionais, a situação se mantinha igual. Em vez de darem respostas novas e  
criativas à catástrofe que a Covid representava, os trabalhadores falaram da preocupação maior  
da gerência em cumprir orçamentos e metas e também da mesma ênfase no monitoramento e  
vigilância, em vez de trabalhar coletivamente com comunidades e usuários de serviços para  
ajudá-los a atender às suas necessidades e enfrentar suas dificuldades em tempos de crise.  
Outros ainda falaram sobre o fato do Serviço Social ser “invisível” na crise atual - e um deles  
descreveu como as avaliações de proteção infantil estavam sendo realizadas do lado de fora das  
casas das pessoas, através das janelas!  
Essa realidade não é culpa de trabalhadores ou mesmo de gerentes individualmente. Em  
vez disso, ela reflete o domínio bem documentado, ao longo de várias décadas, da Nova Gestão  
Pública ou de abordagens gerencialistas do Serviço Social, com base em uma prática altamente  
individualizada, orientada por orçamentos e metas, erosão do trabalho profissional em  
relacionamentos (com o trabalho direto muitas vezes terceirizado para o Terceiro Setor ou  
organizações privadas) e uma crescente divisão geográfica e cultural entre os espaços sócio-  
ocupacionais de Serviço Social e as comunidades que elas pretendem atender.  
380  
Esse “Serviço Social neoliberal” está, obviamente, muito distante do que muitos  
reconhecem como uma boa atuação do Serviço Social. Isso também significa que a contribuição  
do Serviço Social durante a crise da Covid foi consideravelmente menor do que poderia ter  
sido. Mas, embora tudo isso seja verdade, as duas últimas décadas, como observamos acima,  
também viram uma resistência crescente a esse modelo, cujos exemplos serão considerados no  
restante deste capítulo.  
O novo radicalismo do Serviço Social  
Nesta última seção, queremos considerar algumas das novas vertentes do radicalismo  
no Serviço Social que surgiram no último período.  
No texto Global Social Work in a Political Context (Serviço Social global em um  
contexto político), traçamos o crescimento de uma série de organizações radicais de Serviço  
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Social em todo o mundo (Ferguson et al., 2018). Já observamos anteriormente o sucesso da  
Orange Tide na Espanha, que ganhou destaque em 2014, imersa nos movimentos contra a  
austeridade que estavam florescendo no país na época. A rede húngara New Approach, de vida  
relativamente curta, embora significativa, cujo trabalho com moradores de rua e comunidades  
ciganas os colocou em conflito com o estado húngaro autoritário. A Progressive Welfare  
Network em Hong Kong envolve vários trabalhadores (muito corajosos) da linha de frente que  
têm sido particularmente ativos em movimentos sociais nos últimos anos e que desempenharam  
um papel importante no desenvolvimento de formas mais radicais do trabalho profissional. Eles  
tiveram um papel central no movimento Occupy Hong Kong em 2011 e no movimento  
Umbrella Democracy de 2014-15. Enquanto o Boston Health Liberation Group, nos Estados  
Unidos da América, que, além da atividade de campanha, desenvolveu um modelo de atuação  
e documentou seu uso em uma série de espaços do Serviço Social (Martinez e Fleck-Henderson,  
2014). Seus princípios orientadores são resumidos por Martinez como sendo:  
- Holística: situar os indivíduos em sua matriz completa de determinantes  
pessoais, estruturais, ideológicos e institucionais;  
- Crítico: recusando-se a aceitar o neoliberalismo e a noção de que o Serviço  
Social deve se subordinar à sua agenda social;  
- Empoderamento: busca liberar usuários e assistentes sociais da crença  
confusa de que as condições atuais são inevitáveis e estão além do nosso poder  
de mudança; busca apoiá-los para que se tornem aliados ativos de indivíduos  
e movimentos que trabalham pela mudança social;  
- Esperançoso: resgatar a memória e valorizar “a capacidade humana coletiva  
de criar mudança” (Reisch, 2013, p. 68); (Martinez, 2014).  
381  
Por fim, como membros fundadores da Social Work Action Network (SWAN) no Reino  
Unido, já discutimos anteriormente a atividade e a filosofia da rede (consulte Ferguson et al  
2018, Moth; Lavalette, 2019). A rede foi fundada em 2006 em uma conferência com 300  
participantes em Liverpool. Pouco tempo depois, foram criados grupos da SWAN na Grécia e  
na Irlanda. As atividades da SWAN foram agrupadas em torno de três aspectos principais.  
Em primeiro lugar, conferências anuais, realizadas todos os anos em diferentes  
universidades do Reino Unido, têm proporcionado um importante fórum para discutir e debater  
as respostas das políticas nacionais às questões que afetam o Serviço Social, como: a  
austeridade, a privatização e o racismo. Uma característica fundamental dessas conferências  
tem sido o papel desempenhado pelos usuários de serviços, tanto como palestrantes quanto  
como delegados.  
Em segundo lugar, a SWAN esteve envolvida em várias campanhas em nível nacional  
e local. Em nível local, essas campanhas incluíram a defesa dos solicitantes de asilo, a oposição  
à privatização dos serviços infantis e a contestação dos cortes nos serviços de saúde mental. Em  
Autor  
nível nacional, a SWAN foi uma das redes organizadoras que, em 2015, montou uma série de  
“comboios” para apoiar os refugiados mantidos em centros de detenção não oficiais na França,  
na Grécia e na República Tcheca. Na Escócia, a SWAN fez campanha por um sistema de  
assistência social e controle público baseado na necessidade e não no lucro (Ferguson; Gall,  
2020).  
Em terceiro lugar, em 2013, a SWAN se envolveu com a imprensa política para criar e  
lançar o Critical and Radical Social Work: an International Journal. Embora não esteja  
formalmente vinculada à SWAN, o fato de os dois coeditores também serem membros  
fundadores da SWAN e de muitos membros do Conselho Editorial serem ativistas importantes  
da SWAN significa que, na prática, os vínculos são estreitos. A revista já conquistou um grande  
número de leitores e está proporcionando um fórum para o desenvolvimento de novas ideias  
sobre Serviço Social crítico e radical, com contribuições do mundo todo.  
Durante a pandemia, as várias organizações radicais do Serviço Social listadas acima  
começaram a trabalhar em conjunto de forma muito mais próxima. A partir de maio de 2020,  
os grupos começaram a realizar reuniões online regulares - e também em conjunto com a  
Federação Internacional de Serviço Social. O resultado foi a criação de uma rede internacional  
formal, a Social Work Action Network International (SWANI). A SWANI reuniu grupos de todo  
o mundo. Ela tem grupos representativos no Reino Unido, na Irlanda, na Grécia, na Hungria,  
na Suécia, nas Filipinas, no Japão, em Hong Kong, na Austrália, no Chile, no Brasil, na  
Argentina e nos EUA. Embora não seja um membro formal, o coletivo Rebel Social Work na  
Nova Zelândia (que tem uma presença significativa no Facebook) é um aliado próximo do  
grupo.  
382  
A Rede se reúne trimestralmente para planejar suas atividades e tem subgrupos para  
tratar de questões relacionadas à educação em Serviço Social, ao profissionalismo/sindicalismo  
em Serviço Social e a presença online e na mídia. Na Páscoa de 2021, a rede realizou sua  
primeira conferência internacional multilíngue/multi-fuso horário, que atraiu a contribuição de  
milhares de assistentes sociais do mundo todo.  
A SWANI reúne assistentes sociais radicais de todo o mundo e é um centro importante  
para que profissionais radicais, acadêmicos e usuários de serviços se encontrem, discutam e  
compartilhem novas ideias. É uma rede de ação com foco no engajamento político em cada um  
dos países onde a SWANI está presente e em ações coordenadas internacionalmente sempre  
que possível. No entanto, assim como os pioneiros radicais das gerações anteriores, a SWANI  
vê o Serviço Social Radical como parte integrante de movimentos mais amplos de mudança  
social. O modelo de trabalho é aquele que, na política, seria entendido como uma “frente unida”.  
Libertas, Juiz de Fora, v. 24, n. 1, p. 367-386, jan./jun. 2024. ISSN 1980-8518  
Título  
Com base nos insights desenvolvidos pelo Comintern no início da década de 1920  
(Comintern 1922) e desenvolvidos de forma mais completa no trabalho de Leon Trotsky  
(1931/1989) e Antonio Gramsci (1926/1990), a Frente Unida foi originalmente desenvolvida  
como uma intervenção estratégica para defender a maior unidade de ação entre as forças  
progressistas na luta por um mundo melhor. Com base no resumo de Choonara (2007): a “Frente  
Unida” reúne os ativistas em uma luta comum; ela representa um conjunto de demandas  
aceitáveis para aqueles que se descreveriam como revolucionários (dos quais alguns serão  
marxistas) e para aqueles que não são, mas que estão comprometidos com uma reforma  
significativa e com a melhoria das condições sociais; dentro da Frente Unida há espaço para a  
contestação ideológica fraterna sobre objetivos, estratégias e táticas.  
A SWANI representa uma “frente unida” internacional de assistentes sociais radicais.  
Ela reuniu grupos de ativistas radicais em torno da noção de que “outro Serviço Social é  
possível”. Essa é a crença de que políticas sociais “boas” e bem financiadas, comprometidas  
com o atendimento das necessidades das pessoas, podem melhorar significativamente a vida de  
indivíduos e comunidades. Esse “outro Serviço Social” é aquele comprometido com a justiça  
social e com o combate a todas as formas de opressão e desigualdade de classe. E a forte crença  
de que, para estabelecer esse “melhor Serviço social”, é preciso se engajar em lutas políticas  
por um mundo diferente.  
383  
Conclusão: o retorno da resistência  
Iniciamos este capítulo destacando as profundas ameaças existenciais representadas por  
uma combinação tóxica de crises globais - ecológicas, econômicas e políticas. Essas ameaças  
dificilmente poderiam ser mais graves. Mas há um outro lado, mais esperançoso, nesse quadro  
sombrio. Pois, como mostrou o relatório do think-tank de 2019 citado na revista The Economist,  
nos últimos anos, o mundo também passou por mais revoltas políticas do que nunca. Somente  
em 2019, houve protestos em todos os continentes e em 114 países - de Hong Kong ao Haiti,  
da Bolívia à Grã-Bretanha. Ao comentar o relatório, a Economist observou que:  
Essa agitação faz parte de uma tendência crescente... O número de protestos  
em massa em todo o mundo aumentou 11,5% ao ano, em média, desde 2009.  
(Os protestos em massa são definidos como protestos civis contra o governo,  
independentemente do tamanho, e excluindo tumultos e protestos contra  
entidades não estatais). Mesmo após o ajuste para o crescimento populacional,  
os autores consideram que o número de manifestantes que saíram às ruas nos  
últimos anos excedeu o do movimento contra a Guerra do Vietnã ou o  
movimento pelos Direitos Civis (Economist, 2020).  
Esses protestos em massa incluem o movimento Black Lives Matter (Vidas Negras  
Autor  
Importam) que, em seu impacto global e em seu desafio à brutalidade policial e ao racismo  
institucional, alcançou mais em poucos anos do que a estratégia reformista de colocar “rostos  
negros em posições importantes na sociedade” fez em décadas. Eles também incluem o Climate  
Justice movement - movimento pela Justiça Climática que, em novembro de 2021, mobilizou  
100.000 pessoas de todo o mundo para se manifestarem na conferência COP-26 em Glasgow,  
exigindo dos líderes mundiais presentes uma ação real sobre as mudanças climáticas e não  
apenas mais promessas vazias (ou o que a jovem e inspiradora ativista sueca Greta Thunberg  
chamou de “blá blá blá”). O fato de que uma das principais demandas dos manifestantes era  
“mudança de sistema, não mudança climática” destaca a extensão em que os ativistas do  
movimento estão relacionando a destruição ambiental com o capitalismo neoliberal voraz que,  
se não for controlado, destruirá a humanidade e o planeta em sua busca incessante por lucro  
(Empson, 2019).  
Na década de 1960 e no início da década de 1970, o Serviço Social em vários países foi  
transformado por meio do envolvimento com os grandes movimentos sociais da época  
(Thompson, 2002). Da mesma forma, argumentamos que é no engajamento e no aprendizado  
com esses novos exemplos de luta e resistência coletiva que reside a melhor esperança de  
desenvolver formas novas e mais radicais de prática profissional no século XXI e de substituir  
o individualismo, que é a marca registrada do Serviço Social neoliberal, a favor do valor  
coletivo da solidariedade. Nas palavras do grande escritor uruguaio Eduardo Galeano:  
384  
Eu não acredito em caridade.  
Acredito na solidariedade.  
A caridade é tão vertical. Vai de cima para baixo.  
A solidariedade é horizontal. Respeita a outra pessoa.  
Tenho muito que aprender com outras pessoas.  
(Citado em Barsamiam, 2004, p. 146).  
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