R E V I S TA  
Revista de Serviço Social  
Programa de Pós-Graduação em Serviço Social  
Curso de Graduação em Serviço Social  
Universidade Federal de Juiz de Fora  
ISSN 1980-8518  
DOSSIÊ:  
Lutas Sociais, Ofensiva  
Neoliberal e Serviço Social  
VOLUME 23  
NÚMERO 1  
JANEIRO-JUNHO  
ANO 2023  
EXPEDIENTE  
FOCO E ESCOPO  
CONSELHO EDITORIAL  
Alcina Maria de Castro Martins, Instituto  
Superior Miguel Torga, Portugal; Carina Berta  
Moljo, Universidade Federal de Juiz de Fora,  
Brasil; Caterine Reginensi, Ecole Nacionale  
Superieure Agronomique de Toulouse, França ;  
Elizete Menegat, Universidade Federal de Juiz de  
Fora, Brasil; Íris Maria de Oliveira, Universidade  
Federal do Rio Grande do Norte, Brasil; José  
Paulo Netto, Universidade Federal do Rio de  
Janeiro, Brasil; Margarita Rozas Pagaza,  
Universidad Nacional de La Plata, Argentina;  
Maria Aparecida Tardim Cassab, Universidade  
Federal de Juiz de Fora, Brasil; Maria Beatriz  
Abramides, Pontifícia, Universidade Católica de  
São Paulo, Brasil; Maria Patricia Fernandes Kelly,  
Princeton University, EUA; Maria Rosangela  
Batistoni, Universidade Federal de São Paulo,  
Brasil; Marilda Vilella Iamamoto, Universidade  
Estadual do Rio de Janeiro, Brasil; Nicolas Bautes,  
Universite de Caen Normandie, França; Olga  
Mercedes Paez, Universidad Nacional de  
Córdoba, Argentina; Roberto Orlando Zampani,  
Universidad Nacional de Rosário, Argentina;  
Rosangela Nair Carvalho Barbosa, Universidade  
Estadual do Rio de Janeiro; Brasil; Silvia  
Fernandes Soto, Universidad Nacional de Tandil,  
A Revista Libertas, criada em 2001, é uma  
publicação semestral da Faculdade de Serviço  
Social e do Programa de Pós-Graduação em  
Serviço Social da Universidade Federal de Juiz de  
Fora. Seu objetivo é estimular o intercâmbio da  
produção intelectual, de conteúdo crítico,  
produzida a partir de pesquisas empíricas e  
teóricas, no âmbito brasileiro e internacional,  
sobre temas atuais e relevantes da área do  
Serviço Social e das Ciências Sociais e Humanas,  
com as quais mantem interlocução.  
EDITORES  
Dr. Ronaldo Vielmi Fortes, Faculdade de Serviço  
Social, Universidade Federal de Juiz de Fora,  
Brasil. Editor-chefe.  
Drª. Carina Berta Moljo, Faculdade de Serviço  
Social, Universidade Federal de Juiz de Fora,  
Brasil. Editora-adjunta.  
Drª. Isaura Gomes de Carvalho Aquino,  
Faculdade de Serviço Social, Universidade  
Federal de Juiz de Fora, Brasil. Editora-adjunta.  
Drª. Mônica Aparecida Grossi, Faculdade de  
Serviço Social, Universidade Federal de Juiz de  
Fora, Brasil. Editora-adjunta.  
Esp. Luciano Cardoso de Souza, Faculdade de  
Serviço Social, Universidade Federal de Juiz de  
Fora, Brasil. Editor-executivo.  
Argentina;  
Xabier  
Arrizabalo  
Montoro,  
Universidad Complutense de Madri, Espanha.  
Faculdade de Serviço Social UFJF  
Programa de Pós-graduação em Serviço Social  
Editores:  
Ronaldo Vielmi Fortes (editor-chefe)  
Carina Berta Moljo (editora-adjunta)  
Isaura Gomes de Carvalho Aquino (editora-adjunta)  
Mônica Aparecida Grossi (editora-adjunta)  
Luciano Cardoso de Souza (editor-executivo)  
Editores de Leiaute:  
Luciano Cardoso de Souza  
Ronaldo Vielmi Fortes  
CAPA/PINTURA: BERNI, Antonio. Manifestación, 1934.  
ARTE CAPA: Ronaldo Vielmi Fortes  
Juiz de Fora/MG, junho, 2023  
FICHA CATALOGRÁFICA  
Revista Libertas / Universidade Federal de Juiz de Fora, Programa de Pós-graduação em Serviço  
Social, Curso de graduação em Serviço Social. n.1 (abril, 2001) .  
Juiz de Fora, ano 2023 –  
v.23 nr. 1.  
Semestral  
Resumo em português e inglês  
Vinculada ao Programa de Pós-graduação em Serviço Social e ao Curso de Graduação em  
Serviço Social.  
Versão online ISSN 1980-8518  
1. Serviço Social. 2. Periódico. I. Universidade Federal de Juiz de Fora, Programa de Pós-Graduação em  
Serviço Social. II. Universidade Federal de Juiz de Fora, Curso de Graduação em Serviço Social.  
Publicação indexada em:  
Sumário  
Editorial:  
IX  
O Serviço Social diante da ofensiva neoliberal:  
os aspectos sociais e a pandemia  
Dossiê:  
Lutas Sociais, Ofensiva Neoliberal e Serviço Social  
A ofensiva do capitalismo neoliberal contra a Mãe Terra  
1
Michael Löwy  
Ofensiva ultraneoliberal no capitalismo em crise  
no Brasil e no mundo  
10  
Elaine Rossetti Behring  
La nueva resistência popular em América Latina  
23  
35  
Claudio Katz  
Serviço Social - Internacionalizar é preciso!  
Berta Granja  
Nuno Pires  
Cooperação internacional em Serviço Social:  
uma revisão de literatura  
Maria Lúcia Teixeira Garcia  
49  
Gary Spolander  
Convergencias de la Reconceptualización del  
Trabajo Social en Argentina, Chile y Colombia  
Sergio Quintero Londoño  
70  
85  
Entre os objetivos profissionais e institucionais:  
fortalecendo o Serviço Social  
Rodrigo José Teixeira  
Artigos Fluxo Contínuo  
Violência sem véu: uma reflexão inspirada 103  
na experiência como Assistente Social  
Alexandra Aparecida Leite Toffanetto Seabra Eiras  
Joyce Queiroga Resende  
Mortes Violentas Intencionais dos/as negros/as brasileiros/as: 122  
ensaios sobre seus determinantes  
Francisco Flavio Eufrazio  
“Eu sou grande, você é pequena”: o direito da criança ao respeito 141  
e os fundamentos jurídicos para sua concretização no Brasil  
Anna Paula Bagetti Zeifert  
Schirley Kamile Paplowski  
Reflexões sobre o dueto família e gênero 165  
na política de saúde brasileira  
Edilane Bertelli  
Keli Regina Dal Prá  
Michelly Laurita Wiese  
O fundo público e a relação público x privado 181  
na política de saúde em Campina Grande/PB  
Jaidete de Oliveira Correia  
Alessandra Ximenes da Silva  
Expropriação em tempos de capitalismo: o trabalho reprodutivo 205  
e o impacto na vida das mulheres  
Priscilla Brandão de Medeiros  
Estado brasileiro e a subserviência ao capital: 228  
traços da formação econômica brasileira  
Everton Melo da Silva  
Entrevista  
Esther Luíza de Souza Lemos 252  
Entrevistadora: Carina Berta Moljo  
Tradução dos Clássicos  
“O evangelho segundo Foucault” 258  
Apresentação à tradução do artigo:  
As palavras e as coisas no pensamento econômico (Pierre Vilar)  
Ronaldo Vielmi Fortes  
As palavras e as coisas no pensamento econômico  
Pierre Vilar  
268  
Tradução: Ronaldo Vielmi Fortes  
Manifestación, Antonio Berni, 1934. Museo de Arte Latinoamericano, Buenos Aires.  
DOI 10.34019/1980-8518.2023.v23.41472  
Editorial  
O Serviço Social diante da ofensiva neoliberal:  
os aspectos sociais e a pandemia  
É com muita alegria que vem ao público mais um número da Revista Libertas. Sem  
dúvida um número especial carregado de encontros e despedidas. Este número, por um lado,  
marca o retorno às atividades coletivas na UFJF, após a fase mais aguda da pandemia, que se  
expressam no Dossiê da Revista, através dos artigos, baseados nas conferências proferidas no  
VII Seminário Internacional da Faculdade de Serviço Social e do Programa de Pós-Graduação  
em Serviço Social da UFJF, que aconteceu em setembro de 2022.  
Este evento marca o retorno dos nossos Seminários Internacionais, mesmo que de forma  
híbrida. Naquele momento ainda estávamos vivenciando a Pandemia de COVID -19, vivendo  
um momento de muita incerteza, quando deliberamos pela realização do Seminário. Foi uma  
decisão ousada, mas repleta de esperança.  
Agradecemos à Comissão Organizadora do Seminário Internacional: as professoras  
Marina Monteiro Castro e Castro, Ana Luiza Avelar, Ana Maria Ferreira, Claudia Mônica dos  
Santos e Carina Berta Moljo, que trabalharam incansavelmente para que o mesmo acontecesse.  
O trabalho em nossa faculdade nunca se faz de forma isolada, ele é sempre coletivo, portanto,  
agradecemos a participação dos professores/as que se envolveram na avaliação e nas mesas de  
apresentação de trabalhos. Agradecemos, igualmente, aos nossos técnicos administrativos, em  
especial, Luciano de Souza – responsável pelo suporte audiovisual presencial e transmissão ao  
vivo pelo canal do Youtube –, e a Emília Nunes e Flávio Sereno – responsáveis pela  
comunicação com os nossos convidados e compra de passagens. Quem conhece a burocracia  
dos sistemas de compra de passagens e diárias nas universidades federais, sabe como isto pode  
ser exaustivo. Agradecemos à Coordenação da Pós-graduação, professora Edneia Oliveira, pelo  
apoio à realização do evento. Especialmente, agradecemos aos palestrantes que participaram no  
Seminário, seja online, seja presencialmente, que abrilhantaram nosso seminário.  
No Dossiê, vocês terão acesso às conferencias, agora modificadas para publicação.  
Revista Libertas, Juiz de Fora, v. 23, n.1, p. IX-XV, jan./jun. 2023. ISSN 1980-8518  
Editorial  
Agradecemos a todos aqueles que enviaram e avaliaram trabalhos, ao financiamento da Capes  
e da UFJF. As palestras, assim como os Anais do Evento também podem ser acessados no siteda  
Faculdade de Serviço Social e no canal do Youtube da Faculdade de Serviço Social:  
Como enunciamos no começo deste editorial, este número expressa não só retorno das  
atividades coletivas realizadas em setembro de 2022, mas também a finalização de uma gestão  
à frente da Revista. Em 2019 a Comissão editorial era composta pelas professoras Mônica  
Grossi e Elizete Menegat. Com a saída da professora Elizete para pós-doutorado e depois a  
professora Mônica para pós-doutorado, uma nova comissão foi formada em 2019, ingressando  
os professores Carina Berta Moljo e Ronaldo Vielmi Fortes e, em 2020 juntou-se a esta equipe  
editorial o professor Alexandre Aranha Arbia. Umas das principais preocupações desta equipe  
foi a de inserir a Revista na plataforma OJS, incorporar novos indexadores e manter a qualidade  
que a Libertas já possuía, buscando melhorar a avaliação “nos Qualis da vida”. Foram anos de  
muito trabalho coletivo. Ainda estávamos começando a trabalhar juntos, a criar rotinas de  
trabalho, de editoração etc., quando a pandemia nos tomou por assalto e, mesmo que inseguros,  
precisávamos colocar a Revista em circulação. ALibertas assumiu um novo formato, com novas  
sessões e nova diagramação. Incluímos a sessão Dossiê – que recebe artigos por temáticas  
designadas pela linha editorial da Revista –, mantivemos o fluxo continuo e incluímos a sessões  
de Tradução dos Clássicos, Entrevista e Relatos de Experiências. Acreditamos que o fruto do  
trabalho realizado se expressa na qualidade da Revista, na qualidade dos autores que a  
escolheram para publicar seus artigos e na parceria com nossos avaliadores, que sempre  
atenderam aos nossos pedidos.  
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Assim, este número de 23.1 marca a renovação da Comissão Editorial da Libertas,  
encerrando-se a participação dos professores Ronaldo Vielmi e Carina Moljo. A nova Comissão  
será composta pelas professoras Isaura Aquino e Mônica Grossi, além do TAE Luciano de  
Souza, como editor-executivo.  
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Desejamos êxitos na nova etapa da Revista Libertas!  
Michael Löwy, autor que dispensa apresentações, abre esse volume da revista. O texto  
em questão, intitulado A ofensiva do capitalismo neoliberal contra a Mãe Terra, aborda um dos  
problemas centrais de nossos dias, qual seja, o problema da sustentabilidade da vida no planeta  
sob a égide da organização societária do capital. Denunciando o caráter destrutivo da ordem  
capitalista, o autor destaca a guerra do capital contra a natureza e a humanidade, que se  
Revista Libertas, Juiz de Fora, v. 23, n.1, p. IX-XV, jan./jun. 2023. ISSN 1980-8518  
Editorial  
manifesta de maneira mais evidente na mudança climática, que se tornou em nossos dias uma  
questão política e social fundamental. O texto ressalta a necessidade do fortalecimento das lutas  
antissistêmicas e radicais, como é o caso do ecossocialismo, insistindo na urgência de  
compartilhar experiências coletivas que afirmem a possibilidade de um outro modo de vida.  
Elaine Behring, autora de grande expressão na área do Serviço Social, aborda a temática  
da crise e da decadência da reação burguesa, iniciada no ciclo da depressão capitalista, cujos  
primórdios datam de 1970. O período em questão é marcado pela reestruturação produtiva, pela  
mundialização financeira, pelas contrarreformas do Estado – aspectos que demarcam em seu  
conjunto os traços mais evidentes da forte ofensiva capitalista. Tal ofensiva voltou-se  
diretamente contra a classe trabalhadora, intensificando a exploração da força de trabalho, o  
ataque direto aos salários diretos e indiretos da classe trabalhadora. Assim como Michael Löwy,  
a autora também destaca a intensificação da crise climática e ambiental e a eclosão da crise  
sanitária provocada pelo corona vírus. O texto demonstra o caráter mundial das crises de nossos  
dias, porém corretamente adverte para o caráter mais perverso de suas consequências no Brasil,  
expressado pela ascensão do ultraneolibelismo e pelo neofascismo, característica fundamental  
do governo iniciado em 2019.  
O renomado economista argentino, Cláudio Katz, autor de vasta obra sobre a economia  
da América Latina, aborda em seu artigo as características das novas formas de resistência  
popular do continente latino-americano. O autor destaca que as revoltas populares foram  
capazes de conter a restauração conservadora e recriaram cenários progressistas que  
combateram, de maneira efetiva, a contraofensiva implementada pela direita. O artigo traceja  
importantes levantamentos sobre a dimensão desses conflitos na América Latina, abordando  
cenários de vários países, como Bolívia, Chile, Peru, Honduras, Colômbia, sem, entretanto,  
deixar de destacar a especificidade dos acontecimentos que se deram em países como México,  
Argentina e Brasil.  
XI  
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Berta Granja e Nuno Pires, autores de nacionalidade portuguesa, defendem a tese da  
importância e necessidade da internacionalização dos debates sobre as questões sociais por  
meio da construção de disciplinas acadêmicas e profissionais. Consideram que os  
conhecimentos científicos são capazes de orientar e suportar a ação do profissional, na medida  
em que pode conferir a eles um instrumental teórico, de caráter universal, ao pautar temas que  
se reportem às dinâmicas e processos econômicos, sociais, políticos e culturais. O artigo destaca  
os desafios da internacionalização das questões e procura apresentar contribuições possíveis  
que podem advir a partir dos trabalhos e atividades que hoje vêm sendo implementadas na  
Europa e, em particular, em Portugal.  
Revista Libertas, Juiz de Fora, v. 23, n.1, p. IX-XV, jan./jun. 2023. ISSN 1980-8518  
Editorial  
O artigo Coorperação internacional em Serviço Social, de Maria Lucia Garcia e Gary  
Spolander, propõe a revisão da literatura que versa sobre o tema da cooperação internacional  
no Serviço Social. Com ênfase nos tema da cooperação internacional em pesquisa e nas ações  
de cooperação internacional empreendidas na área do Serviço Social, os autores realizaram  
importante investigação na base de dados Scopus, nos Periódicos da Capes e no Google  
Acadêmico. Os autores destacam que o processo de internacionalização é parte significativa  
das diretrizes atuais do Serviço Social e salientam a assimetria pela qual esse processo vem se  
dando, enfatizando a necessidade do adensamento do debate. As reflexões contribuem de  
maneira significativa para traçar um diagnóstico do processo de internacionalização que vem  
ocorrendo na área e viabiliza reflexões sobre os caminhos dos futuros desenvolvimentos das  
pesquisas no Serviço Social.  
Sergio Quintero Lodoño, professor da Universidad de Caldas, discute em seu texto  
Convergencias de la reconceptualización del trabalho social em Argentina, Chile e Colombia¸  
os pontos de convergência da atuação do Serviço Social com o Movimento de Reconceituação,  
originado no Brasil. A partir de um minucioso levantamento, o autor destaca pelo menos oito  
pontos da atuação do Serviço Social nesses países, que confluem com as diretrizes do  
movimento oriundo do Brasil. O texto traz um balanço interessante do movimento nesses países  
e contribui de maneira significativa para pensar as tendências internacionais do movimento na  
América Latina.  
XII  
No artigo Entre os objetivos profissionais e institucionais, de Rodrigo José Teixeira, o  
leitor encontrará uma importante contribuição sobre as condições atuais de assalariamento dos  
assistentes sociais. O artigo problematiza as tendências atuais que vêm ocorrendo nesse campo  
e adverte para a necessidade de enfrentar e resistir aos desafios que se colocam diante da  
categoria. Tanto no que concerne à condição do assistente social, como trabalhador, quanto nos  
aspectos que ferem diretamente os princípios do código de ética do Serviço Social, a ação de  
combate e resistência às tendências atuais implica criar alternativas que visem garantir a relativa  
autonomia do trabalho profissional e fortalecer a profissão do assistente social.  
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Asequência de sete artigos que confere seguimento à seção de fluxo contínuo que, como  
de praxe, visa abrir espaço para uma ampla série de temas que atravessam a prática e as  
reflexões teóricas no Serviço Social. Nesses textos, o leitor encontrará temas que tratam desde  
a violência social em suas vastas e tristes matizes, passando pelas questões sociais da família e  
o exacerbamento dos conflitos sociais advindos do capitalismo, até o problema da disputa no  
Estado pelo fundo público.  
Revista Libertas, Juiz de Fora, v. 23, n.1, p. IX-XV, jan./jun. 2023. ISSN 1980-8518  
Editorial  
Na temática sobre a violência encontramos dois artigos. O primeiro deles, Violência sem  
véu, de Alexandra A. L. T S. Eiras e Joyce Queiroga Resende, trata o tema de maneira mais  
ampla, buscando trazer elementos que permitam discutir sobre o papel – nefasto – do fenômeno  
da violência na sociedade brasileira. Resgatando autores consagrados que lidaram com o  
assunto – Chaui, Ianni, Mione Sales, José Fernando Silva –, as autoras destacam como tão  
delicada problemática atravessa constantemente o exercício profissional do assistente social.  
Já o segundo artigo que fala sobre o problema da violência, Mortes Violentas  
Intencionais dos/as negros/as brasileiros/as, de Francisco Flavio Eufrazio, aborda a dimensão  
das mortes contra negros/as. O resgate da literatura sobre o tema contribui para a compreensão  
de como o racismo, a criminalização, a segregação e a perseguição vêm contribuindo para o  
aumento das Mortes Violentas Intencionais (MVI’s) no Brasil.  
Ana Paula Bagetti Zeifert e Schirley Kamile Paplowski, no artigo “Eu sou grande, você  
é pequena” retomam a discussão decisiva e delicada sobre o direito da criança e os fundamentos  
jurídicos estabelecidos em nossos país para a sua concretização. O artigo apresenta a hipótese  
da existência de pressupostos legais estabelecidos muito recentemente e destaca a influência da  
Doutrina da Proteção Integral como fundamento das medidas jurídicas que estão sendo  
pensadas para a abordagem dos direitos das crianças e dos adolescentes. As reflexões das  
autoras têm a intenção de evidenciar o caráter elementar do direito ao respeito das crianças e  
dos adolescentes e refletir e fomentar para a necessidade de práticas que se alinhem a esses  
preceitos.  
XIII  
No artigo Reflexões sobre o dueto família e gênero na política da saúde brasileira, as  
três autoras – Edilane Bertelli, Keli Regina Dal Prá e Michelly Laurita Wiese – analisam a  
relação entre família e gênero como dimensões constitutivas das políticas de proteção social,  
conferindo ênfase à estruturação da política de saúde no contexto atual brasileiro. As autoras  
demonstram o cerne constitutivo das políticas que se ergue sobre a base da reflexão centrada  
na família, sem, no entanto, considerar a “consubstancialidade” das relações concernentes às  
classes sociais, à dimensão das questões étnico-raciais e de gênero. Sobre a ótica da revisão  
bibliográfica de estudos feministas as autoras tecem decisivas e incontornáveis  
problematizações sobre o problema, provocando o debate e destacando a urgência de rever as  
tendências hoje hegemônicas nas políticas de saúde implementadas no país.  
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Os três artigos subsequentes abordam temas concernentes a questões econômicas. Em  
O fundo público e a relação público x privado na política de saúde em Campina Grande/PB,  
Jaidete de Oliveira Correia eAlessandra Ximenes da Silva, trazem uma contribuição importante  
para o tão debatido tema da disputa pelo fundo público. Por meio de um amplo e preciso  
Revista Libertas, Juiz de Fora, v. 23, n.1, p. IX-XV, jan./jun. 2023. ISSN 1980-8518  
Editorial  
levantamento de dados, a análise das autoras evidencia as tendências ocorridas no município  
em questão, da contrarreforma na política de saúde, que têm dado indícios significativos da  
perda do caráter público e universal no serviço de saúde.  
Priscilla Medeiros contribui em seu texto para o problema da Expropriação em tempos  
de capitalismo, dando destaque à questão do trabalho reprodutivo e seu impacto direto na vida  
das mulheres. Dando ênfase ao prisma histórico, o artigo visa demonstrar como a submissão do  
trabalho feminino constituiu elemento significativo para a geração do valor no sistema  
capitalista de produção. Trazendo à luz as discussões em torno dos temas do patriarcado e do  
racismo, o artigo demonstra que além do trabalho reprodutivo, pesam sobre as mulheres as  
opressões, explorações, dominações e precarizações que historicamente incidiram sobre elas, e  
como tais dimensões exploratórias do capitalismo continuam em vigência em nossos dias.  
O artigo de Everton Melo, Estado brasileiro e a subserviência ao capital, aborda a  
função histórica assumida pelo Estado brasileiro, sempre a serviço dos interesses do capital  
nacional e internacional. A crítica resgata – por meio de uma análise marxista – a gênese,  
formação e desenvolvimento do Estado no Brasil, analisando o ancoramento de sua trajetória  
aos ditames do sistema do capital. A abordagem histórica permite demonstrar, apesar dos novos  
rumos, como a tendência majoritária dessa subserviência se mantém em nossos dias  
subordinada aos auspícios ferozes do neoliberalismo.  
XIV  
Na seção Entrevista, a professora Carina Berta Moljo colhe o depoimento de Esther  
Luíza de Souza Lemos, que por meio do resgate de sua experiência no Serviço Social, tece  
considerações de grande relevância sobre os processos de internacionalização na área.  
Profissional com larga participação em diferentes órgãos internacionais, em seu depoimento a  
entrevistada aborda elementos decisivos que permitem ampliar a reflexão sobre a dinâmica da  
organização política nacional e internacional da categoria. Esther Lemos destaca em suas  
considerações o Movimento de Reconceituação como perspectiva crítica decisiva que  
viabilizou, como um “divisor de águas”, a inflexão e rearticulação internacional do Serviço  
Social, com maior ênfase na América Latina e no Caribe. O resgate da memória do Movimento  
de Reconceituação, suas virtudes e percalços ao longo de sua trajetória histórica, são decerto  
elementos fundamentais que contribuem sobremaneira para a compreensão da dimensão dessa  
grande contribuição brasileira para o estabelecimento dos rumos críticos que o Serviço Social  
adquiriu e vem adquirindo no mundo.  
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A seção “Tradução dos Clássicos” foi criada com o objetivo de traduzir textos inéditos  
no Brasil, visando publicar artigos de grande relevância histórica, cujo intuito é resgatar a  
Revista Libertas, Juiz de Fora, v. 23, n.1, p. IX-XV, jan./jun. 2023. ISSN 1980-8518  
Editorial  
memória de debates importantes que marcaram determinadas épocas. O artigo de Pierre Villar  
– importante historiador francês – que compõe a seção, segue essa linha estabelecida, na medida  
em que visa retomar o debate provocado por ocasião do lançamento da influente obra Palavras  
e as coisas (publicada originalmente em 1966 pela editora Gallimard), de Michel Foucault.  
Escrito em 1967 na importante revista do Partido Comunista Francês, La Nouvelle Critique,  
Villar se contrapõe à tese foucaultiana da ausência da economia política no século XVI, XVII  
e XVIII, uma das teses centrais por meio da qual Foucault argumenta e busca sustentar sua  
propositura da episteme, forma descontínua das estruturas do saber que permeiam dados  
contextos históricos. Por meio de dados históricos, em um retorno direto a diversas obras que  
lidaram com a questão da economia ao longo de séculos, Villar demonstra as inconsistências  
das teses de Foucault. O rigor das demonstrações não foi suficiente para desbancar a  
repercussão que Palavras e as coisas exerceu na época, e continua exercendo em nossos dias.  
O resgate do artigo visa retomar o debate e insistir na necessidade do rigor em toda reflexão  
científica e filosófica. Ao mesmo tempo, adverte para o problema do papel que as obras podem  
desempenhar historicamente, servindo muito mais para atender às expectativas da atmosfera  
dos tempos, do que propriamente atuar como contribuição para o debate da apreensão efetiva  
da realidade. Em termos mais diretos, fica a questão: uma vez demonstrado o erro, por qual  
motivo persistem no erro? É preciso compreender a gênese e a função social de determinados  
pensamentos.  
XV  
Desejamos a todos uma boa leitura e, no ensejo, reafirmamos nosso compromisso em  
propiciar um espaço de qualidade para divulgação das pesquisas e teses desenvolvidas na área  
do Serviço Social.  
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Ronaldo Vielmi Fortes  
Carina Berta Moljo  
Isaura Gomes de Carvalho Aquino  
Mônica Aparecida Grossi  
Revista Libertas, Juiz de Fora, v. 23, n.1, p. IX-XV, jan./jun. 2023. ISSN 1980-8518  
DOI 10.34019/1980-8518.2023.v23.41356  
A ofensiva do capitalismo neoliberal contra a  
Mãe Terra1  
The offensive of neoliberal capitalism against Mother Earth  
Michael Löwy*  
Resumo: Vivemos uma ofensiva do capital, sob  
a forma neoliberal, contra os serviços públicos,  
os pobres, os trabalhadores, as mulheres, os  
indígenas e, enfim, contra a esmagadora maioria  
da população no Brasil, na América Latina e no  
mundo. Este artigo concentra-se na ofensiva do  
capitalismo neoliberal contra a "Mãe Terra",  
revelando-se como uma verdadeira guerra  
contra a natureza e a humanidade, cujo aspecto  
mais dramático é a mudança climática, uma  
questão política e social fundamental do século  
Abstract: We are witnessing an offensive by  
capital, in its neoliberal form, against public  
services, the poor people, workers, women,  
indigenous people, and ultimately, the majority  
of the population in Brazil, Latin America, and  
the world. This article focuses on the offensive  
of neoliberal capitalism against "Mother Earth,"  
revealing itself as a true war against nature and  
humanity, with the most dramatic aspect being  
climate change, a fundamental political and  
social issue of the 21st century. The  
strengthening of anti-systemic and radical  
alternatives, such as eco-socialism, affirms the  
possibility of a different way of life.  
XXI.  
antissistêmicas  
O
fortalecimento de alternativas  
radicais, como  
e
o
ecossocialismo, e de experiências coletivas  
afirmam a possibilidade de um outro modo de  
vida.  
Palavras-chaves: Capitalismo neoliberal; Crise  
Keywords:  
Neoliberal  
capitalism;  
ambiental  
e
social; Mudança climática;  
Environmental and social crisis; Climate  
Ecossocialismo; Lutas socioecológicas.  
change;  
Eco-socialism;  
Socio-ecological  
struggles.  
Recebido em: 21/03/2023  
Aprovado em: 02/06/2023  
1 Transcrição da Conferência de Abertura do VII Seminário Internacional - Lutas Sociais, Ofensiva Ultraneoliberal  
e Serviço Social: resistências e articulações internacionais, promovido pela Faculdade de Serviço Social da UFJF.  
Transcrição e adaptação por Luciano Cardoso de Souza.  
*
Sociólogo, formado em Ciências Sociais na Universidade de São Paulo, com Doutorado na Universidade de  
Paris. Diretor emérito de pesquisas do Centre National de la Recherche Scientifique (CNRS), na França. ORCID:  
Revista Libertas, Juiz de Fora, v. 23, n.1, p. 1-9, jan./jun. 2023. ISSN 1980-8518  
Michael Löwy  
Introdução  
Bem, primeiro eu gostaria de agradecer o convite da Faculdade de Serviço Social da  
UFJF, por me dar a oportunidade de realizar esse diálogo. Aliás, as faculdades de Serviço Social  
no Brasil estão na vanguarda de uma ciência social comprometida com as causas populares,  
uma coisa bastante interessante, que não existe na França, por exemplo; não tem nada parecido.  
Então, é realmente para mim um prazer colaborar com a Faculdade de Serviço Social nesse  
seminário.  
Nós assistimos a uma ofensiva capitalista que tem tomado nas últimas décadas a forma  
do neoliberalismo, que é uma das formas, digamos, mais violenta, mais brutal do sistema  
capitalista. Mas o problema no fundo é o próprio sistema. Bem, assistimos então a uma ofensiva  
do capital, sob a forma neoliberal, contra os pobres, contra os trabalhadores, as mulheres, os  
indígenas, enfim, à esmagadora maioria da população no Brasil, na América Latina e no mundo,  
mas aqui na América Latina no Brasil em particular.  
Essa é uma ofensiva contra os pobres, contra o “pobretariado”, eu diria, e contra os  
serviços públicos, que, para o neoliberalismo, são pura perda, puro gasto inútil: “Não  
precisamos de serviços públicos; existem tantos serviços privados, então para quê ter serviço  
público?” Há uma ofensiva já há anos contra os serviços públicos, inclusive contra o Serviço  
Social, naturalmente, mas há também uma ofensiva do capitalismo neoliberal contra “a nossa  
casa comum” – essa é a expressão do Papa Francisco: “a nossa casa comum”, isto é, a Mãe  
Terra. Então eu gostaria de concentrar as minhas observações nesse aspecto: a ofensiva do  
capitalismo neoliberal contra a Mãe Terra, isto é, contra a natureza, pois estamos testemunhando  
uma verdadeira guerra levada cabo pelo capitalismo neoliberal contra a natureza. Mas como  
nós não podemos viver sem a natureza, é uma guerra contra nós, contra a humanidade. Essa é  
a situação que nós estamos vivendo, quer dizer, a lógica capitalista de expansão ilimitada está  
levando à destruição do meio ambiente, em particular, a uma crise ecológica, cujo aspecto mais  
preocupante, mais dramático, é a mudança climática.  
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A mudança climática é, como nos advertem os cientistas do grupo internacional de  
estudo do clima, uma ameaça sem precedente na história da humanidade. Você pode voltar  
centenas de milhares de anos atrás e não vai encontrar nada parecido com o que pode se perfilar  
nas próximas décadas. É uma ameaça que resulta, como apontam os cientistas, das emissões  
com gases do efeito estufa, CO2, metano, etc., produto da queima do petróleo, do carvão, do  
gás, etc., da agricultura agroindustrial, etc., aspectos que são fundamentais no sistema  
capitalista há dois séculos, só que com o neoliberalismo, se multiplicaram por dez. Então essa  
acumulação de gases na atmosfera está provocando a subida da temperatura. Dizem os cientistas  
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A ofensiva do capitalismo neoliberal contra a Mãe Terra  
que se esse aumento de temperatura superar 1,5°C, nós vamos entrar num processo  
incontrolável de aquecimento global, cujas consequências são dramáticas.  
Dois ou três exemplos, de processos que já começaram, que não são para daqui a cem  
anos, mas já começaram, como a fusão das calotas polares, os gelos da Groenlândia e da  
Antártida. Se o conjunto desses gelos entrar em fusão, o mar vai subir uns cem metros, mas  
basta ele subir alguns metros – quatro, cinco, seis metros – para que as principais cidades da  
civilização humana, Rio de Janeiro, Recife, Nova York, Amsterdam, Londres, Veneza, Hong  
Kong, etc., fiquem debaixo da água. Esse processo já começou, está se acelerando, a fusão dos  
gelos polares. Junto com isso, outro processo é a desertificação, que também já começou.  
Incêndios de florestas em grande escala pelo mundo afora. Rios secando, etc., e o aumento da  
temperatura, que já chegou na Índia e em outros lugares a 50°C. Quem é que pode viver com  
50°C? Então se coloca a pergunta: a partir de que temperatura a vida humana já não será  
possível nesse planeta? É uma pergunta que se coloca, mas não temos resposta.  
Entre parênteses: parece que há alguns anos atrás, o governo americano pediu ao  
Pentágono uma proposta sobre o que fazer, se com a mudança climática a vida se tornar  
impossível nesse planeta e a única proposta deles foi mandar um foguete para o planeta Marte.  
Nesse foguete vão o presidente dos Estados Unidos, o Congresso, o Senado, o estado maior do  
Exército, alguns cientistas, etc. Fazer o quê no planeta Marte? Não existe “planeta B”, o único  
planeta é este em que nós estamos. Então precisamos protegê-lo, ou melhor, proteger a vida  
humana que está sendo ameaçada.  
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Quem é responsável por esta catástrofe? Os cientistas não falam que é o capitalismo,  
eles dizem que é o atual sistema econômico. É o que diz também o Papa Francisco na Carta  
Encíclica Laudato si (2015), onde afirma que o atual sistema econômico globalizado em escala  
mundial, baseado na propriedade privada e na maximização do lucro, a qualquer preço, é  
responsável pela desigualdade social, pela injustiça social e pela destruição da nossa casa  
comum – que é a natureza – e pela mudança climática. Ele aponta bem isso. Então, o  
responsável é o atual sistema. Tem uma moça, que vocês devem ter ouvido falar, Greta  
Thunberg, uma jovem extraordinária da Suécia, que deve estar com dezessete anos agora. Ela  
fez várias declarações, e uma delas eu acho muito pertinente, que diz assim: é matematicamente  
impossível resolver a crise ecológica, a crise do aquecimento global, nos quadros do atual  
sistema econômico. É isso, está dito, em poucas palavras, é exatamente isso. Só faltou dar  
nomes aos bois do atual sistema capitalista na sua fase neoliberal. Essa é a situação em que nós  
estamos, uma situação grave, dramática. Diante disso, o que fazem os responsáveis (os  
governos do planeta, quase todos, com pouquíssimas exceções a serviço da acumulação do  
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Michael Löwy  
Capital)? Eles se reúnem a cada ano nas conferências das partes, a Conferência das Nações  
Unidas sobre Mudanças Climáticas (COP), para discutir o que fazer em relação à mudança  
climática. Já são 26 reuniões, já fazem 26 anos que eles se reúnem. O resultado é muito próximo  
de zero, os resultados são declarações, algumas até boas declarações – no sentido de que  
precisamos fazer tudo para impedir que a temperatura suba mais de 1,5°C, mas na prática,  
praticamente nada.  
Aprova é que a acumulação de gás não só não diminuiu, mas aumentou e se intensificou.  
Só recuou um pouco na época da crise da pandemia de covid, mas já retomou em grande escala.  
Então, nada. Aliás, na última conferência das partes (2021), que teve lugar em Glasgow, na  
Inglaterra, o responsável pela conferência, que é um alto funcionário inglês, conservador, na  
hora de apresentar os resultados da conferência de Glasgow – a vigésima sexta – ele  
simplesmente chorou. Esse é o resumo da política dos governos, dos representantes do sistema,  
em última análise. É realmente de chorar. No fundo, a mentalidade dos grandes proprietários,  
banqueiros, proprietários de multinacionais do petróleo, etc., e todos os ramos industriais  
relacionados com o petróleo – a indústria automobilística, química clássica, etc. No fundo, a  
atitude deles é aquela do Rei Luís XV, da França. Parece que um conselheiro do Rei Luís XV  
– que foi o rei que precedeu a Revolução Francesa – disse: Majestade, se a coisa continuar  
assim vai ter uma revolução na França. Ele previu o que iria acontecer. Então o rei respondeu:  
Olha, depois de mim, que venha o dilúvio. Essa é a atitude dos membros da casta dirigente, em  
particular, o que chamo de oligarquia fóssil, ligada às empresas do carvão, do petróleo, do gás,  
e tudo ao que é relacionado. O interesse deles, o problema deles, é garantir o lucro deste ano,  
do ano que vem e pronto. O resto é que “venha o dilúvio” e ele virá se a coisa continuar assim.  
O que foi o dilúvio da Bíblia senão a subida dos mares que submergiu tudo? Pois é o que pode  
acontecer. Então essa é uma ameaça dramática, sem precedente para todos nós, para toda a  
humanidade. Se o responsável por essa ameaça, se o responsável por essa crise é o atual sistema  
capitalista na sua fase neoliberal, precisamos pensar em alternativas antissistêmicas.  
Se a raiz do problema é o sistema capitalista neoliberal, então nós precisamos arrancar  
soluções radicais e arrancar o mal pela raiz. Precisamos atacar o problema pela raiz, e  
precisamos, portanto, de alternativas radicais. O ecossocialismo é uma dessas alternativas  
radicais, e na minha opinião, é a mais coerente. Então vou apresentar, em algumas palavras, o  
que é o ecossocialismo. Como diz a palavra, o ecossocialismo é uma conjunção entre as ideias  
fundamentais do socialismo revolucionário – com seus manifestantes mais interessantes desde  
Marx até hoje – e ao mesmo tempo, junto com as colocações fundamentais da ecologia – em  
particular, o diagnóstico da crise ecológica, etc. Marx já tinha tido a intuição de que o  
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A ofensiva do capitalismo neoliberal contra a Mãe Terra  
capitalismo é destruidor do meio ambiente. Em O Capital (1983) encontramos várias passagens  
que apontam para isso, mas não é para ele um tema fundamental, por uma razão muito simples:  
não era uma questão fundamental na época dele, pois estava começando o processo de  
destruição do meio ambiente. De maneira nenhuma não era uma questão fundamental e por isso  
na obra dele, tampouco. Já hoje, a coisa mudou, quer dizer, essa questão da crise ecológica, da  
catástrofe que se avizinha, a mudança climática, etc., é uma questão, talvez a questão política  
e social fundamental do século XXI. Temos que pensar o socialismo, e também o que é o  
capitalismo, em termos novos, pois são desafios novos. Por exemplo, o capitalismo, do ponto  
de vista dos marxistas ou socialistas, é um sistema brutal de exploração, de injustiça social, e  
continua sendo cada vez pior. Vocês conhecem os estudos da Oxfam, que mostram que dez  
bilionários do mundo têm tanto patrimônio quanto metade da humanidade. É uma coisa  
totalmente absurda.  
Além da injustiça social, o capitalismo é um sistema destruidor da nossa casa comum,  
da natureza, portanto da vida. Assim, também temos que entender o socialismo de uma nova  
forma, quer dizer, o ecossocialismo é um socialismo que entende que a ecologia não é um  
aspecto entre vinte e outros do programa, mas é um elemento central da nossa concepção do  
que é o socialismo. Então do socialismo nós retomamos colocações fundamentais, como a  
propriedade coletiva dos bens de produção, a planificação democrática, o poder do trabalhador,  
etc., mas nós colocamos agora no centro da reflexão o respeito pela Mãe Terra – a ecologia –  
que implica em mudanças fundamentais, implica em uma verdadeira ruptura com os  
fundamentos da civilização capitalista industrial moderna, em particular, na sua forma  
neoliberal, mas não só. Por exemplo, para começar pelas fontes de energia, precisamos acabar  
com o petróleo, o carvão, o gás; claro que não vai se fazer em uma semana, um processo de  
transição, mas precisamos sair disso antes que seja tarde demais. É uma tarefa urgente. Nós  
precisamos mudar também todo o sistema produtivo, toda a lógica capitalista da produção, que  
é a de produzir mercadorias com obsolescência programada.  
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O que é obsolescência programada? Eu sempre conto a história da minha avó, que tem  
uma geladeira que durou 40 anos. Péssimo negócio para o fabricante de geladeira. Muito melhor  
para ele fabricar uma geladeira que quebra depois de cinco anos, que é a obsolescência  
programada. Então é isso que acontece hoje em dia: todas as mercadorias são programadas para  
você ter que substituí-las depois de poucos anos, o mais depressa possível para eles. É a lógica  
do capitalismo. Um capitalista que quiser continuar produzindo bens duráveis e reparáveis vai  
para a falência. Só ficam os outros, que produzem os bens com obsolescência programada e  
não reparáveis, onde não há possibilidade de conserto e tem de se jogar fora e comprar outro.  
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Michael Löwy  
Essa é a lógica do capitalismo, é claro. Então, precisamos sair disso, romper completamente  
com isso, produzir não mercadorias para lucro, mas valores de uso em função das verdadeiras  
necessidades da população e não das falsas necessidades criadas pela publicidade, que  
bombardeia constantemente “compre isso, compre aquilo”, etc. Então é uma mudança muito  
profunda que propõe o ecossocialismo. Na verdade, o ecossocialismo é um projeto de uma nova  
civilização, que rompe com a civilização capitalista industrial moderna. Uma nova civilização  
baseada em outros princípios – princípios de igualdade, solidariedade, respeito pela Mãe Terra  
– enfim, é uma outra maneira de viver, que não é a do “American way of life”, que o  
imperialismo quer estender por todo planeta.  
O ecossocialismo é uma proposta radical, uma proposta revolucionária, eu diria, mas  
ele não vai cair do céu. Só vai acontecer se nós começarmos a luta pela mudança aqui e agora.  
Só se começarmos a luta aqui e agora que talvez possamos fazer virar a mesa antes que seja  
tarde demais, porque o tempo está ficando curto. Então é uma esperança, é uma proposta, é uma  
aposta, eu diria, uma aposta no sentido de Pascal, que dizia “tem coisa que a gente não pode  
provar, não pode garantir, mas a gente tem que apostar”. É uma aposta na qual você se engaja  
toda sua vida. Mas como disse, é uma luta que começa aqui e agora e a estratégia ecossocialista  
é promover lutas, lutas ecossociais. O que é uma luta ecossocial? É uma luta que ao mesmo  
tempo é ecológica e social. Vou dar um exemplo que todos conhecem no Brasil: Chico Mendes.  
Chico Mendes, que era um socialista, um sindicalista socialista revolucionário, que organizou  
aquela “Aliança dos Povos da Floresta”, que era ao mesmo tempo uma luta social, em defesa  
do seu trabalho, dos seringueiros, dos camponeses, dos indígenas, e era uma luta em defesa da  
floresta, portanto uma luta ecológica. Então esse é um belo exemplo de lutas socioecológicas,  
e como esta, nós temos muitas no Brasil e na América Latina.  
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Por exemplo, temos hoje em dia no Brasil, lutas em torno da defesa da floresta  
amazônica, que é uma causa fundamental. Aí temos as lutas dos indígenas, que convergem com  
as lutas dos camponeses pobres sem terra, as comunidades de base. Essa luta na Amazônia é  
importantíssima, não só para a população da Amazônia, mas para todo o povo brasileiro, porque  
da Amazônia é que vêm os rios de chuva que trazem água para o sul do Brasil. Se acabar a  
Amazônia, vai ter seca no sul do Brasil, vai ter seca, como no Nordeste ou pior ainda. Então é  
uma causa de todo o povo brasileiro e é uma causa de toda humanidade, porque a Amazônia,  
como se diz, “é o pulmão do planeta” e sem a Amazônia, a catástrofe vai se acelerar. É uma luta  
muito importante, é uma luta socioecológica muito importante, junto com as outras lutas de  
comunidades indígenas, mas também na cidade.  
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Vou dar um exemplo de uma luta que é socioecológica nas cidades. Há alguns anos atrás,  
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A ofensiva do capitalismo neoliberal contra a Mãe Terra  
em São Paulo e em outras grandes cidades, houve um grande movimento de jovens, em cima  
de uma demanda, de uma palavra de ordem muito concreta em relação ao transporte, que é o  
passe livre. Como o preço do transporte está caro demais, boa parte da população pobre já não  
consegue pagar, sendo de péssima qualidade, tudo privatizado, verdadeiras máfias que o  
controlam. Então o projeto, a alternativa, é um sistema de transporte público de qualidade e  
gratuito. Com isso vai se reduzir muito a circulação de automóveis, que é uma das fontes de  
emissões de gases, porque as pessoas vão poder tomar um transporte coletivo. Essa foi uma luta  
socioecológica. Não triunfou, foi reprimida, mas ficou a palavra de ordem e, cedo ou tarde, vai  
reaparecer.  
Dessas lutas socioecológicas participam jovens, trabalhadores, população pobre da  
periferia, camponeses sem terra e participam comunidades indígenas – que têm um papel muito  
importante – e participem também mulheres, que têm um papel de vanguarda, porque elas são  
as primeiras vítimas da crise ecológica, porque elas que vão buscar água no rio, elas que vão  
colher os frutos na floresta. Então as mulheres são as primeiras vítimas e não é por acaso que  
elas estão na primeira linha dessas lutas socioecológicas. Essas lutas, aliás, são ferozmente  
reprimidas pelos governos, pelos militares, pelas polícias e pelos capangas dos proprietários de  
terra, das multinacionais, etc. Muitas vezes os dirigentes dessas lutas são assassinados, foi que  
o aconteceu com Chico Mendes, como sabemos. O mesmo aconteceu com a jovem Berta  
Cáceres (dirigente indígena de Honduras), que organizou as comunidades indígenas para resistir  
contra um projeto ecocida e foi assassinada. Ela não é a única. Há outros casos que se sucedem  
por toda a América Latina e não só. É uma luta difícil, porque o nosso adversário é muito  
poderoso, ele controla a imprensa, a televisão, as fábricas, os bancos, a terra, a polícia, os  
governos, controlam tudo. Mas, do nosso lado, potencialmente, temos a esmagadora maioria da  
população que tem interesse que as coisas mudem. Então nós temos esperança. Não podemos  
abandonar a esperança, e como dizia Bertolt Brecht, para terminar, “quem luta pode perder, mas  
quem não luta já perdeu”.  
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Pergunta da professora Viviane de Souza Pereira (FSS/UFJF): A transformação social  
que buscamos, que inclui o chamado ecossocialismo, faz-se necessariamente pela construção  
de uma outra forma de vida, que questione combustíveis, locomoção pela cidade, indústria  
automobilística, agronegócio, etc. Como você vê a possibilidade de construção desse processo  
de transformação no tempo de aprofundamento da barbárie que estamos vivendo, onde  
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Michael Löwy  
paradoxalmente o capitalismo parece ter tomado como nunca uma única forma de vida  
possível?  
Michael Löwy: O capitalismo, evidentemente, o sistema capitalista, a ideologia dele é  
que não existe outra forma de vida que não seja a capitalista. Já Margaret Thatcher tinha uma  
fórmula célebre, que em inglês é TINA – que são as iniciais de “There is no alternative” – não  
tem alternativa, o capitalismo é o único sistema possível. Só que isso é absurdo. A humanidade  
conheceu vários modos de produção, vários sistemas desde a Antiguidade até hoje, que foram  
se sucedendo. Nenhum sistema é o único possível, nenhum sistema é eterno; todos eles são  
produto histórico.  
Então, se o capitalismo é um produto histórico ele também pode ser historicamente  
superado pelo processo histórico; mas isso é uma batalha política, uma batalha cultural, uma  
batalha ideológica: convencer as pessoas de que outro modo de vida é possível. Essa batalha a  
gente leva com palavras, com discursos – como eu estou fazendo agora – com livros, com  
folhetos, com artigos, etc., mas também com experiências vividas. As pessoas que se organizam  
numa cooperativa agroecológica, por exemplo, do MST no Brasil, estão fazendo a experiência  
que é possível viver de outra maneira. Claro, você não está completamente fora do sistema, mas  
você está vivendo de outra maneira e, como essa, há muitas outras experiências. Além disso,  
também no curso das lutas, as pessoas sentem que nesse processo de luta estão se dando outras  
formas de viver em conjunto. Então é uma experiência de solidariedade, uma experiência de  
igualdade. Essas experiências são muito importantes.  
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Precisamos combinar os dois: o trabalho de educação – trabalho de educação popular,  
no sentido de Paulo Freire, que é muito importante – e um trabalho de organização das lutas e  
das experiências emancipadoras, que são parte desse combate para quebrar o monopólio  
ideológico, cultural, do sistema. Nós queremos também, através dessas lutas, provar de que é  
possível se viver de outra maneira. Por exemplo, essa luta que mencionei, do passe livre, é uma  
maneira de você provar que o automóvel não é único meio de transporte. Aliás, a maioria da  
população brasileira não tem automóvel, então não passa por aí. Através das experiências da  
agricultura camponesa, de cooperativas agroecológicas, etc., você tá mostrando que o  
agronegócio não é a única maneira de você cultivar a terra. Aliás, no caso do Brasil, o que o  
agronegócio produz? Ele produz commodities para o mercado mundial, quer dizer, produz gado  
– que vai para os McDonald's do mundo – e produz soja para engordar os porcos, também nos  
Estados Unidos, na Europa, etc. Enquanto isso, o povo come arroz e feijão, que é produzido  
pela agricultura camponesa. Essa que é a realidade. Nós precisamos romper com esse modo de  
produzir e de consumir. Precisamos apontar para a possibilidade de um outro modo de vida,  
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A ofensiva do capitalismo neoliberal contra a Mãe Terra  
através das lutas, das experiências localizadas, através de um trabalho de explicação e de  
educação popular. É uma tarefa grande, mas eu acho que nós temos a possibilidade de avançar,  
porque por mais que a classe dominante controle todos os meios de comunicação, mesmo assim  
a opinião da população, dos trabalhadores, dos pobres, das mulheres, muitas vezes escapa desse  
controle. Nós temos visto muitos exemplos na América Latina. Na Bolívia se elegeu um  
presidente, que era o Evo Morales, que não estava de jeito nenhum nos quadros da doutrina  
capitalista neoliberal. Ele não conseguiu fazer tudo o que queria, mas, enfim, o povo boliviano  
mostrou que podia fazer o contrário do que diziam a imprensa, a televisão, os meios de  
comunicação. Essa batalha é difícil, mas não é impossível. Então temos que avançar nesse  
caminho.  
Referências bibliográficas  
FRANCISCO, Papa. Carta Encíclica Laudato si: sobre o cuidado da casa comum. São Paulo:  
Paulinas, 2015.  
MARX, Karl. O Capital. Crítica da Economia Política. São Paulo: Abril Cultural (Os  
Economistas), 1983.  
ORGANIZAÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS - ONU. Conferência das Nações Unidas sobre  
Mudanças Climáticas (COP 26). Glasgow, Reino Unido, 2021.  
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Revista Libertas, Juiz de Fora, v. 23, n.1, p. 1-9, jan./jun. 2023. ISSN 1980-8518  
DOI 10.34019/1980-8518.2023.v23.41383  
Ofensiva ultraneoliberal no capitalismo em  
crise no Brasil e no mundo  
Ultra-neoliberal offensive in crisis-ridden capitalism in Brazil and  
worldwide  
Elaine Rossetti Behring*  
Resumo: O capitalismo em crise e decadência  
desencadeou uma reação burguesa monumental  
a partir do fim dos anos 70 do século XX na  
forma da reestruturação produtiva, da  
mundialização financeira do capital e das  
contrarreformas neoliberais dos Estados  
nacionais. A ofensiva capitalista se deu pela  
intensificação da exploração da força de  
trabalho, acompanhada das expropriações, mas  
também pela punção de valor por meio do  
endividamento público e privado. Outras faces  
do mesmo processo foram a intensificação da  
crise climática e ambiental, e a eclosão de uma  
crise sanitária sem precedentes e da guerra. O  
metabolismo destrutivo do capitalismo em crise  
tem mostrado suas facetas mais perversas e no  
Brasil se expressa pelo ascenso do  
ultraneoliberalismo e do neofascismo dos  
últimos anos. O presente artigo analisa esses  
processos a partir de uma perspectiva de  
totalidade.  
Abstract: Capitalism in crisis and decay  
triggered a monumental bourgeois reaction  
from de late 1970s onwards in the form of  
productive  
restructuring,  
the  
financial  
globalization of capital and the neoliberal  
counter-reforms of national states. The  
capitalista offensive was due to the  
intensification of the exploitation of the  
workforce, accompanied by expropriations, but  
alos by the puncture of value through public and  
private indebtedness. Other faces of the same  
process were the intesification of the climate  
and environmental crisis, and the outbreak of na  
unprecedented health crises and war. The  
destructive metabolismo of apitalism on crisis  
has shown ist most perverse facets and in Brazil  
it is expressed by the rise of ultraneoliberalismo  
and neofascismo in recente Years. This article  
analyzes thes processes from a perspective of  
totality.  
Palavras-chaves: Crise do capitalismo;  
Trabalho; Dívida pública; Crise ambiental;  
Ultraneoliberalismo.  
Keywords: Crisis of capitalism; Work; Public  
debt;  
Environmental  
crisis;  
Ultra-  
Neoliberalism.  
Recebido em: 05/03/2023  
Aprovado em: 07/06/2023  
* Assistente Social com mestrado em Serviço Social pela Universidade Federal do Rio de Janeiro e doutorado em  
Serviço Social pela Universidade Federal do Rio de Janeiro. Professora Titular da Faculdade de Serviço Social da  
Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ).  
Revista Libertas, Juiz de Fora, v. 23, n.1, p. 10-22, jan./jun. 2023. ISSN 1980-8518  
Ofensiva ultraneoliberal no capitalismo em crise no Brasil e no mundo  
Introdução  
“O sono da razão produz monstros”  
Goya  
O presente artigo é resultado, com revisões, de minha participação no VII Seminário  
Internacional Lutas Sociais, Ofensiva Ultraneoliberal e Serviço Social: resistências e  
articulações internacionais, promovido pela Faculdade de Serviço Social da UFJF, pela qual  
tenho tanto carinho e onde já estive muitas vezes presencialmente e, na ocasião, on line. Assim,  
abro este texto agradecendo pela oportunidade da contribuição ao Seminário e agora pela  
publicação, em nome das professoras Carina Moljo e Cláudia Mônica dos Santos, extensivo a  
todas as pessoas envolvidas na construção desse projeto. Foi uma também uma oportunidade  
de compartilhar ideias com o professor Michael Löwy, que teve um papel importantíssimo na  
minha trajetória, não só do ponto de vista acadêmico, mas sobretudo do ponto de vista do seu  
papel de na esquerda mundial. Ele fez parte da minha formação acadêmica e política, de forma  
que nossas contribuições ao Seminário tiveram muita conexão. Vamos ao tema da ofensiva  
ultraneoliberal do capital no mundo.  
Vejamos alguns elementos e argumentos acerca da ofensiva capitalista no contexto de  
sua crise estrutural, maturidade e decadência, e em busca desesperada, desenfreada – e  
destrutiva - pela valorização do valor. Este é um processo que incrementa a exploração da força  
de trabalho e seu pressuposto, as expropriações contemporâneas, tendo em vista a subsunção  
do trabalho às atuais condições de produção e reprodução do capital. Tal crise foi desencadeada  
no início dos anos 70 do século passado, o que Ernest Mandel caracterizou como uma onda  
longa com tonalidade de estagnação.  
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A partir dali o capitalismo mundial começa a encontrar com seus limites históricos e  
materiais. E, desde então, estamos vivendo num ambiente geral de estagnação com alguns  
momentos de stop and go, mas com a marca geral de uma certa estagnação do crescimento  
econômico. Mandel já sinalizava na sua obra principal – Capitalismo Tardio (1982) - o  
movimento geral do capital de queda das taxas de lucro. Por seu turno, tem-se uma reação  
burguesa à queda das taxas de lucro, o que estamos vivendo no conjunto dos países, porém,  
evidentemente, com as mediações das particularidades nacionais com suas formações histórico-  
sociais, e inserção na economia mundial. Isso traz marcas diferentes dessa experiência nos  
marcos nacionais. Está em curso uma crise estrutural do capital no contexto da decadência desse  
sistema de produção e reprodução social. Esta é contrarrestada por meio da busca destrutiva do  
capital pela valorização do valor, incrementando a exploração da força de trabalho e seu  
pressuposto, as expropriações (MARX, [1867] 1982; FONTES, 2010, BOSCHETTI (Org.),  
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Revista Libertas, Juiz de Fora, v. 23, n.1, p. 10-22, jan./jun. 2023. ISSN 1980-8518  
Elaine Rossetti Behring  
2018).  
Para além das formas clássicas de expropriação que permanecem acontecendo, há  
também formas contemporâneas, a exemplo da desproteção social tendo em vista a  
disponibilização da força de trabalho para o capital, com o foco na absorção precarizada e com  
padrões de reprodução rebaixados da força de trabalho, o que se oferta nas atuais condições de  
produção e reprodução do capital. O neoliberalismo constitui essa reação burguesa à crise do  
capital, onde a ofensiva sobre a classe trabalhadora será intensa e duradoura. O que venho  
caracterizando como ultraneoliberalismo tem inteligibilidade na particularidade brasileira  
recente (BEHRING, 2021). É nesse contexto geral de crise e de reação burguesa à crise, via  
neoliberalismo, que vão se produzir monstros, conforme a famosa frase de Goya, que  
acompanha uma das suas gravuras intitulada O Sono da Razão Produz Monstros.  
Alguns desses monstros estão nos perseguindo de forma implacável nesse início de  
Século XXI. Observemos alguns deles. No contexto em que há forças produtivas para alimentar  
o conjunto da população mundial temos, segundo o Relatório Estado da Segurança Alimentar  
e Nutrição no Mundo (2022), da Organização das Nações Unidas (ONU), que 9,8% da  
população passa fome no mundo. São cerca de 828 milhões de pessoas, quadro este que foi  
acirrado pela pandemia de Covid a partir de 2020, e pela guerra na Ucrânia, em 2022. Cerca de  
2,3 bilhões de pessoas convivem diuturnamente com a insegurança alimentar no planeta. Em  
função da inflação global dos alimentos, 3,1 bilhões de pessoas no mundo não têm condições  
de pagar uma dieta alimentar saudável. Portanto, entram nesse circuito os transgênicos da  
produção em massa de alimentos de baixa qualidade. Inclusive é a esse tipo de consumo  
destrutivo, esse produtivismo destrutivo, a que muitas vezes estão associados os programas de  
transferência monetária, que se tornaram centrais na política social contemporânea. Quem  
denuncia isso é um outro intelectual francês importante, e que nos deixou precocemente em  
2021, Michel Husson, criticando os programas de transferência monetária que estimulam um  
consumo de baixa qualidade e produtivista, destrutivo da natureza. Assim, existe uma conexão  
que precisamos observar inclusive quando defendemos e discutimos os programas de  
transferência monetária.  
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Dentro desse contexto da insegurança alimentar há desigualdades de gênero e raça, sob  
esses dados, e é importante chamar atenção que essas situações atingem mais deleteriamente as  
mulheres, e as populações negras em todas as partes do mundo; e os imigrantes que hoje se  
deslocam pelo mundo, especialmente em direção à Europa e Estados Unidos, buscando  
melhores condições de vida. Já em países como o Brasil, marcados pelos seus cerca de 400 anos  
de escravização, esta é uma marca indelével da nossa formação social. Aqui, este país de  
Revista Libertas, Juiz de Fora, v. 23, n.1, p. 10-22, jan./jun. 2023. ISSN 1980-8518  
Ofensiva ultraneoliberal no capitalismo em crise no Brasil e no mundo  
maiorias negras – fazendo a crítica do IBGE – boa parte da classe trabalhadora brasileira é  
duramente atingida por essas condições, isso tem corte de gênero, tem corte de raça. E todas as  
estatísticas no Brasil mulheres negras e homens negros estão na ponta dos ataques e dos  
impactos destrutivos dessa ofensiva burguesa. Contudo, é preciso sublinhar, essa questão da  
insegurança alimentar atinge duramente a infância comprometendo o devir. Isso é uma espécie  
de hipoteca do futuro: o neoliberalismo é isso, o verdadeiro Exterminador do Futuro, fazendo  
alusão ao filme homônimo. No caso das pessoas idosas, esse processo tem uma relação  
profunda com a desproteção social.  
Vejamos de um outro ângulo: a condição do trabalho e dos trabalhadores neste  
capitalismo que foi caracterizado como tóxico por Michael Husson. Ricardo Antunes, em seu  
Capitalismo Pandêmico (2022), aponta para uma nova onda de devastação do mundo do  
trabalho – o que ademais vem denunciando no conjunto de sua pesquisa e obras recentes. Sob  
o jugo de um sistema de metabolismo antissocial do capital, tendo em vista uma oferta da força  
de trabalho em quaisquer condições e a qualquer custo para a extração de mais valia, estão em  
curso processos destrutivos. No limite, estes resultam na fome já referida, que guarda relação  
íntima com o pauperismo. Aqui operam as tendências de: rebaixamento generalizado do peso  
dos salários sobre o PIB, diga-se, do fundo de reprodução da força de trabalho, o que tende a  
ser maior nos países de capitalismo dependente, marcados pela superexploração da força de  
trabalho para compensar os termos de troca no mercado mundial, como nos ensina Marini  
(1973); uma ofensiva tecnológica (a revolução 4.0), que além de ampliar a expulsão de trabalho  
vivo na produção, e corroborar para as taxas de desemprego, empurra a força de trabalho para  
o monumental exército de reserva que vem se formando, e também para a uberização e  
precarização do trabalho. Para Antunes, terceirização, flexibilidade e informalidade passaram a  
fazer parte do léxico permanente das corporações. E, junto a essas tendências, há a destruição  
dos direitos do trabalho, com agressivas contrarreformas trabalhistas e de direitos sociais,  
configurando o que Fontes (2010) caracteriza como expropriações secundárias. São criaturas  
do capitalismo em crise e decadência, que existem para “aviltar, desvertebrar, desorganizar,  
isolar, fragmentar e fraturar” a classe que vive do trabalho, na análise de Antunes. Encontrar  
emprego e trabalho em condições dignas nesse contexto se tornou uma espécie de privilégio  
dos indivíduos que tem mérito – segundo a apologética neoliberal – e impulso empreendedor  
no darwinismo social que se instaura, no mundo do horror econômico que já denunciava há  
algum tempo a crítica visceral de Viviane Forrester, em livro homônimo.  
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O fato é que, nas formas brutais do capitalismo contemporâneo em crise e decadência,  
que combina a queda tendencial da taxa de lucros com o aumento imediato da massa de lucros  
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Elaine Rossetti Behring  
– uma convivência que pode acontecer, como nos explica Marx no Livro III de O Capital –,  
uma das primeiras “causas contrariantes” à queda tendencial da taxa de lucros desencadeadas  
pelo capital e elencadas por Marx é a elevação da exploração da força de trabalho, e a  
compressão dos salários abaixo do valor, seja pela redução do valor de componentes da cesta  
básica de reprodução, seja pela imposição de derrotas sindicais e políticas à classe trabalhadora.  
Para Marx, as reações do capitalismo às suas tendências de conflito entre “agentes antagônicos”  
instauram as crises como “soluções violentas das contradições existentes”; no entanto, ao  
buscar superar suas barreiras imanentes, são mobilizados meios que as recolocam em escala  
mais ampliada. Esse processo não é automático, pois que para Marx o capital é, sobretudo, uma  
relação social. Portanto, estamos falando de um processo histórico e social, cujos  
desdobramentos e perenidade ou não, estão nas mãos de homens e mulheres que podem fazer  
e fazem a sua história, ainda que não nas condições escolhidas. Nesse sentido, esses processos  
precisam ser analisados numa perspectiva de totalidade, que articula estrutura e sujeitos,  
determinações materiais e história, para assim encontrarmos as mediações e contradições a  
serem dinamizadas por um projeto emancipador e de superação desta ordem decadente, partido  
da ideia marxiana de que o capital é uma relação social, e nesse sentido, não é perene ad  
infinitum. Quem pereniza este mundo bárbaro é um Francis Fukuyama, que decretou o “fim da  
história”; ou Margaret Thatcher, que vaticinou que não existe sociedade, mas apenas indivíduos.  
Cabe à esta geração no presente encontrar caminhos de superação da barbárie do capital.  
Uma outra face do mesmo processo é a mundialização do capital, com deslocalizações  
de empresas, ondas de privatizações, e busca de nichos de valorização, constituindo mudanças  
na geopolítica mundial e reatualizando o imperialismo e o subimperialismo, categorias  
fundamentais para pensar a economia mundial hoje. Abre-se um tempo de disputa acirrada de  
hegemonia, bastando observar a escalada das tensões entre a China e os Estados Unidos. É a  
operação da outra causa contrariante à queda das taxas de lucro em operação: a saída para o  
exterior e que forja novas relações hierárquicas e de dependência na economia mundial. Dentro  
desse movimento temos mudanças importantes nos padrões de reprodução do capital nos vários  
países, bem como contrarreformas do Estado tendo em vista facilitar o fluxo de capitais e a  
exploração dos trabalhadores. Tratei deste tema especialmente no meu trabalho sobre o governo  
Fernando Henrique Cardoso (BEHRING, 2003). Na verdade, ali se inaugurava um longo  
período contrarreformista no Brasil, de ajuste fiscal permanente. Naquele momento teremos os  
marcos inaugurais desse processo “austericida” que vai orientar o Brasil por décadas mesmo  
com governos de tonalidades distintas gestões também levemente diferentes do ajuste. Em  
2021, atualizei esse debate da contrarreforma do Estado, tendo em vista facilitar o fluxo de  
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Ofensiva ultraneoliberal no capitalismo em crise no Brasil e no mundo  
capitais e constituir os mecanismos de exploração da força de trabalho (BEHRING, 2021).  
Num contexto de crise combinada de superprodução e superacumulação, com  
gigantesca concentração de riqueza na forma líquida/monetária, a busca por nichos de  
valorização e de punção de valor, em tempos de curto-circuito nas metamorfoses do capital, é  
frenética. Neste passo, é que se colocam duas das questões mais candentes do nosso tempo: a  
questão ambiental e a da dívida pública. Sobre a primeira, a busca de petróleo, água, lítio,  
nióbio etc., bem como a produção de alimentos à base de agrotóxicos e pastos em grandes  
extensões de terras – o que no Brasil tem centralidade – é fortemente destrutiva do futuro. Há  
nexos importantes já apontados pela ciência entre a crise sanitária de Covid 19, iniciada em  
2020 e da qual mal saímos, e a destruição ambiental, o que por sua vez acirra a crise climática,  
abrindo espaços para a proliferação dos vírus, pelo que muitos cientistas apontam para a  
possibilidade de novas pandemias e epidemias letais nos anos vindouros. A ciência mostrou  
uma capacidade de resposta bastante grande e rápida, mas ainda assim nós tivemos cerca de 5  
milhões de mortos dos quais mais de 700 mil são brasileiros(as), números subnotificados, como  
indicam várias pesquisas e assume a OMS.  
A outra questão candente é a regência do processo como um todo pelo capital portador  
de juros, cujas instituições reúnem enormes massas monetárias, buscando nichos de valorização  
ou de punção de valor, neste caso, pela esfera financeira – a dos “papeizinhos” da “moderna  
bancocracia”, tal como ironizava Marx. Nessa esfera, destacam-se as dívidas públicas  
titularizadas, que vem se constituindo num mecanismo de forte chantagem sobre os países e  
seus Estados nacionais, obrigados na hierarquia da economia mundo e com aquiescências  
internas, a realizarem ajustes fiscais draconianos, tendo em vista pagar regularmente juros  
encargos e amortizações de dívidas todos os anos, pelo que arcam com um custo social  
altíssimo. Evidentemente, isso ocorre de forma mediada pela hierarquia da economia mundo,  
pois que não acontece da mesma forma na França, por exemplo, e no Brasil, este último  
obrigado a realizar ajustes fiscais draconianos tendo em vista pagar regularmente juros,  
encargos e amortizações da dívida pública todos os anos, com um custo social e ambiental  
gravíssimo (BEHRING, 2013).  
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Os mecanismos de punção de valor pelo endividamento público são parte fundamental  
da tragédia contemporânea, e se articulam com a ofensiva sobre os trabalhadores, já que pela  
via tributária, vem crescendo os mecanismos de tributação indireta que incidem sobre suas  
rendas, cumprindo um papel regressivo, bem como vem se impondo gasto financeiro sobre o  
gasto social, com o ataque aos direitos sociais já apontado antes. Se observamos a crise de  
2008/2009 e seu efeito contágio mundial, ela inicia exatamente pelas cadeias de endividamento  
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privado em curto-circuito, em função de empréstimos de risco, as subprimes. Donde a regência  
pela finança do processo no seu conjunto coloca um ambiente de instabilidade permanente, e  
quando as bolhas explodem, o fundo público do Estado capitalista aparece em operação de  
salvamento, socializando os custos da crise. Tal como também no contexto pandêmico, que  
gerou um ambiente de crise com a interrupção da rotação do capital, pela situação de  
confinamento dessincronizado (HUSSON, 2020).  
A barbárie capitalista se impõe também pela via tributária pois os trabalhadores vêm  
pagando mais impostos por mecanismos de crescimento da tributação regressiva indireta, que  
incide sobre a renda do trabalho. E, ainda, essa lógica impõe o gasto financeiro sobre o gasto  
social, ou seja, se conjuga com o ataque aos direitos sociais já apontado. Então as seguidas  
contrarreformas da Previdência, o desfinanciamento da educação e o corte recente de gastos da  
farmácia popular, no governo Bolsonaro, tudo isso se articula com um ambiente que é forjado.  
O fundo público se torna cada vez mais uma espécie de pressuposto geral da lógica  
financeira da expansão do crédito, nesse capitalismo que se ergue sobre um mar de dívidas –  
públicas e privadas –, para o que precisa estar a postos e sob a vigilância das agências de notação  
de risco, que indicam aos países o quanto de ajuste fiscal eles precisam fazer para manter a  
remuneração dos credores. Então, o neoliberalismo é uma espécie de corolário de tudo isso,  
como programa econômico e ideologia. O neoliberalismo tem sido uma reação burguesa a partir  
de fins dos anos 70, à viragem para um ciclo longo com tonalidade de estagnação que remonta  
ao final dos anos 60 e início dos 70. Os governos de Thatcher, Reagan e Kohl, dentre outros,  
buscavam naquele momento quebrar o poder dos sindicatos do período fordista keynesiano,  
exatamente para desencadear essa imensa ofensiva sobre a força de trabalho, tendo em vista  
alavancar as taxas de lucro, além de desbloquear o fluxo de capitais e colocar o Estado – forte  
e blindado (nunca mínimo, apesar da verborragia) (DEMIER, 2017), “desdemocratizado”  
(BROWN, 2021) – à serviço da adaptação e atratividade aos novos tempos, a partir das  
contrarreformas. Sobre esse último aspecto, Mandel já nos chamava atenção, desde 1972, para  
a tendência de limitação das liberdades democráticas no capitalismo maduro, em crise e  
decadência, já este requisitaria um Estado forte para a garantia das condições gerais de produção  
e reprodução social, a coerção dos dissensos e as tarefas de integração social. Apontava para a  
tecnocratização das decisões substantivas e sua retirada da esfera da política, destacadamente  
da grande política, e sua remissão à esfera da pequena política.  
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No que diz respeito ao trato das cada vez mais candentes expressões da questão social,  
tem-se que a gestão do imenso exército de reserva passou a ocorrer pelo incremento de um  
complexo assistencial-carcerário, o que tem corte de gênero e raça ao redor do mundo, como  
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Ofensiva ultraneoliberal no capitalismo em crise no Brasil e no mundo  
nos mostra Löic Wacquant (2002). O campo da política social – e consequentemente do serviço  
social – vem sendo duramente atingido, seja pela transformação de políticas e direitos sociais  
em mercadorias e fontes de punção de recursos, a exemplo da saúde, educação e previdência  
social; seja pelo trato da pauperização de amplos segmentos por meios assistencialistas e  
exclusivamente voltados a um consumo de massas de baixa qualidade, como assinalei linhas  
acima, que nada tem a ver com um amplo e consistente sistema de proteção social ou de  
seguridade social. Dentro disso, observamos também a precarização do trabalho de assistentes  
sociais, por meio do rebaixamento do valor da sua força de trabalho e erosão das condições de  
trabalho, já que o fundo público passa a ser intensamente disputado, subfinanciando ou  
desfinanciando as políticas sociais.  
Cabe falar ainda de um antigo “cavaleiro do apocalipse”: a guerra. Uma saída clássica  
para as crises do capitalismo foi historicamente a destruição de forças produtivas por meio das  
guerras, a exemplo das duas guerras mundiais que vivemos e inúmeras guerras localizadas  
desde então, justificadas como guerra ao terror ou em defesa do mito “democracia ocidental”,  
mas sempre se constituindo num desaguadouro de mercadorias – armas – antes em alqueive e  
justificando novos aportes de fundo público. No entanto, tal saída belicista – que se anuncia nas  
ameaças nucleares em torno da invasão da Ucrânia e adesões à OTAN de países fronteiriços à  
Rússia, bem como na elevação do tom a respeito de Taywan entre EUA e China – dado o  
potencial destrutivo nuclear acumulado, poderia ter consequências catastróficas para a  
humanidade e o meio ambiente. Para além do preço dos alimentos e das barganhas em torno da  
questão energética, o já longo “sono da razão” pode anunciar esse monstro maior.  
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Postas essas dimensões da ofensiva capitalista contemporânea, na qual o neoliberalismo  
– essa nova “desrazão” do mundo, parafraseando Dardot e Laval (2016) – é uma espécie de  
corolário, falemos um pouco do Brasil.  
Tenho utilizado a caracterização de ultraneoliberalismo para falar de nossa dinâmica  
interna mais recente, pós-golpe de 2016. Ela é inteiramente coadunada ao ambiente mundial  
do neoliberalismo (ou ultraliberalismo como apontam alguns autores), mas mediada pelas  
nossas particularidades. O neoliberalismo aporta no Brasil de forma definitiva após a aprovação  
da Constituição de 1988, bombardeada e retalhada desde então. Após o outsider Collor tomar  
as primeiras medidas neoliberais e ser afastado por impeachment da Presidência da República,  
tivemos o Plano Real (1994) e o PDRE/MARE de 1995, verdadeiros marcos da ofensiva  
neoliberal e monetarista no Brasil, e da contrarreforma do Estado. A estabilidade monetária a  
qualquer custo, especialmente após o acordo com o FMI de 1999, impôs uma série de  
constrangimentos ao gasto público primário, em detrimento dos gastos financeiros ao longo dos  
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anos da redemocratização, dos quais destaco o superávit primário, a Lei de Responsabilidade  
Fiscal e a Desvinculação de Receitas da União como principais mecanismos de ajuste fiscal e  
que impediram um boom de investimentos nas políticas sociais, o que corresponderia ao espírito  
constitucional. Além disso, nos governos de FHC, 49 bilhões de dólares em ativos passaram do  
poder público para a esfera privada. Lembro ainda do trato truculento da greve dos petroleiros  
em 1995, e da contrarreforma da previdência (regime geral) como partes constitutivas do ataque  
aos que vivem do trabalho. A partir de 2003, os governos de coalizão de classes do PT  
realizaram alguns deslocamentos importantes (política de recuperação do salário-mínimo, por  
exemplo), mas mantendo a lógica geral do ajuste e da estabilidade monetária a constranger os  
investimentos e o financiamento das políticas sociais. Tanto que as poucas conquistas do  
período foram desmontadas, quando o grande capital (nacional e estrangeiro) e segmentos da  
“pequena política” brasileira, com o apoio da mídia e de setores do judiciário dão um golpe de  
novo tipo, em 2016. Esses segmentos, mesmo beneficiados por inúmeras políticas nos treze  
anos de governos petistas, não enxergavam no governo Dilma Rousseff a capacidade de  
conduzir suas demandas no ritmo e intensidade desejados, dentre elas: a intensificação da  
exploração da força de trabalho; a exploração capitalista dos recursos naturais brasileiros, a  
exemplo do pré-sal, aquíferos e mineração (com o foco na Amazônia); um ajuste fiscal ainda  
mais profundo para que o fundo público possa funcionar como pressuposto geral da reprodução  
do capital, donde decorreu a abrangente contrarreforma da previdência em 2019, em mais um  
profundo ataque aos direitos dos trabalhadores. Com o golpe de 2016 se instaura o que  
chamamos de ultraneoliberalismo: o Novo Regime Fiscal – EC 95 e 93 (2016); a contrarreforma  
trabalhista de 2017; a entrega do pré-sal; a contrarreforma da previdência.  
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É no contexto golpista e de seus desdobramentos, que o Brasil aporta às desastrosas  
cifras mundiais, números internos macabros e desproporcionais, em relação a países da América  
Latina e do mundo. Isto porque tivemos desde 2016 uma combinação de golpe de Estado de  
novo tipo, crise burguesa orgânica, programa ultraneoliberal de ajuste fiscal e neofascismo no  
poder (MATTOS, 2020), este último desde 2019. Desde então o Brasil tem sido a cena de um  
processo de devastação das pessoas e do meio ambiente sem precedentes.  
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Observemos alguns dados factuais. Mais de 702 mil mortos na pandemia, sendo que  
parte destas mortes poderia ter sido evitada não fosse negacionismo (e sua truculência e  
descaso) no trato da pandemia no Brasil; e os aportes pífios de recursos no campo da saúde e  
em ciência e tecnologia, porque o que o governo Bolsonaro fez foi aumentar de forma  
insignificante o orçamento da Saúde, o que foi absolutamente insuficiente frente a demanda.  
Tivemos até junho de 2023, mais de 37,6 milhões de casos.  
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Ofensiva ultraneoliberal no capitalismo em crise no Brasil e no mundo  
Sobre a fome no Brasil, nós temos 33,1 milhão milhões de brasileiros que não tem o que  
comer segundo a Oxfam, e 58,75 milhões de pessoas convivem com situações de insegurança  
segurança alimentar de alguma forma.  
Sobre a força de trabalho, com a diminuição dos impactos da pandemia houve um certo  
recuo da desocupação no Brasil, que encontrava na faixa de 9,3% da População  
Economicamente Ativa em fim de 2022, o que significa um número em torno de 10,00 milhões  
de desempregados. No entanto, é preciso registrar que essa queda correspondeu a um aumento  
da informalidade – 35,8 milhões de trabalhadores estavam na condição de informalidade dentre  
as 98 milhões de pessoas inseridas no mundo do trabalho, e o rendimento dos trabalhadores  
caiu 5,1% enquanto a inflação destacadamente dos alimentos esteve acima de dois dígitos. Ou  
seja, esses elementos correspondem aos dados sobre a fome levantados pela Oxfam. Se havia  
em 2022 no Brasil 98,3 milhões de pessoas ocupadas comportando esse grau de informalidade,  
há temos um outro indicador que o IBGE calcula, a subutilização da força de trabalho, e que  
inclui os desocupados (10 milhões): são 24,7 milhões de pessoas subutilizadas. Há ainda os que  
estão em situação de desalento – 4,3 milhões de pessoas. Estes são números da PNAD/IBGE,  
do segundo trimestre de 2022, que apontavam uma taxa de informalidade de 40% da população  
ocupada. O número de “empregados” sem carteira assinada, ou seja, desprotegidos, foi o maior  
da série histórica no último período: 13 milhões de trabalhadores. Então vejam, a retomada pós-  
pandemia acontece. Porém, numa dinâmica de informalização, diminuição de salários e não  
alterando significativamente a situação de desalento.  
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O Brasil, em 2022, com essa sociabilidade dilacerada – e aqui não apontamos elementos  
sobre a violência endêmica –, foi palco de uma das mais importantes disputas de projetos  
societários no nível mundial, o que permanece em 2023, apesar da derrota eleitoral da extrema-  
direita nas eleições presidenciais. Michael Löwy fez referência aos rios voadores da floresta  
amazônica e recomendo enfaticamente a exposição de Sebastião Salgado sobre a Amazônia,  
porque vão encontrar nela não só as explicações sobre o papel da floresta e a necessidade  
estratégica de defendê-la para o Brasil e a humanidade, mas também as resistências dos povos  
indígenas. Precisamos urgentemente colocar um freio na devastação. Tivemos uma  
oportunidade eleitoral para a defesa da ciência com aporte de recursos, a defesa da Amazônia,  
da Mata Atlântica, o combate substantivo à fome. Enfim, para derrotar projeto destrutivo  
ultraneoliberal e neofascista que esteve em curso no Brasil. Uma oportunidade para sair da  
condição de ajuste fiscal permanente, superando o teto de gastos, revertendo a contrarreforma  
trabalhista, e implementando uma série de medidas para recompor as políticas sociais, proteger  
a população brasileira, e alterar os padrões de produção e de consumo nesse país que tem uma  
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potência gigante. Uma oportunidade de ser a cena de uma experiência inovadora que contamine  
e contagie nossa América Latina e o mundo. Mas nossa tarefa não é só eleitoral, e os primeiros  
meses do terceiro governo de Lula, quando escrevo essas linhas, são fartos em demonstrar as  
dificuldades de aproveitar esse deslocamento do terreno da luta de classes no Brasil. Precisamos  
construir os nossos afrobankers, lembrando aqui do filme Medida Provisória (Direção de  
Lázaro Ramos, 2022), com uma agenda de lutas anticapitalista, ecossocialista, antirracista, e  
antimachista para impor ao neofascismo uma derrota sem retornos. Além disso, há uma série  
de liberdades democráticas precisamos defender, mas uma agenda dos trabalhadores precisa  
reunir e contemplar esse conjunto de elementos, já que eles estão totalmente interligados na  
ofensiva do capital. Precisamos, mais do que nunca, de uma contraofensiva das forças do  
trabalho, uma recomposição da classe trabalhadora como sujeito político. E se a potencialidade  
dessa recomposição está no movimento de mulheres, que sejamos nós, mulheres, as  
protagonistas. Se a potencialidade da recomposição da classe trabalhadora está no movimento  
indígena, sejamos todos Yanomamis, Guaranis Kaiwuás, Pataxós, etc! Se a potencialidade está  
na luta antirracista do povo preto contra violência policial e a invasão nas comunidades  
habitadas majoritarimente pela população afrodescendente, vamos construir os afrobunkers,  
porque fomos e continuamos a ser atacados, como diz o filme Bacurau (Direção de Kleber  
Mendonça e Juliano Dornelles, 2019). Uma contraofensiva passa necessariamente por processo  
miúdo de organização e de educação popular, sem o que será difícil reverter a imensa corrosão  
e destruição que se instaurou no país e que, como vimos, tem conexões internacionais, num  
capitalismo em crise e decadência.  
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A consciência de classe não brota do além: é processo, é construção histórica, é disputa  
de hegemonia, como nos ensinava Gramsci. E isso se constrói nas lutas. É por isso que a  
experiência é importante. Não apenas as experiências alternativas que estão em curso, por  
exemplo, a produção de arroz e feijão pelo MST, mas experiências de luta: a luta ensina, a luta  
educa. Se não tem luta, não tem experiência, não tem processo educativo, não tem salto de  
consciência. É por isso que as direções do campo da esquerda têm que abandonar ou deixar de  
dar exclusividade a esse eleitoralismo parlamentar. Trata-se de repensar as suas estratégias no  
sentido da construção das lutas, da coletivização de pautas que realizem a mediação com as  
necessidades da vida real de milhões e milhões de pessoas.  
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Construir um o campo crítico ao capitalismo em crise e decadência – anticapitalista –, é  
bom que se diga, vai para além da tradição marxista, embora nela se encontrem seus  
fundamentos mais profundos. Há hoje um antineoliberalismo neofoucaultiano crítico, há um  
pensamento decolonial na América Latina – não aqueles que dizem que o marxismo é mera  
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Ofensiva ultraneoliberal no capitalismo em crise no Brasil e no mundo  
branquitude eurocêntrica –, mas segmentos que tem uma preocupação fundamental de traduzir  
a dinâmica do capital na particularidade da América Latina e construir as lutas sociais,  
reconhecendo os saberes e a experiência dos povos indígenas. Uma preocupação expressada  
por Mariátegui e outros marxistas latino-americanos que buscaram esse caminho e fizeram a  
advertência para essa necessidade. Mas é certo que o anticapitalismo não se reduz à tradição  
marxista e a própria luta social envolve uma diversidade de sujeitos e de pautas. Os marxistas  
revolucionários são parte desse processo e buscam oferecer para as lutas o melhor de si, mas  
não esgotam as lutas. É fundamental articular um espectro o mais amplo possível para as lutas  
antissistêmicas. Porém estou convencida de que a crítica mais radical e mais visceral ao mundo  
do capital é a crítica marxista da economia política e que esta não foi superada por nenhuma  
dessas outras tradições críticas. Por exemplo, os neofoucaultianos, tão em evidência, não  
oferecem uma leitura mais profunda do que aquela que Marx nos legou ao discutir a lei do valor.  
Linhas acima, busquei articular a questão da valorização do valor com a queda tendencial da  
taxa de lucros e as suas causas contrariantes, o que é um raciocínio dialético em Marx,  
imprescindível para pensar o capitalismo e a sua dinâmica contemporânea. Enquanto houver  
capitalismo, essas indicações permanecem válidas, mas isso não nos impede, nem deve nos  
impedir, de ter uma relação democrática com todos os setores que querem superar esse modo  
de produção e reprodução social que hoje assume sua face mais destrutiva ao encontrar seus  
limites históricos. Nesse campo da luta ecológica, por exemplo, há uma diversidade enorme de  
sujeitos e muitos deles não colocam a crítica ao capital no devido lugar. Quase remetem aos  
falanstérios proudhonianos. Mas precisamos dialogar, insistir, persistir tê-los ao nosso lado.  
Vamos precisar de todo mundo, pra banir do mundo a opressão” (Beto Guedes) e a exploração.  
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Referências bibliográficas  
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BEHRING, E. R. Fundo público, valor e política social. São Paulo: Cortez, 2021.  
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Revista Libertas, Juiz de Fora, v. 23, n.1, p. 10-22, jan./jun. 2023. ISSN 1980-8518  
DOI 10.34019/1980-8518.2023.v23.40557  
La nueva resistência popular em América  
Latina  
The new popular resistence in Latin America  
Claudio Katz*  
Resumo: Los levantamientos populares  
contuvieron la restauración conservadora,  
recrearon escenarios progresistas y afrontan la  
redoblada contraofensiva de la derecha.  
Tuvieron efectos electorales inmediatos y  
provocaron la precipitada salida de los  
presidentes derechistas en Bolivia, Chile, Perú,  
Honduras y Colombia. En México, Argentina y  
Brasil el descontento social no suscitó protestas  
equivalentes, pero dio lugar a victorias del  
mismo tipo en las urnas. En Ecuador y Panamá  
se consiguieron importantes triunfos en la calle  
contra los atropellos neoliberales y en Haití  
persiste una sostenida resistencia al caos  
impuesto por las elites y sus socios imperiales.  
El análisis de esta lucha es frecuentemente  
desatendido por los estudios exclusivamente  
focalizados en la forma de dominio de los  
opresores. La evaluación de esa resistencia  
esclarece semejanzas y diferencias con otras  
regiones.  
Abstract: The popular uprisings held back the  
conservative restoration. They recreated  
progressive scenarios and confronted the  
increasing counter-offensive of the right wing.  
They had immediate electoral effects and  
provoked the hasty departure of right-wing  
presidents in Bolivia, Chile, Peru, Honduras,  
and Colombia. In Mexico,Argentina and Brazil,  
social discontent did not give rise to equivalent  
protests, but led to similar victories at the polls.  
In Ecuador and Panama, important victories  
were achieved in the streets against neoliberal  
abuses. And in Haiti, there is still a steady  
resistance confronting the chaos imposed by the  
elites and their imperial partners. The analysis  
of this struggle is often neglected by those  
studies exclusively focused on the form of  
oppressors’ domination. The evaluation of this  
resistance shed light on similarities and  
differences comparing with other regions.  
Palavras-chaves: Rebeliones, América Latina,  
Keywords: Rebellions, Latin America,  
Neoliberalismo, Progresismo.  
Neoliberalism, Progressivism.  
Recebido em: 13/01/2023  
Aprovado em: 17/04/2023  
*
Economista, investigador del CONICET, profesor de la UBA, miembro del EDI. Su página web es:  
Revista Libertas, Juiz de Fora, v. 23, n.1, p. 23-34, jan./jun. 2023. ISSN 1980-8518  
Claudio Katz  
Introducción  
América Latina persiste como un ámbito convulsionado por rebeliones populares y  
procesos políticos transformadores. En distintos rincones de la región se verifica la misma  
tendencia al reinicio de los levantamientos que signaron el debut del nuevo milenio. Esas  
sublevaciones se aquietaron durante la década pasada y recuperaron intensidad en los últimos  
años.  
La pandemia interrumpió limitadamente esa escalada de movilizaciones, que  
neutralizaron la corta restauración conservadora del 2014-2019. Ese período de renovado  
golpismo, no logró desactivar el protagonismo de los movimientos populares.  
La rebelión del 2019 en Ecuador inauguró la fase actual de protestas, que ha repetido la  
tradicional tónica de irradiaciones. Bolivia, Chile, Colombia, Perú y Haití han sido los  
principales centros de confrontación reciente.  
Los efectos políticos de esta nueva oleada son muy variados. Han trastocado el mapa  
general de los gobiernos, recreando la gravitación del progresismo. Esa vertiente se ha impuesto  
en el grueso de la geografía zonal. Al inicio de 2023 los mandatarios de ese signo prevalecen  
en los países que reúnen al 80% de la población latinoamericana (SANTOS; CERNADAS,  
2022).  
Este escenario ha facilitado también la continuidad de los gobiernos acosados por el  
imperialismo estadounidense. Luego de soportar incontables embestidas, los diabolizados  
presidentes de Cuba, Venezuela y Nicaragua siguen en sus cargos.  
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También ha sido parcialmente contrarrestado el ciclo de golpes militares e  
institucionales, que apadrinó Washington en Honduras (2009), Paraguay (2012), Brasil (2016)  
y Bolivia (2019). La reciente asonada en Perú (2023) afronta una heroica oposición en las calles.  
Esta rebeldía obstruyó, hasta el momento, la intervención disfrazada de los marines en  
países devastados como Haití. La misma lucha popular propinó duras derrotas a los atropellos  
intentados por los gobiernos neoliberales reciclados de Ecuador y Panamá.  
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Pero esta gran intervención desde abajo suscita una reacción más virulenta y  
programada de las clases dominantes. Los sectores enriquecidos han procesado la experiencia  
anterior y exhiben menos tolerancia a cualquier cuestionamiento de sus privilegios. Han  
articulado una contraofensiva ultraderechista para doblegar al movimiento popular. Aspiran a  
retomar con mayor violencia, la fracasada restauración conservadora de la década pasada. Este  
complejo escenario exige evaluar a las fuerzas en disputa.  
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Revista Libertas, Juiz de Fora, v. 23, n.1, p. 23-34, jan./jun. 2023. ISSN 1980-8518  
La nueva resistência popular em América Latina  
Revueltas com efecto electoral  
Varios levantamientos de los últimos tres años tuvieron traducciones electorales  
inmediatas. Los nuevos mandatorios de Bolivia, Perú, Chile, Honduras y Colombia emergieron  
de grandes sublevaciones que impusieron cambios de gobierno. Las protestas callejeras  
forzaron comicios que derivaron en victorias de los candidatos progresistas, contra sus  
adversarios de ultraderecha.  
Esta secuencia se verificó primero en Bolivia. La sublevación confrontó exitosamente  
con los gendarmes y tumbó a la dictadura. Añez tiró la toalla cuando perdió a sus últimos aliados  
y a los sectores medios que al principio acompañaron su aventura.  
La corrupta gestión de la pandemia potenció ese aislamiento y diluyó el continuismo  
civil intentado por los candidatos de la centroderecha. La rebeldía desde abajo impuso el retorno  
del MAS al gobierno y varios responsables del golpe fueron juzgados y encarcelados. La  
conspiración continuó en el bastión santacruceño y actualmente se dirime si persistirá o será  
aplastada por una contundente reacción oficial.  
Una dinámica semejante se verificó en Chile, como resultado del gran levantamiento  
popular y sepultó al gobierno de Piñera. La chispa de esa batalla fue el costo del transporte,  
pero el rechazo a los 30 pesos de esa erogación derivó en una imponente gesta contra 30 años  
de legado pinochetista.  
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Ese torrente condujo a dos victorias electorales que precedieron al triunfo de Boric sobre  
Kast. El gran aumento de la participación electoral con consignas antifascistas en los barrios  
populares permitió ese logro, en el país-emblema del neoliberalismo regional.  
Por esa gravitación de Chile como símbolo del thatcherismo, la asunción de un  
presidente progresista, en el marco de la Asamblea Constituyente con gran presencia popular  
en las calles, despertó enormes expectativas.  
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Una secuencia más vertiginosa e inesperada se registró en Perú. El hastío popular con  
los presidentes derechistas salió a flote en protestas espontáneas y protagonizadas por jóvenes  
despojados de sus derechos. Ese levantamiento sucedió a la tragedia sanitaria de la pandemia,  
que potenció la ineptitud de la burocracia gobernante.  
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Castillo se transformó en el receptor del malestar popular y el fujimorismo no pudo  
frustrar su llegada a la Casa de Gobierno. El discurso redistributivo del sindicalista docente creó  
la expectativa de cortar con la agobiante sucesión de gobiernos conservadores.  
En Colombia la rebelión masiva forzó al establishment a resignar por primera vez su  
manejo directo de la presidencia. Varios millones de personas participaron en imponentes  
manifestaciones. Las huelgas masivas confrontaron con una represión feroz y lograron tumbar  
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Claudio Katz  
una reforma regresiva de la salud. Al igual que en Chile se extendieron posteriormente para  
expresar el enorme malestar acumulado durante décadas de neoliberalismo.  
Ese fastidio se tradujo en la derrota electoral del uribismo y del improvisado  
ultraderechista que intentó impedir la victoria de Petro. Con ese triunfo un líder de  
centroizquierda llegó a la presidencia, sorteando el terrible destino del asesinato que sufrieron  
sus antecesores. Lo acompaña una afrodescendiente representativa de los sectores más  
oprimidos de la población.  
En la misma tónica se inscribió el triunfo de Xiomara Castro en Honduras. Su victoria  
premió la sostenida lucha contra el golpe que en el 2009 prohijó el embajador estadounidense.  
Esa asonada inició el largo ciclo latinoamericano de lawfare y golpismo judicial parlamentario.  
Los 15 puntos de ventaja que Xiomara obtuvo sobre su contrincante neutralizaron los  
intentos de fraude y proscripción. En un dramático contexto de pobreza, narcotráfico y  
criminalidad, la heroica lucha popular desembocó en la primera presidencia de una mujer.  
Xiomara comenzó su gestión derogando las leyes de manejo secreto del Estado y de entrega de  
zonas especiales a los inversores externos.  
Pero debe lidiar con la sofocante presencia de una gran base militar estadounidense  
(Palmerola) y una embajadora de Washington que interviene con toda naturalidad, en los  
debates internos sobre los asentamientos campesinos y las leyes de reforma del sistema eléctrico  
(GIMÉNEZ, 2022).  
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Victorias de outro tipo  
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En otros países el ascenso de mandatarios progresistas no fue un resultado directo de las  
protestas populares. Pero esa resistencia operó como un trasfondo del descontento social y la  
incapacidad de los grupos dominantes para renovar la primacía de sus candidatos.  
México fue el primer caso de esta modalidad. López Obrador llegó a la presidencia en  
el 2018, en una dura confrontación con las castas del PRI y del PAN sostenidas por los  
principales grupos económicos. AMLO aprovechó el desgaste de las gestiones previas, la  
división de las elites y la obsolescencia del continuismo a través del fraude. Pero actuó en un  
contexto de menor impacto de las precedentes movilizaciones del magisterio y los electricistas.  
Los sindicatos han quedado muy afectados en México por la reorganización de la  
industria y no fueron determinantes del giro político en curso. AMLO mantiene una relación  
ambigua con su referente histórico cardenista, pero inauguró una administración muy  
distanciada de sus antecesores neoliberales.  
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Tampoco en Argentina la llegada de Fernández (2019) fue un resultado inmediato de la  
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La nueva resistência popular em América Latina  
acción popular. No reprodujo el arribo de Néstor Kirchner (2003) a la Casa Rosada, en medio  
de una generalizada rebelión. Previamente el derechista Macri sufrió un contundente revés en  
las calles, cuando intentó introducir una reforma previsional (2017). Pero no afrontó el  
periódico levantamiento general que sacude a la Argentina.  
En ese país se localiza el principal movimiento de trabajadores del continente. Su  
disposición de lucha ha sido muy visible en las 40 huelgas generales consumadas desde el fin  
de la dictadura (1983). La sindicalización se ubica en el tope de los promedios internacionales  
y empalma con la llamativa organización de los piqueteros (desocupados e informales).  
La lucha de esos movimientos ha permitido sostener los auxilios sociales del Estado,  
que las clases dominantes concedieron bajo el gran susto de una revuelta. Las nuevas formas  
de resistencia -enlazadas con la belicosidad precedente de la clase obrera- facilitaron el retorno  
del progresismo al gobierno.  
En los últimos tres años, la decepción generada por el incumplimiento de las promesas  
de Fernández suscitó grandes rechazos, pero con protestas acotadas. Hubo importantes triunfos  
de muchos gremios, frecuentes concesiones del gobierno y protagonismo callejero, pero la  
acción del movimiento popular fue contenida  
En Brasil la victoria de Lula ha sido un extraordinario logro, en un marco de relaciones  
sociales de fuerzas desfavorable para los sectores populares. Desde el golpe institucional contra  
Dilma el dominio de las calles fue capturado por los sectores conservadores que ungieron a  
Bolsonaro. Los sindicatos obreros perdieron protagonismo, los movimientos sociales han sido  
hostilizados y los militantes de izquierda adoptaron actitudes defensivas.  
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La liberación de Lula incentivó el reinicio de la acción popular. Pero ese impulso no  
alcanzó para revertir la adversidad del contexto, que permitió a Bolsonaro conservar una  
significativa masa de votantes. El PT retomó la movilización durante la campaña electoral  
(especialmente en el Nordeste) y revitalizó sus fuerzas en los festejos del triunfo.  
En un marco de gran división de los grupos dominantes, hartazgo con los exabruptos  
del ex capitán y liderazgo cohesionador de Lula, la derrota de Bolsonaro ha creado un escenario  
de potencial recuperación de la lucha popular (DUTRA, 2022). El temor a ese despunte, indujo  
al alto mando militar a vetar el desconocimiento del veredicto de las urnas que propiciaba el  
bolsonarismo.  
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Pero la batalla contra la ultraderecha recién comienza y para doblegar a ese gran  
enemigo resulta imperioso reconquistar la confianza de los trabajadores (ARCARY, 2022). Esa  
credibilidad quedó erosionada por la desilusión con el modelo de pactos con el gran capital que  
desenvolvió el PT en sus gestiones anteriores. Ahora emerge una nueva oportunidad.  
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Claudio Katz  
Tres batallas relevantes  
Otras situaciones de enorme resistencia popular en la región no derivaron en victorias  
electorales progresistas, pero sí en derrotas mayúsculas de los gobiernos neoliberales.  
En Ecuador se registró el primer triunfo de este tipo contra el presidente Lasso, que  
intentó retomar las privatizaciones y la desregulación laboral, junto a un plan de aumentos de  
las tarifas y alimentos dictado por el FMI. Ese atropello precipitó la confrontación con el  
movimiento indigenista y su nuevo liderazgo radical, que propicia un contundente programa de  
defensa de los ingresos populares.  
A mediados del 2022, ese choque recreó la batalla librada en octubre del 2019, contra  
la agresión lanzada por Lenin Moreno para encarecer el precio de los combustibles. El conflicto  
se zanjó con los mismos resultados que la pugna anterior y con una nueva victoria del  
movimiento popular. La gigantesca movilización de la CONAIE ingresó en Quito en un clima  
de gran solidaridad, que neutralizó la lluvia de gases lacrimógenos gatillada por los gendarmes.  
En 18 días de paro el experimentado movimiento indigenista derrotó la provocación del  
gobierno imponiendo la liberación del líder Leónidas Iza (ACOSTA, 2022). La CONAIE  
conquistó también la derogación del estado de excepción y la aceptación de sus principales  
demandas (congelamiento de los combustibles, bonos de emergencia, subsidios a los pequeños  
productores) (LÓPEZ, 2022).  
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El gobierno se quedó sin cartuchos cuando perdió credibilidad su insultante discurso  
contra los indios. Debió ceder ante un movimiento, que volvió a demostrar gran capacidad para  
paralizar el país y neutralizar los ataques contra las conquistas sociales.  
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Otra victoria de la misma relevancia se logró en Panamá a mitad del año, cuando los  
gremios docentes convergieron con los transportistas y los productores agropecuarios, en el  
rechazo al incremento oficial de la gasolina, los alimentos y los medicamentos. La unidad  
forjada para desenvolver esa resistencia sumó a la comunidad indígena a un movimiento de  
protesta, que durante tres semanas paralizó al país. Las marchas de protesta fueron las más  
importantes de las últimas décadas.  
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Esa reacción social doblegó a un gobierno neoliberal que debió retroceder en sus planes  
de ajuste. El presidente Carrizo no pudo satisfacer a las cámaras empresariales que exigían  
mayor dureza contra los manifestantes.  
Esa victoria fue particularmente significativa en un istmo que tuvo un gran crecimiento  
en los ultima dos décadas, aprovechando los lucros que genera la administración del Canal para  
los grupos dominantes. La desigualdad es apabullante, en un país dónde el 10% de las familias  
más ricas cuenta con ingresos 37,3 veces más altos que el 10% de los más empobrecidos  
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La nueva resistência popular em América Latina  
(D’LEON, 2022).  
La invasión estadounidense instaló en 1989 un esquema neoliberal, que complementa  
esa asimetría con escandalosos niveles de corrupción. Tan sólo la evasión fiscal equivale a la  
totalidad de la deuda pública (BELUCHE, 2022). La victoria en las calles propinó una severa  
derrota al modelo que las elites de Centroamérica presentan como el rumbo a seguir por todos  
los pequeños países.  
El tercer caso de una extraordinaria resistencia popular sin derivaciones electorales se  
verifica en Haití. Las gigantescas movilizaciones volvieron a ocupar el centro de la escena  
durante el 2022. Confrontaron con las políticas de saqueo económico que implementa un  
régimen manejado desde las oficinas del FMI. Ese organismo propició el encarecimiento del  
combustible que desató las protestas, en un país todavía desgarrado por el terremoto, el éxodo  
rural y el hacinamiento urbano (RIVARA, 2022).  
Las marchas callejeras se desenvuelven en un vacío político absoluto. Hace seis años  
que no hay elecciones, en una administración que prescinde del poder judicial y legislativo. El  
presidente de turno sobrevive por el simple sostén que aportan las embajadas de Estados  
Unidos, Canadá y Francia.  
El desgobierno actual se prolonga por la indecisión que impera en Washington a la hora  
de consumar una nueva ocupación. Estas intervenciones con el disfraz de la ONU, la OEA y la  
MINUSTAH se han recreado una y otra vez en los últimos 18 años con resultados funestos. Los  
servidores locales de esas invasiones reclaman el reingreso de las tropas foráneas, pero salta a  
la vista inutilidad de esas misiones.  
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Esa modalidad de control imperial ha sido en los hechos sustituida por la generalizada  
difusión de bandas paramilitares que aterrorizan a la población. Actúan en estrecha complicidad  
con las mafias empresariales (o gubernamentales) que rivalizan por los botines en disputa,  
utilizando las 500.000 armas ilegales provistas por sus cómplices de la Florida (ISA CONDE,  
2022). El magnicidio del presidente Moïse fue apenas una muestra del descalabro que generan  
las pandillas manejadas por distintos grupos de poder.  
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Estas organizaciones han tratado de infiltrar también a los movimientos de protesta para  
desarticular la resistencia popular. Siembran el terror, pero no han logrado confinar a la  
población a sus casas. Tampoco pudieron recrear expectativas en otra intervención militar  
extranjera (BOISROLIN, 2022). La rebelión continúa, mientras la oposición busca caminos  
para forjar una alternativa superadora de la tragedia actual.  
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Claudio Katz  
Abordajes centrados em la resistencia  
La secuencia de resistencias en el último trienio, confirma la persistencia en América  
Latina de un prolongado contexto de luchas, sujeto al patrón habitual de ascensos y reflujos.  
Los éxitos y los retrocesos son limitados. No hay triunfos de envergadura histórica, pero  
tampoco derrotas como las padecidas durante las dictaduras de los años 70.  
Esta etapa puede ser caracterizada con distintas denominaciones. Algunos analistas  
observan un largo ciclo de impugnación del neoliberalismo (OUVIÑA, 2020) y otros destacan  
la preeminencia de acciones de resistencia popular determinantes de los ciclos progresistas  
(GARCÍA LINERA, 2021).  
Esos abordajes jerarquizan acertadamente el papel de la lucha y la consiguiente  
gravitación de los sujetos populares. Aportan miradas que superan la frecuente  
desconsideración de los procesos que se desenvuelven por abajo. En este segundo tipo de  
miradas predomina un gran desconocimiento de la lucha social y una sesgada indagación de los  
cursos geopolíticos por arriba. Estudian especialmente cómo se dirimen los conflictos en el  
campo exclusivo de las potencias, los gobiernos o las clases dominantes.  
Esta última óptica suele prevalecer en las caracterizaciones de los ciclos progresistas,  
como procesos meramente contrapuestos al neoliberalismo. Se resalta su incidencia política  
democratizadora, sus rumbos económicos heterodoxos o su autonomía de la dominación  
estadounidense.  
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Pero con ese enfoque se evalúan los distintos posicionamientos de los grupos  
dominantes, sin registrar las conexiones de esas estrategias con políticas de control o  
sometimiento de las mayorías populares. Omiten este dato clave, porque no valoran la  
centralidad de la lucha popular en la determinación del actual contexto latinoamericano.  
Esta distorsión es muy visible en el sesgado uso de las categorías inspiradas en el  
pensamiento de Gramsci. Se toman esas nociones para evaluar cómo gestionan las clases  
capitalistas articulando consenso, dominación y hegemonía. Pero se olvida que esa cartografía  
del poder, constituía para el comunista italiano un elemento complementario de su evaluación  
de la resistencia popular. Esa rebeldía era el pilar de su estrategia de conquista del poder por  
parte de los oprimidos para construir el socialismo.  
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Una aplicación actualizada para Latinoamérica de este último enfoque exige priorizar  
el análisis de las luchas populares. Las modalidades que utilizan los poderosos para ampliar,  
preservar o legitimar su dominación enriquecen, pero no sustituyen esa evaluación.  
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La nueva resistência popular em América Latina  
Comparaciones com otras regiones  
Al indagar la resistencia de los oprimidos se perciben las singularidades  
latinoamericanas de esas luchas. En los últimos años, la acción popular presentó semejanzas y  
diferencias con otras regiones.  
En el 2019 se observaba en varios puntos del planeta una fuerte tendencia al despunte  
de una nueva oleada de protestas, liderada por los jóvenes indignados de Francia, Argelia,  
Egipto, Ecuador, Chile o el Líbano.  
La pandemia interrumpió abruptamente esa irrupción, generando un bienio de miedo y  
enclaustramiento. Ese reflujo fue a su vez acentuado por la gravitación del negacionismo  
derechista que impugnó la protección sanitaria. En este marco salió a flote la dificultad para  
articular un movimiento global en defensa de la salud pública, centrado en la eliminación de las  
patentes a las vacunas.  
Concluido ese dramático período de encierro, las protestas tienden a reaparecer  
suscitando las prevenciones del establishment, que advierte la proximidad de rebeliones pos  
pandemia (ROSSO, 2021). Temen especialmente la indignación que genera la carestía del  
combustible y los alimentos (THE ECONOMIST, 2022). Esa dinámica de resistencia ya incluye  
un significativo resurgimiento de las huelgas en Europa y de la sindicalización en Estados  
Unidos, Pero el protagonismo de América Latina continúa como un dato descollante.  
En todas partes los sujetos de esa batalla reúnen a una gran diversidad de actores, con  
significativa relevancia del joven trabajador precarizado. Este segmento sufre un grado de  
explotación superior a los asalariados formales. Padece la inseguridad de su trabajo, la falta de  
prestaciones sociales y las consecuencias de la flexibilización laboral (STANDING, 2017).  
Por esas razones es particularmente activo en la lucha callejera. Ha sido privado de los  
ámbitos tradicionales de negociación y afronta una contraparte patronal muy difusa. En  
distintos países es empujado a imponer sus demandas a través del Estado.  
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Los migrantes, las minorías étnicas, los estudiantes endeudados son frecuentes actores  
de esas batallas en las economías centrales y la masa de trabajadores informales ocupa una  
centralidad semejante en los países periféricos. Este último segmento no integra el tradicional  
proletariado fabril, pero forma parte (en términos ampliados) de la clase trabajadora y de la  
población que vive de su propia labor.  
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Los piqueteros de Argentina conforman una variedad de ese segmento, que forjó su  
identidad cortando las calles, ante la pérdida del trabajo en los lugares que centralizaban sus  
exigencias. De esa batalla brotaron los movimientos sociales y distintas variedades de la  
economía popular. Un papel igualmente relevante, desenvuelven los sectores campesinos que  
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forjaron el MAS de Bolivia y las comunidades indígenas que gestaron la CONAIE de Ecuador  
Los vínculos de estos movimientos de lucha de América Latina con sus pares de otras  
partes del mundo han perdido visibilidad por el deterioro de las instancias internacionales de  
coordinación. El último gran intento de esa conexión fueron los Foros Sociales Mundiales,  
auspiciados en la década pasada por el movimiento alterglobalista. Las Cumbres de los Pueblos  
alternativas a los encuentros de gobiernos, banqueros y diplomáticos han perdido incidencia.  
La batalla contra la globalización neoliberal ya no tiene esa centralidad y ha quedado sustituida  
por agendas populares más nacionales (KENT CARRASCO, 2019).  
Ciertamente persisten dos movimientos globales de gran dinamismo: el feminismo y el  
ambientalismo. El primero ha logrado éxitos muy significativos y el segundo reaparece  
periódicamente con inesperados picos de movilización. Pero el ámbito común de campañas  
globales que aportaban los Foros Sociales no ha encontrado un reemplazo equivalente.  
La gran vitalidad de los movimientos de lucha en América Latina obedece a múltiples  
razones. Pero ha sido muy gravitante su perfil político progresista, alejado del chauvinismo y  
del fundamentalismo religioso. En la región se ha logrado contener las tendencias reaccionarias  
que auspicia el imperialismo, para generar enfrentamientos entre pueblos o guerras entre  
naciones oprimidas.  
El Pentágono no ha encontrado la forma de inducir en América Latina los sangrientos  
conflictos que logró desencadenar en África y en Oriente. Tampoco pudo instalar un apéndice  
como Israel para eternizar esas matanzas o convalidar el terror perdurable de los yihadistas.  
Washington ha sido el invariable promotor de esas monstruosidades para intentar  
sostener su jefatura imperial. Pero ninguna de esas aberraciones prosperó hasta ahora en el Patio  
Trasero por la centralidad que mantienen las organizaciones de lucha popular.  
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Por esta razón América Latina persiste como una referencia para otras experiencias  
internacionales. Muchas organizaciones de la izquierda europea buscan, por ejemplo, replicar  
la estrategia de unidad o los proyectos redistributivos elaborados en la región (FEBBRO,  
2022). Pero todos los pueblos del continente afrontan actualmente un peligroso enemigo  
ultraderechista, que analizaremos en el próximo texto.  
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Revista Libertas, Juiz de Fora, v. 23, n.1, p. 23-34, jan./jun. 2023. ISSN 1980-8518  
DOI 10.34019/1980-8518.2023.v23.41210  
Serviço Social - Internacionalizar é preciso!  
Social Work - Internationalization is necessary!  
Berta Granja*  
Nuno Pires**  
Resumo: A internacionalização é fundamental  
para à construção das disciplinas académicas e  
profissionais, porque o conhecimento científico  
que orienta e suporta o agir profissional tem que  
ser universal, mas contendo em si próprio  
orientações sobre dinâmicas e processos para o  
necessário ajustamento aos problemas,  
contextos económicos, sociais, políticos e  
culturais locais. A internacionalização no  
serviço social confronta-se inevitavelmente  
com valores, culturas, contextos sociais e  
Abstract: Internationalization is fundamental  
for the construction of academic and  
professional disciplines, because the scientific  
knowledge that guides and supports  
professional action has to be universal, but  
containing within itself guidelines on dynamics  
and processes for the necessary adjustment to  
problems, economic, social, and political  
contexts and local cultures. Internationalization  
in social work is inevitably confronted with  
heterogeneous and often conflicting values,  
cultures, social and political contexts.  
Therefore, the article will address the challenges  
and problems related to internationalization and  
the resources that Europe and Portugal  
políticos heterogéneos  
e
muitas vezes  
conflituantes. Por isso o artigo vai abordar os  
desafios e problemas relacionados com a  
internacionalização e os recursos que a Europa  
e Portugal especificamente podem oferecer para  
apoiar a internacionalização.  
specifically  
can  
offer  
to  
support  
internationalization.  
Palavras-chaves:  
Internacionalização;  
Keywords: Internationalization; Professional  
Disciplina  
profissional; Recursos  
e
discipline; Resources and Internationalization.  
internacionalização.  
Recebido em: 16/02/2023  
Aprovado em: 17/05/2023  
*
Docente do ISSSP, elemento do departamento de relações internacionais do ISSSP, investigadora do CLISSIS –  
Centro Lusíada de Investigação em Serviço Social e Intervenção Social.  
** Docente do ISSSP, Coordenador do programa Erasmus+ no ISSSP, investigador do CLISSIS – Centro Lusíada  
de Investigação em Serviço Social e Intervenção Social.  
Revista Libertas, Juiz de Fora, v. 23, n.1, p. 35-48, jan./jun. 2023. ISSN 1980-8518  
Berta Granja; Nuno Pires  
Introdução  
Como qualquer disciplina académica e profissional, o serviço social não dispensa a  
internacionalização, como uma condição necessária à sua construção dinâmica, actualizada e  
crítica, cujo conhecimento tem que articular o universal com o local, numa procura permanente  
de aprofundamento desse conhecimento e do seu ajustamento a contextos muito diversos.  
Num mundo onde o trabalho dos assistentes sociais, se desenvolve “sobre as múltiplas  
expressões da questão social que, nos tempos presentes, ampliam o seu fosso de desigualdade  
e injustiça, assumindo novas configurações e expressões em um mundo globalizado pelo capital  
financeiro, pelos interesses das grandes corporações, dos mídias, do conhecimento  
planetarizado, saturado, e a serviço de minorias” (YAZBEK, 2019, p. 16) a internacionalização  
é uma questão fundamental para a afirmação da profissão e construção da disciplina.  
Na intervenção social os profissionais desenvolvem processos e dinâmicas sociais para  
a mudança social, prover carências, resolver problemas, restaurar laços sociais cooperativos e  
solidários que permitam a vida e o bem-estar colectivo, necessários à condição humana. E isto  
exige sínteses do conhecimento das ciências sociais e humanas, articulação interdisciplinar com  
todas as áreas do conhecimento aplicadas às condições planetárias da vida humana. Os  
processos de intervenção social têm por base este conhecimento, operacionalizado na acção,  
em processos de ensaio e erro, que pressupõem uma disposição científica, critica, reflexiva,  
experimental com responsabilização ética sobre as consequências da operacionalização, porque  
se trata de vidas humanas e das relações sociais que daí resultam.  
36  
Dadas estas considerações, o artigo vai numa primeira parte analisar o porquê da  
necessidade da internacionalização para a construção do conhecimento sobre os processos e  
dinâmicas sociais da intervenção social.  
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Numa segunda parte procurará identificar alguns dos desafios que a internacionalização  
pode colocar aos profissionais e investigadores nos processos de investigação e cooperação  
internacional.  
Numa terceira parte vai informar sobre alguns dos recursos europeus que podem  
sustentar o esforço de internacionalização.  
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1 - O serviço social como disciplina académica e profissional exige  
internacionalização  
A definição Global da Profissão de Serviço Social foi aprovada nas instâncias  
internacionais da profissão:  
O serviço social é uma profissão baseada na prática e uma disciplina  
Revista Libertas, Juiz de Fora, v. 23, n.1, p. 35-48, jan./jun. 2023. ISSN 1980-8518  
Serviço Social - Internacionalizar é preciso!  
académica que promove a mudança e o desenvolvimento social, a coesão  
social e o empoderamento e a libertação das pessoas. Princípios de justiça  
social, direitos humanos, responsabilidade colectiva e respeito pelas  
diversidades são centrais para o trabalho social. Apoiado por teorias de  
serviço social, ciências sociais, humanidades e conhecimentos indígenas, o  
serviço social envolve pessoas e estruturas para enfrentar os desafios da vida  
e melhorar o bem-estar.” 1  
Os padrões para a formação em serviço social aprovados, apontam para um  
conhecimento derivado da pesquisa, da experiência adquirida na prática em diversos contextos  
históricos, socioculturais, económicos e políticos em cada país em que o Serviço Social é  
exercido. A diversidade de práticas em campos diferentes com suporte em teorias, métodos,  
técnicas e habilidades, sustentam o exercício profissional nos diferentes níveis, micro, médio e  
macro. As orientações globais para a formação afirmam ainda que nos contextos mais amplos,  
internacionais, é necessário estabelecer o vínculo entre o global e o local, para permitir a  
transferência da formação em Serviço Social entre fronteiras internacionais.  
A internacionalização é fundamental para a construção da disciplina porque como  
afirma Ruano-Borbalan (2014):  
(…) la science est aussi un “champ” un secteur de la société constitué par des  
institutions, des politiques publiques, de professions, des discours accumulés,  
des corps de connaissances et savoirs articculés les uns aux autres mais distints  
et au centre de gravité Variable. (RUANO-BORBALAN, 2014, p. 22).  
37  
A internacionalização desenvolve o conhecimento sobre a experiência das políticas  
sociais ou falta delas, sobre os diferentes serviços e recursos para responder aos problemas das  
pessoas, sobre as respostas legislativas ao nível local, nacional e / ou regional / internacional,  
bem como o conhecimento das leis e tratados internacionais. Pode aumentar a compreensão dos  
papéis do Serviço Social no planeamento político, na implementação, avaliação e processos de  
mudança social, identificar as diferentes formas de defesa dos direitos humanos, da importância  
histórica dos movimentos sociais e sua interconexão com questões de classe, género e etnia /  
racial.  
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A internacionalização pode contribuir para fortalecer a identidade dos profissionais,  
como membros de uma profissão reconhecida em todo o mundo. Dubar (1997) e Sainsaulieu  
(2005), definem a identidade profissional, como identidade em rede, sempre em construção e  
com ajustes permanentes, legitimada pela actualização do saber que lhe é próprio, que se  
valoriza na procura de saberes provenientes de fontes diversas, através da investigação  
1 Definição aprovada pela Assembleia Geral IFSW e pela Assembleia Geral IASSW em julho de 2014.  
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Berta Granja; Nuno Pires  
científica. No caso do serviço social, o objecto privilegiado são os contextos, processos e  
dinâmicas da intervenção do serviço social, com competências, especialização e formação  
específica.  
O método científico pode produzir conhecimentos partindo da experiência, e os  
produtores desse saber legitimam-se pela sua formação, tecnologias, métodos rigorosos,  
procedimentos de validação e debate. A legitimação dos saberes provenientes da experiência,  
produz-se pelo grau de formalização, pelos métodos de recolha e observação, pelos processos  
de validação, pela sua codificação explícita e escrita, pela publicidade e pela organização em  
larga escala dos dispositivos de investigação. O serviço social, como disciplina, está a afirmar-  
se na comunidade científica, procura a sua autonomia epistemológica e metodológica, por isso,  
não pode prescindir da internacionalização, pois disciplinas como o serviço social:  
Para se afirmarem como domínios autónomos precisam de teorias próprias.  
Necessitam construir unidades novas de conhecimento a partir de outras  
matérias como economia, sociologia, educação, administração, etc. Fica claro,  
no entanto, que o desenvolvimento de teorias e métodos próprios, em cada  
nova área do conhecimento, passa pela transformação de múltiplos  
conhecimentos em unidades logicamente fundadas. (PAVIANI, 2004, p. 34).  
A reflexão sobre os problemas e os processos operacionais da intervenção social que se  
realiza nos fóruns internacionais, é fundamental para consolidar e valorizar os diversos tipos de  
saberes: os provenientes da experiência que emergem da acção, os teóricos que se investem  
depois de apropriados, os processuais que guiam os processos desencadeados na acção, os  
éticos que definem as opções a tomar e os saberes fazer já formalizados. Simultaneamente, esta  
reflexão permite desenvolver métodos e esquemas de análise sobre o saber agir para  
reorganizar, recriar estes saberes, nomeadamente os teóricos e verificar a sua validade na acção.  
38  
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A reflexão internacional desenvolvida nos encontros internacionais, estimula  
o desenvolvimento da capacidade argumentativa e conceptual, a partir do  
‘quotidiano, como parcela do real, e campo de racionalidade, onde  
componentes singulares e universais concretas e abstractas se evidenciam,  
imiscuem e combinam com permutas de proximidade e distanciamento’.  
(ALBUQUERQUE, 2017, p. 23).  
Permite ainda a reorganização dos saberes teóricos a descoberta de novos contributos a  
partir da própria acção, num processo de auto-reconhecimento e a explicitação dos esquemas  
de pensamento e acção, sob a forma de saberes processuais, procedimentos do serviço social,  
que demonstrem a capacidade de articulação fecunda entre os saberes teóricos e a prática.  
Garret (2007) propõe que assistentes sociais, usem a sua capacidade reflexiva para  
escrutinar os seus habitus pessoais e colectivos, os espaços que ocupam e os seus campos de  
autonomia.  
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Serviço Social - Internacionalizar é preciso!  
A reflexividade sobre a acção é uma componente da construção e reconstrução  
identitária profissional, que se consolida com os processos de reflexão internacional. A acção  
tem uma lógica de percurso, com passado, presente e futuro que se influenciam mutuamente e  
o contacto com outras realidades, outros processos históricos e políticos, estimula  
inevitavelmente confrontos entre o agir profissional e o crescente conhecimento científico  
acumulado. Este confronto internacional obriga a articular as lógicas do agir profissional, as  
lógicas dos sistemas e actores onde e com quem interage, alarga a possibilidade de escolhas e  
decisões, encoraja disposições para a inovação e a criatividade, num processo contínuo e  
dinâmico que se desenvolve no tempo e nos vários espaços e contextos.  
Não participar na reflexão internacional sobre a disciplina profissional e académica é  
contrariar o processo do desenvolvimento do seu conhecimento, num campo de saber/  
intervenção que precisa sempre considerar a realidade social, construída por políticas, recursos  
materiais, mas sobretudo seres humanos em relação. Quem não reflecte, perde de vista as  
possibilidades, deixa-se dominar pelos constrangimentos e pelas decisões que lhe alheias, perde  
os objectivos éticos originais. A capacidade reflexiva implica “manter um olhar frio sobre a  
reflexão antes de mergulhar no calor da acção.” (CROZIER, 1995, p. 217-218).  
A prática reflexiva, como prática intelectual, dialógica e social pressupõe, segundo  
Perrenoud:  
39  
Une suite d’opérations intellectuelles, dont les états mentaux ne sont que le  
point de départ, un état temporaire ou le point d’arrivée. On peut considérer  
cette suite d’opérations comme une «pratique intellectuelle. Elle est aussi  
souvent une pratique langagière, dialogique et sociale. (PERRONOUD, 2005, p.  
36).  
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Em contexto internacional, explicitar o pensamento pela mediação de conceitos, permite  
nomear e reconstruir os problemas, (re)construir a experiência e repertórios profissionais,  
consolidar o saber de acção nas estruturas mentais da racionalidade específica do grupo, com  
as suas representações operatórias conscientes e infra conscientes. Construir conhecimento nas  
relações internacionais, significa observar, reflectir sobre o diferente e o semelhante, analisar  
as experiências e atribuir sentido, para transferir para as situações de trabalho, saber gerir  
sentimentos, as emoções, vida e as relações com as pessoas. Nestas relações é necessário  
dominar os suportes da linguagem e os reportórios estruturados de experiência para descrever  
a realidade, interpretá-la e construir representações operacionais porque “Les praticiens sans  
réflexion se limitent au même temps qu’ils se détruisent" (SCHÖN, 1994, p. 344).  
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Essa reflexão deve ser feita para poder deliberar sobre os dados pertinentes dos  
fenómenos, com base numa actividade analítica que viabilize o recorte dos objectos de  
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Berta Granja; Nuno Pires  
conhecimento e intervenção, identifique os padrões regulares verificados na actividade  
profissional, para que possam ser reconhecidos, explicitados e transmissíveis, constituindo  
então uma fonte do saber profissional. Sem dúvida a internacionalizam é uma fonte importante  
para o enriquecimento dessa análise.  
Segundo Neto (2000) os processos reflexivos e críticos sobre o saber agir precisam  
ultrapassar a leitura empirista da própria actividade, vincular a teoria à acção para explicar a  
dinâmica social e orientar as possibilidades da acção nos processos sociais.  
Estes debates e discussões, no plano internacional, têm condições para proporcionar:  
Aprocura de perspectivas teóricas das ciências sociais para explicação dos problemas  
colocados à acção profissional, a sua permanente actualização;  
O aumento da percepção dos hiatos entre a teoria e a acção, a conjugação de  
generalismo das ciências sociais com a especificidade da acção;  
A construção de perspectivas mais lúcidas sobre realidade favorecendo a intenção -  
como uma disposição para olhar o mundo como objecto de saber, como procura de  
sentido;  
Os trabalhos escritos que se apresentam nos fóruns internacionais, estruturam e  
formalizam o saber profissional do grupo, atribuem novos significados, novos  
sistemas de legitimação. Consolidam as formas de identidade profissional, dando  
materialidade e visibilidade ao discurso comum sobre o trabalho, que desta forma se  
tornam objecto de pensamento como afirmam Lopes e Pereira (2004).  
40  
Proporcionar uma acção dialógica, cria uma linguagem colectiva, a descoberta de  
contributos teóricos, recria identidades colectivas inseparáveis das identidades individuais que  
as suportam, todos mudam e todos podem ganhar nas experiências obtidas nas interacções  
internacionais. Os eventos internacionais podem ser sequências de reflexividade aberta que,  
funcionam como grelhas de filtragem identitárias, onde se podem fazer escolhas, ter voz, usar  
o discurso próprio em primeira pessoa, significa autorizar-se a falar e ter auto-estima para expor  
e valorizar o seu saber e o mesmo tempo estar aberto a outras experiencias e saberes.  
A internacionalização foi uma estratégia fundamental para construir e afirmar a  
disciplina do serviço social em Portugal.  
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O serviço social português, como disciplina afirmou-se no contexto nacional pelo apoio  
objectivo do serviço social doutros contextos internacionais. No entanto os protocolos  
realizados com Universidades do Brasil foram determinantes.  
O grau de licenciatura foi reconhecido em 1989, resultou da luta que mobilizou  
Revista Libertas, Juiz de Fora, v. 23, n.1, p. 35-48, jan./jun. 2023. ISSN 1980-8518  
Serviço Social - Internacionalizar é preciso!  
profissionais, estudantes, docentes e direcções de escolas que nesta altura formavam assistentes  
sociais em Portugal. Neste processo, foram apresentados pareceres de universidades europeias,  
norte americanas e da PUC-SP /Brasil, que reconheciam o programa apresentado para os cursos  
de licenciatura em Portugal, como programas com credibilidade científica.  
Ainda durante este processo, a luta pelo reconhecimento de outros níveis de formação  
(mestrado e doutoramento) e o reconhecimento da investigação em serviço social já estava em  
curso. Pois mesmo antes, em 1987 foi estabelecido um protocolo com a PUC-SP, e foi iniciado  
um curso de mestrado. Dada a resistência dos poderes políticos e académicos instalados, com  
o argumento da ausência de assistentes sociais portugueses com o estatuto de mestre e doutores  
em serviço social, foram determinantes os protocolos instituídos com o Instituto Superior de  
Serviço Social de Lisboa (ISSSL), e mais tarde com o Instituto Superior de Serviço Social do  
Porto (ISSSP) para formar os primeiros mestres em serviço social na PUC-SP.  
No decurso deste processo foi importante o esforço de alguns assistentes sociais  
portugueses que se inscreveram e concluíram o doutoramento em serviço social da PUC/SP,  
criou-se assim o primeiro grupo de Doutores em serviço social em Portugal, que abriu o  
caminho para o reconhecimento dos cursos de doutoramento que posteriormente vieram a ser  
aprovados em Universidades Portuguesas.  
Pode concluir-se que o movimento académico e profissional do serviço social  
português, foi reforçado e fortalecido pela cooperação internacional, estabelecida nos  
protocolos com a PUC-SP, e segundo Rodrigues e Andrade (2009), permitiram:  
O acesso a produção teórica ampla;  
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Reforço da uma cultura profissional própria pela ligação estabelecida com uma  
identidade profissional constituída;  
Forte incentivo à investigação;  
Saber legitimado e reconhecido internacionalmente para traçar orientações para a  
prática e a formação.  
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2 - Os desafios da internacionalização  
A internacionalização está hoje facilitada pela democratização dos meios de transporte  
e pela generalização do acesso a tecnologias de comunicação permitidas pelos computadores e  
pelas redes de conexão permitidas pela internet.  
Mas viajar para territórios desconhecidos, ou mesmo entrar em interacção com falantes  
de outras línguas e culturas, por meios virtuais, torna-se difícil quando se iniciam esses desafios.  
Internacionalizar implica desenvolver competências para falar e escrever em línguas diferentes  
Revista Libertas, Juiz de Fora, v. 23, n.1, p. 35-48, jan./jun. 2023. ISSN 1980-8518  
Berta Granja; Nuno Pires  
da língua materna, portanto, aprender uma língua diferente é um primeiro requisito para  
enfrentar a internacionalização. Entre Portugal e o Brasil mesmo falando a mesma língua  
verificam-se diferenças, o que também é verdade para outros falantes de português nos diversos  
continentes.  
Na Europa muitas são as línguas com diferentes origens, com alfabetos e símbolos  
diferentes.  
E se é verdade que em todas as línguas se produz conhecimento, em árabe, em russo,  
indiano, ou chinês, é necessário admitir que qualquer um de nós, por muito que conheça, só  
conhece uma parte muito reduzida do conhecimento produzido, o que só acentua a necessidade  
de cultivar a humildade e a tolerância nas nossas interacções internacionais.  
Aprender uma ou duas línguas que permitam a interacção internacional, para além das  
fronteiras mais próximas, é hoje um imperativo de todas as profissões e de todos os  
investigadores em qualquer área do conhecimento. É evidente, que esta aprendizagem deveria  
ser feita o mais cedo possível, no ensino básico e secundário, mas aprender na escola, não é  
suficiente porque é necessário praticar a fala e a leitura, sobretudo da linguagem técnica mais  
especifica ao grupo profissional e disciplinar, para consolidar a aprendizagem em línguas  
diferentes da língua materna. Mas mesmo dominando melhor ou pior outras línguas nunca se  
resolvem todos os problemas linguísticos, sobretudo nos países cujo alfabeto é diferente do  
nosso. Fixar por exemplo, o nome de uma rua onde se está alojado, que se escreve de uma forma  
que não sabemos pronunciar e muito menos ler ou escrever, pode ser um elemento de ansiedade  
quando nos deslocamos numa cidade de um país estrangeiro.  
42  
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Viajar implica ainda correr riscos para enfrentar aventuras imprevistas, por melhores  
que sejam os planos. A incerteza do desconhecido exige criar e desenvolver disposições de  
abertura a culturas e saberes diferentes, humildade para compreender o caminho feito pelo  
grupo profissional noutros contextos sociais e políticos, para reconhecer o avanço ou bloqueios  
dos contextos formativos diferentes dos nossos.  
Quem está habituado a estabelecer contactos internacionais tem que se preparar e  
programar para, por exemplo, gerir diferenças horárias muitas vezes de muitas horas. Mesmo  
para marcar uma reunião, entre um país da América latina, Portugal e um outro país europeu,  
já é necessário gerir agendas muito diferentes: quando na américa latina estão a acordar, em  
Portugal estamos a meio da manhã e na Alemanha é hora de almoçar.  
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É preciso enfrentar o desafio das viagens, dos meios de transporte diferentes, das  
informações que nos parecem sempre insuficientes, decifrar redes de transportes complexas que  
nos levam ao desconhecido, sentir a desorientação inicial em espaços que ignoramos.  
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Serviço Social - Internacionalizar é preciso!  
As culturas e as religiões diferentes também apresentam desafios. Por exemplo conviver  
com hábitos e produtos alimentares desconhecidos, ajustar quando necessário as formas de  
vestir a culturas diversas, gerir horários em quotidianos organizados de forma diferentes (em  
Espanha por exemplo almoçam mais tarde que nos outros países europeus), adaptar-se a  
dinâmicas de convívio social diferentes da nossa cultura, pode trazer incertezas, medos,  
incompreensões.  
Mas apesar dos desafios e dos riscos, aprofundar e consolidar a cooperação internacional  
é fundamental, porque como afirma Andrade (2002):  
Só pensando, argumentando, debatendo, concordando, discordando, podemos  
esclarecer dúvidas, optar, avaliar e gerir os riscos (…). Congregar vontades, é  
um imperativo necessário para desencadear, desenvolver, e difundir processos  
de construção, apropriação, e transmissão de saberes (…). (ANDRADE, 2002,  
p. 40).  
3 - A internacionalização e os recursos necessários  
A internacionalização exige recursos materiais, mesmo quando existem disposições das  
pessoas e instituições para desenvolver processos, protocolos e eventos de nível internacional.  
Apresentam-se agora alguns dos programas que a nível europeu podem trazer recursos  
para os processos de internacionalização. No entanto, geralmente para que os países  
estrangeiros fora da EU, tenham acesso a esses recursos é sempre necessário que estejam  
ligados com países da EU.  
43  
3.1 - O programa Erasmus para o ensino superior  
O Programa Erasmus+ é já uma história de sucesso na União Europeia. O Erasmus tem  
impacto na vida de milhares de estudantes, que devido a este programa já estudaram ou  
estagiaram num país diferente do seu, puderam conviver e estudar com colegas europeus ou  
escutaram as suas exposições e participaram em aulas orientadas por docentes de outras  
universidades europeias. Muitos participaram em partenariados, em seminários intensivos, em  
estágios profissionais.  
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Este programa tornou-se o mais célebre de todos os programas europeus. Ser estudante  
ERASMUS, para um professor ou técnico não docente, fazer uma mobilidade para outra  
universidade transformou-se numa situação normal do quotidiano europeu no ensino superior.  
Acolher estudantes ERASMUS faz parte da vida das cidades universitárias da União Europeia.  
O Erasmus+ - programa da União Europeia (EU) para a educação e formação, juventude  
e desporto, é um instrumento fundamental para a construção de um espaço europeu de educação  
e para a promoção da cooperação estratégica europeia neste campo.  
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Berta Granja; Nuno Pires  
O programa Erasmus estabelece como objectivos contribuir para o desenvolvimento da  
inclusão e coesão social e para a construção de sociedades mais ecológicas, preparadas para a  
era digital e participação democrática. Prevê instrumentos para reduzir o impacto dos problemas  
de saúde, deficiência e os obstáculos relacionados com os sistemas de ensino e formação, as  
diferenças culturais e os obstáculos sociais como as dificuldades de adaptação social, obstáculos  
e desvantagens económicas.  
Relativamente aos países terceiros como é o caso do Brasil os objectivos gerais do  
programa são contribuir para:  
Melhorar a qualidade do ensino superior,  
Melhorar o nível de competências e facilitar a empregabilidade,  
Promover a educação inclusiva, a igualdade e a equidade.  
O programa ERASMUS+ para o ensino superior estrutura-se em diferentes plataformas  
que a seguir se indicam, que são geridas pela EU e pelas agências nacionais. Dispõem de  
orçamentos que são aprovados com cada programa plurianual, e que vão variando de acordo  
com as medidas aprovadas para cada programa.  
3.1.1 - Mobilidade individual  
Mobilidade alunos, docentes e funcionários do ensino superior, cuja duração depende  
dos objectivos da mobilidade:  
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Para os estudantes as mobilidades tem normalmente a duração de um semestre2, para  
realizar, um período de formação numa instituição de ensino superior europeia, numa  
empresa ou em qualquer outro local de trabalho pertinente (os docentes e pessoal não  
docente, geralmente fazem mobilidade de pequena e média duração);  
Programas intensivos mistos são programas curtos e intensivos que utilizam formas  
inovadoras de aprender e ensinar, incluindo a utilização da cooperação em linha,  
onde grupos de estudantes ou de pessoal realizarão, como aprendentes, uma atividade  
de mobilidade física de curta duração no estrangeiro, combinada com uma  
componente virtual obrigatória (actividades colaborativos em linha);  
Mobilidade internacional que pode envolver países terceiros (relativamente à  
América Latina, o orçamento com o Brasil e o México em conjunto, não pode  
ultrapassar 30 % do orçamento de cada projeto).  
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Os estudantes de países terceiros como o Brasil que estudam nas universidades  
2 Podem ser de menor duração ou prolongar-se por um ano.  
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Serviço Social - Internacionalizar é preciso!  
europeias podem aceder às mobilidades ERASMUS em qualquer ciclo do ensino universitário  
(licenciatura, mestrado ou doutoramento)  
O programa actual prevê ainda intercâmbios virtuais nos domínios do ensino superior  
para desenvolver actividades online, como debates para alunos de Instituições de Ensino  
Superior e formação de professores.  
3.1.2 - Parcerias de cooperação.  
Os resultados a obter com estas parcerias devem trazer abordagens inovadoras ao  
encontro dos respetivos grupos-alvo, um ambiente mais moderno, dinâmico, empenhado e  
profissional no seio das organizações, maior capacidade e profissionalismo para trabalhar ao  
nível da UE/internacional. Propõe a cooperação entre organizações e instituições parceiras para  
a cooperação, (média e pequena dimensão). (Universidades, centros de formação e Academias  
de Professores Erasmus+).  
Parcerias para a excelência, incluindo Centros de Excelência Profissional, Academia de  
Professores e a Ação Erasmus Mundus.  
Destacamos pela sua importância os Mestrados Conjuntos Erasmus Mundus (MCEM)  
que pretendem ser programas de excelência ao nível académico e com elevado grau de  
articulação / integração entre instituições académicas.  
A sua organização é complexa e tem que cumprir muitos requisitos:  
Programa curricular académico conjunto e inteiramente integrado (política  
linguística acordada, períodos de estudo);  
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Requisitos de admissão de estudantes (regras e procedimentos de candidatura,  
selecção, propinas, monitorização e avaliação de desempenho conjuntos, serviços  
comuns oferecidos);  
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Sítio Web específico que seja integrado e abrangente (em língua inglesa, assim como  
na principal língua de ensino);  
Diplomas conjuntos;  
Para ter um mestrado ERASMUS MUNDUS é preciso integrar três instituições de  
ensino superior de três países diferentes, dos quais, dois têm de ser da EU;  
Um contrato de parceria MCEM, que tem de ser assinado por todas as instituições  
parceiras. Este contrato de parceria implica questões académicas, operacionais,  
administrativas e financeiras, que condicionam a gestão financeira e administrativa  
conjunta, e têm que ser aprovados por todas as instituições envolvidas na parceria.  
Parcerias para a inovação e parcerias para promover projetos de reforço de capacidades  
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Revista Libertas, Juiz de Fora, v. 23, n.1, p. 35-48, jan./jun. 2023. ISSN 1980-8518  
Berta Granja; Nuno Pires  
no domínio do ensino superior, são parcerias que normalmente exigem que os países terceiros  
estejam inscritos nos respectivos programas europeus.  
3.2 - Os programas de apoio à investigação científica na Europa - (Europa 2020, Horizon  
entre outros)  
Tais programas podem trazer possibilidades de cooperação internacional com países  
terceiros, mas sempre têm que envolver países europeus:  
A sua missão é responder aos desafios na saúde, problemas societais e económicos e os  
seus objetivos:  
Enfrentar o desafio verde;  
Desenvolver a Europa digital;  
Pôr a economia ao serviço do povo;  
Promover o modo de vida europeu;  
Fortalecer a Europa no mundo;  
Aprofundar a democracia europeia;  
Melhorar o funcionamento da Comissão Europeia.  
3.3 - A Fundação para a Ciência e Tecnologia - FCT  
FCT – Agencia Pública Nacional para a investigação em Ciência e Tecnologia e  
Inovação.  
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Objetivos da FCT:  
Tornar Portugal uma referência internacional;  
Assegurar que o investimento contribui para o crescimento económico e o bem-estar  
do cidadão;  
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Bolsas e contratos com investigadores (bolsas de doutoramento pós doutoramento);  
Financiamento de projetos (serviços, bolseiros, missões no exterior);  
Apoio a centros de investigação;  
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Coordenação de políticas públicas para a sociedade de informação e conhecimento  
em Portugal.  
A FCT apoia projetos de investigação desenvolvidos no âmbito dos centros de  
investigação directamente financiados pela FCT, ou projetos apresentados por equipas de  
investigação.  
Relativamente a países estrangeiros pode financiar missões de investigação de  
investigadores nacionais a países estrangeiros, publicações de artigos científicos que incluam  
Revista Libertas, Juiz de Fora, v. 23, n.1, p. 35-48, jan./jun. 2023. ISSN 1980-8518  
Serviço Social - Internacionalizar é preciso!  
autores estrangeiros e missões de investigadores estrangeiros como consultores ou participantes  
em eventos nacionais entre outras possibilidades.  
3.4 - Associação Europeia das Escolas de Serviço Social  
Esta associação pode financiar pequenos projetos e apoiar missões, recursos logísticos,  
para projetos de investigação e participação em Congressos.  
Considerações finais  
É necessário estimular a escrita profissional, treinar os profissionais para construir  
discursos argumentativos sobre quem são, que valores defendem, o que fazem, em articulação  
com as instâncias de formação e de investigação a nível internacional, para isso é necessário o  
aprender no mínimo outro idioma relevante para as trocas científicas.  
É necessário estimular a actividade reflexiva nos contextos territoriais próximos, mas  
também internacionais, desenvolver disposições de abertura ao desconhecido, ao diferente e ao  
enfrentamento dos riscos inerentes e capacidade de escuta de outras experiencias, percursos  
históricos e políticos.  
Para que os recursos para a internacionalização sejam acessíveis, é necessário consolidar  
redes de cooperação internacional, numa perspectiva colaborativa, em situação de igualdade e  
de vantagens mútuas.  
47  
Em síntese o desenvolvimento da investigação e cooperação em rede envolvendo  
investigadores, profissionais docentes e estudantes é fundamental num período marcado por  
problemas planetários. Numa perspectiva de construção da reflexão internacional é necessário  
desenvolver processos de cooperação e investigação com utilidade social e na invenção de  
respostas que, sem acentuar a prescrição sobre os profissionais, valorizem e reconheçam o saber  
agir profissional, os seus desafios, poderes e limites, vividos nos diversos contextos socio  
históricos e políticos, pois a internacionalização, a investigação e os processos reflexivos, como  
afirma Granja (2011) são e precisam ser aprofundados como objecto da actividade profissional:  
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Participar nos processos reflexivos e criativos sobre a actividade profissional  
para a (re)construção permanente do saber da acção e contribuir para o avanço  
do conhecimento sobre os processos de mudança social e respostas aos  
problemas sociais (GRANJA, 2011, p. 451).  
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Revista Libertas, Juiz de Fora, v. 23, n.1, p. 35-48, jan./jun. 2023. ISSN 1980-8518  
Berta Granja; Nuno Pires  
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Editora (1997).  
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em tempos de viragem. In Revista serviço social e sociedade, nº 100 out-dez (2009) pp749-  
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em Serviço Social uma análise dos seus fundamentos. Campinas: Papel Social (2019).  
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Outros documentos:  
Fundação para a Ciência e Tecnologia. (2022). Fundação para a Ciência e Tecnologia.  
Agência Nacional Erasmus+ Educação e Formação. (2022). Erasmus +. Portugal. Educação e  
European Association of Schools of Social Work. (2011). EASSW. https://www.eassw.org/  
Conselho Europeu. Conselho da União Europeia. (2023). Horizonte Europa.  
Revista Libertas, Juiz de Fora, v. 23, n.1, p. 35-48, jan./jun. 2023. ISSN 1980-8518  
DOI 10.34019/1980-8518.2023.v23.41306  
Cooperação internacional em Serviço Social:  
uma revisão de literatura  
International cooperation in Social Work: a literature review  
Maria Lúcia Teixeira Garcia*  
Gary Spolander**  
Resumo: Inseridas em uma experiência de  
cooperação internacional, nos propomos, neste  
artigo, a partir de revisão de literatura, refletir  
sobre o tema cooperação internacional no  
Serviço Social. Para isso, realizamos  
levantamento utilizando dois descritores:  
cooperação internacional em pesquisa e Serviço  
Social e cooperação internacional em pesquisa  
em Serviço Social (em inglês e português) nas  
bases de dados Scopus, Periódicos Capes e  
Google Acadêmico. Foram selecionados 16  
artigos sem repetição. Exploramos as variáveis  
país de procedência, periódico utilizado e foco  
dos textos. Além disso, verificamos os relatórios  
de avaliação trienal (2004, 2007, 2010, 2013) e  
quadrienal da Capes (2017 e 2021). Os textos  
selecionados são majoritariamente em língua  
inglesa e com autores procedentes dos países  
centrais (Estados Unidos, Alemanha e Reino  
Unido – 39%). O Brasil respondeu por 10%. O  
artigo enfatizou a internacionalização como um  
processo que faz parte do Serviço Social.  
Entretanto, as relações assimétricas entre os  
países centrais e periféricos repercute sobre o  
fluxo desse processo, que engloba desde a  
delimitação do foco das pesquisas até as  
relações no interior das equipes, sendo mister  
adensarmos o debate no Brasil.  
Abstract: Inserted in an experience of  
international cooperation, we propose in this  
article, based on a literature review, to reflect on  
the theme of international cooperation in Social  
Work. We carried out a survey using 2  
descriptors: international cooperation in  
research and Social Work and international  
cooperation in research in Social Work (in  
English and Portuguese) in Scopus, Periódicos  
Capes and Google academic databases. 16  
articles without repetition were selected. We  
explored the variables country of origin, journal  
used and focus of the texts. In addition, we  
verified how Capes' triennial (2004, 2007,  
2010, 2013) and quadrennial (2017 and 2021)  
evaluation reports. The selected texts are mostly  
in English and with authors from central  
countries (United States, Germany and United  
Kingdom – 39%). Brazil accounted for 10%  
(with north-south partnership productions and 1  
by Brazilian authors). The article emphasized  
internationalization as a process that is part of  
Social Work. However, the asymmetrical  
relationships between the central and peripheral  
countries have an impact on the flow of this  
process, which ranges from the delimitation of  
the research focus to the relationships within the  
teams. It is essential that we deepen the debate  
in Brazil.  
Palavras-chaves: Internacionalização do  
Serviço Social; Pesquisa internacional; Serviço  
Social.  
Keywords: Internationalisation of Social Work;  
International research; Social Work.  
* Docente do Departamento de Serviço Social e do Programa de Pós-Graduação em Política Social da Universidade  
Federal do Espírito Santo (UFES). Doutora em Psicologia Social (USP) e Pós-doutora em Política Social (UFES).  
Bolsista em PQ do CNPq. ORCID: https://orcid.org/0000-0003-2672-9310  
** Doutor em Serviço Social. Professor do Departamento de Serviço Social da Robert Gordon University (Escócia).  
Revista Libertas, Juiz de Fora, v. 23, n.1, p. 49-69, jan./jun. 2023. ISSN 1980-8518  
Maria Lúcia Teixeira Garcia; Gary Spolander  
Recebido em: 28/03/2023  
Aprovado em: 04/06/2023  
Introdução  
“I think you travel to search and you come back home to find yourself there1.”  
(Chimamanda Ngozi Adichie)  
Com esta frase de Chimamanda, começamos este texto abordando a cooperação  
internacional. Como um tema atual e relevante, a cooperação internacional traz em si múltiplas  
dimensões. Primeiro, o processo de incentivo às pesquisas em cooperação internacional e o  
foco na estruturação de políticas de internacionalização nas instituições de ensino superior (IES)  
no Brasil são relativamente novos (CARVALHO; ARAÚJO, 2020). Por outro lado, a  
interlocução entre pesquisadores é constitutiva da própria natureza da Ciência e de seu processo  
de investigação, e isso não é recente2. A partilha das descobertas é condição para novas  
investigações. Em poucas palavras, a internacionalização pode ser vista como parte de um  
movimento próprio das atividades de ensino e pesquisa e, portanto, como uma tendência que se  
forma dentro do ambiente de investigação e formação em nível superior (LEHER, 2018).  
Esse processo segue um fluxo ao longo das últimas 40 décadas. Na Conferência Mundial  
sobre o Ensino Superior da Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a  
Cultura (Unesco), em 1998, a cooperação é definida como via para promoção do avanço da  
educação superior em todo o mundo, por meio da constituição de redes e intercâmbio de  
experiências. Se a constatação de 1998 é da necessidade de avanço da educação superior, vemos  
em 2010 que as desigualdades entre os países permanecem, pois a proporção da população com  
15 ou mais anos que tem ensino superior completo é muito pequena (Mapa 1) – em muitos dos  
países periféricos, é menos de 1% (BARRO; LEE, 2021). Assim, as possibilidades de  
cooperação e as relações desiguais nesse processo são parte constitutiva do trabalho conjunto  
internacional.  
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1 Tradução livre: Eu acho que você viaja para buscar algo e regressa a casa para se encontrar lá.  
2
Dados do Banco Mundial apontam que o número de pesquisadores envolvidos em atividades de pesquisa em  
todo o mundo aumentou em quase 1,5 vezes de 1996 (788 por 1 milhão) a 2015 (1.151 por 1 milhão) (BANCO  
MUNDIAL, 2018).  
Revista Libertas, Juiz de Fora, v. 23, n.1, p. 49-69, jan./jun. 2023. ISSN 1980-8518  
Cooperação internacional em Serviço Social: uma revisão de literatura  
Mapa 1 – Proporção da população com 15 ou mais anos com ensino superior completo em 2010.  
Fonte: Barro e Lee (2021).  
A despeito disso, a Unesco (1998) defendia que uma via para tornar o conhecimento  
acessível a todos se daria por meio da cooperação internacional – sem questionar o tipo de  
educação que se ofertava e o que a cooperação internacional difundiria. Enfatizava o fomento  
da cooperação Norte-Sul com vistas a se obter o financiamento necessário para fortalecer a  
educação superior nos países em desenvolvimento” (UNESCO, 1998). Ou seja, esse debate  
ocorre em um contexto marcado por crises financeiras cíclicas (NETTO, 2012) e por relações  
colonizadas.  
51  
Hobsbawn (1994) nos lembra que, no início da de 1990, o mundo capitalista viu-se com  
taxas de desemprego em massa, depressões cíclicas severas, contraposição cada vez maior entre  
ricos e pobres.  
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À medida que a década de 1980 passava para a de 1990, foi ficando evidente  
que a crise mundial não era geral apenas no sentido econômico, mas também  
no político [...] Entre 1990 e 1993, poucas tentativas se fizeram de negar que  
mesmo o mundo capitalista desenvolvido estava em depressão. Ninguém  
afirmava a sério saber o que fazer a respeito, além de esperar que aquilo  
passasse (HOBSBAWN, 1994, p. 17-47).  
É mister lembrarmos que, em termos educacionais, as décadas de 1980 e 1990 foram  
marcadas pela eclosão de um movimento de reformas educacionais por todo o mundo,  
instaurando aquilo que Hargreaves, Earl e Ryan (2001) denominam de ‘nova ortodoxia oficial’,  
um movimento que é caracterizado pela padronização em torno de políticas de avaliação, de  
financiamento, de formação de professores e de currículo, e a visão de desenvolvimento  
preconizada por grandes organismos financeiros internacionais como o Banco Mundial  
(GARCIA; FERREIRA, 2013).  
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Revista Libertas, Juiz de Fora, v. 23, n.1, p. 49-69, jan./jun. 2023. ISSN 1980-8518  
Maria Lúcia Teixeira Garcia; Gary Spolander  
No Brasil, a década de 1990 traz a internacionalização das instituições de ensino  
superior (IES) como um componente da educação superior. A internacionalização, nos Boletins  
da Capes, aparece pela primeira vez em 1994 com a exigência de “nível internacional”, com  
referência à produção intelectual de um curso de conceito A. Naquela época, o “nível  
internacional” foi a forma encontrada para diferenciar os cursos de pós-graduação, tendo em  
vista que um grande número desses havia atingido o nível mais alto da escala de avaliação. E o  
termo “inserção internacional” aparece no volume 6, número 2, do InfoCAPES de 1998  
(CAPES, 1998). O termo aparece relacionado à discussão sobre a avaliação da produção  
intelectual, mais especificamente sobre a diferença entre o que é produção de nível  
internacional e o que é produção de circulação internacional. Era necessário, no discurso  
da agência, “[…] estabelecer parâmetros para medir a inserção internacional dos programas”  
(FIORIN, 1998, p. 35).  
A inserção da Capes do termo internacionalização como indicador (para diferenciar os  
programas de pós-graduação e o discurso da Unesco de cooperação como via de  
desenvolvimento) ocorre em um contexto de crise. Ao mesmo tempo, é mister entendermos que  
a cooperação internacional é um processo contraditório, que serve como  
[...] instrumento de conformismo científico-tecnológico, expressão  
contemporânea da sociabilidade humana, [que] ao mesmo tempo em que  
veicula ideologias reprodutoras das relações sociais dominantes, veicula  
também ideologias antagônicas e contraditórias [...] ao mesmo tempo  
reprodutora das relações sociais de produção capitalista e espaço de luta de  
classes, para superar estas relações (NEVES, 2002, p. 23-24, grifos nossos).  
52  
Ou seja, reafirmamos aqui nossa recusa a uma educação superior na legitimação do  
padrão de poder colonial (QUIJANO, 2005) e reconhecemos as assimetrias existentes na arena  
nacional e internacional. Assim, faz-se necessária a politização do debate sobre a educação  
superior, bem como reconhecer que esse debate sobre a internacionalização na pós-graduação  
é eivado de contradições, envolvendo múltiplos sujeitos e instituições situados em tempos e  
espaços distintos e desiguais. Embora haja um modus operandi global de gestão das políticas  
públicas, o poder de decisão está nas mãos de poucos que, no geral, habitam os países centrais.  
Em termos europeus, o processo de Bolonha3 (1999) e sua padronização do ensino  
superior trouxe a mobilidade de funcionários, estudantes e egressos como um de seus elementos  
centrais4, desenvolvendo a cooperação internacional entre indivíduos e instituições, como fator  
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3 O Processo de Bolonha tem seu marco inicial em 1998, quando ocorre um encontro de ministros da Educação de  
quatro países europeus (Alemanha, França, Itália e Reino Unido). E, em 1999, um novo encontro, então, com 29  
países, resulta na Declaração de Bolonha, com o objetivo explícito de construir um espaço europeu de ensino  
superior e conduzir a uma Europa da ciência e do conhecimento.  
4 Destacado pelos ministros responsáveis pelo ensino superior dos países participantes no Processo de Bolonha na  
Revista Libertas, Juiz de Fora, v. 23, n.1, p. 49-69, jan./jun. 2023. ISSN 1980-8518  
Cooperação internacional em Serviço Social: uma revisão de literatura  
que contribuiria para a qualidade do ensino superior e da pesquisa (PATRICIO; HARDEN,  
2010; WIELEWICKI; OLIVEIRA, 2010). Bolonha traz a premissa de criação de uma  
infraestrutura para um mercado global. Anos após, a Conferência Regional do Ensino Superior  
da América Latina e do Caribe (de 2008) e a II a Conferência Mundial de Educação Superior  
(CMES) (de 2009) estabeleceram que a internacionalização seria essencial para reduzir as  
diferenças entre os países. Mas precisamos questionar a internacionalização para que e para  
quem.  
[...] a geoeconomia política do conhecimento configura verdadeiros centros  
de atração, a partir dos quais o grosso da produção científica e tecnológica  
vem gravitando. Os EUA são a maior potência científica e tecnológica, o  
maior centro de atração de ‘cérebros’ e de captação de recursos por meio de  
taxas estudantis; a China é a principal potência emergente, assumiu a liderança  
em áreas tecnológicas sensíveis e implementou agressiva política de formação  
de novos cientistas nos principais centros e laboratórios do mundo para  
alcançar níveis ainda maiores de soberania tecnológica; a Alemanha, Grã-  
Bretanha e França seguem como potências científicas e tecnológicas em  
diversas áreas industriais estratégicas (LEHER; SANTOS, 2023, no prelo,  
grifos nossos).  
Ou seja, as diferenças entre os países em termos do desenvolvimento mascaram também  
outras dimensões: ao se privilegiar uma agenda de formação superior e de pesquisa em áreas  
de conhecimento relacionadas aos ramos produtivos preponderantes (como vemos no Brasil  
com a grande área vinculada ao agronegócio), reafirmam-se as desigualdades históricas entre  
as áreas de conhecimento (RIBEIRO et al., 2020).  
53  
Há, ainda, que considerarmos algumas outras questões. Por exemplo, entre 1990 e 2016,  
os pesquisadores do Reino Unido estiveram frequentemente envolvidos em pesquisas europeias  
de políticas sociais comparativas (que incluíam também o serviço social), com financiamento  
da União Europeia. Com a saída do Reino Unido da União Europeia, o aporte de financiamento  
cessou e isso impactou a manutenção de cooperações internacionais. Há ainda aspectos  
vinculados a cooperações de longa duração que requerem financiamento que transcendam um  
único ciclo de financiamento. Para o ensino superior e a pesquisa, as perdas foram além do  
recurso, colocaram o Reino Unido menos atrativo para pesquisadores e estudantes europeus,  
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além da perda de acadêmicos que estão deixando o Reino Unido (FAZACKERLEY, 2023).  
Por outro lado, as relações de solidariedade nacional e internacional ocuparão um lugar de  
destaque na agenda das universidades. São lutas complexas que reafirmam o compromisso das  
universidades públicas, gratuitas e laicas com o bem-viver dos povos (LEHER, 2008). Além disso,  
5ª Conferência Ministerial de Bolonha (2007).  
Revista Libertas, Juiz de Fora, v. 23, n.1, p. 49-69, jan./jun. 2023. ISSN 1980-8518  
Maria Lúcia Teixeira Garcia; Gary Spolander  
defendemos que a cooperação internacional também precisa ser pensada como um processo no qual  
as/os pesquisadoras/es se envolvem para serem melhores profissionais e seres humanos.  
Assim, como um tema da agenda de pesquisa, apresenta debates que oscilam entre  
aspectos relacionais (BAGSHAW; LEPP; ZORN, 2007), a importância da cooperação  
internacional e a organização internacional da categoria (KNIEPHOFF-KNEBEL; SEIBEL,  
2008), debates específicos (como no campo da saúde) (ABELL; RUTLEDGE, 2009), de  
questões geracionais (RØRSTAD; AKSNES; PIRO, 2021) e de gênero5 (AKSNES, PIRO,  
RØRSTAD, 2019), e, por fim, questões vinculadas à política de educação superior (GARCIA  
et al., 2021). Acrescentaríamos aqui a pressão das agências de fomento à pesquisa e pós-  
graduação para a internacionalização da ciência no Brasil, condição para a mudança na posição  
do país nos rankings internacionais de produção científica. E isto fica claro no relatório  
“Panorama da Ciência Brasileira 2015-2020” do Observatório em Ciência, Tecnologia e  
Inovação (OCTI) do Centro de Gestão e Estudos Estratégicos (CGEE, 2021). Esse relatório  
indicou que cerca de um terço da produção de artigos científicos de autores vinculados a  
instituições brasileiras é realizado por meio de colaboração internacional (Gráfico 1).  
Gráfico 1 – Distribuição percentual da participação de países na colaboração internacional dos artigos  
com a participação de, ao menos, um autor vinculado a uma instituição brasileira.  
54  
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Fonte: CGEE (2021).  
Outros dados indicaram que em 2021, em termos de cooperação educacional e  
5 Vabø (2012) constatou que a participação entre pesquisadores homens e mulheres se expressa de forma diferente  
nos Estados Unidos apenas 28% das acadêmicas do sexo feminino e 37% dos acadêmicos do sexo masculino (de  
todos os níveis) relatam colaborações de pesquisa com colegas internacionais; no Reino Unido, 69% dos  
acadêmicos masculinos e 53% das acadêmicas femininas relatam tal colaboração; na Alemanha, as proporções são  
de 52% para homens e 43% para mulheres acadêmicas.  
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Cooperação internacional em Serviço Social: uma revisão de literatura  
mobilidade de alunos brasileiros para instituições de ensino superior estrangeiras com apoio do  
governo brasileiro, aproximadamente 52% foram para França e Estados Unidos. E, em termos  
de atração de alunos/as estrangeiros/as, 30% eram de Cabo Verde, Benim ou Moçambique. Ou  
seja, os dados exemplificam barreiras como o idioma para alunos e docentes envolvidos em  
programas de intercâmbio ou econômicas (ou dependentes de financiamento estrangeiro)  
(ADEFILA et al., 2023[no prelo]).  
Em relação à mobilidade de professores brasileiros para o exterior em 2021, os destinos  
mais frequentes foram Estados Unidos, Alemanha, Espanha e França. Em termos de publicação  
de brasileiros em colaboração internacional, esta cresceu em média 7% ao ano na última década.  
Em 2021, os impactos das publicações colaborativas com Japão, China e Índia foram os maiores  
entre os 20 principais países parceiros do Brasil. Por outro lado, os dados revelaram uma  
estagnação relativa do impacto da produção científica do Brasil desde 2016 (COBRADI, 2022).  
E Luiz Davidovich (presidente da Academia Brasileira de Ciências) nos lembrava em 2022 que  
isso é resultado do descaso do governo federal com a ciência e que isto repercute sobre essa  
estagnação. Esse sistemático desfinanciamento da educação superior repercute sobre as fontes  
de recursos para apoio ao processo de internacionalização. Os recursos alocados para a  
internacionalização foram reduzidos significativamente pelo governo Bolsonaro – em 2021, o  
orçamento total da CAPES (Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior)  
foi 73,4% menor do que em 2015. Em um levantamento sobre mobilidade estudantil, Robles e  
Bhandari (2017) relataram falta de recursos financeiros para iniciativas internacionais. Assim,  
tomando o Brasil como exemplo, se por um lado as universidades brasileiras sofrem ano a ano  
com orçamento reduzido, por outro são pressionadas a aumentarem a pesquisa internacional e  
o intercâmbio de alunos e de docentes estrangeiros (TUMENAS, 2021). Esses aspectos  
comprometem o desenvolvimento da internacionalização nas IES brasileiras (ARINOLA et al.,  
2023 [no prelo]).  
55  
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Partimos do pressuposto de que a cooperação se constitui em uma associação entre  
pesquisadoras/es em uma relação marcada por diálogo e tomada de decisões conjuntas,  
resultando em definição conjunta de projetos e a partilha de custos. Mas também entendemos  
que há múltiplas dimensões que perpassam os processos reais de internacionalização, inserindo-  
se em uma realidade prenhe de contradições que perpassam o processo que equipes de  
pesquisadores, no cumprimento da sua atividade de pesquisa e formação, enfrentam para  
construir e conduzir uma agenda de trabalho em comum com colegas de diversos países. Ou  
seja, vivenciamos experiências de trabalho acadêmico e internacionalização, contradições  
similares, porém não necessariamente idênticas (GARCIA et al., 2021).  
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Revista Libertas, Juiz de Fora, v. 23, n.1, p. 49-69, jan./jun. 2023. ISSN 1980-8518  
Maria Lúcia Teixeira Garcia; Gary Spolander  
Com essas questões em mente, e inseridas em uma experiência de cooperação internacional, nos  
propomos, neste artigo, a partir de revisão de literatura, refletir sobre o tema cooperação internacional  
no Serviço Social.  
Para tanto, realizamos levantamento utilizando dois descritores: cooperação internacional em  
pesquisa e Serviço Social e cooperação internacional em pesquisa em Serviço Social (em inglês e  
português), nas bases de dados Scopus, nos Periódicos Capes e no Google Acadêmico. Da base Scopus  
(textos em inglês) foram listados 46 artigos (sem repetição), e destes, 6 tratavam sobre o Serviço Social.  
Na base Periódicos Capes foram listados foram listados 3.687 artigos; destes, 7 (sem repetição) tratavam  
do tópico em tela. Por fim, no Google Acadêmico, identificamos 3 textos sem repetição. Como critérios  
de inclusão, selecionamos textos que tratassem de cooperação internacional envolvendo o Serviço  
Social. Foram selecionados 16 artigos sem repetição. Exploramos as seguintes variáveis: país de  
procedência, periódico utilizado e foco dos textos. Nossa pergunta de pesquisa foi: o que o Serviço  
Social ao redor do mundo escreve sobre cooperação científica no Serviço Social? Que tópicos são  
privilegiados nesse debate? Além disso,verificamos como os relatórios de avaliação dos programas de  
pós-graduação da área de Serviço Social na Capes (trienais 2004, 2007, 2010 e 2013; e quadrieais 2017  
e 2021) apresentam dados sobre a cooperação internacional na área.  
Este texto, além desta introdução, está dividido em duas seções. Primeiro vamos refletir  
sobre a cooperação internacional e o que as/os autores tratam do tema, para, na segunda seção,  
explorar o debate no Serviço Social. Também destacaremos nesta seção questões sobre  
cooperação internacional a partir de dados do Serviço Social no Brasil.  
56  
Cooperação internacional em Serviço Social: um fino equilíbrio desequilibrado  
Nosso ponto de partida nesta reflexão parte da vivência acumulada em cooperações  
Norte-Sul como também cooperações Sul-Sul. E, neste percurso, fomos constatando que  
sentíamos falta de textos que descrevessem os processos de cooperação. Isso foi parte dos textos  
que escremos sobre a temática (SPOLANDER et al., 2014; SPOLANDER; GARCIA;  
PENALVA, 2016; GARCIA et al., 2022a,b; GARCIA et al., 2021; GARCIA; FERREIRA,  
2023). Ou seja, vamos falar aqui como esse processo de pesquisa em cooperação internacional  
foi constituindo-se para nós, dialogando com os textos e com as lições que acumulamos.  
Relatos de cooperação em pesquisa em serviço social na Europa, como os de van Ewijk  
(2011), identificam questões que desafiam os processos de cooperação internacional, tais como:  
encontrar um equilíbrio entre dissenso e consenso no interior da equipe; garantir uma adequada  
implementação e valorização dos resultados da investigação; reconhecer, respeitar e lidar com  
os diferentes papéis dos investigadores (DEHERTOGH; DRIESSENS; DIERCKX, 2011).  
Outro aspecto também é o desenvolvimento de confiança entre os membros da equipe,  
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Revista Libertas, Juiz de Fora, v. 23, n.1, p. 49-69, jan./jun. 2023. ISSN 1980-8518  
Cooperação internacional em Serviço Social: uma revisão de literatura  
assumindo postura tolerante e respeitosa com os outros (opiniões e perspectivas) (ENVULADU  
et al., 2022). Os autores acrescentam que, muitas vezes, as parcerias não têm conhecimento  
prévio de todas as pessoas das equipes. Quando ingressamos nessa cooperação, não  
conhecíamos seus membros e o processo de estranhamento foi quase instantâneo. Esse  
estranhamento era de várias ordens: dificuldades de comunicação, divergências teóricas e  
direcionamentos definidos pela agência financiadora do projeto. Nossas dificuldades se  
encontravam com o relatado por Engelbrecht et al. (2014), que referem que, apesar dos  
benefícios, esse é um processo crivado por vários desafios, tais como: obstáculos ao  
financiamento e dificuldades de comunicação. Outro aspecto é o foco nos produtos da  
cooperação, e não no processo dessas cooperações internacionais de pesquisa. Além disso,  
formar uma equipe de pesquisa não garante os resultados de pesquisa desejados – o processo  
de gerenciamento da pesquisa é igualmente importante.  
Acrescentaríamos aqui outro aspecto pouco destacado nos artigos: as aventuras e  
desventuras vividas por pesquisadoras/es em longas viagens e períodos fora de casa e do  
trabalho em suas universidades (só quem se aventura sabe do que estamos falando). Ou seja, os  
artigos sobre pesquisa em cooperação internacional encobrem os desafios do processo,  
preferindo discutir os resultados. Há também questões de desigualdade em termos de poder. Por  
exemplo, pesquisadores africanos e brasileiros têm dificuldades para acessar o financiamento  
da pesquisa, ou há desigualdades no aporte de recursos entre as agências de fomento (vemos  
isso nos editais do CNPq e da União Europeia, por exemplo).  
57  
Em termos metodológicos, as pesquisas participativas e suas variantes requerem um  
esforço para compreender e desvendar profundamente desigualdades de poder enraizadas  
embutidas nas relações internas/externas (STOECKER, 1999). É também um processo que  
requer a construção coletiva do objeto de estudo a ser pesquisado. O tempo aqui é vital para o  
desenho metodológico; tempo que muitos pesquisadores não têm disponível. Essas assimetrias  
se expressam ainda por agendas muitas vezes determinadas pelas agências de financiamento e  
por relações verticalizadas no processo de tomada de decisão.  
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Formulações passo a passo aplicando princípios-chave, começando com uma  
compreensão do contexto, abrangendo o recrutamento e a utilização de apoio e demonstrando  
compromisso com o envolvimento sustentado e a disseminação de respostas programáticas  
culturalmente relevantes, é uma dinâmica que requer tempo e envolvimento das/os  
pesquisadoras/es, nem sempre possível considerando as condições de trabalho atuais as  
universidades.  
Shaw (2019, 2020), em sua experiência em uma rede de pesquisa internacional, reflete  
Revista Libertas, Juiz de Fora, v. 23, n.1, p. 49-69, jan./jun. 2023. ISSN 1980-8518  
Maria Lúcia Teixeira Garcia; Gary Spolander  
que a permanência desta se deu porque continha uma diversidade mutuamente crítica. Por outro  
lado, este mesmo autor chama a atenção das desigualdades nesse campo, entre elas, as restrições  
em termos nacionais. Cerca de 95 a 98 por cento das citações em periódicos dos EUA por  
estudiosos dos EUA são de outros estudos dos EUA (SHAW, 2014). Ou seja, a definição dos  
veículos de comunicação científica também expressam assimetrias nesse campo.  
Para esse autor, o Serviço Social precisa reconhecer que a pesquisa internacionalmente  
deve assumir diversas formas, e não se restringir a um modelo padrão qualquer, à medida que  
a pesquisa em um scopo internacional permite a investigadores e profissionais compartilhem  
conhecimentos e recursos.  
Por outro lado, o desafio de interpretar o Serviço Social a partir de uma perspectiva  
crítica e radical em um contexto internacional requer uma compreensão das diferenças presentes  
na profissão nos diferentes países (e suas tradições) (SPOLANDER et al., 2014). É mister  
também compreender a formação social, econômica e política e o estágio de desenvolvimento  
na dinâmica capitalista de cada país envolvido na cooperação.  
Assim, a seguir, debateremos a questão da cooperação internacional no Serviço Social.  
A cooperação internacional no Serviço Social de dentro para fora e de fora para  
dentro  
58  
A superação de fronteiras tem sido um elemento central no desenvolvimento do Serviço  
Social no mundo, desde seus primórdios no final do século XIX e início do século XX  
(KNIEPHOFF-KNEBEL; SEIBEL, 2008). Essas autoras destacam dois aspectos: o papel  
feminino nesse processo e a influência que teve no desenvolvimento de organizações sociais  
internacionais. Em termos de perfil das/os assistentes sociais, a questão de gênero se faz  
presente: nos Estados Unidos 83% dos assistentes sociais são sexo feminino (COUNCIL ON  
SOCIAL WORK EDUCATION, 2017); no Reino Unido, em torno de 84% (BASW, 2016); e  
no Brasil são um pouco mais de 92% (CFESS, 2022).  
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A coooperação é intrínseca ao Serviço Social (ABELL; RUTLEDGE, 2009) no  
processo de pesquisa e intervenção, “[...] compartilhando recursos, poder e autoridade”  
(GRAHAM; BARTER, 1999, p. 7).  
O crescimento da cooperação internacional no Serviço Social (DAS; ANAND, 2014;  
JONES; TRUELL, 2012; KREITZER et al., 2012; TAYLOR; SHARLAND, 2015) destaca a  
importância e os esforços que estão sendo feitos por pesquisadoras/es ao redor do mundo. Há  
ainda pressão derivada da Agenda Global (JONES; TRUELL, 2012). Para esses autores, a  
conjuntura marcada por  
Revista Libertas, Juiz de Fora, v. 23, n.1, p. 49-69, jan./jun. 2023. ISSN 1980-8518  
Cooperação internacional em Serviço Social: uma revisão de literatura  
[...] recessão mundial, a globalização dos sistemas econômicos, o aumento da  
desigualdade dentro e entre nações, movimentos migratórios extensos,  
aumento de pandemias, mudanças climáticas, catástrofes naturais e novas  
formas de conflito, obrigam o Serviço social [...] a encontrar novas formas de  
responder a novas realidades (JONES; TRUELL, 2012, p. 5).  
A “internacionalização”, como resultado da ascensão da política neoliberal e  
competição de pesquisa (KIM, 2009), resulta também processos quantitativos de avaliação  
focados menos no conteúdo da produção acadêmica e mais no veículo em que são publicadas e  
no número de citações que coleta (ENGWALL, 2008). Barata (2019, p. 2), referindo-se à  
realidade da avaliação da pós-graduação no Brasil, afirma:  
[...] o uso cada vez mais acrítico dos indicadores quantitativos; a tendência de  
avaliar o desempenho dos programas por meio do desempenho individual dos  
docentes ao invés de tomar o programa em si como unidade de análise; o  
engessamento dos programas que se guiam mais pelo alcance dos critérios do  
que pela busca permanente da qualidade.  
Os editais de financiamentoo de pesquisas também centram os critérios sobre indicadores de  
publicação em língua inglesa, em periódicos melhor ranqueados. No Europass (currículo vitae para  
editais da União Europeia) dois itens se destacam: publicação e premiações de cada pesquisador/a.  
Por outro lado, e também parte desse processo, as/os pesquisadoras/es envolvidos vêm  
produzindo uma nova geração de pesquisadores com experiências internacionais em Serviço Social  
(SPOLANDER; GARCIA; PENALVA, 2016). Essa nova geração, ao interagir com pesquisadores  
internacionais, vivencia processos importantes em sua formação.  
59  
Concordamos com Spolander, Garcia e Penalva (2016), que ressaltam a necessidade de  
problematizarmos quanto ao propósito, à natureza e à utilização das cooperações internacionais, que  
incluem as condições e relações de trabalho das/os docentes, que incluem a sobrecarga de trabalho e  
sofrimento psíquico presente na realidade das universidades. Almer (2018) indica que as transformações  
estruturais implementadas nas universidades afetaram as condições de trabalho e resultam em  
intensificação e extensão do trabalho, confusão entre trabalho e tempo livre, precarização,  
autoexploração e automarketing. Prasad et al. (2018) destacam os efeitos negativos para a saúde de  
docentes universitários, tais como estresse, depressão e insegurança. Por isso, nacional e internacional,  
a preocupação e o cuidado com a saúde mental é parte do processo de cooperação.  
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Cooperação internacional do Serviço Social desde o Brasil  
As relações internacionais são constitutivas da história e trajetória do Serviço Social no  
Brasil e no mundo6 – nas décadas de 1950/1960, havia um intercâmbio entre profissionais  
6 Por exemplo, a Associação Internacional de Escolas de Serviço Social (IASSW) – organização mundial de  
escolas de serviço social – foi criada na primeira Conferência Internacional de Serviço Social, em Paris em 1928,  
contou com a presença de mais de 2.400 delegados de 42 países, também resultou no estabelecimento de duas  
organizações parceiras, o Conselho Internacional de Bem-Estar Social (ICSW) e a Federação Internacional de  
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Maria Lúcia Teixeira Garcia; Gary Spolander  
brasileiros e americanos, que ocorria por meio de instituições como Serviço Social da Indústria  
e conferências internacionais (IASSW, 2023).  
No caso do diálogo no contexto latino-americano, esse remete às décadas 1960-1970 do  
século XX na América Latina. O Centro Latino-Americano de Trabalho Social e a Associação  
Latino-Americana de Escolas de Serviço Social (Celats-Alaets) – hoje Alaeits –  
desempenharam um papel exemplar na introdução do pensamento crítico no Serviço Social na  
América Latina vinculado aos interesses das classes subalternas, quando a pós-graduação e a  
pesquisa acadêmica davam seus primeiros passos nessa área (CARDOSO; CESAR, 2015).  
Montaño (2011, p. 766) refere  
[...] a forte presença do debate brasileiro nos eventos internacionais (desde  
meados dos anos 1960), na revista Acción Crítica (da Alaets-Celats, desde  
1979), no mestrado latino-americano em Honduras, coordenado pelo Celats  
(desde 1978), além da participação intensa nos diversos cargos na Alaets  
(Associação Latino-Americana de Escolas de Trabalho Social) e no Celats  
(Centro Latino-Americano de Trabalho Social.  
Com a criação dos programas de pós-graduação no Brasil (mestrado a partir da década  
de 1970 e doutorado a partir dos anos 1980) (GARCIA; NOGUEIRA; FORTI, 2016), essa  
relação se expande, com a vinda de pesquisadores da América Latina para a formação em nível  
de pós-graduação no Brasil. Prates e Carraro (2019, p. 10, grifos nossos), em pesquisa sobre  
internacionalização dos PPGs da área de Serviço Social, apontam que as  
60  
[…] principais dificuldades encontradas pelos PPGs: escassos recursos  
disponíveis para estimular a participação de alunos e professores em eventos  
internacionais e custear a tradução de artigos para línguas estrangeiras;  
poucos editais que financiam processos de internacionalização e  
notadamente a dificuldade de domínio de línguas estrangeiras por  
professores e alunos, em especial a língua inglesa.  
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Recursos escassos e insuficientes para financiamento da internacionalização e barreiras  
linguísticas aparecem novamente retratados à medida que pensamos as cooperações com países  
de língua inglesa (5% dos brasileiros falam inglês e, dentro desse índice, 1% possui fluência  
total no idioma).  
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A cooperação internacional nos relatórios de avaliacão da área de Serviço Social  
na Capes  
Em uma revisão dos três relatórios trienais (2004, 2007, 2010 e 2013) e dois quadrienais  
(2017 e 2021), vemos que a internacionalização assume progressivamente papel de destaque.  
Em 2004 e 2007 o destaque é dado ao crescimento e amadurecimento da área de Serviço Social  
Assistentes Sociais (IFSW).  
Revista Libertas, Juiz de Fora, v. 23, n.1, p. 49-69, jan./jun. 2023. ISSN 1980-8518  
Cooperação internacional em Serviço Social: uma revisão de literatura  
na Capes, com ampliação de convênios para intercâmbios acadêmicos – com instituições  
nacionais e internacionais, com um corpo docente composto de doutores (alguns com pós-  
doutorado desenvolvido no exterior). Merecem destaque nessa inserção internacional os  
programas da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP) e da Universidade  
Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), com atração de estudantes de países da América Latina e de  
Portugal (CAPES, 2004).  
De acordo com Coelho e Guedes (2021, p. 549) a:  
[...] relação entre o Serviço Social brasileiro e o português se intensificou em  
determinados momentos da trajetória sócio-histórica da profissão nos dois  
lados do continente [...] o momento em que foram firmados os protocolos de  
cooperação científica entre a Pontifícia Universidade Católica de São Paulo e  
as escolas portuguesas, o qual representou relevante contribuição para o  
reconhecimento do Serviço Social como licenciatura em Portugal na década  
de 1980.  
Por outro, o relatório de 2007 destaca a necessidade de os programas diversificarem  
sua produção, privilegiando os níveis nacional e internacional. Também ressalta que a  
produção bibliográfica do Serviço Social circula, nacional e internacionalmente, principalmente  
nos diversos países da América Latina, em países europeus, com destaque a Portugal, e em  
países de língua portuguesa da África, contribuindo para o conhecimento da questão social e  
das políticas sociais na contemporaneidade, bem como para o avanço teórico-metodológico do  
Serviço Social (CAPES, 2007).  
61  
No relatório em 2010, a área apontava que os programas de pós-graduação mantinham  
intercâmbios com países da América Latina (Argentina, Chile, Uruguai e Colômbia), África  
(Moçambique, Angola e Cabo Verde) e Europa (França, Itália, Portugal e Inglaterra).  
Entretanto, esse relatório destacava que as redes de pesquisa requeriam maior estruturação  
(CAPES, 2010).  
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Nos relatórios da trienal 2013 e quadrienal 2017, as cooperações internacionais  
realizadas pela área reafirmam o compromisso com o fortalecimento do Serviço Social na  
América Latina, na África e em Portugal e na Espanha. A internacionalização para a área  
significa o exercício da ação colaborativa com os continentes e o espraiamento de uma dada  
concepção da profissão. Escolas de Serviço Social brasileiro colaboram com a estruturação (ou  
reestruturação) de escolas de Serviço Social nesses países. Assim, as cooperações na área  
majoritariamente se estruturam no modelo sul-sul (Gráfico 1), com tendência recente de  
cooperações norte-sul.  
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Revista Libertas, Juiz de Fora, v. 23, n.1, p. 49-69, jan./jun. 2023. ISSN 1980-8518  
Maria Lúcia Teixeira Garcia; Gary Spolander  
Gráfico 1 – Cooperações internacionais dos PPGs da área de Serviço Social na Capes (quadrienais 2013-2016 e  
2017-2020).  
20  
15  
10  
Sul-Sul  
5
Norte-Sul  
0
2013-2016  
2017-2020  
Fonte: Relatório da área de Serviço Social nas quadrienais 2013-2016 e 2017-2020. Sistematização dos autores  
(2023).  
A cooperação internacional em pesquisa: o que dizem os artigos?  
Os textos selecionados são majoritariamente de língua inglesa e com autores  
procedentes dos países centrais (Estados Unidos, Alemanha e Reino Unido – 39%). O Brasil  
respondeu por 10% (com produções em parceria do tipo norte-sul e 1 de autoras brasileiras)  
(Gráfico 2).  
62  
Gráfico 2 – Nacionalidade dos autores dos artigos selecionados  
3%  
3%  
3%  
Estados Unidos  
Alemanha  
Reino Unido  
Suécia  
3%  
13%  
6%  
6%  
10%  
16%  
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10%  
Suiça  
3%  
3%  
10%  
Russia  
África do Sul  
Finlandia  
3%  
3%  
3%  
Fonte: Scopus, Portal de periódicos Capes e Google Acadêmico. Sistematização dos autores (2023).  
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63% dos autores eram do sexo feminino e 37% masculino. Ou seja, a relação foi de  
quase 2 autoras por autor. É mister aprofundar esse debate em termos de problematizações  
futuras. Em termos dos periódicos utilizados, destacam-se journals em inglês, vinculados a  
editoras como Sage (3), Taylor e Francis (4), Bristol University press (2), OJS (2), Oxford  
Academic (2), Wiley Online Library (1), Elsevier (1) e Scielo (1). Ou seja, entre os periódicos  
destacam-se 5 das 10 principais editoras mundiais (Elsevier, Springer, Wiley, Taylor & Francis  
Revista Libertas, Juiz de Fora, v. 23, n.1, p. 49-69, jan./jun. 2023. ISSN 1980-8518  
Cooperação internacional em Serviço Social: uma revisão de literatura  
(T&F), Sage, Oxford University Press (OUP), American Chemical Society (ACS), Wolters  
Kluwer (Kluwer), Institute of Electrical and Electronics Engineers (IEEE) e Royal Sociedade  
de Química (RSC)) (SANG-JUN; PARK, 2020).  
Dessa lista, destacamos dois periódicos:  
a) Social Work Journal, editado pelo National Association of Social Work (NASW) e  
divulgado pela Oxford University Press, que é considerado o primeiro periódico do Serviço  
Social (criado em meados dos anos 1950)7;  
b) European Social Work Research, criado em 2022 e publicou seu primeiro número em  
2023.  
Tabela 1 – Periódicos utilizados para publicação  
Nome do periódico  
International social work  
N.  
3
2
2
1
1
1
1
1
1
1
1
1
Social work education  
Transnational Social Review: A Social Work Journal  
The British Journal of Social Work  
Social work & society  
Social work (New York)  
Serviço Social & Sociedade  
63  
Revista de Políticas Públicas (UFMA)  
Critical and radical social Work  
Conflict resolution quarterly  
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Fonte: Scopus, Capes periódicos e Google acadêmico. Sistematização dos autores (2023).  
Cinco artigos descrevem aspectos do processo de cooperação, como pode-se observar  
nestes recortes: “O artigo fornece “insights práticos e reflexões sobre o projeto de diálogo  
internacional que provou ser uma experiência de aprendizado perspicaz para alunos e  
funcionários” (JULKUNEN; RUCH; NURMI, 2022); “[...] reflete criticamente sobre a  
experiência da pesquisa em um contexto internacional a partir de um processo de cooperação  
envolvendo equipes da Universidade Federal do Espírito Santo, da Universidade de Coventry,  
da Universidade Robert Gordon e da Universidade de Havana” (GARCIA et al., 2022); “Em  
nosso trabalho internacional em vários continentes e representando diferentes disciplinas, entre  
si e com os outros, vivemos a alegria de colaboração, bem como refletimos sobre seu lado  
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7 Informações disponíveis na página do periódico, disponível no link: https://academic.oup.com/sw/pages/About.  
Revista Libertas, Juiz de Fora, v. 23, n.1, p. 49-69, jan./jun. 2023. ISSN 1980-8518  
Maria Lúcia Teixeira Garcia; Gary Spolander  
sombrio” (LOMBE et al., 2013).  
Por outro lado, há outro conjunto de textos com proposições e descrições de como fazer  
funcionar uma cooperação. De caráter prescritivo, esses textos destacaram: “[...] fatores que  
contribuem para uma cooperação bem-sucedida” (SCHILLING et al., 2013). “O escopo deste  
artigo é a análise de onde estão os benefícios e os desafios para a concepção transnacional da  
redução da pobreza por meio de novas mídias e da colaboração em pesquisa transnacional”  
(WALDIS; DUFF, 2017).  
A pesquisa empírica sobre a prática contemporânea do serviço social com  
comunidades migrantes urbanas [...] considera as possibilidades dessa  
abordagem conceitual para o serviço social [...] e termina com um apelo  
afirmativo à ação cooperativa e uma reconceitualização da cooperação  
baseada na aceitação da diferença. (JULKUNEN; RUCH; NURMI, 2022).  
Em geral, os textos destacam termos como pesquisa, colaboração, processo, desafio e  
Serviço Social (Figura 1).  
Figura 1 – Nuvem de palavras dos resumos  
64  
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Fonte: Scopus, Periódicos Capes e Google Acadêmico. Sistematizado pelos autores, 2023.  
O processo de cooperação é, assim, atravessado por desafios profissionais em ações  
colaborativas que são complexas e requerem debate e adensamento. Um aspecto que chama a  
atenção nos artigos foi a repetição (ou não) das/os autoras/es dos artigos. Os nomes que se  
repetem nesta amos foram os de Spolander e Garcia e reproduz o tempo que as cooperações  
podem ou não durar ao longo de um contínum de tempo. Em nosso caso, um pouco mais de 10  
anos de cooperação permitem que a aprofundamento do debate ocorra.  
Revista Libertas, Juiz de Fora, v. 23, n.1, p. 49-69, jan./jun. 2023. ISSN 1980-8518  
Cooperação internacional em Serviço Social: uma revisão de literatura  
Conclusão  
O artigo enfatizou a internacionalização como um processo que faz parte do Serviço  
Social. Entretanto, as relações assimétricas entre os países centrais e periféricos repercute sobre  
o fluxo desse processo, que engloba desde a delimitação do foco das pesquisas até as relações  
no interior das equipes, passando pelo financiamento.  
Todo esse percurso traz alguns pontos para reflexão: a direção e os processos de  
internacionalização nos indicam pontos fundamentais para adensarmos o debate no Brasil. Por  
outro lado, é mister ampliarmos a produção bibliográfica sobre o tema, a começar pelo o Brasil.  
Tal assertiva se sustenta ante a pressão pela internacionalização dos programas de pós-  
graduação no Brasil e pela ausência de financiamentos que sustentem as ações de  
internacionalização.  
Concluímos parafraseando Adichie: nossa viagem permite olhar nossa realidade e  
repensar os caminhos pelos quais a cooperação em pesquisa internacional na área deve ser  
problematizada e adensada. Precisamos definir coletivamente os novos rumos e desafios da  
cooperação internacional.  
Referências bibliográficas  
ABELL N; RUTLEDGE, SE. Awareness, acceptance and action: Developing mindful  
collaborations in international HIV/AIDS research and service. British Journal of Social  
Work, v. 40, n. 2, p. 656-675, maio 2009. DOI: 10.1093/Bjsw/Bcp047.  
65  
ADEFILA, A. et al. Evaluating International student experience in Brazil. [2023?]. No prelo.  
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DOI 10.34019/1980-8518.2023.v23.41243  
Convergencias de la Reconceptualización del  
Trabajo Social en Argentina, Chile y Colombia  
Convergence the Reconceptualization of Social Work in Argentina, Chile  
and Colombia  
Sergio Quintero Londoño*  
Resumo: Este artículo hace parte de la  
investigación “O Movimento de  
Reconceituação do Serviço Social na América  
Latina (Argentina, Brasil, Chile, e Colômbia):  
Abstract: This article is part of the research  
project "The Reconceptualization Movement of  
Social Work in Latin America (Argentina,  
Brazil, Chile, and Colombia): historical  
determinants, international dialogues, and  
memory," conducted between 2016-2021. It  
provides an introductory balance of Argentina,  
Chile, and Colombia, drawing on the published  
work in two books (Cortez 2021 and UFJF  
2022). The objective is to identify points of  
convergence in the Reconceptualization  
experiences in the aforementioned countries. As  
a result of this balance, eight points were found  
that provide unity to the Latin American  
process: 1) Brushing against the grain of history,  
2) The past that enlightens the present, 3) Social  
Work is inscribed in a larger totality, 4) Social  
Work was directly articulated with social  
processes and struggles, 5) The student  
movement was a privileged setting for Social  
Work, 6) Social Work engages/incorporates the  
determinantes  
históricos,  
interlocuções  
internacionais e memória”, llevada cabo entre  
2016-2021. Constituye un primer balance  
introductorio sobre Argentina, Chile  
y
Colombia, retomando la producción publicada  
en dos libros (Cortez 2021 y UFJF 2022). El  
objetivo es identificar los puntos de  
convergencias en las experiencias de  
Reconceptualización vivida en los países  
mencionados. Como resultado del balance se  
encontraron 8 puntos que dan unidad al proceso  
latinoamericano: 1) Cepillar la historia a  
contrapelo, 2) El pasado que ilumina el  
presente, 3) El Trabajo Social se inscribe en una  
totalidad mayor, 4) El Trabajo Social se articuló  
de manera directa con procesos y luchas  
sociales, 5) El movimiento estudiantil fue  
escenario privilegiado para el Trabajo Social, 6)  
El Trabajo Social interlocuta/incorpora las  
ciencias sociales y el marxismo, 7) La  
Reconceptualización parte del desarrollismo y  
consolida una crítica radical, 8) La  
Reconceptualización también sufrió límites  
teórico-metodológicos y políticos; por fin, una  
nota adicional.  
social  
Reconceptualization  
sciences  
and  
Marxism,  
emerged  
7)  
from  
developmentalism and consolidated a radical  
critique, 8) Reconceptualization also  
encountered theoretical-methodological and  
political limits. Finally, an additional note.  
Palavras-chaves:  
Trabajo  
Social,  
Keywords: Social Work, Reconceptualization,  
Reconceptualización, Desarrollismo, Crítica,  
Renovación.  
Developmentalism, Critique, Renovation.  
Recebido em: 20/02/2023  
Aprovado em: 26/05/2023  
*
Doutor em Serviço Social pela UERJ. Docente da Universidade de Caldas – Colômbia. ORCID:  
Revista Libertas, Juiz de Fora, v. 23, n.1, p. 70-84, jan./jun. 2023. ISSN 1980-8518  
Convergencias de la Reconceptualización del Trabajo Social en Argentina, Chile y Colombia  
Introducción  
La investigación titulada “O Movimento de Reconceituação do Serviço Social na  
América Latina (Argentina, Brasil, Chile e Colômbia): determinantes históricos, interlocuções  
internacionais e memória”, financiada por CNPq, coordinada por las profesoras Marilda Villela  
Iamamoto y Claudia Mônica dos Santos, aporta una voluminosa y significativa producción  
académico/política al Trabajo Social, tanto en Brasil como en otras latitudes que van más allá  
del escenario regional1.  
Esta producción no sólo goza de amplitud, sino también de profundidad, en tiempos en  
los que ambas características son escasas en el mundo académico. La investigación toma como  
objeto de estudio la Reconceptualizcaión en Argentina, Brasil, Chile y Colombia, así como las  
interlocuciones internacionales con Europa (España, Portugal y Reino Unido), y Norteamérica  
(Estados Unidos). Los resultados sólo fueron posible gracias al trabajo constante del grupo de  
investigadoras/es, que en los diferentes países están integrados por estudiantes de pregrado,  
maestría y doctorado, así como docentes con una larga tradición investigativa y un  
reconocimiento destacado.  
71  
Como resultado de las pesquisas se obtuvo la publicación de artículos científicos en  
América Latina y Europa, capítulos de libros y dos libros (compilaciones) en portugués: uno  
publicado por la Cortez Editora en 2021, coordinado por Marilda Villela Iamamoto y Claudia  
Mônica dos Santos; y otro por la Editora de la Universidad Federal de Juiz de Fora (UFJF),  
publicado en 2022, organizado por Alexandra A. L. T. S. Eiras, Carina Berta Moljo y Maria  
Lúcia Duriguetto2.  
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En el presente trabajo se realiza un balance introductorio sobreAmérica Latina, tomando  
como material de análisis los capítulos sobre Argentina, Chile y Colombia en los libros  
publicados por la Cortez y la UFJF. La intención es identificar los puntos de convergencia entre  
estos países, más allá de las particularidades señaladas por las/os investigadoras/es. Si bien,  
tales particularidades son tan relevantes como las tendencias generales, el análisis aquí  
elaborado pretende llamar la atención sobre las generalidades del movimiento.  
ê
1 Una primera versión de este artículo fue presentada en el XXIII Seminario de ALAEITS en Uruguay 2022.  
2 La primera compilación de Iamamoto y Dos Santos (2021) fue titulada A história pelo avesso. A reconceituação  
do Serviço Social na América Latina e interlocuções internacionais; y la segunda, de Eiras, Moljo y Durigueto  
(2022), fue titulada Perspectivas histórico-críticas no Serviço Social América Latina, Europa e EUA.  
Revista Libertas, Juiz de Fora, v. 23, n.1, p. 70-84, jan./jun. 2023. ISSN 1980-8518  
Sergio Quintero Londoño  
En total fueron analizados 8 capítulos (4 de la Cortez y 4 de la UFJF), de los cuales 3  
corresponden a Argentina, 3 a Chile y 2 a Colombia3. No fue incorporado Brasil, siendo  
necesario un análisis posterior en el que se incluya el país lusófono.  
Sin perder de vista las particularidades de cada país, que en últimas son el material  
inédito aportado por la investigación, a continuación se exponen 8 puntos de convergencia que,  
de acuerdo al material analizado, caracterizan el movimiento de la Reconceptualización como  
un todo. En algunos casos serán utilizadas (tal vez de manera excesiva) las citas textuales,  
mientras que en otros se opta por la referencia genérica de los textos.  
Puntos de convergencia:  
1 - Cepillar la historia a contrapelo.  
Expresando con nitidez una de las herencias más destacadas de la Reconceptualización,  
la totalidad de los textos despliega su reflexión histórica a partir de una pluralidad teórica en la  
que se encuentran diversas expresiones críticas. Si bien la teoría de Marx y los marxismos son  
fuente privilegiada en la producción analizada, éste no agota el campo analítico del objeto, sino  
que establece una interlocución complementaria con otras teorías.  
Ahora bien, en medio de la pluralidad teórica se identifica una unidad política que opta  
por analizar la historia desde el relato y los intereses de la clase trabajadora y los sectores  
subalternizados. Sin perder la objetividad que exige la investigación científica (que no puede  
ser confundida con neutralidad), se opta por una reflexión comprometida con los valores  
emancipadores que inspiraron las luchas sociales y profesionales de las décadas 1960 y 1970.  
La recuperación de las experiencias más significativas de las luchas sociales y los  
avances del pensamiento crítico en el escenario profesional, muestran que a pesar de la  
hegemonía conservadora (en la que la Reconceptualización logra crear puntos de inflexión), la  
historia es el resultado de contradicciones, en las que se hace necesario rescatar el legado de  
“los oprimidos”, de “los dominados”, “del pueblo”. Esta recuperación crítica del pasado  
72  
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3 Los textos referentes a Argentina son: (Moljo, Pagaza y Siqueira) Tendências teórico-políticas no Serviço Social  
argentino nas décadas 1960-1970: a Reconceituação em debate; (Marro, Duriguetto y Panez) O Trabalho Social  
argentino na Universidades, nas ruas, nas villas e sindicatos: reconceitualizando sua histórica. (Moljo et al.)  
Movimento de Reconceituação na Argentina: influências teórico-políticas e culturais. Los dos primeros de la  
Cortez Editora y el último de la Editora de la UFJF.  
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Los de Chile son: (Arancibia y Calderón). Reconceituação e projeto emancipatório na Universidade Católica de  
Valparaíso. (Marro et al.) Notas introdutórias da influência do pensamento de Paulo Freire no Movimento de  
Reconceituação do Serviço Social no Chile (1970-1973). (Orellana). Serviço Social e a tradição dos oprimidos: a  
importância do estudo da reconceituação do Serviço Social no Chile. Siendo el primero publicado por Cortez y  
los otros dos por la UFJF.  
Los textos de Colombia son: (Quintero). O processo de modernização do Serviço Social na Colômbia:  
determinantes histórico-sociais. (Quintero). A Frente Nacional e a Reconceituação do Serviço Social na  
Colômbia.  
Revista Libertas, Juiz de Fora, v. 23, n.1, p. 70-84, jan./jun. 2023. ISSN 1980-8518  
Convergencias de la Reconceptualización del Trabajo Social en Argentina, Chile y Colombia  
buscando trascender la historia de los vencedores; al decir de Walter Benjamin, citado por  
Orellana (2022), convoca al/la historiador/a materialista a “cepillar la historia a contrapelo”.  
El mismo Orellana (2022) plantea que “La hipótesis explorada en este artículo  
argumenta que el estudio reconceptualizador de la historia chilena a partir de la perspectiva  
de la tradición de los oprimidos es una manera en la que el Trabajo Social puede contribuir  
para la profundización de las fisuras del presente”. (p. 61)4.  
Es así que la Reconceptualización es reconstruida y analizada como un proceso  
privilegiado en la constitución profesional, apuntando de manera clara y directa al compromiso  
político que ésta logró explicitar, y que es traído hasta el tiempo presente, enfrentando las  
versiones mistificadas de la “neutralidad valorativa”.  
En las diferentes investigaciones se hace evidente la intención de analizar con rigor la  
Reconceptualización, rescatando relatos, vivencias y experiencias de los actores; así como los  
procesos estructurales, institucionales, editoriales y organizativos, protagonizados por los  
sectores del colectivo profesional (estudiantes, docentes, profesionales) identificados con lo que  
para el caso brasilero Netto (2012) denominó como intención de ruptura. El rescate de las voces  
críticas al interior de la profesión se realiza en una clara articulación con las voces críticas de  
los sectores subalternizados, encontrando mediaciones entre proyectos profesionales y  
societarios que despliegan sus capacidades para contribuir con procesos emancipatorios.  
73  
2 - El pasado que ilumina el presente.  
En tanto que el periodo analizado responde a las décadas 1960 y 1970 se hace uso de  
diversas técnicas investigativas tales como revisión de archivos, de prensa, entrevistas y grupos  
focales con quienes protagonizaron los acontecimientos del pasado. En algunos casos las  
exposiciones priorizan la reconstrucción factual con fechas, lugares, sujetos, instituciones,  
leyes, etc., mientras que en otras ocasiones se enfocan en la identificación de tendencias y  
contradicciones más abstractas.  
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La historia no es vista solamente como la vivencia de sujetos individuales, sino como  
una procesualidad en la que se enfrentan intereses, proyectos colectivos y societarios. Además,  
el pasado no es visto como un cuerpo inerte, sino como un proceso aún vivo que se expresa en  
el presente. Así entonces, el movimiento de la Reconceptualización, a pesar de ser claramente  
datado entre 1965 y 1975, es asumido como experiencia histórica que ilumina el presente.  
Al decir de Moljo, Siqueira y Zampani (2022), “Es en este contexto que el legado del  
Movimiento de la Reconceptualización debe ser críticamente recuperado, releído a partir de  
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4 Traducción propia.  
Revista Libertas, Juiz de Fora, v. 23, n.1, p. 70-84, jan./jun. 2023. ISSN 1980-8518  
Sergio Quintero Londoño  
las condiciones actuales, seguramente no como simple extensión del pasado, sino como parte  
de la historia de luchas, sus errores y aciertos, sus nexos históricos”. (p. 90)5.  
En el mismo sentido se pronuncia Orellana citando a Lowy: “[...] la historia – en el  
sentido de la historiografía – no debe ser un lujo, un paseo ocioso, un asunto de curiosidad  
arqueológica, sino que debe servir para el presente” (LOWY apud ORELLANA, 2022, p. 63)6.  
No es extraño que en los deferentes análisis históricos se hagan recurrentes reflexiones  
sobre el tiempo presente, dejando claro que el escenario contemporáneo es consecuencia de las  
condiciones legadas por el pasado. A pesar de que ninguno/a de los/as autores/as de los textos  
analizados vivió la Reconceptualización, es perceptible la apropiación que ellos/as hacen de la  
historia, sintiéndose parte de ésta, y responsables de recoger su legado para la construcción de  
proyectos profesionales contemporáneos.  
Por otra parte, sin que sea explicitado en el desarrollo de los textos, llama la atención el  
hecho de que muchos/as de los/as protagonistas de la Reconceptualización entrevistados en el  
marco de la investigación, aún hoy, cincuenta años después, continúen extrayendo lecciones  
valiosas para el debate contemporáneo.  
A pesar del transcurrir de las décadas (y no por mucho tiempo), aún se hace posible un  
encuentro de generaciones (protagonistas e investigadores de la Reconceptualización) que  
contribuye para ver los movimientos diacrónicos del objeto, intentando descifrar sus  
contribuciones al momento actual.  
74  
3 - El Trabajo Social se inscribe en una totalidad mayor.  
Lejos de reproducir los relatos autoreferenciales en los que el Trabajo Social es resultado  
de su propia existencia, los estudios de la Reconceptualización aquí analizados acuden de  
manera permanente al análisis de las condiciones socio-históricas de las clases y luchas sociales.  
Rompiendo con perspectivas endógenas, se entiende que el proceso de desarrollo profesional  
está mediado por las relaciones antagónicas de la sociedad capitalista en las que se presentan  
conflictividades diversas.  
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Más allá de ser un “paño de fondo” o un simple “escenario contextual” las luchas y  
enfrentamientos vivenciados durante el periodo analizado son mediaciones fundamentales, y  
en algunos casos, relaciones determinantes para el proceso profesional. Así como en algunos  
casos las fuerzas conservadoras y/o modernizantes tuvieron impacto directo en el Trabajo  
Social (especialmente en el periodo desarrollista y posteriormente con la restauración  
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5 Traducción propia.  
6 Traducción propia.  
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Convergencias de la Reconceptualización del Trabajo Social en Argentina, Chile y Colombia  
conservadora), así mismo fueron evidentes los impactos en la profesión por parte de sectores y  
luchas contestarías, progresistas, anticapitalistas y revolucionarias7.  
Apesar de que todos los textos reconocen la dinámica capitalista en la que están inscritos  
los acontecimientos de la Recoceptualización, son destacadas las particularidades de América  
Latina, entre las que se podría mencionar: la doctrina desarrollistas implementada por Estados  
Unidos de Norteamérica, incluyendo en ella la modernización de la educación superior, y la  
incorporación de tales ideas en el Trabajo Social (no se pasa por alto la incorporación amigable  
o tensionante de las políticas desarrollistas por parte de gobiernos nacionales en América  
Latina); el ciclo de crisis del capital, que tiene como causa y consecuencia (entre otras razones)  
los movimientos de protesta y contestación por parte de diversos segmentos de la clase  
trabajadora, tales como el campesinado, el movimiento obrero, el movimiento estudiantil,  
procesos comunitarios, de pobladores, villeros y organizaciones guerrilleras; tienen relevancia  
impar la Revolución Cubana y la experiencia de la Unidad Popular en Chile; la imposición  
coercitiva de las dictaduras cívico-militares también es analizada como parte constitutiva de la  
Reconceptualización, sobre todo en el proceso de contención a las dinámica renovadora, que  
arroja como resultado diversos tipos de restauración conservadora.  
Parte de la incidencia en el Trabajo Social proveniente del desarrollismo de la década  
1950 y sus posteriores expresiones modernizantes de la década 1960, se pueden reflejar en los  
siguientes apartados:  
75  
En 1957, el gobierno argentino solicitó a la ONU asesoría sobre la enseñanza  
en Trabajo Social en el país, recibiendo la asesoría de la asistente social  
chilena Maidagán de Ugarte, que propone a revisión de enseñanza en el país,  
adoptando los ideales desarrollistas proclamados por la CEPAL, por la ONU,  
entre otros organismos internacionales. (MOLJO, SIQUEIRA Y ZAMPANI,  
2022, p. 77)8.  
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Con un foco más dirigido a los impactos del pensamiento crítico, el caso chileno, Marro,  
Duriguetto y Panez (2022) citando a Panez, dicen que:  
La presencia de aquel universo organizativo de la clase trabajadora, de las  
políticas y de las acciones implementadas, principalmente durante el gobierno  
de la UP, constituyen la condición política central para el desarrollo de la  
ruptura profesional con los constructos teóricos y práctico-interventivos que  
localizan la profesión en la órbita del conservadurismo. (p. 49)9.  
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Por su parte, Arancibia y Calderón (2021), haciendo referencia al proyecto profesional  
7 Entre los textos analizados, todos coinciden en recuperar las condiciones socio-históricas en las que se inscribe  
la profesión, descifrando las mediaciones entre los social y lo profesional. De allí proviene una idea que ha venido  
tomando fuerza y que consiste en reconocer “el Trabajo Social en la historia”, más que “la historia del Trabajo  
Social”.  
8 Traducción propia.  
9 Traducción propia.  
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Sergio Quintero Londoño  
reconceptualizador en la Universidad Católica de Valparaíso, manifiestan que “el proyecto se  
perfila como una batería teórica de base que, más allá de exponer la importancia de la  
teorización partiendo del Trabajo Social, se articula con un proyecto político más grande,  
encabezado en la época por la UP.” (p. 192)10.  
Queda claro que el Trabajo Social no es un “ente autónomo” que responde  
unilateralmente a las voluntades de los sujetos profesionales, sino que se encuentra mediado  
por las relaciones conflictivas y contradictorias de la sociedad capitalista.  
4 - El Trabajo Social se articuló de manera directa con procesos y luchas sociales.  
Para las/os autoras/es abordadas/os, el hecho de que el Trabajo Social se inscribiera en  
una totalidad mayor no representa una inscripción pasiva, sino una relación activa en los  
procesos y enfrentamientos identificados. El nuevo compromiso ético y político surgido de los  
fundamentos renovados por la Reconceptualización, exigió la combinación de reflexiones  
críticas y acciones consecuentes de lado de los más variados sectores que se enfrentaron al  
tradicionalismo, al imperialismo y al capital.  
La idea de una “praxis transformadora”, “del agente de cambio” o de la “práctica  
emancipadora/liberadora” llevó a una acción decidida por parte del colectivo profesional,  
especialmente de los/as estudiantes, acompañando las luchas de campesinos/as, obreros/as,  
pobladores/as, y demás segmentos subalternizados.  
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Después de caracterizar la heterogeneidad de luchas y actores sociales en la Argentina  
de 1960-1970, Marro, Duriguetto y Panez (2021) manifiestan que hubo un vínculo directo del  
Trabajo Social con tales procesos.  
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Cuando expresivos segmentos profesionales establecen relaciones y vínculos  
con los sujetos que hacen la historia a contrapelo – que, en el caso argentino,  
se efectiva, sobretodo, por la vía de la militancia política y/o universitaria – es  
que se operan cambios significativos en la formación profesional. (p. 163-  
164)11.  
El grado de compromiso político alcanza tal nivel que, de acuerdo con algunos  
planteamientos, se confunde el ejercicio profesional con la acción militante, cayendo en  
ocasiones en el mesianismo y el voluntarismo revolucionario. (IAMAMOTO, 2003). Fueron  
reiterados los casos en los que estudiantes se van a vivir en las comunidades, las villas, zonas  
periféricas urbanas o en zonas rurales pauperizadas, buscando la forma de “trabajar con el  
pueblo”. Incluso se reconocen algunos vínculos de actores de la Reconceptualización con  
organizaciones clandestinas y grupos guerrilleros.  
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10 Traducción propia.  
11 Traducción propia.  
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Convergencias de la Reconceptualización del Trabajo Social en Argentina, Chile y Colombia  
Según Marro, Duriguetto y Panez (2021),  
Nuestra hipótesis es que la relación entre la profesión y las diferentes  
expresiones de los movimientos sociales de las clases subalternas fue una  
mediación fundamental para que el Trabajo Social argentino rompiera con sus  
bases conservadoras y cuestionara su función social en la reproducción de los  
conflictos de clase. (MARRO, DURIGUETTO Y PANEZ, 2021, p. 158)12.  
A pesar de que la fundamentación teórico-metodológica se ve fortalecida durante la  
Reconconceptualización, a tal punto de considerarla parte constitutiva de la profesión; el  
quehacer práctico, en muchas ocasiones con pretensiones de resultados inmediatos, ocupó un  
lugar destacado en el ethos del movimiento. Si la aspiración mayor era el enfrentamiento al  
imperialismo, y la superación del orden social capitalista, el camino que se identificó como el  
más adecuado fue el de la acción militante junto a diferentes segmentos de la clase trabajadora.  
5 - El movimiento estudiantil fue escenario privilegiado para el Trabajo Social.  
Si se tiene en cuenta que el movimiento de la Reconceptualización se llevó a cabo  
especialmente en los centros de formación profesional (que para entonces ya se ubicaban en las  
universidades), y que fue protagonizado mayoritariamente por estudiantes, es fácilmente  
comprensible que fuese el movimiento estudiantil universitario el principal escenario de lucha  
política del Trabajo Social.  
Las luchas estudiantiles enfrentan en primer nivel condiciones propias de la formación  
profesional o de la vida universitaria, sin embargo, producto de con concepción política  
articulada a proyectos societarios, también logra llevar a cabo luchas sociales, alcanzando  
distintos grados de articulación con otros sujetos colectivos.  
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En esta dirección, los estudiantes de Trabajo Social tuvieron una participación  
orgánica en uno de los movimientos más representativos de las luchas de la  
época, el movimiento estudiantil universitario, siendo uno de los conductos a  
través de los cuales los propios estudiantes establecen vínculos con otras  
organizaciones y movimientos. (MARRO, DURIGUETTO Y PANEZ, 2021,  
p. 165)13.  
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Tal y como llama la atención la cita anterior, no se puede pasar por alto el hecho de que  
las reivindicaciones y luchas universitarias, producto del “espíritu de la época”, estuvieron  
inmersas en el pensamiento antiimperialista y anticapitalista. Estas luchas, difícilmente podrían  
ser realizadas de manera autónoma por el estudiantado, por lo cual se hacían necesario análisis  
y acciones compartidas.  
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A la luz de la radicalización ideológica de la juventud, crece el movimiento  
estudiantil; sus luchas ganan proyección nacional y se articulan a las agendas  
y reivindicaciones del movimiento operario, sobretodo en ciudades como  
12 Traducción propia.  
13 Traducción propia.  
Revista Libertas, Juiz de Fora, v. 23, n.1, p. 70-84, jan./jun. 2023. ISSN 1980-8518  
Sergio Quintero Londoño  
Córdoba y Rosario (BRENNAN; GORDILLO, 1994). Tenemos aquí una  
inédita aproximación entre el movimiento operario y estudiantil, una relación  
central en los conflictos de clase de ese periodo. (MARRO, DURIGUETTO  
Y PANEZ, 2021, p. 160)14.  
En este mismo sentido se puede evidenciar la articulación del movimiento universitario  
de Chile con organizaciones o movimientos de pobladores; así como en el caso de Colombia,  
la articulación de las/os estudiantes con organizaciones sociales, comunitarias y hasta  
guerrilleras. Se debe destacar que para finales de 1960 e inicios de la década de 1970, se  
presentan significativos procesos de movilización estudiantil tales como el Cordobazo en  
Argentina, y el Programa Mínimo de los Estudiantes en Colombia, entre otros, logrando colocar  
al movimiento estudiantil como un actor destacado en las luchas sociales de la región  
latinoamericana.  
6 - El Trabajo Social interlocuta/incorpora las ciencias sociales y el marxismo.  
Como consecuencia de una apertura política vivida en las universidades a finales de  
1960, se facilita el ingreso (en muchos casos a través de las militancias) de teorías sociales  
críticas al orden social establecido. Las corrientes antiimperialistas, que tienen como principal  
foco de crítica el “imperialismo yanqui” abren paso, como posibilidad y necesidad, a teorías  
que habían sido inéditas en el debate profesional.  
En este caso una vez más se refleja la mediación entre las contradicciones sociales y el  
avance del proceso profesional, dado que serán las agendas políticas (con sus respectivos  
planteamientos político-ideológicos), las que inciden de manera decidida en la reflexión del  
Trabajo Social.  
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Sea a través de la formación profesional compartida en los primeros semestres con  
estudiantes de otras áreas de conocimiento; sea por el intercambios estudiantil a través de las  
militancias; o sea por la influencia de docentes destacados de otras profesiones (con destaque  
para de la sociología), en el Trabajo Social se incorporan reflexiones teórico-metodológicas  
provenientes de las distintas ciencias sociales. Incluso en algunos casos se enuncia la pretensión  
de construir en el Trabajo Social una síntesis crítica de las ciencias sociales.  
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En el estudio del caso argentino, Moljo, Siqueira y Zampani (2022) develan las  
corrientes teórico-políticas presentes en la Reconceptualización. “Los principales aportes  
provinieron de la teoría de la dominación y la dependencia, del marxismo, de las propuestas  
“concientizadoras” del pedagogo brasileño Paulo Freire y también de la teología de la  
14 Traducción propia.  
Revista Libertas, Juiz de Fora, v. 23, n.1, p. 70-84, jan./jun. 2023. ISSN 1980-8518  
Convergencias de la Reconceptualización del Trabajo Social en Argentina, Chile y Colombia  
liberación”. (ALAYÓN y MOLINA, apud MOLJO, SIQUEIRA y ZAMPANI, 2022, p. 75)15.  
En el mismo sentido, analizando el caso de Colombia, Quintero (2022) dice que,  
En la profesión se enfrentan perspectivas teóricas y políticas que buscan la  
modernización (influenciada por el pensamiento conservador renovado, y  
particularmente, por el desarrollismo), y por corrientes de pensamiento que  
buscan una renovación crítica (influenciada por la teología de la liberación, la  
pedagogía social y las diversas interpretaciones marxistas). (p. 99)16.  
Arancibia y Calderón (2021), reconstruyendo y analizando la experiencia de la  
Universidad Católica de Valparaíso, rescatan un texto de gran impacto no sólo para el Trabajo  
Social chileno, sino para diversos países de la región latinoamericana; tal texto fue titulado  
¿Qué es el Trabajo Social? En este documento (dicen las autoras):  
Encontramos autores de la corriente desarrollista y de la teoría de la  
dependencia, a saber, Prebisch, Cardoso, Faleto, así como Gunder Frank,  
Santos y Marini; autores críticos al capitalismo y con una perspectiva centrada  
en América Latina, como es el caso de Zemelman y Hinkelammert; autores  
que asumen una postura de crítica al colonialismo, tales como Quijando;  
autores que rescatan la educación popular de Freire. (p. 181)17.18  
Lo que salta a la vista es que, contrario a versiones ampliamente divulgadas al interior  
de la profesión, la Reconceptualización no será un movimiento exclusivamente marxista, sino  
que en él se encuentra una gran diversidad teórico-política, configurando lo que anteriormente  
fue denominado como una pluralidad crítica.  
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7 - La Reconceptualización parte del desarrollismo y consolida una crítica radical.  
Durante los primeros años de la Reconceptualización (segunda mitad de la década 1960)  
son recurrentes las expresiones en favor de las ideas desarrollistas; no obstante, éstas ya no son  
incorporadas de manera acrítica, tal y como había sucedido años atrás, cuando son acogidos los  
mandatos directos de la Organización de las Naciones Unidas (ONU), o la Organización de los  
Estados Americanos (OEA), sino que son “contextualizados” por propuestas como las de la  
Comisión Económica para América Latina y el Caribe (CEPAL), u otras que hacen mayor  
énfasis sobre las condiciones particulares de la región.  
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La doctrina desarrollista que venía de la posguerra, en la década de 1950 fue adoptada  
por diferente gobiernos latinoamericanos como los de Perón en Argentina, Frei Montalva en  
Chile, Rojas Pinilla y el Frente Nacional en Colombia. Esta doctrina, si bien permitió mejorar  
condiciones de vida en cada uno de los países, cuando se consolida gracias a la Alianza para el  
15 Traducción propia.  
16 Traducción propia.  
17 Traducción propia.  
18 La influencia de Freire, así como la Teología de la Liberación son dos de las referencias más encontradas en las  
experiencias abordadas.  
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Sergio Quintero Londoño  
Progreso, se configura como una modernización conservadora que tiene como principal  
objetivo la contención de las ideas revolucionarias y la estabilización del capital en América  
Latina.  
Moljo, Siqueira y Zampani (2022) expresan con claridad la orientación del proyecto  
desarrollista modernizante: “En el caso del desarrollismo, destacamos que, desde la década de  
1950, esas ideas venían siendo divulgadas en América Latina como una estrategia global, que  
tenía como uno de los objetivos adecuar los mercados latinoamericanos a las necesidades del  
capital internacional”. (p. 76).19 De manera muy similar lo plantea Quintero (2022), “No solo  
para Colombia, sino para varios países latinoamericanos queda clara la estrategia  
modernizadora, que combina la doctrina desarrollista de la Alianza para el Progreso y la  
represión violenta contra sectores anticapitalistas.” (p. 95)20.  
Ya analizando las condiciones peculiares de Chile, Marro, Duriguetto y Panez,  
mencionan lo siguiente:  
Tal como fue indicado en el ítem anterior, el proyecto de la DC objetiva el  
apaciguamiento de las contradicciones de clase. Para tal propósito,  
desenvuelve una serie de políticas sociales tendientes a la ampliación  
controlada de derechos sociales de las clases subalternas. En los marcos de  
ese programa, el gobierno de Frei se propuso desenvolver, junto con la  
reforma agraria, una reforma educacional que aumentase los niveles de  
alfabetización del país, en un contexto en que el analfabetismo alcanzaba el  
60% de los sectores rurales y casi el 40% en los sectores urbanos. (ARAVENA  
& DIAZ, 2016, p. 91). Con el apoyo de la FAO y de la UNESCO, fueron  
creados el Instituto de Desarrollo Agropecuario (INDAP) y el Instituto de  
Capacitación e Investigación de la Reforma Agraria ICIRA), que tuvieron una  
destacada actuación de Frei. (MARRO, DURIGUETTO Y PANEZ, 2022, p.  
50)21.  
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Ahora bien, el ciclo desarrollista va encontrando sus límites en la medida que avanzan  
las propuestas socio-políticas más críticas de carácter antiimperialista y anticapitalista. Este  
nuevo matiz radical incursiona en el Trabajo Social a través de diversos medios.  
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Moljo, Pagaza y Siqueira (2021) haciendo un análisis sobre las revistas Hoy en el  
Servicio Social y Selecciones de Servicio Social, muestran cómo a finales de la década 1960 e  
inicios de 1970 se expresa un pensamiento más crítico. Con base en la reflexión sobre las  
revistas, plantean lo siguiente: “El periodo situado entre el fin de la segunda mitad de los años  
1960 (en especial a partid de 1968-1969 y 1974) marca los “años de oro” de la radicalización  
del Movimiento de Reconceptualización en el territorio argentino”. (p. 140-141)22.  
19 Traducción propia.  
20 Traducción propia.  
21 Traducción propia.  
22 Traducción propia.  
Revista Libertas, Juiz de Fora, v. 23, n.1, p. 70-84, jan./jun. 2023. ISSN 1980-8518  
Convergencias de la Reconceptualización del Trabajo Social en Argentina, Chile y Colombia  
La idea de dos períodos en la Reconceptualización en Argentina es compartida por  
Marro, Duriguetto y Panez (2021) que identifican el primer periodo entre 1965-1968 (marcado  
por planteamientos más desarrollistas), el segundo que se abre en 1968-1969, en el cual, debido  
a su posición política más decidida, genera ataques por parte de los sectores conservadores  
articulados a la Unión Católica Internacional de Servicio Social. Como una expresión evidente  
de la radicalización durante el segundo semestre son referenciadas las reformas curriculares del  
curso de Trabajo Social en Córdoba en 1973 y el de Santa Fe en 1974.  
En el caso chileno, Arancibia y Calderón (2021) analizando las tesis de la UCV  
(denominadas en Chile como memorias y en Brasil como Trabajos de Conclusión de Curso  
TCC), reconocen dos periodos que conllevan a una tensión con el tradicionalismo.  
Según los enfoques y las teorías empleadas, se distinguen dos periodos. El  
primero, con 69 ejemplares, comprende el periodo entre 1964-1969, dando  
cuenta de un Trabajo Social tradicional de corte funcionalista con fuerte  
influencia norteamericana y europea, sumado a los primeros gérmenes de  
crítica en 1969. En el segundo periodo, por su parte, abarcando el periodo de  
1970-1973, se expresa un giro significativo en la producción de  
conocimientos, que coincide con el comienzo del gobernó de la Unidad  
Popular. (ARANCIBIA Y CALDERÓN, 2021, p. 186)23.  
8 - La Reconceptualización también sufrió límites teórico-metodológicos y políticos.  
A pesar de que el Movimiento de la Reconceptualizcaión logra propiciar un proceso de  
renovación crítica para el Trabajo Social gracias a las mediaciones con el movimiento socio-  
histórico, también presentó límites teórico-metodológicos y políticos, que en algunos casos  
fueron recogidos como parte del proceso de autocrítica, y en otras ocasiones, fueron objeto de  
lo que Netto (1981) denominó como crítica conservadora.  
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Intentando señalar parte de los límites de la Receoncepualización Marro, Duriguetto y  
Panez (2021) plantean que “Es en consecuencia del acentuado énfasis en la dimensión  
ideopolítica de la profesión que es posible constatar también la presencia de posturas  
mesiánicas y voluntaristas en el trabajo profesional.” (p. 172), sin embargo, al mismo tiempo  
que reconocen el límite, expresan los aportes del proceso de politización; “más allá de una  
cierta sobrevaloración de la dimensión ideopolítica del Trabajo Social, ese rico y fecundo  
proceso nos dejó enseñanzas y desafíos.” (p. 173).24  
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Em esa misma dirección apuntan Moljo, Siqueira y Zampani (2022):  
Así, o que interessa em este texto es entender que la Teoría de la Dependencia  
no fue apropiada por el Movimiento de la Reconceptualización por medio de  
sus fuentes originales, inclusive por los grupos más progresistas en Argentina.  
Ella aparece inmersa en un resultado teórico mesclado entre Teología de la  
23 Traducción propia.  
24 Traducción propia.  
Revista Libertas, Juiz de Fora, v. 23, n.1, p. 70-84, jan./jun. 2023. ISSN 1980-8518  
Sergio Quintero Londoño  
Liberación, peronismo de izquierda, concepciones freirianas y fragmentos  
marxistas, que tenían la práctica política militante y la transformación de las  
“injusticias sociales” como su foco principal. Ese proceso más amplio que el  
Trabajo Social contamino positivamente – con todos sus límites – la profesión  
y los profesionales que gradualmente pasaron a debatir los caminos a seguir  
dentro y fuera de la profesión, identificando, casi siembre, la acción político-  
militante (más o menos a la izquierda) y su actividad profesional. (p. 77)25.  
En el caso de Chile, la revisión de las tesis logra mostrar que la apropiación conceptual  
de la obra de Marx se da a través de terceras personas, lo que puede traer contribuciones o  
vulgarizaciones.  
La apropiación de los marxismos en los TCC tiene pocas referencias directas  
a textos de Marx, pautándose en interpretaciones a través de otros autores,  
particularmente Althusser, con la división entre infraestructura  
y
superestructura como reflejo de las condiciones materiales y con el uso del  
concepto de ideología. También en el proyecto de la Escuela se ve la categoría  
de praxis, citada a partir de la obra de autores como Karel Kosik y Hugo  
Zemelman. (ARANCIBIAY CALDERÓN, 2021, p. 191)26.  
En síntesis, a pesar de que en los textos analizados no se utilizan las expresiones ya  
conocidas en el debate profesional, lo que se logra percibir es que por el lado político hubo una  
sobrevaloración del trabajo profesional, cayendo en el mesianismo y el voluntarismo; mientras  
que en el campo teórico, la obra de Marx es apropiada a través de otros autores (y no de la  
fuente directa), pudiendo resbalar en lo que fue denominado como “marxismo positivista”, o  
marxismo sin Marx.  
82  
Nota adicional.  
El análisis aquí presentado expone los puntos de convergencia entre los textos escogidos  
(Argentina, Chile y Colombia), intentando mostrar algunas tendencias generales del  
Movimiento de la Reconceptualización, sin embargo se debe aclarar que además de los puntos  
aquí expuestos, se podrían identificar otros, si se abordara la totalidad de producciones de la  
investigación, dado que en ésta, además de abordar otros países, también se indagó sobre  
instituciones y procesos de articulación latinoamericana tales como el Centro Latinoamericano  
de Trabajo Social (CELATS) y las organizaciones gremiales.  
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Es claro que la Reconceptualización hace parte constitutiva de la historia profesional,  
sin embargo tal historia no es un pasado inerte, sino que ha dejado muchos legados a la  
formación y al trabajo profesional, así como a la investigación. Su reconstrucción y análisis es  
fundamental para fortalecer la construcción de un proyecto profesional crítico que se enfrente  
25 Traducción propia.  
26 Traducción propia.  
Revista Libertas, Juiz de Fora, v. 23, n.1, p. 70-84, jan./jun. 2023. ISSN 1980-8518  
Convergencias de la Reconceptualización del Trabajo Social en Argentina, Chile y Colombia  
a la ofensiva neoconservadora instalada en los tiempos contemporáneos.  
Analizar el Trabajo Social en el presente exige de una mirada al pasado, a través de la  
cual se logra identificar que gran parte de la estructura fundamental de la profesión que hoy  
tenemos, proviene de las conquistas logradas en las décadas 1960-1970. Algunas de las  
herencias más destacadas de la Reconceptualización al Trabajo Social contemporáneo, que son  
esbozadas en este trabajo son: el reconocimiento de la historia y las contradicciones que en ella  
se presentan, como escenario ineludible en el que se realiza la formación, trabajo e investigación  
profesional; el compromiso ético y político, así como la articulación activa con diversas  
organizaciones, procesos y proyectos sociales que despliegan su capacidad para enfrentar la  
lógica del capital; la pluralidad y cualidad en la fundamentación teórico-metodológica,  
potencializando una praxis creadora que contribuya (con sus límites y posibilidades) en el  
proceso emancipatorio de la historia; el reconocimiento de las tensiones internas como una  
expresión profesional de las contradicciones sociales.  
En la actualidad, cuando la historia de los vencidos aún se presenta como historia oficial  
y hegemónica, es pertinente recuperar los legados, superar los límites y profundizar los  
esfuerzos en la construcción de una profesión competente y comprometida con las fuerzas  
emancipadoras; justamente ese ha sido el objetivo central de la investigación desarrollada, y su  
continuidad en los años venideros.  
83  
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Revista Libertas, Juiz de Fora, v. 23, n.1, p. 70-84, jan./jun. 2023. ISSN 1980-8518  
DOI 10.34019/1980-8518.2023.v23.41184  
Entre os objetivos profissionais e institucionais:  
fortalecendo o Serviço Social  
Among the professional and institutional objectives: to strengthen Social  
Work  
Rodrigo José Teixeira*  
Resumo: O artigo apresenta uma reflexão  
acerca da condição de assalariamento de  
assistentes sociais e explicita que essa condição  
pode, muitas vezes, colocar desafios entre os  
objetivos do Serviço Social, expressos nos  
princípios do código de ética, nas competências  
e atribuições da Lei que Regulamenta a  
Profissão, e os objetivos das instituições que  
empregam assistentes sociais. A partir de  
elementos da pesquisa documental realizada  
para a tese de doutoramento e de reflexões  
posteriores, o artigo apresenta uma revisão  
bibliográfica, indicações para garantir a relativa  
autonomia no trabalho profissional e fortalecer  
a profissão de Serviço Social.  
Abstract: The article presents a reflection on  
the condition of salary of social workers and  
explains that this condition can often pose  
challenges among the objectives of Social  
Work, expressed in the principles of the code of  
ethics, in the competences and attributions of  
the Law that Regulates the Profession, and the  
objectives of the institutions that employ social  
workers. Based on elements of documentary  
research carried out for the doctoral thesis and  
subsequent reflections, the article presents a  
bibliographical review and indications to  
guarantee relative autonomy in professional  
work and strengthen the social work profession.  
Palavras-chaves: Trabalho de assistentes  
sociais; Fundamentos do Serviço Social;  
Conjuntura brasileira e latino-americana.  
Keywords: Work of social workers;  
fundamentals of Social Work; Brazilian and  
Latin American conjuncture.  
Recebido em: 15/03/2023  
Aprovado em: 18/05/2023  
* Assistente Social, doutor em Serviço Social, docente do curso de Serviço Social da UFF - Rio das Ostras.  
Revista Libertas, Juiz de Fora, v. 23, n.1, p. 85-102, jan./jun. 2023. ISSN 1980-8518  
Rodrigo José Teixeira  
Introdução  
Parte-se do Serviço Social inscrito na história, nas tramas das relações entre as classes  
sociais e estas com o Estado, apreender o Serviço Social na história é reconhecer que os sujeitos,  
homens e mulheres, fazem a história, mas não a fazem como querem e sim, segundo condições  
objetivas dadas (MARX, ENGELS; 1982), apreender essas condições é o que permite saltos  
qualitativos na incidência política e profissional, assim, esse artigo tem como objetivo discutir  
elementos que permitem reforçar o/a assistente social como trabalhador/a assalariado/a, que ao  
vender sua força de trabalho, em distintos espaços sócio-ocupacionais, se depara com os  
objetivos da instituição empregadora e os objetivos da profissão. Essas reflexões podem  
reforçar, no cotidiano de trabalho e na formação profissional, a construção de incidências aos  
objetivos construídos pelo Serviço Social, os quais expressam valores, princípios e a direção  
social construída historicamente pela profissão, em detrimento de objetivos ultraneoliberias  
expressos nas políticas sociais.  
Trata-se de uma síntese da pesquisa documental desenvolvida na tese de doutorado e de  
participações em eventos e seminários1, nos quais foi possível avançar em alguns itens de  
análise.  
Nesse sentido, o artigo se desenvolve em três momentos: uma breve análise da dinâmica  
do capitalismo mundial e suas particularidades na américa latina; a apreensão do significado  
social do Serviço Social e as políticas sociais; e, os desafios aos assistentes sociais diante sua  
condição assalariada, os objetivos da instituição que o contrata frente seus objetivos  
profissionais.  
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A pandemia de COVID-192 aprofundou as desigualdades sociais, mostrou nitidamente,  
e mais uma vez, que o capitalismo e a política neoliberal que sustenta o estado burguês,  
permitem acessos diferentes aos direitos sociais entre os mais ricos e os mais pobres, com  
distinção de raça, classe e diferentes identidades de gênero.  
Não se considera a COVID-19 só uma questão ambiental, é social, econômica, política,  
multifacetada, apreende-se que a Covid-19 acentuou as contradições postas no modo de  
produção capitalista, mas não explica o que fundamenta tal contradição. Os fundamentos das  
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1
Tese de doutorado defendida na Escola de Serviço Social da UFRJ, sob orientação da Profa. Dra. Yolanda  
Aparecida Demetrio Guerra, em agosto de 2019, ver em TEIXEIRA(2019); da palestra proferida no VII Seminário  
Internacional da Faculdade de Serviço Social da UFJF, com o tema Serviço Social: lutas e resistências  
internacionais (2022) e da palestra realizada nas comemorações dos 55 anos do Colegio de Trabajadores Sociales  
de Costa Rica (2022), com o tema: Competencias profesionales, exigencias institucionales y las resistencias de  
Trabajo Social en el contexto de la pandemia.  
2 Ao escrever esse artigo a Organização Mundial da Saúde, declarou, no dia 05 de maio de 2023, fim da emergencial  
global de saúde, o que pode ser considerado o fim da pandemia, conduto, seguem recomendações como uso de  
máscaras caso apresente sintomas e ampla campanha mundial de vacinação.  
Revista Libertas, Juiz de Fora, v. 23, n.1, p. 85-102, jan./jun. 2023. ISSN 1980-8518  
Entre os objetivos profissionais e institucionais: fortalecendo o Serviço Social  
desigualdades originadas no capitalismo, seguem assentadas na exploração do trabalho, na não  
distribuição da riqueza socialmente produzida, mas apropriada por uma minoria; e, na estratégia  
de ampliação do desemprego para ampliação das taxas de mais valia.  
Esses elementos são extremamente importantes para a análise acerca da formação e do  
trabalho de assistentes sociais. As demandas que nos chegam cotidianamente são produtos  
dessas contradições. Ou seja, a necessidade da pobreza é proporcionalmente igual a necessidade  
de ampliação da riqueza concentrada nas mãos de uns poucos. As necessidades sociais que  
atendemos trazidas pelas pessoas que buscam os serviços sociais, expressam essa dinâmica  
capitalista nas particularidades do cotidiano de cada sujeito.  
Assim, apreender os elementos macrossociais permite aos assistentes sociais,  
ultrapassar a barreira do imediatismo, buscar os fundamentos que explicam as contradições  
postas na realidade e trazidas pelas pessoas e famílias que atentemos, visando garantir ou,  
minimamente, assegurar as condições básicas de vida da população, afinal, como já indicou  
Marx e Engels (1982), as pessoas precisam estar em condições, estarem vivas, alimentadas,  
abrigadas, com moradia e educação para fazerem história.  
1 - Alguns aspectos socioeconômicos e conjunturais para apreensão do Serviço  
Social na atualidade  
87  
O capitalismo se metamorfoseia para continuar a acumular e transformar tudo em objeto  
de sua própria valorização, nessas primeiras duas décadas do século XXI, em um mundo não  
mais abertamente “bipolarizado” como no período a guerra fria, o mundo passa por outra grande  
confrontação em nossos tempos, por um lado a OTAN e seu avançar bélico (a necessária e  
histórica produção de guerra, de venda de armas e munição, para recuperação financeira do  
capital) e a Rússia, ampliando seu domínio e disputando o imperialismo, o que desencadeia  
uma guerra na Ucrânia, podendo demonstrar uma possibilidade de construção de uma nova  
geopolítica para o mundo.  
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Alia-se a isso outro elemento dessa quadra histórica, o crescimento econômico da China,  
desde o início do século XXI, sua ampliação no mercado internacional alterou as correlações  
de forças entre os blocos econômicos.  
A China constrói relações comerciais com um amplo hall de países latino americanos.  
Tem-se caracterizado como o principal parceiro comercial do Brasil, em 2022, seguida pelos  
E.U.A. Ao mesmo tempo a Rússia vem construindo sua incidência desse lado do atlântico,  
como por exemplo o seu papel decisivo, sob a ameaça norte americana em invadir militarmente  
a Venezuela em 2019, por meio da tentativa de impor um novo presidente naquele país.  
Revista Libertas, Juiz de Fora, v. 23, n.1, p. 85-102, jan./jun. 2023. ISSN 1980-8518  
Rodrigo José Teixeira  
Isso não passa ileso as ameaças norte americanas, que tem na américa latina sua  
principal área de influência e tentativa de dominação e implantação de suas necessidades  
econômicas imperialistas. Essas investidas imperialistas dos E.U.A devem ser duramente  
combatidas pela América Latina e se configura como um dos elementos que unifica a luta por  
um continente livre e cheio de possibilidades em suas particularidades sócio-históricas.  
A isso, se acrescenta a visita de Lula da Silva, em abril de 2023 à China e a visita do  
Chanceler Russo Servay Lavrov ao Brasil no mesmo mês. Assim como, a indicação de Dilma  
Rousseff, a presidência do Novo Banco do Desenvolvimento, reforçando o bloco econômico  
do Brasil, Rússia, Índia, China e África do Sul (BRICS), que somados já acumulam 31,5% do  
Produto Interno Bruto (PIB) Global, enquanto o grupo dos sete países mais ricos do mundo  
somam 30% do PIB Global3. As alterações nas economias globais podem alterar a geopolítica  
atual trazendo novas formas de exploração e novas expressões da questão social.  
A relação de dependência dos países periféricos4, na geopolítica mundial, o mito do  
progresso desenvolvimentista, baseado na livre concorrência se revela ineficaz, sendo  
substituído pela violência entre as potências econômicas que se embatem para reproduzir seu  
domínio.  
Essa dinâmica se expressa em regressão nas particularidades de cada país, trazendo à  
tona uma dinâmica ultraconservadora, ultra neoliberal, que resulta na destruição da natureza,  
em nome do avanço de terras nas mãos de uns poucos, do agronegócio e do agrotóxico que  
envenenam as matas e aos rios em detrimento da agroecologia e da agricultura familiar, assim  
como, expressa valores ultraconservadores, como racismo, violência de gênero e de orientação  
sexual, xenofobia, violência patriarcal. Pesquisas de Marro (2022) diz que o Brasil vem  
apresentando o aumento da violência de gênero e a exploração sexual em áreas extrativistas em  
seu território. Assim como pudemos observar, que a política de Jair Messias Bolsonaro foi de  
devastação das terras indígenas, podendo se caracterizar como genocídio do povo Yanomami,  
no norte do Brasil.  
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Piccolo (2022, p. 147) reflete que  
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os efeitos ambientais e sociais dessa reprodução ‘destrutiva’ do capitalismo  
incluem desde sempre a força de trabalho humana; desemprego crônico e  
precarização generalizada do trabalho assalariado, são realidades nacionais  
mundiais, também acirradas nas periferias. também, a nossa região segue  
sendo uma das fontes de recursos naturais estratégicos mais importantes do  
mundo. Reservas de água doce no Paraguai e no México; de petróleo na  
Venezuela, Brasil, México e Argentina; de gás natural na Bolívia; a  
3
4 Ver mais em Marini (2011) Fernandes (1975) entre outros.  
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Entre os objetivos profissionais e institucionais: fortalecendo o Serviço Social  
biodiversidade da Amazônia são estudados pelas grandes corporações  
internacionais, ramificadas em estados nacionais que integram blocos  
regionais.  
Os dados de desemprego na América Latina também deve ser uma fonte de preocupação  
dos que lutam por uma sociedade igualitária e emancipada, os/as assistentes sociais não podem  
deixar de se atentarem, compreendendo que o desemprego é uma expressão da desigualdade  
que alimenta o capitalismo.  
De acordo com a OIT a região latino-americana perdeu 49,1 milhões de empregos entre  
2019 e 2020, e ainda há um déficit de 4,5 milhões de vagas de trabalho a serem recuperados.  
Para a instituição internacional a recuperação econômica lenta, o aumento na inflação  
dos países da região e pouco espaço fiscal para realocação de verba pública impedem a geração  
de empregos na América Latina e Caribe5.  
A ampliação do desemprego é sentida por nós assistentes sociais sob duas angulações  
analíticas, a primeira é nossa condição de trabalhadores/as assalariados/as, com a redução dos  
nossos postos de trabalho, contração sem vínculos e segurança no trabalho, contratação por  
projetos o que dificulta a criação de vínculo com as pessoas atendidas, diminuição de salários  
e carga horária de trabalho, dificultando nossa condição de sobrevivência e acesso a bens e  
serviços. Em segundo lugar se amplia a demanda que chega aos nossos atendimentos, o  
desemprego – expressão da questão social – faz com que muitas pessoas busquem serviços de  
saúde, habitação, emprego, assistência social públicos mais vezes, e em momentos de ultra  
neoliberalismo diminui-se as funções do Estado, diminuindo os serviços prestados, dificultando  
mais uma vez nosso trabalho profissional, que tem nas políticas sociais sua mediação  
primordial.  
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O desemprego, entre outros elementos, acarreta a ampliação da fome. O brasil em  
particular voltou, no governo de Bolsonaro, a altos índices de fome. A fome no Brasil não é  
produto direto da pandemia, é, também, um resultado da subida do preço do dólar e uma  
priorização de abastecimento do mercado externo, principalmente China, ampliando a  
acumulação de capital a fome no país.  
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A fome e o desemprego não podem ser analisados sob aspectos isolados, ao contrário,  
compõem a totalidade no modo de produção capitalista. O Banco Mundial6 reconhece que o os  
milhoes-de-empregos-com-a-pandemia.htm acessado em 15-05-2023.  
6https://www.ipea.gov.br/cartadeconjuntura/index.php/2022/06/panorama-da-economia-mundial/ Acessado em  
12 de maio de 2023; Estêvão Kopschitz Xavier Bastos. Panorama da economia mundial, em 2 de junho de 2022.  
Cf., também, Política monetária contra a alta dos preços. Evolução das taxas em dois países. Jornal O Globo.  
Economia, 16/06/2022, p.13.  
Revista Libertas, Juiz de Fora, v. 23, n.1, p. 85-102, jan./jun. 2023. ISSN 1980-8518  
Rodrigo José Teixeira  
impactos econômicos da atual guerra, tem sido maior que o da pandemia.  
Esses elementos atingem a todos/as os/as trabalhadores/as, mas não da mesma forma,  
as mulheres são as mais atingidas, uma vez que precisam assumir duplas e/ou triplas jornadas  
de trabalho, a população negra que muitas vezes sem acesso a educação e trabalho com  
dignidade sofrem ainda mais com o peso do racismo que é um dos elementos que estruturam o  
capitalismo.  
O relatório a CEPAL, em 2022, indica que 94,2 milhões de pessoas passam fome na  
américa latina e caribe; a pobreza e a pobreza extrema aumentam, em níveis superiores aos  
observados antes da pandemia. Os índices esperados, em 2022, na região, são de 33,0% de  
pobreza e 14,5% de pobreza extrema, segundo a fonte citada.  
Contudo, uma onda de esperança nos incendeia, a resistência latino-americana volta a  
nos inundar de alegria na esperança de tempos melhores. A eleição de Lula da Silva, sua  
incidência na econômica global, pode ser um suspiro de esperança no sentido de ampliação de  
alguns direitos, contudo, sem ilusões de uma mudança radical na estrutura de poder e de  
exploração da classe trabalhadora.  
1.1 - E o Serviço Social com tudo isso?  
Parte-se de que os anos de 1960 a 1980 permitiram a massa crítica da profissão, em seu  
processo de renovação, apreender o significado social da profissão na sociedade capitalista.  
Processo esse que se inicia com o Movimento de Reconceituação na América Latina e seus VII  
Seminários7, o primeiro ocorre em 1965 em Porto Alegre e os demais em diferentes países do  
continente (GOIN, 2019; ANDER-EGG, 1994) e que impactam fortemente as elaborações  
teóricas e política dos anos subseqüentes.  
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Em meio a uma conjuntura de ditadura nos países da América Latina, o Serviço Social  
no continente, organizou e protagonizou importantes fatos históricos, entre eles alguns avanços  
importantes, como a laicização da profissão, a ampliação da necessidade de investir em  
pesquisas e programas de pós graduação em nossas áreas.  
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O Movimento de Reconceituação do Serviço Social latino-americano caracterizou-se  
como um processo de ininterruptas tentativas de romper com o conservadorismo e apresentou  
conquistas e limites ao Serviço Social. Netto (2005b, p. 11-13) apresenta como conquistas: a)  
a articulação de uma unidade e intercâmbio latino-americano; b) a explicitação da dimensão  
7
O Movimento de Reconceituação do Serviço Social na América Latina caracterizou-se por um período de  
aproximadamente 10 anos, 1965-1975 (ALAYON, 2007; BATISTONI, 2017 entre outros), com forte influência  
dos movimentos contestatórios no continente e visava uma crítica ao Serviço Social tradicional (NETTO, 2010).  
Revista Libertas, Juiz de Fora, v. 23, n.1, p. 85-102, jan./jun. 2023. ISSN 1980-8518  
Entre os objetivos profissionais e institucionais: fortalecendo o Serviço Social  
política da ação profissional; c) a interlocução crítica com as ciências sociais; d) a inauguração  
do pluralismo profissional; e o que, para o autor, parece ser a principal conquista, e) a recusa  
do profissional de Serviço Social de situar-se como agente técnico puramente executivo, como  
executor terminal de políticas sociais, reivindicado espaços de planejamento, avaliação e  
pesquisas.  
Apresenta como limites: a) a confusão entre ação profissional e prática militante; b) o  
rechaço das “teorias importadas”, que culminou num relativismo acadêmico sobrevalorizando  
a produção autônoma; c) o “confusionismo ideológico, que procurava sintetizar [...] a esquerda  
cristã e as novas gerações revolucionárias” (NETTO, 2005b, p. 13)8.  
O Movimento de Reconceituação Latino-Americano teve uma forte participação da  
Asociación Lationamericana de Escuelas del Trabajo Social (ALAETS)9 e seu órgão  
acadêmico, o Centro Latinoamericano del Trabajo Social (CELATS)10, teve como primeiras  
diretoras acadêmicas as brasileiras Consuelo Quiroga e Leila Lima Santos. Lopes (2016, p. 328)  
relata que “é provável que a forte experiência no chamado ‘Método BH’ (que vinha do método  
básico desenvolvido no Chile, anos antes) tenha sido uma referência importante para que as  
duas brasileiras assumissem os cargos de direção”.  
O CELATS teve um papel importantíssimo na América Latina, com destaque as suas  
influências na formação e no trabalho de assistentes sociais. Em depoimento, Leila Lima Santos  
(2009, p. 80) relata:  
91  
o CELATS insertou os debates no contexto político da época, fazendo com  
que a discussão no âmbito acadêmico e na prática profissional se aproximasse  
dos movimentos políticos e populares em diferentes países da região e às mais  
expressivas entidades das ciências sociais latino-americanas (FLACSO,  
CLACSO, CSUCA). Os resultados dos trabalhos do CELATS foram  
permeabilizando as escolas e faculdades de Serviço Social em toda América  
Latina e muito particularmente no Brasil.  
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O conjunto ALAETS/CELATS teve um papel importante nas décadas de 1970 e 1980,  
com publicações críticas que circulavam a América Latina11; apoiou politicamente  
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8 Essas são alguns elementos, para maiores reflexões, ver Netto (2010), especialmente capítulo 2, item 2.1 e 22.  
9 Los dos primeros objetivos que proclama la asociación: a) promover el acercamiento y la coordinación entre las  
escuelas y asociaciones de escuelas, estudiantes y docentes de Trabajo Social latinoamericano, con fin de logar  
establecer unidad en los aspectos básicos de la formación teórico-práctica; b) promover el acercamiento entre las  
escuelas asociaciones de escuelas, de estudiantes y docentes de Trabajo Social, con las organizaciones de Trabajo  
Social que existen en cada país. (CELATS, 1985, p. 10).  
10  
O CELATS “es un organismo internacional de cooperación técnica que tiene como propósito fundamental  
contribuir, desde la acción de los trabajadores sociales, a las tareas del desarrollo y de la promoción popular. [...]  
El Centro desarrolla cuatro líneas: - investigación; - capacitación; comunicación y; - proyectos de acción.”  
(CELATS, 1985, p. 12-16).  
11 Um exemplo é que “durante 1983, el curso de capacitación por correspondencia llegó a 600 profesionales en 18  
países” (CELATS, 1985, p. 16).  
Revista Libertas, Juiz de Fora, v. 23, n.1, p. 85-102, jan./jun. 2023. ISSN 1980-8518  
Rodrigo José Teixeira  
organizações sindicais e associações profissionais de diferentes países. Tais movimentos  
acadêmicos e políticos tensionavam, a partir da conjuntura do continente, um Serviço Social  
intrinsecamente ligado à luta da classe trabalhadora.  
O CELATS teve um papel importante, também, na pós-graduação em Serviço Social.  
No ano de 1978, construiu o primeiro mestrado em Serviço Social da América Latina –  
Maestría Latinoamericana en Trabajo Social (MLATS). O MLATS foi desenvolvido em  
convênio com a Universidade de Honduras, em Tegucigalpa, “esta universidade tinha um  
considerável grau de autonomia e seu Reitor, Reyna, era um respeitado e democrático  
acadêmico”, segundo relata Leila Lima Santos, (2007a, p. 171) em entrevista à revista Em Pauta  
(UERJ).  
O objetivo do MLATS era lograr a formação de um grupo de profissionais  
altamente qualificados teoricamente, com vocação investigativa  
e
comprometidos com uma nova mirada a respeito do marco institucional e à  
realidade social do continente. O programa de estudos desse mestrado esteve  
orientado ao estudo e à análise das políticas sociais com a ideia de converter  
as instituições em processos de organização favorável à participação social. A  
ideia era criar um significativo programa de formação e investigação latino-  
americano. (SANTOS, 2007a, p. 172).  
A reconceituação possibilitou construir uma tendência no Serviço Social latino-  
americano que se autodenomina de Trabajo Social Critico. Há muitas expressões dela e tem  
crescido a produção de conhecimento dessa temática. O Trabajo Social Critico situa sua analise  
na realidade social com enfoque sócio-histórico, analise o sujeito segundo suas determinações  
econômicas, históricas e sociais, ultrapassa o imediato e busca conhecer os fundamentos da  
realidade social e da profissão, para assim construir estratégias de intervenção na vida das  
pessoas que atendemos.  
92  
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Assim, entendemos o significado social da profissão, construído no seio do movimento  
de reconceituação, com destaque a obra seminal de Iamamoto e Carvalho (1982). Desse modo,  
analisa-se a realidade a partir do concreto, dos processos sociais e históricos12 que permitem  
apreender o significado social da profissão na sociedade capitalista e suas particularidades nas  
distintas formações sociais, econômicas e culturais de cada território, por meio das expressões  
da questão social nesses países.  
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Para melhor apreensão da relação proposta nesse artigo entre os objetivos profissionais  
e os objetivos institucionais, se faz necessário analisar as categorias de totalidade e mediação,  
sem as quais a profissão é tomada de forma isolada, endogenista e acrítica, para depois  
12 A concepção de história pode ser encontrada em Marx e Engels (1982), Marx (1986) entre outros autores da  
mesma verve teórica.  
Revista Libertas, Juiz de Fora, v. 23, n.1, p. 85-102, jan./jun. 2023. ISSN 1980-8518  
Entre os objetivos profissionais e institucionais: fortalecendo o Serviço Social  
entrarmos nas particularidades dos objetivos institucionais e do Serviço Social.  
Segundo Kosik (1969, p. 40), o “princípio metodológico da investigação dialética da  
realidade social é o ponto de vista da totalidade concreta que, antes de tudo, significa que cada  
fenômeno pode ser compreendido como momento do todo”. A totalidade é uma categoria  
concreta, é a essência constitutiva do real. Nesse sentido, a totalidade concreta expressa o  
diferencial do método materialista, histórico e dialético (LUKÁCS, 1981).  
A apreensão da totalidade concreta é possível por meio de inúmeras e complexas  
mediações13, sem as quais a totalidade é uma abstração. A apreensão das mediações desses  
complexos dinâmicos ocorre por meio da relação dialética entre as formas pelas quais o  
fenômeno se expressa, ou seja, sua aparição na realidade social e sua forma de se relacionar  
com a essência, com as legalidades sociais14. Nesse sentido, a totalidade constitui-se de  
mediações complexas apreendidas pela dialética materialista.  
Outro elemento de análise é o significado social da profissão inserida na divisão social  
e técnica do trabalho (IAMAMOTO; CARVALHO, 2011). Considera a necessidade social do  
Serviço Social como uma demanda da classe burguesa, e por seus representantes do Estado para  
intervir junto aos trabalhadores. Para Iamamoto e Carvalho (2011), a profissão é concebida  
como uma atividade que exerce um dado controle social no desenvolvimento da ideologia  
dominante à cada época. Sua atuação assenta-se pela mediação das políticas sociais, na criação  
das condições objetivas da reprodução da força de trabalho junto aos trabalhadores e suas  
famílias, seu trabalho assalariado incide nas expressões da questão social que se torna o objeto  
de intervenção desse profissional.  
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O trabalho da/o assistente social é tensionado pelas contradições próprias da sociedade  
capitalista, e a reproduz  
pela mesma atividade, interesses contrapostos que convivem em tensão.  
Responde tanto as demandas do capital como do trabalho e só pode fortalecer  
a um ou outro polo pela mediação de seu oposto. Participa tanto dos  
mecanismos de dominação e exploração como, ao mesmo tempo e pela mesma  
atividade, da resposta às necessidades de sobrevivência da classe trabalhadora  
e da reprodução do antagonismo nesses interesses sociais, reforçando as  
contradições que constituem o móvel básico da história. (IAMAMOTO;  
CARVALHO, 2011, p. 81).  
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Podemos observar essa contradição, por exemplo, quando inserimos, principalmente as  
mulheres trabalhadoras, chefes de família, em programa de transferência de renda. Ao cadastrá-  
las em uma plataforma eletrônica, seus dados passam a fazer parte do controle das vidas das  
13 “As categorias centrais da dialética de Lukács são os conceitos intimamente inter-relacionados de ‘totalidade’ e  
‘mediação’.” (MÉSZÁROS, 2013, p. 59).  
14 Ver mais em Lukács (1981), Pontes (2009), entre outros.  
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Rodrigo José Teixeira  
classes trabalhadoras, importante mecanismo para o Estado; ao mesmo tempo, o dinheiro,  
produto do trabalho coletivo, da riqueza socialmente gerada e da extração de mais valia, que se  
transforma em impostos e taxas volta a população, agora por meio desses programas de  
transferência. O que é importante para que as famílias acessem as necessidades sociais básicas,  
por meio de compra de mercadorias, agora subsidiadas pelo Estado. Esse movimento  
econômico permite a ampliação de uma totalidade que engloba: produção, distribuição e  
consumo das mercadorias produzidas pelas grandes empresas. Ou seja, nossas ações atendem  
interesses dos trabalhadores, ao receberem um recurso que poderão comprar: comida, roupa,  
remédios, mas, também atende interesses empresariais: ampliando a produção e fazendo com  
que novas mercadorias circulem, movendo tanto a economia como a extração de mais valia.  
Outro elemento de análise é a questão social que só pode ser analisada e apreendida  
como produto da contradição capital e trabalho, no sentido em que a produção é socializada e  
sua apropriação é privada, sendo, portanto, constituinte do modo de produção capitalista.  
Assim, a questão social ancora-se na “lei geral da acumulação capitalista”, apresentada em  
detalhes por Marx (2010). Nesse cenário, o elemento que se destaca é o pauperismo como  
fenômeno próprio à expansão do capital, é nesse bojo que faz sentido um mercado de trabalho  
que permitirá emergir uma profissão: o Serviço Social.  
É necessário também, captar a questão social nas particularidades sócio-históricas no  
Brasil. Em seu processo de reprodução ampliada do capital que teve como base a violência, a  
escravidão, o coronelismo e o mandonismo como características que não podem ser  
abandonadas na análise da questão social no país.  
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A Política Social é analisada como a mediação estatal no confronto entre capital e  
trabalho incidindo diretamente nas refrações da questão social. Em um momento específico do  
desenvolvimento capitalista (capitalismo monopolista) e das alterações na função do Estado, a  
política social terá seu amadurecimento. Responde ora aos interesses do capital, ora aos  
interesses dos trabalhadores, a depender da correlação de forças entre as classes. Pode  
apresentar algumas melhorias na qualidade de vida dos trabalhadores, mas sem alterar a  
essência exploradora do capitalismo. Cabe destacar que mesmo os países capitalistas que  
consolidaram um sistema de seguridade social baseada no princípio da universalidade, não  
alteraram o estatuto da propriedade privada, estrutura do próprio capitalismo15.  
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O Serviço Social é chamado, então, à operacionalização das políticas sociais, como  
agentes executores de tais intervenções estatais. Não se trata aqui de pensar a profissão como  
15 Para uma análise aprofundada de política social, ver: Behring (2003, 2002); Behring e Boschetti (2006); Motta  
(1995), entre outros.  
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Entre os objetivos profissionais e institucionais: fortalecendo o Serviço Social  
profissionalização da caridade ou evolução da filantropia; mas sim pensar o Serviço Social  
como profissão que se insere no mercado de trabalho especializado e o/a assistente social como  
vendedor da sua força de trabalho (IAMAMOTO, 2011, NETTO, 2005).  
Essa diferenciação faz-se necessária uma vez que há uma tendência contundente, em  
pesquisas recentes16, de uma espécie de mimese entre os objetivos da política social e da  
profissão, sobre isso nos debruçaremos a seguir.  
2 - A condição de classe trabalhadora do/a assistente social e os objetivos das  
instituições empregadoras e do Serviço Social.  
Iamamoto (2009) reflete que o debate acerca do significado social da profissão,  
difundido em sua obra seminal de 1982, foi amplamente divulgado, contudo, cabe refletir  
também sobre o significado do trabalho de assistente social. Tal significado do trabalho exige  
mediações históricas e conjunturais, sem as quais as contradições entre trabalho assalariado e  
resistências no trabalho profissional ficam comprometidas.  
É nesse sentido que as tensões entre trabalho assalariado e a direção social do trabalho  
profissional defrontam-se no cotidiano profissional.  
Segundo a autora, “o significado social do trabalho profissional do assistente social  
depende das relações com os sujeitos sociais que o contratam, os quais personificam funções  
diferenciadas na sociedade” (2009, p. 215). O significado social, por mais que tenha uma  
dimensão qualitativa em todos os espaços sócio-ocupacionais, ele não se identifica diretamente  
“nas diferenciadas condições em que se realiza esse trabalho porquanto envolvido em relações  
sociais distintas” (p. 215).  
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A condição de assalariamento, como funcionário público, em organizações empresariais  
ou organizações sociais, envolve a incorporação de determinantes que compõe o contrato de  
trabalho. Assim como oferecem, em maior ou menor condição, os meios pelos quais o trabalho  
do assistente social se realiza, os recursos financeiros e humanos para a intervenção em uma  
determinada expressão da questão social. As expectativas, exigências e necessidades dos  
empregadores também aparecem e “materializam requisições, estabelecem funções e  
atribuições, impõem regulamentações especificas ao trabalho a ser empreendido”  
(IAMAMOTO, 2009, p. 218).  
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Outro vetor decisivo são as demandas trazidas pelos sujeitos, suas necessidades sociais,  
que chegam ao trabalho profissional como demandas imediatas. O que exige do profissional a  
16 Iamamoto (2009); Raichelis (2018), Teixeira (2019).  
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Rodrigo José Teixeira  
necessidade de reelaboração teórico-prática dessa demanda para que, na particularidade da vida  
social do sujeito, reconstrua-se o objeto de intervenção. Segundo Pontes (2009), é capturando  
as mediações no concreto que se reconstrói, intelectivamente, o objeto de intervenção no  
trabalho de assistente social. Cabe destacar que esse campo de mediações é denso de  
complexidades e tenso de contradições.  
No seu trabalho cotidiano a/o assistente social depara-se com situações concretas  
vividas singularmente pelos sujeitos que utilizam os serviços prestados. Tais situações são  
atravessadas de determinações que expressam as requisições das lutas de classes e das bandeiras  
de luta da organização da classe trabalhadora. É um desafio ao trabalhador/a assistente social,  
envolto/a a essas contradições que também o/a caracteriza como sujeito da classe trabalhadora,  
a passagem das singularidades das vidas dos/as usuários/as às lutas maiores da classe em sua  
universalidade e particularidade. É necessário que o/a assistente social tenha um amplo  
conhecimento teórico-metodológico crítico, mas também e principalmente, de vida prática nos  
movimentos sociais de esquerda para “atribuir visibilidade aos fios que integram o singular no  
coletivo” (IAMAMOTO, 2009, p. 216).  
É nesse sentido que uma dupla determinação é posta: as requisições que chegam por  
meio dos empregadores e a tensão do desvendamento da demanda institucional em demandas  
sociais no trabalho profissional, “a consideração unilateral das imposições do mercado de  
trabalho, conduz a uma mera adequação do trabalho profissional às exigências alheias,  
subordinado a profissão ao mercado e sujeitando a/o assistente social ao trabalho alienado”  
(IAMAMOTO, 2009, p. 219).  
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É no tensionamento entre condição assalariada e a direção social do trabalho  
profissional que a relativa autonomia se coloca para o profissional. Iamamoto (2009) defende  
que a efetividade dessa relativa autonomia é dependente da correlação de forças econômicas,  
políticas e culturais que envolvem diversos sujeitos institucionais que sofrem profundas  
transformações sociais em “tempo de capital fetiche”.  
Nesse sentido que a apreensão da condição de trabalhador/a assalariado/a do/a  
profissional, nas contradições de sua sempre relativa autonomia, das legislações sobre a  
profissão, de um código de ética profissional construído coletivamente com princípios  
vinculada à luta geral dos/as trabalhares/as que podemos entender e fortalecer os objetivos da  
profissão em detrimento dos objetivos da instituição empregadora, que em tempos de retomada  
do conservadorismo, os objetivos institucionais podem referenciar-se mais aos ideários  
neoliberais que as necessidades das pessoas que atendemos.  
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Algumas aproximações para explicitar os motivos que podem expressar que, em alguns  
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Entre os objetivos profissionais e institucionais: fortalecendo o Serviço Social  
momentos, há uma mimese/mescla entre os objetivos da instituição empregadora com os  
objetivos do Serviço Social. Destacamos alguns elementos.  
Reflexionemos quando o/a profissional foca seu exercício em, somente, cumprir as  
metas estabelecidas institucionalmente; em somente inserir ou não o/a usuário/a em programas  
e projetos sociais; em se restringir ao requisitado pela instituição; quando inserimos critérios  
mais rigorosos dos que já estão postos na política, em momentos de parcos recursos, benefícios  
ou programas sociais; quando captamos as expressões da questão social, somente pelo viés  
restrito dos problemas individuais; ao não refletir se nossos laudos, pareceres, relatórios sociais  
podem ser instrumentos garantidores de direitos, ou se somente explicitamos se estão ou não  
dentro dos critérios estabelecidos pela política social, e não expressamos nossas análises  
vinculadas as atribuições privativas e competências profissionais.  
A/O profissional de Serviço Social tem a capacidade teórico-metodológica, técnico-  
operativa e ético-política de ultrapassar a análise imediata, se o profissional se limita a informar  
se há ou não recurso, se pode ou não ser incluído em programas e projetos, o/a assistente social  
tende a somente reproduzir os objetivos institucionais e da política social e não os objetivos do  
Serviço Social em seu cotidiano de trabalho.  
Somente quando consideramos a totalidade em que o/a usuário/a está inserido/a, quando  
a/o consideramos sujeito da classe trabalhadora, que tudo produz, mas não acessa a riqueza  
produzida, é que podemos nos aproximar dos objetivos profissionais e construir respostas  
condizentes com uma direção social crítica. Nesse sentido, que não podemos perder no  
horizonte as interações entre raça, classe e gênero, nas particularidades do país e do território  
de nossa atuação, sem tais determinações não se pode captar as expressões da questão social  
que chegam no nosso cotidiano de trabalho.  
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Para isso, é preciso construir resistência, Teixeira (2020) exemplifica que o/a  
profissional deve conhecer a realidade concreta em que está inserido, o território em que a  
política social está sendo executada; produzir dados de quantos usuários/as estão sem recursos;  
quais alternativas concretas de organização coletiva é possível naquele espaço; realizar grupos  
de discussão com os/as usuários/as que não acessam seus direitos para discutir as expressões  
da questão social naquele território; conhecer e participar da organização coletiva, dos  
movimentos sociais, das frentes pela defesa da saúde, da assistência social que lutam por  
melhores condições para os usuários/as atendidos/as; realizar seu exercício profissional em  
consonância com os movimentos sociais, politizando as expressões da questão social junto à  
população, assim, pode conseguir ultrapassar o imediato, analisar aquela demanda singular no  
conjunto das particularidades da vida social, tendo a universalidade como horizonte estratégico  
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Rodrigo José Teixeira  
de busca da totalidade social.  
Analisamos que não se trata somente de uma vontade individual em trazer à tona os  
objetivos da profissão, mas das condições objetivas que colocam desafios cotidianos a  
efetividade de tal direção. As diferentes formas de contratação, por exemplo, é um desafio posto  
a essa efetividade, mas não uma barreira. Podem colocar desafios a objetivação da direção  
social da profissão em detrimento dos valores das instituições empregadoras. Muitas  
organizações sociais apresentam Missão, Visão e Valores totalmente atrelados mais à lógica  
neoliberal do que à emancipação humana e a plena expansão dos indivíduos sociais.  
O burocratismo em que as instituições se reafirmam, quer nas inúmeras formas de  
tecnologia da informação que se configura mais como mecanismo de controle da classe em  
detrimento dos direitos sociais. Ao ficar mais voltados ao burocratismo e ao sistema de  
informação do que o reconhecimento das expressões da questão social, o/a profissional reforça  
mais os objetivos institucionais em detrimento dos objetivos do Serviço Social.  
Há uma tendência nas instituições e nas organizações sociais que gestam a política social  
uma transferência da lógica de gestão das empresas privadas para a lógica da gestão da política  
pública, com metas de atendimento a serem cumpridas, quantidade de relatórios, laudos e  
pareceres por mês, entre outros. Os processos seletivos para contração de assistentes sociais,  
algumas vezes, voltam-se mais para a especialização e conhecimentos relativos ao domínio  
instrumental da política social em detrimento dos referenciais teóricos que sustentam o projeto  
de profissão. Isso muitas vezes leva aos profissionais a especializarem-se nas políticas em  
detrimento da reflexão sobre os valores e princípios do código de ética e das atribuições e  
competências expressas na Lei que Regulamenta a Profissão.  
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Em algumas vezes, a educação permanente de assistentes sociais, muitas vezes, ocorre  
somente nas capacitações oferecidas pelos órgãos de Estado em detrimento da educação  
permanente oferecida em espaços de debate da categoria profissional, como lives do CFESS e  
da ABEPSS, e debates oferecidos pelos CRESS.  
Participar somente da capacitação para implantação, gestão e execução das políticas  
sociais pode ocasionar que os objetivos da política social sobressaiam aos objetivos da  
intervenção profissional17. Os objetivos das políticas sociais continuam sendo necessários à  
garantia de necessidades básicas da população usuária dos serviços, expressam as lutas sociais  
da classe trabalhadora, mas não podem ser confundidos com as respostas construídas pela  
profissão.  
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17 Uma excelente reflexão pode ser encontrada em Guerra (2018), a autora reflete se a capacitação é nas políticas  
ou para as políticas.  
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Entre os objetivos profissionais e institucionais: fortalecendo o Serviço Social  
Tais capacitações podem incidir que muitas vezes, a linguagem18 profissional da/o  
assistente social está encharcada dos determinantes teóricos que sustentam a política social em  
detrimento dos Fundamentos do Serviço Social. Expressões como os “níveis de vulnerabilidade  
social” postos na política de assistência social no Brasil, por exemplo, encobertam o pauperismo  
e seus desdobramentos nas expressões da questão social, sem perceber a matriz teórica que  
sustenta aquele termo.  
Dessa forma, a incidência das práticas mecanicistas em detrimento do rigoroso trato  
teórico-metodológico na análise da realidade para intervenção profissional pode permitir que  
a ação profissional desenvolva-se mais direcionada à execução das políticas sociais do que  
nas respostas construídas a partir da análise da realidade realizada pelo Serviço Social. Se a  
questão social e suas refrações não se configuram como objeto de trabalho do/a assistente  
social, a política social ganha centralidade na ação profissional. A condição de classe  
trabalhadora, a precarização dos espaços de trabalho, aliadas a uma formação profissional  
também precária, fortalece a incidência da centralidade dos objetivos da política social na  
intervenção profissional em detrimento das respostas profissionais.  
Considerações Finais  
O artigo apresentou alguns elementos para refletir sobre como garantir os objetivos do  
Serviço Social, profissão inscrita na divisão social e sexual do trabalho no Brasil, em detrimento  
dos objetivos das instituições empregadoras e das políticas sociais, que muitas vezes,  
reproduzem valores e princípios ultraneoliberais.  
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Se nossa ação cotidiana não se realizar com a orientação das entidades da categoria, na  
defesa do Código de Ética, da Lei que Regulamenta a Profissão e do conjunto dos conteúdos  
das Diretrizes Curriculares, há uma tendência em reproduzir valores das instituições  
empregadoras.  
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Apresentar elementos da conjuntura nacional e latino-americana, assim como revisar a  
bibliografia do movimento de reconceituação permite à assistentes sociais se comprometerem  
com a realidade social, com os movimentos sociais e com o legado histórico da profissão.  
Assim, pode-se verificar no artigo alguns tensionamentos entre a relação dos objetivos  
da instituição empregadora e do Serviço Social. O que pode apontar a necessidade da retomada  
de um trabalho na direção da politização da população usuária, da ação pedagógica em nosso  
trabalho profissional, importante referência deixada pelo movimento de reconceituação com  
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Linguagem aqui analisada como materialização da consciência, segundo Marx e Engels (1982), na obra A  
Ideologia Alemã.  
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Rodrigo José Teixeira  
grande influência de Paulo Freire e sua pedagogia emancipatória, e das ações que efetivem a  
dimensão político-organizativa a serem construídas com os/as usuários/a dos serviços.  
A politização das demandas não está posta nas políticas sociais, ao contrário, é a direção  
social na defesa dos reais interesses das pessoas atendidas pelo Assistente social, que se  
configura como opção individual da/do assistente social que quer ultrapassar o “imediatismo  
da prática profissional” (COELHO, 2010) é que garante esse trabalho.  
Alguns pontos sumariados para garantir os objetivos do Serviço Social em espaços de  
trabalho de assistentes sociais:  
1 – Fortalecimento coletivo da profissão, da organização coletiva de assistentes sociais,  
e da reafirmação da Lei 8.662/93 e do Código de Ética do/a Assistente Social;  
2 – A apreensão teórica crítica acerca da totalidade da vida social, nas particularidades  
do território que se ocupa. Sem tal apreensão o exercício profissional pode ocorrer de forma  
mecanicista, somente respondendo aos objetivos institucionais;  
3 – A luta constante por uma formação profissional de qualidade, com rigoroso trato  
teórico-metodológico, nas particularidades das distintas formações sociais, e com qualidade  
técnico-operativa para construir respostas profissionais, reafirmando as Diretrizes Curriculares  
da ABEPSS, de 1996;  
4 – Reforço da análise crítica da questão social no Brasil e das suas expressões históricas  
como objeto de intervenção do Serviço Social;  
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5 – A reflexão constante e cotidiana se nossas ações expressam a direção social crítica;  
6 – Disputar política e teoricamente a direção social das políticas sociais, participando  
dos espaços de controle e planejamento de tais políticas. Assim, como das frentes em defesa da  
qualidade, gratuidade, universalidade das políticas sociais, entre outras ações.  
A direção social do Serviço Social é uma construção coletiva, sua opção política nas  
ações estratégicas requer um movimento individual e coletivo dos profissionais envolvidos no  
trabalho. A politização das demandas trazidas pela população é, muitas vezes, a alternativa a  
uma ausência expressiva de políticas sociais que atendam às reais necessidades das/os  
usuários/as dos serviços.  
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Revista Libertas, Juiz de Fora, v. 23, n.1, p. 85-102, jan./jun. 2023. ISSN 1980-8518  
DOI 10.34019/1980-8518.2023.v23.39287  
Violência sem véu: uma reflexão inspirada na  
experiência como Assistente Social  
Violence without veil: a reflection inspired by the experience as a Social  
Worker  
Alexandra Aparecida Leite Toffanetto Seabra Eiras*  
Joyce Queiroga Resende**  
Resumo: O presente artigo analisa o fenômeno  
da violência por meio das reflexões suscitadas  
no exercício profissional do Serviço Social, em  
nossa experiência como Assistente Social,  
trazendo elementos para entender as expressões  
da violência na sociedade brasileira e sua  
particularidade na totalidade da vida social, na  
sociedade capitalista. Utilizamos como  
referência teórica sobre o tema produções de  
Marilena Chaui, Octávio Ianni, Mione  
Apolinário Sales e José Fernando Silva.  
Abstract:  
This  
article  
analyzes  
the  
phenomenon of violence through the reflections  
raised in the professional practice of Social  
Work, in our experience as a Social Worker,  
bringing elements to understand the expressions  
of violence in Brazilian society and its  
particularity in the totality of social life, in  
capitalist society. We used productions by  
Marilena Chaui, Octávio Ianni, Mione  
Apolinário Sales and José Fernando Silva as a  
theoretical reference on the subject.  
Palavras-chaves: Violência; Serviço Social;  
Keywords: Violence; Social Work; Cotidian;  
Cotidiano; Capitalismo.  
Capitalism.  
Recebido em: 21/10/2022  
Aprovado em: 07/02/2023  
*
Assistente social, doutora em Serviço Social, professora titular na Faculdade de Serviço Social da Universidade  
Federal de Juiz de Fora. ORCID: https://orcid.org/0000-0003-4095-7950  
** Assistente social, mestre pelo Programa de Pós-Graduação em Serviço Social da Universidade Federal de Juiz  
de Fora.  
Revista Libertas, Juiz de Fora, v. 23, n.1, p. 103-121, jan./jun. 2023. ISSN 1980-8518  
Alexandra Aparecida Leite Toffanetto Seabra Eiras; Joyce Queiroga Resende  
Introdução  
Este artigo trata da violência, cuja expressão na realidade brasileira tem sido  
reconhecida por diferentes estudiosos e cuja visibilidade através das mídias e meios de  
comunicação social contribui para fixar determinados estereótipos em relação àqueles que a  
praticam, reforçando preconceitos sociais que dificultam a compreensão deste fenômeno em  
sua multidimensionalidade. Privilegiamos nesta reflexão sobre este tema, a leitura de produções  
teóricas elaboradas por Chaui, Ianni, Sales e Silva, com as quais estabelecemos um diálogo, a  
partir da experiência no exercício profissional do Serviço Social.  
Em nosso exercício profissional lidamos rotineiramente com as expressões da questão  
social1, dentre as quais se situa a violência. Nesse cotidiano, paradoxalmente, aqueles que  
sofrem a violência de modo mais duro, em seu dia a dia, dificilmente a percebem em sua  
profundidade. Via de regra eles incorporam e aceitam desempenhar o papel social que lhes é  
“destinado”, “trabalhador”, “pobre”, “subordinado”, “vítima”, “criminoso”, resignando-se à  
dura realidade.  
Por sua vez, as concepções ainda vigentes no imaginário social evidenciam a presença  
de conteúdos próprios do autoritarismo social (CHAUI, 2021) no cotidiano, tão característico  
da formação sócio-histórica brasileira, que reproduzem estigmas e preconceitos sobre quem  
pode ou não ser violento.  
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Entretanto, o que não ocorre com frequência é uma explicação capaz de revelar a  
processualidade histórica-econômica-sociocultural constituinte e constitutiva, presente nas  
expressões da violência, e este artigo visa contribuir nesta direção.  
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A esse respeito, em nossa cultura e no imaginário brasileiro, acostumamo-nos a lidar  
com a violência como algo individualizado. Como argumenta Chaui (2021), no Brasil,  
construímos o mito de uma sociedade pacífica e não violenta. E a autora destaca cinco  
mecanismos ideológicos sobre a violência presentes na cultura brasileira: a “exclusão”, a  
“distinção”, “o jurídico”, “o sociológico” e a “inversão do real”. Pela exclusão afirma-se que a  
sociedade brasileira não é violenta e quando ela ocorre é praticada por pessoas que não são  
desta nação. Pela distinção entre essencial e acidental, a violência não é reconhecida como  
inerente ao brasileiro, mas como ação episódica, acidental e sua prática não altera a nossa  
1 De acordo com Ianni (2004 b: p. 103) a questão social está presente na história da sociedade brasileira nas “várias  
repúblicas formadas desde a Abolição da Escravatura e fim da monarquia”. Ela se apresenta como “um elo básico  
da problemática nacional, dos impasses dos regimes políticos ou dilemas dos governantes. Reflete disparidades  
econômicas, políticas e culturais, envolvendo classes sociais, grupos raciais e formações regionais. Sempre põe  
em causa as relações entre amplos segmentos da sociedade civil e o poder estatal”. “As várias modalidades do  
poder estatal [autoritário ou democrático] defrontam-se com ela”.  
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Violência sem véu: uma reflexão inspirada na experiência como Assistente Social  
essência pacífica. No mecanismo jurídico, a violência é compreendida como restrita ao meio  
da delinquência e da criminalidade e legitima-se a ação policial na proteção dos “cidadãos de  
bem”. No mecanismo sociológico, a violência foi explicada como um momento na história de  
transição para a modernidade, com intensa migração para as cidades, causando,  
temporariamente, atos isolados de violência das “classes mais pobres”. E a inversão do real  
está posta na existência e disseminação de concepções que justificam a “dominação natural do  
homem” que protege a mulher, em sua “fragilidade feminina”, e/ou o paternalismo branco  
“civilizatório” em relação aos povos não brancos ("inferiores”); e a repressão e violência direta  
e indireta contra a população LGBTQIA+ diante dos “valores sagrados” e da preservação da  
“família”.  
Esse mito da sociedade não violenta tem sido interiorizado como forma de explicação,  
produzindo valores, ideias, comportamentos e práticas, manifestando-se, ainda, em ações  
concretas na realidade. A permanência desse mito propaga a ideia de que a violência existe,  
porém, de maneira factual localizada em determinados grupos que seriam, segundo Chaui, os  
“portadores da violência”, em suas palavras,  
A sociedade brasileira não percebe que as próprias explicações oferecidas são  
violentas porque está cega para o lugar efetivo da produção da violência, isto  
é, a estrutura da sociedade brasileira. Dessa maneira, as desigualdades  
econômicas, sociais e culturais, as exclusões econômicas, políticas e sociais,  
a corrupção como forma de funcionamento das instituições, o racismo, o  
machismo, a intolerância religiosa, sexual e política não são consideradas  
formas de violência, isto é, a sociedade brasileira não é percebida como  
estruturalmente violenta e a violência aparece como um fato esporádico da  
superfície. (CHAUI, 2021, p. 41).  
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Desse modo, quando realizamos a análise da violência no âmbito da totalidade da vida  
social, apreendemos nitidamente sua transversalidade no cotidiano de milhões de pessoas. E  
quando nos deparamos com as violências presentes na vida individual daqueles que procuram  
os serviços sociais, fica difícil negar a sua relação com os processos histórico-econômico-sócio-  
culturais e é quase impossível não nos indignarmos diante do que testemunhamos.  
No entanto, também nós, assistentes sociais, estamos imersas(os) no imaginário da  
sociedade pacífica, e ainda é necessário explicitar o fenômeno da violência em sua  
complexidade para compreendermos os processos com os quais nos deparamos,  
cotidianamente, em nosso exercício profissional.  
Assim, este texto foi elaborado como um exercício de reflexão, a partir de referências  
teóricas que questionam o fenômeno da violência e intentam analisá-la em sua complexidade e  
amplitude, evitando sua redução à dimensão individual.  
Neste artigo, apresentamos referências teóricas através do diálogo com Marilena Chaui  
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Alexandra Aparecida Leite Toffanetto Seabra Eiras; Joyce Queiroga Resende  
(2021) e Octávio Ianni (2004) para a compreensão da violência, a partir de análises suscitadas  
pela nossa experiência como assistente social, em diferentes contextos, e pela incorporação de  
produções em nossa área, como as de Sales (2007) e Silva (2007, 2008). Indicamos, ainda,  
algumas das condições postas pelo pertencimento à classe trabalhadora, no Brasil, na  
atualidade, que reproduzem processos de subordinação e dominação, estruturalmente  
associados ao fenômeno da violência. Evidenciamos, assim, essa dimensão da violência  
estrutural cuja apreensão torna-se necessária para o (a) assistente social em seu cotidiano  
profissional.  
Na redação deste artigo, descobrimos nuances e perspectivas, que a nosso ver, ao serem  
compartilhadas, contribuem para o trabalho dos(as) assistentes sociais, profissionais  
diariamente expostos(as) às diferentes formas de expressão da violência na sociedade  
capitalista.  
Sobre a violência  
Inspiradas, sobretudo, na leitura de Marilena Chaui (2021) e Octávio Ianni (2004)  
propomos algumas formulações que são transversais nesta reflexão sobre a violência.  
A primeira delas é que explicar o fenômeno da violência é algo complexo e exige uma  
perspectiva multidimensional, evitando o equívoco de reduzir o seu entendimento a um único  
condicionante. A sua elucidação está associada às noções de força e de poder em relação a  
outrem e à necessária compreensão da particularidade histórica, a qual evidencia nas relações  
sociais, o exercício do poder pela coerção e, pela submissão de indivíduos e de grupos aos  
interesses de uma classe dominante.  
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Na apreensão de sua particularidade histórica os processos econômicos e socioculturais  
destacados por Ianni (2004) evidenciam a dominação pela concentração da riqueza e  
configuração das classes sociais, que reproduzem o lugar e o papel social dos indivíduos, e a  
relação assimétrica de poder entre eles. Na definição de tais lugares e papéis sociais impõem-  
se diferenças de gênero, raça e etnia, construídas historicamente, e assimetrias entre homens e  
mulheres, brancos e não-brancos.  
Inspiradas em Chaui (2021), pensamos que essa dimensão assimétrica nas relações de  
poder é um aspecto central para compreender o fenômeno da violência, e distingue lugares de  
domínio e de subordinação, embora permanentemente em movimento, sendo alvo de disputa e  
contestação. Por sua vez, o aparato repressivo envolvido na manutenção do status quo e da  
ordem dominante, obstaculiza as possibilidades de alteração e regulamenta e/ou justifica os atos  
de violência propriamente ditos, praticados nas ações de dominação, como castigos físicos,  
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Violência sem véu: uma reflexão inspirada na experiência como Assistente Social  
punições, assassinatos e extermínio, conforme nos lembra o excelente texto de Sales (2007).  
Desse modo, no processo de colonização da América em sua particularidade histórica  
predominou a exploração econômica, a conquista de territórios e submissão de inúmeras  
pessoas que foram colocadas em situação de servidão, escravizadas e vitimadas pelo morticínio,  
vidas vilipendiadas e violentamente subordinadas ou anuladas pelo assassinato. Concordamos  
com Aimé Césaire (1978) que o processo de colonização foi constituído de atos de violência,  
crueldade e pilhagem, justificado pela racionalidade europeia de conquista e submissão de  
povos e terras.  
Esta violência presente desde os atos de colonização se expressa em suas múltiplas  
manifestações na história desses países, objetiva e subjetivamente. A “invenção do racismo”,  
na relação do homem branco com as diferentes etnias dos povos originários e africanos, trazidos  
para o continente americano, foi uma das formas de dominação violenta mais bem sucedidas,  
desde o século XV e que, infelizmente, permanece na contemporaneidade atravessando todas  
as nossas relações em sociedade. Essa violência está associada à destruição do que é diferente,  
do que é estranho a um padrão instituído como correto, belo ou moralmente aceito pela classe  
e interesses sociais dominantes, na idealização almejada de criar uma sociedade equilibrada e  
perfeita (IANNI, 2004). Na América Latina esses padrões foram historicamente instituídos a  
partir de uma perspectiva eurocêntrica consolidando formas de dominação e violência.  
Assim,  
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Sobre vários aspectos, a violência é um evento heurístico de excepcional  
significação, revela o visível e o invisível, o objetivo e o subjetivo, no que se  
refere ao social, econômico, político e cultural, compreendendo o individual  
e o coletivo, a biografia e a história. Desdobra-se pervasivamente pelos polos  
da sociedade e do indivíduo. (...) Nasce como técnica de poder, exercita-se  
também como modo de preservar, ampliar ou conquistar a propriedade,  
adquire desdobramentos psicológicos surpreendentes no que se refere aos  
agentes e as vítimas. Entra como elemento importante da cultura política com  
o qual se ordenam, modificam ou transformam as relações entre os donos do  
poder e os setores sociais subalternos, os governantes e a população, as elites  
e as massas. (IANNI, 2004, p. 169).  
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Nas sociedades capitalistas, a violência está intimamente relacionada à concentração  
dos meios de produção e do capital nas mãos de poucos possuidores e à distribuição desigual  
da riqueza socialmente produzida.  
A contradição entre capital e trabalho (MARX, 2017), entre as condições de vida do  
conjunto dos trabalhadores e daqueles que concentram a riqueza, pode gerar reivindicações,  
lutas, manifestações e movimentos sociais e, ainda, atos de desespero mediante uma realidade  
de exclusão e violação.  
Nestas sociedades, as marcas das desigualdades estão presentes na realidade cotidiana  
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Alexandra Aparecida Leite Toffanetto Seabra Eiras; Joyce Queiroga Resende  
da maioria da população, no conjunto de pessoas que vivem nas periferias urbanas, privadas de  
direitos fundamentais, como: trabalho, moradia, educação, saúde e acesso aos equipamentos  
culturais.  
Por sua vez, o sistema coercitivo do Estado é estrategicamente direcionado às pessoas  
que vivem nas periferias, discriminando-as como se fossem a causa e não como parte da  
violência da qual são alvos há muitos anos. Essas formas de violência, que são invisibilizadas  
e/ou individualizadas,  
(...) torna evidente, explícito e transparente o nexo essencial entre riqueza e  
pobreza, emprego e desemprego, prosperidade e miséria, a fluência e carência,  
lei e injustiça, ordem e desordem, monopólio da violência pelas elites  
governantes e classes dominantes simultaneamente à invenção da violência  
pelos grupos sociais e classes sociais subalternos, pelos humilhados e  
ofendidos, pelos famélicos da terra. (IANNI, 2004, p. 207).  
Nesse sentido, a realidade de “apartheid dos jovens pobres [...] não será uma  
prerrogativa brasileira ou latino-americana: ela se dá nos guetos étnicos americanos  
(hispânicos, negros, italianos, irlandeses, etc.)” e na Europa, “com destaque para França e  
Inglaterra, e seu crônico problema cultural-imigratório, ligado, por vezes, à condição de  
juventude operária” (SALES, 2007, p. 127).  
A diferença entre a violência legal e a ilegal, atribuída de forma recorrente aos pobres e  
trabalhadores, decorre muitas vezes do perigo político que essa classe oferece para o poder  
dominante, e à construção ideológica (o imaginário veiculado sobre quem pratica a violência)  
somam-se os recursos de coerção e manipulação pelo medo para garantia da ordem social.  
De acordo com Sales (2007) a visibilidade punitiva na contemporaneidade perpassa  
significativamente as mídias televisiva e impressa, e a indústria cultural, com a divulgação de  
situações e processos criminais que ganham grandes espaços nos noticiários, principalmente,  
para discorrer sobre a ineficiência do sistema judiciário em punir os chamamos “criminosos”.  
Assim, há o reforço de práticas punitivas e a ênfase em reformas penais, com forte apoio  
das camadas mais conservadoras da sociedade que clamam pela instituição e legalização da  
pena de morte, como uma forma de anular o crime com a execução do “meliante” e/ou bradam  
pela redução da idade penal, como acontece atualmente no Brasil.  
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Esse imaginário e essa estigmatização afeta, sobretudo, a juventude pobre associada,  
indiscriminadamente, à prática da violência, ensejando reclames de punição e indiferença à sua  
condição de vida e existência. Por isso, “tudo o que os jovens pobres questionam e produzem  
irreverentemente, aqui e alhures, e a tudo o que reagem é concebido, invariavelmente, como  
violência, mesmo se tratando de meras transgressões ou incivilidades” (SALES, 2007, p. 127).  
No Brasil, Chaui (2021) destaca o estigma das classes subalternas e da população  
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Violência sem véu: uma reflexão inspirada na experiência como Assistente Social  
identificada como “classe perigosa”. A autora afirma que as classes dominantes têm medo dos  
de baixo e receiam a perda de poder, de controle e privilégio, já as classes subalternas têm medo  
de sofrer violência, coerção e injustiça. Pelo medo de perder o poder da violência as classes  
dominantes afirmam que as classes populares são violentas e perigosas.  
A visibilidade negativa e a disciplina coercitiva sobre as classes subalternas contribuem  
para a fabricação dos sujeitos criminalizados. Criam-se imagens ilusórias sobre a realidade  
concreta, individualiza-se o olhar sobre determinados grupos sociais, traduzindo-os como seres  
criminosos ou potencialmente criminosos; reafirma-se o poder das leis punitivas, a obediência,  
submissão e a exclusão. Esses sujeitos tornam-se perversamente visíveis, objeto constante de  
vigilância, repressão e punição (SALES, 2007).  
Todavia, quem são esses sujeitos criminalizados? Conforme dados estatísticos e estudos  
existentes, sabemos que esses possuem classe, raça e gênero bem determinados. “Em 2019, os  
negros representaram 77% das vítimas de homicídios (...) as mulheres negras representaram  
66% do total de mulheres assassinadas no Brasil” (IBGE, p. 49, 2021). Já o Anuário Brasileiro  
de Segurança Pública do ano de 2022 reforça a informação de que a população que reside ou  
circula pelas periferias são as vítimas frequentes da letalidade da violência.  
Assim, a juventude negra, pobre e periférica é a que mais sofre os impactos de uma  
sociedade violenta e racista. São visibilizados pela mídia como adolescentes e jovens infratores,  
como geradores da violência na sociedade devido ao local onde nascem e/ou vivem, clivados  
como descendência da criminalidade, reforçando ideologias geneticistas; afirma-se também, os  
estereótipos de que são sujeitos desocupados, vivendo na vagabundagem por vontade própria e  
sem interesse em trabalho.  
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De acordo com Sales (2007), observamos que há uma dimensão de  
visibilidade/invisibilidade da violência no decorrer da história. Inspirada nas teorias de Foucault  
em “Vigiar e Punir” (1996), a autora evidencia a vigilância dos corpos de forma a criar pontes  
entre a razão e a violência, entre o saber e o poder, a visibilidade de verdades parciais a favor  
de uma universalidade de dominação dos indivíduos. A disciplina dos corpos vigiados, a  
disciplina imposta com base em uma política de medo e coerção articula-se a um tipo seletivo  
de liberdade e democracia, que, quando confrontadas com o cotidiano dessas pessoas, são  
referências formais e não reais.  
Essa legalização e normalização da violência fazem parte da despolitização do cotidiano  
e alienação em relação à realidade concreta, focando a explicação da sua complexidade em  
motivos parciais, reiteram-se práticas discursivas/teóricas organizadas de forma política,  
administrativa, burocrática e cultural por um poder dominante ou classe dominante que “molda”  
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o pensamento e ações de sujeitos sociais, visando controlar a vida das pessoas conforme a  
necessidade do sistema (SALES, 2007).  
Segundo Sales (2007, p. 175), as técnicas de dominação se “nutrem da força, da  
legitimidade e da autoridade do conhecimento e da racionalidade, sendo acionadas, segundo as  
táticas e objetivos do poder, argumentos teóricos, enunciados científicos e saberes muitas vezes  
alegados como inquestionáveis”.  
Assim, a prática institucionalizada da violência, como a criminalização de grupos e de  
movimentos sociais, por exemplo, se opõe à prática da democracia política, por não reconhecer  
o conjunto da população como sujeitos de direitos, que podem lutar por direitos e serem contra  
os privilégios de uma classe dominante, sendo o poder de dominação exercido através de  
opressão, força, intimidação e medo, inclusive pelo próprio Estado.  
Entretanto, a violência também precisa ser pensada a partir dos atos praticados pelos  
sujeitos. Desse modo, Chaui (2021) imprime o seguinte sentido à violência:  
Etimologicamente, "violência" vem do latim vis, força e significa: 1. Tudo o  
que age usando a força para ir contra a natureza de algum ser (é desnaturar);  
2. todo ato de força contra a espontaneidade, a vontade e a liberdade de alguém  
(é coagir, constranger, torturar, brutalizar); 3. todo ato de violação da natureza  
de alguém ou de alguma coisa valorizada positivamente por uma sociedade (é  
violar); 4. todo ato de transgressão contra aquelas coisas e ações de alguém ou  
uma sociedade definem como justas e como um direito (é espoliar ou a  
injustiça deliberada); 5. consequentemente, violência é um ato de brutalidade,  
sevícia e abuso físico e/ou psíquico contra alguém e caracteriza relações  
intersubjetivas e sociais definidas pela opressão e pela intimidação, pelo medo  
e pelo terror. A violência é a presença da ferocidade nas relações com o outro  
enquanto outro ou por ser um outro, sua manifestação mais evidente se  
encontra na prática do genocídio e na do apartheid. É o oposto da coragem e  
da valentia porque é o exercício da crueldade. (CHAUI, 2021, p. 35-36, grifos  
da autora).  
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A autora indica, ainda, a oposição entre violência e ética. A ética relaciona-se a um  
sujeito ético, enquanto ser racional, consciente, um ser livre que detêm conhecimento, domínio  
da linguagem e é responsável pelo que faz. Aqueles que praticam a violência deliberadamente  
tratam os seres como irracionais, passivos, inertes e insensíveis, como mera mercadoria e  
instrumento para uso de terceiros. Tratar os seres dessa forma, retirando sua humanidade,  
destituindo-os de liberdade, razão, vontade e responsabilidade, como “coisas”, isso é violentar.  
Chaui (2021) destaca que a ideologia neoliberal alargou o espaço privado em detrimento  
do espaço público, com a recusa de instâncias regulatórias das leis e dos direitos sociais,  
levando ao entendimento de que seres humanos são descartáveis em prol da maximização dos  
lucros. Redimensionando, com isso, as condições para o exercício da violência, ampliando as  
possibilidades de aumento do crime organizado com capacidade de deteriorar e corromper o  
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Violência sem véu: uma reflexão inspirada na experiência como Assistente Social  
sistema judiciário e político, levando à impunidade de líderes governamentais, administradores  
públicos e demais representações públicas.  
A esse respeito, Ianni (2004, p. 142) afirma que no novo ciclo de globalização do  
capitalismo, desenvolvem-se as classes sociais e os “grupos sociais-mundiais", gestando-se  
“estruturas mundiais de poder nas quais predominam total ou amplamente os interesses das  
elites governantes e das classes dominantes mundiais”. A violência se expressa objetiva e  
subjetivamente no “(...) narcotráfico, sequestro e tráfico de órgãos, terrorismo niilista e  
terrorismo nazista, esquadrões da morte e lógica da destruição criativa, desemprego estrutural  
e lumpenização generalizada, terrorismo de Estado e geopolítica de guerra, racismos e  
fundamentalismo” (IANNI, 2004, p. 143). A violência causa danos físicos, sociais e  
psicológicos interferindo de forma significativa no desenvolvimento dos sujeitos sociais e/ou  
coletividades.  
Assim, o “capitalismo é um vasto, complexo e sempre expansivo processo político,  
econômico e sociocultural que leva consigo a vocação de produzir e reproduzir, criar e recriar,  
inovar e substituir, engendrar e destruir” (IANNI, 2004, p. 144). Nesse contexto, a violência  
pode levar não somente à morte do corpo, mas também do espírito.  
Na próxima seção dedicamo-nos a compreender alguns aspectos da violência no Brasil,  
na atualidade, na dimensão da totalidade social e nas condições postas pela sociedade  
capitalista.  
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A violência na totalidade da vida social  
A objetividade da sociedade capitalista, incluindo seus valores e o que é esperado da  
realização individual, articula-se subjetivamente com a perspectiva de obter trabalho e renda  
para usufruir do que é produzido coletivamente. Espera-se que cada indivíduo trabalhe e seja  
capaz de suprir suas necessidades pela renda auferida e que o trabalho realizado lhes confira  
dignidade, valorizando seu caráter.  
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Como lidar, então, com o desemprego e a impossibilidade de que todos alcancem  
simultaneamente um bom emprego? Como enfrentar a frustração de milhões de indivíduos que  
não logram êxito no mercado de trabalho, justamente, pela impossibilidade na realidade de que  
isso ocorra, de fato, para todos?  
No Brasil, a taxa de desocupação no trimestre de junho a agosto caiu a 8,9%, segundo  
dados da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios Contínua, divulgados pelo Instituto  
Brasileiro de Geografia e Estatística, em 30/09/2022, o que representa 9,7 milhões de pessoas.  
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Alexandra Aparecida Leite Toffanetto Seabra Eiras; Joyce Queiroga Resende  
É o menor patamar desde o trimestre encerrado em julho de 2015, quando foi de 8,7%2.  
Esses dados foram comemorados positivamente. Contudo, quase dez milhões de  
pessoas estão “desocupadas”, ou seja, não auferem renda mediante uma ocupação formal ou  
informal no mercado de trabalho. Por sua vez, a renda per capta foi de R$1.353,00, em 2021,  
recuo de 6,9% em relação à 2020, menor valor em uma década3.  
Entretanto, para o mês de setembro de 2022, o DIEESE (Departamento Intersindical de  
Estatística e Estudos Socioeconômicos) calculou o valor do salário mínimo necessário para uma  
família de quatro pessoas, dois adultos e duas crianças, em R$6.306,97, para suprir as  
necessidades básicas, sobretudo as de alimentação4.  
No ano de 2022, o salário-mínimo nominal no Brasil é de R$1.212,00. Assim, mesmo  
que dois adultos trabalhem em um domicílio e tenham duas crianças, estes possuirão, de acordo  
com o cálculo do DIEESE, um terço do valor necessário para suprir suas necessidades básicas.  
Ou seja, em 2022, 38,22% do total da força de trabalho, 36.414 milhões de indivíduos com e  
sem carteira assinada e que recebem um salário-mínimo, não teriam como satisfazer suas  
necessidades básicas e nem as de seus filhos e/ou familiares5.  
Não é de se estranhar que a pauta da classe trabalhadora elaborada pela CONCLAT  
(Conferência Nacional da Classe Trabalhadora) em abril de 2022, tenha as seguintes  
reivindicações (2022)6: política de valorização do salário mínimo, programa de renda básica,  
políticas ativas de geração de trabalho e renda, marco regulatório de ampla proteção social,  
trabalhista e previdenciária, promover para mulheres, população negra, juventude, LGBTQIA+  
e pessoas com deficiência, políticas ativas de geração de trabalho e renda, proteção aos  
desempregados, eliminação da fome, combate da carestia e segurança alimentar, dentre outros.  
Em outros termos, defende-se:  
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O Trabalho Decente, nos termos da OIT (Organização Internacional do  
Trabalho), como princípio de trabalho produtivo e de qualidade, com proteção  
social, liberdade sindical, equidade, segurança, dignidade, direito de  
negociação coletiva, eliminação de todas as formas de discriminação e  
erradicação de todas as formas de trabalho forçado e do trabalho infantil.  
(CONCLAT, 2022, p. 10).  
Desemprego, pobreza e fome são vivenciados cotidianamente e pesam na vida de  
milhões de indivíduos, agora, neste exato momento em que redigimos este artigo.  
Contudo, no cotidiano, os meios de comunicação e as mídias sociais focalizam as  
2 Desemprego cai a 8,9%, atinge 9,7 milhões de pessoas e é o menor desde 2015 - 30/09/2022 - UOL Economia  
3 Renda per capita cai a R$ 1.353 e atinge menor valor em dez anos | Economia | O Globo  
4 DIEESE - análise cesta básica - Salário mínimo nominal e necessário - outubro/2022  
5 Trabalhadores que ganham até um salário mínimo chegam a 38% (uol.com.br)  
6 https://www.dieese.org.br/documentossindicais/2022/CONCLAT-pautas-centrais-sindicais-07-abril.html  
Revista Libertas, Juiz de Fora, v. 23, n.1, p. 103-121, jan./jun. 2023. ISSN 1980-8518  
Violência sem véu: uma reflexão inspirada na experiência como Assistente Social  
situações excepcionais, tanto para exaltar aqueles bem-sucedidos quanto para enfatizar que  
existem possibilidades em algumas áreas e novas oportunidades, mas nunca para mostrar o  
tamanho do problema, qual seja: não há possibilidades para todos! E a maioria está na “corda  
bamba”, equilibrando-se para continuar vivo e assistindo ao banquete do lado de fora da festa.  
Nesta sociedade em que a produção da riqueza alcança níveis inimagináveis (medida  
em trilhões de reais e de dólares), a pobreza e a fome são um fenômeno de extrema violência e  
condicionam a vida de inúmeras pessoas à instabilidade e à insegurança, bem como às situações  
vexatórias e indignas.  
Esta dimensão estrutural e condicionante é violenta e submete o conjunto dos  
trabalhadores às concepções dominantes e hegemônicas. É também o solo que opõe os  
trabalhadores entre si, na luta pela sobrevivência, seja na disputa pelas melhores condições de  
trabalho e renda, inclusive no nível da formação profissional e acadêmica.  
A ideologia meritocrática assenta-se nesta realidade de oportunidades restritas e advoga  
em prol da competitividade e da lógica de que o melhor vencerá. Contudo, as exigências  
crescentes colocam o “sarrafo” sempre mais alto e este mecanismo pode se virar contra aqueles  
que se acreditam vencedores. Além disso, em uma sociedade estruturalmente vinculada à  
competição ninguém se sente, de fato, seguro. A instabilidade instiga todos a temerem um ao  
outro e instiga à intolerância ao diferente e àqueles que podem constituir ameaça ao que foi  
“conquistado” até aqui.  
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Esse fenômeno é em si mesmo extremamente violento e se reproduz cotidianamente  
com particularidades na corporeidade de cada indivíduo. O gênero, a cor da pele e a  
sexualidade, atravessados pela condição de classe, intensificam os estigmas, criando uma escala  
de violações que tende a se manifestar na vida individual.  
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Expressões da violência observadas no cotidiano do Serviço Social  
O Brasil conserva traços de uma sociedade colonial escravista, com predomínio do  
espaço privado sobre o público e de uma hierarquia familiar patriarcal e machista, em que,  
simbolicamente, o homem branco, líder da família, “deve mandar e ser obedecido” pelos demais  
integrantes. O outro “inferior sem poder de mando”, não é reconhecido como sujeito autônomo  
eticamente, nem politicamente, tampouco como cidadão. Essa relação assume a forma de  
opressão, de mando e obediência, marcada pela tutela e clientelismo, normalizada  
historicamente, como signo de prestígio, privilégio e poder. Este campo cultural-simbólico  
expressa-se em um “autoritarismo social” (CHAUI, 2021) que se apresenta para nós, assistentes  
sociais, nas situações de vida das pessoas que buscam e utilizam os serviços sociais.  
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Alexandra Aparecida Leite Toffanetto Seabra Eiras; Joyce Queiroga Resende  
Se prestarmos atenção observaremos que as definições macroeconômicas que impactam  
nos negócios, seja na agricultura, pecuária, indústria ou serviços, são realizadas de modo  
fechado ao escrutínio da sociedade e ao conhecimento do amplo conjunto de indivíduos, que  
não participam dessas decisões, em tese, de caráter privado, e sob a lógica do mercado. Tais  
definições condicionam a vida de muitas pessoas, que se descobrem envolvidas em fluxos  
migratórios para manutenção das condições de vida e sobrevivência.  
Hoje em dia, a partir da atuação como Assistente Social, escutamos relatos quanto à  
necessidade de migração na busca de melhores condições de vida e trabalho. Porém, o que  
muitos encontram após longas e constantes mudanças é uma nova situação de dificuldade e  
precariedade. Relatam a dificuldade de conseguir um emprego, a falta de informações e  
orientação nos equipamentos públicos de cidadania, como por exemplo, a retirada de segunda  
via de documentos, não raras vezes perdidos durante a mudança; dificuldade de inserção nas  
escolas. Dificuldade de acesso a benefícios sociais, como exemplo, o Auxílio Brasil  
(anteriormente chamado Bolsa Família), um dos programas de transferência de renda da política  
deAssistência Social para pessoas e conjuntos familiares em situação de “vulnerabilidade social  
e econômica”.  
Nesse sentido, a divisão do espaço urbano entre centro e periferia, não expressa somente  
um aspecto geográfico, são demarcações de acesso ou não à infraestrutura urbana, aos serviços  
de saneamento básico, energia elétrica, água encanada e tratada, atendimento de qualidade da  
saúde, escolas, lazer etc.  
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A grande maioria da população usuária do Serviço Social situa-se nas regiões  
periféricas, território onde se investe menos em infraestrutura, serviços e equipamentos  
públicos.  
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Nas visitas domiciliares realizadas pelos assistentes sociais podemos presenciar de  
forma empírica o quanto a população se encontra em situação precarizada e insalubre, ao  
mesmo tempo em que nos encontramos limitados para viabilizarmos o acesso às políticas  
sociais, pois os aparatos existentes são insuficientes para suprir essas necessidades básicas.  
Conforme alerta Chaui  
uma sociedade é democrática quando institui algo mais profundo que é  
condição do próprio regime político, ou seja, quando institui direitos e que  
essa instituição é uma criação social, de tal maneira que a atividade  
democrática social se realiza como luta social e, politicamente, como um  
contrapoder social que determina, dirige, controla, limita e modifica a ação  
estatal e o poder dos governantes. (CHAUI, 2005, p. 352).  
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Violência sem véu: uma reflexão inspirada na experiência como Assistente Social  
A luta social é o mecanismo de contestação e de busca pela efetivação das referências  
jurídico-normativas dos “direitos socialmente conquistados”, mas, ela tem sido utilizada como  
estratégia frequente no cotidiano desses trabalhadores? Diante de realidades tão duras, como  
seria possível evitar a alienação de pessoas que tem ocupação tão imediata com a sobrevivência  
física? Indagamos até que ponto as lutas sociais têm sido desacreditadas pela população  
empobrecida, inclusive pela dificuldade de resultados concretos a partir delas, reforçando as  
“saídas” individuais?  
No campo simbólico-cultural que sustenta tais ideologias, Chaui (2021) destaca  
algumas concepções que reforçam o autoritarismo social. Dentre elas, a concepção do “núcleo  
tradicional familiar” que recusa a igualdade real, naturalizando a inferioridade de mulheres,  
trabalhadores, negros, indígenas, idosos, imigrantes ou estigmatizando como anormalidade a  
homossexualidade, em detrimento das desigualdades econômicas, sociais, raciais e de gênero,  
invisibilizando a violência contra essas pessoas e grupos.  
No cotidiano do trabalho com famílias, observamos a reprodução de discursos e  
posturas arraigadas nas pessoas, como a delegação de trabalhos domésticos e cuidados dos  
filhos às mulheres e a busca de “bom casamento”, com atribuição de fragilidade natural que  
engendra a proteção masculina; o homem (proprietário) como detentor da força e alicerce da  
família; a correção da desobediência (entendida como desvio do que é instituído socialmente  
como correto) por meio da violência física; a reprodução de falas homofóbicas, racistas,  
xenófobas, expressadas como opiniões/valores individuais e/ou religiosos.  
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Na concepção de “mando e obediência'' não há espaço para o princípio da igualdade  
jurídica e a luta contra a opressão social e econômica das classes subalternas não é aceita, sendo  
tratada com repressão e, desse modo, as leis são percebidas como inúteis no sentido de assegurar  
e proteger uma igualdade jurídica entre os diferentes sujeitos.  
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No cotidiano, ainda que os direitos sejam reconhecidos legalmente, não se encontra a  
sua efetivação para o conjunto da classe trabalhadora e subalterna.  
No que tange a saúde, ainda que o Sistema Único de Saúde (SUS) seja universal, sem  
necessidade de contribuição prévia, o que vivenciamos é a ausência de investimento na  
amplitude exigida e o consequente sucateamento na oferta dos serviços, que causa longas  
esperas por tratamentos, consultas, exames, além do fantasma da falta de vagas, nas internações  
de emergência.  
Na educação, sujeitos e famílias encontram obstáculos para o acesso a creches e escolas  
públicas de qualidade, pois não há vagas e/ou estrutura suficientes para atender a todos que  
necessitam, o Estado deixa de investir em educação pública de qualidade em prol da lógica de  
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mercado e da educação privada, porém a maioria da classe trabalhadora não pode pagar pelo  
ensino privado.  
O acesso à habitação digna é direito de poucos e grande parcela da classe trabalhadora  
encontra-se em condições precárias de moradia, vivendo em locais insalubres, sem saneamento  
básico, sem conseguir adquirir sua casa própria despendendo sua escassa renda em aluguéis.  
Não obstante os programas sociais como o “Minha Casa Minha Vida” criado em 2009, durante  
o Governo Lula, hoje renomeado e subdimensionado no “Casa Verde e Amarela”, tenham  
beneficiado muitas famílias de baixa renda, eles não resolveram a questão habitacional e nem  
promoveram o acesso à infraestrutura e serviços básicos.  
Em relação à cultura e ao lazer, não se reconhecem as diferentes formas de expressão  
artísticas periféricas, e, via de regra, “muito” do que é de origem da classe trabalhadora,  
periférica e não-branca é tido como inferior; mesmo que as manifestações artísticas consigam  
sair desses territórios têm dificuldade de adentrar outros locais mais privilegiados devido a  
preconceitos e discriminações; o investimento em lazer e arte na periferia é subdimensionado,  
e aparece de modo residual nas ações de algumas instituições.  
Por sua vez, nesse autoritarismo social, de acordo com Chaui (2021) o “reconhecimento  
da cidadania a partir da perspectiva cultural do senhor de escravos” faz com que hoje em dia  
ainda não se entenda a conquista de direitos como fruto das lutas da classe trabalhadora, e sim  
como concessões da classe dominante.  
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Observamos que as conquistas jurídico-legais ainda são percebidas como concessão de  
um governante, obra da vontade pessoal e, por isso, podem ser retiradas, dependendo da vontade  
dele ou da necessidade econômica. O discurso da benevolência e caridade do Estado ainda é  
muito presente no cotidiano de trabalho do assistente social. Há pouco reconhecimento do dever  
do Estado e isso favorece a alienação das pessoas quanto à luta por afirmação do acesso aos  
direitos conquistados, por melhores condições de vida, pelo voto em representantes nos quais  
se vejam reconhecidos como iguais. Pois o voto acaba sendo utilizado como moeda de troca  
por benefícios particulares. Além, no contraponto disso, que é a presença de uma visão  
messiânica de representantes políticos como possíveis salvadores do povo e da nação. A falta  
de investimento em educação de qualidade reitera essa alienação, pelo desconhecimento da  
própria história, das lutas da classe trabalhadora e subalterna pela conquista de direitos e, de  
sua saga, ainda que sob pressão e coerção por parte do Estado.  
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Para manter o controle dos conflitos na sociedade, difunde-se uma ideia de sociedade  
pacífica e não violenta e, ignoram-se os conflitos. Assim, qualquer prática que ofereça algum  
risco à acumulação capitalista é considerada perigo à manutenção da ordem, sendo enfrentada  
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com repressão violenta, policial e militar.  
Em nosso cotidiano, observamos que a população mais afetada pela ideologia de uma  
sociedade não violenta e ao mesmo tempo alvo da violência estrutural e direta é a população  
pobre e não-branca. No exercício profissional é comum escutar, principalmente das mães,  
relatos sobre a sua preocupação com a vida de seus filhos e suas filhas, expondo o medo da  
inserção destes na criminalidade, bem como sobre a dificuldade de criar seus filhos como bons  
cidadãos diante das dificuldades sociais e financeiras, ou de como enfrentar situações de  
violência direta cometida por policiais, ou de como devem se comportar em espaços públicos  
para evitar situações vexatórias por sua condição de classe e raça. Contudo, o que realmente se  
destaca é o medo da repressão institucionalizada por agentes da polícia e outras instituições de  
garantias de direitos, demonstrando também aflições quanto a sua segurança enquanto  
mulheres, trabalhadoras e na sua maioria pretas e pardas, no sentido de serem culpabilizadas  
por qualquer tipo de violência que venham a sofrer. É contraditório que os equipamentos que  
deveriam assegurar proteção a toda população se apresentem tão seletivamente a quem devem  
ou não proteger, a quem devem ou não repreender.  
Chaui (2021) ressalta a composição majoritária das classes subalternas que carregam  
historicamente estigmas sociais, suspeição e culpa. A população negra considerada como  
inferior em todos os âmbitos, devido ao racismo, também é percebida como “a raça perigosa”;  
os indígenas são considerados irresponsáveis, preguiçosos e devendo ser exterminados ou  
civilizados; os trabalhadores rurais e urbanos, são ignorantes, atrasados e perigosos, sendo  
autorizadas ações policiais contra os mesmos, caso esses sujeitos apresentem algum tipo de  
insubordinação; a criança então descendente da classe trabalhadora já é vista como pessoa com  
tendência natural à criminalidade; mulheres não são ouvidas nos casos de violência sexual e  
outras formas de violação dos seus direitos, sendo julgadas e novamente violentadas ao procurar  
ajuda nas instituições de direito, culpabilizadas pela ocorrência, os homossexuais, sobretudo as  
e os trasvestis, são alvos de violência e assassinato, e frequentemente, sofrem prisões.  
Esta sociedade opera no sentido de silenciar opiniões antagônicas de grupos e classe  
sociais e de evitar conflitos e risco para o poder dominante e os meios de comunicação  
contribuem para isso, quando monopolizam as informações que evidenciam proposições tidas  
como verdade absoluta, sem apresentar questionamentos ou as contradições presentes neste  
processo. As mídias (rádio e televisão) ainda são uma referência para grande parte das pessoas  
e influenciam na manutenção do “senso comum” em relação às concepções e práticas de  
violência e nelas o espaço para diversidade de ideias ainda é limitado.  
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Esse cotidiano permeado, como evidenciamos, pelo autoritarismo social descrito por  
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Chaui (2021), explicita um conjunto de limitações para o trabalho do assistente social, desde à  
compreensão da própria violência estrutural que perpassa a vida das pessoas que buscam os  
serviços sociais, até as constantes frustrações face aos impactos pífios das políticas existentes  
para alteração das condições de vida, superação da pobreza, a saída da miséria e da insegurança  
alimentar.  
Considerações finais: reflexões para o enfrentamento da violência  
No decorrer deste artigo, enfatizamos a necessidade de uma perspectiva de totalidade  
para apreender o fenômeno da violência, em suas mais diversas manifestações cotidianas no  
Brasil, no intuito de desvelar como parte de sua complexidade, sua estrutura e enraizamento em  
processos históricos, que guardam a sua particularidade e combinam-se no campo simbólico-  
cultural evidenciando os traços de um autoritarismo social, reiterado nas práticas individuais e  
coletivas.  
Desvelar a violência, torná-la visível, retirar o véu sobre os componentes simbólicos e  
ideológicos que a mascaram, é uma tarefa que só pode ser realizada pela conexão com a  
totalidade da vida social, principalmente, com os processos históricos, econômicos,  
socioculturais que a engendram.  
Nesta perspectiva, a violência revela-se associada às desigualdades sociais fruto da  
questão social própria da sociedade capitalista. Nesta sociedade, as condições da produção da  
riqueza e do acúmulo de capital tornam-se indissociáveis da reprodução da pobreza  
(IAMAMOTO, 2007; NETTO, 2001).  
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As expressões da questão social materializam diferentes formas de violência na vida da  
classe trabalhadora, e, a violência  
(...) é uma categoria que se realiza como complexo social, que pertence às  
relações humano-sociais (longe de qualquer paradigma biologicista) e que  
carece, para seu enfrentamento, de reconstrução crítica apoiada na razão que  
se debruça sobre o mundo e, a partir dele, formula conceitos e propõe  
alternativas práticas. (SILVA, 2008, p. 268).  
Os assistentes sociais trabalham cotidianamente com as manifestações da violência e  
podem reproduzir em sua prática ações estereotipadas, preconceituosas e discriminatórias  
reforçando o autoritarismo social. Isso pode acontecer se o profissional não estiver atento à  
realidade concreta e pode ser evitado se insistir em decifrá-la em sua processualidade histórica.  
Silva (2008) afirma que o profissional do Serviço Social tem uma posição privilegiada  
pois atua diretamente com os usuários, o que pode contribuir para apropriação dessa realidade,  
para a reflexão crítica e produção de novos conhecimentos dentro e fora da academia.  
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Violência sem véu: uma reflexão inspirada na experiência como Assistente Social  
Entretanto, muitos assistentes sociais apresentam dificuldade de decifrar as  
particularidades da violência a partir de suas manifestações cotidianas.  
Isso pode ser explicado pela expressão e organização do trabalho na sociedade  
capitalista e os processos de alienação que lhe são pertinentes (MARX, 2017), bem como pelas  
requisições imediatistas e burocráticas da própria instituição empregadora. Além das  
fragilidades na formação teórica, por vezes fragmentada, sobretudo, com a proliferação do  
Ensino à distância (EAD), de baixo custo e aligeirado. Segundo Silva,  
Cria-se, então, um cenário perverso: o mesmo ingrediente necessário para uma  
densa apropriação do movimento do real (a vivência de experiências  
concretas), quando tomado isoladamente, consome a força, o potencial  
criativo do assistente social na divisão do trabalho, atribuindo-lhe a  
responsabilidade de ‘gerenciar praticamente’ mazelas sociais, oriundas da  
violência estrutural, implícita no próprio metabolismo do capitalismo  
contemporâneo, que é objetivada, com certa independência, por meio de ações  
violentas, também potencializadas por individualidades e suas respectivas  
subjetividades. (SILVA, 2008, p.267).  
Por sua vez, os elementos que levam à normalização da violência expressa na  
desigualdade social e econômica neste estágio perpassam a análise de Chaui, Ianni, Sales e  
Silva, destacando-se o modo como essa violência estrutural é transmutada atribuindo-se aos  
indivíduos a incompetência e responsabilidade pela situação de pobreza e/ou miserabilidade em  
que vivem.  
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Ao adotarmos essa perspectiva da violência estrutural compreendemos sua  
complexidade e capilaridade na totalidade da vida social, e a necessidade de desvelar os  
processos pelos quais ela se manifesta na vida individual e coletiva. Trata-se, assim, de um  
componente transversal, com distinções de lugares e poderes construídos historicamente.  
Assim, não é possível separar a violência estrutural de suas marcas na construção social  
dos indivíduos. Na particularidade da sociedade capitalista, seja pela concentração dos meios  
de produção e da riqueza socialmente produzida, que opõem, contraditoriamente, trabalhadores  
e capitalistas, empregados e patrões, seja pela designação de territórios e daqueles que os  
habitam ou pela segregação e discriminação da pobreza, seja pela histórica construção do  
racismo, do machismo e da homofobia, a violência ramifica-se conforme a corporeidade dessas  
pessoas, alijadas dos meios de produção e na maioria das vezes, do mercado de trabalho.  
Na imediaticidade desta sociabilidade invertem-se os nexos e quem sofre a violência  
cotidiana, pela invisibilidade e pelo estigma da pobreza e da periculosidade, são justamente  
aqueles que são alvo da repressão e acusados de violentos.  
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É claro que esse estigma encontra razões na realidade concreta, porque são também os  
indivíduos que compõem a classe trabalhadora e subalterna aqueles que estão expostos a aceitar  
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soluções vexatórias e/ou perigosas para a manutenção da sobrevivência.  
Ariano Suassuna foi muito perspicaz ao representar o “cangaceiro”, pessoa cruel e  
violenta, em sua construção como indivíduo, criança pobre e imersa em um contexto violento,  
em que ele “elege” a prática da violência como ato de sobrevivência. No “Auto da  
Compadecida”, esse cangaceiro foi absolvido pela “Mãe Maria”, “advogada dos pecadores”,  
mas na vida, frequentemente, eles continuam sendo miseravelmente punidos.  
As vítimas da violência certamente merecem cuidado e atenção do Estado e da  
sociedade, elas são, em sua maioria, oriundas da classe trabalhadora e subalterna.  
Provavelmente e talvez, por razões diferentes, a violência seja um consenso na indignação de  
todos, na atualidade. Em “sã consciência”, nenhum de nós aceita a prática da violência e a todos  
ela continua escandalizando.  
Essa complexidade posta pelo fenômeno da violência convoca-nos a explicitá-la e a  
buscar caminhos para sua superação, afinal, a história é construída coletivamente e cada ação  
praticada e reflexão realizada constituem momentos de disputa no plano sociopolítico e cultural  
para construção de algo diferente do que está posto.  
O desvelamento da violência em conexão com a totalidade da vida social expõe sua  
relação com a particularidade da sociedade capitalista e promove a percepção das condições  
objetivas postas pelo desenvolvimento histórico do ser social (LUCÁKS, 2012). Essas indicam  
avanços no desenvolvimento das forças produtivas e da tecnologia; colocam, ainda, recursos e  
possibilidades de agenciar, coletivamente, melhores condições de vida para o conjunto dos  
indivíduos. Tal constatação nos faz vislumbrar perspectivas de objetivação de novas bases  
materiais que alterem os processos de produção da subalternização. Porém, é necessário que  
nos dediquemos a projetar novos horizontes para a vida social, o que queremos concretamente,  
em termos do exercício da cidadania, e que nos lancemos a disputar os rumos desta sociedade.  
O caminho para explicar o fenômeno da violência exige tratamento no plano  
econômico-sociocultural, envolve disputas na arena política, inclui lutas e movimentos que  
promovam o acesso aos direitos sociais e garantam as condições concretas para o efetivo  
exercício da cidadania.  
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Na atualidade, é preciso usar a riqueza socialmente produzida em prol de todos os  
indivíduos e do exercício efetivo e universal da cidadania, o que constitui a possibilidade de  
agir para a redução das desigualdades sociais, acumular forças e fundar novas bases para  
construção de novas relações de poder, mais simétricas e menos violentas.  
Revista Libertas, Juiz de Fora, v. 23, n.1, p. 103-121, jan./jun. 2023. ISSN 1980-8518  
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Revista Libertas, Juiz de Fora, v. 23, n.1, p. 103-121, jan./jun. 2023. ISSN 1980-8518  
DOI 10.34019/1980-8518.2023.v23.40727  
Mortes Violentas Intencionais dos/as negros/as  
brasileiros/as: ensaios sobre seus determinantes  
Intentional Violent Deaths of Brazilian Blacks: Essays on their  
determinants  
Francisco Flavio Eufrazio*  
Resumo: O ensaio em tela objetiva indicar  
prováveis determinantes da questão racial que  
podem contribuir, cedo ou tarde, direta ou  
indiretamente, no aumento das Mortes  
Abstract: The essay aims to indicate probable  
determinants of the racial issue that may  
contribute, sooner or later, directly or indirectly,  
in the increase of Intentional Violent Deaths  
(MVI's) of blacks. The analysis of these  
possible determinants was elaborated from a  
bibliographic review, in order to rescue studies  
on racism in its various manifestations that,  
currently, may be becoming the most cruel  
manifestation of racism: the black genocide  
caused by MVI's. It is possible to indicate, from  
a literature review, that determinants such as  
Violentas  
Intencionais  
(MVI’s)  
dos/as  
negros/as. A análise sobre esses possíveis  
determinantes foi elaborada a partir de revisão  
bibliográfica, a fim de resgatar estudos sobre o  
racismo em suas variadas manifestações que, na  
atualidade, podem estar se convertendo na mais  
cruel manifestação do racismo: o genocídio  
negro causado por MVI’s. É possível indicar, a  
partir  
de  
revisão  
bibliográfica,  
que  
racism,  
criminalization,  
persecution,  
determinantes como racismo, criminalização,  
perseguição, segregação dos/as negros/as, além  
da “guerra às drogas” e da violência policial,  
tem contribuído para o aumento das MVI´s  
dos/as negros/as no Brasil.  
segregation of blacks, in addition to the "war on  
drugs" and police violence, have contributed to  
the increase in the MVI's of blacks in Brazil.  
Palavras-chaves: Racismo; Mortes Violentas  
Keywords: Racism; Intentional Violent Deaths  
Intencionais de negros/as; Violência.  
of Blacks; Violence.  
Recebido em: 03/04/2023  
Aprovado em: 23/05/2023  
* Bacharel em Serviço Social pela Universidade Federal de Campina Grande (UFCG). Mestre em Serviço Social  
pela Universidade do Estado do Rio Grande do Norte (UERN). Doutorando em Serviço Social pela Universidade  
Federal de Pernambuco (UFPE). ORCID: https://orcid.org/0000-0002-6835-349X  
Revista Libertas, Juiz de Fora, v. 23, n.1, p. 122-140, jan./jun. 2023. ISSN 1980-8518  
Mortes Violentas Intencionais dos/as negros/as brasileiros/as: ensaios sobre seus determinantes  
Introdução  
As Mortes Violentas Intencionais (MVI’s) dos/as negros/as são o conteúdo formativo  
do genocídio negro, tipificadas como homicídio, feminicídio, roubo seguido de morte, lesão  
corporal seguida de morte, estupro seguido de morte – Morte por Intervenção Policial (MIP),  
juvenicídio –, infanticídio, maus tratos qualificados pelo resultado de morte, dentre outros nos  
quais à morte decorre de uma agressão intencional, inclusive homicídios de autoria  
desconhecida. É uma variação de crimes que comporta um complexo de especificidades geradas  
por conjunto de determinantes.  
No Brasil, as MVI’s dos/as negros/as é uma questão racial por ser expressão do  
racismo, revelando resultados de um conjunto de fatores que articulados ao racismo são  
potencializados das MVI’s dos/as negros/as, como o patriarcado e o capitalismo. Não obstante,  
verifica-se que as MVI’s dos/as negros/as indicam ser refrações do conjunto das desigualdades  
sociais estabelecidas pelo sistema capitalista que, ao serem adensadas ao racismo, mas também  
ao patriarcalismo, determinam a produção de “novas desigualdades no interior das  
desigualdades já existentes” (EUFRAZIO, 2022, p. 33).  
Igualmente, verifica-se que na execução das MVI’s contra os/as negros/as estão  
contidas determinações específicas, sobretudo quando tratamos de contextos territoriais  
distintos, pois as MVI’s se tornaram um dos mecanismos mais utilizados pela sociedade  
brasileira, através das ações da necropolítica: para manter a preservação do domínio  
demográfico do poder a partir da diminuição quantitativa dos/as negros/as. Tendo em vista que  
no Brasil, em 2019, 74,4% das vítimas de MVI’s foram pessoas negras, já em 2020, 76,2% das  
vítimas de MVI’s também foram pessoas negras. Em 2021, esse percentual se elevou para  
77,9%, segundo dados do FBSP (2022). Esses percentuais, quase que majoritariamente, foram  
constituídos por mortes derivadas de intervenção policial. Isso porque “as polícias brasileiras  
atuam a partir de um padrão de policiamento que comporta um número de mortes em confronto  
muito superior aos observados em vários países desenvolvidos do mundo” (LIMA et al, 2016,  
p. 52). Em 2021, por exemplo, 84,1% das MVI’s dos/as negros/as em território nacional foram  
decorrentes do trabalho policial, segundo dados do FBSP (2022).  
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As principais ocorrências que mais provocam as MVI’s dos/as negros/as no Brasil e  
suas qualificações/tipificações estão referenciadas a partir do Código Penal em vigor, com  
exceção das MIP’s e do juvenicídio. O Código Penal, além de determinar tipificações para as  
ocorrências, dispondo da periodicidade da pena e da classificação em grau, conceito e categoria,  
também apresenta e representa um conjunto de normas jurídicas que regulam o poder punitivo  
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Francisco Flavio Eufrazio  
do Estado1, definindo crimes e a eles vinculando penas ou medidas de segurança. Contudo, se  
percebe pelos quantitativos referentes às MVI’s dos/as negros/as e pela temporalidade de suas  
evoluções acima exposta, que nem as definições, tampouco as disposições contidas no Código  
Penal: parece não penalizar os/as atores/as das MVI’s dos/as negros/as, pois se por um lado a  
violência é proveniente do medo, por outro ela é normalizada pela ausência dele. Dito de outra  
forma: a impunidade do crime é sua principal pólvora.  
Mas a injustiça não é a única situação presente na vida dos familiares que convivem  
com a dor e com a mágoa da perda, por ela está acompanhada da insegurança, prima da  
desproteção e irmã siamesa da violência. Esse conjunto de situações indesejáveis é latente na  
vida dos/as negros/as, fazendo desses potenciais vítimas de MVI’s, as quais os/as reduzem a  
cadáveres, a mais um corpo frio ao chão jogado, seja pela via do homicídio, do latrocínio, da  
MIP, da lesão corporal seguida de mortes etc.  
Gráfico 1 - Mortes Violentas Intencionais dos/as negros/as no Brasil por tipos de ocorrência (2019-2021)  
300%  
200%  
100%  
0%  
84,10%  
78,90%  
79%  
77,60%  
75,80%  
74%  
68,70%  
75,30%  
68%  
67,60%  
64,30%  
56%  
Homicídio  
Latrocínio  
Lesão C orporal  
Seguida de Morte  
Mortes por Intervenção  
Policial (MIP)  
2019 2020 2021  
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Fonte: Elaborado pelo autor a partir de dados dos anuários do Fórum Brasileiro de Segurança Pública V.14  
(2020), V.15 (2021) e V.16 (2022).  
Pelo gráfico acima, identificamos quatro formas predominantes de violentar  
letalmente os/as negros/as. Quatro tipos de ocorrências que finda a vida negra e que  
constantemente estão acima da taxa de 50%. Quatro circunstâncias que constituem o conjunto  
viabilizador das MVI’s dos/as negros/as. Quatro principais meios de manter o controle  
demográfico do poder a partir da diminuição quantitativa dos/as negros/as. Quatro formas  
contemporâneas de violência que substituíram os troncos, as correntes, o acoite, os grilhões.  
Quatro subcategorias para conceituar e analisar as MVI’s dos/as negros/as. E, embora esteja  
ciente que é preciso haver análises sobre as respectivas ocorrências visando desconverter o  
problema quantitativo em informações qualitativas, busco contribuir com breves ensaios sobre  
possíveis determinantes potencializadores das MVI’s dos/as negros/as causadas pelas  
ocorrências expostas no gráfico acima. Sendo assim, o objetivo desse trabalho é indicar curtos  
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1 Trabalhamos com a ideia de Estado punitivo elabora por Loic Wacquant (2004). Neste Estado punitivista, o autor  
considera haver: um “controle punitivo dos/as negros/as do gueto pelo viés do aparelho policial e penal, que  
estende e intensifica a tutela paternalista já exercida sobre eles pelos serviços sociais” (p. 62).  
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Mortes Violentas Intencionais dos/as negros/as brasileiros/as: ensaios sobre seus determinantes  
ensaios de prováveis determinantes da questão racial que podem contribuir, cedo ou tarde, direta  
ou indiretamente, no aumento das MVI’s dos/as negros/as. A análise sobre esses possíveis  
determinantes foi elaborada a partir de revisão bibliográfica, a fim de resgatar estudos sobre o  
racismo em suas variadas manifestações que, na atualidade, podem estar se convertendo na  
mais cruel manifestação do racismo: o genocídio negro causado por MVI’s.  
Racismo: pólvora das Mortes Violentas Intencionais dos/as negros/as  
Racismo: determinante societário estrutural, formado por um conjunto de práticas  
racistas fundamentadas na concepção de raças, que vivem experiências desiguais e combinadas,  
constituindo um “processo em que condições de subalternidade e de privilégio [...] se  
distribuem entre grupos raciais [e] se reproduzem nos âmbitos da política, da economia e das  
relações cotidianas” (ALMEIDA, 2020, p. 34). O racismo, por ser matriz da questão racial,  
estar impregnado no cotidiano, na dinamicidade e na capilaridade das relações sociais, raciais  
e de gênero, fazendo da divisão da sociedade de classe uma sociedade segmentada racialmente,  
além de agudizar as relações de gênero edificadas sobre patriarcalismo.  
O racismo está presente no desenvolvimento do ser social, contribuindo para e sendo  
modificado por esse desenvolvimento. O racismo não é uma determinação societária estática,  
tampouco neutra. Ele não é cristalizado, sequer bloqueado por outras determinações societárias  
como classe ou gênero. Não é à toa que Heleieth Saffioti (2015), por exemplo, diz que classe,  
gênero e raça se constitui um novelo. Um nó indissociável, integralmente dependente,  
socialmente diversificado, historicamente reinventado e pornograficamente unido. Por não ser  
estático, o racismo está em constante alteração, principalmente quando ocorre mudanças nos  
procedimentos de dominação e de conquista de poder, seja no campo político, social,  
econômico ou cultural. Também é evidente que o racismo é uma herança inevitável da ordem  
senhorial e escravocrata, que se prolonga e se reproduz em nossos dias na medida que se  
mantêm e se revitaliza (FERNANDES, 2008).  
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O racismo e com ele as expressões da questão racial, aparecem como um polo  
dinâmico “básico” da situação de contato entre segmentos raciais distintos, oferecendo  
vantagens a uns e danos a outros. O racismo torna uma raça subjugada a outra. Enquanto uma  
é tornada essência, a outra é feita apêndice, caricaturada como perigosa, como um risco  
eminente, como uma degeneração biológica, humana, social e racial, por isso o grande  
quantitativo de MVI’s dos/as negros/as, por isso a existência do genocídio negro característico  
de nacionalidades constituídas no símbolo do racismo. Neste sentido, identifico que o racismo  
é a pólvora das MVI’s dos/as negros/as, por ser o seu determinante primário e por desencadear  
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os demais que se atrelam a questões também relacionadas a violência, sobretudo em sua versão  
letal, fazendo das MVI´s dos/as negros/as um eficiente método de manter a concentração do  
poder e da ordem racial estabilizada através da diminuição demográfica desses sujeitos,  
fenômeno esse relacionado as “formas de racismo mascaradas”, analisadas e defendidas por  
Nascimento (2016), que aponta o racismo como mecanismo de dominação e exterminação.  
Criminalização dos/as negros/as: uma via determinante das Mortes Violentas  
Intencionais  
A discussão sobre criminalização não se esgota na questão de raça, apesar da raça ser  
determinante prioritário para ser criminalizado/a. Além disso, é uma discussão que é parelha a  
outras, pois o exercício de criminalizar é constituído por vias distintas, seja ele influenciado por  
questões econômicas, territoriais, discriminativas, geracionais etc. Contudo, para Xavier (2020,  
p. 20), criminalizar negros/as, em particular à juventude que constituem parte desse segmento  
racial, é dá continuidade num tratamento de “inferioridade e na veiculação de imagens  
simbólicas de negros/as como subordinados/as, que fazem parte do repertório perverso de  
setores da sociedade que emprega a criminalização como medida antecedente ao genocídio  
desse grupo”.  
Essa realidade, pelo que podemos apreender da obra “encarceramento em massa”  
(Borges, 2019), descende da tradição de policiar e exterminar segmentos raciais que,  
majoritariamente, formam as parcelas populacionais parelhas à pobreza e que constituem, pela  
ótica racista, problemas que a sociedade precisa resolver. Hoje, as respostas encontradas pela  
sociedade civil e pelo Estado é a eliminação, a partir da violenta crueldade, exercida,  
consubstancialmente, por forças de segurança pública através de suas ações de policiamento:  
84,1% das mortes causadas pela violência policial foram de pessoas negras em 2021 (FBSP,  
2022).  
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Os/as negros/as que predominantemente convivem com uma das mais graves  
expressões da questão social que é a pobreza2, são aqueles/as que mais enfrentam essa  
crueldade, derivada de aspectos racistas que quase se assemelham ao um frenesi por quem a  
executa e que reflete um modelo de sociedade racista, altamente masoquista para com o/a  
negro/a. Mas a pobreza não é a única expressão da questão social que esgota as determinações  
da criminalização, pois os/as negros/as residentes em periferias, pobres, informalizados ou  
2Segundo Carlos Madeiro (2019), os/as negros/as são 75% entre os/as mais pobres. Os/as brancos/as são 70% entre  
os/as mais ricos/as. Em níveis de rendimento, os/as negros recebem menos de 934 reais quando comparado ao  
rendimento de brancos/as em ocupações formais.  
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Mortes Violentas Intencionais dos/as negros/as brasileiros/as: ensaios sobre seus determinantes  
desempregados/as não são criminalizados/as apenas por serem pobres, desocupados/as,  
informalizados/as ou periféricos/as, mas predominantemente por serem negros/as. E nota-se,  
desta forma, como é construída a imagem do “criminoso” a partir da  
população pobre e periférica, sobretudo negra. Tal estereótipo é reforçado  
constantemente pelos meios de comunicação – cujos interesses visam à  
reprodução do capital – como potencial ameaça à manutenção da segurança  
pública, gerando na sociedade ondas de medo personificadas em violência que  
rebatem, majoritariamente em [pessoas negras]. (BUOZI, 2018, p 543).  
Em geral, criminalizar o/a negro/a não é a mesma coisa que criminalizar outro  
indivíduo racialmente distinto, por haver no exercício de criminalizar: parâmetros racistas que  
reduzem o segmento racial negro em agente passível da criminalização, em denominador  
comum para o direcionamento da violência, em escopo do experimento para avaliar,  
habitualmente, a efetividade e a eficiência das MVI’s. A criminalização do/a negro/a é uma  
criminalização, antecipadamente, racial, fomentada pelo racismo, pelo desprezo aquilo que foi  
constituído social e racialmente inferior, ameaçador e violento, já que a criminalização dos/as  
negros/as não é apenas social, ela predominantemente racial e determinantemente genocida.  
Sendo assim, é possível sugerir que o  
processo de criminalização, nos componentes de produção e de aplicação de  
normas penais, protege seletivamente os interesses das classes dominantes,  
pré-seleciona os indivíduos estigmatizáveis distribuídos pelas classes e  
categorias sociais subalternas, [...] administra a punição pela oposição de  
classe do autor e [reprime as] massas miserabilizadas e sem poder das  
periferias urbanas, especialmente as camadas marginalizadas como o povo  
negro. (SANTOS, 2008, p 126, grifos meus).  
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Um exemplo dessa realidade foi o que ocorreu em 2021. Segundo o levantamento feito  
pelo portal de notícia UOL3, os/as negros/as representaram 60% das pessoas que, injustamente,  
foram presas, no respectivo ano. Sobre isso, Borges (2019), já nos informou que o  
encarceramento em massa dos/as negros/as é uma manifestação da criminalização desacerbada  
desse segmento racial. Isso porque no ato de criminalizar concentra aspectos estigmatizantes  
de raça, de classe, de gênero, de território, de sexualidade, de idade, dentre outros que  
constituem o conteúdo formativo da criminalização. E, apesar do fato de haver um menu de  
determinações imbricadas que constitui o exercício de incriminar, pode-se dizer que a raça é o  
fulcral determinante dele, pois são os/as negros/as, seja eles/as periféricos/as ou pobres, quem  
mais o enfrenta. Essa ocorrência está condicionada à realidade racista na qual os/as negros/as  
foram impedidos/as de compor espaços distintos da organização social, de gerir ou determinar  
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UOU. Negros representam 60% dos presos injustamente no Brasil, 2021. Para mais informações acesse:  
05/01/2023.  
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normas, ou mecanismos de controle, de domínio ou de conservação, e reduzidos a meros  
espectadores das relações sociais que se constituíram no Brasil (FERNANDES, 2008).  
A criminalização desse segmento racial, em particular de sua juventude – como coloca  
Xavier (2020) – tornou-se uma prática de defesa do segmento racial economicamente  
dominante para impedir, primeiro: uma ascensão educacional, política, social e econômica do/a  
negro/a na sociedade de classes, que se formou no Brasil; e, segundo: para impedir a  
perpetuação da raça negra, pois criminalizar também é sinônimo de violência, em particular de  
violência policial que é intencionalmente letal sobre a respectiva raça: segundo dados do FBSP  
(2022), o percentual de negros/as mortos/as pela ocorrência da violência policial em 2020 foi  
de 78,9%, essa taxa em 2021 se elevou para 84,1%. Não é à toa que mesmo sendo o Brasil um  
dos países de maior população carceraria do mundo4 e de grande quantitativo de negros/as no  
cárcere5, a tendência é de diminuição do segmento negro encarcerado, pois são os/as negros/as  
que mais morrem, tanto dentro quanto fora das prisões.  
Ianni (1966), ao analisar a formação das raças nacionais, afirma que ela é reflexo da  
constituição de raças ocorrida em outras nacionalidades ou a partir de outras nacionalidades,  
porém com aspectos diferentes e reverberações particulares. Segundo o autor, esse processo, no  
fim e ao cabo, deliberou uma percepção do/a negro/a como vil frente ao branco/a, culturalmente  
constituído como apêndice, institucionalmente injustiçado/a, socialmente estigmatizado/a e  
racialmente criminalizado/a. Esse processo constitutivo das raças desencadeou aspectos  
representativos da dominação do poder e do direito a ter direitos, assim como, deliberou  
estruturas hierárquicas e subordinativas entre as raças. A isso somam-se aspectos da  
criminalização, os quais resultaram na redução do/a negro/a gerada por uma banalização de  
uma raça, criando, posteriormente, superioridade entre raças que se materializa na perseguição  
religiosa, na escravização de povos, na subtração cultural, tanto como forma de satanizar e  
condenar os/as negros/as, quanto de endeusar e preservar os/as brancos/as (CHAUI, 2003).  
O exercício de criminalizar os/as negros/as tornou-se algo inerente à sociedade  
brasileira, mesmo antes de sua divisão em classes, embora tenha sido na sociedade de classes  
que esse exercício tenha se intensificado. Isso significa que criminalizar o/a negro/a é  
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4 Segundo Adriano Lucas (2020), o Brasil é o quarto país com maior quantitativo de pessoas no cárcere: 607.731  
brasileiros/as estavam pressas em 2020. Em terceiro lugar encontra-se a Rússia, com uma população carcerária em  
torno de 642.444 pessoas presas. Em segundo lugar temos a China, com 1.657.812 pessoas presas e em primeiro  
lugar os Estados Unidos, com uma população carcerária em torno de 2.217.000.  
5 Segundo Departamento Penitenciário Nacional (DEPEN), a população carcerária total em 2020 era constituída  
de 56,64% de negros/as. Contudo, ressalta-se que neste ensaio, para fins de compreensão, considera-se pretos/as  
e
pardos/as como um único segmento racial: negro. Para mais informações acesse:  
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Mortes Violentas Intencionais dos/as negros/as brasileiros/as: ensaios sobre seus determinantes  
processual e não estático. Criminalizar os/as negros/as é mutável e dinâmico, pois sua  
consumação depende de sua adequação as mudanças do real e as nuances das estruturas do  
poder. Criminalizar não é um receituário, pois o uso de determinadas “justificativas” para  
criminalizar os/as negros/as não são semelhantes, tampouco conflitantes. Compreender o ato  
de criminalizar é dialético, complexo e exige estratégias para identificar suas vias de  
materialidade, sobretudo àquelas que produzem, cedo ou tarde, direta ou indiretamente: mais  
MVI’s dos/as negros/as.  
Perseguir, segregar e criminalizar: preparativos das Mortes Violentas Intencionais  
dos/as negros/as  
A perseguição aos negros/as faz parte de um arsenal político, historicamente  
revitalizado e institucionalmente aceito, que fortalece e dá suporte à teia racista na intenção de  
perpetuar os prestígios e os privilégios do segmento racial economicamente dominante.  
Segundo Clóvis Moura (2019), a perseguição aos/as negros/as no Brasil se iniciou ainda durante  
o período escravista, através da síndrome do medo dos senhores escravocratas, que enxergavam  
na organização dos/as negros/as uma ação perigosa ao seu status quo. Foi um tipo de  
perseguição que representou uma sentença de criminalização aos/as negros/as resistentes e  
insatisfeitos/as com a escravidão e com seu prolongamento. O autor ressalta que as ações  
repercutidas dessa síndrome estiveram, quase que integralmente, direcionadas aos/as negros/as  
livres que compunha as primeiras frentes negras revolucionárias, ao menos para situação do/a  
escravizado/a. Já para àqueles/as escravizados/as, suas repercussões resultaram na latência da  
perseguição, a partir de aspectos ameaçadores e violentos, executados como medidas de  
segurança para conter possíveis rebeldias.  
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Em poucas palavras, os senhores escravistas foram para os/as negros/as livres a  
primeira rusga em sua luta e para os/as escravizados/as: seus carrascos, seus assassinos, sua  
primeira via de letalidade intencional, a fim impedi-lo/as de contribuírem, futuramente, no  
movimento da quilombagem de caráter “emancipacionista que antecedeu, em muito, o  
movimento liberal abolicionista” (MOURA, 2019, p. 22). De modo geral, a perseguição ao/a  
negro/a buscou limitá-lo/a, contê-lo/a, criminalizá-lo/a, violentá-lo/a, eliminá-lo/a e perpetuar  
as relações de vantagens e de domínio edificadas na estrutura racista, que têm na segregação  
entre raças sua continuidade. Ocorre que a perseguição aos/as negros/as e com ela a segregação  
das raças foi e ainda é “um fator político importante, utilizado para naturalizar desigualdades e  
legitimar [...] o genocídio de grupos sociologicamente considerados minoritários(ALMEIDA,  
2020, p. 31).  
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No Brasil, a segregação das raças determina, racialmente: o direito à vida, o direito de  
possuir segurança, proteção e defesa de sua integridade física, o direito de ser percebido  
racialmente como segmento populacional que contribui com o desenvolvimento político,  
econômico, social, ambiental e humanitário. Essa segregação, acionada pelo racismo tem  
determinado qual raça domina e qual deve ser dominada, realidade que evidencia uma  
adequação de um sistema de castas num de classes ainda em construção, que emprega  
parâmetros segregacionistas como mecanismo de hierarquizar segmentos raciais e com isso  
determinar a incidência da latência das desigualdades, opressões, explorações e violências.  
Ao serem segregados/as, os/as negros/as convivem com a mais prejudicial expressão  
do racismo: o genocídio negro. Isso porque a segregação do/a negro/a, valida, homologa e  
naturaliza suas MVI’s, fazendo delas uma imprescindibilidade – aquilo que não se pode  
dispensar. Nascimento (2019), ao analisar o genocídio do negro brasileiro, no que ele defende  
como processo de um racismo mascarado, nos fornece valiosas contribuições sobre o assunto.  
O autor defende a tese de que o genocídio do negro brasileiro não ocorre apenas pela violência  
letal, por haver outras vias que, direta ou indiretamente, o estimulam. E sendo clínico nessa  
afirmativa, ele possibilita cogitar que a questão da segregação de raças influencia diretamente  
na ocorrência de MVI’s de negros/as, pois segregar estabelece um regime de exclusão baseado  
em discriminações, preconceitos, diferenças e hierarquias entre raças, criando empecilhos para  
que parâmetros judiciários e legislativos não sejam determinantes de sentenças racialmente  
igualitárias ou antirracistas.  
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Exemplo disso foram as aprovações de Leis punitivas sobre o/a negro/a ainda no  
período escravocrata, que não apenas buscaram contribuir ao movimento senhorial limitador de  
mudanças raciais profundas, mas que repercutiram positivamente numa espécie de “apoio legal  
à continuidade da morte do/a negro/a”. Em 1835, 53 anos antes da Abolição, foi aprovada, na  
província Bahiana, a Lei de nº quatro, que dispunha de medidas punitivas sobre os/as  
escravizados/as. Em seu primeiro artigo encontrava-se determinações que a Regência  
Permanente em Nome do Imperador D. Pedro Segundo fez saber a todos os súditos do Império  
que a Assembleia Geral Legislativa Decretou a seguinte disposição:  
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Art. 1º - Serão punidos com pena de morte os escravos ou escravas, que  
matarem por qualquer maneira que seja, propiciarem veneno, ferirem  
gravemente ou fizerem outra qualquer ofensa física a seu senhor, a sua mulher,  
a descendentes ou ascendentes, que em sua companhia morarem, e o  
administrador, feitor e às suas mulheres que com eles conviverem. Se o  
ferimento ou ofensa física forem leves, a pena será de acoites à proporção das  
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Mortes Violentas Intencionais dos/as negros/as brasileiros/as: ensaios sobre seus determinantes  
circunstâncias mais ou menos agravantes.6  
Tal disposição, como outras de mesmo teor racista, fez parte de uma realidade racial  
diferenciada, que buscou sua manutenção a partir de deliberações legais contributivas ao  
modelo racialmente estratificado, colocando o/a negro/a sob o julgo, punição, sentença e  
veredito do segmento racial economicamente dominante. Essa realidade se liga ao fato que a  
questão racial em suas múltiplas expressões como a criminalização do/a negro/a e o genocídio  
negro, refletem todo um aparato sócio-histórico que foi constituindo as relações de raças, de  
classes e de gênero a partir de uma divisão racialmente sexual do trabalho, de um sistema  
produtivo racial e sexualmente desigual e hierárquico, de um racismo e patriarcado legal, aceito  
e íntimo do desenvolvimento político e econômico do país. Ainda sobre as deliberações de Leis  
racistas, Sobrinho (2011), ao investigar o tráfico negreiro entre as províncias brasileiras, analisa  
também a resistência dos/as negros/as e aponta aspectos significativos da rivalidade entre  
senhores de pessoas escravizadas e os/as negros/as livres que constituíram o movimento dos  
jangadeiros7 contrários a continuidade do sistema escravista, no Ceará.  
Após se oporem ao movimento dos jangadeiros, os senhores escravocratas deliberaram  
ações legais que impediram o avanço da organização negra e de sua resistência na província  
cearense, ao consolidarem, por exemplo, “os direitos da propriedade privada nas mãos de um  
segmento social privilegiado”, a partir de 1850, com a Lei da Terra (SOBRINHO, 2011, p. 250).  
Ao deliberarem tal Lei, esses senhores impediram que os/a negros/as mudassem, ao menos que  
timidamente, as relações de opressão e exploração postas sobre si, pois não oportunizaram  
aos/as negros/as bases igualitárias de alteração sistemática da ordem societária de classes  
resultante da escravocrata. Pelo contrário, essa e demais Leis criaram empecilhos para os/as  
negros/as, ao auferirem vantagens sociais e raciais aos/as brancos/as. Para o segmento racial  
economicamente dominante elas resultaram em sua permanência nas instâncias de poder, no  
aumento do seu lucro, na sua segurança e na sua manutenção orgânica, ao instante que o  
segmento negro tais Leis só contribuíram na inflamação da questão racial, pois intensificaram  
sua matança, ao instante que protegendo e fomentando vantagens aos/as brancos/as.  
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Segundo Bento (2022), essa realidade racial precisa ser percebida também como  
oportunismo, pois se fala muito da herança da escravidão e nos seus impactos negativos para  
os/as negros/as, “mas quase nunca se fala na herança escravocrata e nos seus impactos  
positivos” para os/as brancos/as (BENTO, 2022, p. 23). O fato é que as vantagens sociais  
6 Coleção das Leis do Governo do Império do Brasil, 1835, p. 5-6. Trecho extraído do livro “Sociologia do negro  
brasileiro”, Clóvis Moura, 2019, p. 270.  
7 Para mais informações acerca do movimento dos jangadeiros no Ceará ver Sobrinho (2011).  
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Francisco Flavio Eufrazio  
estabelecidas no segmento racial economicamente dominante foram e ainda são perpetuadas  
como prova benevolente de um Estado submisso aos parâmetros, predominantemente, raciais e  
patriarcais, pois a sociedade de classes que se formou no Brasil contém mais determinações de  
raça e gênero do que de classe, embora haja uma imbricação entre elas. Ainda segundo a autora,  
tais abordagens não são levantadas ou fomentadas porque há, precisamente no Brasil, um “pacto  
da branquitude” (BENTO, 2002), um consenso de posicionamentos racistas, uma validação  
social e institucional do exercício de subordinar os/as negros/as aos/as brancos/as, uma  
realidade tácita que minimiza ao racismo ao instante que o prolonga, que negligencia às MVI’s  
dos/as negros/as ao normalizar o genocídio negro.  
Nessa realidade encontram-se aspectos pré-concebidos e discriminatórios contra os/as  
negros/as e acima de tudo contra o seu potencial, pois algumas assimilações feitas dos/as  
negros/as como culpados/as, violentos/as, ameaçadores, vingativos/as favoreceram a tradição  
de criminalizá-los/as, os/as caracterizando/as como “invasores do que os/as brancos/as  
consideram [como] seu espaço privativo, seu território” (BENTO, 2022, p. 75, grifos meus).  
Além disso, Moura (2019), declarou que foi uma verdadeira “paranoia que se apoderou [da  
sociedade] e determinou o seu comportamento básico em relação às medidas repressivas contra  
os/as negros/as em geral” (MOURA, 2019, p. 276, grifos meus). Percebe-se, em relação a isso,  
8
que os/as negros/as brasileiros/as não foram introduzidos no “sistema associativo, que eles/as  
132  
não detêm o privilégio da defesa e da proteção associativa, que eles/as não detêm o direito da  
dúvida, tampouco a possibilidade de serem percebidos/as com semelhantes, como sujeitos  
associados/as. Tal realidade racial está relacionada aos interesses do segmento racial  
economicamente dominante, que procura exterminar o segmento negro para manter a  
preservação do domínio demográfico do poder a partir da diminuição quantitativa dos/as  
negros/as.  
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Em suma, foi mais vantajoso ao sistema escravocrata e ao capitalista manter o/a  
negro/a subjugado/a ao imprevisível, do que modificar uma realidade branca confortável. Da  
mesma forma, foi mais vantajoso cultivar relações desiguais entre as raças, durante o  
movimento diversificador de raças, do que nivelar social, política e economicamente a  
diversidade racial. Por isso a existência da criminalização, perseguição e segregação em larga  
escala dos/as negros/as, por eles/as, assim como outros segmentos raciais/etnias – indígenas,  
quilombolas e ciganos – terem sido historicamente criminalizados, perseguidos e segregados.  
8
De acordo com Rousseau (2011), o sistema associativo é a base do contrato social e do Estado, formados por  
acordos entre seus membros com intuito de assegurar defesa e proteção aos seus associados.  
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Mortes Violentas Intencionais dos/as negros/as brasileiros/as: ensaios sobre seus determinantes  
“Guerra às drogas” e violência policial: Potências de Mortes Violentas Intencionais  
dos/as negros/as  
Em todo o Brasil os/as negros/as têm 2,8 mais chances de serem mortos/as por  
intervenção policial, a veracidade dessa informação relaciona-se intimamente com justificativas  
frágeis e inconsistentes da “guerra às drogas”, que, no fim e ao cabo, representam apenas  
discursos covardes e medíocres para não assumir a real intencionalidade dessa “guerra” que é:  
matar negros/as, fundamentada no racismo-classista. A “guerra às drogas” é uma caricatura  
criada pelo Estado e pela polícia para justificar e validar as MVI’s dos/as negros/as.  
Infelizmente são ações que, visando fundamentá-las e autenticá-las, estão produzindo efeitos  
positivos, ao menos para os segmentos raciais condescendentes com essa realidade disfarçada  
sobre o manto da política de proibição de drogas, que tem em argumentos de proteção à saúde  
pública “validações”, seja pela propagação realizada pela mídia tradicional, pelas elites brancas  
e racistas ou por demais apoiadores.  
Foi partir dos anos 1960, que o discurso e as práticas repressivas em relação  
às drogas assumem um caráter belicista. Em 1961, a Convenção Única sobre  
Entorpecentes da ONU – defendida, patrocinada e sediada pelos Estados  
Unidos e ratificada por cerca de cem países – lançou as bases legais da política  
internacional de “guerra às drogas” vigente até os dias atuais. A adoção do  
modelo bélico para o tratamento de determinadas Substâncias Psicoativas  
(SPA) pode ser explicada por dois fatores principais. Em primeiro lugar, trata-  
se do período da Guerra Fria, no qual a militarização das relações  
internacionais e nacionais de cada Estado era interessante para justificar e  
manter os gastos bilionários com armamentos por parte dos dois blocos  
antagônicos, liderados pelos Estados Unidos e pela União Soviética. Em  
segundo lugar, a década de 1960, no mundo ocidental, é a década dos  
chamados movimentos de contracultura, da ascensão da luta operária, dos  
movimentos pela independência na África e contra as ditaduras na América  
Latina. (RYBKA et al, 2018, p. 102).  
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No Brasil, essas deliberativas se convertem, atualmente, em uma política de “guerra  
às drogas” voltada a matar negros/as. Isso porque a “guerra às drogas” no Brasil se converte no  
extermínio e no encarceramento em massa da população jovem, pobre e negra – em sua maioria.  
A conivência diante da violência letal atrelada ao enfrentamento do mercado de drogas ilícitas  
se perpetua na evolução dos quantitativos de MVI’s dos/as negros/as decorrentes de  
intervenções policiais, materializadas a partir de ocupações militares, nas Unidades Policiais  
Pacificadoras (UPP’s), nas rajadas de tiros, nos carros anfíbios, na utilização de metralhadoras,  
de lançadores de granadas, de jipes, de tanques e de outros instrumentos viabilizadores da  
militarização das periferias brasileiras e das grandes chacinas, como a que ocorreu em 2014, no  
complexo de periferias da Maré, na cidade do Rio de Janeiro, ou das ações militares rotuladas  
pela mídia tradicional como onda de resposta aos ataques do Primeiro Comando da Capital  
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(PCC), na cidade de São Paulo, em 2006, que provocaram mais de 493 mortes, sendo 400 delas  
jovens negros/as, pobres e periféricos/as.  
Em relação ao caso paulista, este cominou no Movimento Mães de Maio9, decorrente  
das mães que perderam seus filhos/as para polícia, sendo esse fato e sua vivacidade uma das  
pedras de toque para identificar o complexo de contradições inerentes às intervenções policiais.  
Segundo Isabela Inês Bernardino de Souza Silva e Isabela Maria Pereira Paes de Barros (2021),  
não é de hoje que há uma constância de contradições entorno das intervenções e operações  
policiais, porque desde os “anos 1960 e 1970, diversas intervenções e operações policiais foram  
empreendidas nas favelas e comunidades brasileiras visando fins sem meios adequados e  
funcionais” (SILVA, BARROS, 2021, s/p).  
Se por um lado as ações policiais visam a eliminação do crime organizado para impedir  
a filiação de jovens e como resultado inibi-los/as do mundo do crime, por outro, elas não estão  
acompanhadas de outras ações que eliminem ou se propõem amenizar o grau de desigualdades  
sociais e raciais posta sobre eles/as. Além disso, é notório que tais ações são  
consubstancialmente irrelevantes também quando amparadas em justificativas do extermínio  
do mercado de drogas, porque se por um lado elas procuram paralisar a perda de jovens para às  
drogas e assim diminuir o quantitativo de usuários de psicoativos, por outro, e paradoxalmente,  
essas ações empregam o uso maciço da força policial, não apenas imprimindo o despreparo e o  
mau planejamento das intervenções, mas evidenciando tentativas de vilipendiar o problema da  
dependência química mediante perspectivas preconceituosas, discriminatórias e conservadoras,  
tendo em vista que “os contínuos fracassos das intervenções não resultam em mudanças  
procedimentais significativas”, pois são construídas a partir de “condições para o emprego  
maciço da violência” (ALVES e PEREIRA, 2021, p. 467).  
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E é por esse tipo de violência caricaturada como “medida de segurança” que o fomento  
das MVI’s dos/as negros/as por intervenção policial vem aumentando consideravelmente na  
medida que diminui a munição do/a agente da segurança pública. De modo geral, são atitudes  
que visam assegurar a concentração do poder e das vantagens sociais no segmento racial  
economicamente dominante a curto, médio e longo prazo, porque são os/as jovens negros/as o  
público predominante das MVI’s provocadas pela intervenção policial em contexto nacional,  
logo, é a atual e futura geração dos/as negros/as que sofrem e morrem por ela.  
9 O movimento é constituído por uma rede de mães, familiares e amigos(as) das vítimas da violência do Estado,  
situado em São Paulo, com maior concentração na capital e na Baixada Santista. Formado a partir do massacre  
ocorrido em maio de 2006. O movimento visa lutar pela verdade, pela memória e por justiça para todas as vítimas  
da violência discriminatória, institucional, letal e policial.  
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Mortes Violentas Intencionais dos/as negros/as brasileiros/as: ensaios sobre seus determinantes  
Além disso, é necessário destacar que há, mesmo no interior das corporações civis e  
militares mortes de negros/as, porque 67,7% de todo o quantitativo de policiais assassinados  
foi constituído por negros/as, majoritariamente, entre 30 e 55 anos, executantes de relações de  
trabalho precarizadas: apenas 6% de policiais militares negros/as são efetivos/as, esse número  
cai entre os/as civis para 3,35%, segundo o perfil nacional de instituições de segurança pública  
(Ministério da Justiça e Segurança Pública, 2021). Neste caso, é cabível presumir que o agente  
policial negro/a não apenas contribui com o tipo de ocorrência que mais mata negros/as, pois  
ele também convive com o risco relativo de se tornar mais uma estatística das MVI’s dos/as  
negros/as, tanto dentro quanto fora do serviço, porque há a presença do risco eminente. Essa  
realidade traduz, concretamente, a busca incessante da preservação do domínio demográfico do  
poder a partir da diminuição quantitativa dos/as negros/as, porque o decaimento demográfico  
de um segmento racial é a garantia da permanência do outro no poder, a frente das estruturas  
regulatórias e de organização social, bem como, na ocupação de posições sociais de prestígio e  
de vantagem.  
É uma situação racial condimentada pelas relações capitalistas e racistas que criaram  
na sociedade de classes barreiras raciais invisíveis que segregam e que limitam experiências  
mútuas de correlação entre diferentes segmentos raciais, devido à conjuntura de clandestinidade  
compulsoriamente vivida pelos/as negros/as e mantida pela impetuosidade da violência policial  
sobre eles/as. Tendo em vista que a  
135  
cor/raça da vítima é uma das variáveis determinantes da violência policial, e  
o biótipo “negro” é o alvo predileto e, ao que tudo indica, de fácil identificação  
pela polícia. Fica evidente que os negros e seus descendentes no Brasil são  
assassinados pela polícia três vezes mais que os brancos, ou seja, se no plano  
biológico, o da mistura racial, não é fácil saber quem é negro no Brasil, no  
plano das relações raciais, ou sociológico, a identificação parece ser simples  
e, na maioria das vezes, fatal para os negros. (OLIVEIRA, 2016, p. 50).  
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Hoje, o apartheid moderno, infelizmente, é visto na relação entre a favela e seu  
entorno, em que tais comunidades – historicamente ocupadas, em sua maioria, por negros/as,  
que passaram a migrar para as periferias das cidades em habitações precárias após à Abolição  
da escravidão brasileira – são palco de técnicas de policiamento extremistas, herdadas dos  
períodos ditatoriais nacionais, e neste complexo panorama de relações entre favela e asfalto,  
formado por relações desiguais e conflitantes entre moradores e policiais, que os tipos  
experimentais de “segurança” ganham forma: uma segurança tipicamente letal e genocida  
proposta pelo Estado e pelas instituições policiais para proteger as elites brancas e racistas de  
negros/as e pobres. Em poucas palavras: um modelo de segurança voltado a eliminar a pobreza  
e a raça majoritária a ela associada (OLIVEIRA, 2016).  
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O Estado e suas instituições policiais ver nos/as negros/as potenciais escopos de  
materializar toda sua cólera, sua força, seu ódio. Essas ações para alguns representam a  
confiança e a esperança depositada no Estado e nas forças policiais de se valer da proteção  
contra aqueles subjetivamente feitos/as de inimigos/as e de ameaçadores da Lei e da ordem.  
Para outros/as, essas ações são características latentes do existente fascismo à brasileira, que  
normaliza às MVI’s dos/as negros/as por intervenção policial para assegurar o controle social a  
partir das pilhas de corpos negros perfurados a bala, derramando sangue, exalando impunidade  
e ilustrando o grau de racismo existente em todo país.  
Gráfico 1 (reprodução) - Mortes Violentas Intencionais dos/as negros/as no Brasil por tipos de ocorrência (2019-  
2021)  
300%  
200%  
100%  
0%  
84,10%  
78,90%  
79%  
77,60%  
75,80%  
74%  
68,70%  
75,30%  
68%  
67,60%  
64,30%  
56%  
Homicídio  
Latrocínio  
Lesão C orporal  
Seguida de Morte  
Mortes por Intervenção  
Policial (MIP)  
2019 2020 2021  
Fonte: Elaborado pelo autor a partir de dados dos anuários do Fórum Brasileiro de Segurança Pública V.14  
(2020), V.15 (2021) e V.16 (2022).  
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Gráfico 2 - Taxas de Mortes Violentas Intencional por intervenções policiais entre brancos/as e  
negros/as. Total 2020-2021 e variação  
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5,8  
Negros  
4,5  
4,2  
5
1
-30,9  
Brancos  
1,5  
-35  
-30  
-25  
-20  
-15  
-10  
-5  
0
10  
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Variação (em %)  
2021  
2020  
Fonte: reproduzidos pelo autor a partir de dados nos anuários do  
Fórum Brasileiro de Segurança Pública V.16 (2022).  
Conforme ambos os gráficos, é possível afirmar que as intervenções policiais são às  
principais causadoras das MVI’s de negros/as. Os/as agentes da segurança pública se tornaram  
a principal via de violentar letalmente negros/as, devido à estrutura racista, classista e patriarcal  
que mantém  
a violência e a tortura com que a polícia tem tradicionalmente tratado os/as  
negros/as e as classes populares, [e que] longe de se constituírem numa  
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Mortes Violentas Intencionais dos/as negros/as brasileiros/as: ensaios sobre seus determinantes  
“distorção” devido ao “despreparo” do aparelho de repressão, têm uma função  
eminentemente política - no sentido de contribuir para preservar a hegemonia  
das classes dominantes e assegurar a participação ilusória das classes médias  
nos ganhos da organização política baseada nessa repressão e no racismo.  
(OLIVEN, 2010, p. 11).  
Portanto, evidenciar essa realidade vivida pelos/as negros/as se faz necessário.  
Primeiro porque é preciso reconhecer a existência das MVI’s causadas, majoritariamente, pela  
violência policial para combatê-las e segundo porque se constitui enquanto um ato de denúncia  
da persistência do racismo impregnado em todas as esferas da sociedade nacional,  
especialmente no interior das corporações militares. Neste caso, escrevo o seguinte: o grande  
quantitativo de MVI’s dos/as negros/as pela ocorrência da violência policial decorre de uma  
introjeção e naturalização do racismo nas corporações militares e civis, se materializando pela  
via da violência armada que tem contribuído para preservar o domínio demográfico do poder  
vinculado a diminuição demográfica do/a negro/a, como fator essencial para preservar posições  
de prestígio e de vantagem dos/as brancos/as através da eliminação dos/as negros/as, que, no  
fim e ao cabo, reflete uma diminuição concorrencial, conforme constatamos a partir das análises  
de Ferreira (2020), Vianna e Neves (2011) e Pimenta (2014).  
Os/as negros/as, independentemente do seu pertencimento social, sempre estiveram  
subjugados/as a ideia de “segmento racial incapaz”. “Incapazes” de contribuir no sistema de  
classes, sobretudo em seus espaços deliberativos, políticos ou legislativos. “Incapazes” de  
serem percebidos/as como vítimas, como sujeitos semelhantes, dotados/as de direitos e deveres,  
por isso o grande quantitativo de negros/as em ocupações subalternizadas e desvalorizadas, por  
isso o crescimento das MVI’s dos/as negros/as, por isso o grande contigente de negros/as  
habitando territórios desprovidos de serviços básicos de infraestrutura, de locomoção, de  
acessibilidade, dentre outros que caracterizam ações, serviços, projetos, programas e benefícios  
conquistados pela classe trabalhadora a serem executados pelo Estado.  
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A desproteção estatal vivida pelos/as negros/as é simultaneamente uma proteção ao  
segmento racial economicamente dominante, direcionando a esse segmento racial vantagens  
sociais de permanência no domínio das estruturas do poder ao destinar primazia de proteção,  
de defesa, de segurança, de cuidado e de socorro em quaisquer circunstâncias, através da  
precedência de atendimento nos serviços públicos ou de relevância pública, além de dar  
preferência na formulação e na execução das políticas sociais a partir da destinação privilegiada  
de recursos públicos. Para os/as negros/as, ocorre uma destinação oposta caracterizada por  
ações punitivista, violentas, sanguinárias, controladoras e cruéis materializadas em grande  
proporção pelas forças de policiamento do Estado, como é perceptível nos gráficos acima e nos  
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dados seguintes.  
Segundo dados do FBSP (2022), os/as brancos/as representaram, em 2021, 32,3%  
das MVI’s provocadas por intervenção de policiais civis e militares, sendo 26,8% dessas mortes  
pelo uso de arma de fogo. Os/as negros/as, representaram, no mesmo ano, 67,7% de mortes por  
intervenção policial, constituído o total de 57,5% das mortes provocadas pelo uso de arma de  
fogo, implicando uma situação de vilipêndio com a vida negra. Uma vida aviltada, profanada,  
desrespeitada, ultrajada, violentada. Uma vida feita cadáver, legitimada ao assassinato, ao  
extermínio, ao genocídio. Infelizmente, são os/as negros/as os/as mais impactados/as pela  
violência letalmente armada praticadas pelos/as agentes da segurança pública, sendo essa uma  
eficiente mediação do controle demográfico do segmento negro.  
Infelizmente, o modelo de segurança pública em funcionamento não expressa eficácia  
na defesa e na proteção do segmento racial negro, por estar a serviço da máquina estatal  
punitivista e sanguinária, e por ser exemplo da descontinuidade dos direitos sociais constituintes  
da Seguridade Social em tempos de crise econômica neoliberal (WACQUANT, 1999),  
(MANDEL, 1982). Noutras palavras e paradoxalmente: segurança pública no Brasil é uma  
representação onipotente da insegurança socio-racialmente-sexual. Ao não proteger  
eficazmente o social, tampouco o racial, o modelo de segurança pública se converte num  
cotidiano violento e letal (BRIGAGÃO, 1985). E, habitualmente, sua ineficácia é sinônimo de  
mais MVI’s de negros/as, tanto pela ausência de resolutivas do problema, quanto por sua  
contribuição a ele. Isso tem ocorrido porque a morte de um/a negro/a reflete uma sociedade  
habituada à violência soberana e destrutiva, determinada pela Necropolítica racista e patriarcal  
que provoca mais mortes de negros/as (MBEMBE, 2016). Para Mbembe (2016) os Estados  
modernos adotam em suas estruturas internas o uso da força do policiamento como uma política  
de segurança para suas populações. E, por vezes, os discursos utilizados para validar essas  
políticas de segurança podem acabar reforçando alguns estereótipos, segregações, inimizades e  
até mesmo extermínio de determinados segmentos raciais, a partir de uma ideia de ‘licença pra  
matar’ em prol de um discurso de ordem.  
138  
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Considerações finais  
Considero haver um conjunto imbricado de determinantes potencializadores das  
MVI’s dos/as negros/as. Neste breve ensaio, destaquei o racismo como o prioritário e como  
matriz da questão racial, que determina e homologa formas de violência contra o segmento  
negro, ao passo que gera na sociedade brasileira passividade, vilipêndio e negligência diante  
das MVI’s dos/as negros/as. Sinalizei a criminalização do segmento negro e suas reverberações  
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Mortes Violentas Intencionais dos/as negros/as brasileiros/as: ensaios sobre seus determinantes  
como manifestação da questão racial e do próprio racismo como potencialidade e determinante  
viabilizador das MVI’s dos/as negros/as pôr está imbricada à perseguição e segregação desses  
sujeitos, que no fim e ao cabo, se constituem enquanto preparativos para a execução das  
respectivas mortes.  
Por fim, apontei dois agravos sociais que tem, habitualmente, aumentado os  
quantitativos de negros/as mortos/as pela violência letal no Brasil: a “guerra às drogas” e a  
violência policial. São agravos que imprimem a descontinuidade dos serviços públicos,  
sobretudo daqueles referentes a proteção e defesa civil/social. De modo geral, pelo que tem  
ocorrido no Brasil nas últimas duas décadas10, é possível concluir que o emprego de operações  
policiais nas grandes periferias brasileiras perpassa justificativas da “guerra às drogas”, por  
estarem associadas a parâmetros racistas e discriminatórios. São operações que visa a  
eliminação de facções, do mercado de drogas, mas também de negros/as, pobres e de  
dependentes de psicoativos, porque empregam o uso maciço da força e da violência  
desvinculada da segurança.  
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Revista Libertas, Juiz de Fora, v. 23, n.1, p. 122-140, jan./jun. 2023. ISSN 1980-8518  
DOI 10.34019/1980-8518.2023.v23.40726  
“Eu sou grande, você é pequena”: o direito da  
criança ao respeito e os fundamentos jurídicos  
para sua concretização no Brasil  
"I am big, you are small": the child's right to respect and the legal grounds  
for its implementation in Brazil  
Anna Paula Bagetti Zeifert*  
Schirley Kamile Paplowski**  
Resumo: Relacionar-se com crianças  
e
Abstract: To relate to children and adolescents  
from the perspective that they are "complete"  
human beings is something quite new for the  
Brazilian legal system. Based on this  
observation and on the fact that it is related to  
the impacts of respect, this research is guided by  
two questions: what is understood by the right  
to respect when we talk about children and  
adolescents? What are the legal elements that  
subsidize this analysis? Using the hypothetical-  
deductive method, the hypothesis outlined  
pointed to the existence of legal assumptions,  
but quite recent, in which the idea of respect is  
inserted, preceded by a long trajectory of  
disregard for the dignity of children and  
adolescents. The profound change in the subject  
occurred with the advent of the Doctrine of  
Integral Protection and the recognition that  
children and adolescents are subjects of rights,  
confirmed at the end. This analysis has been  
divided into two sections, with the purpose of  
evidencing the elementary character of the right  
to respect and to encourage practices in line  
with it.  
adolescentes a partir da perspectiva de que são  
seres humanos “inteiros” é algo bastante novo  
para o ordenamento jurídico brasileiro. Partindo  
dessa constatação e de que ela se relaciona aos  
impactos do respeito, a presente pesquisa é  
orientada por dois questionamentos: o que  
compreende o direito ao respeito quando  
falamos de crianças e adolescentes? Quais são  
os elementos jurídicos que subsidiam esta  
análise? Sob emprego do método hipotético-  
dedutivo, a hipótese delineada apontou para a  
existência de pressupostos legais, mas bastante  
recentes, nos quais se insere a ideia de respeito,  
antecedidos por uma longa trajetória de  
desconsideração  
da  
dignidade  
infantoadolescente. A profunda alteração no  
assunto se deu com o advento da Doutrina da  
Proteção Integral e o reconhecimento de que  
crianças e adolescentes são sujeitos de direitos,  
confirmada ao final. A presente análise foi  
dividida em duas seções, com objetivo de  
evidenciar o caráter elementar do direito ao  
respeito e fomentar as práticas alinhadas a ele.  
*
Pós-Doutorado pela Escola de Altos Estudos - Desigualdades Globais e Justiça Social: Diálogos sul e norte, do  
Colégio Latino-Americano de Estudos Mundiais, programa da Faculdade Latino-Americana de Ciências Sociais  
(FLACSO Brasil e UNB). Doutora em Filosofia (PUCRS). Professora do Programa de Pós-Graduação em Direito  
– Mestrado e Doutorado em Direitos Humanos - e do Curso de Graduação em Direito (UNIJUI). Integrante do  
Grupo de Pesquisa Direitos Humanos, Justiça Social e Sustentabilidade (CNPq). ORCID: https://orcid.org/0000-  
** Mestra em Direito pelo Programa de Pós-Graduação Stricto Sensu em Direito da Unijuí (Universidade Regional  
do Noroeste do Estado do Rio Grande do Sul), com área de concentração em Direitos Humanos. Bacharela em  
Direito, também pela Unijuí (2019). Assessora de Juíza de Direito (Tribunal de Justiça do RS). Foi bolsista da  
Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Capes), através do Programa de Suporte à Pós-  
Graduação de Instituições Comunitárias de Ensino Superior (Prosuc). Integrante do Núcleo de Estudos Aplicados  
Direitos, Infância e Justiça (Nudijus/UFC). ORCID: https://orcid.org/0000-0003-3503-967X  
Revista Libertas, Juiz de Fora, v. 23, n.1, p. 141-164, jan./jun. 2023. ISSN 1980-8518  
Anna Paula Bagetti Zeifert; Schirley Kamile Paplowski  
Palavras-chaves: Direito da criança e do  
Keywords: Child and adolescent law; Doctrine  
of integral protection; Dignity; Respect; Person  
in a peculiar condition of development.  
adolescente; Doutrina da proteção integral;  
Dignidade; Respeito; Pessoa em condição  
peculiar de desenvolvimento.  
Recebido em: 31/03/2023  
Aprovado em: 01/06/2023  
Introdução  
Dia após dia, nega-se a inúmeras crianças o direito de ser criança, como já advertia  
Eduardo Galeano (2011). Vez após vez, assiste-se à ofensa aos direitos e à dignidade dos mais  
vulneráveis, enfaticamente daqueles que estão se desenvolvendo nos aspectos físico, mental,  
emocional e cognitivo. A violação cotidiana ultrapassa o “mundo dos fatos” e adentra no mundo  
artístico – ou melhor seria dizer que a violação ultrapassa as artes e adentra na “vida real”? –,  
espaço esse que permite refletir sobre a intensidade de um determinado fenômeno: a violação  
do direito ao respeito e da dignidade de crianças e adolescentes.  
142  
Ao se achegar ao mundo das artes, especialmente com relação à literatura, uma  
conhecida história brasileira bem ilustra uma infância permeada de adversidades. Cuida-se de  
O meu pé de Laranja Lima, do escritor José Mauro de Vasconcelos (1968). Na comovente,  
profunda e pouco ficcional história, Zezé é um meninozinho que por várias ocasiões descobre  
a dor de uma forma diferente, acostumando-se a ela. Com tão pouca idade, prova de muitas  
amarguras, como a violência física, a fome, o desprezo, a carência de respeito, o rechaço por  
viver em situação de pobreza.  
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Em certa medida acostumado às mais diversas formas de violência e de privação, Zezé  
encontra alegria na sua imaginação, como também nas amizades, uma delas bastante peculiar:  
a do senhor “Portuga”, um homem idoso que permite a Zezé sentir-se amado e protegido. Na  
sua presença, ninguém machucava o menino e isso o tornava mais feliz. No pequeno grande  
universo de Zezé, a figura daquele homem, sua presença e amabilidade representavam  
felicidade e proteção.  
Infelizmente, não são raras as crianças e os adolescentes que crescem em ambientes  
hostis, violentos e escassos do mínimo para assegurar seu desenvolvimento, quer na família, na  
comunidade ou na sociedade em geral. Por vezes, a única referência de afeto é alguém diverso  
Revista Libertas, Juiz de Fora, v. 23, n.1, p. 141-164, jan./jun. 2023. ISSN 1980-8518  
“Eu sou grande, você é pequena”: o direito da criança ao respeito e os fundamentos jurídicos para sua  
concretização no Brasil  
das pessoas que integram o núcleo familiar. A necessidade de amor e de respeito não se trata de  
uma demanda exclusiva daqueles que se reconhecem como adultos e faz parte igualmente do  
processo de desenvolvimento do ser criança e do ser adolescente. Tal necessidade está  
intimamente relacionada com a condição de pessoa humana.  
A demanda pelo básico – mas caro e estimado – respeito não se nega apenas em ficção.  
A história de Zezé se repete dia após dia neste vasto Brasil, porquanto a realidade compreende  
uma infinidade de exemplos de um mal que nos acomete diariamente: a violação dos direitos  
da criança e do adolescente, mais especificamente do direito ao respeito, que pode ser  
compreendido como uma vertente da qual os demais direitos se fundamentam. Em outras  
palavras: todo e qualquer direito, se violado, implica também violação do direito ao respeito,  
por ação ou omissão.  
Atualmente, o plano normativo reconhece crianças e adolescentes como sujeitos de  
direitos, mas se conflitua com o plano dos fatos. Considerando isso, buscamos alcançar  
respostas aos seguintes problemas de pesquisa: o que compreende o direito ao respeito quando  
falamos de crianças e adolescentes? Quais são os elementos jurídicos que subsidiam esta  
análise?Afim de respondê-los, empregamos o método hipotético-dedutivo, com procedimentos  
bibliográficos e documentais. A hipótese para tanto aponta para a existência de pressupostos  
legais (expressos) e principiológicos bastante recentes sobre a concepção de direitos a crianças  
e adolescentes, no qual se insere a ideia de respeito. Tais pressupostos são precedidos por uma  
longa história de desproteção e desconsideração desses grupos, cenário que sofreu profunda  
alteração com o advento da Doutrina da Proteção Integral.  
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Para tanto, o estudo contém duas seções. Inicialmente, a ideia de respeito e sua  
implicação prática foi aprofundada. Após isso, a segunda seção compreendeu os aspectos  
jurídicos do respeito enquanto direito, fundamentalmente pela Doutrina da Proteção Integral.  
Mencionada doutrina absorveu os valores fundamentais da Convenção sobre os Direitos da  
Criança, rompeu com a doutrina anterior e assentou as bases para um Direito da Criança e do  
Adolescente, em substituição ao chamado “Direito do Menor”. Uma de suas principais  
referências no plano nacional é o Estatuto da Criança e do Adolescente e a Constituição da  
República Federativa de 1988.  
A partir desta modesta análise, objetivamos evidenciar o caráter elementar do direito ao  
respeito, apesar de não ser usual na linguagem, nas relações sociais e também nas relações  
jurídicas que versem sobre o público infantoadolescente. Antes de adentrar no desenvolvimento  
deste estudo, propriamente, compreendemos que o respeito principia por esta própria atividade  
científica, pelas palavras. Por isso mesmo, rejeitamos o emprego de expressões objetificantes  
Revista Libertas, Juiz de Fora, v. 23, n.1, p. 141-164, jan./jun. 2023. ISSN 1980-8518  
Anna Paula Bagetti Zeifert; Schirley Kamile Paplowski  
da infância (a exemplo do termo “menor”). Ao nos referirmos ao público infantoadolescente,  
utilizamos tanto o sentido empregado pela Convenção sobre os Direitos da Criança, que nomina  
enquanto criança toda pessoa com idade inferior a dezoito anos, quanto aquele do Estatuto da  
Criança e do Adolescente (que distingue criança de adolescente, sendo aquela a pessoa que  
conta até doze anos de idade incompletos; ao passo que adolescente compreende entre doze e  
dezoito anos de idade incompletos).  
Tecendo considerações sobre o direito ao respeito  
Dentre os múltiplos documentos jurídicos elaborados e aprovados após o marco  
temporal de 1988, um reconhece em seu próprio preâmbulo as necessidades que Zezé expressa  
indiretamente na sua fala. Cuida-se da Convenção sobre os Direitos da Criança de 1989, a qual  
afirma que a criança deve crescer no seio da família, em um ambiente de felicidade, amor e  
compreensão. Nessas condições, assegura-se o desenvolvimento pleno e harmonioso da criança  
e do adolescente, em uma relação de respeito com ela e com ele. Por isso que podemos falar  
em direito ao respeito, como convincentemente Janusz Korczak (1986) argumenta.  
Contudo, antes de compreender o respeito como um direito, torna-se imprescindível  
visualizá-lo como lente, que condiciona e interfere nas relações, tratamentos, diálogos, afetos.  
Após isso, apenas, é que tratá-lo como direito se torna possível, muito devido à sua carga  
subjetiva e implicação prática.  
144  
A abrangência de possibilidades para se demonstrar a aplicabilidade do direito ao  
respeito incorre em outra idêntica possibilidade: a amplitude de formas de sua ofensa, o que se  
inicia até mesmo por práticas sutis, como o pensamento, ao se julgar, por exemplo, que uns são  
melhores, mais sábios e capazes que outros por critérios de idade, tamanho e experiência. Tanto  
é assim que o elogio que parece ser mais interessante de se dizer à criança é de como ela é  
grande. “Todos nós crescemos convencidos de que o grande vale mais do que o pequeno. ‘Sou  
grande’, grita, contente, o garotinho trepado em cima de uma mesa. ‘Sou mais alto que você’,  
constata com orgulho, comparando-se com outra criança da mesma idade” (KORCZAK, 1986,  
p. 69). O grande é que impressiona, aparentando que somente o avantajado é merecedor de  
respeito, orgulho, admiração e estima.  
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Um pátio grande, uma cidade grande, uma escola grande, uma árvore grande...esses é  
que impressionam. Além de impressionar, o tamanho, não raro, condiciona determinadas  
condutas e relações. Pelos exemplos a criança aprende – aqui enfaticamente aqueles que são  
dados pelas pessoas adultas; aprende por esses comportamentos a menosprezar o que é fraco  
(KORCZAK, 1986). O fato de a criança ser pequena, todavia, não pode – e nem deveria –  
Revista Libertas, Juiz de Fora, v. 23, n.1, p. 141-164, jan./jun. 2023. ISSN 1980-8518  
“Eu sou grande, você é pequena”: o direito da criança ao respeito e os fundamentos jurídicos para sua  
concretização no Brasil  
autorizar a ser tratada com menosprezo, desconfiança, suspeitas, acusações, humilhação.  
Toda criança já nasce com a condição de ser uma pessoa humana, não importando  
quaisquer requisitos. Nela já reside a respiração de um novo tempo, da renovação da vida, do  
“testemunho da eternidade” (DALLARI, 1986, p. 21). Com frequência, ainda ouvimos  
discursos que buscam vincular uma necessidade de proteger o público infantoadolescente  
porque sobre seus ombros recai o que chamam de futuro; o futuro de um país, de um grupo, de  
uma família. Sem negar as perspectivas de vida, é importante anotar que essa narrativa oculta,  
em certa medida, que a criança, mais do que o amanhã, é sobretudo o hoje. A criança merece e  
deve ser respeitada porque ela já é o tempo e o momento, a vida, a sociedade, a família. Por  
isso que Dallari (1986, p. 21) enfatiza: “Toda criança nasce com o direito de ser. É erro muito  
grave, que ofende o direito de ser, conceber a criança como apenas um projeto de pessoa, como  
alguma coisa que no futuro poderá adquirir a dignidade de um ser humano”.  
Pelo simples fato de existir, a criança já é uma pessoa e por isso mesmo merece ser  
respeitada. A obviedade da afirmação, todavia, não implica sua aceitação por unanimidade na  
sociedade. Revela, por outro lado, um passado de profunda negação a um tratamento respeitoso  
sobre crianças e adolescentes, visualizados enquanto objetos na sociedade brasileira, ora sob  
uma perspectiva de proteção social (recebendo assistência), ora de controle e disciplinamento  
(diante do papel idealizado para conformar a mão de obra ao desenvolvimento econômico do  
Estado), ora de repressão (principalmente em face de adolescentes de famílias pobres, com  
vistas a impedir a delinquência e a ociosidade) (PINHEIRO, 2006).  
145  
Por diferentes vias e durante largo curso de tempo, aproximadamente até o final da  
década de 1980, a visão predominante sobre a criança não a considerava como pertencente, de  
fato, à categoria de pessoas. A discriminação esteve presente no imaginário social e nas ações  
cotidianas, permitindo tratá-la como sujeito inferior, em outro nível de humanidade, incapaz de  
falar por si e de gozar diretamente de direitos. Isso não significa dizer que, durante as diferentes  
representações sociais1 sobre a criança, não houvesse divergência dentro da própria sociedade,  
como também não houve homogeneidade durante os trabalhos da Assembleia Nacional  
Constituinte 1987-1988, que consagrou a representação da criança e do adolescente como  
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Um dos conceitos centrais que orienta a pesquisa de Ângela Pinheiro (2006) é de representação social. As  
representações não são um fato da natureza; “elas se gestam nos cenários sociais e organizam as práticas sociais”  
(PINHEIRO, 2006, p. 28). A formulação deste conceito central foi promovida pelo psicólogo social Serge  
Moscovici, com base no qual Pinheiro (2006, p. 35) compreende as representações sociais “como categorias de  
pensamento que expressam a realidade”, explicando-a, tanto por justificativas quanto por questionamentos.  
Moscovici (1978) revela esse evento a partir da soma dos conhecimentos provenientes da Sociologia, da História  
e da Psicologia Social. Para ele, a representação pode ser entendida como uma imagem: da cidade, de um  
determinado profissional, da criança.  
Revista Libertas, Juiz de Fora, v. 23, n.1, p. 141-164, jan./jun. 2023. ISSN 1980-8518  
Anna Paula Bagetti Zeifert; Schirley Kamile Paplowski  
sujeitos de direitos. É justamente sobre a possibilidade de diferentes representações coexistirem  
que Pinheiro (2006) adverte, a dificultar na condição plena de sujeitos de direitos na atualidade.  
Se inserida em outros contextos de desigualdade, a somar no quesito de idade e tamanho,  
como pertencer aos estratos mais empobrecidos, o tratamento que a criança receberá pela  
sociedade tende a ser ainda mais desrespeitoso. “Fraca, pequena, pobre, dependente, ela não  
passa de um cidadão em potencial” (KORCZAK, 1986, p. 74, grifo nosso). Sob a condição de  
“cidadão em potencial” o seu tempo presente é ignorado; o que importa é quem ela virá a ser,  
se isso for possível: agora ela é apenas uma criança, “um fedelho [...], um futuro homem, um  
quase nada no presente. Só um dia existirá de verdade”.  
Compreender que crianças e adolescentes merecem e necessitam de cuidado, amor e  
respeito está intimamente relacionado à incorporação do pensamento – ou da representação  
social – de que esses grupos são pessoas humanas inteiras, são sujeitos de direitos. Como tais,  
não compete à legislação, apenas, afirmar a sua condição de pessoa e de titular de direitos,  
medida que deve integrar o pensamento social e individual, orientar as ações públicas e  
privadas, influenciar na adoção de medidas por parte de instituições, grupos, relações, do  
Estado, da família, da comunidade, da sociedade.  
Com a instalação da Doutrina da Proteção Integral, um rol de direitos foi assegurado a  
crianças e adolescentes, cuja titularidade independe de condições como riqueza, uma  
determinada origem, região de residência, situação familiar, etnia ou cor. O cerne da questão  
reside no fato de que, embora a legislação não permita discriminações que venham a prejudicar  
crianças e adolescentes, inclusive vedando-as de forma expressa, há condições estruturais da  
própria sociedade brasileira que mantêm e que naturalizam um padrão de desigualdade entre  
grupos, inibindo o desenvolvimento integral. Considerando isso, ao analisar a realidade do  
tempo presente, é preciso dimensionar os desafios à efetividade da dignidade  
infantoadolescente conexa (e não descolada) com as questões históricas, principalmente a  
respeito da distância entre as conquistas legislativas e a realidade social (DIMENSTEIN, 1997;  
PINHEIRO, 2006; RIZZINI; KAUFMAN, 2007).  
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Nessa mesma direção é que Pinheiro (2006, p. 24) adverte: “é fundamental levar em  
conta as especificidades da vida das crianças e dos adolescentes, nessa complexa e desigual  
vida social brasileira”. Tais especificidades permitem compreender que há realidades diversas  
que convivem em uma mesma sociedade; são crianças e adolescentes que, em diferentes  
medidas, enfrentam circunstâncias particulares, algumas delas compartilhadas em grupos,  
como a pobreza e a desigualdade. Por isso, é preciso distinguir as vivências das crianças e dos  
adolescentes – no plural – “que estão inseridos em diferentes classes sociais, sobretudo os que  
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“Eu sou grande, você é pequena”: o direito da criança ao respeito e os fundamentos jurídicos para sua  
concretização no Brasil  
estão integrados nas classes subalternas, porque é nesse segmento que reside o maior  
desrespeito à sua condição de sujeitos, de portadores de direitos” (PINHEIRO, 2006, p. 24).  
As violações à dignidade da criança e do adolescente são praticadas sem ter em conta a  
classe social; todavia é necessário tomar nota para o fato de que a proporção de algumas  
privações e violações são mais intensas quando a realidade infantoadolescente é inserida em  
um contexto de vulnerabilidade econômica, se pertencente às camadas mais empobrecidas,  
conforme Pinheiro (2006) também reconhece e consoante a literatura avaliza, a exemplo da  
própria obra de Vasconcelos (1968).  
Esse é um dos motivos pelo quais podemos dizer que não é acertado falar em universo  
da infância e da adolescência para efeito de abordar os temas que lhe são inerentes.  
Etimologicamente, a palavra “universo” se origina do latim universus, que combina dois  
elementos (unus, referente a um, unidade; e versus, a indicar movimento giratório) (VESCHI,  
2019). Por intermédio de unus, o termo assume a feição de totalizar sob uma única forma, uma  
unidade. É neste ponto que ela conflitua com o fato de vivermos sob modos e realidades  
diversas, quando não opostas, dentro dos mesmos grupos etários.  
A infância (e o mesmo se aplica à adolescência) “não é uma característica natural nem  
universal dos grupos humanos, mas aparece como um componente estrutural e cultural de  
muitas sociedades”, consoante Ana Cristina Coll Delgado e Fernanda Müller (2005, p. 162).  
Significa dizer que a ideia de infância não é a mesma para diferentes territórios, tempos e  
culturas. Não é um fenômeno vinculado ao corpo, à biologia, ao crescer, exclusivamente, mas  
ao ser e estar, ao viver, ao relacionar. Há uma variedade de infâncias a partir de diferentes  
culturas, não consistindo em um fenômeno único e universal.  
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Partindo de tais fatos, melhor seria falar em infâncias e adolescências, como fenômenos  
permeados por diferentes realidades e características. É a partir disto também que incorporamos  
esse pensar amplo para uma investigação fundamentalmente jurídica. Significa dizer que, além  
do reconhecimento da pluralidade de infâncias pela variedade de suas inserções sociais, de suas  
brincadeiras, modos de ser e estar, reconhecemos essa pluralidade porque há múltiplos fatores  
que incidem sobre elas, enfaticamente de ordem econômica e de acesso a direitos, que  
constituem essas experiências de modo muito divergente quando confrontadas. São, em outras  
palavras, experiências muito diversas sobre respeito e dignidade.  
Trata-se do caso de pensar sobre uma infância que se desenvolve no seio de uma família  
com acesso a recursos econômicos em abundância e de confrontá-la com uma outra infância,  
bastante comum, que não possui sequer moradia com tratamento de esgoto e acesso à água  
potável, além de enfrentar a pobreza monetária, a fome e a exploração do trabalho infantil.  
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Considerar que essas realidades divergentes estão presentes no “mesmo Brasil” torna-se  
imprescindível para examinar como determinadas crianças e adolescentes enfrentam maiores  
obstáculos às condições básicas de existência, de dignidade e de gozo dos seus direitos – ainda  
que desfrutem da mesma condição perante a lei.  
Neste ânimo é que tomamos empréstimo da ideia de “pluriverso”, porque parece  
pertinente referirmo-nos à pluralidade de infâncias e adolescências, para a pluralidade de  
universos, os quais coexistem, como também dualizam-se. Teoricamente tratando desta ideia,  
Marina Di Napoli Pastore (2020) explica que o conceito de pluriverso foi desenvolvido pelo  
antropólogo Massimo Canevacci, quando este aborda as culturas juvenis e defende a  
inexistência de uma visão unitária e global capaz de resumi-las em um código.  
A criança se diferencia do adulto, como também das outras crianças e adolescentes,  
diante dos diversos grupos e classes sociais em que estão inseridos(as). Por isso, também, que  
é equivocado abordar o tema a partir da crença de que a população infantil seja homogênea. Em  
concretude, crianças e adolescentes têm “percursos sociais diferenciados” (PINHEIRO, 2006,  
p. 37) e convivem, sob diferentes proporções, com a efetividade e a violação de seus direitos  
mais básicos.  
Diante desses motivos, ousamos falar não em “universo da infância e da adolescência”,  
mas em pluriverso das infâncias e adolescências, para efeito de narrar, conhecer, analisar e  
expor as diferentes realidades, vivências, obstáculos e dificuldades na efetivação dos direitos  
reconhecidos e consagrados a meninas e meninos no país. Nesse sentido, podemos reler a  
passagem de Zezé para considerar que muitas e diversas são as causas de sofrimento aos  
infantoadolescentes brasileiros, embora não seja possível falar da mesma pluralidade quanto  
àqueles que protegem, cuidam, respeitam e efetivam a qualidade de pessoa humana.  
A violência contra os mais jovens segue sendo um elemento persistente, mesmo sob um  
Estado Democrático de Direito, cujos índices permanecem altos2. Apontamos que os dois  
maiores obstáculos ao saudável e digno desenvolvimento de meninas e meninos no país são,  
pois, a violência e a pobreza multidimensional, essa última no sentido de privação múltipla de  
direitos. Tais impasses ofendem o gradual reconhecimento de direitos humanos a esta  
população, bem como simbolizam afronta a viver uma vida que valha a pena viver (isto é, uma  
vida digna).  
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2 A pretexto, o Fórum Brasileiro de Segurança Pública, em parceria com o Unicef, divulgou em outubro de 2021  
o Panorama da violência letal e sexual contra crianças e adolescentes no Brasil. Os dados, estarrecedores,  
confirmam as graves violações de direitos a que meninas e meninos estão expostos no país.  
Revista Libertas, Juiz de Fora, v. 23, n.1, p. 141-164, jan./jun. 2023. ISSN 1980-8518  
“Eu sou grande, você é pequena”: o direito da criança ao respeito e os fundamentos jurídicos para sua  
concretização no Brasil  
O direito da criança e do adolescente ao respeito a partir da Doutrina da Proteção  
Integral  
A Doutrina da Proteção Integral é de tamanha importância ao Direito da Criança e do  
Adolescente e ao ordenamento jurídico como um todo, vez que é a partir dela que, pela primeira  
vez, crianças e adolescentes titularizaram direitos fundamentais como pessoas humanas que são  
(AMIN, 2014a). Um novo paradigma que permitiu “repensar profundamente o sentido das  
legislações para a infância, transformando-as em instrumentos eficazes de defesa e promoção  
dos direitos humanos específicos de todas as crianças e todos os adolescentes”, conforme nos  
ensina Emilio García Méndez (1998, p. 32). A nova doutrina rompeu com a velha, a Doutrina  
da Situação Irregular, e passou a fundamentar um novo tratamento a crianças e adolescentes –  
não apenas no Brasil, como também na América Latina em geral (MÉNDEZ, 1998).  
ADoutrina da Proteção Integral representou profunda mudança e divergência à Doutrina  
da Situação Irregular, sua predecessora. Ainda que muitas práticas encontrassem larga  
ocorrência na sociedade, sua consagração sobreveio com o fito de vislumbrar um novo tempo  
de dignidade a meninas e meninos, conformando uma ruptura para novos costumes. Tamanha  
é a conversão, que é possível dizer que, no cenário brasileiro, é apenas com essa Doutrina que  
podemos tratar do respeito como um direito para crianças e adolescentes. Em verdade, apenas  
com ela é que esse público passou a titularizar direitos.  
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O sentido de “doutrina” no campo do Direito da Criança e do Adolescente possui um  
sentido próprio. Veronese (2020, p. 82) explica que, nesta seara, “[...] a expressão ‘doutrinadiz  
respeito, na realidade, a toda uma evolução na normativa internacional e nacional na construção  
e conteúdo dos direitos afetos às crianças e adolescentes”. O sentido dessa doutrina repousa no  
fato de que toda criança e todo adolescente merecem e titularizam direitos da pessoa humana,  
além de “[...] direitos próprios, especiais que, em razão de sua condição específica de pessoas  
em desenvolvimento, estão a necessitar de uma proteção especializada, diferenciada e integral”  
(VERONESE, 2020, p. 118).  
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Os precedentes históricos da Doutrina da Proteção Integral incluem questões nacionais  
e internacionais. O primeiro momento em que a referida doutrina se constituiu como marco  
normativo decorre da Declaração de Genebra sobre os Direitos da Criança, de 1924, a qual  
situou a criança sujeito, reconhecendo as suas necessidades, dentre as quais de cuidado e  
proteção (VERONESE, 2020). Após essa primeira conquista, outras disposições seguiram a  
mesma linha, a exemplo da Declaração Universal dos Direitos Humanos de 1948, ao que se  
somam a Declaração Universal dos Direitos da Criança (1959) e a Convenção sobre os Direitos  
da Criança de 1989 (VERONESE, 2020).  
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“A construção histórica da Doutrina da Proteção Integral revela, pois, a sua longa  
trajetória histórica, até que tenha alcançado o atual modelo protetivo [...]”, a implicar  
“significativas alterações de valores, de concepções, das regras jurídicas” (VERONESE, 2020,  
p. 89). A nível constitucional, a referida doutrina obteve triunfo somente no texto promulgado  
em 1988, como resultado da intensa atuação da sociedade civil, com destaque ao protagonismo  
das próprias crianças e adolescentes, que se articularam para buscar o reconhecimento de  
direitos. Uma prática de defesa inédita capitaneada pelo Movimento Nacional de Meninos e  
Meninas de Rua (PINHEIRO, 2006).  
“Foram múltiplas mãos e diversificadas palavras – práticas e discursos – de adultos,  
crianças e adolescentes que forjaram as práticas de afirmação de direitos, que tinham no  
movimento em defesa dos direitos da criança e do adolescente seu pilar principal” (PINHEIRO,  
2006, p. 180). Não é sem motivo que a Constituição resultante dos trabalhos da Assembleia  
Nacional Constituinte 1987-1988 foi chamada de Constituição Cidadã. Ela “não só” previu  
instrumentos de participação popular e um conjunto de direitos fundamentais irrevogáveis,  
como resultou da intensa participação da própria sociedade, de organizações, movimentos  
sociais e agentes, os quais pressionaram a Assembleia para o reconhecimento e a defesa dos  
direitos, mormente, aqui, de crianças e adolescentes.  
Em pesquisa que considera a realidade brasileira e a de demais países latino-americanos,  
Méndez (1998) elenca traços centrais que identificam as legislações baseadas na Doutrina da  
Proteção Integral. São oito pontos, que incluem: a definição de funções a determinados agentes,  
a desvinculação dos problemas sociais como de caráter apenas individual, a afirmação de  
princípios, de objetivos e a consideração de crianças e adolescentes como sujeitos de direitos.  
Nas palavras do próprio pesquisador, o primeiro traço central é que, “sem ignorar a existência  
de profundas diferenças sociais, as novas leis se propõem a ser instrumento para o conjunto da  
categoria infância e não somente para os que estão em circunstâncias particularmente difíceis”  
(MÉNDEZ, 1998, p. 33). No caso da experiência brasileira, a forma como as leis inicialmente  
distinguiram a criança do adulto ocorreu essencialmente no aspecto penal e, quando de  
diplomas específicos, não se destinavam a todas as crianças ou adolescentes, mas apenas sobre  
aquelas(es) que recaía a designação de “menor”.  
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Com base em um novo paradigma, as legislações mudaram seu foco. Agora, não mais  
selecionavam a quais crianças e adolescentes suas disposições eram aplicáveis, e seus  
mandamentos passaram a se destinar a todo um conjunto de pessoas, cujo critério se tornou, em  
essência, um fator objetivo, etário, cronológico. As discriminações admissíveis passaram a ser  
apenas aquelas consideradas positivas, assim entendidas como as medidas que buscam  
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concretização no Brasil  
equilibrar situações de desigualdade. Tais providências ensejam um tratamento diferenciado  
“[...] a grupos historicamente discriminados com o objetivo de corrigir desvantagens causadas  
pela discriminação negativa – a que causa prejuízos e desvantagens” (ALMEIDA, 2021, p. 34)3.  
Outro traço central diz respeito a órgãos e agentes do sistema de justiça. Com base na  
Doutrina da Proteção Integral, o Poder Judiciário e seus membros já não são semelhança de um  
“bom pai de família”, mas cumpridores do Direito e dos princípios de justiça. Por isso que  
Méndez (1998, p. 33) fala de hierarquização da função judicial, pois lhe é devolvida a missão  
específica de dirimir conflitos de natureza jurídica. Ainda, “nas legislações mais avançadas  
desse tipo, não somente é prevista a presença obrigatória do advogado, mas também se outorga  
ao Ministério Público função importantíssima de controle e contrapeso”. A esses agentes  
incumbe garantir a efetividade e a proteção dos direitos e da dignidade de crianças e  
adolescentes, não lhes competindo, todavia, atuar de forma arbitrária e sem observância das  
regras jurídicas e garantias constitucionais.  
O terceiro elemento central consiste em uma mudança quanto à ideia de situação  
irregular. Já não é mais a criança ou o adolescente que pode ser considerada(o) “irregular”,  
condição que, a depender do caso, pode recair sobre a sociedade ou a pessoa responsável por  
determinada instituição. Ao mesmo tempo, retira-se o caráter individual dos problemas de  
ordem estrutural, para efeito de percebê-los como resultado de ações e omissões públicas, não  
como desajuste, patologia ou delinquência.  
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Neste novo paradigma, assegura-se o princípio da igualdade perante a lei, cuja  
aplicabilidade se mostra bastante interessante quando do processamento dos atos análogos à  
infração penal cometidos por adolescentes. Nesses casos, Méndez (1998) afirma que o binômio  
impunidade-arbitrariedade é substituído por outro, pelo binômio da severidade-justiça. Afirma  
isso, considerando que, sob a égide da velha doutrina, havia um duplo tratamento a partir de  
situações idênticas quanto ao fato, mas diversas em sua autoria. No caso dos conflitos de  
natureza penal – para usar expressão do próprio investigador –, tornava-se comum a declaração  
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A título de exemplo de uma discriminação positiva, podemos mencionar o programa de apadrinhamento de  
crianças e adolescentes, previsto pelo artigo 19-B da Lei nº 8.069/1990, acrescentado pela Lei nº 13.509/2017. O  
objetivo do apadrinhamento é estabelecer e proporcionar vínculos externos aos de instituições de acolhimento em  
que crianças e adolescentes se encontrem, com o intuito de efetivar direitos fundamentais já relativizados, a  
exemplo do direito à convivência familiar e comunitária, bem como colaborar com o desenvolvimento  
infantoadolescente. Embora crianças e adolescentes de todas as idades possam vir a se encontrar em acolhimento  
institucional ou familiar, o próprio texto do Estatuto prevê uma prioridade no apadrinhamento com relação àquelas  
que se encontrem em remota possibilidade de reinserção familiar ou de colocação em família adotiva (artigo 19-  
B, § 4º). Estão nesta condição, frequentemente, aquelas e aqueles que já são adolescentes, com deficiência ou que  
possuam doenças (BRASIL, 2020). Neste sentir, o próprio dispositivo prevê um tratamento diferenciado a tais  
crianças e adolescentes, pelo fato de elegê-los como prioritários no âmbito do programa, com vistas a corrigir ou  
amenizar as dificuldades que já enfrentam, quando comparados com os demais.  
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jurídica como irrelevante dos “delitos graves cometidos por adolescentes pertencentes às  
classes média e alta” (MÉNDEZ, 1998, p. 26). Em contrapartida, a infância pobre estava  
constantemente sob risco de internações arbitrárias, cujos motivos se baseavam na mera falta  
de recursos materiais. O respeito, se eventualmente observado, possuía um recorte econômico  
bastante delimitado.  
À luz da Doutrina da Proteção Integral (e como decorrência do próprio princípio da  
igualdade), tais casos de impunidade e de arbitrariedade, respectivamente, são comutados pelo  
tratamento jurídico isonômico, dando ao primeiro a severidade de que necessita e ao segundo a  
justiça de que tanto anseia. Semelhante a este traço, soma-se o de que se eliminam as  
internações não vinculadas a fatos que correspondam a atos infracionais (MÉNDEZ, 1998).  
Poderíamos dizer que todas as novas medidas decorrem de um elemento-chave,  
traduzido pela consideração de que a infância e a adolescência são fases da vida humana dignas  
de todo o respeito. Assim, crianças e adolescentes são pessoas humanas inteiras, são plenos  
sujeitos de direitos. A Doutrina da Proteção Integral, portanto, faz jus à designação que lhe fora  
atribuída por Costa (1990), no sentido de que promoveu uma verdadeira “revolução  
copernicana” no tratamento da criança e do adolescente.  
Embora não enunciada de forma literal, a recepção dessa doutrina ocorreu através do  
artigo 227 da Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. A regulamentação  
ocorreu dois anos mais tarde, através do Estatuto da Criança e do Adolescente (Lei Federal de  
nº 8.069, de 13 de julho de 1990), neste que é um exemplo de aplicação rigorosa do novo  
paradigma (MÉNDEZ, 1998). No primeiro artigo do Estatuto, o documento antecipa que a  
referida lei dispõe sobre a proteção integral à criança e ao adolescente. Exemplifica seus direitos  
fundamentais, com base na referida doutrina, na condição da pessoa humana e com foco no seu  
pleno desenvolvimento.  
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A proteção integral também é anunciada quando dos princípios que regem a aplicação  
das medidas de proteção (artigo 100, inciso II), sob “proteção integral e prioritária”, que  
significa a interpretação e a aplicação de toda e qualquer norma contida no Estatuto orientada  
à proteção em todos os aspectos do desenvolvimento e de forma prioritária dos direitos de que  
crianças e adolescentes são titulares (BRASIL, 1990). Outros princípios inclusos no diploma  
consistem em: da condição da criança e do adolescente como sujeitos de direitos; da  
responsabilidade primária e solidária do poder público; do interesse superior da criança e do  
adolescente; da privacidade; da intervenção precoce; da intervenção mínima; da  
proporcionalidade e atualidade; da responsabilidade parental; da prevalência da família; da  
obrigatoriedade da informação; e da oitiva obrigatória do infantoadolescente e de sua  
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“Eu sou grande, você é pequena”: o direito da criança ao respeito e os fundamentos jurídicos para sua  
concretização no Brasil  
participação (BRASIL, 1990).  
Nas palavras de José Ricardo Cunha (2009, s.p.), a Doutrina da Proteção Integral  
consistiu em uma base filosófica ao Estatuto da Criança e do Adolescente, porque ela permitiu  
o abandono de uma visão preconceituosa, menorista, seletiva e discriminatória. Ademais, com  
ela, a consideração sobre este público deixa de ser pelo “prisma da incapacidade” a fim de que  
fossem (e que sejam) vistos como “sujeitos de direito, ou seja, capazes para exercerem seus  
direitos fundamentais e os deveres que deles derivam, respeitada, naturalmente, sua situação de  
pessoa em condição peculiar de desenvolvimento”. Não se trata, pois, do “grande” versus o  
“pequeno”, mas do “pequeno” digno de igual respeito ao “grande”, que, por assim ser,  
juridicamente não lhe é superior de qualquer forma e deve contribuir com o desenvolvimento  
peculiar daquele.  
Das quatro representações sociais sobre a criança no pensamento social brasileiro  
identificadas por Pinheiro (2006), é somente na última delas que se pode dizer que a totalidade  
de crianças e adolescentes é considerada como tal. Isso se explica pelo fato de que nas três  
primeiras representações – as quais percorrem o século XVIII e alcançam até meados dos anos  
1970 – há uma seletividade sobre elas, o que reflete em termos de tratamento, de instituições,  
de valores e de normas. Assim, a universalização de direitos é própria deste novo tempo, desta  
nova Doutrina – independentemente da condição social, econômica, de origem, crença, situação  
familiar, idade, sexo, raça, etnia ou cor, deficiência, condição pessoal de desenvolvimento e  
aprendizagem, local de moradia ou qualquer outra condição.  
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Pinheiro (2006) argumenta, inclusive, que a universalização dos direitos é um princípio  
central para a Doutrina da Proteção Integral, o que possibilita sustentar indiscriminadamente a  
representação de crianças e adolescentes como sujeitos de direitos. A novidade da Constituição  
de 1988 e desta doutrina, argumenta a autora, é que elas diferem da tradição brasileira, na qual  
não se reservava um lugar social para a maioria das crianças e dos adolescentes (ou se destinava  
um “não-lugar”). Essa maioria era formada, expressamente, por crianças sem infância, face à  
ausência de direitos, frequentemente composta por aquelas atingidas pela pobreza econômica.  
A visibilidade e a invisibilidade compunham as duas faces de uma mesma moeda, tanto  
uma quanto a outra voltadas, até o reconhecimento da criança e do adolescente como sujeitos  
de direitos, para uma ação objetificante. A visibilidade para efeito de controle, de disciplina e  
de repressão não se dirigia a todas as crianças e adolescentes, mas, especialmente, àquelas em  
condição de pobreza (PINHEIRO, 2006). O surgimento desta concepção da criança e do  
adolescente como sujeitos de direitos é a mais recente. Nela, dois princípios são fundamentais:  
“a igualdade perante a lei e o respeito à diferença” (PINHEIRO, 2006, p. 81).  
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Trata-se de uma perspectiva de inclusão, que se opõe à segmentação verificada nas três  
representações anteriores, consoante Pinheiro (2006). Já o respeito à diferença propõe  
considerar a criança e o adolescente como pessoas em condição peculiar de desenvolvimento.  
Uma diferença que não legitima a desigualdade, mas, por outra via, estimula a compreensão de  
que há necessidades próprias do período de desenvolvimento, a exigir um cuidado diferenciado.  
Neste caso, além dos direitos básicos da pessoa humana, esse público titulariza os especiais,  
que correspondem ao seu peculiar estágio. “A criança e o adolescente são, nesta perspectiva, o  
outro diferente, mas não o outro inferior” (PINHEIRO, 2006, p. 82).  
Somados a esses princípios, há características bastante próprias da Doutrina da Proteção  
Integral. Um dos elementos de reconhecimento da criança e do adolescente como sujeitos de  
direitos está na comunidade – este grupo de pessoas mais próximas da criança, como a  
vizinhança do bairro – e as práticas sociais que se dão dentro dela. A convivência comunitária  
é, inclusive, um direito expressamente assegurado no texto constitucional e no texto estatutário.  
A outra característica – e essa consideramos elementar pressuposto ao direito ao respeito – é a  
oitiva, ou seja, a participação e a tomada de decisão por parte das próprias crianças e  
adolescentes. Ela se mostra presente no procedimento que apura a ocorrência e a autoria de ato  
infracional, na tomada de decisão sobre o instituto da guarda e da adoção, bem como nas  
decisões que lhe dizem respeito, por exemplo.  
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Nos termos do Estatuto da Criança e do Adolescente, há situações nas quais a oitiva da  
criança e do adolescente é importante e necessária. No caso da colocação em família substituta,  
a criança e o adolescente devem ser previamente ouvidos por equipe interprofissional, sempre  
que possível, medida a ser feita atenta ao estágio de desenvolvimento e ao grau de compreensão.  
A opinião da criança e do adolescente deve ser devidamente considerada (artigo 28, § 1º)  
(BRASIL, 1990).  
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No caso da adoção, por exemplo, o Estatuto determina que, quanto ao adotando  
adolescente, será necessário o seu consentimento para tanto (artigo 45, § 2º) (BRASIL, 1990).  
A respeito, interessante a constatação de Joana Ribeiro e Josiane Rose Petry Veronese (2021, p.  
90), porque recordam de que falar e ser ouvido(a) não se inserem apenas nas permissões  
expressas do ordenamento, mas decorrem de princípio vinculado à Doutrina da Proteção  
Integral. Nesse sentir, crianças e adolescentes têm “também o direito de querer e solicitar ser  
ouvida pelo juiz, a qualquer tempo, para expressar suas angústias, desejos e necessidades”.  
Corporifica-se, assim, a própria noção de cidadania, que não se desvincula da ideia de  
participação, escuta e respeito, todos próprios da concepção de crianças e adolescentes como  
sujeitos de direitos.  
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concretização no Brasil  
[...] a representação social da criança e do adolescente como sujeitos de  
direitos parece constituir uma ruptura, no que concerne às visões, às  
concepções que lhe antecederam, por ser a primeira representação a  
reconhecer todas as crianças e adolescentes como portadores de direitos, e,  
portanto, a reconhecer a sua condição de cidadania. (PINHEIRO, 2006, p. 85,  
grifo nosso).  
As diferentes infâncias e adolescências são contempladas com os mesmos princípios,  
regras, normas e tratamentos, e não somente aquelas pertencentes às classes mais pauperizadas.  
Assim sendo, o pluriverso das infâncias e adolescências recebe a mesma titularidade, a de  
sujeito de direitos, detentor de proteção integral e da qualidade de prioridade absoluta.  
Tendo em vista um passado recente marcado por práticas bastante diversas das que agora  
se almejavam, o plano dos fatos encontraria diversos desafios para se harmonizar com a referida  
doutrina, mas não apenas isso. O perfil da sociedade brasileira contemporânea estaria marcado  
por um abismo entre as populações ricas e pobres (PINHEIRO, 2006). O agravamento dessa  
situação, que já se apresentava nos anos 1970-1980, ainda faz parte da sociedade brasileira e se  
constitui em obstáculo colossal para a operabilidade integral de determinados diplomas  
normativos.  
Aaprovação, principalmente, dos artigos 227 e 228 do texto constitucional recompensou  
os esforços que a sociedade empreendeu, com o fito de a Constituição incluir os direitos  
fundamentais de crianças e adolescentes, reconhecendo-lhes, por consequência, como plenos  
titulares desses direitos. Amin (2014b) nomina tal impacto, a ser observado do texto de 1988  
como um todo, de “revolução constitucional”, tamanha a mudança paradigmática. De acordo  
com a mesma autora, essa sensibilidade às demandas sociais, que consagrou crianças e  
adolescentes como pessoas humanas, pôs o Brasil no seleto rol das nações mais avançadas na  
defesa dos direitos infantoadolescentes.  
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Aprovado em treze de julho de 1990, o Estatuto da Criança e do Adolescente passou a  
dar concretude tanto às disposições constitucionais quanto à própria Doutrina da Proteção  
Integral, dando envergadura à “revolução copernicana” (COSTA, 1990). Dividido em duas  
grandes partes, em um primeiro momento, o Estatuto contém uma declaração mais detalhada  
sobre os direitos fundamentais anunciados na Constituição Federal de 1988, no seu artigo 227.  
Já no segundo momento, em sua parte especial, são previstos os mecanismos necessários para  
a garantia dos direitos inscritos anteriormente.  
Parafraseando Luis Alberto Warat (2011) – pois nos parece indispensável –, direitos sem  
garantias são meras promessas de amor. Adaptando a esta análise, o detalhamento de direitos  
fundamentais a crianças e adolescentes nos mais de oitenta artigos que compõem a parte geral  
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do Estatuto não mais seriam do que palavras e meras promessas de amor se não contassem com  
instrumentos, órgãos e agentes capazes de torná-los concretos e de provocar a responsabilidade  
dos que os violam. A garantia, neste caso, desponta da integração sistemática das duas partes,  
para conformar uma política de atendimento à criança e ao adolescente, que se baseia tanto no  
repertório de direitos quanto nos mecanismos (CUNHA, 2009).  
A previsão de direitos especiais à criança e ao adolescente não se contentou, é dizer, em  
aguardar passivamente sua efetivação por parte do Estado ou de outros agentes. Dizemos isso  
considerando que o Estatuto da Criança e do Adolescente permite a reivindicação dos direitos  
quando não atendidos ou violados, seja pelo poder público seja por pessoas individualmente  
consideradas. A respeito, Veronese (2020) destaca que aquele possibilita pleitear em juízo, com  
foco na proteção dos interesses infantoadolescentes, a partir de diversos tipos de demanda. Em  
vista disso, é interessante notar como o Poder Judiciário foi conformado nessa mudança de  
paradigmas a partir da transição entre a Doutrina da Situação Irregular para a Doutrina da  
Proteção Integral.  
De uma perspectiva em que a figura do juiz era centralizadora e com larga margem de  
atuação, passamos a um novo modelo, o democrático, no qual a centralidade se dilui e promove  
a participação em rede. Nesta nova concepção, o protagonismo do Poder Judiciário se restringe  
à sua função típica: a de julgar (AMIN, 2014b). Aí reside, pois, um ponto de bastante diferença  
com a doutrina pretérita. Um “[...] processo de transformação do próprio Poder Judiciário, o  
qual passa a ser um instrumento de expansão da cidadania” (VERONESE, 2020, p. 120). Cuida-  
se do princípio da descentralização político-administrativa, a partir do qual o município e a  
comunidade são competentes – e possuidores de um dever legal – na proteção e na efetivação  
dos direitos da criança e do adolescente.  
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O Estatuto reúne, a bem da verdade, um conjunto de temas afetos às infâncias e  
adolescências, motivo pelo qual é considerado um microssistema, composto de regras e  
princípios. Ele reúne normas de diferentes ramos do Direito, de caráter material e processual,  
com extenso campo de abrangência: disciplina princípios de interpretação, política legislativa,  
tipos penais, infrações administrativas, medidas judiciais e extrajudiciais, dentre outros. Assim,  
é possível dizer que o termo estatuto “foi de todo próprio, porque traduz o conjunto de direitos  
fundamentais indispensáveis à formação integral de crianças e adolescentes, mas longe está de  
ser apenas uma lei que se limita a enunciar regras de direito material”. Isso se deve ao fato de  
que o Estatuto “trata-se de um verdadeiro microssistema que cuida de todo o arcabouço  
necessário para efetivar o ditame constitucional de ampla tutela do público infantojuvenil”  
(AMIN, 2014b, p. 50, grifo nosso).  
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O Estatuto também pode ser considerado uma espécie de “regimento interno” da  
Doutrina da Proteção Integral, motivo pelo qual encontra resistência por parte daqueles que  
ainda estão orientados e que agem de acordo com o paradigma da Doutrina da Situação Irregular  
(CUNHA, 2009). Embora crianças e adolescentes não mais sejam considerados objetos de  
proteção assistencial, de controle e repressão, e sim titulares de direitos subjetivos, há desafios  
para a implementação do sistema de garantias, o que, por consequência, compromete a  
efetivação dos ditos direitos. Por isso que Amin (2014b) adverte para a indispensabilidade de  
romper com o passado, e não apenas no aspecto formal, como já ocorreu com a Constituição e  
o Estatuto, mas no plano prático.  
Neste sentido, Cunha (2009, s.p.) externaliza uma angústia não apenas sua, a partir de  
corriqueiras insurgências que, ao vislumbrarem o problema da inefetividade, se apoiam na  
norma como culpada por esta expectativa, e não na própria sociedade e no Estado, que são, em  
grande medida, responsáveis pelo não cumprimento dela: “Muito se comenta sobre o cabimento  
do Estatuto na realidade brasileira, tão marcada por injustiças e contradições. Alguns dizem ser  
uma lei boa, mas para países como a Suíça, por exemplo”. Destacamos nosso posicionamento  
a respeito, pois entendemos que o Estatuto é uma norma, uma realidade não acabada, dinâmica  
como tal e que, sozinha, não promove mudanças radicais na sociedade. Contudo, nem por isso  
é menos importante, principalmente quando dela decorrem mudanças paradigmáticas e quando  
ela mesma é fruto de esforços do próprio grupo que com ela se beneficia.  
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Logo, o fato de o Estatuto da Criança e do Adolescente ter como base a proteção integral  
enfatiza o modo que, se não traduz a realidade, é o que dela se espera. O problema, portanto,  
não se restringe à lei em si, mas na distância que se implementa entre ela e seus destinatários.  
Vale pontuar que o Estatuto goza de respeito e entusiasmo diante de toda a comunidade  
internacional, como Cunha (2009, s.p.) destaca, “[...] sendo, inclusive, apontado como a norma  
interna que mais se alinha com a Convenção Internacional dos Direitos da Criança e do  
Adolescente (ONU, 1989)”. E arremata: “Além disso, o simplismo de tal opinião levaria a crer  
que para uma realidade ruim deveríamos ter, também, leis ruins”.  
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O núcleo da Doutrina da Proteção Integral se assenta na ideia, convertida em princípio,  
de que crianças e adolescentes são sujeitos de direitos. Nominar esse processo como princípio  
pressupõe reconhecer o caráter lógico e basilar que o preceito assume neste campo do  
conhecimento. Em definição de Amin (2014a, p. 52), podemos entender a Doutrina da Proteção  
Integral enquanto “formada por um conjunto de enunciados lógicos, que exprimem um valor  
ético maior, organizada por meio de normas interdependentes que reconhecem criança e  
adolescente como sujeitos de direito”. Este valor ético maior e a sistemática da doutrina  
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integram de modo perfeito com o princípio fundamental da dignidade da pessoa humana  
(AMIN, 2014a). A consagração desses princípios resultou na estrutura do Estatuto, com um  
destaque especial ao seguinte artigo, que reforça os direitos fundamentais da criança e do  
adolescente:  
Art. 3º A criança e o adolescente gozam de todos os direitos fundamentais  
inerentes à pessoa humana, sem prejuízo da proteção integral de que trata esta  
Lei, assegurando-se-lhes, por lei ou por outros meios, todas as oportunidades  
e facilidades, a fim de lhes facultar o desenvolvimento físico, mental, moral,  
espiritual e social, em condições de liberdade e de dignidade.  
Parágrafo único. Os direitos enunciados nesta Lei aplicam-se a todas as  
crianças e adolescentes, sem discriminação de nascimento, situação familiar,  
idade, sexo, raça, etnia ou cor, religião ou crença, deficiência, condição  
pessoal de desenvolvimento e aprendizagem, condição econômica, ambiente  
social, região e local de moradia ou outra condição que diferencie as pessoas,  
as famílias ou a comunidade em que vivem. (Incluído pela Lei nº 13.257, de  
2016). (BRASIL, 1990, s.p.).  
Como afirmado anteriormente, o Estatuto diferencia criança de adolescente, de modo  
diverso às normativa internacionais, que optam apenas pelo uso do termo criança. De uma  
forma ou de outra, ao diferenciar este grupo como tal, principalmente no seu artigo 2º, o Estatuto  
se referiu ao “estado” de criança e de adolescente, “quis caracterizar aqueles seres humanos em  
peculiares condições de desenvolvimento, devendo ser, em todas as hipóteses, ontologicamente  
respeitados” (VERONESE, 2017, p. 5). Esse respeito é assegurado pelos próprios princípios do  
paradigma da proteção integral.  
158  
Nesta ordem jurídica configurada pela Doutrina da Proteção Integral e,  
consequentemente, pela representação da criança e do adolescente como sujeitos de direitos, os  
integrantes dessas faixas etárias titularizam direitos. Pela ordem jurídica pós-1988, crianças e  
adolescentes são destinatários de todos os direitos inerentes à pessoa humana, cuja ressalva,  
apenas, é no que se refere ao seu estágio de desenvolvimento. Assim, o direito à igualdade, à  
segurança, à manifestação do pensamento (por exemplo), inclusos no artigo 5º da Constituição  
de 1988, também lhe são próprios, cuja aplicação no caso concreto deve levar em conta o  
respeito ao período peculiar de pessoa em múltiplo desenvolvimento.  
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A concretização dos direitos fundamentais ganhou nova significação, tendo em vista a  
particular fase em que se encontram infantoadolescentes. Pensando nisso é que Diniz, Camurça  
e Melo Neto (2018, p. 356) afirmam a necessidade de interpretação: “Interpretar os direitos  
fundamentais de crianças e adolescentes, portanto, é um exercício que depende da conjugação  
destes dois princípios fundamentais, o princípio da Condição Peculiar de Desenvolvimento e o  
princípio do Sujeito de Direitos”. A aplicabilidade de regras e princípios com vistas à condição  
peculiar do estágio de desenvolvimento da criança e do adolescente contém em si a ideia do  
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“Eu sou grande, você é pequena”: o direito da criança ao respeito e os fundamentos jurídicos para sua  
concretização no Brasil  
respeito, o que se mostra tangível em exemplos, como é o caso do direito à sexualidade. Se  
interpretado sob o ponto de vista adulto, “a prática consentida da relação sexual é, claramente,  
uma das formas de exercício deste direito”. O mesmo, contudo, não se pode dizer a crianças e  
adolescentes.  
Especialmente com relação à criança, não há que falar no exercício deste direito nas  
mesmas condições da pessoa adulta, sob pena, inclusive, de se praticar contra ela inúmeras  
formas de violência. Ao mesmo tempo, isso permitiria reduzi-la à condição de “mini adulto”,  
por se ignorar, justamente, a sua condição, exigindo dela um comportamento em igualdade de  
condições com adultos. Assim, em determinadas circunstâncias, há que se refletir sobre a  
possível concretização de tais direitos por modos distintos entre crianças, adolescentes e  
adultos, dado o peculiar desenvolvimento dos primeiros.  
Com essas observações, portanto, crianças e adolescentes possuem os direitos inerentes  
a toda e qualquer pessoa, somados aos destacados pelo texto constitucional em seu artigo 227,  
caput: direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao lazer, à profissionalização, à cultura,  
à dignidade, ao respeito, à liberdade, à convivência familiar e comunitária e a receber  
tratamento não violento, discriminatório e negligente (BRASIL, 1988). Direitos reiterados pelo  
artigo 4º do Estatuto da Criança e do Adolescente.  
É possível extrair do que discorremos até aqui que o respeito é uma tônica que percorre  
toda a ideia de proteção, especialmente de uma proteção integral, relativa a todos os aspectos  
que envolvem viver bem e de forma digna para crianças e adolescentes. O dispositivo  
constitucional (art. 227) merece mais um destaque, que versa expressamente sobre o direito ao  
respeito. Cuida-se de algo que o texto constitucional trata exclusivamente nesse artigo, isto é,  
de maneira literal somente no contexto da proteção à infância e à adolescência, enfatizando o  
respeito como um direito de que são titulares esses grupos etários. Tal necessidade está  
intimamente relacionada com a condição de pessoa humana, embora não sejam raros os casos  
de sua negação, desconsideração e objetificação.  
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O direito ao respeito é íntimo da dignidade e do próprio direito à vida, que não se  
confunde com a ideia de sobrevivência. Cuida-se do direito a viver uma vida digna, plena,  
respeitada, protegida, sem ameaça constante da violência, da dor, da fome e da morte. A ideia  
de respeito perpassa, como é possível notar, os diferentes dispositivos que conferem e  
reconhecem direitos a crianças e adolescentes, destacando que não apenas o futuro importa,  
como também, enfaticamente, o seu presente. E o seu presente, vale anotar, é urgente.  
Tal relevância se expressa no próprio Estatuto. Não fosse suficiente a ideia de  
prioridade, que já significa a eleição de um tema como de maior urgência, previu-se que a vida  
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Anna Paula Bagetti Zeifert; Schirley Kamile Paplowski  
de meninas e meninos constitui uma prioridade absoluta, tanto no texto do Estatuto da Criança  
e do Adolescente (artigo 4º) quanto na própria Constituição de 1988 (artigo 227). A norma  
estatutária, inclusive, dispôs exemplos de aplicação desta prioridade, que incluem: primazia de  
receber proteção e socorro em quaisquer circunstâncias; precedência de atendimento nos  
serviços públicos ou de relevância pública; preferência na formulação e na execução das  
políticas sociais públicas; destinação privilegiada de recursos públicos nas áreas relacionadas  
com a proteção à infância e à juventude (BRASIL, 1990).  
Uma prioridade que percorre o orçamento público, os serviços básicos, a prestação de  
cuidados emergenciais, a formulação de políticas públicas, isso em todas as unidades e esferas  
da Federação. Os termos primazia, precedência, preferência e privilégio, se não fosse expressa  
a intenção de uma inquestionável prioridade, fariam as vezes da ideia de absoluta prioridade, a  
imprimir um conjunto de medidas para assegurá-la. Os exemplos antes mencionados não  
possuem o intuito de exaustivamente dispor sobre as situações em que se deverá assegurar  
prioridade para crianças e adolescentes. Trata-se de rol exemplificativo, que pode ser  
sintetizado na seguinte ideia: “[...] a criança e o adolescente deverão estar em primeiro lugar na  
escala de preocupação dos governantes” (VERONESE, 2017, p. 7).  
O modelo atual, inspirado e elaborado a partir da Doutrina da Proteção Integral,  
compromete todas as pessoas. É importante termos em mente que a responsabilidade sobre a  
dignidade, a proteção e a efetivação dos direitos de crianças e adolescentes não pode ficar a  
cargo, somente, da ação social, tampouco como obrigação exclusiva ou prioritária do poder  
público. Por isso que falamos em socialização da responsabilidade, o que pode ser lido como  
dever coletivo de respeito pela vida e pela dignidade de crianças e adolescentes. De modo  
expresso, o texto constitucional e o Estatuto da Criança e do Adolescente destacam que é dever  
também da sociedade e da comunidade assegurar a efetivação dos direitos de crianças e  
adolescentes, bem como colocá-los a salvo de situações que ameacem ou que violem tais  
direitos. A regulamentação da Doutrina da Proteção Integral previu instrumentos de operação  
desta socialização, a exemplo da criação de um órgão não jurisdicional (o Conselho Tutelar) e  
dos Conselhos de Direitos da Criança e do Adolescente, consagrando-se juridicamente a  
articulação de esforços do Estado e da sociedade civil (MÉNDEZ, 1998).  
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Nisso, recordamo-nos de um oportuno provérbio africano. Segundo ele, “é preciso de  
uma aldeia inteira para educar uma criança”. Neste momento, pedimos licença para relê-lo  
enquanto processos de criar e de proteger. É preciso, portanto, de uma “aldeia inteira” para criar  
uma criança, e nos parece que o Estatuto da Criança e do Adolescente, com base na Doutrina  
da Proteção Integral, consente e acolhe este mesmo provérbio com grande afinco. Um sistema  
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“Eu sou grande, você é pequena”: o direito da criança ao respeito e os fundamentos jurídicos para sua  
concretização no Brasil  
de garantia de direitos é conformado para dar efetividade à condição de detentores de direitos  
subjetivos, no qual a gestão conjunta entre poder público e a sociedade é a tônica. Neste novo  
modelo, democrático e participativo, família, comunidade, sociedade e Estado são cogestores.  
A atuação não é seletiva às infâncias e adolescências pobres, mas deve ser focada à efetivação  
do respeito e de todas as crianças e adolescentes. Um sistema para todas as infâncias, sem  
discriminação de qualquer ordem.  
Considerações finais  
O plano da realidade e o da ficção contêm diversos exemplos das adversidades para a  
vida plena e o desenvolvimento integral de meninas e meninos, especialmente pensando sobre  
a realidade brasileira. Na condição de pesquisadoras, a inquietude pela lente jurídica nos  
convoca a delinear mudanças necessárias nesse contexto e o aparato de fundamentação  
necessário, tudo com vistas à efetivação prática do que se convencionou nominar como direitos  
e garantias fundamentais de que crianças e adolescentes são titulares.  
A presente pesquisa foi movida por duas espécies de “molas”, na forma dos seguintes  
questionamentos: o que compreende o direito ao respeito quando falamos de crianças e  
adolescentes? Quais são os elementos jurídicos que subsidiam esta análise? Percorrido o  
percurso metodológico da pesquisa (método hipotético-dedutivo) e alcançando o momento final  
deste breve estudo, mostra-se imperioso reconhecer que o direito ao respeito se manifesta de  
diversas formas, cuja perceptibilidade em casos concretos é mais aguda quando da sua ausência,  
isto é, quando da violação do direito ao respeito.  
161  
O referido direito compreende implicações judiciais e extrajudiciais. Em termos  
jurídicos, o direito ao respeito vem galgando espaço fundamentalmente pela ótica de efetividade  
de direitos, de garantias, de viver uma vida plena e com dignidade. Assim mesmo, para muito  
mais do que a sobrevivência (condição na qual tantos e tantas são, ainda, fortemente  
submetidos). O direito ao respeito, assim, está intimamente relacionado à representação social  
da criança e do adolescente como sujeitos de direitos.  
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Uma espécie de visualização desse direito é possível mediante mecanismos de cidadania  
(como a manifestação e a oitiva), somadas a outras que desejamos aqui destacar, quais sejam:  
a igualdade perante a lei, que permite a universalização de direitos; a atenção à condição  
peculiar de pessoa em desenvolvimento, a fim de que as diferenças sejam respeitadas; a não  
discriminação negativa; a constatação de que o respeito a todos perpassa pela dignidade humana  
e pela igualdade; a imperatividade do respeito por todos e todas em benefício de crianças e  
adolescentes, face à condição de prioridade absoluta.  
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Anna Paula Bagetti Zeifert; Schirley Kamile Paplowski  
Os pressupostos técnicos para se falar do respeito como um direito desse público  
emergem com o advento da Doutrina da Proteção Integral, isto é, após 1988 no cenário nacional,  
cujo aparato jurídico provém da Constituição da República Federativa de 1988 e do Estatuto da  
Criança e do Adolescente (Lei Federal nº 8.069/1990). Após esses dois grandes marcos  
legislativos no país, outros foram aprovados e vêm sendo discutidos, nos quais, em certa  
medida, busca-se proteger, zelar e respeitar pelas vidas infantoadolescentes.  
Assim mesmo, a edificação de um sistema à Doutrina da Proteção Integral foi possível,  
de modo bastante elementar, pelo Estatuto da Criança e do Adolescente, havendo um  
movimento circular entre ambos: assim como o Estatuto possibilitou a regulamentação  
infraconstitucional e as bases de concretização da Doutrina da Proteção Integral, ele foi por ela  
inspirado e fundamentado, de modo que o intuito na aplicação de seus preceitos é, justamente,  
promover a proteção integral para crianças e adolescentes. Uma proteção que pretende ser  
atenta a todas as necessidades e dimensões do desenvolvimento infantoadolescente, pensando  
em seu presente e em seu futuro, respeitando a sua condição humana e também peculiar de  
desenvolvimento. Dito de outro modo, a proteção integral é o fundamento e o fim do Estatuto  
da Criança e do Adolescente, contexto no qual o respeito assume elementar importância e  
pressupõe ver na criança uma soma de papéis que se articulam, se relacionam e se comunicam,  
para efeito de, independentemente do ambiente, das relações, das circunstâncias, ela ser  
visualizada como uma pessoa humana detentora e merecedora de amor, de respeito, de sua visão  
de mundo e de dignidade.  
162  
Em vigor desde 14 de outubro de 1990, o Estatuto da Criança e do Adolescente assume  
a tarefa complexa, mas exitosa, de ser inspirado e de inspirar à plena e integral proteção de  
meninas e meninos. É a partir desta conjuntura que se pode falar em Direito da Criança e do  
Adolescente no Brasil, este ramo que, comparado aos demais, pode ser considerado bastante  
novo. Ele marca um novo tempo, um novo paradigma, cuja tarefa atual reside muito mais na  
sua concretização do que na construção de outras normas. Neste caminho, surgem alguns  
paradoxos, diante da distância que separa as conquistas normativas e a realidade social. Com  
isso, desafia-se a plenitude do respeito à dignidade para todas as crianças e todos os  
adolescentes, cuja realidades, embora por lei tenham tratamento universal, conformam seus  
próprios pluriversos de existência e de sobrevivência.  
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Revista Libertas, Juiz de Fora, v. 23, n.1, p. 141-164, jan./jun. 2023. ISSN 1980-8518  
DOI 10.34019/1980-8518.2023.v23. 40787  
Reflexões sobre o dueto família e gênero na  
política de saúde brasileira  
Reflections on the duet of family and gender in Brazilian healthcare policy  
Edilane Bertelli*  
Keli Regina Dal Prá**  
Michelly Laurita Wiese***  
Resumo: O artigo analisa o dueto família e  
gênero como dimensões constitutivas das  
políticas de proteção social e, no caso  
específico, da estruturação da política de saúde  
no contexto brasileiro contemporâneo, cuja  
família configura-se num agente central, sem,  
no entanto, considerar a “consubstancialidade”  
das relações sociais de classe, étnico-raciais e de  
gênero. A partir de revisão bibliográfica sobre  
cuidado, família e gênero sob a ótica de estudos  
feministas e, de pesquisa qualitativa com  
famílias inseridas em serviços de atenção  
domiciliar, abordam-se aspectos da relação  
família e gênero na atenção básica em saúde,  
seguida da relação família e gênero no  
Programa Melhor em Casa, e conclui-se com  
reflexões sobre o gênero do cuidado e o gênero  
no cuidado, cujas fronteiras, a despeito de não  
Abstract: This article analyzes the duet of  
family and gender as dimensions that are  
constitutive of social protection polices, and  
specifically  
of  
healthcare  
policy  
in  
contemporary Brazil. In this context, the family  
is configured as a central agent, without  
however, considering the “consubstantiality” of  
social relations involving class, ethnicity, race  
and gender. The article is based on a  
bibliographic review about care, family and  
gender from the perspective of feminist studies.  
It uses qualitive data from empiric research to  
address aspects of the relationship between  
family and gender in basic healthcare, followed  
by the relationship between family and gender  
in the Better at Home Program. The article  
concludes with reflections about the gender of  
care and gender. Although these distinctions are  
not fixed and linear, in Western capitalist  
societies they historically tend to be  
circumscribed in the private and domestic  
sphere of the family, which is associated to the  
feminine and commonly separated and opposed  
to the public sphere, which is associated to the  
masculine, reproducing a determined sexual  
division of labor.  
serem fixas  
capitalistas  
e
lineares, nas sociedades  
ocidentais tenderam,  
historicamente, a circunscrevê-las na esfera  
privada e doméstica da família associada ao  
feminino e, comumente, separada e oposta à  
esfera pública associada ao masculino,  
reproduzindo determinada divisão sexual do  
trabalho.  
*
Assistente Social. Docente do Departamento de Serviço Social da Universidade Federal de Santa Catarina  
(UFSC). Doutora em Serviço Social pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC/SP). Integrante do  
Núcleo de Pesquisa Interdisciplinar Sociedade, Família e Política Social (NISFAPS) e da Rede de Pesquisa em  
Família e Política Social (REFAPS). ORCID: https://orcid.org/0000-0002-7570-0613  
**  
Assistente Social. Docente do Departamento de Serviço Social da Universidade Federal de Santa Catarina  
(UFSC). Doutora em Serviço Social pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUC/RS).  
Integrante do Núcleo de Pesquisa Interdisciplinar Sociedade, Família e Política Social (NISFAPS) e da Rede de  
Pesquisa em Família e Política Social (REFAPS). ORCID: https://orcid.org/0000-0002-1470-7811  
*** Assistente Social. Docente do Departamento de Serviço Social da Universidade Federal de Santa Catarina  
(UFSC). Doutora em Serviço Social pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC/SP). Integrante do  
Núcleo de Pesquisa Interdisciplinar Sociedade, Família e Política Social (NISFAPS) e da Rede de Pesquisa em  
Família e Política Social (REFAPS). ORCID: https://orcid.org/0000-0003-1392-0650  
Revista Libertas, Juiz de Fora, v. 23, n.1, p. 165-180, jan./jun. 2023. ISSN 1980-8518  
Edilane Bertelli; Keli Regina Dal Prá; Michelly Laurita Wiese  
Palavras-chaves: Família, Gênero, Cuidado,  
Política de Saúde.  
Keywords: Family, Care, Gender, Healthcare  
Policy, Collective Health.  
Recebido em: 11/04/2023  
Aprovado em: 22/05/2023  
Introdução  
A responsabilidade atribuída às famílias como agente fundamental no provimento de  
cuidados e bem-estar aos seus integrantes, embora não seja recente na sociedade brasileira,  
ganhou visibilidade desde a década de 1990. Com o processo de regulamentação de direitos  
sociais garantidos constitucionalmente, o sistema de proteção delineado no âmbito da  
seguridade social indicava a família como agente central à organização, em particular, das  
políticas de saúde e de assistência social. Instituiu-se, jurídica e administrativamente, a família  
como “parceira” na estruturação de programas e serviços sociais, para além da posição de  
usuária, beneficiária ou assistida.  
Nesse “enredo” inúmeras “tramas” são “tecidas” e “cortadas” pelas relações sociais de  
classe, de raça e de gênero, pelo quantum de participação compete à família e às mulheres, ao  
mercado e ao Estado no âmbito da proteção social, quando relacionada aos direitos sociais de  
cidadania no capitalismo hodierno – cujo pensamento neoliberal e suas diretrizes político-  
econômicas tem orientado e determinado também a estruturação de programas, serviços e  
benefícios das políticas sociais.  
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Apesar dos avanços na política de saúde brasileira com a criação e implantação do  
Sistema Único de Saúde (SUS) a partir de 1990 – donde se reformou o sistema e os serviços de  
saúde sob os princípios e diretrizes da universalidade, integralidade, equidade, descentralização  
e participação (PAIM, 2006), as medidas de cortes no financiamento público às políticas sociais  
tem se constituído numa das estratégias para reduzir a responsabilidade social do Estado,  
implicando a configuração de políticas familistas e a negação do direito básico à saúde para a  
população mais pobre economicamente (MIOTO, 2012; MIOTO et al, 2015). Não por acaso,  
portanto, a Emenda Constitucional n. 95/2016, que congelou por vinte anos o investimento  
público federal do SUS.  
Vários autores apontam a tendência contínua e crescente de responsabilização das  
famílias, ou seja, de privatização do cuidado em saúde à esfera doméstica familiar, relacionada  
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Reflexões sobre o dueto família e gênero na política de saúde brasileira  
à política neoliberal de enxugamento do Estado no âmbito da proteção social, que intensifica  
tanto a mercantilização dos serviços de saúde e a precarização das condições de trabalho, quanto  
a fragilização da concepção social do processo saúde-doença e a centralidade da família na  
transferência de responsabilidades. Ademais, segundo Draibe (2007, p. 46), “família e gênero  
se assentam em base conceitual comum, com relação aos sistemas de políticas sociais: a esfera  
doméstica da reprodução social e a divisão sexual do trabalho que a fundamenta”.  
Como se sabe, a responsabilidade pelo cuidado envolve atividades desenvolvidas  
majoritariamente por mulheres, tanto no interior das famílias quanto nas instituições públicas  
ou privadas, haja vista que predomina socialmente a ideia de que as mulheres são dotadas “por  
natureza” de habilidades requeridas para o cuidado, as quais “naturalmente” são desde cedo  
desenvolvidas no espaço privado doméstico. Assim, em que pese a ampliação da proteção  
social, a organização social e política delineada, contrariamente à igualdade de gênero  
defendida de longa data pelos movimentos feministas, ainda são reproduzidas múltiplas  
desigualdades de gênero na família e na sociedade, bem como pelo Estado, conforme se observa  
na política de saúde, tanto na atenção básica quanto na atenção especializada, lócus dessas  
reflexões.  
Objetiva-se, nesse contexto, refletir teoricamente sobre os aspectos da relação família e  
gênero no campo da política de saúde brasileira diante de ações governamentais, que, cada vez  
mais, reposicionam as famílias em relação aos cuidados em saúde na esfera doméstica da  
reprodução social, marcada pela divisão sexual do trabalho. A partir da matriz teórica  
materialista histórica que analisa os fenômenos a partir das categorias de contradição,  
historicidade e totalidade, trata-se de considerar, portanto, que os sistemas de proteção e as  
famílias são constituídos e construídos inclusive pela relação de gênero.  
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Importa pensar a que família se refere a política, os serviços e programas de saúde, como  
se organiza a distribuição de responsabilidade dos cuidados em saúde entre o público (Estado)  
e privado (família) erigida sobre os programas da saúde da família e da atenção domiciliar,  
como gênero configura as famílias e a política social de saúde. Mais ainda, conforme a crítica  
feminista, trata-se de considerar a “consubstancialidade” das relações sociais, raciais e de  
gênero (KERGOAT, 2016).  
Neste artigo, abordam-se aspectos da relação família e gênero na atenção básica em  
saúde, seguida da relação família e gênero no Programa Melhor em Casa, e conclui-se com  
reflexões sobre o gênero do cuidado e o gênero no cuidado, cujas fronteiras, a despeito de não  
serem fixas e lineares, nas sociedades capitalistas ocidentais tenderam, historicamente, a  
circunscreve-las na esfera privada e doméstica da família associada ao feminino e, comumente,  
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em oposição a esfera pública associada ao masculino.  
Porta de entrada: família e gênero na atenção básica em saúde  
Quando se trata da atenção básica na política de saúde brasileira, o Programa de Saúde  
da Família (PSF) implantado em 1994, inicialmente para o atendimento em áreas de maior risco  
social, adquiriu importância na agenda governamental como forma de expansão da cobertura  
dos serviços e de mudanças no modelo vigente – dentre as quais, a municipalização das ações  
básicas de atenção em saúde e o deslocamento da atenção centrada no indivíduo para a família.  
Transformado em Estratégia de Saúde da Família (ESF) com a Política Nacional de Atenção  
Básica (PNAB), aprovada em 2006, reestruturou os serviços de atenção básica no SUS dos  
municípios brasileiros.  
Afamília adquirira centralidade, entretanto, pertinente se perguntar: sob que concepção?  
Quem é esta família nesse programa, depois estratégia, da atenção básica em saúde? Como as  
relações de gênero constituem a organização, as concepções, as abordagens das equipes  
multiprofissionais desse serviço focalizado na família?  
Nos documentos sobre atenção básica do Ministério da Saúde (MS), identifica-se o  
reconhecimento da família como objeto de atenção, participante do cuidado à saúde e contexto  
do cuidado, como alvo da vigilância à saúde e do planejamento da assistência, e, ao mesmo  
tempo, de que a maior proximidade com a família torna o atendimento profissional mais  
humano, bem como a necessidade de conhecer os integrantes, a situação das famílias e suas  
demandas. Porém, não são trazidas à tona a concepção de família que norteia a política de saúde  
e, tampouco, orientações sobre a abordagem com as famílias.  
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Observa-se, para além de indefinições em relação à família nos serviços de atenção  
básica de saúde, a naturalização e idealização de família, subscrita na ESF, as quais também  
implicam a reprodução da divisão social e sexual em relação ao cuidado em saúde, tanto na  
família quanto na sociedade. Como porta de entrada à atenção básica em saúde modificou-se a  
sua composição profissional e sua dinâmica organizacional, as quais revelam como famílias são  
concebidas e como são (re)produzidas as relações de gênero.  
A dinâmica do serviço de atenção básica pressupõe a formação de equipes  
multiprofissionais, composta minimamente de médico generalista, enfermeiro, auxiliar de  
enfermagem e Agente Comunitário de Saúde (ACS), responsáveis pela atenção inicial à saúde  
das famílias circunscritas num território. Tem-se, de um lado, o deslocamento da atenção básica  
centrada no profissional médico ao incorporar a dimensão da interdisciplinaridade e a  
constituição de equipes multiprofissionais, mas, de outro lado, a permanência de determinada  
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Reflexões sobre o dueto família e gênero na política de saúde brasileira  
forma de compreensão e concepção de família, que orientam suas práticas, considerando-se,  
em particular, o status social das áreas de formação e os múltiplos pertencimentos sociais.  
Conforme estudos de Sarti (2010) e Trad (2010), a noção de família geralmente se  
fundamenta na própria experiência de família vivida, independentemente da área e do nível de  
formação profissional, a qual, não incomumente, se assenta no modelo idealizado, atomizado e  
naturalizado de família como unidade nuclear de base biológica. Portanto, alheia a  
consubstancialidade das relações sociais, raciais e de gênero, constituinte e constitutiva das  
condições objetivas e subjetivas que concretam os cuidados em saúde no cotidiano da vida de  
indivíduos e famílias, diferentes e, particularmente, desiguais quando se trata do contexto  
brasileiro.  
Mesmo no campo da saúde coletiva, que desenvolve estudos críticos do modelo de  
atenção em saúde, observa-se a ausência de reflexões sobre a noção de família. “Como resultado  
dessa imprecisão, nas experiências concretas de implantação do modelo, está a utilização pelos  
profissionais de repertório conhecido no campo da saúde a respeito do que é família. Adota-se,  
assim, a abordagem familiar por ciclos de vida, pela qual os indivíduos são categorizados por  
sexo e idade, a partir da dimensão biológica do corpo. (...) esta abordagem continua sendo  
referência para a atuação profissional e para organizar a assistência, operando como forma de  
traduzir o cuidado à família nos termos do modelo biomédico” (SARTI, 2010, p. 93).  
Outro imbróglio se refere a identificação entre família e unidade domiciliar,  
obscurecendo pensar a família a partir da rede de parentesco ou de pensa-la em rede, “de  
percebe-la como um mundo de relações, mas também notar as diferentes formas de organização  
familiar, que não só transcendem, mas, sobretudo, não se confundem com a unidade  
doméstica”7 (SARTI, 2010, p. 94). Além disso, apesar da funcionalidade operacional dessa  
concepção na organização da atenção básica em saúde, a sua utilização incorre o risco de  
fixação de “diferenças nas composições das famílias [que] podem ser apenas instantâneos de  
fases diferentes do ciclo de desenvolvimento de grupos domésticos” (TRAD, 2010, p. 114).  
Concomitantemente, verifica-se a permanência do engessamento da concepção de  
família a despeito da pretensa aproximação com a sua realidade cotidiana, cujas normativas  
estabelecem às equipes desse serviço a necessidade de conhecer as famílias do território de  
abrangência, de identificar os problemas de saúde, as situações de risco existentes e sua relação  
com o contexto comunitário, por exemplo, além da assistência integral às famílias sob sua  
responsabilidade no âmbito da atenção básica. Em que pesem as mudanças preconizadas nesse  
modelo, não raro, as famílias adquirem, contraditoriamente, um caráter instrumental – como  
forma de aproximação ao contexto do indivíduo visando o cumprimento de metas das ações no  
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campo da saúde –, haja vista a disseminação da “lógica de gestão dos serviços, baseada na  
aferição de produtividade que implica o alcance mensal de um determinado número de famílias  
visitadas” (MOROSINI; FONSECA, 2018, p.263).  
Ademais, nessa organização territorial do trabalho das equipes multiprofissionais,  
destaca-se a responsabilidade da relação direta com as famílias nos territórios atribuída ao ACS  
que, oriundo do próprio território, materializa a pressuposta aproximação e fortalecimento de  
vínculos entre os profissionais da atenção básica e as famílias atendidas. Em princípio, portanto,  
são os ACS que representam a porta de entrada e “batem à porta” das famílias nos territórios.  
Quando se considera a concepção de família e as relações de gênero agenciadas, observa-se a  
subsunção da saúde dos indivíduos (sujeitos dos direitos de cidadania) à saúde da família e a  
reprodução social do cuidado em saúde como “coisa de mulher”.  
Quando se trata dessa categoria profissional, inegável, conforme observado em vários  
estudos (KERGOAT, 2016; TRAD, 2010; SCOTT, 2005; NUNES; SARTI; OHANA, 2008)que  
se manteve a característica de categoria composta predominantemente por mulheres e  
residentes no território onde trabalham, mesmo com as mudanças havidas nas condições de  
trabalho, de uma situação de informalidade para a integração nas relações sociais pertinentes a  
um trabalhador do SUS. Ao mesmo tempo, apontam que as ACS operam no cotidiano de suas  
atividades com a própria ideia de família, como fazem os demais profissionais da saúde.  
Fundamentadas no arranjo familiar idealizado de família – a nuclear burguesa –, exercem  
comumente papel disciplinador. “Trata-se de uma concepção moral de família, identificada com  
a noção do bem e a consequente dificuldade de pensar o conflito como inerente às relações  
familiares. Daí a tendência a patologização – segundo um padrão de normalidade informado  
pelo modelo biomédico – de tudo o que implica situação de conflito ou de ruptura nas relações  
familiares” (SARTI, 2010, p. 96).  
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Concordando com Scott (2005), nas ações de saúde se defrontam a visão dos  
profissionais e das famílias, na qual, comumente, não são consideradas as relações familiares e  
de vizinhança, e suas implicações no cuidado tal como se desenvolve no território específico,  
portanto, na contramão do pressuposto de aproximação ao contexto familiar e social do modelo  
de atenção básica. Opõem-se na prática a lógica do serviço e a lógica da família, reproduzindo  
a tradicional hierarquia social “que coloca de um lado, os profissionais oriundos das camadas  
médias e de um universo sociocultural distinto, com saber que lhe corresponde; de outro, as  
famílias assistidas na comunidade” (SARTI, 2010, p. 95).  
As relações familiares são subentendidas como hegemônica e homogeneamente  
solidárias e complementares. As relações de poder e hierarquias sociais nas relações de gênero  
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são obscurecidas, corroborando a cristalização de lugares. “Nessa configuração, a mulher se  
define, acima de tudo, como mãe, a partir de um lugar tradicional de gênero, sendo a grande  
aliada dos profissionais de saúde, nas suas ações disciplinadoras. Torna-se ´cumplice´ desses  
profissionais (...). As mulheres constituem-se nas “cuidadoras” (...), as que tem disponibilidade,  
podem esperar e adaptar-se ao ritmo do atendimento, ou que estão lá para conversar, para serem  
escutadas. As ações educativas têm, assim, na mulher, o alvo principal” (SARTI, 2010, p. 97).  
O campo da saúde, ainda que não seja característica exclusiva, compõe-se de  
profissionais advindos de várias áreas de formação profissional e, não menos, marcados pelos  
pertencimentos de classe, gênero e raça. No que se refere às relações de gênero que constituem  
e organizam a vida social, estudos relativos à inserção das mulheres no mercado de trabalho,  
apontam, para além de mudanças, algumas permanências – como os “guetos profissionais  
femininos”. Incluídas aqui estão pedagogia, enfermagem, serviço social quando se trata de  
posicionar pela formação no ensino superior, desde longa data caracterizadas pela  
predominância de mulheres. Incluídas estão também as trabalhadoras domésticas e as ACS  
quando se trata de posicionar pela formação no ensino fundamental e médio, conforme os  
parâmetros atuais de escolaridade.  
Na medicina tem-se a segregação entre os sexos expressas nas especialidades, donde a  
medicina sanitarista, a pediatria, por exemplo, apresenta maior presença feminina, enquanto a  
cirurgia, cardiologia (entre outras), com maior prestígio e remuneração na área, as mulheres são  
em menor número. “Os estereótipos sociais criados em torno dessas especialidades sinalizam  
conformações gerais de homens e mulheres na sociedade. A pediatra é a ´dona de casa da  
medicina´, assim o mito do instinto maternal tornaria a mulher mais calma, propícia a arte do  
´cuidar´, logo, apta a trabalhar com o tratamento de enfermos de doenças crônicas – pacientes  
que necessitam de um cuidado contínuo e próximo. Os homens, todos eles banhados pela  
postura agressiva e sem titubeios, seriam adequados à precisão necessária em manobras  
cirúrgicas” (CHIES, 2010, p. 508).  
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Apesar de mudanças sociais e demográficas havidas na sociedade brasileira desde os  
anos de 1970, persiste a valorização maior de profissões construídas como masculinas se  
comparadas às femininas. Mesmo quando as mulheres ocupam espaço nessas profissões a  
tendência é concebe-las como inferiores. Em linhas gerais, na atenção à saúde, “continua-se a  
conceber a família como assunto de mulheres, crianças e idosos, daqueles, enfim, que se  
reconhecem vulnerabilidades” (SARTI, 2010, p. 97).  
Conforme críticas feministas, o programa de atendimento em saúde básica reforça a  
identificação naturalizada entre mulher e mãe, de longa data presente em programas de saúde  
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com ênfase materno-infantil, a despeito das lutas feministas à saúde das mulheres  
independentemente da função reprodutiva. Ao fim e ao cabo, predomina a ideia do lugar da  
mulher como natural cuidadora, tanto em relação aos profissionais que compõem as equipes de  
trabalho da atenção básica em saúde, quanto em relação as famílias nos territórios de  
abrangência. Reproduz-se nas políticas sociais a naturalização de habilidades socialmente  
construídas. O trabalho não remunerado da dedicação de mulheres aos cuidados de saúde,  
associada ao fato desse trabalho de cuidado reunir tanto o afeto quanto a competência, se  
importantes à efetivação das políticas sociais, implicam e significam, não menos, a sobrecarga  
de trabalho às mulheres, impedindo-as de se realizarem em outras esferas do social  
(SCAVONE, 2005).  
Desde longa data na sociedade brasileira, embora não exclusivamente, à família  
competiram os cuidados e provimento dos recursos necessários à sociabilidade e à reprodução  
social de seus integrantes, sob a égide da concepção idealizada e naturalizada de família – que,  
importada de outros contextos, “nem sempre ajudam para entender a realidade em que  
vivemos”–, e da divisão social e sexual do trabalho – cujo trabalho de cuidado, cindido entre  
esferas pública e privada, ainda permanece como ofício naturalizado feminino e exercido  
principalmente pelas mulheres na vida em sociedade.  
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Porta de saída: família e gênero no Programa Melhor em Casa  
A família ocupará lugar de destaque e protagonizará papel fundamental na política de  
saúde, em particular com a criação, em 2011, do Programa Melhor em Casa – cuja  
nomenclatura, conforme se lê, remete à esfera privada doméstica como porta de saída. A  
constituição desse programa expressa a reorganização da atenção domiciliar, sob as normativas  
da Política Nacional de Atenção Domiciliar do MS, que transfere parte da assistência hospitalar  
para o domicílio. Dito noutros termos, promove o deslocamento de assistência anteriormente  
centrada nas instituições de saúde reconhecidas legalmente pelo Estado para a família no espaço  
da própria moradia – configurando uma estratégia de reprivatização do trabalho de cuidado em  
saúde.  
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Mesmo que as situações para a atenção domiciliar sejam necessariamente deliberadas  
pelo saber médico e consentidas pela família, não são necessariamente consideradas as  
desigualdades consubstanciadas nas relações sociais de classe, gênero e étnico-racial. E,  
assim como na “porta de entrada”, indaga-se: quem é a família subentendida nesses  
dispositivos legais que normatizam a atenção domiciliar em saúde? E, mais ainda, quem cuida  
de quem e sob que formas na atenção domiciliar?  
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Reflexões sobre o dueto família e gênero na política de saúde brasileira  
Quem é o cuidado ou a cuidada mostra-se no disposto oficialmente à atenção domiciliar:  
constitui um “serviço indicado para pessoas que apresentam dificuldades temporárias ou  
definitivas de sair do espaço da casa para chegar até uma unidade de saúde, ou ainda para  
pessoas que estejam em situações nas quais a atenção domiciliar é a mais indicada para o seu  
tratamento” e que objetiva “proporcionar ao paciente um cuidado mais próximo da rotina da  
família, evitando hospitalizações desnecessárias e diminuindo o risco de infecções, além de  
estar no aconchego do lar” (BRASIL, 2012). Trata-se, portanto, de pessoas dependentes de  
alguma forma do cuidado de outrem.  
Como parte do trabalho de cuidado em saúde é deslocada para o contexto da vida  
privada, às famílias implicarão mudanças nas suas dinâmicas familiares, na organização do  
espaço doméstico, nos custos financeiros, nos conhecimentos e habilidades para o cuidado em  
saúde no domicílio. Todavia, no “andar da carruagem”, sublima-se família e gênero. No repasse  
do cuidado para as famílias perpetua-se o pressuposto da existência de mulher disponível no  
seio familiar para tal e a naturalização da disposição para cuidar como feminina.  
Na reorganização institucional hospitalar e familiar da atenção domiciliar determinadas  
relações de gênero são reproduzidas através da tradicional divisão sexual do trabalho assentada  
na ideia de que cabe ao homem o papel de provedor da família e à mulher as atividades  
domésticas e funções de cuidado. Reitera-se a imagem idealizada da família, assim como  
observada na atenção básica, e, ao mesmo tempo, ignoram-se as condições sociais distintas e  
desiguais das famílias para a satisfação das necessidades de reprodução social, e, não menos,  
das mulheres. Dito noutros termos, são reiteradas “a cisão ideológica entre casa e trabalho, no  
ocidente industrializado”, a qual “obscureceu as formas pelas quais cada uma dessas órbitas  
conforma a outra” (BORIS, 2014, p. 101).  
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Analisando alguns dados de pesquisa realizada com dez famílias usuárias do serviço de  
atenção domiciliar em saúde de cinco municípios de Santa Catarina (DAL PRÁ et al, 2018),  
verifica-se a presença das mulheres como cuidadoras. Conforme os relatos, todas as pessoas  
indicadas como “cuidadora” pelas famílias desse serviço de saúde são do sexo feminino.  
Responsabilidade exclusivamente delegada às mulheres – que cuidam de seis homens e de  
quatro mulheres. Essa realidade corrobora a tendência apontada em vários estudos quanto a  
predominância das mulheres nas atividades de cuidados domésticos, familiares e pessoais,  
realizadas no próprio domicílio ou não, mercantilizadas ou não.  
O trabalho de cuidado domiciliar não pago, no caso em tela, representa uma proporção  
maior: em oito das dez famílias. Todos os seis homens (quatro velhos e dois jovens adultos)  
eram cuidados por alguma mulher da própria família de forma não remunerada – em três  
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situações são as esposas as cuidadoras, noutras, a mãe, a irmã e a mãe, as filhas e filhos  
alternadamente, mas, consoante a narrativa, pela proximidade de moradia predominavam as  
filhas. Entre as quatro mulheres cuidadas, duas famílias dispunham do trabalho de cuidado não  
pago realizado pelas mulheres – uma pelas filhas e, noutra, pelas filhas e bisneta – e, noutras  
duas situações, esse trabalho de cuidado fora externalizado.  
Nesse universo de pessoas cuidadas e de pessoas cuidadoras predominaram aquelas com  
idade superior aos sessenta anos – marco determinado socialmente pela cronologia biológica  
ao “ciclo da vida”, sob o qual se erigem concepções, parâmetros, dinâmicas à vida em sociedade  
e, especificamente, ao acesso à proteção social como idoso. Entre as dez pessoas cuidadas, seis  
se enquadram nesta categoria: três na faixa dos 80 anos, dois na faixa dos 70 anos, uma na faixa  
dos 90 anos – os outros quatro, dois são jovens na faixa dos 20 anos e dois na faixa dos 50 anos.  
Entre as cuidadoras, seis estão na faixa dos 60 anos ou mais de idade.  
Assim, fosse feita uma média, infere-se que se tratam de mulheres idosas cuidando de  
homens idosos – aspecto este relacionado também às mudanças sociodemográficas com o  
envelhecimento populacional, que aumentou a demanda de cuidados com pessoas idosas. O  
cuidado na atenção domiciliar, nesse espectro, corrobora “a ideia da centralidade do trabalho  
das mulheres, nas instituições ou em domicílio, realizado gratuitamente ou como uma forma de  
atividade remunerada” (HIRATA, 2016, p. 193).  
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O que se apresenta é o arquétipo do familismo, pois os cuidados em saúde das pessoas  
passam a não ser mais executados nos espaços hospitalares, mas por um familiar em sua própria  
casa e junto dela os seus custos. Segundo Grah (2018), com a incorporação do trabalho familiar  
não remunerado, este acaba sendo altamente funcional para o modos operandi do programa em  
pauta. “As exigências colocadas ao cuidador envolvem um cuidado tecnificado que podem ser  
comparadas às funções básicas de técnicos em enfermagem ou outras especialidades presentes  
no âmbito hospitalar, com custos emocionais, financeiros e repercussões na própria saúde do  
cuidador” (GRAH, 2018, p. 155).  
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Considerando o fato de que grande parte dos usuários do SUS pertence a população  
pobre economicamente – cujos recursos são poucos ou inexistentes para acesso de serviços no  
mercado, cujos serviços públicos de cuidados pessoal, de creches e escolas, de atendimento as  
pessoas idosas são insuficientes e ou precários para atender as necessidades sociais básicas – a  
sobrecarga é inegavelmente maior quando se trata de famílias e de mulheres pobres e ou negras  
da classe trabalhadora. Necessário, portanto, considerar que os sistemas de proteção social se  
assentam numa determinada divisão sexual do trabalho, refletindo a estrutura de poder  
hierárquico ainda predominante nas famílias (DRAIBE, 2007).  
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Reflexões sobre o dueto família e gênero na política de saúde brasileira  
Ademais, observa-se os efeitos do envelhecimento acompanhado do adoecimento e os  
cuidados especiais requeridos cotidianamente sob a responsabilidade de mulheres,  
reproduzindo a ideia do cuidado como genuinamente feminino e a sobrecarga de trabalho como  
normal. Conforme constatado em estudos sobre o tema (HIRATA; GUIMARÃES, 2012),  
dissemina-se a tendência de responsabilização da família pela proteção social em saúde e  
reproduz-se nos programas de atenção domiciliar as características familistas, principalmente  
no reforço da família – leia-se da mulher – como instância natural do cuidado.  
“Sob o slogan da melhoria e ampliação da assistência no SUS aos pacientes com agravos  
de saúde, que possam receber atendimento humanizado em casa e perto da família, o Programa  
Melhor em Casa incentiva e normatiza a presença das famílias, através da obrigatoriedade da  
indicação de um/a cuidador/a e afirma o processo de privatização, pois a família ao ser  
incorporada na gestão do cuidado passa a ser “oficialmente” requisitada para tal. Para responder  
às requisições as famílias têm basicamente duas alternativas: 1) a contratação/pagamento de  
cuidadores e a 2) utilização do trabalho familiar, não pago e invisível, e que continua recaindo  
majoritariamente sobre as mulheres” (MIOTO et al, 2015).  
A divisão sexual do trabalho doméstico permanecerá invisibilizada nas políticas sociais  
e, de acordo com Sorj (2014, p. 125), “a questão do care aparece como um problema de e para  
as mulheres”. A despeito de avanços no âmbito dos direitos sociais, cabe as mulheres,  
principalmente das mães, além do trabalho remunerado, a responsabilidade desproporcional do  
trabalho doméstico e do cuidado (BILAC, 2014).  
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Além disso, quando se analisa a distribuição por sexo dos trabalhadores em grandes  
grupos ocupacionais constata-se que as mulheres se destacam entre os profissionais das ciências  
e artes, dos serviços administrativos e dos trabalhadores de serviços. Ocupações ligadas ao  
cuidar, mas um cuidar exercido, agora, na esfera do mercado: professoras, assistentes sociais,  
enfermeiras (GRAH, 2018). Embora as mulheres constituíssem, de acordo com o Censo  
Demográfico (IBGE, 2010), 43,5% da População Economicamente Ativa (PEA), famílias  
chefiadas por mulheres representassem, segundo o Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada  
(IPEA, 2016), 40,5% das famílias, portanto, fossem as provedoras principais ou exclusivas,  
mantem-se a ideia de que o lugar e atribuição da mulher é “cuidar” da família e da esfera  
reprodutiva.  
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Porta dos fundos: o gênero do cuidado e o gênero no cuidado  
Ao pensar as relações família e gênero na proteção social são muitas as questões que  
podem ser trazidas à tona e possíveis porque constituem a cena da vida cotidiana de alguma  
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forma. Destaca-se, entretanto, a naturalização (histórica) do cuidado como “lugar” das famílias  
e como “qualidade” das mulheres na família e na sociedade – como se não houvesse a divisão  
sexual do trabalho e do trabalho doméstico.  
Presente, portanto, em vários cenários. Na vida privada da casa quando as mulheres  
realizam as atividades domésticas necessárias à manutenção e reprodução da vida social –  
gratuita e ou remunerada. A mulher empregada doméstica responsável por cuidados com a casa  
e a família de outrem (trabalho formal ou informal remunerado) e pela sua também (trabalho  
não remunerado). A mulher que para trabalhar no mercado formal contrata outra mulher  
(empregada doméstica) para determinados cuidados, enquanto ela própria, também  
profissional, realiza o trabalho (remunerado) de enfermeira ou de professora, por exemplo, em  
que cuidados estão indubitavelmente implicados. Amulher contratada e remunerada para cuidar  
de pessoas com limitações físicas (relacionadas à idade, saúde, acidente etc.) no domicílio da  
pessoa cuidada e que para cuidar de pessoa idosa, por exemplo, de sua própria família conta  
com a solidariedade familiar e fraternal de outras mulheres. A mulher, “dona de casa”, ao  
realizar cotidianamente os cuidados com a sua casa e família, que, ao mesmo tempo, por  
motivações diversas, cuida gratuitamente de pessoa dependente e idosa cuja família vizinha a  
sua casa.  
Como indicado nas reflexões, o cuidado não se restringe a vida privada não mercantil -  
ou seja, a casa e a família sejam quais dinâmicas familiares forem engendradas. No “mundo do  
trabalho”, considerado “motor” essencial da engrenagem social capitalista, comumente  
vislumbra-se o trabalho remunerado e assalariado realizado na dita esfera pública - mercantil.  
Mas, aqui, o cuidado também está implicado e, mais ainda, as relações de gênero. Veja-se, por  
exemplo, alguns estudos sobre a participação das mulheres no mercado de trabalho no contexto  
brasileiro das três décadas finais do século XX, que sinalizam tendências tanto de continuidades  
quanto de mudanças (BRUSCHINI, 2007; BRUSCHINI, 2000; COSTA; SORJ; BRUSCHINI,  
2008; LAVINAS, 1997).  
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As continuidades apontam o constante incremento da inserção feminina no mercado de  
trabalho, porém em atividades laborais mais precárias em relação aos vínculos e às condições  
de trabalho – as mulheres ainda são maioria em ocupações como o trabalho doméstico, cuja  
remuneração é baixa e amplamente realizado sem carteira assinada. Para as mulheres com nível  
educacional “superior”, em termos de formação profissional, persistem alguns “nichos  
tradicionais”: magistério, enfermagem, serviço social.  
Dessas continuidades em relação ao mundo do trabalho, a despeito da crescente  
participação feminina, os “lugares ocupados” por essas mulheres, independentemente do grau  
Revista Libertas, Juiz de Fora, v. 23, n.1, p. 165-180, jan./jun. 2023. ISSN 1980-8518  
Reflexões sobre o dueto família e gênero na política de saúde brasileira  
de escolarização, tenderam para atividades relacionadas, de alguma forma, à noção de cuidado.  
Em particular, se considerarmos que “o cuidado não é apenas uma atitude de atenção, é um  
trabalho que abrange um conjunto de atividades materiais e de relações que consistem em  
oferecer uma resposta concreta às necessidades dos outros. Assim, podemos defini-lo como  
uma relação de serviço, apoio e assistência, remunerada ou não, que implica um sentido de  
responsabilidade em relação à vida e ao bem-estar de outrem” (KERGOAT, 2016).  
Mesmo em relação às mudanças, a despeito da conquista de empregos e da expansão da  
participação feminina em profissões de maior prestígio social (medicina, direito e áreas da  
engenharia ocupadas tradicionalmente pelos homens), outro fenômeno econômico-social  
evidenciado diz respeito à participação cada vez maior no mercado de trabalho de mulheres  
mais velhas, casadas e que têm filhos, cujas implicações se manifestam tanto nas relações de  
trabalho e na organização familiar, quanto nas relações de gênero que as constituem e donde o  
cuidado se faz presente.  
Essas mudanças e permanências trazem à tona um corolário de questões, em particular  
se considerarmos os sentidos do trabalho construídos na modernidade e a constituição dos  
sistemas de proteção social, originariamente vinculados ao trabalho assalariado, e, não menos,  
ao levarmos em conta as mudanças contemporâneas na família e na própria cidadania das  
mulheres – impulsionadas pelos movimentos feministas desde as décadas de 1960 e 1970.  
Nas sociedades ocidentais, sob as hostes da racionalidade capitalista de produção, o  
trabalho socialmente valorizado se refere àquelas atividades realizadas na esfera pública,  
reconhecidas úteis por outrem e remuneradas. O trabalho que confere dignidade e direitos,  
existência e identidade sociais às pessoas é o trabalho pago, em particular, o assalariado (GORZ,  
2003), implicando, conforme críticas feministas, o esvaziamento de sentido, a invisibilidade e  
a exclusão de outras tantas formas de trabalho, dentre as quais se situam aquelas realizadas na  
esfera da reprodução social, não remuneradas e sob a responsabilidade de mulheres.  
Embora historicamente o ingresso feminino no mercado de trabalho formal e informal  
não seja constitutivo apenas dessas décadas e das recentes (se considerarmos o pertencimento  
de classe e étnico-racial) e seja inegável que se intensificou e tornou-se uma tendência constante  
desde os anos de 1970, manteve-se a divisão sexual do trabalho doméstico, cuja  
responsabilidade permanece predominantemente às mulheres. A reprodução dessa relação de  
gênero produz consequências - distintas consoantes a condicionantes econômicos, políticos e  
culturais - tanto objetivas quanto subjetivas no cotidiano de trabalhadoras do sexo feminino e,  
em que pesem os avanços na cidadania das mulheres nas esferas pública e privada, ainda  
persistem desigualdades e discriminações sociais.  
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Edilane Bertelli; Keli Regina Dal Prá; Michelly Laurita Wiese  
Considerando que gênero se refere às relações sociais de poder construídas a partir das  
diferenças percebidas entre os sexos e que dizem respeito incluso às organizações e instituições  
sociais, dentre as quais o mercado de trabalho (SCOTT, 1995), há profissões e ocupações cujas  
clivagens expressam nitidamente as divisões e hierarquias no mundo do trabalho: algumas delas  
associadas ao masculino, enquanto outras, ao feminino. Como assinalado, as mulheres ainda  
são maioria em determinados ramos da atividade econômica - dentre os quais: serviços pessoais,  
administração pública, serviços de saúde e de ensino, além de comunitários. Isso significa que  
o setor do mercado de trabalho no qual as mulheres encontravam e ainda encontram as maiores  
oportunidades de trabalho e emprego é o de serviços.  
O envelhecimento populacional como tendência mundial, incluso a sociedade brasileira,  
tem se mostrado, em alguns estudos, o propulsor do debate acerca do cuidado. Mas não está só,  
ao se considerar que em algumas políticas de proteção social (saúde, assistência, crianças e  
adolescentes, idoso) a questão do cuidado se traduz na referência à responsabilidade da família,  
da sociedade e do Estado. Em que pesem a histórica participação da família no âmbito da  
proteção, nos dias hodiernos, pelos rumos neoliberais do Estado brasileiro em relação às  
políticas sociais, essa ordem de responsabilidade não constitui acaso: “preferencialmente” as  
famílias e, pela “tradição”(!?) e “natureza”(?!), indubitavelmente as mulheres – principais  
implicadas nos efeitos dessa direção político-econômica voltada à reprodução do capital e “de  
costas” para a reprodução da vida humana.  
178  
Quando se trata de família e de cuidado, fundamental a concepção de que gênero  
constitui e atravessa as relações e instituições sociais, demarcando fronteiras e hierarquias tanto  
entre campos profissionais quanto entre os sujeitos no interior de um mesmo campo, tanto no  
mercado de trabalho quanto na família e, mais ainda, a consubstancialidade das relações sociais  
de classe, sexo e étnico-racial e as desigualdades erigidas, as quais não são poucas, outrora e  
agora, na sociedade brasileira.  
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Revista Libertas, Juiz de Fora, v. 23, n.1, p. 165-180, jan./jun. 2023. ISSN 1980-8518  
DOI 10.34019/1980-8518.2023.v23.39970  
O fundo público e a relação público x privado  
na política de saúde em Campina Grande/PB  
The public fund in the public x private relationship in health policy by  
Campina Grande/PB  
Jaidete de Oliveira Correia*  
Alessandra Ximenes da Silva**  
Resumo: O presente trabalho objetiva analisar  
a configuração do fundo público na relação  
Abstract: This study aims to analyze the  
configuration of the public fund in the public x  
private relationship in the counter-reform  
process in health policy in the city of Campina  
Grande/PB, in the period between 2016-2020.  
We understand that the public fund is composed  
of resources collected in the form of taxes and  
contributions arising from the taxation levied on  
the working class and capitalists; and, return to  
taxpayers through social and economic policies.  
The motivation to carry out this research came  
from the studies and discussions developed at  
the Center for Research in Health Policy and  
Social Work (NUPEPSS) linked to the  
Department of Social Work at the State  
University of Paraíba (UEPB), in which we  
participate in scientific initiation projects, as  
well as from our participation in the Paraiba  
Forum in Defense of the Unified Health System  
(SUS) and Against the Privatization of Health -  
Campina Grande/PB Section. Thus, the  
approximation with health policy based on such  
experiences allowed us to identify that it has  
been losing its public and universal character,  
giving way to the privatization of services.  
público  
x
privado no processo de  
contrarreforma na política de saúde no  
município de Campina Grande/PB, no período  
compreendido entre 2016-2020. A motivação  
para realizar esta pesquisa decorreu dos estudos  
e discussões desenvolvidos no Núcleo de  
Pesquisas em Política de Saúde e Serviço Social  
(NUPEPSS) vinculado ao Departamento de  
Serviço Social da Universidade Estadual da  
Paraíba (UEPB), no qual participamos de  
projetos de iniciação científica, bem como pela  
participação no Fórum Paraibano em Defesa do  
Sistema Único de Saúde (SUS) e Contra a  
Privatização da Saúde - Seccional de Campina  
Grande/PB. Destarte, a aproximação com a  
política de saúde a partir de tais experiências,  
possibilitou-nos identificar que essa vem  
perdendo seu caráter público e universal,  
cedendo lugar à privatização dos serviços.  
Palavras-chaves: Fundo público; Contrarre-  
Keywords: Public fund; Counter-reform;  
forma; Política de saúde.  
Health policy.  
Recebido em: 05/01/2023  
Aprovado em: 09/05/2023  
* Assistente Social. Graduada em Ciências Sociais pela Universidade Federal de Campina Grande (UFCG).  
Mestre em Serviço Social pela Universidade Estadual da Paraíba (UEPB).  
** Assistente Social. Docente do Departamento de Serviço Social e da Pós-Graduação em Serviço Social da  
Universidade Estadual da Paraíba (UEPB). Doutora em Serviço Social e Mestre em Serviço Social pela  
Universidade Federal de Pernambuco (UFPE). Líder do Núcleo de Pesquisas em Política de Saúde e Serviço  
Social da Universidade Estadual da Paraíba (NUPEPSS/UEPB).  
Revista Libertas, Juiz de Fora, v. 23, n.1, p. 181-204, jan./jun. 2023. ISSN 1980-8518  
Jaidete de Oliveira Correia - Alessandra Ximenes da Silva  
Introdução  
A saúde é parte integrante da Seguridade Social (SS), foi definida como um direito de  
todos e dever do Estado, assegurada na Constituição Federal (CF) de 1988. O SUS, por sua vez,  
é fruto das conquistas possíveis em torno do que foi idealizado pelo movimento de Reforma  
Sanitária Brasileira (RSB) e foi constituído com base nos princípios da universalidade, equidade  
e integralidade. Entretanto, embora direito garantido, nesses 33 anos a saúde dispõe de  
insuficiência no seu financiamento, resultando em um processo de expropriação de direitos.  
Dentre as propostas defendidas pelo movimento de RSB destacam-se: a  
universalização do acesso; a concepção de saúde como um direito social e dever do Estado; a  
reestruturação do setor saúde através da estratégia do SUS com vista a um significativo  
reordenamento setorial com um novo paradigma para a saúde individual e coletiva; a  
descentralização do processo de decisão para as esferas do governo estadual e municipal; o  
financiamento efetivo, e a democratização do poder local através dos novos mecanismos de  
gestão.  
182  
Regulamentado em 1990, desde então, o SUS caminha de forma contraditória, entre  
avanços e retrocessos, passou a sofrer os rebatimentos da ofensiva neoliberal que, nessa mesma  
década, passa a afetar diretamente as políticas sociais no Brasil. Com a insurgência de crises  
capitalistas contemporâneas, percebe-se a apropriação de recursos da SS para outras áreas em  
que o Estado julga ser necessário, uma vez que compõem um fundo público de recursos  
federais, estaduais e municipais.  
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O financiamento do fundo público se dá pelo pagamento de impostos e contribuições  
sociais pela sociedade brasileira. Dessa forma, é uma manifestação social de uma estrutura de  
transferência de recursos para o financiamento da SS, sendo o SUS uma parte importante desta  
demonstração social. No entanto, consideramos que, sob o contexto do capitalismo  
contemporâneo, o fundo público tem contribuído para a reprodução do capital como fontes de  
recursos para investimento, subsídios, desonerações tributárias e redução da base tributária de  
renda do capital. Neste último caso especialmente, como financiamento integral ou parcial dos  
meios de produção (SALVADOR, 2010).  
Este artigo tem como objeto de estudo “A Configuração do Fundo Público na Relação  
Público x Privado no Processo de Contrarreforma na Política de Saúde no Município de  
Revista Libertas, Juiz de Fora, v. 23, n.1, p. 181-204, jan./jun. 2023. ISSN 1980-8518  
O fundo público e a relação público x privado na política de saúde em Campina Grande/PB  
Campina Grande/PB”, no período compreendido entre 2016-2020. O interesse pelo tema  
mencionado deve-se à minha inserção no NUPEPSS vinculado a UEPB, no qual participamos  
de dois projetos de iniciação científica sendo eles: “Contrarreforma, Intelectuais e Serviço  
Social: Tendência dos Intelectuais Internacionais e Nacionais no Processo de Contrarreforma  
da Política de Saúde”; e “A Contrarreforma do Estado Brasileiro e o Fundo Público na Política  
de Saúde: A Particularidade do Município de Campina Grande/PB”, dos quais fui bolsista pelo  
Programa Institucional de Bolsas de Iniciação Científica (PIBIC). Aaproximação com a política  
de saúde também se deu a partir da inserção no Projeto de Extensão “Política Pública de Saúde;  
Direito de Todos(as)”, desenvolvido no referido grupo de pesquisa e, da participação no Fórum  
Paraibano em Defesa do SUS e Contra a Privatização da Saúde - Seccional de Campina  
Grande/PB. Destacamos que essa temática foi abordada no nosso Trabalho de Conclusão de  
Curso (TCC), o qual teve por título “POLÍTICA DE SAÚDE E FUNDO PÚBLICO: inflexões  
no município de Campina Grande/PB”, defendido em 20181.  
A pesquisa desenvolvida partiu dos seguintes questionamentos: Em Campina  
Grande/PB, como se configura o fundo público na relação público x privado no processo de  
contrarreforma na política de saúde no município de Campina Grande/PB? Quais as prioridades  
no repasse de recursos pelo governo municipal para os serviços privados e filantrópicos de  
saúde? Assim, este trabalho investigativo tem como objetivo geral analisar de que forma  
acontece esse repasse e se de fato a Média e Alta Complexidade se sobressai a Atenção Básica  
de Saúde (ABS).  
183  
A pesquisa foi realizada no município de Campina Grande- Paraíba, o qual vínhamos,  
desenvolvendo pesquisas de iniciação científica e de TCC, aprofundando, portanto, no  
mestrado, os estudos realizados. Ressaltamos que o município de Campina Grande é o segundo  
município do estado da Paraíba, em termos econômicos, possuindo uma grande rede hospitalar  
(hospitais universitários, filantrópicos e privados). Por outro lado, já foi referência na  
implantação do Programa Saúde da Família, hoje estratégia, incorporando outros profissionais  
nas equipes para além dos definidos pelo Ministério da Saúde. Entretanto, estudos realizados  
desde a década de 1990, por Rota, demonstravam que uma tendência hospitalocêntrica - privada  
no município. Nosso estudo, portanto, contribui com análise mais contemporânea da relação  
público-privado na saúde, no município.  
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No que se refere ao procedimento metodológico desta pesquisa, utilizamos a pesquisa  
bibliográfica e a análise documental. A partir do referencial teórico fizemos levantamento e  
1 Disponível em: <http://dspace.bc.uepb.edu.br/jspui/handle/123456789/18633>. Acesso em: 30 nov. 2021.  
Revista Libertas, Juiz de Fora, v. 23, n.1, p. 181-204, jan./jun. 2023. ISSN 1980-8518  
Jaidete de Oliveira Correia - Alessandra Ximenes da Silva  
análise documental dos Relatórios de Gestão; Planos Municipais de Saúde; Programações  
Anuais; Prestação de Contas Anual do Conselho Municipal de Saúde; e Consulta realizada no  
TCE da Paraíba, através do Sistema SAGRES Online2 compreendendo o período de 2016-2020.  
As contradições em que se acha imerso o objeto com suas múltiplas determinações e  
estrutura necessitou de um embasamento do método crítico dialético marxiano, visto ser este o  
que melhor consegue apreender as íntimas relações que envolvem o objeto de pesquisa,  
possibilitando descortiná-lo para além de sua aparência fenomênica. Segundo Marx, o método  
de pesquisa “tem de captar detalhadamente a matéria, analisar as suas várias formas de evolução  
e rastrear sua conexão íntima; só depois de concluído esse trabalho é que se pode expor  
adequadamente o movimento real” (MARX, 1985, p. 20).  
Fundo público: relação público x privado no município de Campina Grande/PB  
nos anos de 2016-2020  
Esta pesquisa analisa as expressões na política de saúde através da configuração do  
fundo público na relação público x privado no município de Campina Grande/PB. A motivação  
para realizá-la decorreu dos estudos e discussões desenvolvidos no NUPEPSS vinculado ao  
Departamento de Serviço Social da UEPB, no qual participamos de projetos de iniciação  
científica, bem como pela participação no Fórum Paraibano em Defesa do SUS e Contra a  
Privatização da Saúde - Seccional de Campina Grande/PB. Destarte, a aproximação com a  
política de saúde a partir de tais experiências, possibilitou-nos identificar que essa vem  
perdendo seu caráter público e universal, cedendo lugar à privatização dos serviços.  
Nossa pesquisa concentrou seu foco na relação público x privado em 04 (quatro)  
hospitais do Município, sendo eles: a Clínica e Pronto Socorro Infantil (CLIPSI), a FAP, o  
Hospital Pedro I e o Hospital Antônio Targino, no período de 2016-2020. As informações que  
serão apresentadas foram extraídas de documentos municipais – Plano Municipal de Saúde  
(PMS) 2014-2017, PMS 2018-2021, Programações Anuais de Saúde e Relatórios Anuais de  
Gestão, compreendendo o período de 2016-2020 -; do TCE da Paraíba, através do Sistema  
SAGRES Online; e de alguns autores que discutem essa temática.  
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Breve caracterização do município de Campina Grande/PB  
Fundada em 01 de dezembro de 1967, Campina Grande é um município brasileiro no  
estado da Paraíba, tendo sido elevada à categoria de cidade em 11 de outubro de 1864. Pertence  
à Microrregião de Campina Grande e à Mesorregião do Agreste Paraibano. De acordo com o  
2 Disponível em: <https://sagresonline.tce.pb.gov.br/#/municipal/inicio>. Acesso em: 30 nov. 2021.  
Revista Libertas, Juiz de Fora, v. 23, n.1, p. 181-204, jan./jun. 2023. ISSN 1980-8518  
O fundo público e a relação público x privado na política de saúde em Campina Grande/PB  
censo demográfico de 2010 realizado pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística  
(IBGE), nesse ano, Campina Grande possuía uma população de 385.213 habitantes. Em 2020,  
distribuída por uma área territorial total de 591,658 km², o mesmo órgão estima que a população  
do município no ano de 2021 é de 413.830 habitantes, sendo a segunda cidade mais populosa  
da Paraíba, e sua região metropolitana, formada por 19 municípios (IBGE, 2010).  
O município está incluído na área geográfica de abrangência do clima semiárido  
brasileiro. Esta delimitação tem como critérios o índice pluviométrico, o índice de aridez e o  
risco de seca. Por situar-se no agreste paraibano, entre a Zona da Mata e o sertão e a uma altitude  
de 500 metros acima do nível do mar, Campina Grande possui um clima com temperaturas mais  
moderadas, considerado tropical com estação seca, com chuvas concentradas nas estações do  
outono e do inverno (IBGE, 2010).  
O Índice de Desenvolvimento Humano Municipal (IDHM) varia de 0 a 1 considerando  
indicadores de longevidade – saúde, renda e educação -. Quanto mais próximo de 0, pior é o  
desenvolvimento humano do município. Quanto mais próximo de 1, mais alto é o  
desenvolvimento do município. O IDH de Campina Grande, de acordo com o último censo é  
de 0,720 (IBGE, 2010).  
Cabe destacar que o município apresenta o segundo maior PIB entre as cidades do  
interior do Nordeste. Com mais de 200 mil habitantes, em 2017, de acordo com dados do PIB  
dos Municípios, divulgado pelo IBGE (2010), na comparação com cidades desse porte, o valor  
do PIB campinense, que foi de R$ 8,648 bilhões em 2017, ficou abaixo apenas do registrado  
para Feira de Santana, na Bahia, de R$ 13,657 bilhões. Ao analisar todo o PIB da Paraíba, o de  
Campina Grande teve participação de 14% no valor total, a segunda maior entre as cidades do  
estado. O município tem mantido essa colocação desde o início da série história, em 2002. Já o  
PIB per capita de Campina Grande, que resulta da divisão do produto interno bruto pelo total  
estimado de habitantes, registrou alta nominal, sem o desconto da inflação, de 331,2%, de 2002  
a 2017 e em 2018 é de R$ 22.583 bilhões. De acordo com a pesquisa, o principal setor  
econômico campinense é o terciário que, com as atividades de comércio e serviços em geral,  
aumentou sua participação em 46,5% no ano de 2017. O setor secundário, que envolve a  
indústria da transformação, ocupou a segunda posição, com participação de 20%, mas  
apresentou queda em relação aos resultados dos anos anteriores. Já o setor primário, que  
envolve atividades de agricultura, pecuária, produção florestal, pesca e aquicultura, teve  
participação de apenas 0,2% (G1.COM, 2020).  
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A política de saúde no município de Campina Grande/PB  
Os serviços do SUS em Campina Grande/PB estão distribuídos nos territórios dos 07  
(sete) Distritos Sanitários que formam as Gerências Distritais. No ano de 2021, essas Gerências  
são compostas por 114 estabelecimentos, destes 83 são Unidades Básicas de Saúde; 06 são  
Centros de Saúde; 02 Policlínicas; 01 Centro Especializado em Reabilitação (CER); 01 Centro  
Regional de Reabilitação e Assistência em Saúde do Trabalhador (CERAST); 01 Unidade  
Mista; 10 Centros de Atenção Psicossocial (CAPS); 08 residências Terapêuticas; 01 Centro de  
Convivência em Saúde Mental; 01 Ambulatório de Saúde Mental e Leitos (20) Especializados  
em Saúde Mental, funcionando no Hospital Municipal Dr. Edgley. Para o seu funcionamento  
diário, estes estabelecimentos dispõem de 131 equipes de saúde, sendo que destes, 18  
comportam duas equipes. No ano de 2020, devido à pandemia da COVID-19 (Coronavírus),  
foram criados no município 03 Centros de Atendimento para Enfrentamento da COVID-19. No  
ano de 2021, esses centros foram extintos.  
De acordo com o Cadastro Nacional de Estabelecimento de Saúde (CNES), essas  
gerências são compostas por 225 serviços cadastrados para atendimento ao SUS no município  
de Campina Grande/PB, destes 71,4% são públicos e 28,4% são privados. No que se refere à  
gestão dos serviços, 97,33% estão sob gestão municipal e 1,77% estão sob gestão estadual  
(PMS, 2018). A Gestão Municipal assiste a uma população estimada de mais de um milhão de  
pessoas, caracterizada pelos munícipes e por 176 municípios referenciados (RELATÓRIO  
ANUAL DE GESTÃO, 2017).  
186  
Do ponto de vista histórico, o processo de municipalização avançou a partir da  
publicação da Portaria GM nº 2.553/1998. Em 2009, foi reafirmada esta condição ao assinar o  
Pacto pela Saúde - Portaria nº 2.122/GM, de 10 de setembro, celebrando o Termo de  
Compromisso de Gestão, que considera, entre outros aspectos legais, as responsabilidades de  
cada nível de governo, constituindo-se num movimento decisivo em direção à descentralização  
das ações e serviços de saúde, exigindo a explicitação de vontades políticas do gestor estadual  
e dos gestores municipais de saúde.  
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De acordo com a portaria GM nº. 4.279, de 30 de dezembro de 2010, as Redes de  
Atenção à Saúde constituem-se em diferentes arranjos organizativos de ações e serviços de  
saúde, que por meio de um sistema de simples apoio busca garantir o cuidado à saúde. A Rede  
de Assistência à Saúde compreende a Atenção Primária, Atenção Especializada, Serviço de  
Regulação e Assistência Farmacêutica. A Rede de Vigilância em Saúde compreende a  
Vigilância Epidemiológica e Ambiental em Saúde, Controle de Zoonoses e Vigilância Sanitária.  
A gestão municipal considerada como uma rede compreende o gabinete da secretaria e as  
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O fundo público e a relação público x privado na política de saúde em Campina Grande/PB  
diretorias administrativas – recursos humanos, transporte da saúde, orçamentário e financeiro,  
através do Fundo Municipal de Saúde, contabilidade, compras, almoxarifado e informática.  
Além de discutir o quantitativo de recursos disponibilizados para a saúde, é importante  
também debater a qualidade e as possibilidades de aplicação para a execução das políticas.  
Neste ponto, as referências do PMS - 2014-2017, à luz das Diretrizes do MS, disponibilizaram  
recursos por meio de blocos de financiamento e projetos estratégicos de áreas definidas como  
prioritárias, enquanto que a Secretaria Municipal de Saúde disponibiliza recursos por vínculos  
orçamentários. O MS considera que as diretrizes são formulações que indicam as linhas de ação  
a serem seguidas, e visam delimitar a estratégia geral e as prioridades do Plano de Saúde; os  
objetivos expressam o que se pretende fazer acontecer a fim de superar, reduzir, eliminar ou  
controlar os problemas identificados; as metas são expressões quantitativas de um objetivo.  
Concretizam o objetivo no tempo e esclarecem e quantificam “o que, para quem e quando”.  
Precisam ter fórmula para cálculo de indicador definida e fonte de informação identificada; já  
as ações, são os detalhamentos (com prazos, responsáveis e recursos) de como se pretende  
atingir as metas, são expressas na Programação Anual, realizada após a aprovação do PMS. As  
ações previstas no PMS (2014-2017) assentam-se na responsabilidade sanitária como princípio  
tanto para a atenção quanto para a gestão do SUS.  
Na política de saúde a atenção básica se conceitua como o eixo estruturante do sistema,  
esta deve ser a porta de entrada. De acordo com a Programação Anual de Saúde 2016 e 2017,  
baseadas no PMS (2014-2017), aprovado em 10/06/2014, a Atenção Básica traz como  
diretrizes: a garantia do acesso à população a serviços de qualidade, com equidade e em tempo  
adequado ao atendimento das necessidades de saúde, mediante aprimoramento da política de  
atenção básica e atenção especializada; promoção da atenção integral à saúde da mulher e da  
criança e implementação da Rede Cegonha, com ênfase nas áreas e populações de maior  
vulnerabilidade; e a garantia da atenção integral a saúde da pessoa idosa e dos portadores de  
doenças crônicas, com estímulo ao envelhecimento ativo e fortalecimento das ações de  
promoção e prevenção (RELATÓRIO ANUAL DE GESTÃO, 2016).  
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Entende-se por atenção secundária, os exames e consultas especializadas, e, por  
atenção terciária, os hospitais, funcionando como uma rede de atenção integrada, incluindo  
referência e contra referência. O Bloco de Atenção de Média eAlta ComplexidadeAmbulatorial  
e Hospitalar tem por diretrizes, a garantia do acesso da população a serviços de qualidade, com  
equidade e em tempo adequado ao atendimento das necessidades de saúde, mediante  
aprimoramento da política de atenção básica e da atenção especializada; o aprimoramento da  
rede de atenção às urgências, com expansão e adequação de unidades de pronto atendimento,  
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de serviços de atendimento móvel de urgências e centrais de regulação, articuladas às outras  
redes de atenção; e o fortalecimento da rede de saúde mental, com ênfase no enfrentamento da  
dependência de crack e outras drogas (RELATÓRIO ANUAL DE GESTÃO, 2016).  
Podemos definir a ABS como sendo um conjunto de intervenções de saúde no âmbito  
individual e coletivo, que envolve promoção da saúde, prevenção de doenças e agravos,  
diagnóstico, tratamento e reabilitação (RELATÓRIO ANUAL DE GESTÃO, 2016). É  
desenvolvida por meio de práticas gerenciais e sanitárias, democráticas e participativas, sob  
forma de trabalho em equipe, dirigidas às populações de territórios delimitados (território  
processo), das quais assumem responsabilidade. Orienta-se pelos princípios da universalidade,  
acessibilidade, continuidade, integralidade, responsabilização, humanização, vínculo, equidade  
e participação social. Ela é contato preferencial dos usuários, a assim chamada porta de entrada  
e centro de comunicação com toda a Rede deAtenção à Saúde. O município de Campina Grande  
possui a cobertura de 90,50% de Estratégia de Saúde da Família (ESF), com 580 Agentes  
Comunitários de Saúde (ACS), distribuídos na Rede Básica de Saúde, com cobertura de 87,73%  
da população estimada. Todavia, nem sempre o município teve esse percentual, e apesar de ser  
no Brasil um dos primeiros a implementar a lógica da ESF ainda na década de 1990 conforme  
aponta a pesquisa de Péret (2001), o índice de cobertura dessa política varia, chegando em 2017  
a uma cobertura de 80% conforme os dados do e-Gestor Atenção Básica do MS3.  
188  
A Diretoria de Atenção à Saúde e a Gerência de Atenção Básica são responsáveis pela  
Coordenação da Atenção Básica assim como de toda a rede assistencial dos serviços básicos  
em saúde no município (PMS, 2018). No dia 12/10/2021, em entrevista a um programa de  
televisão da cidade - Ideia Livre4 -, o Secretário de Saúde do Município, Dr. Gilney Porto,  
afirmou que atualmente o município conta com 114 Equipes de Saúde da Família, distribuídas  
em 80 Unidades, sendo que algumas unidades possuem 02 ou 03 equipes. Os estabelecimentos  
em sua maioria são próprios, seguidos dos alugados e do cedido pelo Estado. É importante  
destacar a contradição existente nos dados fornecidos pelo então secretário com relação às  
informações citadas acima, advindas de documento fornecido pela Secretaria Municipal de  
Saúde.  
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A Rede de Atenção Especializada Municipal constituída por 45 serviços ambulatoriais  
e hospitalares que oferecem atenção especializada e servem de retaguarda à atenção básica,  
prestam suporte no diagnóstico, tratamento de doenças e condições específicas de certos grupos  
3 Cf. e-Gestor Atenção Básica. Disponível em: <https://egestorab.saude.gov.br/index.xhtml>. Acesso em: 29 nov.  
2021.  
4 Disponível em: <https://www.youtube.com/watch?v=TeNLCAhDRRE>. Acesso em: 14 out. 2021.  
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O fundo público e a relação público x privado na política de saúde em Campina Grande/PB  
populacionais, tais como pessoas com necessidades especiais, patologias labiopalatais,  
distúrbios psíquicos, entre outros. De acordo com o Plano Municipal de Saúde, 2018, a rede  
hospitalar é formada por 10 (dez) hospitais, sendo 05 (cinco) públicos. De acordo com pesquisa  
realizada in loco são eles: Hospital Municipal Pedro I, Hospital Municipal Dr. Edgley, Hospital  
da Criança e do Adolescente, Hospital das Clínicas e Maternidade ISEA -; 01 (um) filantrópico  
- FAP -; e 04 (quatro) privados – CLIPSI, Hospital Antônio Targino, Hospital de Oftalmologia  
da UNIFACISA e Hospital João XXIII, respectivamente. Contudo, os dados disponíveis no  
CNES, tomando como referência o mês de outubro de 2021 nos indica que Campina Grande  
possui uma concentração de serviços privados de saúde, em especial aqueles que estão inseridos  
num regime jurídico de sociedade anônima aberta e empresas individuais conforme podemos  
observar no gráfico a seguir:  
Gráfico 01 – Estabelecimento de saúde em Campina Grande/PB segundo a natureza jurídica.  
8
Associação Privada  
2
Serviço Social Autônomo  
5
Fundação Privada  
1
Empresa Individual de Responsabilidade Limitada…  
42  
Empresa Individual de Responsabilidade Limitada…  
20  
Sociedade Simples Limitada  
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1
Sociedade Simples Pura  
2
Cooperativa  
73  
Empresário (Individual)  
240  
Sociedade Empresária Limitada  
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4
Sociedade Anônima Aberta  
140  
Município  
5
Autarquia Estadual ou do Distrito Federal  
2
Autarquia Federal  
7
Órgão Público do Poder Executivo Estadual ou do…  
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0
50  
100  
150  
200  
250  
300  
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Fonte: Cadastro Nacional dos Estabelecimentos de Saúde, 2021. Elaboração própria.  
O município conta ainda com um laboratório municipal com capacidade de realizar  
cerca de 50% da demanda para exames de patologia clínica, e contratualizados por meio de  
contratos de gestão com laboratórios privados e hospitais no atendimento de emergência, que  
realizam os demais 50% que formam a rede de Serviços de Apoio de Diagnóstico Municipal  
(PMS, 2018). Também possui um Sistema de Regulação SISREG com o módulo de marcação  
de consultas e exames a partir de agosto de 2017 para todas as equipes. Anteriormente, o  
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município usava o SIGSAÚDE através de ligações telefônicas que dificultava o acesso da  
população. Em 2016, foram marcados por esse sistema 20.090 (Vinte mil e noventa) consultas  
e exames. Após a implantação do SISREG, de agosto a dezembro de 2017, foram marcados  
276.000 (duzentos e setenta e seis mil) procedimentos, sendo 66.000 (Sessenta e seis mil) dos  
municípios pactuados e os demais de munícipes campinenses (RELATÓRIO ANUAL DE  
GESTÃO, 2017). No ano de 2018, a gestão municipal, aderindo ao processo de fortalecimento  
da Atenção Básica implantou o Prontuário Eletrônico (PEC – e-SUS) em todas as unidades  
básicas de saúde.  
De acordo com o PMS (2018), por financiamento saúde compreende-se o aporte de  
recursos financeiros para viabilização das Ações e Serviços Públicos em Saúde, implementados  
e executados com recursos próprios da União, Estado e Município. A Lei Complementar nº  
141/2012, afirma que é de responsabilidade dos três entes (União, Estados e Municípios) a  
garantia de fontes estáveis de financiamento das ações e serviços de saúde. Esta Lei dispõe os  
valores mínimos a serem aplicados, anualmente pelos três entes, estabelece os critérios de rateio  
dos recursos de transferências para a saúde e as normas de fiscalização, avaliação e controle  
das despesas com saúde nas três esferas de governo. Segundo a Lei nº. 141/2012, o Governo  
Federal aplicará, anualmente, o montante empenhado no exercício anterior acrescido da  
variação nominal do PIB, enquanto a quantia aplicada pelos Estados e Municípios será  
calculada com base na Receita Líquida de Impostos (RLI). Os governos estaduais aplicarão  
12% dos impostos que se referem aos arts. 155, 157 e 159 da CF-1988, e os municípios 15%  
do total arrecadado de impostos a que se referem aos arts. 156, 158 e o parágrafo terceiro do  
art. 159 da CF/88.  
190  
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No caso específico de Campina Grande, no tocante a aplicação de recursos próprios  
em Ações e Serviços Públicos em Saúde (ASPS) percebemos que inicialmente o município não  
vinha conseguindo aplicar o mínimo estipulado pela legislação, conseguindo apenas em 2005  
aplicar mais de quinze por cento do produto da arrecadação dos impostos, com variação  
percentual negativa para os anos posteriores e estabilização de aplicação mínima entre os anos  
de 2008 e 2010. Apenas em 2005, 11 após a estipulação da EC-29, é que o município consegue  
manter um patamar tendencial ao crescimento acima do mínimo exigido por lei, mas  
apresentando queda após o ano de 2016, e com uma linha tendencial (linha pontilhada do  
gráfico) à estabilização em torno de 20% conforme podemos observar no gráfico a seguir:  
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Gráfico 02 – Aplicação de recursos municipais de acordo com a EC 29/2000.  
30  
25  
20  
15  
10  
5
0
Fonte: SIOPS - Sistema de Informações sobre Orçamentos Públicos em Saúde, 2021.  
Elaboração própria.  
Contudo, a Portaria 3.992, de 28 de dezembro de 2017, alterou a Portaria de  
Consolidação nº 6/GM/MS, de 28 de setembro de 2017, que trata das normas sobre o  
financiamento e a transferência dos recursos federais para as ações e os serviços de saúde do  
SUS. A Portaria de Consolidação nº 6 havia incorporado o texto da Portaria 204/2007, a qual 191  
determinava que o financiamento e as transferências dos recursos federais para ASPS eram  
realizados através de seis blocos de financiamentos: Atenção Básica – Componentes: Piso da  
Atenção Básica Fixo (PAB Fixo); Piso da Atenção Básica Variável (PAB Variável); Média e  
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Alta Complexidade – Componentes: Teto financeiro da média complexidade ambulatorial e  
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hospitalar; Fundo de Ações Estratégicas e Compensação (FAEC) e Teto Municipal de Média e  
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Alta Complexidade (MAC); Vigilância em Saúde – Componentes: piso fixo da vigilância e  
promoção da saúde; vigilância sanitária e incentivo no âmbito do Programa Nacional de  
HIV/AIDS e outras DSTs; Assistência Farmacêutica – Componentes: básico da assistência  
farmacêutica; estratégico da assistência farmacêutica; medicamentos de dispensação  
excepcional; Gestão do SUS – Componentes: qualificação da gestão do SUS implantação de  
ações e serviços de saúde; Investimentos na Rede de Serviços de Saúde: composto por recursos  
financeiros a serem transferidos, mediante repasse regular e automático, do Fundo Nacional de  
Saúde para os fundos de saúde estaduais, municipais e do Distrito Federal, exclusivamente para  
a realização de despesas de capital, mediante apresentação do projeto encaminhado ao  
Ministério da Saúde (PMS, 2018).  
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Com a EC-95/2016, aprovada no governo Temer, que instituiu o novo regime fiscal no  
âmbito dos Orçamentos Fiscal e da Seguridade Social da União, o chamado teto de gastos  
públicos, a fixação de um teto não permite o crescimento do investimento, que acaba por se  
desvalorizar, especialmente considerando a inflação e o crescimento populacional (ABRASCO,  
2018). Desse modo, como a população continua crescendo, em todos os anos haverá  
crescimento negativo dos gastos per capita. Consequentemente, houve mudança na lógica de  
financiamento, a extinção dos seis blocos de financiamento para as transferências fundo a fundo  
dos recursos federais do SUS para Estados e Municípios. APortaria nº 3.992, de 28 de dezembro  
de 2017, publicada pelo Ministério da Saúde, trata da alteração das normas sobre o  
financiamento e a transferência dos recursos federais para as ações e os serviços públicos de  
saúde do SUS. Como principal mudança, a nova normativa estabeleceu que, a partir de 2018, o  
repasse dos recursos financeiros federais destinados ao financiamento das ASPS, transferidos  
aos demais entes federados na modalidade fundo a fundo, passam a ser organizados e  
transferidos na forma dos seguintes blocos de financiamento: Bloco de Custeio das Ações e dos  
Serviços Públicos de Saúde, composto pelos recursos oriundos dos programas, das estratégias  
e das ações que integravam os Blocos de Atenção Básica, Assistência Farmacêutica, Média e  
Alta Complexidade Ambulatorial e Hospitalar, Vigilância em Saúde e Gestão do SUS; e Bloco  
de Investimento na Rede de Serviços Públicos de Saúde, o qual determina uma única conta para  
recebimento de todos os recursos financeiros referentes ao Bloco de Investimento na Rede de  
Serviços de Saúde.  
192  
Por meio da alteração da Portaria de Consolidação nº 6/GM/MS, de 28 de setembro de  
2017, a Portaria nº 2.979, de 12 de novembro de 2019, institui o PPV, que estabelece o novo  
modelo de financiamento de custeio da APS no âmbito do SUS. A partir desta, o financiamento  
federal de custeio da ABS será constituído por: I - captação ponderada; II - pagamento por  
desempenho; e III - incentivo para ações estratégicas. O Previne Brasil equilibra valores  
financeiros per capita referentes à população efetivamente cadastrada nas Equipes de Saúde da  
Família e de APS, com o grau de desempenho assistencial das equipes somado a incentivos  
específicos, como ampliação do horário de atendimento (Programa Saúde na Hora), equipes de  
saúde bucal, informatização (Informatiza ABS), equipes de Consultório na Rua, equipes que  
estão como campo de prática para formação de residentes na ABS, entre outros tantos  
programas.  
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Diante do exposto, no subtópico a seguir iremos visualizar as inflexões do fundo  
público de saúde em Campina Grande entre os anos de 2016 a 2020. Iremos nos ater aos  
repasses de recursos às entidades privadas com o intuito de observarmos em que medida há de  
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O fundo público e a relação público x privado na política de saúde em Campina Grande/PB  
fato uma transferência significativa desses recursos para o âmbito privado.  
Principais estabelecimentos privados e filantrópicos de saúde em Campina  
Grande/PB: contextualização histórica  
A CLIPSI5, foi fundada em 05/08/1967. Nesse ano, era apenas uma casa com 09  
compartimentos, sendo dirigido pelo Dr. José Marcos de Lima na condição de Diretor  
Administrativo e Dra. Maria Madalena Crispim Lima como Diretora Clínica. O hospital foi  
iniciado com apenas 14 leitos, 02 médicos plantonistas e 30 funcionários. Os serviços prestados  
eram de atendimento pediátrico a nível ambulatorial e internação hospitalar. Na época a cidade  
não possuía nenhum Hospital Infantil e centenas de crianças faleciam de diarreia e/ou  
desnutrição. O atendimento pelo sistema público ocorria normalmente pelo antigo Instituto  
Nacional de Previdência Social (INPS), para as pessoas e seus dependentes, que portavam a  
Carteira Profissional com vínculo empregatício ou então nos postos de saúde do Estado e  
Município. Em 1984, a CLIPSI se tornou a primeira Unidade de Neonatologia, fundada em  
Campina Grande, qualificando o hospital como referência em toda a região. Também se deve  
dar destaque ao materno infantil, aliando-se à experiência de mais de 43 anos dedicados à  
criança, com o título Hospital Amigo da Criança, outorgado pela UNICEF, no dia 16 de abril  
de 1997.  
193  
A FAP6, localizada na cidade de Campina Grande – PB, foi fundada no ano de 1965  
pelo médico holandês Dr. Cornélius de Ruyter, sendo de início uma associação destinada a dar  
assistência médico-hospitalar para crianças carentes e colaborar com programas de medicina  
preventiva, ensino médico e de enfermagem, buscando uma maior capacidade de assistência e  
ampliação. O hospital da FAP se tornou um Centro de Referência Oncológica e de tratamento  
intensivo, sendo cerca de 90% dos seus atendimentos oriundos do SUS, atendendo a mais de  
148 municípios. O hospital da FAP é reconhecido como hospital de excelência nas  
especialidades de alta complexidade – radioterapia, quimioterapia e hemodiálise - e de demais  
serviços de média complexidade oferecidos à população. Atende a região metropolitana de  
Campina Grande.  
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No ano de 1928, através de uma ideia da Loja Maçônica “Regeneração Campinense”7,  
foi plantada a semente da criação de um hospital. Em 07 de setembro de 1932, foi criado o  
5Disponível em:  
6Disponível em: <https://www.hospitaldafap.org.br/>. Acesso em: 14 out. 2021.  
2021.  
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primeiro hospital da cidade, o Hospital Pedro I, em homenagem ao fundador da nacionalidade  
brasileira, o Grão Mestre e Imperador Dom Pedro I. O dinheiro da obra adveio da população,  
através de eventos promovidos pelos maçons, como festas, promoções e principalmente,  
doações. Segundo um ex-médico do hospital, Gilvan Barbosa, em entrevista ao Diário da  
Borborema, o hospital estava inicialmente destinado aos indigentes. Todavia, em função da falta  
de outras organizações semelhantes na cidade, a Maçonaria achou por bem estender essa  
assistência à população em geral, dividindo os serviços em Indigência e Casa de Saúde.  
Construído o hospital, aos poucos o Pedro I foi melhorando seu poder assistencial, sendo  
ampliado e consequentemente, acabando por receber dividendos do poder público, no que  
ajudou em muito a boa manutenção da casa de saúde. O hospital passou por uma grave crise  
financeira nos anos 90, quando chegou inclusive a ser ameaçado o seu funcionamento, porém,  
hoje conta com ampliação de leitos e bons equipamentos hospitalares.  
O Hospital Antônio Targino foi fundado no ano de 1967. Como “sonho” de um  
estudante de medicina, Dr. José Targino da Silva, então concluinte de Residência em Ortopedia  
em São Paulo/SP, tinha o objetivo de constituir uma Instituição de Saúde no município de  
Campina Grande/PB. No decorrer da residência foi adquirindo os aparelhos para implantar o  
serviço de saúde, todavia, quando enviado por via terrestre houve um acidente, o qual danificou  
todos os aparelhos. Com o passar dos anos, Dr. José Targino abriu o Hospital e denominou  
Hospital Antônio Targino, o nome do hospital fora em homenagem ao seu pai que morrera em  
1951. Inicialmente, o Hospital Antônio Targino era um ambulatório onde ele atendia juntamente  
com sua esposa, Dra. Marluce Agra Cariry Targino. O hospital foi crescendo e se tornou  
referência em traumatologia na região. Já na década de 1980, era o maior hospital em  
atendimento de urgência e emergência da região, tendo como slogan “O Hospital do  
Acidentado”, perdurando nesse patamar até o início dos anos 2000. Hoje o hospital conta com  
diversas especialidades, tais como: cirurgia plástica, otorrino, cardiologia, cirurgia Vascular,  
entre outras. Os atendimentos em sua maioria se dão através de convênios, não mais  
dependendo exclusivamente do SUS, atualmente tem como slogan “Restaurando Vidas”.  
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Repasse público x privado nos serviços de saúde no município de Campina  
Grande/PB nos anos de 2016-2020  
Em termos de financiamento público de saúde, iremos abordar alguns elementos  
inerentes à nossa pesquisa e que servem de elucidação para entendermos melhor a composição  
financeira em relação ao setor da saúde pública no município de Campina Grande/PB.  
Inicialmente apresentamos o repasse real (valor pago) do Fundo Municipal de Saúde aos quatro  
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O fundo público e a relação público x privado na política de saúde em Campina Grande/PB  
hospitais privados e filantrópico citados inicialmente. Além desses, pesquisamos o Hospital  
Municipal de Oftalmologia de Campina Grande/PB, um hospital público, de caráter privado,  
de média e alta complexidade. Posteriormente apresentaremos o repasse com valores  
deflacionados (correntes), referente aos quatro hospitais acima citados.  
No gráfico a seguir, podemos observar a quantidade de recursos que foram repassados  
às principais entidades privadas que ofertam serviços de saúde no município em valores reais:  
Gráfico 03: Repasse real do FMS para hospitais do município de Campina Grand  
no período de 2016-2020.  
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Fonte: SAGRES Online – TCE/PB, 2021.  
O gráfico demonstra o quantitativo aplicado nos hospitais delimitados pela pesquisa  
nos anos de 2016-2020. De acordo com os valores reais o Hospital da FAP lidera no tocante ao  
repasse, seguido do Hospital Antônio Targino, Hospital da CLIPSI, Hospital Pedro I e o  
Hospital de Oftalmologia de Campina Grande.  
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Diante da inflação anual, se faz necessário deflacionar esses dados (reais), após  
deflacionados, eles se classificam como valores constantes, que nos levam a resultados  
divergentes ao ilustrado no gráfico acima, conforme o gráfico a seguir aponta o Hospital de  
Oftalmologia de Campina Grande a frente dos demais no repasse dos recursos, seguido do  
Hospital da FAP, Hospital da CLIPSI, Hospital Antônio Targino e o Hospital Pedro I com  
crescimento negativo:  
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Jaidete de Oliveira Correia - Alessandra Ximenes da Silva  
Gráfico 04: Repasse real (corrente) do FMS (%) para hospitais do município de Campina Grande/PB no  
período de 2016-2019.  
Fonte: SAGRES Online – TCE/PB, 2021.  
Levando em consideração que o ano de 2020 foi um ano atípico, devido a pandemia da  
COVID-19, iremos nos deter nos gráficos abaixo aos anos de 2016-2019:  
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Gráfico 05: Repasse real (corrente) do FMS (%) para hospitais do município de Campina Grande/PB no  
período de 2016-2019.  
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Fonte: SAGRES Online – TCE/PB, 2021.  
Neste, podemos observar que, em valores reais, durante os anos de 2016-2019 apenas  
dois dos cinco hospitais cresceram positivamente, o Hospital da CLIPSI e o Hospital da FAP.  
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O fundo público e a relação público x privado na política de saúde em Campina Grande/PB  
Quando inseridos em valores constantes, apenas a CLIPSI cresce positivamente.  
Conforme podemos observar:  
Gráfico 06: Repasse deflacionado (constante) do FMS (%) para hospitais do município  
de Campina Grande/PB no período de 2016-2019.  
Fonte: SAGRES Online – TCE/PB, 2021.  
Ao acessarmos as informações disponibilizadas pelo CNES, vamos observar em  
relação a esses quatro hospitais, uma diferença em relação à oferta de serviços de saúde. No  
quadro a seguir elencamos esses serviços, o que nos fornece uma dimensão em termos de  
atendimento de que esses estabelecimentos realizam:  
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Quadro 01 – Serviços de Saúde ofertado em Campina Grande/PB (Hospitais selecionados).  
Estabelecimento  
Serviços ofertado  
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FAP  
Atenção à Doença Renal Crônica; Cirurgia Vascular; Medicina Nuclear (Serviço  
Terceirizado) Serviço de Atenção ao Pré-natal, Parto e Nascimento; Serviço de  
Atenção em Saúde Bucal; Serviço de Diagnóstico de Laboratório Clínico; Serviço de  
Diagnóstico por Anatomia Patológica e/ou Citopato; Serviço de Diagnóstico por  
Imagem; Serviço de Endoscopia; Serviço de Farmácia; Serviço de Fisioterapia;  
Serviço de Hemoterapia (Terceirizado); Serviço de Oncologia; Serviço de Suporte  
Nutricional; Serviço de Urgência e Emergência; e Transplante.  
Ambulatorial; Internação; Serviço de Apoio à Diagnose e Terapia; e Serviço de  
Urgência.  
Ambulatorial; Internação; Serviço de Apoio à Diagnose e Terapia; e Serviço de  
Urgência.  
Ambulatorial; Internação; Serviço de Apoio à Diagnose e Terapia; Serviço de  
Urgência.  
Antônio Targino  
Clipsi  
Pedro I  
Fonte: CNES/MS, 2021.  
Pelos dados do CNES expostos no quadro acima, observamos que o hospital da FAP é  
o que apresenta uma maior diversidade de serviços. A oncologia e os serviços de hemodiálise  
chamam atenção pelo fato de exigirem um nível de complexidade em termos de equipamentos  
e insumos, que encarecem o serviço, demandando assim, quantidade maiores de recursos, além  
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Jaidete de Oliveira Correia - Alessandra Ximenes da Silva  
disso, há o fato de que em Campina Grande, apenas a FAP oferta esse tipo de serviço, para os  
residentes no município, bem como para outras localidades e Estados conforme já  
mencionamos anteriormente.  
Em que pese tais fatos, observamos que do ponto de vista histórico, os estudos de  
Medeiros Júnior (2017) e Rotta (1997) já revela que o montante de recursos destinados ao setor  
privado em Campina Grande era bastante expressivo e que o modelo de atenção à saúde em  
Campina Grande poderia ser caracterizado como hospitalocêntrico-privado. Essa mesma  
caracterização é afirmada pelos estudos de Júnior (2017), o qual afirma que comparado a outros  
municípios importantes no país, há ainda no município uma grande concentração financeira em  
torno dos gastos com estabelecimentos privados. Tal fato pode ser constatado no gráfico abaixo.  
Gráfico 07: Participação da Assistência Hospitalar e Ambulatorial (Nordeste).  
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Fonte: Medeiros Júnior, 2017, p. 85.  
De acordo com Medeiros Júnior (2017), o município de Campina Grande é o que  
dispensa o maior percentual de gastos para este tipo de atenção. Em contrapartida, o município  
de Mossoró dedica apenas 22,92% a assistência hospitalar e ambulatorial. Natal, João Pessoa e  
Recife, tradicionais centros hospitalares, representam significativamente menos que Campina  
Grande neste tipo de assistência, demonstrando, portanto, a concentração de gastos com saúde  
na assistência hospitalar no município de Campina Grande/PB, em detrimento da atenção  
básica.  
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Nesse sentido, do ponto de vista da série histórica analisada, quando observamos, em  
termos históricos, a cobertura da Atenção Básica no município de Campina Grande,  
entendemos uma inversão de prioridades no que tange a essa atenção, uma vez que, a cobertura  
da (ESF) tem apresentado um decréscimo percentual no ano de 2020, saltando de 86,48% em  
2015 para 85,04%. Todavia, segundo informações do e-gestor, em termos de Atenção básica o  
município conseguiu uma cobertura territorial de 100% a partir do ano de 2018, mesmo que em  
termos de números de ACS tenha havido uma queda percentual tanto no número de  
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O fundo público e a relação público x privado na política de saúde em Campina Grande/PB  
profissionais contratados, quanto na cobertura territorial realizada por esses Agentes,  
diminuindo de 83,77% em 2015 para 75,92% em 2020 conforme podermos observar na tabela  
a seguir:  
Quadro 02 – Estratégia Saúde na Família e Atenção Básica em Campina Grande/PB.  
Número de  
Agentes  
Comunitários de Comunitários  
Cobertura  
Agentes  
Nº Equipes  
Saúde da  
Família  
Cobertura  
Atenção  
Básica  
Ano  
Cobertura ESF  
Saúde  
587  
588  
549  
583  
575  
541  
de Saúde  
83,77%  
83,47%  
77,42%  
81,70%  
81,14%  
75,92%  
2015  
2016  
2017  
2018  
2019  
2020  
101  
101  
100  
101  
104  
101  
86,48%  
86,02%  
84,61%  
85,04%  
88,06%  
85,04%  
96,94%  
97,41%  
98,96%  
100%  
100%  
100%  
Fonte: e-Gestor Atenção Básica, 2021.  
Tais informações podem ser corroboradas quando constatamos em entrevista datada  
em 12/10/2021, com o atual secretário municipal de saúde do Município, Dr. Gilney Porto, o  
então pesquisador e economista Geraldo Medeiros Júnior apontou o estudo e indagou o porquê  
dessa forte concentração de recursos na média e alta complexidade no município. Foi  
respondido pelo secretário que esse fato se deve a Campina Grande ser uma área estratégica de  
localização tanto para a Paraíba como para os demais Estados, e também devido às  
universidades existentes no município. Pontuou ainda que nesses outros Estados o serviço  
disponibilizado não se caracterizava tão bom quanto em Campina Grande.  
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Gráfico 08: Participação no FMS (%) de Campina Grande/PB para Atenção Básica e Média e Alta  
Complexidade no período de 2016-2020.  
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Fonte: Elaboração própria, a partir do SAGRES Online – TCE/PB, 2021.  
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Jaidete de Oliveira Correia - Alessandra Ximenes da Silva  
No gráfico acima podemos observar a participação do FMS em porcentagem. No  
período de 2016-2020, a Atenção Básica totalizou 86,30%, ou seja, menos de 100% durante os  
cinco anos. A Média e Alta complexidade anualmente seguiu na linha aproximada a 80% no  
período de 2016-2019, tendo um decréscimo no ano de 2020 com 58,26%. Pode-se observar  
também que nos anos de 2018 e 2019 houve um aumento tanto na Atenção Básica, como na  
Média e Alta complexidade. no ano de 2020, ano atípico, por estarmos enfrentando a pandemia  
da COVID-19, é perceptível uma queda de recursos tanto na Atenção Básica, como na Média e  
Alta complexidade.  
Gráfico 09: Participação no FMS (%) de Campina Grande/PB para Atenção Básica e Média e Alta  
Complexidade no período de 2013-2015.  
200  
Fonte: Elaboração própria, a partir de Medeiros Júnior, 2017.  
Ao averiguarmos os dados de um ponto de vista crítico, nos parece, há em Campina  
Grande uma determinação estrutural histórica que perpassa a conformação no município desde  
a década de 1990. Essa determinação diz respeito ao caráter hospitalocêntrico que congrega  
grande parte dos recursos do Fundo Municipal de Saúde a Alta e Média Complexidade, e que  
também pode ser caracterizada pelos repasses de recursos aos quatro maiores hospitais em  
atuação.  
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Esse fato é comprovado por exemplo, através dos estudos de Rotta (1997) Medeiros  
Júnior (1997; 2017) e Nogueira (2017). Esses pesquisadores identificam, em distintos  
momentos históricos, uma concentração de recursos na Alta e Média Complexidade e na  
medicina de caráter privado. Tal panorama se caracteriza como uma ameaça aos princípios do  
SUS, em especial o da Universalidade, que tem no trabalho dos Agentes Comunitários de Saúde  
uma lógica de promoção à Saúde. Em que pese o aprofundamento desse caráter  
hospitalocêntrico na cidade de Campina Grande, refletimos também que de um ponto de vista  
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O fundo público e a relação público x privado na política de saúde em Campina Grande/PB  
engendrado no marco da totalidade, a cidade não destoa da lógica nacional, especificamente a  
empreendida pelo governo Bolsonaro, eleito em 2018. Há uma forte tendência ao  
ultraneoliberalismo penetrado por esse governo para a destruição de serviços públicos, entre  
eles o da saúde, através de formas de mercadorização e de implementação de um SUS  
operacional mediante ações como o Previne Brasil que tendem a aprofundar as carências na  
atenção básica a partir de uma lógica excludente e não universalista.  
Além disso, especialmente no caso de Campina Grande, é preciso que se chame  
atenção para as oligarquias locais que fazem a manutenção do poder político desde o período  
de redemocratização do Brasil em 1988. Nesse caso, o poder político, especialmente no  
momento histórico que nos dedicamos, é bastante influenciado pelo grupo Cunha Lima, com  
figuras conhecidas no cenário nacional como o ex-senador Ronaldo Cunha Lima, e o também  
ex-senador Cássio Cunha Lima, figuras políticas que realizam a manutenção do poder local  
através de uma visão neoliberal, mantendo assim a iniquidade na distribuição dos recursos  
locais e fazendo a manutenção do poder econômico nas frações locais da burguesia que  
compõem o cenário municipal na cidade. Não é à toa que Bruno Cunha Lima, atual prefeito da  
cidade, e seu antecessor, Romero Rodrigues, ambos da oligarquia Cunha Lima, são apoiadores  
do governo Bolsonaro, não sendo rara às vezes a demonstração pública de concordância com  
as ideias do atual presidente da república em aparições públicas e em visitas que Bolsonaro  
realizou na cidade.  
201  
Faz-se necessário destacar a dificuldade enfrentada em obter os dados necessários à  
pesquisa. Por várias vezes nos dirigimos ao CMS e nos deparamos com a ausência de  
documentos oficiais comprobatórios, os quais deveriam estar naquela sede, a exemplo de  
Programações e Relatórios Anuais. Vale salientar que os documentos disponibilizados pelo  
órgão de controle social estavam com os dados “maquiados,” dificultando assim o nosso  
processo de pesquisa.  
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Chama atenção que, ao questionarmos o CMS sobre o porquê da ausência de recursos  
referente ao Hospital Pedro I nos anos de 2018 e 2019, a resposta foi que não eram sabedores  
de tais informações. Fica perceptível que esse instrumento de controle social não funciona da  
forma como deve atuar, seguindo os princípios do SUS. O acompanhamento, a execução e a  
avaliação das ações desenvolvidas pelo SUS estão sendo insuficientes, não estão atendendo a  
expectativa. Esses resultados traduzem uma tendência, em que, predomina a concepção do  
modelo hospitalocêntrico - privado no município de Campina Grande/PB e que precisamos  
incitar um controle social mais ativo.  
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Jaidete de Oliveira Correia - Alessandra Ximenes da Silva  
Considerações finais  
Na presente elaboração teórica partimos do entendimento que a política de saúde  
enquanto dever do Estado é direito de todos, é uma conquista oriunda dos objetivos do  
movimento de RSB. O SUS não está concluso e acabado, como também não permanece nos  
arquivos do passado recente: o mesmo é colocado na agenda política da contemporaneidade no  
processo de contrarreforma da política de saúde.  
A partir da análise da crise estrutural do capital nos anos de 1970, algumas questões  
decorrentes desse processo demandaram uma mais aprofundada investigação, como o processo  
de reestruturação produtiva, a financeirização do capital e o neoliberalismo. Assim, foi possível  
identificar que o capitalismo em sua fase financeirizada vem efetivando um vasto processo de  
reestruturação produtiva, com graves repercussões para o trabalho, sendo sua expressão mais  
evidente a precarização das relações de trabalho e seus rebatimentos nas políticas sociais.  
A Reforma Administrativa do Aparelho do Estado, guiada pela ideologia neoliberal,  
que teve início no Brasil em meados dos anos 1990 ocasionou várias alterações na execução e  
financiamento das políticas sociais. O capital financeirizado, em busca de novos nichos para a  
sua acumulação, tem continuamente se apropriado do fundo público. Os mecanismos utilizados  
para tanto têm sido as contrarreformas, as quais, assentadas no ideário neoliberal, defendem a  
retirada do Estado da execução de suas funções, repassando-as para a iniciativa privada, nesse  
processo as políticas sociais tem sido um dos alvos principais.  
202  
O processo de contrarreforma na política de saúde, em curso, vem ocorrendo de forma  
substancial nas diversas esferas de governo e se agrava, uma vez que está na agenda a extinção  
do SUS. A política de saúde vem sofrendo inúmeros ataques por meio do Congresso Nacional  
o que intensificam os retrocessos, assim como as implicações desastrosas para a saúde no Brasil.  
No atual governo de Jair Bolsonaro, a política de saúde vem sendo acometida de forma nefasta,  
através da mudança da legislação vigente suscitando a quebra dos princípios do SUS,  
acarretando em um retrocesso para a política da saúde e desencadeando a expropriação de  
direitos.  
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O projeto privatista possui interesses econômicos na área da saúde, tem muita  
influência interna no Estado e é responsável pelo funcionamento de parte dos serviços do SUS.  
Por causa disso, existe um maior interesse que a política de saúde seja subfinanciada para existir  
um mercado complementar nesse campo e, com isso, possa absorver cada vez mais os recursos  
do SUS. Uma medida drástica do governo foi a EC-95, o congelamento dos gastos por 20 anos,  
cujos impactos para a política de saúde são enormes. É preciso lutarmos pela revogação da EC-  
95 e pela retomada do investimento social.  
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O fundo público e a relação público x privado na política de saúde em Campina Grande/PB  
Por meio da pesquisa realizada no município de Campina Grande/PB, podemos  
reafirmar que, o modelo hospitalocêntrico-privado constatado no início dos anos 1990  
prevalece. O FMS de Campina Grande continua investindo mais em Média e Alta  
Complexidade, em detrimento da Atenção Básica. Verificamos que, esse modelo tem por  
objetivo transferir recursos do fundo público para o setor privado, transformando unidades  
hospitalares públicas em espaços de lucratividade. Se faz necessário que aconteça uma inversão  
de investimentos, se invista mais em atenção primária, ou seja, na promoção e prevenção, para  
que, posteriormente, esse gasto com a média e alta complexidade seja reduzido. É necessário  
também um investimento maior nos serviços públicos, mais ESF, mais insumos, mais serviços  
de qualidade.  
À promoção e à prevenção da saúde devem ser prioritárias. Todavia, é perceptível o  
crescimento do mercado de serviços privados. Dessa forma, o SUS é precarizado, distanciando-  
se do SUS legalmente instituído, flexibiliza os princípios político-emancipatórios que orientam  
sua racionalidade, em nome da modernização e aperfeiçoamento do SUS.  
Cabe ressaltar que o estudo ora apresentado não se esgota neste trabalho. Algumas  
questões precisam ser desveladas, a exemplo da ausência de repasse a um dos hospitais  
pesquisados – Hospital Pedro I -, nos anos de 2018-2019. É imprescindível compreender que  
os gastos com saúde pública necessitam ser problematizados, uma vez que a sociedade  
brasileira tem seus problemas estruturais para uma análise das políticas sociais, em especial a  
política de saúde. Desse modo, espera-se que este estudo possa instigar outras reflexões, dada  
a pertinência do tema e a necessidade de análises críticas da realidade em que está inserido o  
objeto.  
203  
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Referências bibliográficas  
CAMPINA GRANDE. Secretaria Municipal de Saúde. Plano Municipal de Saúde (2014-2017).  
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_______. Relatório Anual de Gestão - 2016. Campina Grande/PB: Secretaria Municipal de  
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Saúde, 2017.  
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de  
Domicílios:  
Campina  
Grande,  
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Disponível  
em:  
Revista Libertas, Juiz de Fora, v. 23, n.1, p. 181-204, jan./jun. 2023. ISSN 1980-8518  
Jaidete de Oliveira Correia - Alessandra Ximenes da Silva  
2021.  
MARX, Karl. O capital: crítica da economia política. Livro I. Trad. Rubens Enderle. São Paulo:  
Boitempo, 2013.  
MEDEIROS JÚNIOR, Geraldo. Economia e Administração Política da Saúde: Análises das  
dinâmicas do capital e do Estado na Gestão do SUS no Brasil e em Campina Grande. 2017.  
144 f. Tese (Doutorado) Curso de Planejamento Urbano e Regional, Universidade Federal  
do Rio de Janeiro (UFRJ), Rio de Janeiro/RJ, 2017.  
NOGUEIRA, K. W. A. da S. Administração política da saúde: uma análise das ações em saúde  
do ano de 2016 na cidade de Campina Grande, Paraíba. 2017. 94f. Trabalho de Conclusão  
de Curso (Graduação em Administração) Universidade Estadual da Paraíba, Centro de  
Ciências  
Sociais  
Aplicadas,  
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Disponível  
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municipalização da saúde. Mestrado em economia, UFPB, série em debate, n. 68, ago. 1997.  
SALVADOR, Evilasio. Fundo Público e Seguridade Social no Brasil. São Paulo: Cortez, 2010.  
Acesso em: 04 out. 2021.  
204  
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Revista Libertas, Juiz de Fora, v. 23, n.1, p. 181-204, jan./jun. 2023. ISSN 1980-8518  
DOI 10.34019/1980-8518.2023.v23.40576  
Expropriação em tempos de capitalismo: o  
trabalho reprodutivo e o impacto na vida das  
mulheres  
Expropriation in times of capitalism: reproductive work and the impact on  
women's lives  
Priscilla Brandão de Medeiros*  
Resumo: O artigo apresenta o debate acerca das  
marcas da expropriação na vida das mulheres  
em tempos de capitalismo, colocando como  
central o prisma histórico da submissão do  
trabalho feminino, entendido mediante uma  
análise feminista marxista, como fundamental  
na geração do valor. Metodologicamente,  
caracteriza-se como um estudo bibliográfico,  
ancorado pelo materialismo histórico-dialético,  
por entender que aparência – por mais  
importante que seja no desvelamento dos  
fenômenos – não traduz a essência do real.  
Conclui-se que o capitalismo, juntamente com o  
patriarcado e o racismo, sustentam um pilar  
Abstract: The article presents the debate about  
the marks of expropriation in women's lives in  
times of capitalism, placing as central the  
historical prism of the submission of female  
work, understood through a Marxist feminist  
analysis, as fundamental in the generation of  
value. Methodologically, it is characterized as a  
bibliographical study, anchored by historical-  
dialectical materialism, for understanding that  
appearance – however important it may be in  
unveiling phenomena – does not translate the  
essence of reality. It is concluded that  
capitalism, together with patriarchy and racism,  
support an intertwined pillar of oppression,  
exploitation, domination and precariousness  
that plague women's lives, since they have in  
reproductive work, which is performed free of  
charge by women - in its majority -, and treated  
as something innate to female existence and  
alien to capital, is fundamental for the condition  
of maintenance and subsistence of the main  
commodity that generates capital: the  
workforce.  
imbricado  
de  
opressões,  
explorações,  
dominações e precarizações que assolam a vida  
das mulheres, uma vez que tem no trabalho  
reprodutivo, o qual é realizado gratuitamente  
pelas mulheres – em sua maioria –, e tratado  
como algo inato a existência feminina e alheio  
ao capital, é fundamental para a condição de  
manutenção  
e
subsistência da principal  
mercadoria que gera o capital: a força de  
trabalho.  
Palavras-chaves:  
Trabalho  
reprodutivo;  
Keywords: Reproductive work; Capitalism;  
Capitalismo; Mulheres.  
Women.  
Recebido em: 14/03/2023  
Aprovado em: 18/05/2023  
*
Bacharela em Serviço Social pela Universidade do Estado do Rio Grande do Norte (UERN). Especialista em  
Docência no Ensino Superior pela Universidade Potiguar (UNP) e em Gestão Pública da Organização em Saúde  
pela Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF). Mestra em Serviço Social e Direitos Sociais pela Universidade  
Estadual da Paraíba (UEPB). Doutoranda pelo PPGSS/UFRN. ORCID: https://orcid.org/0000-0003-2183-6141  
Revista Libertas, Juiz de Fora, v. 23, n.1, p. 205-227, jan./jun. 2023. ISSN 1980-8518  
Priscilla Brandão de Medeiros  
Introdução  
A história das mulheres é atravessada por um construto de invisibilidades e  
naturalizações. De um lado, há relações que fincam a submissão e a secundarização do trabalho  
feminino não remunerado; de outro, há a invisibilidade quanto ao reconhecimento delas como  
sujeitos de direitos.  
Com o advento do capitalismo e as várias formas de expropriação da existência  
humana, as mulheres foram também apropriadas e expropriadas material, política e  
socialmente, uma vez que, apoiado no patriarcado, que é secular, o capitalismo utilizou do  
binômio dominação/exploração e intensificou a opressão de classe, gênero e, com o racismo,  
de raça dentro da classe trabalhadora.  
O trabalho reprodutivo – aqui compreendido como as esferas do cuidado, a sustentação  
emocional cobrada às mulheres, as atividades domésticas, a procriação e a criação –, o qual não  
é remunerado, tornou-se parte do cotidiano das mulheres como sendo uma atribuição  
naturalizada socialmente e como estratégia direta do capital e, por isso é visto como não  
trabalho, sendo tratado como “função social das mulheres”, portanto, sem valorização.  
É importante apresentar que não há a produção do valor na realização do referido  
trabalho, mas há diretamente uma relação quando as mulheres contribuem para a reprodução  
da parcela da força de trabalho que estão inseridas nos espaços produtivos, o que coloca a  
importância de aprofundar os estudos acerca da reprodução social realizada por estas como  
parte fundamental na geração desse valor e de sua valorização.  
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Diante disso, o presente artigo tem como proposta discorrer e analisar, criticamente,  
sob os aspectos que afetam a vida das mulheres a partir do contexto da expropriação da vida e  
utilização da sua condição de gênero, classe e raça para ser responsabilizada pela reprodução  
humana – e na sociabilidade vigente é a responsável pela reprodução da mercadoria mais  
especial para o engendro do capital.  
Como percurso metodológico, esse estudo apresenta uma direção de análise qualitativa  
de cunho bibliográfico, guiada pelo método do materialismo histórico dialético, por  
compreender que a aparência da realidade – um aspecto fundamental para desvelamento dos  
fenômenos – não apresenta os determinantes que a traduzem, sendo, portanto, necessário  
investigar e compreender a essência enquanto totalidade crítica.  
Revista Libertas, Juiz de Fora, v. 23, n.1, p. 205-227, jan./jun. 2023. ISSN 1980-8518  
Expropriação em tempos de capitalismo: o trabalho reprodutivo e o impacto na vida das mulheres  
Por fim, ressaltamos a relevância social desse artigo por compreender o realce na  
discussão acerca da expropriação da vida das mulheres e o lugar que o trabalho reprodutivo  
assume como estratégia direta de manutenção do capitalismo, patriarcado e racismo, podendo  
oferecer uma reflexão social crítica – marxista. Academicamente, a relevância se dá no sentido  
da potencialização dos estudos feministas marxistas, de modo a impulsionar a importância  
desses para o despertar da construção do projeto societário de emancipação humana,  
coadunando com a direção social hegemonicamente assumida pelo Serviço Social.  
O capitalismo e seus elementos predatórios: as marcas da expropriação da vida da  
classe trabalhadora  
O processo de expropriação do tempo e da vida dos(as) trabalhadores(as) é inerente ao  
contexto de industrialização no capitalismo. Fontes (2018) aponta que expropriação é a  
transformação de tudo aquilo que traduz os meios de vida em capital. Ou seja, é o ocultamento  
das necessidades, desejos e afetos humanos em detrimento dos interesses do capital, uma vez  
que essa é base da relação social que sustenta o capitalismo.  
Tal fundamentação indica a amputação que tal modo de produção conduz quando as  
possibilidades de existência da humanidade, o que reflete diretamente na forma de vida e na  
própria organização política da classe trabalhadora.  
207  
Para corroborar com a direção crítica, é importante entender, inicialmente, o que é  
expropriação a partir do entendimento de Marx ([1867] 2017, p. 786). Segundo ele é:  
O processo que cria a relação capitalista não pode ser senão o processo de  
separação entre o trabalhador e a propriedade das condições de realização de  
seu trabalho, processo que, por um lado, transforma em capital os meios  
sociais de subsistência e de produção e, por outro, converte os produtores  
diretos em trabalhadores assalariados.  
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Ou seja, o ato de expropriar – e que no capitalismo isso ocorre efetivamente – se dá  
pela separação dos indivíduos de tudo que coaduna com as condições sociais que geram a  
produção e reprodução da vida, o que não acontece passivamente – assim como nada nesse  
modo de produção. É um processo com traços violentos e ilegítimos, os quais impactam  
diretamente na vida individual e coletiva das pessoas, das sociedades. Sobre isso, Fontes (2018,  
p. 19) traz que “o nascimento histórico e concreto do capitalismo resulta em enormes violências  
e poreja sangue”.  
Portanto, falar sobre a categoria expropriação remete-nos a perceber a centralidade  
atual que ela possui quando se vivencia tempos de perplexa instalação da barbárie e da  
descartabilidade humana, colocando os interesses econômicos/materiais como protagonistas  
diante de qualquer condição de existência. Isso fica claro quando Marx apresenta que na  
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Priscilla Brandão de Medeiros  
condição do trabalho assalariado os seres humanos são reduzidos a trabalhadores(as), sem que  
sejam vistos(as) como dotados(as) de subjetividades além das necessidades mínimas e  
biológicas que garantam manterem-se vivos(as).  
Contudo, aos retirar as pessoas das suas propriedades de terra e usurpar-lhes os  
instrumentos de trabalho, o capitalismo os(as) conduz a venda da força de trabalho como sendo  
a única possibilidade de garantir a sobrevivência diante dessa sociabilidade. Tudo em prol do  
lucro e da geração exponencial da riqueza, a qual não é socialmente compartilhada.  
N’O Capital ([1867] 2017) Marx vai destacar alguns processos que exemplificam as  
brutais formas de violências sofridas pela população no que é, por ele, tratado como período da  
Acumulação Primitiva. O autor enfatiza como o capital – enquanto relação social –, para  
manter-se, precisa da existência dos(as) trabalhadores(as) e, por isso, toma-os(as) como posse  
e faz da sua força de trabalho a única mercadoria que, nas relações de trabalho, mediante sua  
venda, possibilitem sua manutenção. E de forma ainda mais esdrúxula, gera um exército de  
reserva que o serve, quando tem milhares de trabalhadores(as) buscando vender sua força de  
trabalho, uma vez que não há como acoplar todos(as), sendo essa a raiz que estrutura as relações  
capitalistas, dada a geração da mais valia e o barateamento da força de trabalho em sua relação  
de venda nesse sistema.  
A expropriação, é importante destacar, não é uma discussão que assume recortes  
“somente” com vieses pretéritos, pelo contrário. Na contemporaneidade ela se intensifica e se  
mantém tão presente dentro das relações capitalistas como qualquer outro traço caracterizador  
dessa sociabilidade, todavia, salienta-se, com aspectos mais devastadores. Mota e Tavares  
(2016) apontam aspectos advindos do neoliberalismo que evidenciam de modo concreto os  
traços da expropriação nos tempos presentes. As autoras,  
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os processos de privatização, mercantilização e as supressões de direitos  
sociais e trabalhistas são expressões dessas expropriações contemporâneas,  
revelando-se como o principal meio de utilização da reprodução capitalista.  
(MOTA; TAVARES, 2016, p. 235).  
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Para que não se perca a totalidade da discussão, faz-se necessário percorrer  
historicamente o processo de acumulação do capital, buscando compreender a expropriação, e  
para isso, faz-se imperativo analisar tais nuances.  
Sobre isso, Marx ([1867] 2017) vai tratar das relações de trabalho mediante o  
assalariamento do proletariado, de modo que a expropriação se fundará mediante a efetivação  
do contrato social (contrat social) do tipo original no período de formação das colônias.  
Contudo, é importante destacar que nas colônias ainda se vislumbrava um processo  
que não coaduna, efetivamente, com a separação entre o trabalhador e suas condições de  
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Expropriação em tempos de capitalismo: o trabalho reprodutivo e o impacto na vida das mulheres  
trabalho, “entre ele e sua raiz, a terra [...]”, como aponta Marx ([1867] 2017, p. 838). Ou seja,  
ainda havia traços de uma relação baseada na indústria doméstica rural.  
Daí cabe refletir: onde perceber os entornos perversos do capitalismo?  
Para essa resposta, parafraseamos Marx ([1867] 2017, p. 839) ao tratar da metáfora da  
beleza do capital:  
A grande beleza da produção capitalista consiste em que ela não só reproduz  
constantemente o assalariado como o assalariado, mas, em relação à  
acumulação do capital, produz sempre uma superpopulação relativa de  
assalariados [...] Mas nas colônias essa bela fantasia se faz em pedaços.  
Isso se justifica pelo processo de transformação dos assalariados em camponês ou  
artesão independente, o que finda numa relação de exploração mais contundente, que evidencia  
que o capital não se abstrai dessa relação.  
Assim, a tendência histórica da acumulação primitiva conduz a transformação direta  
de escravizados e servos – quando vistos os cenários históricos da escravidão e do feudalismo  
– em trabalhadores assalariados que perdem sua condição de liberdade – antes também  
apropriada a partir das relações de escravatura e servidão – só que de modo ainda mais perverso  
quando tem a expropriação concreta dos meios de subsistência, a qual repousa sob a exploração  
do trabalho alheio.  
Ou seja, é a constituição da propriedade privada dos meios de vida, o que, aponta  
Marx, é a antítese da propriedade social e coletiva, que não há condições de ser efetivada em  
tempos de capitalismo, pois o que era socialmente apropriado e compartilhado passa agora a  
ser de posse de pequeno grupo que expropria outros, a partir de um vandalismo cruel das  
relações de vida.  
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Assim, e de forma articulada a tudo que esse modo de produção faz, acresce a  
expropriação dos proprietários privados, apontado por Marx como a nova forma de  
expropriação, pois haverá a liquidez dos pequenos pelos grandes capitalistas, a partir do jogo  
das leis imanentes da produção, mediante a centralização dos capitais.  
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Com isso, vemos a lógica destrutiva e acirrada que o capitalismo impõe, restando à  
manutenção somente dos supercapitalistas, numa raiz de aguçamento também da exploração,  
opressão e precarização dos moldes de vida daqueles que a eles se sobrepõe por uma única  
necessidade: sobreviver!  
Assim, percebemos o desenvolvimento da força cooperativa do processo de trabalho  
em escala cada vez maior e avassaladora no tocante a geração de miséria, pobreza e subtração  
das formas de existência.  
Com a diminuição constante do número de magnatas do capital, que usurpam  
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e monopolizam todas as vantagens desse processo de transformação, aumenta  
a massa da miséria, opressão, servidão, degeneração, exploração [...]. sob a  
hora da derradeira da propriedade privada capitalista, os expropriadores serão  
expropriados. (MARX, [1867] 2017, p. 187).  
Com isso, é notório que o cercamento das terras e a usurpação dos meios de produção,  
consequentemente, dos meios de vida – aqui no entendimento da garantia da sobrevivência –  
marcam a instalação da propriedade privada e das formas originárias da expropriação, como  
aponta Fontes (2018).  
A subsunção real do trabalho direciona a forma de realização do trabalho não mais  
para a satisfação humana, mas para atendimento, primeiro, das necessidades do capital.  
O processo de mercadorização da força de trabalho, portanto, é o ponto de partida para  
a elevação máxima que o capitalismo gera quanto a privação dos meios de produção e dos  
produtos do trabalho humano, uma vez que “o capital só surge quando o possuidor de meios de  
produção e de meios de subsistência encontra no mercado o[a] trabalhador [trabalhadora] livre  
como vendedor[a] de sua força de trabalho [...]” (MARX, [1867] 2017, p. 245).  
O enfoque acerca desse recorte faz-se acompanhar por uma divisão social do trabalho,  
a qual marca a separação e distinção entre o valor de uso e valor de troca – categoria central no  
modo de produção capitalista – dos produtos fruto da relação de trabalho no referido modo.  
Para Marx ([1867] 2017) o processo de geração do valor da força de trabalho é  
determinado pelo tempo de trabalho necessário para a produção, assim como acontece com  
todas as mercadorias na sociabilidade capitalista, porém, há que se destacar que mesmo sendo  
uma mercadoria, há um aspecto essencial que nos diferencia de qualquer outra: a capacidade  
racional e teleológica. Essa mercadoria especial, como assim ele também trata, exige sua  
criação, procriação e reprodução social. O(a) trabalhador(a) precisa manter-se vivo(a) para  
atender os interesses de compra de sua força de trabalho.  
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Marx também observa que a lei da oferta e a da procura governa a produção  
dos homens, tanto quanto a de qualquer outra mercadoria, e que o trabalhador  
como ‘capital vivo’ é uma forma especial mercadoria que tem a infelicidade  
de ser um capital ‘carente’. Mas, como resultado da lei da oferta e da procura,  
‘suas propriedades humanas o são apenas na medida em que o são para o  
capital, que lhe é estranho’. Isso significa que as necessidades humanas só  
podem ser satisfeitas até o limite em que contribuem para a acumulação de  
riqueza. (MÉSZÁROS, 2006, p. 133 – 134).  
Sobre isso, Saffoti (2013) traz que “o trabalhador não mais produz diretamente para  
seu consumo, mas produz artigos cuja existência independe de suas necessidades enquanto  
produtor singular” (SAFFIOTI, 2013, p. 54), ou seja, o(a) trabalhador(a) vende sua força de  
trabalho para obter, nessa relação, as condições que gerem o atendimento a sua sobrevivência  
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– e aqui no sentido do atendimento biológico, uma vez que o capital nega essa condição de  
atendimento genérico – e, consequentemente, ainda produz o que é estranho a si e, por vezes,  
às suas necessidades.  
O estranhamento produzido na relação de trabalho capitalista cimenta a separação  
brutal entre o(a) trabalhador(a) e suas satisfações enquanto ser humano social e genérico, o que  
coloca como a mais perversa forma de coisificação humana em detrimento do mundo das coisas  
– que geram valor – produzindo uma liberdade falseada.  
Dessa forma, sendo o trabalho o momento que gera o privilégio da práxis, por sintetizar  
as relações entre os homens [e as mulheres] com a natureza, relação essa a qual se baseia  
unicamente para o atendimento de suas necessidades individuais e coletivas, o que também  
desperta as relações entre os próprios homens, se constitui como a via de excelência através da  
qual se procede o desvelamento da verdadeira posição que as categorias históricas ocupam na  
totalidade dialética na sociedade capitalista e das respectivas relações que elas mantêm entre si  
e com o todo social no qual se inserem.  
Assim, a partir desse fundamento, compreende-se que o alijamento dos(as)  
trabalhadores(as) de todas as suas escolhas privadas, passam agora a uma administração do que  
o processo de produção impõe no sentido de que o(a) trabalhador(a) não se perceba como gente,  
mas como coisa. E tudo o que é reflexo da condição social das pessoas é tido como “natural”  
nessa sociabilidade capitalista. A pobreza, por exemplo, é tida como condição natural e divina  
– uma vez que vale destacar a apropriação dos aspectos abstratos espirituais como forma de  
concretizar esse processo – e por uma consequência do não esforço individual do(a)  
trabalhador(a).  
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A propriedade do capital apresenta-se aos seres sociais como natural, eterna,  
necessidade econômica primeira, forma histórica indeclinável e potência  
exterior à qual precisam dobrar-se para assegurar sua subsistência. A  
propriedade do capital recobre e reatualiza todas as formas precedentes de  
propriedade, as defende de maneira nominal (juridicamente), enquanto as  
devasta em permanência. (FONTES, 2018, p. 43).  
Ou seja, as expropriações geram violências diretas ao próprio reconhecimento crítico  
da capacidade de existência, o que impacta, e é estratégico, na consciência de classe. Acerca  
disso, Fontes (2018) traz que “o latégo do capital” se abate quando há jornada de trabalho e em  
sua ausência, o que se evidencia como uma relação de cercamento da condição legítima de  
sobrevivência na ordem ditada pelo capital.  
Tal complexidade mostra o influxo do capital, quando a própria dinâmica social  
esmaga o conjunto dos(as) trabalhadores(as) e o conjunto social de suas vidas, reduzindo  
também a natureza aos seus ditames. Isso nos leva a crer como a propriedade do capital é  
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dinâmica, expropriadora.  
Dessa forma, é entendido que a expropriação é a base social que legitima a relação do  
capital, com suas relações devastadoras e que assolam todo o tecido individual e coletivo de  
modo atemporal.  
Sendo que, na contemporaneidade, esse processo se intensifica mediante a lógica  
imperialista do capitalismo, a qual reitera as bases de extração do valor a partir do trabalho e  
agora de forma mais intensificada, uma vez que os bancos e os juros são a base central.  
Esse chamado atual a capitalização, a partir da forma investimento e do  
empreendedorismo popular, desconsiderando as relações estruturais que regem a dinâmica do  
capital – sendo transcorrida como bases ilusórias de resistência da classe trabalhadora – fixam  
um aguçamento da alienação e da exploração e precarização.  
Com isso, a população pobre é a mais afetada através do incentivo aos microcréditos  
e todas as vias de endividamento, principalmente da moradia. O Estado Social – que também é  
mínimo para o social, consequentemente, para as políticas públicas –, por sua vez, e também  
como aliado direto aos interesses do capital, sucateia o conjunto das políticas sociais,  
principalmente as de Seguridade Social (previdência social, saúde e assistência social), de  
forma a alimentar o chamado a vinculação privada como sendo a mais eficaz das vias, e ainda,  
impulsionando o discurso de ausência de recursos para destinação a tais políticas. Ou seja, o  
que é direito social e investimento público, se passifica diante da falácia da responsabilização  
social.  
212  
As necessidades vitais são novamente tomadas pelo capitalismo sob o prisma de um  
Estado que “não pode” se responsabilizar com a proteção social, dado o discurso da crise –  
quando na verdade há um direcionamento de quase 50% do PIB para amortização dos juros da  
dívida pública, reduzindo e retirando sempre das parcelas do financiamento da saúde e  
educação, principalmente –, e com isso, tem-se uma classe trabalhadora que trabalha mais, que  
ganha menos e que agora precisa financiar o acesso às políticas sociais por necessidade direta,  
como é o caso da educação, saúde e moradia.  
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Nesse contexto, assim como tudo no capitalismo, há uma apropriação da força de  
trabalho também das mulheres, as quais têm suas condições de vida perversamente abaladas  
em solos capitalistas, uma vez que a divisão sócio – sexual e racial do trabalho se intensifica  
ainda mais em tempos de crises.  
Subordinadas ao domínio da propriedade do capital, as atividades do cuidado e da  
reprodução da vida, enquanto atividades expropriadas contemporaneamente, as mesmas tendem  
a converte-se em relação mediada pelo capital. Corroboramos com Fontes (2018, p. 58) ao tratar  
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Expropriação em tempos de capitalismo: o trabalho reprodutivo e o impacto na vida das mulheres  
que “a industrialização do cuidado e da reprodução não viria para emancipar as mulheres, mas  
para submetê-las ao capital”.  
Diante disso, o ponto a seguir discorrerá, criticamente, acerca de como as mulheres,  
mediante as relações fruto de uma sociabilidade capitalista – patriarcal – racista – sexista tem  
suas vidas expropriadas pela punção real do capital sobre suas vidas e sua força de trabalho.  
Do privado ao público somos expropriadas: analisando os reflexos do capitalismo  
– racismo – patriarcado na vida das mulheres  
Iniciamos do ponto de vista que o entendimento da divisão sócio – sexual e racial do  
trabalho, e sua consequente superação, é uma das pautas fundamentais para o feminismo  
marxista. Partimos da compreensão que há uma divisão do trabalho em dois tipos: o produtivo  
e o reprodutivo, sem que sejam tratados de modo separado, mas dialeticamente intrínsecos. Nós  
mulheres não produzimos valor na realização do trabalho doméstico não remunerado, por  
exemplo, mas estamos diretamente ligadas quando contribuímos para a reprodução social e  
humana da parcela da força de trabalho – majoritariamente masculina – que estão nos espaços  
produtivos. E quando estamos vendendo nossa força de trabalho, na condição de assalariadas,  
a vinculação se dá maciçamente nas profissões voltadas ao campo da reprodução social.  
Contrariamente, os espaços de produção estão vinculados aos homens, o que evidencia um  
recorte sexista na produção/geração do valor.  
213  
Sobre a emblemática discussão acerca da inserção das mulheres nos espaços  
produtivos, Federici (2021) traz que tal inserção nunca liberou as mulheres da responsabilização  
do trabalho doméstico – e acrescentamos do trabalho reprodutivo – pelo contrário, houve a  
intensificação da jornada de trabalho feminina e, como discorre a autora citada “significou  
menos tempo e energia para a luta” (FEDERICI, 2021, p. 30).  
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É notório que historicamente essa dicotomia na ocupação das esferas produtiva e  
reprodutiva constituiu fator importante para a submissão da mulher e a hierarquização das  
ocupações e funções destinados a ambas os sexos.  
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[...] a divisão entre esfera produtiva e reprodutiva fortaleceu a hierarquia e a  
desigualdade entre homens e mulheres. A esfera produtiva é a da valorização,  
da produção da riqueza e, portanto, é tida como um espaço privilegiadamente  
masculino. A esfera da reprodução social – aqui entendida como as atividades  
necessárias para garantir a manutenção e reprodução da força de trabalho -, é  
considerada um espaço feminino. (CISNE, 2014, p. 88).  
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É sob essa reflexão que Saffioti (2004) chama a atenção – com a qual concordamos –  
de perceber os contornos sociais numa perspectiva histórica, e acrescenta-se de totalidade.  
Defendemos que as transformações socioeconômicas e políticas têm influência notória no  
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desencadear das relações sociais, já que o capital se apropria de tais como forma de intensificar  
seus interesses a partir das determinações do que vem a ser do homem e o que vem a ser mulher  
mediante uma força de hierarquização e separação. Por isso, torna-se indissociável pensar as  
relações de classe, gênero e raça de modo isolado.  
[a] divisão social do trabalho tem dois princípios organizadores: o princípio  
de separação (existem trabalhos de homens e trabalhos de mulheres) e o  
princípio de hierarquização (um trabalho de homem “vale” mais do que um  
trabalho de mulher). (KERGOAT, 2003, p. 01).  
Por mais que na realização do trabalho reprodutivo às mulheres não produzam uma  
mercadoria, sem as atividades ligadas a reprodução social não haveria a produção social, uma  
vez que o Estado se ausenta de prestar esse atendimento – aqui compreendido como proteção  
social –, como ainda, se apropria das construções patriarcais, sexistas, classistas e raciais para  
fincar o lugar que as mulheres devem assumir.  
Assim, quanto mais o Estado omite a criação de políticas públicas para atender as  
necessidades da esfera reprodutiva, mais oneroso isso se torna para as mulheres, pois se não há  
investimento na saúde pública, são as mulheres que estão se responsabilizando pelos cuidados,  
se não há educação integral, são as mulheres que educam e etc. Portanto, cria-se a naturalização  
que o trabalho reprodutivo é uma função social incumbida às mulheres e, por isso,  
desconsiderado como trabalho.  
214  
Ou seja, como apresenta Saffioti (2013), as mulheres nascem e crescem sob o prisma  
da “ideologia do outro”, por sermos vistas como as que servem para servir ao outro, não sendo  
tratadas como detentoras de desejos e vontades alheias a isso.  
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Dessa forma, precisamos ampliar o olhar crítico para compreensão que a casa (o lar),  
a esfera privada, não é um lugar neutro para pensar o trabalho e suas formas de explorações,  
opressões e dominações, ou seja, as “três formas canônicas” como aponta Kergoat (2010, p.  
95). É preciso fomentar essa perspectiva política de entender as nuances que atravessam o  
cotidiano das mulheres mediante a destinação de responsáveis pela reprodução social.  
Parafraseamos Federici (2021, p. 56) quando a mesma indaga: “onde as mulheres  
podem ser mais produtivas: na linha de montagem ou na linha de produção de bebês?”. Ela faz  
esse questionamento crítico justamente para despertar as amarras do capital no tocante a  
compreensão que o capital precisa das mulheres enquanto corpos de procriação, reprodução e  
manutenção de força de trabalho, como também, quando inseridas na esfera produtiva, tê-las  
como força de trabalho barata.  
Os estudos de algumas economistas feministas, como Antonopoulos (2008) e  
Razavi (2007), mostraram como essa “economia invisível”, formada por  
atividades laborais de cuidados, não remuneradas – como a preparação de  
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Expropriação em tempos de capitalismo: o trabalho reprodutivo e o impacto na vida das mulheres  
alimentos, o cuidado de crianças, doentes e população idosa, as atividades de  
limpeza do lar, entre outras –, desempenha um papel fundamental na  
reprodução da força de trabalho e possibilita o crescimento econômico dos  
países, representando uma espécie de “subsídio” às economias nacionais. Um  
“subsídio” que se ergue contra as próprias mulheres que realizam esse  
trabalho, impedindo-as de ampliar suas capacidades, alcançar sua autonomia  
econômica e exercer outros direitos. (BARAJAS, 2016, p. 24).  
Historicamente – porém uma história, em parte, ocultada – as mulheres assumem  
espaços e se protagonizam nas lutas e militâncias denunciando o racismo, o capitalismo, o  
patriarcado, a partir de uma construção coletiva feminista.  
Corroboramos com Kergoat (2010, p. 100) ao defender a consubstancialidade das  
categorias gênero, raça e classe, entendendo-as como um nó imbricado, como também defende  
Saffioti, pois “é o entrecruzamento dinâmico e complexo do conjunto de relações sociais, cada  
uma imprimindo sua marca nas outras, ajustando-se às outras e construindo-se de maneira  
recíproca” que faz perceber a totalidade, entendendo e enxergando os intercruzamentos e  
interpenetrações que formam o “nó”. A percepção defendida pela autora se traduz no  
rompimento da compreensão mecanicista das relações sociais, o que afeta consubstancialmente  
a totalidade social, pois ao considerar as análises com prismas geométricos, ou seja, fincadas  
sob a lógica da intersecção, adição, por exemplo, perde-se as determinações que engendram as  
referidas categorias enquanto parte de um plano real do cotidiano sob uma perspectiva  
materialista.  
215  
O casamento (ou contrato social) e a maternidade são os catalizadores para o  
aprisionamento da mulher, uma vez que, além de corresponderem aos interesses da família  
burguesa e do capitalismo, direcionam o destino das mulheres como únicos ao atendimento  
desses vínculos. É como se nossa existência estivesse (esteja, pois ainda vigora essa forma  
histórica cisheteropatriarcal) condicionada, como atributo de felicidade, ao matrimônio e a  
maternidade. Todavia, o que se busca, de fato, é exatamente tornar nós mulheres como  
verdadeiras “fábricas sociais” (FEDERICI, 2021) da reprodução da força de trabalho.  
A origem dessa divisão sócio sexual foi fortemente influenciada a partir do surgimento  
da família monogâmica – isso ocorre na transição para as sociedades de classes – a primeira  
estratégia é o rompimento da perspectiva coletiva pela busca da sobrevivência. Com as  
sociedades de classes, o individualismo é gerado e apregoado entre os sujeitos contrariando a  
coletividade. A colaboração “perde” lugar para a concorrência.  
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Para Gama (2014, p. 47), o cuidado é concebido “como uma atividade feminina  
geralmente não remunerada, sem reconhecimento nem valorização social”. E isso será ainda  
mais evidenciado com a constituição do modelo de família monogâmica.  
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Vale ainda considerar que com a entrada massiva da mulher no mundo do trabalho  
produtivo – mais precisamente em meados de 1970 – ocorreu a transferência da atribuição das  
atividades domésticas para outras mulheres. Mostrando então, que o trabalho doméstico  
continua, hegemonicamente, como encargo feminino. Tal constatação é evidenciada no que traz  
Sorj (2004) quando faz uma análise da marca cultural que as mulheres carregam no tocante a  
responsabilização com a família. Em pesquisa realizada para analisar como se dava a divisão  
sexual do trabalho na esfera doméstica, a autora apresenta que:  
[...] em 96% dos domicílios pesquisados, a principal responsável pelas tarefas  
domésticas era uma mulher. Além disso, quando outra pessoa participava das  
responsabilidades pelo trabalho doméstico, em 49% dos casos tratava-se  
também de uma mulher. (SORJ, 2004, p. 112).  
E ainda sob essa análise, recai o viés de raça e classe, uma vez que a mulher que  
ocupará a função do cuidado doméstico do lar de outrem será, na sua maioria, a mulher negra  
e pobre. É importante frisar, que mais recentemente, principalmente no Brasil, esse trabalho  
doméstico realizado por essa outra mulher tem um caráter de trabalho visibilizado, uma vez que  
será remunerado e passa a constituir a lógica do mercado. Mas, o que é importante ser destacado  
é a continuidade da realização do trabalho doméstico apenas por mulheres. A delegação do  
trabalho doméstico de uma mulher para outra.  
E mais, quando há uma comparação da divisão das tarefas domésticas entre homens e  
mulheres, os dados comprovam que permanece como sendo da mulher a responsabilidade pela  
sua execução, mesmo que os homens, minimamente, se incluam nestas. Para evidenciar esse  
aspecto, segundo Cisne (2014, p. 84 - 85), com base em uma pesquisa realizada pelo PNAD –  
Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios – do IBGE – Instituto Brasileiro de Geografia e  
Estatística – em 2011, é evidente que continua mínima a participação masculina na realização  
das tarefas domésticas quando comparada com os dados de 2001. Salientando que, segundo  
Pinheiro (2016), até 2001 não havia a mensuração estatística do tempo de uso na realização de  
atividades domésticas e de cuidado entre homens e mulheres pela PNAD e IBGE. Foram  
inseridas nesse ano, mas ainda sem o teor teórico político das discussões de gênero, todavia, já  
se considera como um ganho, uma vez que instigou os movimentos sociais – feminista  
especialmente – a pensar e fomentar pesquisas e debates acerca das políticas públicas voltadas  
ao campo da reprodução social. Ou seja, é um indicador nitidamente recente, o que evidencia,  
em parte, os muitos limites em tratar esse debate como questão de política de Estado.  
Para além dessa organização social do trabalho, os indivíduos se veem imersos em  
uma divisão do trabalho que agrega condicionantes, como o gênero, raça e classe. A partir de  
determinado momento histórico, se configura uma fragmentação das tarefas para homens e  
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Expropriação em tempos de capitalismo: o trabalho reprodutivo e o impacto na vida das mulheres  
mulheres, constituindo-se, assim, a divisão sexual do trabalho.  
Nogueira (2006) vai analisar ainda que é na família que ocorrem as primeiras  
manifestações da divisão social e sexual do trabalho. Onde ela irá afirmar, calcado em Marx e  
Engels (1997), que a mulher e os(as) filhos(as), dentro do núcleo familiar, são encarados com  
“escravos” do homem, esposo e pai, respectivamente.  
Então, o espaço privado foi destinado às mulheres e, socialmente, isso passou a ser  
visto com o algo naturalizado. Foi na família que as mulheres vivenciaram suas primeiras  
formas de submissão. Na família monogâmica, constituída e oriunda junto às sociedades de  
classes, couberam as mulheres o papel de procriação, cuidado com o lar e filhos(as). Ou seja,  
“a divisão do trabalho na família havia sido a base para a distribuição da propriedade entre o  
homem e a mulher” (ENGELS, 2012, p. 203-204).  
Para compreender os ditames que perpassam a opressão feminina quanto a divisão  
sexual do trabalho “a família [torna-se] uma importante chave para o entendimento histórico da  
exploração e opressão sobre as mulheres” (CISNE, 2014, p. 81). É nela que se fixam as bases  
tidas como naturais da submissão e precarização do trabalho da mulher.  
Na verdade, o lugar da mulher sempre tinha sido em casa, mas durante a era  
pré-industrial a própria economia centrava-se na casa e nas terras cultiváveis  
ao seu redor. Enquanto os homens lavravam o solo (frequentemente com a  
ajuda da esposa), as mulheres eram manufatoras, fazendo tecidos, roupas,  
velas, sabão e praticamente tudo o que era necessário para a família. O lugar  
das mulheres era mesmo em casa – mas não apenas porque elas pariam e  
criavam as crianças ou porque atendiam às necessidades do marido. Elas eram  
trabalhadoras produtivas no contexto da economia doméstica, e seu trabalho  
não era menos respeitado do que o de seus companheiros. (DAVIS, 2016, p.  
52).  
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Assim, percebe-se que a família, mesmo diante dos inúmeros avanços políticos, sociais  
acerca dessa instituição, continua como elemento importante para a reprodução do capital e das  
bases para sua apropriação, ou como diz Cisne (2014, p. 84) “é um modo de circulação e de  
consumação de bens e serviços baseados na exploração da mulher”.  
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Ou seja, é nesse espaço que se torna evidente o processo de (in)visibilização do  
trabalho realizado pelas mulheres, sendo este tido e tratado, historicamente como natural a elas.  
O aspecto mais importante da família na manutenção do domínio do capital  
sobre a sociedade é a perpetuação – e a internalização – do sistema de valores  
profundamente iníquo, que não permite contestar a autoridade do capital [...].  
(MÉSZÁROS, 2011, p. 271).  
Ao longo das sociedades, as relações de gênero construídas foram determinando as  
tarefas, deveres e profissões para homens e mulheres, determinando, portanto, a divisão sexual  
do trabalho. As mulheres sempre trabalharam, porém, na maioria das sociedades, elas trabalham  
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mais que os homens e não tinham o reconhecimento no que se refere à realização de trabalho,  
além de salários mais baixos (CISNE, 2014).  
A fim de compreender a divisão sexual do trabalho, buscamos em Kergoat e Hirata  
(2008) uma definição conceitual dessa categoria. As referidas autoras trazem a categorização a  
partir de estudos e vivências francesas, onde fundamenta a divisão sexual do trabalho através  
de dois recortes de entendimentos:  
[...] de um lado, uma acepção sociográfica: estuda-se a distribuição diferencial  
de homens e mulheres no mercado de trabalho, nos ofícios e nas profissões, e  
as variações no tempo e no espaço dessa distribuição; e analisa-se como ela se  
associa à repartição desigual do trabalho doméstico entre os sexos.  
(KERGOAT; HIRATA, 2008, p. 263).  
Contudo, entender e analisar a divisão sócio sexual e racial do trabalho precisa-se ir  
além da simples verificação de desigualdades apontadas mediante a contradição sócia histórica.  
Segundo as autoras citadas, é necessário mostrar que essas desigualdades são sistemáticas e  
“articular essa descrição com o real” (idem).  
É importante traçar caminhos que não apontem somente as constatações das  
desigualdades entre homens e mulheres, mas que possam compreender a origem do que envolve  
e desencadeia esse contexto, em um complexo dialético e de totalidade.  
Apartir desse traço histórico, percebe que tanto a mulher livre quanto a mulher escrava  
eram destinadas tarefas, na sua maioria, de cuidados dos(as) filhos(as) e a alimentação dos  
homens que iam para a caça e a pesca. Desde então, já ocorria uma divisão desigual das  
atividades, as quais se faziam perceptível à soberania do homem em relação à mulher e aos  
filhos(as).  
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Em 1831, quando a indústria têxtil ainda era o principal setor da nova  
Revolução Industrial, as mulheres constituíam a maioria do operariado. Nas  
fábricas de tecidos, espalhadas por toda a Nova Inglaterra, havia 38.927  
mulheres operárias e 18.539 homens. As primeiras jovens operárias [“mill  
girls”] haviam sido recrutadas nas famílias de agricultores locais. Em busca  
de lucro, os proprietários das indústrias apresentavam a vida nas fábricas como  
um prelúdio atraente e instrutivo para o casamento. (DAVIS, 2016, p. 72).  
Neste instante, pode-se perceber que a análise da divisão sócio sexual e racial do  
trabalho passava de uma divisão de uma relação de gênero para, também, uma relação de classe,  
uma vez que as mulheres dos camponeses e dos servos trabalhavam de forma mais acentuada  
do que as mulheres burguesas. As primeiras além de trabalhar na agricultura, cuidar dos  
filhos(as) e do lar, muitas vezes, eram as amas dos filhos(as) das burguesas. Entende-se, com  
isso, que a intensa jornada de trabalho da mulher já existe há séculos.  
Portanto, a realidade que marca a inserção das mulheres no mundo de trabalho  
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Expropriação em tempos de capitalismo: o trabalho reprodutivo e o impacto na vida das mulheres  
produtivo corrobora com os aspectos estruturais que refutam a expropriação real vivida por  
essas. Sobre isso, Davis (2016) destaca como se dava a realidade nas fábricas dos Estados  
Unidos – EUAem meados do séc. XIX: “Mas qual era a realidade da vida nas fábricas? Jornadas  
inacreditavelmente longas – doze, catorze e até dezesseis horas por dia –, condições de trabalho  
atrozes, alojamentos desumanamente lotados” (DAVIS, 2016, p. 72).  
Primando por uma abordagem marcada pela coextensividade entre gênero, raça/etnia  
e classe, enquanto categorias sociais imbricadas, consequentemente, vivenciadas  
indissocialmente pelas pessoas – e aqui focamos nas mulheres – as quais consideramos como  
não fixas e que são reflexo de processos históricos, não preexistentes de processos culturais,  
como trata a pós modernidade.  
Para enfatizar e parafrasear os dados apontados por Davis (2016) e fazermos uma  
análise temporal, trazemos os dados apontados por Sorj (2019, p. 106):  
[...] a mulher negra é a base do sistema de remuneração e ocupa as piores  
posições, indicando a convergência da tríplice opressão de gênero, raça e  
classe. A partir de um indicador de precariedade ocupacional, 39,1% das  
mulheres negras ocupadas estão inseridas em relações precárias de trabalho,  
seguidas pelos negros (31,6%), mulheres brancas (27,0%) e homens brancos  
(20,6%).  
Ou seja, o capitalismo, em seus traços perversos de coisificação humana, se apropria  
desses sistemas de dominação, opressão e exploração para demarcar suas estratégias e,  
consequentemente, impactar na vida das mulheres, aqui as pobres e negras de modo mais  
incisivo.  
219  
Sabendo que é a mais valia a maneira de ativação da acumulação capitalista, por via  
da exploração do trabalho, a qual não é explícita na relação de trabalho, dada a sua abstração,  
gera a não consciência desse processo por parte da classe trabalhadora, como ainda, a utilização  
da naturalização das construções sociais de gênero – delimitando o que é da mulher e o que é  
do homem – no intuito de obter a invisibilidade da esfera reprodutiva como necessária de  
responsabilização do Estado, e, com isso, gerando uma sobrecarga de trabalho para as mulheres,  
e, de modo mais bárbaro, para atendimento dos interesses do capitalismo.  
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Isso resulta no ocultamento da exploração sob a justificativa de uma aparente  
naturalização da divisão do trabalho, em que colocam os indivíduos em um lugar de  
atendimento as suas especificidades a partir de seu gênero.  
Dessa forma, é inegável afirmar que o capitalismo é um sistema que possibilita a  
vivência sem que haja curvas exponenciais de violência sobre a condição humana, pois, nem  
de longe, esse protagoniza em suas estratégias as necessidades humanas, mas sim, gera a  
intensificação dessa relação enquanto mercadoria, mediante a força de trabalho, gerando o  
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reducionismo humano a essa única condição.  
É importante frisar que no capitalismo as formas de opressão, exploração e  
precarização do trabalho se dão de forma seletiva e apresenta particularidades quanto  
analisamos sob os enfoques de classes, raça/etnia e gênero. E quando vistas a partir do mundo  
do trabalho, como mostra as passagens já em destaque trazidas por Davis (2016), vemos como  
se dão esses realces.  
Assim, corroboramos com Federici (2017) quando ela traz que o capitalismo está  
necessariamente ligado ao racismo e sexismo como bases alicerçantes de suas formas de  
opressão e exploração humana, e não como uma relação meramente simbiótica, mas dialética,  
uma vez que a exploração, expropriação atinge não “somente” as condições de trabalho das  
mulheres, mas suas formas de existência, ao passo, por exemplo, que naturalizam a violência –  
situação essa que se agrava pela naturalização secular do patriarcado e de suas formas de  
reprodução nas relações sociais.  
[...] entendemos o capitalismo também como sistema de dominação masculina  
de opressão, expropriação e exploração das mulheres que se mantém sob uma  
base material sólida e ancora-se numa economia doméstica e na violência  
sexista, a qual garante a produção diária e a reprodução da vida. A violência  
contra as mulheres não é um fenômeno específico dessa forma social, mas,  
nessa sociabilidade, torna-se necessária ao capital naquilo que é  
imprescindível: transformar tudo o que existe em mercadoria para produção  
de mais valor e, consequentemente, garantir a produção ampliada do capital.  
(BARROSO, 2018, p. 315).  
220  
O capitalismo, portanto, se utiliza dessas características demarcadas socialmente  
de modo a impactar diretamente na vida das mulheres, uma vez que sendo a esfera reprodutiva  
o espaço privilegiado e destinado a essas, é lá que devem primar suas atribuições e  
responsabilizações, justificando as bases de precarização como algo natural mediante os  
recortes sexistas, disfarçado, como traz Federici (2017), de sua condição não assalariada,  
caracterizada pelos serviços pessoais domésticos e reprodutivos, os quais impactam e servem  
diretamente ao funcionamento do capitalismo.  
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Daí, pensar a divisão sócio sexual e racial do trabalho, ou como traz Lobo (1991) a  
“nova divisão sexual do trabalho” a partir do emprego do capitalismo, é um debate necessário  
de ser potencializado no campo da academia, dado o rigor ainda secundarizado desse debate,  
principalmente em tempos de avanços reais do conservadorismo, apoiado nas práticas  
fundamentalistas mediante o discurso religioso.  
Então, a marca histórica de subordinação das mulheres aos homens, enquanto um  
ditame cisheteropatriarcal se solidifica nesses tempos de capitalismo de modo particular quando  
visto o trabalho assalariado, o qual é negado, inicialmente a essas, e quando as inserem, é de  
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modo precarizante e aliado aos trabalhos domésticos ou com reflexos da condição de  
reprodução social.  
Assim, cabe criticizar, para que não caiamos nas amarras da romantização teórica,  
como se deu/dá a inserção das mulheres no mundo produtivo e sua conciliação com a esfera  
reprodutiva, o que gera a intensificação da sua exploração do trabalho, como ainda, a  
desresponsabilização do Estado na elaboração/execução de políticas sociais que retire das  
mulheres esse peso do cuidado como evidência de sua identidade.  
No capitalismo há associação entre Mulher e Domesticidade se logra de modo  
permanente, assolando a divisão sócio sexual e racial do trabalho e negando seus reflexos na  
vida das mulheres, uma vez que apropriação dessa esfera reprodutiva – antes tida como natural  
nos moldes das sociedades pré-capitalistas – é agora tomada pelas engrenagens do capitalismo  
como forma de corresponder aos seus interesses.  
Federici (2017) chama atenção para uma crítica fundamental quando pensado esse  
processo de exploração particular das mulheres quando ela analisa o processo de serventia ao  
modo de produção supramencionado. A autora trata que são as mulheres as reais produtoras –  
quando visto as responsabilizações que as mulheres cumprem nos cuidados e atribuições  
domésticas – e reprodutoras – enquanto biologicamente responsáveis pela geração/reprodução  
humana – da mercadoria capitalista mais essencial: a força de trabalho.  
221  
Assim, vale muito no mundo de relações do capital o trabalho diariamente realizado  
pelas mulheres na esfera reprodutiva do cuidado e procriação, cabendo a elas [nós] também a  
direção desse cuidado, o qual deve corresponder a um jogo de interesses caracterizados em  
papéis sociais exigidos e “pré-elaborados” social e historicamente. O que isso quer dizer? O  
modelo de formação social sexista molda esse lugar das representações, em que ao homem se  
volta à virilidade, a esperteza, o domínio público; e as mulheres, a atenção doméstica, os  
cuidados, os atributos da calmaria. Portanto, ao pensar essa sociedade e responsabilizar as  
mulheres esse papel, ele não se faz livre de preceitos morais, pelo contrário, há uma gama de  
codificações que são necessárias para corresponder ao que socialmente de espera no  
cumprimento das exigências no âmbito reprodutivo.  
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As tradições de masculinização e feminização de profissões e tarefas se  
constituem às vezes por extensão de práticas masculinas e femininas: homens  
fazem trabalhos que exigem força, mulheres fazem trabalhos que reproduzem  
tarefas domésticas. Mas, mais do que a transferência das tarefas, são as regras  
da dominação de gênero que se produzem e reproduzem nas várias esferas da  
atividade social. (LOBO, 1991, 152).  
O capital usa, em prol de atender seus interesses, métodos e categorias como se fossem  
neutros na órbita da divisão social do trabalho. Perceber como se dá o contexto dessa divisão é  
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entender que não se trata de segregar a esfera produtiva da reprodutiva, mas, analisar como  
ambas são vistas e entrelaçadas ao modo do capital, recolocando espaços ditos masculinos e  
femininos ou no que Lobo (1991, p. 145) vai designar como sendo a “sexualização das  
ocupações”.  
É notório que as mulheres da classe trabalhadora são as mais precarizadas quanto aos  
postos de trabalho ocupados e, consequentemente, os salários recebidos. Sobre esse mesmo  
aspecto, Falquet (2008) trará a questão da utilização do “trabalho considerado feminino” como  
estratégia direta do Estado aliado ainda a obrigatoriedade da heterossexualidade como  
interesses de permanência da mulher inserida em relações de gratuidade e (des)valorização do  
seu trabalho.  
Portanto, problematizar a divisão sócio sexual e racial do trabalho, enquanto reflexo  
das marcas da reprodução social, criticamente e em uma perspectiva totalizante é ir além do  
que aparentemente está exposto e buscar ir à essência que envolve e complexifica esse cenário,  
a partir das múltiplas formas de intensificação e apropriação do uso da força de trabalho  
feminina e seus rebatimentos.  
A partir das construções sociais alicerçadas pelo sistema patriarcal, é a mulher que  
destina maior parte da sua jornada de trabalho nos afazeres e cuidados domésticos. Já a  
participação do homem nas tarefas do lar ainda se dá fincada na lógica da ajuda e em tempo  
reduzido quando comparado ao da mulher.  
222  
Dessa forma, é notório o processo expropriador na vida das mulheres, entendido como  
uma violência originária e intensificada nos crivos capitalistas, quando a essas [nós] o trabalho  
doméstico não remunerado é uma condição natural do seu processo de vida.  
E ao negar ou questionar esse lugar, a punição social – apoiada pelo patriarcado – se  
faz presente em múltiplas formas, como aponta Falquet (2016) ao enfatizar que a violência  
contra as mulheres, como principal expressão desse cenário, no espaço privado e público é  
entendida como um meio de garantir uma força de trabalho a preços muito baixos, ou mesmo  
sem remuneração, para manter a organização social que autoriza essa distorção: a estrutura  
patriarcal.  
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O patriarcado seria uma dessas estruturas, e a dominação masculina produto  
histórico de um trabalho contínuo de reprodução com o qual contribuem,  
especialmente, sujeitos singulares (homens com suas armas) e instituições,  
tais como: família, igreja, escola, Estado. (BARROSO, 2018, p. 336).  
A partir disso, queremos apontar e ratificar a indissociabilidade entre o patriarcado –  
racismo – capitalismo, os quais são tidos como o sistema de dominação – opressão que assola,  
principalmente, quando vistas as intensidades desse processo, a vida das mulheres.  
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Expropriação em tempos de capitalismo: o trabalho reprodutivo e o impacto na vida das mulheres  
Saffioti (1987) aponta como sendo um processo simbiótico o que interliga esses três  
sistemas de dominação – exploração. “Na realidade concreta, eles são inseparáveis, pois se  
transformaram, através deste processo simbiótico, em um único sistema [...], aqui denominado  
patriarcado – racismo – capitalismo” (SAFFIOTI, 1987, p. 60). Portanto, sem que seja desfeito  
esse “nó”, como aponta a autora, não conseguimos especialmente as mulheres, o alcance de  
uma sociabilidade livre de opressões, explorações e dominações.  
Isso faz perceber que a emancipação feminina só será alcançada com a eliminação do  
capitalismo, pois, segundo Mészáros (2011, p. 271):  
[...] dadas as condições estabelecidas de hierarquia e dominação, a causa  
histórica da emancipação das mulheres não pode ser atingida sem se afirmar  
a demanda pela igualdade verdadeira que desafia diretamente a autoridade do  
capital [...].  
Enquanto o capitalismo imperar a sociedade não vivenciará a emancipação humana,  
pois o capital trata de se apropriar das relações de classe, gênero e raça como forma de acirrar  
as relações interpessoais.  
[...] enquanto o relacionamento vital entre homens e mulheres não estiver livre  
e espontaneamente regulado pelos próprios indivíduos [...] não se pode sequer  
pensar na emancipação da sociedade da influência paralisante que evita a auto-  
determinação dos indivíduos como seres sociais particulares (MÉSZÁROS,  
2011, p. 268).  
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São notórias, assim, as “interdependências que marcam a vida profissional das  
mulheres e o processo familiar”, diz Bulport (1986, p. 16). Isso faz perceber, portanto, que há  
uma relação direta do trabalho ligado aos cuidados relacionados ao espaço familiar – doméstico  
– como atribuição das mulheres.  
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Portanto, tocar no debate – e fomentar a importância dos estudos – acerca do trabalho  
reprodutivo, principalmente em tempos de crise do capital, haja vista que as mulheres tendem  
a ter espaços e contextos de vida nitidamente mais precarizados, é realçar aspectos que tocam  
o trabalho das mulheres, espaços tidos como competência e lugar de mulher. Ou seja, é perceber  
a necessidade de construir uma agenda contínua de discussão acerca das relações sociais de  
gênero, raça e classe como raiz desse fenômeno, trazendo enquanto aspecto de ordem estrutural.  
A elas a vida era privada de liberdade política e social, ou como diz Lessa (2012, p.  
33) “sua razão social de viver perdeu a sociedade por horizonte e se resumiu às relações mais  
imediatas, locais [o lar e seus empregados]”.  
Acontece, então, nas sociedades capitalistas a marginalização do trabalho realizado  
pelas mulheres e isso refletirá na precarização e falta da valorização deste. Isto implica no não  
reconhecimento do trabalho feminino enquanto atividade útil e produtora de riqueza, mesmo as  
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que estão no nível do simbólico e subjetivo. Esta situação exclui a mulher enquanto sujeito da  
sociedade. Saffioti (2013, p. 69) coloca que o trabalho feminino foi implementado no  
capitalismo com o caráter de exploração.  
O processo de acumulação do capital nesta fase não apenas elimina menos  
trabalho do que a máquina está apta a fazê-lo; elimina, por vezes, o trabalho  
do chefe da família não porque tenha a nova sociedade subvertido a nova  
hierarquia familiar, mas porque a tradição de submissão da mulher a tornou  
um ser fraco do ponto de vista das reivindicações sociais e, portanto, mais  
passível de exploração.  
O mercado necessitava de força de trabalho, mas, não era – nem é – interesse dos  
capitalistas arcar com altos custos no pagamento de trabalhadores para que os mesmos cubram  
suas necessidades. Então, para isso, a utilização da força de trabalho feminina surge como  
possibilidade de trabalho e barateamento de força de trabalho, fazendo com que as mesmas não  
se percebam enquanto trabalhadoras, “não construindo, portanto, a identidade com a sua classe”  
(CISNE, 2012, p. 114).  
O discurso de responsabilização atribuída a figura da mulher quanto à naturalização  
desta no que se refere às atribuições contidas na esfera doméstica é algo presente até os dias  
atuais. Como afirma Mészáros, “a família está entrelaçada às outras instituições a serviço da  
reprodução do sistema dominante de valores” (MÉSZÁROS, 2011, p. 271). Isto ocorre devido  
o enraizamento, ainda vigorante, das representações fixadas com base no binômio  
homem/mulher, gerado pelo discurso conservador e de poder das instituições: Estado, Família,  
Escola, Igreja, por exemplo.  
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Considerações finais  
O esforço em colocar a discussão acerca da expropriação histórica das mulheres e a  
redução de suas vidas a procriação e reprodução da mercadoria especial para o capitalismo foi  
a atribuição maior desse estudo.  
Após a compreensão crítica, marxista e feminista, a respeito de enfoque de análise, foi  
possível ratificar o que já corrobora com a leitura e militância contemporânea que trata da  
necessidade de aprofundamento do debate central da Reprodução Social no campo dos estudos  
marxistas – e mesmo do serviço social.  
O chamado à construção da consciência de classe e, de modo especial a militante  
feminista, é aspecto primário nas considerações desse estudo. É urgente a necessidade do  
fortalecimento das bases de organização política da classe trabalhadora para que possamos  
construir uma agenda de luta ancorada nos princípios marxistas e feministas emancipatórios,  
uma vez que a revolução precisa chegar ao lar.  
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Expropriação em tempos de capitalismo: o trabalho reprodutivo e o impacto na vida das mulheres  
A gestão do cuidado ainda prevalece como algo naturalizado às mulheres, de modo a  
condicioná-las, desde o modelo prevalecente de educação sexista, a essa responsabilização dos  
entes que compõe sua esfera familiar; ou mesmo, a seguir profissões que coloquem essa  
demarcação do “trabalho de mulheres” como direção central, e para isso, tem-se na família  
monogâmica, enquanto “célula” burguesa, o cimento para a concretização dessas questões.  
É imperativo trazer para a centralidade da discussão marxista a pauta do trabalho  
reprodutivo como aspecto na geração do valor. É necessário fomentar esse debate  
trasversalizando com a perspectiva de totalidade que perpassa as relações sociais no  
capitalismo. Obscurecer esse aspecto é desconsiderar uma análise macro acerca de como se  
constituem essencialmente as relações sob o prisma estruturante.  
Assim, vê-se que a reprodução social precisa ser pauta de debate legítimo no campo  
dos movimentos sociais que buscam o alcance de uma nova ordem societária que vise romper  
com a pré-história das mulheres – o patriarcado –, parafraseando Marx ao tratar do capitalismo  
como a pré-história da humanidade.  
Não é possível pensar uma direção emancipatória sem considerar as opressões,  
explorações, dominações e discriminações de classe, gênero, raça/etnia, ou seja, sem considerar  
a diversidade humana e sua forma de apropriação pelo capital, de modo a corromper suas  
liberdades. É imperativo unificar as lutas, sem perder de vistas suas essências, para que a  
totalidade seja primada nesse horizonte coletivo.  
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Ainda é exigido as mulheres o cumprimento de “sua função social” quando se trata da  
realização do trabalho reprodutivo. O cuidado, o suporte emocional as suas famílias, a  
manutenção do espaço doméstico e dos que nesse convive, são aspectos que atravessam o  
cotidiano contemporâneo dessa parcela da humanidade. São elas que procriam, criam, cuidam,  
mantém o conjunto da classe trabalhadora.  
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Portanto, considera-se como fundamento analítico desse estudo que as mulheres são,  
dentro da mercadoria força de trabalho, a mercadoria especial da especial, dada sua condição  
central para permanência da vida e, aos interesses do capital, para geração do valor.  
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Revista Libertas, Juiz de Fora, v. 23, n.1, p. 205-227, jan./jun. 2023. ISSN 1980-8518  
DOI 10.34019/1980-8518.2023.v23.40800  
Estado brasileiro e a subserviência ao capital:  
traços da formação econômica brasileira  
Brazilian state and subservience to capital: traits of the Brazilian economic  
formation  
Everton Melo da Silva*  
Resumo: O Estado brasileiro historicamente  
constituiu-se subserviente ao capital  
internacional e nacional, o que nos provoca a  
analisar seu vínculo de dependência  
subordinação aos ditames do sistema do capital.  
Por meio de uma pesquisa bibliográfica, e  
ancorado no método materialismo histórico-  
dialético e teoria social de Karl Marx,  
desvendamos a gênese, a formação e o  
desenvolvimento do Estado brasileiro através  
das profícuas pesquisas de autores clássicos e  
contemporâneos da formação sócio-histórica do  
Abstract: The Brazilian State has historically  
constituted itself subservient to international  
and national capital, which leads us to analyze  
its bond of dependence and subordination to the  
dictates of the capital system. Through a  
bibliographical research, and anchored in the  
historical-dialectical materialism method and  
social theory of Karl Marx, we unveil the  
genesis, formation and development of the  
Brazilian State through the fruitful researches of  
classic and contemporary authors of the socio-  
historical formation of Brazil. It is understood  
that in order to unveil the current performance  
of the State and Brazilian capitalism under the  
fierce auspices of neoliberalism, it is crucial to  
apprehend the process of constitution of the  
state apparatus from the point of view of the  
critique of political economy, capturing the  
form that capital assumes in the dynamics  
Brazilian economy and the correspondence of  
the Brazilian State.  
e
Brasil. Entende-se que para desvelar  
a
performance atual do Estado e capitalismo  
brasileiro sob os auspícios feroz do  
neoliberalismo é crucial apreender o processo  
de constituição do aparato estatal sob o ponto de  
vista da crítica da economia política, capturando  
a forma que o capital assume na dinâmica  
econômica brasileira e a correspondência do  
Estado brasileiro.  
Palavras-chaves: Estado brasileiro; Formação  
Keywords: Brazilian state; Brazilian economic  
econômica brasileira; Capital.  
formation; Capital.  
Recebido em: 08/04/2023  
Aprovado em: 27/05/2023  
*
Assistente Social. Professor Adjunto do Curso de Serviço Social/Unidade Educacional Palmeira dos  
Índios/UFAL. Doutor em Serviço Social pela Universidade Federal de Alagoas. Líder do Grupo de Estudos e  
Pesquisas Economia Política e Sociedade (UFAL) e membro do Grupo de Estudos e Pesquisas Marxistas  
Revista Libertas, Juiz de Fora, v. 23, n.1, p. 228-251, jan./jun. 2023. ISSN 1980-8518  
Estado brasileiro e a subserviência ao capital: traços da formação econômica brasileira  
Introdução  
As reflexões aqui contidas neste artigo fazem parte dos resultados da pesquisa de  
doutoramento que teve como um dos objetivos analisar as particularidades do Estado brasileiro  
na dinâmica da formação e desenvolvimento do modo de produção capitalista. Compreendemos  
que, para entender o atual estágio do capitalismo brasileiro e as requisições ao Estado é  
essencial desvelar o processo de constituição do aparato estatal no Brasil sob o ponto de vista  
da crítica da economia política, capturando a forma que o capital assume na dinâmica  
econômica brasileira e a correspondência do Estado brasileiro.  
Nesta direção, o objetivo deste artigo constitui-se em apresentar o Estado brasileiro  
diante do vínculo de dependência e subordinação (heteronomia) do capital nacional em relação  
às demandas do capital internacional a partir da mediação da formação econômica do  
capitalismo brasileiro. Para alcançar tal objetivo, debruçamo-nos sobre autores clássicos e  
contemporâneos da formação sócio-histórica brasileira na tentativa de captar as principais  
determinações da realidade social. A abordagem histórica foi essencial, pois a concepção  
histórica da dialética marxiana parte da intenção e da ação de compreender as categorias que  
geram os processos históricos e os sujeitos partícipes desse processo, em suas particularidades  
e potencialidades.  
O artigo conta com duas seções, além desta breve introdução e considerações finais. Na  
primeira seção, apresentamos a constituição e desenvolvimento do Estado brasileiro por meio  
da análise da movimentação do capital e do capitalismo no Brasil, isto é, entre as demandas e  
requisições da economia nacional e internacional sobre o aparato estatal, principalmente com a  
industrialização hipertardia brasileira. Em seguida, desvelamos, na segunda seção, a  
configuração do regime militar-empresarial sob a dependência e subordinação ao capital  
estrangeiro e as tendências do neoliberalismo no Brasil. Nas considerações finais, sintetizamos  
algumas tendências do Estado brasileiro que servem para subsidiar análises sobre os desafios  
postos ao Serviço Social.  
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O processo de constituição do Estado brasileiro e a industrialização hipertardia  
associada à dependência do capital estrangeiro  
Na gênese e desenvolvimento do Brasil colônia não havia a formação de um Estado  
autenticamente brasileiro, nem um Estado com todas as suas dimensões institucionais, jurídicas  
e normativas. O que não significa que no território brasileiro não existiu, em sua gênese, a figura  
do Estado, até porque em qualquer sociedade de classe onde predomina a exploração do homem  
pelo homem há sempre uma forma de Estado. Explico: comumente, tem-se o Estado no Brasil  
Revista Libertas, Juiz de Fora, v. 23, n.1, p. 228-251, jan./jun. 2023. ISSN 1980-8518  
Everton Melo da Silva  
colônia como “[...] peças daquele Estado, apêndices dos órgãos centrais, sediados na  
metrópole.” (SODRÉ, 1990, p. 49). A economia colonial contava com um aparato estatal que,  
apesar de incipiente, fazia-se presente no processo de organização da economia e com a  
administração colonial. No modelo de Governo Geral, havia cargos administrativos de ouvidor-  
mor, provedor-mor e capitão-mor, responsáveis, respectivamente, por questões jurídicas,  
impostos e defesas militares contra os estrangeiros indesejáveis, os indígenas e os negros.  
Objetivamente, no processo de colonização, o Brasil foi dividido em capitanias  
hereditárias como forma de administração da colônia com autonomia política, mas  
subalternizadas ao Rei de Portugal D. João III (SODRÉ, 1990), isto é, ao Estado português. Até  
a vinda da Família Real, vigorou no Brasil o “Estado colonial”, apêndice do Estado absolutista  
português, com a função de controle da produção e da vida social.  
A partir do momento que Portugal invadiu o Brasil, com a finalidade de estabelecer  
exploração na colônia, as terras passaram a ser consideradas como propriedade privada da coroa  
portuguesa, refirmando essa premissa por meio da concessão de terras a donatários-aventureiros  
e pela vinda de tropas militares. Entendemos que a propriedade privada está estabelecida  
formalmente desde o início da colonização, utilizando a violência como forma de produção e  
reprodução das relações econômicas e sociais e, portanto, “[...] a parteira de toda sociedade  
velha que está prenhe de uma sociedade nova.” (MARX, 2013, p. 821). A coroa portuguesa  
garantiu condições básicas para os “capitalistas-colonizadores” investirem seu capital mercantil  
no Brasil, tal como com a atribuição de posse de grandes terras com o intuito de produzir e  
exportar mercadorias para a Europa.  
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O Estado no Brasil apresentava sua dimensão coercitiva e violenta desde sua chegada,  
contendo revoltas, insurgências e rebeliões contra qualquer tipo de movimentação de rebeldia  
em oposição aos determinantes exploradores dos europeus. A coerção do aparato repressor-  
punitivo do Estado vem a ser um dos principais traços característicos do Estado brasileiro,  
onde a violência estatal é sistemática, continua e funcional ao capital, especialmente em  
tempos de crise.  
A administração da colônia – e dos outros territórios apropriados pelos portugueses –  
colocou-se como uma urgência para a metrópole, devido à corrida marítima com outros países  
colonizadores (Espanha, Holanda e França) para garantir a posse e o poder sobre os territórios  
apropriados. Assim, estabeleceu-se “[...] a unidade administrativa criando o Conselho  
Ultramarinho, cujo regulamento data de 14 de julho de 1642, e que permanecerá até o fim da  
era colonial.” (PRADO JUNIOR, 1994, p. 51, grifos originais). No final do século XVII, com  
a intensificação da povoação e do aumento da produção da economia colonial, há o reforço do  
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Estado brasileiro e a subserviência ao capital: traços da formação econômica brasileira  
poder estatal no Brasil. A expressão jurídico-legal do Estado no Brasil encontrava-se presente  
sob ordens direta do Estado português.  
Outra atividade econômica que complexificou a forma de organização social da colônia,  
dinamizou a economia e exigiu de Portugal o aumento do controle sobre território brasileiro foi  
a mineração. Essa acentuou a principal característica da economia brasileira: a apropriação das  
riquezas naturais para reprodução do capital internacional. O conteúdo da extração de ouro e  
diamante foi transferido, principalmente, para a Inglaterra, impulsionando a industrialização  
desse país, enquanto para o Brasil a mineração reforçou a tendência exportadora de produtos  
primários.  
Além de dinamizar a balança de exportação, estabeleceu um mercado interno de  
produtos de subsistência mais diligente e dinâmico e possibilitou a interiorização do território  
brasileiro. As atividades mineradoras coexistiram com a Plantation, porém aquelas  
impulsionaram e dinamizaram a economia nacional, centrada na agricultura agroexportadora.  
A mineração causou um aumento da produção da riqueza no Brasil e um crescimento  
populacional, seja por meio da chegada de viajantes em busca do enriquecimento  
proporcionado pelo ouro ou, até mesmo, pela imigração interna, o que demandou um aparelho  
estatal que comportasse a estrutura produtiva mineradora, conforme atestou Sodré (1990, p.  
52):  
231  
[...] o deslocamento da sede do governo colonial, a elevação do Brasil a vice-  
reino, o desdobramento dos órgãos judiciários, o crescimento das forças  
militares, as regulares e as irregularidades, o desenvolvimento gigantesco das  
repartições burocráticas, o rigor e a ampliação dos órgãos fiscais e tributários,  
a submissão das próprias organizações religiosas.  
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No âmbito das regulações da economia mineradora o Estado interviu fortemente por  
meio de “regimento dos superintendentes, guardas-mores e oficiais deputados para as minas de  
ouro” (SODRÉ, 1990, p. 51), além disso, o governo português, que controlava as casas de  
fundição, complexificou o aparelho judiciário e aumentou o controle das zonas de mineração  
com tropas militares para evitar roubos, furtos ou o não pagamento dos tributos a Portugal pelos  
donos das minas (SODRÉ, 1990), o que exigiu o aumento do funcionalismo público e das  
profissões liberais.  
A estrutura mineradora teve como base o trabalho escravo e o trabalho livre. A  
mineração, igualmente à agricultura, não desenvolveu novas técnicas, reafirmando o traço  
constitutivo da estrutura produtiva brasileira versada na ausência do desenvolvimento da base  
técnica e científica das forças produtivas (PRADO JUNIOR, 1994). Historicamente, o Estado  
brasileiro “antinacional” não incentiva o progresso técnico e científico, essenciais para o  
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desenvolvimento econômico capitalista, o que contribui para reafirmar a dependência e  
subordinação da base técnica e científica em relação ao capitalismo central. A coroa não tinha  
interesse, nem o Estado, em desenvolver uma base técnica e científica. A agricultura  
rudimentar/arcaica permaneceu por vários séculos, utilizou principalmente a enxada; a  
mineração, do mesmo modo, não desenvolveu novas técnicas. O que mantinha a dinâmica da  
produção para a exportação era o grande número de trabalhadores, no caso, o trabalho escravo.  
Alerta Prado Júnior (1994, p. 92) que  
[...] o baixo nível técnico das nossas atividades agrárias e as consequências  
que teria, não se devem atribuir unicamente à incapacidade do colono. [...]  
Estava no próprio sistema, um sistema de agricultura extensiva que  
desbaratava com mãos pródigas uma riqueza que não podia repor.  
Não havia investimento no desenvolvimento das forças produtivas, apenas na  
intensificação da exploração da força de trabalho. Indiscutivelmente, o trabalho escravo foi a  
base para o êxito da empresa colonizadora. Entretanto, com a emergência da nova dinâmica do  
capitalismo industrial na Europa, essa estrutura escravista se tornava um empecilho, um entrave  
para o desenvolvimento do capitalismo brasileiro. O trabalho escravo não correspondia mais à  
base econômica que surgia e entrava em contradição com o estatuto colonial (FERNANDES,  
1976).  
É sob a base material do estatuto colonial que se constitui o Estado brasileiro. Seu marco  
histórico consiste na vinda da Família Real Portuguesa (1808), que trouxe seu aparato estatal,  
implementando no Brasil o Estado com funções burocráticas específicas; e com a  
Independência do Brasil (1822), observamos os contornos políticos específicos desse Estado e  
da classe burguesa. Amplificaram-se, portanto, as seguintes funções: “[...] das forças armadas,  
instrução pública, higiene, povoamento, abertura de novas estradas, obras de urbanismo no Rio  
de Janeiro, etc.” (PRADO JUNIOR, 1994, p. 138), o que gerou despesas econômicas para  
manter a função sociopolítica do aparato estatal.  
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A base material do sistema colonial não demandava uma organização estatal complexa.  
Com o Estado brasileiro delineado, a organização estatal que operava “de fora para dentro”  
passou a operar “de dentro para fora”, obviamente, com a mesma essência de atender aos  
determinantes do mercado mundial e aos interesses da dinâmica do capital internacional.  
Escreve Fernandes (1976, p. 32) que  
sob o estatuto colonial, não só o controle do poder se operava de fora para  
dentro; as probabilidades de atuação social das elites ‘nativas’ subordinavam-  
se às conveniências da Coroa e dos que representassem, dentro da sociedade  
colonial, os seus interesses econômicos, sociais e políticos mais profundos.  
A Independência do Brasil foi resumida à barganha desajustada da oligarquia brasileira  
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Estado brasileiro e a subserviência ao capital: traços da formação econômica brasileira  
com a metrópole para que essa renunciasse, em partes, o seu poder econômico para conservar  
seu poder político de comando do Estado. Entretanto, institui-se uma forma de autonomia  
política relativa, devido à dependência ontológica da estrutura produtiva com relação à  
superestrutura estatal. Esse processo determina a conformação do caráter antinacional do  
Estado brasileiro, conforme apontou Mazzeo (2015, p. 107), “[...] a Independência assemelha-  
se mais à contrarrevolução do que à revolução; à conciliação com o velho, relegando ao novo  
uma exterioridade vazia de significado concreto.”.  
A metrópole e outros países europeus eram favoráveis à extinção do estatuto colonial,  
desde que essa extinção não rompesse com a dependência e subordinação econômica. Isto é, os  
interesses do mercado externo eram nítidos e prioritários no processo de concordância com o  
fim da condição de colônia. Assim, a Independência cessa, limitadamente, com o estatuto  
colonial e autonomiza, relativamente, a nascente burguesia brasileira (FERNANDES, 1976),  
que iria se moldando e revigorando suas raízes por meio das determinações conjunturais da  
sociedade brasileira. De acordo com esse autor,  
[...] a burguesia nacional converte-se, estruturalmente, numa burguesia pró-  
imperialista, incapaz de passar de mecanismos autoprotetivos indiretos ou  
passivos para ações frontalmente antiimperialistas, quer no plano dos  
negócios, quer no plano propriamente político e diplomático. (FERNANDES,  
1976, p. 305).  
233  
A emergência do Império tem sua base material na crise do sistema colonial,  
[...] que expressa a necessidade de superação das relações de produção e  
circulação fundamentadas no mercantilismo. [...], no entanto, ao invés da  
morte do capital mercantil, o que se observa é uma metamorfose em que o  
capital mercantil deixa de ser o polo regente da produção para emergir na  
circulação como expressão do desenvolvimento das relações genuinamente  
capitalistas. (SANTOS NETO, 2015, p. 98).  
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Para Fernandes (1976), o processo de Independência é complexo e se desdobra em dois  
aspectos interrelacionados: o caráter revolucionário e o caráter conservador. Apesar de ser  
paradoxal, o processo de compreensão desafia a aparência dos fenômenos e exige a captação  
das raízes estruturantes da economia política brasileira. Descreve Fernandes (1976, p. 32-33,  
grifos nossos) que:  
O elemento revolucionário aparecia nos propósitos de despojar a ordem social,  
herdada da sociedade colonial, dos caracteres heteronômicos aos quais fora  
moldada, requisito para que ela adquirisse a elasticidade e a autonomia  
exigidas por uma sociedade nacional. O elemento conservador evidenciava-  
se nos propósitos de preservar e fortalecer, a todo custo, uma ordem social que  
não possuía condições materiais e morais suficientes para engendrar o padrão  
de autonomia necessário à construção e ao florescimento de uma Nação.  
O exemplo do processo da Independência do Brasil é latente para ilustrar os moldes da  
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cultura política brasileira, onde D. Pedro I, “o Libertador”, conciliou os desejos econômico-  
políticos de Portugal com a nascente burguesia brasileira, manobrando soluções “pelo alto” e  
antevendo as movimentações populares que eclodiam no solo brasileiro, como a Inconfidência  
Mineira e a Conjuração Baiana que, apesar das suas características distintas, sendo essa mais  
radical em suas finalidades que aquela, tinham por objetivo a separação entre Brasil e Portugal.  
Para Santos Neto (2005, p. 143), “a independência política passou pela mediação do  
capital inglês, que concedeu empréstimos para que o país pudesse assumir a dívida portuguesa,  
transferida aos cofres públicos brasileiros, no valor de dois milhões de libras.”. Essa  
argumentação deixa explícito que, com o processo de Independência, entra em cena o domínio  
britânico e a dívida pública na configuração da economia brasileira. O capital inglês inicia  
sua presença fortemente na construção de estradas de ferro, equipamentos de portos e início da  
mecanização do setor rural (PRADO JUNIOR, 1994), infraestruturas que dão fluidez à  
dinâmica do capital.  
Devido às nossas particularidades econômicas diante do capitalismo mundial, o Estado  
possui funções essenciais “atípicas” perante a economia: “[...] em vez de objetivar o fim que  
realmente lhe compete, que é de contribuir para a estruturação de uma economia efetivamente  
nacional, se põe a serviço de empreendimentos imperialistas [...].” (PRADO JUNIOR, 1994, p.  
322), conforme visualizaremos com mais profundidade e latência no próximo item.  
A formação econômica e política do Brasil é marcada por “revoluções” sem rupturas  
com seu passado, “revoluções” com mudanças em suas formas, em sua aparência, contudo, em  
sua essência, trazem o caráter da conservação de marcas insuperáveis do estatuto colonial. Em  
outras palavras, o pretérito sempre se apresenta como a novidade, é um “novo” que carrega os  
cernes das ruínas coloniais escravistas, latifundiárias e monocultoras de uma economia  
dependente e subordinada (MAZZEO, 2015), combinação de relações progressistas capitalistas  
e relações arcaicas políticas.  
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O caráter contrarrevolucionário constitui-se umas das características latentes da  
burguesia brasileira que, mesmo dispondo de consciência sobre seu papel com relação à  
metrópole, optou (com base em suas condições objetivas) por estabelecer mudanças  
superficiais, mesmo sabendo que a metrópole precisava substancialmente da sua colônia em  
termos econômicos. Devido às condições objetivas, a burguesia brasileira manteve o atraso  
econômico e oposição à participação popular (MAZZEO, 1995), resultando na manutenção, em  
parte, do estatuto colonial pela burguesia. Com a autocracia burguesa institucionalizada, o  
Estado brasileiro atuará na contenção da classe trabalhadora, para o capitalismo se desenvolver  
com mais tranquilidade.  
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Estado brasileiro e a subserviência ao capital: traços da formação econômica brasileira  
Com o processo de Independência, alastra-se a doutrina liberal no Brasil, não em sua  
forma clássica europeia, uma vez que a principal característica do liberalismo é a liberdade  
individual para vender sua força de trabalho, e aqui tinha-se o obstáculo da estrutura escravista  
colonial (MAZZEO, 2015). Nesse país, o liberalismo foi transmutado em ser livre para  
comercializar; naquele momento histórico, era fundamental para a Inglaterra – país que estava  
com sua industrialização acelerada e precisava dar vazão às suas mercadorias – que o Brasil  
estivesse desprendido das amarras de Portugal para comercializar livremente. O liberalismo foi  
utilizado de forma instrumental no processo de Independência, contribuindo para a diluição  
ideológica do estatuto colonial, mas preservando o sistema escravista. Para a concretização do  
liberalismo com seu caráter revolucionário e transformador das relações econômicas, políticas  
e sociais, era fundamental bases materiais da estrutura produtiva, o que no Brasil tornou-se um  
empecilho com as relações escravistas. Mesmo com a abolição da estrutura escravista, em  
especial, o trabalho escravo, a economia brasileira não reverteu sua subserviência econômica.  
A abolição, produto dos movimentos negros e das resistências, além das pressões econômicas  
da Inglaterra, protegeu os senhores de escravos pela legislação estatal.  
A nascente economia cafeeira, no final do século XIX, exigiu novas relações de  
trabalho, especificamente o trabalho assalariado com força de trabalho do imigrante. O Estado  
brasileiro financiou a importação dessa força de trabalho europeia para as fazendas de café.  
Segundo Sodré (1990, p. 111), “por meio do século, entre 1880 e 1930, chegaram ao Brasil  
quatro milhões de imigrantes.”. A acumulação de capital no Brasil foi possibilitada pela  
economia cafeeira, uma acumulação pelo campo que sustentou, por longas décadas, a economia  
nacional e a base do poder político, conduzindo o desenvolvimento do Estado brasileiro. Foi  
uma tendência de acumulação específica brasileira, constituindo-se como uma particularidade  
da formação econômica.  
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O Estado brasileiro ganhou novas conotações com a eclosão do capital industrial e a  
emergência do proletariado, principalmente a partir das greves de 1917, exigindo um Estado  
não só de natureza coercitiva, mas portador de projetos ideológicos de manutenção do status  
quo, sendo a intervenção pública direta no desenvolvimento da industrialização para dinamizar  
a economia nacional um dos principais exemplos dessa tendência.  
O movimento de transformação e intensificação da divisão internacional do trabalho  
provocou mudanças no espectro mundial com a expansão do capital por todos os domínios dos  
quatro cantos do mundo, configurando “[...] uma totalidade heterogênea, desigual e  
contraditória.” (IANNI, 2019, p. 94). Essas transformações resultaram em modificações  
substanciais na economia brasileira, inclusive “o desenvolvimento industrial brasileiro esteve  
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relacionado ao processo de expansão do imperialismo na segunda metade do século XIX,  
especialmente à necessidade do capital financeiro de exportar seus capitais excedentes [...]”  
(SANTOS NETO, 2019, p. 59), processo que confluiu para mudanças na dinâmica econômica  
interna e no aprofundamento das disparidades regionais, realocando arranjos produtivos de uma  
área (Nordeste) para outras (São Paulo e Rio de Janeiro).  
A emergência da industrialização brasileira foi profícua por meio da exploração do  
trabalho do escravo e do trabalhador imigrante (SANTOS NETO, 2015), forças de trabalho  
utilizadas de formas discriminadas pelo capital, sendo aquela por meio do trabalho forçado e o  
imigrante europeu como uma mão de obra demandada pela nova fase do capitalismo brasileiro  
e absorvida pelos cafeicultores e por alguns segmentos industriais urbanos. O Estado brasileiro,  
juntamente com a burguesia agrária e a burguesia comercial, constitui-se como responsável pela  
vinda dos imigrantes (trabalhadores assalariados) oferecendo, em larga medida, condições  
favoráveis para a nova força de trabalho e, ao mesmo tempo, “arremessando à própria sorte” os  
recém-libertos escravos não absorvidos no mercado de trabalho. A força de trabalho excedente  
da Europa foi conduzida para o território brasileiro como a principal força de trabalho, o que  
delegou aos recém-libertos escravos a condição de exército industrial de reserva. O capital  
movimentou uma mão de obra especializada, tendo em vista que os negros eram entendidos  
como apenas mão de obra para o trabalho bruto, e não para a nascente indústria. A utilização  
do trabalho forçado obstaculizou o desenvolvimento das técnicas das forças produtivas no  
Brasil. Apesar desta ser a razão material para a não absorção da mão de obra escrava, temos  
aspectos político-ideológicos para esta questão, tendo em vista que o capitalismo brasileiro, na  
sua estrutura medular, delegou ao negro um “lugar” específico – esse “lugar” do negro não era  
o mercado formal de trabalho, nem a “proteção social” viabilizada pelo Estado brasileiro.  
É inegável a função do complexo cafeeiro no sistema econômico brasileiro, pois a  
atividade cafeeira carrega um conjunto de outras atividades produtivas que dinamizaram  
fortemente vários setores de produção (CANO, 2007). O capital cafeeiro foi investido nas  
ferrovias – que também contou com os investimentos estrangeiros, principalmente do capital  
inglês – para escoar com mais eficiência o produto. Além disso, tem-se a expansão das  
comunicações, do sistema bancário (catalizador das movimentações bancárias), urbanização e  
ampliação da economia urbana. Não obstante, exigiu-se do Estado o controle sobre as contas  
públicas, pois a principal arrecadação de impostos entre os setores econômicos provinha do  
complexo cafeeiro.  
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O “Oeste Paulista” ganhou destaque na produção do café nacional devido ao fato de  
possuir técnicas mais avançadas de produção e ter utilizado mais máquinas e equipamentos para  
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Estado brasileiro e a subserviência ao capital: traços da formação econômica brasileira  
o beneficiamento do café (CANO, 2007). Assim, o complexo cafeeiro foi o primeiro a  
incorporar alto teor tecnológico em sua produção, processamento e distribuição. As máquinas  
estavam ativas e as ferrovias a ganhar mais espaço na distribuição do café, desenvolvendo um  
papel crucial nesse setor. Com a introdução sistematizada da técnica nesse complexo, os  
fazendeiros puderam explorar mais os trabalhadores e acumular capital.  
O “Oeste Paulista” reunia as condições ideais para a expansão do café que se iniciou  
por volta de 1886, o que intensificou a demanda por imigrantes e imigrações inter-regionais,  
principalmente com a saída de trabalhadores do Nordeste para o complexo cafeeiro – cerca de  
156.000 nordestinos (CANO, 2007). No Nordeste, o regime assalariado foi mais uma imposição  
formal do que demanda da dinâmica da economia regional, ao contrário da região Sudeste, onde  
as relações capitalistas estavam mais desenhadas e delimitadas (CANO, 2007). No Nordeste,  
ocorre a imposição formal e, além disso, as relações híbridas de pagamento da força de trabalho,  
seja por meio do salário, salário e moradia e alimentação, mas sempre recorrendo à intensa e  
precária exploração do trabalho, tendência do trabalho que marca o Nordeste até os dias atuais.  
O Estado brasileiro contribuiu estreitamente com o complexo cafeeiro, sendo o “braço  
direito” e o guardião dos interesses dos cafeicultores, seja por meio da fragilização intencional  
regulatória da apropriação de terras devolutas ou pela vinda dos imigrantes da Europa (inclusive  
arcando com alguns custos desta absorção do trabalhador imigrante).  
237  
Com a acumulação de capital proporcionada por esse complexo, o capital cafeeiro  
tomou novas formas, transformando-se em capital bancário, comercial e industrial (CANO,  
2007). Parte dos lucros cafeeiros eram investidos em outros segmentos industriais,  
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[...] o capital industrial nasceu como desdobramento do capital cafeeiro  
empregado, tanto no núcleo produtivo do complexo exportador (produção e  
beneficiamento do café), quanto em seu segmento urbano (atividades  
comerciais, inclusive as de importação, serviços financeiros e de transportes).  
(MELLO, 2009, p. 82).  
O Estado brasileiro deu suporte ao setor cafeeiro, “[...] não só o crédito farto, mas, em  
especial, os instrumentos destinados a mobilizar e concentrar capitais [...].” (MELLO, 2009, p.  
82).  
O capital industrial surgiu em São Paulo entre 1881-1894, mas a concentração industrial  
nesse estado somente foi possível nos primeiros anos do século XX (CANO, 2007). Este é um  
processo de industrialização diferenciado, heteróclito e hipertardio (com forte interferência do  
Estado assumindo as tarefas da inexpressiva burguesia brasileira). A taxa de crescimento  
industrial de São Paulo era maior que a taxa do Brasil – enquanto aquele crescia 8,5 vezes, o  
Brasil crescia 3,5 vezes (CANO, 2007). O desenvolvimento industrial do estado de São Paulo  
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demandou “[...] uma série de obras para a implementação do parque industrial e da economia  
urbana [engrossou] a arrecadação dos cofres públicos locais e regional, o que deu suporte à  
realização de várias intervenções no setor de infra-estrutura.” (CAMPOS, 2012, p. 88). Se é  
verossímil que o Estado brasileiro contribuiu diretamente para o desenvolvimento da  
infraestrutura necessária à alavancagem do capitalismo, não é alarmante afirmar, com base na  
argumentação teórica e histórica desenvolvida até aqui, que o Estado brasileiro, sob o comando  
e direcionamento do capital nacional e internacional, foi um dos principais responsáveis pelo  
aprofundamento das desigualdades econômicas e sociais entre as regiões do território  
brasileiro. Seus investimentos massivos a partir de 1930 foram indubitavelmente na região  
Sudeste e, em parte, no Centro-oeste. Criou-se uma infraestrutura de estradas, ferrovias e portos,  
considerando a região Sudeste como centro econômico dinamizador, para além da construção  
de Brasília, tornando-a o centro conectivo do Brasil na construção de estradas e o centro da  
conjunção do poder político de comando do governo federal.  
Voltando para a questão da industrialização no Brasil, a Primeira Guerra Mundial  
colocou um dinamismo maior para as indústrias de São Paulo, proporcionando uma  
diversificação da produção e um salto qualitativo (CANO, 2007). Apesar da industrialização  
brasileira estar atrelada ao processo de acumulação de capital cafeeiro, o capital estrangeiro  
esteve presente fortemente sob a mediação do Estado brasileiro, que  
238  
[...] ofereceu ao capital estrangeiro a segurança e o controle que ele precisava  
não apenas para conceder empréstimos, mas para financiar os negócios  
relativos ao universo agroexportador, dedicando atenção especial ao controle  
do processo de exportação da produção cafeeira. (SANTOS NETO, 2015, p.  
207, grifos nossos).  
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Enquanto isso, o capital estrangeiro não tinha pretensão de dinamizar e desenvolver a  
produção brasileira, pois seus investimentos eram direcionados à manutenção do status quo do  
Brasil na divisão internacional do trabalho (SANTOS NETO, 2019).  
A entrada de capital na economia brasileira se dava por meio do Investimento Direto  
Estrangeiro (IDE), empréstimos ou financiamentos regulados pela mediação do Estado  
brasileiro por meio de decretos e/ou leis que colocavam condições para a entrada e saída de  
capitais, além de, nitidamente, serem a principal via para a entrada de capital (obviamente  
porque o Estado oferecia condições e garantias ao capital estrangeiro). Desde o Brasil Império  
que a economia reforça a dependência econômica do capital estrangeiro, traçando um longo  
caminho de subordinação e servidão, curvando-se enquanto um Estado disponível e atuante  
para as demandas externas. As vias de entrada de capitais no Brasil não eram destinadas  
somente à produção direta da economia, mas ao próprio desenvolvimento das funções estatais  
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Estado brasileiro e a subserviência ao capital: traços da formação econômica brasileira  
de infraestrutura pública.  
Entre os anos de 1930 até 1955, diante da conjuntura internacional (Segunda Guerra  
Mundial e rebatimentos da Crise de 1929), a economia brasileira dinamizou sua produção  
interna implementando um modelo de desenvolvimento econômico “voltado para dentro”,  
processo denominado por Tavares (1972, p. 41) como “substituição de importações”  
[...] para caracterizar um processo de desenvolvimento interno que tem lugar  
e se orienta sob o impulso de restrições externas e se manifesta,  
primordialmente, através de uma ampliação e diversificação da capacidade  
produtiva industrial.  
Contudo, as mudanças da “substituição de importações” foram incapazes de romper  
com a estrutura dependente da produção brasileira, e de alterar a paragem do Brasil na divisão  
internacional do trabalho. Para Carcanholo (2002, p. 117):  
O processo de substituição de importações que caracterizou a industrialização  
brasileira no longo período 1930-61 acabou sendo imposto pelas próprias  
conseqüências da inserção internacional periférica e dependente do país. A  
redução da demanda internacional por nossas exportações e a retração do  
financiamento externo, pelo menos em um primeiro momento, definiam os  
recorrentes estrangulamentos externos que colocavam a necessidade de tarifas  
aduaneiras sobre importações, controle quantitativo sobre as mesmas (com  
esquemas como os licenciamentos), reservas de mercado interno e uso  
planejado de divisas com controle cambial.  
O Estado brasileiro não mediu esforços para desenvolver a indústria pesada (siderurgia,  
metalurgia, petroquímica etc.) e infraestrutura necessária para escoar o funcionamento ao  
capitalismo e para a dinamização da acumulação de capital por meio da construção de estradas,  
portos, aeroportos, hidrelétricas, telecomunicações etc., que contribuem, em larga medida, para  
a fluidez do capital. Para Bugiato (2016, p. 42),  
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[...] o Estado devia assumir o papel de investidor principal na criação da  
infraestrutura voltada ao desenvolvimento da indústria nacional [...] e no  
desenvolvimento do parque industrial nacional, que conduziria  
independência econômica do país e à soberania nacional.  
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Ora, o Estado brasileiro não foi constituído para possibilitar qualquer autonomia da  
economia perante o mercado externo e o capital estrangeiro. Temos enfatizado até aqui que,  
desde a sua gênese e constituição, operou-se um Estado subserviente desde a “quebra” do  
estatuto colonial, pois o pacto formado nas estruturas estatais era para constituir um Estado  
voltado “para fora”. Ademais, esse processo de um possível rompimento com as demandas  
externas e as imposições “de fora para dentro” torna-se impraticável devido às conformações  
das tendências do capitalismo mundial. Nitidamente, não há desenvolvimento do capitalismo  
brasileiro sem a presença do Estado, uma presença auxiliar ao capital, com atuação forte e  
firme perante a reprodução do capital.  
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A tendência estrutural de dependência da economia brasileira é tão latente que o início  
das construções de infraestrutura contou de forma direta, inicialmente, com o capital inglês  
(lembrar que outrora pontuamos isso sobre a construção das ferrovias). Entre 1850 e 1930,  
segundo Campos (2012), as empresas de infraestrutura vieram do exterior, principalmente dos  
Estados Unidos, França, Grã-Bretanha e Alemanha, países que possuíam mais desenvolvimento  
tecnológico nesse setor.  
O chamado “Estado Novo”, com a emblemática “Revolução” de 1930, “[...] tomou  
novos rumos e começou a levar a cabo políticas de modernização do país [...]” (HIRT, 2016, p.  
67), após mediar os conflitos de interesses econômicos e políticos da burguesia interna. Os  
projetos internos em disputa foram consubstanciados na intervenção estatal com o projeto  
“nacional-desenvolvimentista”, configurado como  
[...] o projeto de desenvolvimento econômico assentado no trinômio:  
industrialização substitutiva de importações, intervencionismo estatal e  
nacionalismo. O ND [Nacional-Desenvolvimentista] é, na realidade, uma  
versão do nacionalismo econômico; ou seja, é a ideologia do desenvolvimento  
econômico assentado na industrialização e na soberania dos países da América  
Latina, principalmente, no período 1930-80. No plano estratégico o ND tem  
como foco o crescimento econômico, baseado na mudança da estrutura  
produtiva (industrialização substitutiva de importações) e na redução da  
vulnerabilidade externa estrutural. Este último aspecto está assentado nos  
seguintes pilares: (i) alteração do padrão de comércio exterior (menor  
dependência em relação à exportação de commodities, mudança na estrutura  
de importações e redução do coeficiente de penetração das importações  
industriais); (ii) encurtamento do hiato tecnológico (fortalecimento do sistema  
nacional de inovações), e; (iii) tratamento diferenciado para o capital  
estrangeiro (ou seja, ausência de tratamento nacional via, por exemplo,  
discriminação nas compras governamentais, restrição de acesso a  
determinados setores, imposição de critérios de desempenho e restrição na  
obtenção de incentivos governamentais). (GONÇALVES, 2012, p. 1).  
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Do Governo Vargas até meados dos anos 1950 o Estado assume diretamente o  
desenvolvimento de infraestrutura que  
[...] entrou como contratador e também realizador de obras públicas,  
subsidiando a formação e o fortalecimento de um capital industrial no país, o  
que incluiu a criação de instrumentos jurídicos e institucionais e montagem  
das agências que iriam contratar as obras de infra-estrutura [...]. (CAMPOS,  
2012, p. 69).  
Temos, nesse contexto, a construção da Companhia Siderúrgica Nacional (CSN) para  
implantar a usina de Volta Redonda, uma das maiores da América Latina, a Companhia  
Siderúrgica Paulista (Cosipa), em Cubatão, e a Usiminas em Ipatinga (MG). A industrialização  
passou a fazer parte da agenda do Estado brasileiro, “ou seja, o planejamento estatal teria a  
função técnica de alocação dos recursos, com uma suposta neutralidade.” (HIRT, 2016, p. 69).  
Nesta quadra histórica, há um pequeno recuo das empresas estrangeiras na execução dos  
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projetos de infraestrutura, dando lugar as empresas nacionais. Contudo,  
se desde os anos [19]30, houve um processo de estatização da contratação das  
obras de construção pesada, posteriormente viu-se a retirada do aparelho de  
Estado da atividade construtora, passando a mero contratador das obras. Trata-  
se de um processo longo, complexo, com idas e vindas e cheio de exceções,  
sendo o governo que melhor marca essa divisão de tarefas entre o Estado e as  
empresas privadas o de Juscelino Kubitschek, quando houve não só aumento  
significativo das obras contratadas, como sinais claros dessa divisão de  
funções. (CAMPOS, 2012, p. 63).  
Mesmo com aquele “recuo tímido” das empresas estrangeiras no setor de construção  
civil, o capital estrangeiro fazia movimentações nas tentativas de conduzir o processo de  
modernização da economia brasileira. A título ilustrativo, tem-se o Plano de Metas do Governo  
JK desenhado pelo Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico (BNDE) e pela CEPAL  
da ONU que “[...] tinha as suas 12 primeiras e mais importantes metas relacionadas a transportes  
(5) e energia (7) [...]. Os dois setores são justamente os de maior interesse dos empreiteiros no  
que tange ao Plano de Metas.” (CAMPOS, 2012, p. 64). A obra magna do Plano de Metas foi,  
indubitavelmente, a construção da Capital do país, Brasília.  
Com o Governo JK seguindo a lógica de acumulação e expansão do capital no Brasil, o  
Estado passou a figurar mais como “Estado-contratante” e pouco como “Estado-construtor”.  
Começou-se a contratar empresas privadas (no caso, as nacionais) para a execução de obras  
públicas, as empreiteiras. Desenvolvia-se no Brasil um “mercado de obras públicas” e emergia 241  
na cena econômica os empreiteiros, “[...] fração de classe do empresariado industrial e também  
seus diferentes membros como representantes de diferentes frações da burguesia brasileira.”  
(CAMPOS, 2012, p. 28). Esse autor ainda afirma que estes empresários, que emergiram  
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fortemente na economia brasileira, participaram diretamente do aparelho estatal após o golpe  
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empresarial-militar, o que não é de estranhar que as obras faraônicas dos empreiteiros do  
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período do regime militar-empresarial tenham sido permeadas por indícios de corrupção.  
A dinamização da produção brasileira demandou uma forte intervenção estatal em  
setores estratégicos com a instituição da Companhia Vale do Rio Doce, da Companhia  
Siderúrgica Nacional e da Petrobras, empreendimentos que possibilitaram, em um definido  
espaço-tempo, a autonomia da extração de minérios, produção de ferro e aço e da produção  
energética (SANTOS NETO, 2015; 2019). Na construção desses empreendimentos, o Estado  
assumiu todo o processo, tomando empréstimos ao capital estrangeiro.  
Se a economia brasileira é gestada para atender aos interesses do capital internacional,  
o mesmo ocorreu com o processo de industrialização que foi forjado para atender às economias  
centrais e não para desenvolver uma economia independente e nacional (“soberania nacional”),  
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voltada ao seu desenvolvimento e à sociedade brasileira. Pelo contrário, a potencialização da  
economia brasileira sempre teve um intuito, em larga medida, de cumprir subserviência na  
divisão internacional do trabalho. O mesmo processo se deu com a emersão do Brasil na  
dinâmica da financeirização da economia, deixando-o num lugar especial de exportador de  
commodities agrícolas e minerais.  
A seguir, iremos desvelar a relação do Estado brasileiro com as demandas e requisições  
do capital estrangeiro, bem como a emergência do neoliberalismo que conformou novos  
contornos atuantes e repressivos do Estado na sociedade brasileira.  
Estado brasileiro, capital estrangeiro e neoliberalismo  
A entrada de capitais dos EUA em toda a América Latina vinha acompanhada de fortes  
interferências econômicas e políticas, criavam ambientes de instabilidade e fortalecimento da  
heteronomia dos estados-nação desta região. Na década de 1960, o Brasil recebeu grande  
volume de capital estrangeiro, sendo o segundo país da América Latina a receber mais capital,  
ficando atrás apenas do Chile, devido às condições favoráveis do Estado brasileiro (CAMPOS,  
2003). O Brasil, no aspecto da internacionalização da economia, ganha destaque nesta região  
continental, tornando-se “[...] um dos prediletos na atração desses investimentos estrangeiros,  
essencialmente pelas dimensões de seu mercado interno, e pelas condições institucionais e de  
infra-estrutura [...]” (CAMPOS, 2003, p. 10).  
242  
A chegada de capitais estrangeiros dos países centrais dinamizou as relações capitalistas  
no solo brasileiro e emperrou qualquer possibilidade de desenvolvimento dos aspectos  
ideológicos da “ameaça do socialismo”, pois o presidente João Goulart tinha “[...] defesa de  
alguns projetos sociais como a reforma agrária, ou [uma] política externa independente [...]”  
(CAMPOS, 2003, p. 17), o que era considerado uma “proximidade com ideias socialistas” e do  
bloco soviético no contexto da Guerra Fria. Uma medida do Estado brasileiro, no Governo de  
João Goulart, que dispôs alerta no capital estrangeiro foi a aprovação da Lei n.º 4.131 (Lei de  
Remessa de Lucros), promulgada em 1962 e sancionada em 1964, que “[...] representou o maior  
controle já imposto ao movimento de capitais estrangeiros no Brasil [...]” (CAMPOS, 2003, p.  
80), como tentativa de defender a economia nacional e a burguesia brasileira.  
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Para barrar o “avanço do socialismo”, o governo norte-americano, de forma estratégica e  
controladora com a América Latina, correlacionou forças com a burguesia brasileira e a ala das  
forças armadas. Campos (2012, p. 30), ancorado em René Armand Dreifuss, não concorda com  
[...] as teses que se referem à uma ditadura militar, ou regime militar, ou  
qualquer outra concepção que ponha os segmentos militares como líderes  
autônomos ou mesmo preponderantes daquele regime. Quanto ao elemento  
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Estado brasileiro e a subserviência ao capital: traços da formação econômica brasileira  
‘civil’, concordamos que se deve qualificar o mesmo, para que não se caia no  
erro de homogeneizar grupos sociais heterogêneos entre si, dado que estes  
estão assim reunidos sob a própria ótica da caserna. Entendemos que o  
elemento civil que compôs o regime militar era preponderantemente  
empresarial, havendo diversos agentes da burguesia brasileira que fizeram  
parte do pacto político estabelecido pós-1964.  
Na nossa avaliação, identificar como “regime militar-empresarial” agrega às  
determinações da base material, a força coercitiva estatal do golpe, no caso, os militares, e os  
empresários que apoiaram, asseguraram e mantiveram o golpe. Assim, o golpe empresarial-  
militar de 1964 foi, de certo modo, uma estratégia econômico-financeira de garantia de saídas  
dos lucros gerados no Brasil. Assim, o Estado brasileiro gerencia as saídas dos lucros gerados  
em favor do capital internacional, pois os investidores estrangeiros injetam capital no Brasil, e,  
na lógica capitalista, devem ter a segurança jurídico-normativa de retorno do capital investido.  
Para atrair o capital estrangeiro, o Estado brasileiro assegurava  
[...] no âmbito de isenções de impostos, facilidades de créditos, avais para  
empréstimos e operações externas, política de remessa de lucros, dividendos  
e royaltes ao exterior etc., tudo isso aumenta a escala de articulação do Estado  
com o capital monopolista. (IANNI, 2019, p. 83, grifos originais).  
Observamos que o Estado brasileiro tentou disciplinar e orientar, por meio de  
mecanismos normativo-legais, a entrada e saída de capitais com objetivo de garantir,  
legalmente, que parte do excedente ficasse para o desenvolvimento da economia brasileira.  
O golpe empresarial-militar brasileiro – ou “contrarrevolução preventiva”  
(FERNANDES, 1976; NETTO, 2015; IANNI, 2019) – eclode por meio das movimentações do  
sistema do capital na sua totalidade global e as consequentes mudanças na divisão internacional  
do trabalho, bem como das particularidades da formação sócio-histórica brasileira, expressas  
em raízes estruturais dependentes, escravagistas e opressoras sob a tutela de Estado brasileiro,  
com o objetivo de manter a acumulação de capitais e conter as movimentações das massas.  
O Estado brasileiro é crucial na garantia desse processo, seja através do aparato jurídico-  
normativo-legal, seja por meio de mudanças mais substanciais de condução do governo,  
mediante as quais influencia – quando não determina – eleições ou medidas mais drásticas,  
como golpes de Estado. De modo ilustrativo, as mudanças bruscas e drásticas de comando  
político do Estado são um traço forte da economia política brasileira, como foi com a retirada  
de João Goulart em 1964, com o Golpe empresarial-militar e com a destituição de Dilma  
Rousseff em 2016 – esse último caracterizado como golpe empresarial-jurídico –, golpes que  
serviram para manter e aprofundar as raízes estruturantes da economia e política brasileira e  
manter o padrão de acumulação de capital. A própria democracia burguesa é fragilizada pela  
autocracia burguesa.  
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Com o regime militar-empresarial de 1964 houve uma baixa de investimentos  
estrangeiros, com exceção dos EUA, o que “[...] demonstra a percepção positiva do capital  
produtivo norte-americano em relação à política autoritária implementada após o Golpe.”  
(CAMPOS, 2003, p. 23). Na aliança estratégica para a acumulação de capital entre o Estado,  
capital privado nacional e capital estrangeiro, esse, historicamente, mantém as principais  
vantagens, ao subjugar os outros nas relações econômicas e políticas.  
Não obstante, o Estado brasileiro colocou em prática uma “tecnocracia estatal” (IANNI,  
2019), isto é, o planejamento e técnica foram utilizados com força nos discursos oficiais dos  
militares na condução do Poder Executivo pois, nesse período, “[...] era importante ‘legitimar’  
a ditadura por meio da ideologização da sistemática, coerência, operatividade, pragmatismo,  
racionalidade, modernização etc. da política econômica.” (IANNI, 2019, p. 28).  
À época, coube ao Estado investir em áreas “menos atrativas” para o capital estrangeiro,  
como infraestrutura, estradas, portos, ferrovias, setor petrolífero e energético (CAMPOS, 2003)  
que, com o aprofundamento do neoliberalismo, na quadra recente do capitalismo brasileiro, são  
entregues, por esse mesmo Estado, para a iniciativa privada. Isto é, após todo o investimento  
de “capital estatal” na infraestrutura, com tomadas de empréstimos, por exemplo, o Estado a  
entrega “solidariamente” ao capital internacional. Desse modo, o Estado brasileiro revela sua  
natureza de complementariedade ao capital, sua vinculação simbiótica com o capital, seja de  
forma direta ou indireta, independentemente da gestão dos governos. A forma de governo  
revela tão somente a intensidade, proporção e mediação política da relação entre Estado e  
capital.  
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O regime militar-empresarial no Brasil de 1964 é o ponto substantivo da análise do  
processo de ruptura total com qualquer possibilidade de “nacionalismo” da economia brasileira  
e da entrada “à moda porta-aberta” do capital estrangeiro, especialmente provindos dos EUA.  
É plácida a afirmação que não se operou no Brasil a transição total do período do regime  
militar-empresarial para o período democrático. A recente democracia brasileira, desenhada no  
final da década de 1980, absorveu bases e formas do regime militar-empresarial, além das raízes  
estruturais da economia que mantém o status quo. O próprio regime estabeleceu as regras de  
transição do regime político ditatorial para o regime democrático. Os militares, acusados de  
torturar e matar seus opositores diretos e indiretos, não responderam legalmente pelos seus  
crimes, do mesmo modo que as famílias, que perderam entes, não tiveram respostas sobre os  
corpos torturados. O Estado brasileiro, até os dias atuais, possui meandros de conformação  
política legatários do regime militar-empresarial e possui, na sua estrutura de comando político,  
a ala militar (Exército, Marinha e Aeronáutica).  
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Estado brasileiro e a subserviência ao capital: traços da formação econômica brasileira  
Empreiteiras participaram ativamente das grandes obras estatais no regime militar-  
empresarial e no período do neoliberalismo. Esse crescimento vertiginoso das empreiteiras  
brasileiras possibilitou que essas se tornassem grandes concessionárias durante as privatizações,  
com a entrada do neoliberalismo no Brasil. Isso fez com que ampliassem seus ramos de atuação,  
sendo o “mercado das privatizações” bem aproveitado pelo setor. Após a década de 1980, as  
empreiteiras também entram no ramo da agropecuária, impulsionadas pelas exportações e  
crescimento das commodities.  
Os últimos anos do regime militar-empresarial foram marcados pela eclosão da crise  
estrutural do capital (final da década de 1970), que provocou mudanças na totalidade da  
produção capitalista, nas relações de produção e no padrão financeirizado de acumulação,  
operando transformações na produção/reprodução capitalista. Para responder a essa crise,  
foram direcionadas mudanças na forma de extração de trabalho excedente por meio da inserção  
e desenvolvimento da alta tecnologia na produção e na organização do trabalho, especialmente  
a “automação”, o sistema kanban, “celularização” e regime just-in-time do processo produtivo  
(PINTO, 2013), e na forma de intervenção do Estado na regulação do trabalho e da economia.  
A partir da crise de 1970, o capital, juntamente com o Estado, preparou uma ofensiva  
contra os trabalhadores, versada na figura do neoliberalismo como medida de gerenciamento  
da crise, uma vez que,  
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a intervenção estatal macroscópica em função dos monopólios é mais  
expressiva, contudo, no terreno estratégico, onde se fundem atribuições  
diretas e indiretas do Estado: trata-se das linhas da direção do  
desenvolvimento, através de planos e projetos de médio e longo prazos; aqui,  
sinalizando investimentos e objetivos, o Estado atua como um instrumento de  
organização da economia, operando notadamente como um administrador  
dos ciclos de crise. (NETTO, 2009, p. 25-26, grifos nossos).  
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Esta nova ordem conforma um Estado neoliberal instrumentalizado para a ampliação da  
liberdade econômica, do individualismo possessivo – pois, “[...] os arautos do neoliberalismo  
desencadearam inúmeras estratégias ideológicas e culturais” (BEHRING, 2003, p. 65) –, do  
livre mercado e da diminuição significativa da intervenção estatal na garantia dos direitos  
sociais, com a fortificação do Estado mais para o capital (leia-se: garantir a intensificação da  
exploração do trabalho e do escancaramento do fundo público para o capital) e menos para os  
trabalhadores (com cortes de direitos sociais e intervenção na capacidade organizativa dos  
trabalhadores). Cada vez que o capital fica agressivo e voraz, o Estado corresponde-o no mesmo  
tom contra os trabalhadores por meio de mecanismos repreensivos, seja pelas legislações mais  
severas, poder da polícia ou forças armadas, conforme o lastro histórico que se abriu no Estado  
brasileiro a partir de 2019 com o Governo Bolsonaro.  
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Everton Melo da Silva  
O neoliberalismo fortalece a intensa divisão internacional do trabalho, condenando os  
países periféricos a se manterem no lugar de países agrário-mineral-exportadores, fragiliza a  
economia política dos países dependentes e subordinados e amplifica a retórica de que esses  
países devem sempre se tornar mais “competitivos” e “eficientes”, “tudo isto produto apenas  
das ‘forças livres do mercado’ e sem a interferência do Estado.” (SOARES, 2009, p. 16). Ao  
assumirem os discursos e a agenda dos organismos multilaterais, os países periféricos tomam  
volumosos recursos emprestado com esses organismos, aumentando vertiginosamente o  
endividamento público e rendendo o aparato estatal ao poder das instituições financeiras e do  
capital internacional.  
Para entender a forma de inserção do neoliberalismo no Brasil e seus impactos na  
produção e reprodução social (na política, na cultura etc.) convém lembrar que a estrutura  
econômica e política brasileira é permeada por raízes agressivas e predatórias, a considerar que  
o Brasil nasce sob o signo da reprodução violenta do capital mercantil, do trabalho escravo e  
da cultura de repressão às massas populares para atender aos determinantes econômicos. E,  
mesmo com o desenvolvimento e modernização do capitalismo brasileiro, a conservação é um  
traço constitutivo da economia e do Estado, onde o atraso é conditio sine qua non e modus  
vivendi da formação brasileira, na mesma medida que é benéfica e favorável ao imperialismo e  
aos países centrais.  
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A burguesia brasileira não se opõe à burguesia internacional, havendo uma relação de  
sujeição favorável com ganhos diretos para aquela burguesia na acumulação de capital e com a  
continuidade do seu comando político no âmbito do Estado, dedicado a maximizar os  
mecanismos regulatórios de exploração do trabalho. Behring (2003, p. 92-95) pontua que “[...]  
o Estado é visto como meio de internalizar os centros de decisão política e de institucionalizar  
o predomínio das elites nativas dominantes.”. Essa é a realidade da formação econômica  
brasileira com a qual o neoliberalismo se defrontou.  
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As “boas-vindas” ao neoliberalismo pode ser visualizada durante o Governo Sarney,  
com a aprovação do Decreto n.º 91.991/1985, que regulamenta as empresas públicas  
“enquadráveis” no Programa de Privatização. Os governos subsequentes ao período de  
redemocratização, sob o comando neoliberal, diluíram o frágil parque industrial e a capacidade  
industrial brasileira e aumentaram a dependência em relação ao mercado de exportação de  
commodities sob as bases do mercado financeiro, o que levou alguns autores a categorizar esse  
processo como “desindustrialização” para explicar o “[...] deslocamento da fronteira de  
produção na direção dos produtos intensivos em recursos naturais. Este deslocamento ocorre,  
principalmente, na fase ascendente dos preços das commodities no mercado mundial.”  
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Estado brasileiro e a subserviência ao capital: traços da formação econômica brasileira  
(GONÇALVES, 2012, p. 2, grifos nossos). O desmantelamento da indústria brasileira tem  
raízes nas estruturas frágeis dos pilares e relações de produção industrial devido à sua emersão  
estar associada diretamente à dependência do capital estrangeiro, o que forjou uma indústria  
dependente numa economia vulnerável. A “desindustrialização” brasileira foi acompanhada  
pela crescente demanda por matérias-primas na dinâmica mundial, principalmente pela  
extração de recursos naturais e uso abundante do solo brasileiro, sobretudo, para responder à  
dinamização da ascensão da economia chinesa, e pelo crescimento vertiginoso da expansão do  
setor de serviços no Brasil.  
Ao acompanhar esse processo de mudanças significativas na economia brasileira, o  
Estado brasileiro aderiu fortemente à lógica do discurso dos “ajustes necessários”, ecoado  
diretivamente pelos organismos internacionais, que ganhou força no Brasil com o Plano Real e  
o Governo Fernando Henrique Cardoso (FHC), momento de consolidação das reformas  
neoliberais. O Governo FHC modificou a “[...] política de estabilização macroeconômica [...]”  
e deu “[...] continuidade à estratégia neoliberal, ao defender a política antiinflacionária como  
pré-requisito para a retomada do crescimento, e as reformas estruturais como meio de obter essa  
retomada do desenvolvimento.” (CARCANHOLO, 2002, p. 3).  
A solidificação do neoliberalismo no Brasil, com o Governo FHC, “[...] organiza um  
grande ciclo de reformas que [...] determinam mudanças estruturais no interior do aparelho do  
Estado brasileiro sob a pragmática neoliberal e no curso da mundialização do capital.”  
(TAVARES, 2014, p. 59). Para o capital estrangeiro entrar com mais fluidez no Brasil a  
economia deveria dispor de atratividade, adaptação, flexibilidade e competitividade  
(BEHRING, 2003).  
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As privatizações brasileiras – ou “Privadoação” (BIONDI, 2003) – na era neoliberal  
foram um “festival de doações” das empresas públicas para o capital privado. Biondi (2003)  
revela que, em algumas empresas públicas, o Estado investia no desenvolvimento e na  
infraestrutura antes de vendê-las, como o emblemático caso das empresas telefônicas, nas quais  
foram investidos 21 bilhões de reais, tendo sido vendidas, posteriormente, por uma entrada de  
8,8 bilhões; além disso, a Companhia Siderúrgica Nacional (CSN) foi comprada por 1,05 bilhão  
de reais, sendo 1,01 bilhão em “moedas podres”. Além de vender nestas condições, o Estado  
ficava com as dívidas das empresas públicas vendidas e com os custos sobre a demissão em  
massa dos funcionários, assumindo a rescisão dos contratos dos trabalhadores e as despesas  
previdenciárias. E, se tudo isso não bastasse, os grupos brasileiros (inclusive empreiteiras), as  
multinacionais e as empresas estrangeiras as compraram tomando empréstimos ao Estado  
brasileiro por meio do BNDES.  
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No jogo do capital financeiro com o Estado brasileiro, faz parte também o sistema de  
corrupção, traço marcante da economia política brasileira presente desde os governos anteriores  
ao período da redemocratização. Devemos lembrar dos fortes indícios de corrupção no regime  
militar-empresarial com as grandes obras dos empreiteiros e o governo FHC, com os recorrentes  
“assaltos” ao patrimônio público mediante a “Privataria Tucana”. Assim, o “festival de  
doações” foi altamente rentável para o capital privado, pois as empresas eram vendidas a preços  
mais baratos do que valiam; inclusive, vendiam-se empresas estatais com dinheiro em caixa –  
como o caso da Vale que “[...] foi entregue a Benjamin Steinbruch com 700 milhões de reais  
em caixa, segundo noticiário da época” (BIONDI, 2003, p. 16).  
Assim, a cultura patrimonialista, traço da formação sócio-histórica brasileira, das  
frações da burguesia brasileira, presente desde a época da Independência do Brasil, é ainda a  
tônica para a privatização em tempos presentes. A necessidade das privatizações era entoada  
pelo discurso da ineficácia e ineficiência do Estado em gerir as empresas públicas, e a saída  
seria privatizá-las (SOARES, 2009).  
A vitória e a passagem do Governo Fernando Henrique Cardoso para o Governo Luís  
Inácio Lula da Silva davam a tônica dos efeitos negativos do neoliberalismo no Brasil. Isso  
porque FHC levou a “ferro e fogo” os preceitos neoliberais, esfacelando os trabalhadores e as  
políticas sociais, o que aprofundou o ritmo de desigualdade social. E, apesar do “triunfo” do  
governo de esquerda, que nutriu esperanças para os trabalhadores, após severos ataques do  
neoliberalismo, as alianças pré-eleitorais firmadas com a agenda neoliberal deixaram em alerta  
as diversas organizações dos trabalhadores (alguns sindicatos, movimentos sociais e outros  
partidos de esquerda). Todavia, desenvolveu-se uma tendência defensiva teórica e política dos  
governos petistas diligenciando macular diferenças entre as medidas macroeconômicas do  
governo Lula das medidas neoliberais escancaradas do governo FHC. Obviamente que existem  
particularidades substanciais entre os dois governos, entretanto, apontar as particularidades não  
incide em contornar a materialidade da realidade social, a essência das relações econômicas  
capitalistas desenvolvidas no Brasil nos 13 anos dos governos petistas (Lula-Dilma) e a atuação  
feroz do Estado brasileiro contra os trabalhadores. O projeto neoliberal passou a ditar os  
programas de governo de esquerda, tornando-se uma força difícil de corroer, provocou uma  
disjunção entre as demandas reais dos trabalhadores e as demandas do mercado, onde alguns  
partidos de esquerda, sindicatos e movimentos sociais centram suas forças para atender aos  
determinantes do mercado, numa rendição completa ao momento contrarrevolucionário.  
Reativamente, um ponto de clivagem entre o Governo FHC e o Governo Lula foi a  
estagnação da enxurrada de privatizações que vinham desde o início dos anos 1980 e que  
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Estado brasileiro e a subserviência ao capital: traços da formação econômica brasileira  
tiveram ritmo de combustão com esse primeiro. Entretanto, o governo Lula implanta e inaugura  
“[...] outra configuração para as privatizações do patrimônio público nacional. Ao invés da  
venda direta dos ativos [...], concessões e parcerias público-privadas foram promovidas nos  
últimos anos nos setores de energia, transporte, telecomunicações e políticas sociais [...].”  
(CASTELO, 2013, p. 134, grifos originais).  
No plano econômico, o Governo Lula angaria crescimentos da economia nacional (e  
favorecimento à burguesia interna) com o Programa de Aceleração do Crescimento (PAC),  
criado em 2007 com vistas a dinamizar e promover o crescimento da economia brasileira. O  
PAC constitui-se como uma tentativa de impulsionar a economia brasileira, semelhante a outras  
ocorridas no período do Governo Vargas, do Governo Juscelino Kubitschek e equipara-se ao  
desenvolvimento de infraestrutura do período do regime militar-empresarial. O PAC serviu para  
a criação de infraestrutura voltada ao crescimento das commodities agrícolas e minerais, que  
passaram a manter o superávit da balança comercial, e garantir legitimação do projeto  
econômico o PAC ampliou programas sociais.  
Por fim, pontuamos outra característica do Estado brasileiro é seu compromisso fiel ao  
pagamento da dívida pública. Por isso, os governos que assumem o comando político do Estado,  
que são regidos pelos preceitos neoliberais, devem cumprir “à risca” o pagamento da dívida  
pública, uma dívida que tem “natureza antinacional e antissocial” (SAMPAIO JR., 2004). A  
dívida pública move o sistema financeiro do capitalismo sem nenhum escrúpulo ou “zelo” pelas  
economias periféricas, até porque a natureza do capital é impiedosa e, devido a sua forma de  
ser, não está subjugada a nenhum apelo ou cuidado moral. Não é necessária uma análise teórica  
rigorosa para identificar qual o real compromisso do Estado brasileiro com o pagamento da  
dívida se seus efeitos são reais, visíveis e latentes no cotidiano: em 2018, a dívida pública  
consumiu 40, 66% (R$ 1, 065 trilhão) do Orçamento Federal; em 2019, 1.037 trilhão; e, em  
2020, 1.381 trilhão (39,08% do Orçamento Federal executado)1.  
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Considerações finais  
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Os fundamentos do método marxiano de apreensão da realidade social não permitem  
qualquer tratamento sobre o Estado autonomizando e desvinculando-o da produção material da  
sociedade. Todo o processo de desenvolvimento sui generis do capitalismo brasileiro reverbera-  
se ativamente pela intervenção direta do Estado e seu aparato legal-normativo-jurídico. A  
intensidade da atuação do Estado brasileiro no processo de garantia da sua função econômica e  
1 Dados extraídos do site https://auditoriacidada.org.br/. Acesso em: 19 abr. 2021.  
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política de manter a acumulação de capital se modifica diante das movimentações históricas  
internas e externas.  
O Estado brasileiro alavancou a infraestrutura necessária ao desenvolvimento do capital  
e do capitalismo, às custas da exploração do trabalho, do saque aos recursos naturais e da  
destruição ambiental, com contração de empréstimos públicos, com contratação de empreiteiras  
nacionais e estrangeiras. É inegável que de Vargas até a quadra atual do capitalismo brasileiro  
a dinâmica da economia política teve um suporte essencial do Estado no asseguramento das  
condições de acumulação de capital. A ínfima e frágil industrialização brasileira só foi possível  
com a associação ao capital estrangeiro e suporte direto e indireto do Estado brasileiro, e o  
regime militar-empresarial constitui-se o ápice da subordinação total da economia brasileira aos  
países centrais e da configuração de um Estado autoritário e repressivo contra os trabalhadores  
que ganha contornos violento contra os direitos dos trabalhadores no neoliberalismo.  
Portanto, a dependência e subordinação da dinâmica econômica brasileira, submetidos  
aos imperativos do capital, modulou o Estado brasileiro, a sua forma de comando político e  
toda a estrutura do aparato estatal. Sua atuação tem sido, historicamente, direcionada “para  
fora” e não para estruturar a economia nacional “para dentro” (PRADO JUNIOR, 1994), por  
isso ele possui o caráter antinacional (MAZZEO, 1995), sempre subjugando e reprimindo  
violentamente os trabalhadores.  
250  
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Revista Libertas, Juiz de Fora, v. 23, n.1, p. 228-251, jan./jun. 2023. ISSN 1980-8518  
DOI 10.34019/1980-8518.2023.v23.41397  
Entrevista: Esther Luíza de Souza Lemos*  
Entrevistadora: Carina Berta Moljo**  
Carina: Querida Esther, antes de mais nada, queríamos te agradecer por aceitar o  
convite da Revista Libertas para a nossa seção de entrevistas.  
Sem dúvida você é uma das jovens intelectuais e militantes do Serviço Social brasileiro  
que vem trabalhando de forma comprometida e crítica buscando a unidade do Serviço Social  
crítico, especialmente deste lado do continente.  
Como e quando começa a aproximação com o Serviço Social internacional?  
Esther: Agradeço imensamente o convite da Revista Libertas nesta seção que, de forma  
mais direta, registra a movimentação e o movimento de nossa categoria no tempo presente. A  
pergunta me fez voltar à memória do percurso vivido desde minha graduação e a escolha pela  
profissão realizada em 1989. Na minha experiência profissional, posso dizer que o marco  
central de aproximação com a temática foi a inserção na pós-graduação de nossa área, primeiro  
no mestrado da PUC-SP e depois no doutorado na UFRJ. O intercâmbio em nosso país realizado  
com colegas da Argentina, Uruguai, Colômbia, Costa Rica, Angola, Cabo Verde bem como o  
doutorado sanduiche realizado em Portugal, além da participação em eventos internacionais,  
permitiu interação e diálogo sobre as contradições da realidade, além do estudo conjunto.  
Durante o doutorado na UFRJ, em 2004 criamos o Grupo de Estudos da América Latina –  
GEAL, um grupo formado por doutorandxs de diferentes países morando no Rio de Janeiro,  
instigados por analisar e intervir a partir de Nuestra America. Foi uma experiência que abriu  
minha cabeça, olhos e ouvidos para sentir junto e entender, teórica e politicamente, nossa  
particularidade sócio-histórica e necessidade de superação das opressões, dominação e  
* Assistente social, com mestrado em Serviço Social pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, doutorado  
em Serviço Social pela Universidade Federal do Rio de Janeiro e pós-doutorado pela Universidade de Brasília. É  
professora efetiva da UNIOESTE. Tem como área de investigação os fundamentos do Serviço Social e o trabalho  
da/o assistente social particularmente na política de assistência social no âmbito da Seguridade Social brasileira.  
Participou como conselheira do Conselho Federal de Serviço Social - CFESS, na gestão 2011-2014 e na gestão  
2014-2017. Foi presidente da Associação Brasileira de Ensino e Pesquisa em Serviço Social - ABEPSS (2019-  
2020). Atuou na Coordenação do Programa de Pós-Graduação em Serviço Social da UNIOESTE - Campus de  
Toledo nos períodos de 2017-2019 e 2020-2023. Atualmente atua na Coordenação de Relações Internacionais da  
ABEPSS gestão 2023-2024.  
**  
Professora titular da Faculdade de Serviço Social - UFJF. Doutora em Serviço Social; bolsista produtividade  
CNPQ. Membro do Grupo de Pesquisa: Serviço Social, Movimentos Socais e Políticas Públicas - UFJF.  
Revista Libertas, Juiz de Fora, v.23, n.1, p. 252-257, jan./ jun. 2023. ISSN 1980-8518  
Coordenação de Relações Internacionais da ABEPSS gestão 2023 - 2024.  
exploração.  
Posteriormente quando participei como conselheira do CFESS, na gestão 2011-2014 na  
presidência de Sâmya Rodrigues Ramos e na gestão 2014-2017 na presidência de Maurílio  
Castro de Matos, assumi a coordenação da comissão de relações internacionais. Nesta instância  
organizativa de nossa categoria no país, a partir das deliberações dos Encontros Nacionais do  
Conjunto CFESS/CRESS, fórum máximo de deliberação da agenda político-profissional, tive  
a oportunidade de contribuir na execução das ações coletiva e democraticamente aprovadas.  
Entre estas destaco a organização do Workshop sobre a Definição de Serviço Social, realizado  
em 2012 na cidade do Rio de Janeiro.  
Representando o CFESS no Comitê Latinoamericano e Caribenho de Organizações  
Profissionais de Trabalho Social/Serviço Social – COLACATS, exerci a função de sua  
coordenação no período de 2014 a 2017, contribuindo para expansão da organização e  
representação política da categoria no nosso continente e nas instâncias mundiais.  
Carina: Considerando a sua participação em diferentes órgãos internacionais, como  
você vê hoje o Serviço Social internacional? Quais as perspectivas teóricas e políticas?  
Esther: A realidade mundial tem exigido uma dinamicidade maior no campo da  
organização política da categoria. Se por um lado as desigualdades de toda ordem têm se  
acirrado como fruto da crescente concentração e centralização da riqueza, tanto no interior dos  
países quanto entre países, por outro lado, nos últimos 10 anos tem ocorrido a expansão do  
número de organizações profissionais nacionais vinculados à Federação Internacional de  
Trabalhadores(as) Sociais – FITS, aglutinando a participação nas respectivas regiões do mundo.  
Em 2011 este número era aproximadamente 90 países, de acordo com site  
www.ifsw.org/regions/. Atualmente 138 países integram a FITS, sendo: 34 na África, 31 na  
Ásia e Pacífico, 50 na Europa, 21 na América Latina e 02 na América do Norte.  
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A profissão não é homogênea nem tampouco sua organização política. Os processos de  
democratização dos estados nacionais têm refletido em âmbito nacional e mundial, enfrentando  
o histórico conservadorismo e eurocentrismo presentes nos organismos internacionais. As  
disputas de projetos societários presentes na sociedade também se expressam de forma teórica  
e política nas organizações. Sendo espaços de cooperação internacional e de construção de  
consensos, as organizações têm protagonizado incidência nos organismos internacionais e  
também no interior das organizações nacionais para construir unidade em pautas comuns e  
principalmente para fortalecer a regulamentação da profissão num contexto crescente de  
desregulamentação e violações de direitos. Neste sentido, o fortalecimento da direção e  
concepção ético-política que orienta o Serviço Social brasileiro tem sido fonte de formação e  
Revista Libertas, Juiz de Fora, v.23, n.1, p. 252-257, jan./ jun. 2023. ISSN 1980-8518  
Entrevista com Esther Luíza de Souza Lemos  
contribuído para a sustentação teórica e política nos processos de tomada de decisão da luta  
neste âmbito.  
Duas dimensões podem expressar com mais precisão as perspectivas presentes no  
âmbito internacional: as propostas da agenda política das diferentes candidaturas para eleições  
à presidência da FITS e os diferentes conteúdos teórico-metodológicos dos trabalhos  
apresentados nos Congressos Mundiais. O que posso testemunhar é a luta das tendências  
progressistas, democráticas e críticas da e na profissão no âmbito internacional, necessitando  
persistente e permanente investimento no enfrentamento da grande onda neoconservadora.  
Carina: Você já participou de gestões do CFESS e da ABEPSS e atualmente está na  
coordenação de Relações Internacionais da ABEPSS, você poderia sinalizar os períodos chaves  
para a articulação do Serviço Social na América Latina?  
Esther: O divisor de águas da rearticulação internacional do Serviço Social numa  
perspectiva crítica naAmérica Latina e Caribe foi sem dúvidas o Movimento de Reconceituação  
(1965 – 1975), entre suas heranças, permitiu a consciência da necessidade de reversão da  
direção ético-política das organizações existentes e criação de novas onde estas eram  
inexistentes. É preciso considerar que este não foi um processo homogêneo, desdobrando-se  
em cada realidade nacional em diferentes graus de institucionalidade, auto sustentação e  
autonomia político-organizativa. A observação revela que o protagonismo das e dos assistentes  
sociais em coletivos nacionais organizados, com crescente consciência político-participativa,  
permitiu avançar em pautas comuns no âmbito das relações internacionais.  
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A partir da década de 1990, destaco dois processos que tem sido fecundos no  
fortalecimento político-organizativo numa perspectiva crítica: a criação do Comitê Mercosul  
de Organizações Profissionais de Trabalho Social/Serviço Social em 1995 com a participação  
da Argentina, Brasil, Chile, Paraguai e Uruguai e, posteriormente, a decisão de sua ampliação  
criando em 2013 o Comitê Latinoamericano e Caribenho de Organizações Profissionais de  
Trabalho Social/Serviço Social – COLACATS inicialmente com 12 países. Atualmente, além  
dos 5 países fundadores do Comitê Mercosul, o COLACATS é integrado pela Colômbia, Costa  
Rica, Cuba, México, Nicarágua, Peru, Porto Rico, República Dominicana, Uruguai, El  
Salvador, Granada e Panamá, agregando 17 países. Não é preciso estar filiado à FITS para  
participar do COLACATS, porém um dos objetivos do COLACATS tem sido incidir política e  
coletivamente nesta instância.  
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A distinção, e ao mesmo tempo, a unidade entre trabalho e formação profissional tem  
orientado a ação coletiva nos respectivos Comitês, propondo reuniões, ações e pronunciamentos  
conjuntos com a Associação Latinoamericana e Caribenha de Ensino e Pesquisa em Serviço  
Revista Libertas, Juiz de Fora, v.23, n.1, p. 252-257, jan./ jun. 2023. ISSN 1980-8518  
Coordenação de Relações Internacionais da ABEPSS gestão 2023 - 2024.  
Social – ALAEITS, refundada em 2006 com protagonismo da ABEPSS.  
Carina: Quais os resultados desta articulação?  
Esther: Além da participação de pesquisadorxs e profissionais brasileirxs em eventos  
internacionais, rede de pesquisas e pesquisadorxs, produções e intercâmbios, demarcaria alguns  
resultados concretos desta articulação que passa pelo protagonismo brasileiro no âmbito das  
relações internacionais, priorizando a articulação latino-americana e caribenha para então e  
conjuntamente incidir no âmbito mundial:  
1. Aprovação dos Princípios éticos y políticos para las Organizaciones Profesionales de Trabajo Social  
del Mercosur em 2000 na cidade de Montevideo, Uruguai, e posteriormente incorporação destes  
princípios  
no  
Estatuto  
do  
COLACATS  
em  
2013.  
Disponível  
em  
2. Realização da 19ª Conferência Mundial de Serviço Social no Brasil, de 16 a 19 de agosto de 2008  
em Salvador – BA, contendo a participação de 2.691 assistentes sociais de 42 diferentes países dos  
cinco continentes, desde sua criação foi a segunda vez realizada na América Latina. Informação  
3. Realização do Workshop sobre a Definição de Serviço Social realizado dias 08 e 09 de março de  
2012 na UERJ, Rio de Janeiro. Além do Brasil participaram as seguintes representações: Argentina,  
Chile, República Dominicana, Paraguai, Porto Rico e Uruguai, além da ALAEITS, ABEPSS,  
ENESSO bem como das instâncias mundiais da FITS e AIETS. Mais informações disponíveis em  
255  
4. Incorporação no Estatuto do COLACATS da Definição de Serviço Social aprovada no workshop  
de 2012 realizado no Rio de Janeiro, como referência para adesão dos países. Mais informações  
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5. Participação da profa. Marilda Iamamoto como conferencista da Conferência Mundial realizada  
em Melbourne, Austrália, em 2014 e apresentação da candidatura de Rodolfo Martinez (Uruguai)  
para  
presidência  
da  
FITS.  
Informações  
disponíveis  
em  
6. Realização do Seminário Nacional Serviço Social, Relações Fronteiriças e Fluxos Migratórios  
Internacionais, dias 6 e 7 de julho de 2016 na cidade de Belém – PA. Vídeos na íntegra e matéria  
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7. Premiação da profa. Marilda Iamamoto ao prêmio Katherine A. Kendall ofertado pela AIETS, em  
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A
2018  
na  
cidade  
de  
Dublin,  
Irlanda.  
Mais  
informações  
disponíveis  
em:  
8. Eleição de Silvana Martinez (Argentina) como presidente da FITS na Assembleia de 2018 realizada  
em Dublin, com apoio do Brasil, realizando mandato de 2018 a 2022. Outra representação latino-  
Revista Libertas, Juiz de Fora, v.23, n.1, p. 252-257, jan./ jun. 2023. ISSN 1980-8518  
Entrevista com Esther Luíza de Souza Lemos  
americana na gestão mundial foi a eleição de Victor Ivan Garcia-Toro (Porto Rico), atualmente na  
tesouraria da FITS. Desde 2020, a representação do Brasil passou a assumir a vice-presidência a  
FITS para América Latina e Caribe com a assistente social Tania Maria de Godoy Diniz, com  
mandato  
até  
2024.  
Mais  
informações  
disponíveis  
em  
9. Realização do Seminário Diálogos Internacionais “Arelação AIETS e ABEPSS”, no dia 13 de julho  
de 2022, com a presença das diretorias das duas entidades na UFPE, a realização de duas mesas  
com transmissão online por meio da TV ABEPSS. Informações disponíveis em  
10. Realização do Seminário Latinoamericano e Caribenho Povos Indígenas e Direitos Humanos  
realizado dias 14 e 15 de julho de 2022, em Brasília – DF, com a participação da FITS – América  
Latina  
e
Caribe  
e
ALAEITS. Vídeos na íntegra  
e
matéria disponível em  
11. Realização da Conferência Mundial de Serviço Social de 2024, dias 04 a 07 de abril, na cidade do  
Panamá – Panamá. Será a terceira vez que a América Latina e o Caribe receberão uma Conferência  
Mundial sendo espaço relevante de visibilidade e intercâmbio para a região. Mais informações  
256  
Carina: Quais os desafios que teremos pela frente?  
Esther: Temos muitos desafios pela frente, entre eles, destaco o fortalecimento conjunto  
das conquistas na regulamentação da profissão enfrentando a intensificação do processo de  
precarização das condições de trabalho e formação profissional, o enfrentamento da barreira da  
língua e a ampliação de financiamentos para pesquisas, participação e realização de eventos  
internacionais, intercâmbio, missões, mobilidade acadêmica, bem como, incidência nas  
agências de cooperação internacionais. Outro desafio importante, neste contexto regressivo e  
considerando nosso processo de colonização, é a construção de estratégias coletivas de atuação  
junto aos povos originários, entendendo a necessidade de se aprofundar no universo cultural,  
político e econômico dos povos indígenas, de forma que, possamos assumir em nossos espaços  
profissionais o compromisso com o enfrentamento contra extermínios, violações e expropriação  
de seus direitos. Nesse sentido, é fundamental incorporar a luta dos povos indígenas como uma  
das pautas centrais dos coletivos do Serviço Social em toda a América Latine e Caribe.  
Carina: Qual o papel que vem desenvolvendo a ABEPSS para consolidação desta  
articulação?  
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Esther: A ABEPSS vem desenvolvendo um papel de intensa cooperação e articulação  
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Coordenação de Relações Internacionais da ABEPSS gestão 2023 - 2024.  
com o conjunto CFESS/CRESS na agenda das relações internacionais, realizando e  
participando de eventos conjuntos, de comissões e fomentando a pesquisa que coloca o Serviço  
Social como objeto de estudo. Particularmente na atual gestão foi criada uma Comissão  
Temporária de Trabalho – CTT para propor a política de relações internacionais da entidade a  
ser aprovada pelaAssembleia Geral até 2024. Este documento objetiva contribuir com diretrizes  
estratégicas subsidiando ações futuras e registrando o acúmulo construído pela categoria.  
Outra dimensão atual de avanços no âmbito das relações internacionais da ABEPSS foi  
a eleição de Ramiro Dulchich (Brasil), na Assembleia de Montevideo realizada em 24 de  
novembro de 2022, para coordenação dos países que integram o Cone Sul na ALAEITS. No  
âmbito Associação Internacional de Escolas de Serviço Social – AIETS, a diretriz estratégica  
da ABEPSS tem sido o fortalecimento da articulação latino-americana e a partir desta, sua  
presença no âmbito mundial. O contexto de crise do capital agravado pela pós-pandemia tem  
colocado a necessidade de coletivização do debate das relações internacionais, particularmente  
na formação profissional em Serviço Social, buscando estratégias coletivas e orgânicas à  
entidade.  
Neste sentido, a atual gestão da ABEPSS, por meio da CTT, planejou realizar  
mapeamento sobre a política de relações internacionais das universidades públicas no país com  
o objetivo de identificar intercâmbios internacionais de pesquisas, pesquisadores, de redes de  
pesquisadores, estudantes e docentes da área, envolvendo graduação e pós-graduação, bem  
como, promover estudo e debate sobre o reconhecimento de diplomas e livre trânsito de  
profissionais com vistas a fomentar a cooperação internacional. A partir do conhecimento desta  
dimensão na área, objetiva-se propor e apresentar para deliberação da Assembleia Geral de  
2024, o documento que expresse a política de relações internacionais da ABEPSS. Estamos em  
processo e trabalhando para que o mesmo seja participativo e democrático, representando a  
diversidade de regiões do país, de naturezas institucionais e de protagonistas.  
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Carina: Gostaria de deixar alguma mensagem final  
Esther: Que as novas gerações avancem no fortalecimento do processo político-  
organizativo da classe trabalhadora e nesta, na particularidade de nossa profissão desde Nuestra  
America! A luta é feminista, antirracista, antilgbtqia+fóbica, anticapitalista e internacionalista!  
Como nos lembra Trotsky, “A vida é bela. Que as futuras gerações a livrem de todo mal, de  
toda opressão, e possam desfrutá-la em toda sua plenitude”. Sigamos balançando nossas  
bandeiras em punho na certeza de que nossa bússola e nosso norte, é o Sul!  
Revista Libertas, Juiz de Fora, v.23, n.1, p. 252-257, jan./ jun. 2023. ISSN 1980-8518  
DOI 10.34019/1980-8518.2021.v23.41395  
“O evangelho segundo Foucault”  
Apresentação à tradução do artigo:  
As palavras e as coisas no pensamento econômico (Pierre Vilar)  
Ronaldo Vielmi Fortes*  
Em 1972, Carlos Nelson Coutinho publicou a 1ª. edição de O estruturalismo e a miséria  
da razão, livro de combate que se posiciona contra as tendências estruturalistas que emergiram  
fortemente na década anterior. No capítulo destinado à crítica do pensamento de Michel  
Foucault, Coutinho encerra suas ponderações com as seguintes palavras: “esperemos que ele  
[Foucault] venha a ser apenas um curioso fenômeno, rapidamente esquecido, de uma época de  
transição”1. As esperanças de Coutinho foram em vão. Cinco décadas depois, o que assistimos  
é o forte predomínio do pensamento do filósofo francês no âmbito acadêmico mundial. As  
resistências e denúncias de insustentabilidade de parte de suas teses não foram poucas, mas  
contra todas as provas e demonstrações o pensamento foucaultiano prevaleceu. Sinal dos  
tempos? É preciso, sem dúvida, entender esse fenômeno.  
Algumas palavras sobre as influências recebidas por Foucault na construção de sua  
filosofia podem ajudar a compreender dimensões importantes de sua obra. As bases do  
pensamento do filósofo francês são mais que evidentes. Claramente anunciada, a presença de  
Nietzsche marca seu pensamento, contudo outro autor também transparece em vários  
momentos de suas reflexões: Martin Heidegger2. O que não é mero acaso, uma vez que essa  
tríade configura em nossos dias presença hegemônica no campo das ciências humanas em geral.  
Obviamente o Nietzsche de Foucault é o filósofo pasteurizado, atenuado, visto à esquerda como  
* Doutor em filosofia pela UFMG, professor da Faculdade de Serviço Social – UFJF.  
1
COUTINHO, Carlos Nelson; O estruturalismo e a miséria da razão; São Paulo, Expressão Popular, 2010; p.  
174.  
2 “Heidegger sempre foi para mim o filósofo essencial. Comecei com Hegel, depois Marx, e me pus a ler Heidegger  
em 1951 ou 1952; e em 1953 ou 1952 - não me lembro mais – li Nietzsche. Ainda tenho as notas que tomei sobre  
Heidegger no momento em que o lia - são toneladas! -, e elas são muito mais importantes do que aquelas que tomei  
sobre Hegel ou Marx” (FOUCAULT, Ditos V, p. 259). Dados os limites dessa apresentação, a relação de Foucault  
com Heidegger não poderá ser tratada, remetemos os interessados ao livro de François Dosse, História do  
estruturalismo, vol. I; São Paulo: Ensaio, 1993 (particularmente ao capítulo 37: “As raízes nitzscheo-  
heideggerianas. Dosse descata a forte influência do pensamento anti-historicista e anti-humanista de Nietzsche e  
Heidegger no estruturalismo, no qual se inclui a obra de Foucault.  
Revista Libertas, Juiz de Fora, 23, n.1, p. 258-267, jan./jun. 2023. ISSN 1980-8518  
“O evangelho segundo Foucault”  
crítico da sociedade3. Dele se retirou as palavras mais ásperas e comprometedoras4, restando a  
filosofia a marteladas como a expressão mais contundente do niilismo sobre a qual Foucault  
funda a natureza mais íntima de seus procedimentos analíticos.  
É de Nietzsche que Foucault recolhe a desconfiança em relação à razão, denunciando-a  
como incapaz de instituir a verdade:  
O que é, pois a verdade? Um exército móvel de metáforas, metonímias,  
antropomorfismos, numa palavra, uma soma de relações humanas que foram  
realçadas poética e retoricamente, transposta e adornadas, e que, após uma  
longa utilização, parece a um povo consolidadas, canônicas e obrigatórias: as  
verdades são ilusões das quais se esqueceu que elas assim o são, metáforas  
que se tornaram desgastadas e sem força sensível, moedas que perderam seu  
troquel e agora são levadas em conta apenas como metal, e não mais como  
moedas.5  
Ademais em Nietzsche o universo em sua totalidade, incluindo a esfera das relações  
propriamente humanas, se constitui como multiplicidade caótica inexorável. A própria  
objetividade do mundo é negada, não existe verdade, a morte de Deus é anunciada, o que  
predomina no campo das formulações filosóficas são sempre “interpretações de interpretações”.  
A radicalidade do caos generalizado, proposta por ele, é conduzida à própria interioridade do  
indivíduo. Diferentemente dos modernos – eis aqui uma das raízes da pós-modernidade de  
Foucault – o sujeito já não se encontra mais fechado em si mesmo por meio da identificação  
direta com sua consciência, pelo contrário, a própria individualidade é compreendida como 259  
fragmentada, cindida. Nesse ponto, cabe dar voz ao próprio Nietzsche:  
que a consciência não faz parte propriamente da existência individual do  
homem, mas antes daquilo que nele é da natureza de comunidade e de  
rebanho; que também, como se segue disso, somente em referência à utilidade  
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de comunidade e rebanho ela se desenvolveu e refinou e que,  
consequentemente, cada um de nós, com a melhor vontade de entender a si  
mesmo tão individualmente quanto possível, de “conhecer a si mesmo”,  
sempre trará a consciência, precisamente, apenas o não-individual em si, seu  
“corte transversal” – que nosso pensamento mesmo, pelo caráter da  
consciência – pelo “gênio da espécie” que nele comanda –, é constantemente  
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3 Cf. MONVILLE, Aymeric; Mísère du nietzschéisme de gauche: de Georges Bataille à Michel Onfray; Bruxelles:  
Aden, 2007.  
Bastaria citar como por exemplo, passagens de Assim falou Zaratrusta: “O homem deve ser educado para a  
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4
guerra, a mulher para o repouso do guerreiro: fora disso tudo é loucura... Vais às mulheres? Não esqueças o chicote”  
(Zaratrusta, I, “Das mulherzinhas jovens e velhas”); “Os homens efeminados, os filhos de escravos e sobretudo a  
população mestiça, tudo isso quer ter hoje nas mãos o destino humano – ó nojo, ó nojo, ó nojo” (Zaratrusta, IV,  
“Do homem superior”); “Que todos tenham o direito de aprender a ler, eis o que a longo prazo te enoja não só de  
escrever, mas também de pensar” (Zaratrusta, I, “Ler e escrever”). Ou ainda em Além do bem e do mal: “Uma boa  
e verdadeira aristocracia [deve aceitar] sacrificar de bom grado uma multidão de pessoas que deverão ser, no  
interesse dessa aristocracia, humilhadas e reduzidas à condição de seres mutilados, de escravos, de instrumentos”.  
“Morram os fracos e fracassados: primeiro princípio de nosso amor aos homens. E que sejam ajudados a  
desaparecer” (O anti-cristo). Retiramos essas citações do artigo de André Comte-Sponville; A besta-fera, o sofista  
e o esteta: “a arte a serviço da ilusão”; in: BOYER, Alain [et al.]; Por que não somos Nietzscheanos; São Paulo,  
Editora Ensaio, 1993.  
5 NIETZSCHE, Friedrich; Sobre Verdade e Mentira no Sentido Extra-Moral; São Paulo: Hedra, 2007; p. 36-7.  
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Ronaldo Vielmi Fortes  
como que majorizado e retraduzido para a perspectiva do rebanho.6  
Para Nietzsche, o valor supremo, contrariamente aos modernos, não consiste mais na  
autonomia dos indivíduos frente ao todo, nem na construção de uma ética norteadora da ação  
individual, porém na prerrogativa do si mesmo por meio da afirmação da máxima  
independência em relação ao outro e à sociedade. Desse modo, ao se opor ao individualismo  
do pensamento moderno não sugere pôr o indivíduo contra o todo, mas sim afirmar  
sobremaneira o pessoal, o sujeito, em sua diferença incomparável com o todo.  
O pensamento de Foucault segue a linha de continuidade de Nietzsche em as suas mais  
profundas consequências, principalmente no que concerne à crítica da modernidade. O combate  
à modernidade é a expressão do desencanto da razão, assomada à afirmação peremptória da  
incapacidade dos indivíduos de controlar e direcionar sua história coletiva ou pessoal.  
Mas falemos mais diretamente de Foucault. Sua notoriedade tem início com a  
publicação de sua tese História da loucura. Antes vale aqui uma ressalva, contra quaisquer mal-  
entendidos. O livro não inaugura o movimento antimanicomial, ele surge a propósito de um  
debate que já vinha ocorrendo desde a década de 1950. A esse respeito vale lembrar da edição  
da revista Esprit7, que no ano de 1952 dedica um número especial sobre o tema, intitulado  
Misère de la psychiatrie. Assim sendo, a obra de Foucault surge a propósito das discussões já  
acirradas que clamavam a necessidade da reforma da psiquiatria. Participa do debate,  
assumindo aí uma notoriedade expressiva, porém com a intenção clara de propor uma nova  
problematização quanto ao tema. Esse aspecto revela uma dimensão importante do pensamento  
do filósofo francês que sempre procurou conciliar suas reflexões com as questões e conflitos  
mais relevantes da sociedade francesa e mundial. Haja vista, sua obra Vigiar e punir, que marca  
a participação relevante do autor nas crises que vinham ocorrendo no sistema penitenciário  
É preciso indagar sobre o verdadeiro propósito do livro sobre a loucura. Se, de fato,  
trata-se de construir uma tese sobre a história da loucura, ou voltar-se contra um dos principais  
fundamentos do pensamento moderno: a razão. Já de início o ataque frontal à razão é anunciado,  
na medida que a loucura é definida como o contraponto da racionalidade. Conforme conclama  
o autor: “a não-razão do século XVI constituía uma espécie de ameaça aberta cujos perigos  
podiam sempre, pelo menos de direito, comprometer as relações da subjetividade e da verdade.  
[...] Doravante, a loucura será exilada”8.  
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6
NIETZSCHE, Frederic; A gaia ciência; in: Obras incompletas; Coleção “Os pensadores”; São Paulo: Nova  
Cultural, 1999; p. 201.  
7 Esprit, numéro 12, décembre 1952.  
8 FOUCAULT, Michel; História da Loucura na idade clássica; São Paulo, Editora Perspectiva, 1978, p. 54.  
Revista Libertas, Juiz de Fora, 23, n.1, p. 258-267, jan./jun. 2023. ISSN 1980-8518  
“O evangelho segundo Foucault”  
Não por mero acaso sua obra tem início com a exemplaridade do pensamento cartesiano.  
Descartes é quem inaugura, para Foucault – também para Heidegger –, o pensamento da  
modernidade ao definir a substância do homem como a res cogitans. Enfocando um pequeno  
fragmento da argumentação cartesiana, em sua construção da dúvida metódica, Foucault  
denuncia:  
Ora, Descartes adquiriu agora essa certeza, e agarra-se firmemente a ela: a  
loucura não pode mais dizer-lhe respeito. Seria extravagante acreditar que se  
é extravagante. Como a experiência do pensamento, a loucura implica a si  
própria e, portanto, exclui-se do projeto. Com isso a loucura desaparece no  
próprio exercício da razão.9  
A curta passagem da obra cartesiana a partir da qual Foucault fundamenta suas  
considerações é a seguinte:  
E como poderia eu negar que estas mãos e seu corpo sejam meus? A não  
talvez, que eu me compare a esses insensatos, cujo cérebro está de tal modo  
perturbado e ofuscado pelos negros valores da bile que constantemente  
asseguram que são reis quando são muito pobres [...] Mas quê? São loucos e  
eu não seria menos extravagante se me guiasse por seus exemplos.10  
O truque de Foucault é dizer que Descartes bane a loucura na exata medida em que ela  
contradiz a razão, e uma vez que ele quer garantir a res cogitans [substância pensante] é preciso,  
insiste o autor, repudiar logo de saída o perigo da loucura, pois ela é o exato oposto da razão.  
Entretanto, o que de fato diz Descartes e qual o propósito de sua argumentação? Na verdade,  
Descartes abandona o argumento do louco, pois se trata de algo insuficiente para negar a certeza  
das sensações, ou seja, trata-se de uma experiência de poucos, de doentes, e não pode ser  
universalizada de forma a suscitar a dúvida que serviria para provocar em todos o ceticismo em  
relação às sensações. O objetivo não é salvar a razão como definição da substância humana,  
mas construir a dúvida metódica, a radicalização do ceticismo provisório, como forma de buscar  
alcançar uma certeza que possa fundamentar como princípio claro e distinto o estabelecimento  
da certeza científica. Comentários dessa ordem, ou seja, o argumento das alucinações da  
loucura, não são suficientes para negar que as sensações são a fonte da certeza, pois bastaria  
dizer, que não são passíveis de serem elevados a uma experiência geral, pois são experiências  
particulares, comuns a uma classe específica de pessoas. Nesse sentido, o exemplo dos sonhos  
vívidos, ainda segundo Descartes, tendo em vista que pode ser vivenciado por qualquer  
indivíduo.  
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O modo como Foucault trata o texto de Descartes acerca do argumento do louco,  
considerando-o como prova do modo como a modernidade tratou da questão e possibilitar assim  
9 Id. ib.  
10 DESCARTES, René; Meditações metafísicas; [coleção “Os pensadores”], p. 94.  
Revista Libertas, Juiz de Fora, 23, n.1, p. 258-267, jan./jun. 2023. ISSN 1980-8518  
Ronaldo Vielmi Fortes  
a rejeição crítica da razão, é um exemplo paradigmático de sua desconsideração pelo texto, ou  
seja, o texto não vale por si mesmo. Os conteúdos, problematizações e argumentos  
desenvolvidos na escrita do filósofo, não valem por si mesmos. É preciso ir além e realizar a  
arqueologia do discurso que se esconde por trás das palavras. Esse procedimento não deixa de  
apresentar problemas e suscitar questões. Nesse sentido, quanto à hermenêutica genealógica  
valeria a pena fazer a seguinte advertência:  
se nos convencermos de que o texto só é compreendido a partir de outra coisa  
que não ele mesmo, corremos o risco de nem mesmo tomarmos mais o cuidado  
de construir a coerência interna da obra estudada e de inseri-la à força, numa  
lógica que não é a dela. Se, de um ponto de vista teórico, a genealogia,  
retirando a priori do sujeito o controle de seus enunciados, participa  
claramente desta destruição da subjetividade em torno da qual se unem os  
componentes do pensamento 68, ela apresenta, além disso, praticamente,  
efeitos perversos, onde o menor não é o delírio interpretativo.11  
Se me for concedido pesar nos termos, como não ver raciocínio semelhante em As  
palavras e as coisas, quando Foucault desconsidera as diferenças entre Karl Marx e David  
Ricardo, conduzindo-os ao denominador comum da episteme característica do homo  
economicus, o que lhe permite acusar: “o marxismo está no pensamento do século XIX como  
peixe n’água. [...] Seus debates podem agitar algumas ondas e desenhar sulcos na superfície:  
são tempestades num copo d’água”12. A oposição dos pensamentos se ergue a partir da mesma  
estrutura, da mesma episteme, desse modo as ideias não importam, não importam seus autores,  
nem o debate sobre a realidade econômica e social, ambos estão calcados nas mesmas estruturas  
que marcam os saberes de dada época. Convém acrescentar outro aspecto de modo algum  
irrelevante: toda a exposição da tese de Foucault se desenrola sem uma única citação, sem  
nenhuma referência à análise direta dos textos. Aspecto que seria justificável para ele, pois não  
se trata de ater-se ao manifesto, mas revelar a lógica do discurso latente aos textos.  
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Procedimento similar pode ser observado em seu Nietzsche, Freud e Marx. Ao  
relacionar Marx como um dos pensadores das interpretações, o argumento usado para colocar  
Marx no rol dos “interpretadores” é o fragmento de O capital, em que se diz: “o valor converte,  
antes, todo produto do trabalho um hieróglifo social. Mais tarde, os homens tentam decifrar o  
sentido desse hieróglifo, desvelar o segredo de seu próprio produto social, pois a determinação  
de seus objetos de uso como valores é seu produto social tanto quanto a linguagem”13. Eis o  
argumento: se se trata de um hieróglifo, é preciso interpretar o hieróglifo. E... basta! Eis o Marx  
11 FERRY, Luc; RENAUT, Alain; Pensamento 68; São Paulo, Editora Ensaio 1988; p. 116-7.  
12  
FOUCAULT, Michel; As Palavras e as Coisas, uma arqueologia das ciências humanas; São Paulo, Editora  
Martins Fontes, 1999; p. 360.  
13 MARX, Karl; O capital, livro 1; São Paulo: Boitempo, 2013, p. 149;  
Revista Libertas, Juiz de Fora, 23, n.1, p. 258-267, jan./jun. 2023. ISSN 1980-8518  
“O evangelho segundo Foucault”  
intérprete de hieróglifos. As mais de mil páginas que seguem à simples consideração figurativa,  
não importam. Não importa se sua obra visa na realidade desvelar as leis tendenciais concretas  
que regem a forma da sociabilidade do capital, não importa a análise do modo da produção da  
vida. São interpretações, sempre, interpretações de interpretações. Sinal dos tempos: nas  
perguntas que se seguem a sua palestra, nenhum dos presentes o interpela sobre a forma banal,  
imprecisa, de suas referências e de sua classificação apressada e sem conteúdo demonstrativo  
do pensamento de Marx.  
Mas é claro que isso não constitui um problema para quem advoga a tese de que não há  
verdades, há interpretações de interpretações. Sobre os cânones dessa arqueologia  
hermenêutica toda licenciosidade parece ser permitida.  
No entanto, para analisar o pensamento de um autor não basta a consideração da  
determinação social do pensamento, torna-se necessário revelar os propósitos declarados ou  
ocultos da guerra “suja e violenta” travada por meio das belas armas da abstração, típica dos  
embates da filosofia. Ou seja, a leitura imanente da obra é também tarefa imprescindível.  
Consiste em compreender os meandros próprios das teses e argumentos desenvolvidos, verificar  
a sustentabilidade ou as aporias internas ao texto. E tal análise deve percorrer ao menos dois  
caminhos: a verificação da coerência interna das argumentações e a verificação das bases e  
análises de fenômenos da realidade sobre as quais as teses são desenvolvidas.  
263  
Como não vermos com estranheza a perpetuação do pensamento de Foucault, quando  
várias foram as críticas em relação às suas interpretações de uma variedade de fatos históricos?  
Talvez, no caso do autor em particular, não seja nem o caso de falar de interpretação de fatos  
históricos, mas de uma construção peculiar da história. Os anos se passaram e não foram poucas  
as denúncias em relação a História da loucura.  
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Nesse sentido, creio não ser inoportuno referir aqui os “ajeitamentos” argumentativos,  
nos quais de maneira escamoteada, com artifícios capiciosos, Foucault enquadra o surgimento  
das Workhouses inglesas do século XVII, como mais um episódio da chamada “grande  
internação”, como se tal evento histórico fizesse parte da atmosfera dos tempos, motivada pelo  
“grande medo” dos insensatos, ou se se preferirem, dos “poderes confusos de corrosão e horror”  
da loucura. Fora de qualquer dúvida, para Foucault, o clima da época justifica a referência às  
instituições inglesas, porém o que fica negligenciado por ele é o problema da origem social dos  
conflitos, isto é, das contradições sociais que culminaram na agudização do fenômeno do  
pauperismo no século XVII. Bastaria reportar ao famoso capítulo 24 de O capital, em que Marx  
trada da “A assim chamada acumulação primitiva” esclarecendo de maneira precisa, no  
contexto histórico de sua época a gênese das Workhouses. Trata-se, segundo Marx, da tentativa  
Revista Libertas, Juiz de Fora, 23, n.1, p. 258-267, jan./jun. 2023. ISSN 1980-8518  
Ronaldo Vielmi Fortes  
de equalizar o desequilíbrio provocado pela “vagabundagem”, pela pobreza generalizada  
oriunda da expropriação dos meios de subsistência dos servos, dos camponeses. É um fenômeno  
social com evidentes decorrências históricas, de natureza em nada idílica, marcada pela  
expulsão dos camponeses de suas terras, pela apropriação das terras sociais, pela exploração  
das colônias, pelo genocídio, pela emergência da escravidão como base da nova forma de  
enriquecimento que começava a se apresentar. Contudo, na obra de Foucault a causalidade dos  
fatos históricos desaparece e tudo se vê reduzido ao “grande medo”, à ameaça da loucura ao  
princípio da razão apregoada pela modernidade. “O classicismo inventou a internação”14 e a  
razão cumpre um papel decisivo nessa prática. A indiferenciação dos assim chamados  
“internados” – sejam eles, loucos, homossexuais, bandidos, vagabundos, doentes etc. –, é o  
artifício que encerra todo o fenômeno da época na mesma quadradura do rechaço condenatório  
promovido pela razão.  
Como decorrência a história é sacrificada no altar da episteme. A descontinuidade, a  
ênfase na estrutura discursiva que molda as ações e saberes de dadas épocas torna quaisquer  
causalidades ou legalidades tendenciais históricas meras sacralizações da racionalidade, na  
medida em que, para o filósofo francês, não existem legalidades ou continuidades na história.  
E ainda, toda tentativa de estabelecer nexos causais que explicam as tendências e diretrizes  
assumidas na trajetória da humanidade, são consideradas como ilação aleatória e totalizadora.  
Novamente estamos diante do primado já referido acima: não há verdades, mas meras  
interpretações de interpretações. Porém, nesse caso, a licenciosidade hermenêutica se volta  
para o estabelecimento arbitrário de fatos; na ausência de dados, que se recolha fragmentos  
descontínuos da história para se construir a tese e argumentar a seu favor.  
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Há, entretanto, elementos mais problemáticos ainda a esse respeito na obra em questão.  
A reavaliação da cronologia apresentada por Foucault em seu livro História da loucura, por  
meio da qual se demonstra que a assim chamada “grande internação” havia ocorrido durante a  
idade clássica, mais precisamente em 1657 com a fundação do Hospital Geral, na verdade,  
nunca ocorreu. A datação não sobrevive ao exame da documentação histórica. Na trilha dos  
argumentos apresentados por Michel Foucault, Gladys Swivan e Marcel Gauchet15 desmontam  
o erro histórico do construto cronológico estabelecido em História da loucura. Os documentos  
coletados por ambos permitem estimar em duas mil pessoas reclusas em 1660, elevando-se para  
cinco mil após a Revolução Francesa, e atingindo cem mil em 1914. Em suma, não há  
14 FOUCAULT, Michel; História da Loucura na idade clássica; op. cit. p. 61.  
15  
GAUCHET, M. e SWAIN, G. La pratique de l’esprit humain. L’instituition asilaire et la révolution  
démocratique; Paris: Gallimard, 1980.  
Revista Libertas, Juiz de Fora, 23, n.1, p. 258-267, jan./jun. 2023. ISSN 1980-8518  
“O evangelho segundo Foucault”  
evidências históricas para a tese de Foucault sobre a “grande internação” no século XVII, o que  
se tem é uma interpretação assentada em passagens selecionadas sem nenhum rigor de certas  
documentações selecionadas para legitimar sua tese. Desse modo, a história não importa, os  
fatos não importam, vale apenas a localização da episteme, do saber com base na razão, que  
estrutura em geral o saber e o discurso do filósofo, do padre, do juiz, do político, do agente  
sanitário, do médico etc.  
Claude Quétel16, em um livro homônimo ao de Foucault, reendossa a constatação do  
erro – e adverte, a data correta da fundação do Hospital Geral é 1656 e não 1657 – dando  
destaque a outras incorreções históricas. Por exemplo, a afirmação de Foucault, segundo a qual  
“desde os primeiros meses do internamento, os doentes venéreos pertencem de pleno direito ao  
Hospital Geral”17. A indistinção – entre loucos, doentes etc. – promovida artificiosamente por  
Foucault tinha a intenção de destacar “a geometria imaginária de sua moral, o espaço do  
internamento, a época clássica acabava de encontrar ao mesmo tempo uma pátria e um lugar de  
redenção comuns aos pecados contra a carne e às faltas contra a razão. A loucura começa a  
avizinhar-se com o pecado...” 18. E na sequência Foucault coloca os homossexuais sob a mesma  
condição. A esse respeito, Quétel é taxativo: “a dialética é talvez sedutora, mas nada é mais  
falso”19. Os documentos – sempre eles – atestam que os acometidos por doença venérea eram  
“excluídos explicitamente” do Hospital Geral20, e a homossexualidade nunca foi associada à  
loucura, pois era punida como um crime e o Ancient Regime “jamais teve a ideia de punir um  
louco por sua loucura”21.  
265  
Obviamente, os adeptos de Foucault ainda poderiam contra-argumentar com as  
seguintes ponderações: “ainda assim o pensamento de Foucault contribui com algumas  
considerações relevantes...”, ou, “existem determinados aspectos a serem considerados...” etc.  
Entretanto, para manter certa coerência seria necessário acrescentar a essas ponderações: se os  
fatos contradizem a teoria, pior para os fatos.  
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Se insistimos aqui na obra História da loucura é para abrir e auxiliar na problematização  
do texto que ora apresentamos em tradução inédita no Brasil. Logo na sequência à primeira  
publicação de As palavras e as coisas, houve críticas incisivas e bem demonstradas contra as  
teses desenvolvidas por Foucault em seu livro. A revista La nouvelle critique, vinculada ao  
16 QUÉTEL, Claude; Histoire de la folie: de l’antiquité à nos jours; Paris: Tallandier, 2009.  
17 FOUCAULT, Michel; História da Loucura na idade clássica; op. cit. p. 95.  
18 Idem 98-9.  
19 QUÉTEL, op. cit. p. 94.  
20 Quétel refere outro livro por ele publicado onde apresenta a documentação em questão: Le mal de Naples.  
21 QUÉTEL, op. cit. p. 94.  
Revista Libertas, Juiz de Fora, 23, n.1, p. 258-267, jan./jun. 2023. ISSN 1980-8518  
Ronaldo Vielmi Fortes  
Partido Comunista Francês (PCF), publicou em 1967 – um ano após a edição do livro de  
Foucault – dois artigos que visavam ferir no âmago os fundamentos sobre os quais o filósofo  
estruturalista assentou suas teses. No primeiro deles, publicado em maio, nr, 4 (185), de  
Jeannette Colombel, intitulado Les mots de Foucault et les choses, a autora adverte para os  
perigos da tese estruturalista:  
o apocalipse é reconfortante. O estruturalismo, assim compreendido, terá  
contribuído para a manutenção da ordem estabelecida, mesmo que nos revele  
que essa ordem é a do absurdo, mesmo que sintamos, de forma intolerável,  
nossa própria fragilidade e nos sintamos ameaçados. A loucura que nos  
ameaça não incomodará ninguém. Além disso, seu reconhecimento reforça  
nossa impotência.22  
Segundo Colombel, em última instância, na démarche do pensamento estruturalista não  
se trata mais de indagar o que poderia contribuir para a construção de outro devir, uma vez que  
o futuro se vê atado pelos grilhões da estrutura, encontra-se imobilizado pela vigência do  
equilíbrio estruturante do presente inexorável, chamado a se repetir indefinidamente. Nesse  
sentido, não passa de reforço ao reconhecimento da impotência mediante a estrutura.  
Apesar dos apontamentos críticos interessantes de Colombel – aqui ilustrado pela  
citação dessa curta passagem –, selecionamos para a tradução o texto publicado no nr 5 (186)  
em juin 1967, da mesma revista, de autoria de Pierre Vilar, cujo título é Les mots et les choses  
dans la pensée économique. O artigo que ora traduzimos segue a mesma linha dos aspectos até  
então suscitados nesta apresentação. Nele busca-se averiguar as bases sobre as quais encontram-  
se assentadas as teses de Foucault, em particular a afirmação peremptória, segundo a qual, “não  
há economia política na época clássica”. Aos desprevenidos e desconhecedores da  
recomposição histórica empreendida por Foucault resta aceitar os fatos narrados e buscar  
compreender as teses apresentadas. Porém, esse não é o caso de Pierre Vilar. Profundo  
conhecedor dos períodos históricos tratados em As palavras e as coisas, Vilar desmonta os  
argumentos por dentro. Para isso, bastam os fatos, basta a análise dos livros de época, bastam  
os documentos históricos – sempre eles. Autor de vasta obra sobre a história da economia,  
particularmente da Catalunha e da Espanha, Vilar demonstra por meio de sua erudição ímpar a  
negligência de Foucault – intencional ou não – quanto aos textos, aos documentos, à uma série  
de autores cuidadosamente deixados de lado na elaboração das descontinuidades das epistemes  
que caracterizam as ordens de saber na economia.  
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Os argumentos de Vilar são mais que evidentes. O rigor de sua reconstituição histórica  
das produções em torno da economia é demonstrado com máxima clareza e precisão. Um ano  
22 La Nouvelle Critique, nr 4 (185), mai-1967, p. 13.  
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“O evangelho segundo Foucault”  
após a publicação do livro de Foucault, a demonstração da insuficiência de seus argumentos  
segue desconsiderada. Pesa sobre ela a estratégia de combater por meio do silêncio, do  
esquecimento.  
O objetivo desta tradução é a retomada desse artigo histórico importante. O artigo de  
Vilar é um texto de combate, porém fundado no necessário rigor científico, aspecto  
imprescindível a toda tese de natureza histórica ou filosófica. Diante dos argumentos levantados  
pelo historiador – obviamente nos referimos a Vilar, e não ao outro, o da outra história – fica a  
impressão de que tudo é permitido na hermenêutica arqueológica de Foucault. O arranjo dos  
fatos autoriza as assertivas e teses mais levianas baseadas em tomadas de posição sem lastro  
comprobatório, formulada por meios de afirmações manipulatórias que funcionam como  
máscaras de argumentos probantes, mas que sequer pensam em recorrer às fontes reais, nem  
mesmo para a comprovação dos fatos, aliás, na maior parte das vezes, laçam mão de alguns  
fatos para remetê-los contra os fatos. Afinal de contas: não há verdades, existem apenas,  
interpretações de interpretações.  
Mais do que nunca é preciso reenfatizar contra essa prática que tem se tornado comum  
em certos âmbitos do pensamento contemporâneo: se queremos transformar o mundo o rigor  
das ideias não é uma opção, é uma exigência.  
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Revista Libertas, Juiz de Fora, 23, n.1, p. 258-267, jan./jun. 2023. ISSN 1980-8518  
DOI 10.34019/1980-8518.2021.v23.41396  
– Tradução dos Clássicos –  
As palavras e as coisas no pensamento econômico*  
Pierre Vilar**  
Nem vida, nem ciência da vida na época clássica; tampouco filologia. Mas  
sim uma história natural, uma gramática geral. Do mesmo modo, não há  
economia política porque, na ordem do saber, a produção não existe. Em  
contrapartida, existe, nos séculos XVII e XVIII uma noção que nos  
permaneceu familiar, embora tenha perdido para nós a sua precisão essencial.  
Nem é de "noção" que se deveria falar a seu respeito, pois não tem lugar no  
inerior de um jogo de conceitos econômicos que ele deslocaria levemente,  
confiscando um pouco do seu sentido ou corroendo sua extensão. Trata-se  
antes de um domínio geral, uma camada bastante coerente e muito bem  
estratificada que compreende e aloja, como tantos objetos parciais, as noções  
de valor, de preço, de comércio, de circulação, de renda, de interesse. Esse  
domínio, solo e objeto da “economia” na idade clássica, é o da riqueza. Inútil  
colocar-lhe questões vindas de uma economia de tipo diferente, organizada,  
por exemplo, em torno da produção e do trabalho; inútil igualmente analisar  
seus diversos conceitos (mesmo e sobretudo se seus nomes em seguida se  
perpetuaram com alguma analogia de sentido) sem levar em conta o sistema  
em que assumem sua positividade. Isso equivaleria a analisar o gênero  
segundo Lineu fora do domínio da história natural, ou a teoria dos tempos de  
Bauzée sem levar em conta o fato de que a gramática geral era a condição  
histórica de sua possibilidade”1.  
Tal é, em As palavras e as coisas, uma das teses de Michel Foucault, ou melhor, tal é a  
tese de Michel Foucault, aqui aplicada às "coisas" econômicas.  
Tais são também um método de exposição e um estilo cujos segredos não é supérfluo  
questionar.  
De início a frase curta, incisiva e decisiva: “não...”, “isso não existe”, “inútil para...”.  
*
Les mots et les choses dans la pensée économique; publicado em La Nouvelle Critique, juin 1967, numero 5  
(186), Paris. Tradução e notas de Ronaldo Vielmi Fortes.  
** Pierre Vilar (Frontignan, 3 de maio de 1906 - Donapaleu, 7 de agosto de 2003) foi um hispanista e historiador  
francês. É considerado uma das maiores autoridades no estudo da História de Espanha, tanto no período do Antigo  
Regime como na Época Contemporânea, bem como na história económica e na história social em geral. Como  
marxista, ele criticou o fim da União Soviética e do Bloco de Leste. Foi a referência mais destacada da  
historiografia catalã desde a segunda metade do século XX.  
1
FOUCAULT, Michel; As Palavras e as Coisas: uma arqueologia das ciências humanas; São Paulo, Editora  
Martins Fontes, 1999; p. 228.  
Revista Libertas, Juiz de Fora, 23, n.1, p. 268-285, jan./jun. 2023. ISSN 1980-8518  
As palavras e as coisas no pensamento econômico  
Em suma, a hipótese de trabalho colocada como fundamento inabalável, e transformada por  
essa certeza em condicionamento do leitor. Se se é pouco competente, é convocado a aceitar  
tudo. Competente, se tremerá só de pensar em ser vítima do "se assim quiser" e do "inútil  
para...". Quantas mentes conseguem resistir a esse terrorismo?  
Mas Michel Foucault também joga outro jogo, ele também usa a frase longa. Sob o  
esmerado edifício do rigor exigido (exigido dos outros), ele sabe cavar (para si) o labirinto dos  
incidentes, e torná-lo mais desconcertante através do espelho das imagens. A “noção” que ele  
pretende apresentar – a “riqueza” – não é sequer uma “noção”. É “domínio”, “camada”, “solo”.  
É estranho ao jogo dos conceitos. Ele “abriga” “objetos”.  
Pelo menos até ao momento em que, desta mesma “riqueza”, nos seja vedado analisar  
os diversos vários conceitos fora do sistema que eles constituem.  
Assim, o zumbido das palavras abstratas e das imagens-palavras nos conduziu do  
afirmativo ao vago, do vago ao contraditório. Grande comodidade para o nosso demonstrador  
que poderá responder a qualquer objeção, aqui pensou em “coleção”, ali pensou em “sistema”.  
Mas será essa a única confusão permitida pelo seu rigor?  
Para Michel Foucault, a “era clássica” começa com o Quixote, especialmente com sua  
segunda parte, digamos em 1615.  
No entanto, 1615, para qualquer leitor medianamente informado, é também o ano em  
que, pela primeira vez, certas palavras aparecem no frontispício de um livro: Tratado de  
Economia Política, de Antoine de Montchrestien2. No entanto, somos advertidos: “Na era  
clássica, não há economia política”.  
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Surgiria então uma palavra no alvorecer de uma época da qual somos convidados a  
eliminá-la? E eliminá-la em nome do quê, senão da nossa concepção do que ela abrange? Que  
é exatamente o pecado mortal contra o qual acabamos de ser advertidos, imperiosamente,  
solenemente. O que é então um conselheiro que não segue seu conselho? O que é uma  
meditação sobre palavras que descarta o testemunho de seu nascimento? O que é uma  
arqueologia do saber que não respeita a sua própria cronologia?  
Pois, depois de uma brilhante demonstração do contraste entre dois “saberes” – o do  
século XVI, o da “era clássica” – eis que a demonstração, no que diz respeito à economia,  
primeiro situa a "era clássica" nos “séculos XV e XVI”, mas depois inclui Davanzati3 – ou seja,  
2 Antoine Monchrestien de Watteville, nasceu em Falaise em 1575 e faleceu em Tourailles em 7 de outubro de  
1621, foi um poeta, dramaturgo e economista francês. Ele foi o primeiro a usar o termo "economia política".  
Publicou em 1615 o Traité d’économie politique (versão revista e publicada na integralidade em 1616)  
3 Bernardo Davanzati (1529-1606) foi um agrônomo, economista e tradutor italiano. Davanzati foi um importante  
tradutor de Tácito. Ele escreveu sobre economia fundamentado sobre a teoria do metalismo (princípio econômico  
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Pierre Vilar  
a década de 1580 –, o “Compendious examination4 – ou seja, a década de 1540 – e até  
Copérnico5 – que nos leva de volta a 1520. É verdade que, no outro extremo do “domínio”, a  
“era clássica” parece se estender pelo menos até [David] Ricardo.  
Digo “parece”, porque com Cantillon6, [François] Quesnay, Adam Smith (e ainda que  
esqueçamos William Petty), sustentar que, “na ordem do saber”, “a produção não existe”, torna-  
se difícil, até mesmo para Michel Foucault, que vai se torturar diante das evidências. Mas, a  
partir daí, será muito ruim para quem se deixar levar pela autoridade do tom.  
Não vou censurar Michel Foucault por ter caricaturado, em um atalho favorável, a  
"história das doutrinas econômicas" como, infelizmente, ainda é ensinada. Também me  
aconteceu de denunciar os estereótipos de manual, as sequelas de Gonnard7.  
O que me incomoda aqui é que Michel Foucault leva esses fantasmas a sério. Se tivesse  
preferido a História da análise econômica de Schumpeter, essa obra-prima, o Theorien über  
den Mehrwert de Marx, esse modelo de exploração genética de um pensamento, ou ainda,  
simplesmente, tal apresentação de Alfred Sauvy8 dos “primitivos” da economia, sem dúvida ele  
teria falado mais modestamente. Que o “preço justo” medieval se baseia numa problemática  
“puramente moral”, que o mercantilismo é uma “confusão sistemática” entre riqueza e dinheiro,  
que a utilidade aparece pela primeira vez em Galiani9, o “preço natural” em Cantillon, julgava  
que essas coisas velhas estivessem enterradas. Michel Foucault coloca-os como contrastes para  
sua análise. Pouco importaria se a análise fosse boa. No entanto, podemos condenar  
antecipadamente qualquer pesquisa de um certo tipo sobre as sementes do pensamento  
científico no cerne dos textos antigos, se não nos referimos primeiro aos verdadeiros  
especialistas nesta pesquisa, se desdenhamos sistematicamente o que eles nos disseram sobre  
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segundo o qual o valor do dinheiro deriva do poder de compra da mercadoria na qual ele se baseia). Suas obras  
incluem Notizie dei cambi (1582) e Lezione delle monete (1588).  
4 Referência à obra de autoria anônima: Compendious or briefe examination of certayne ordinary complaints, of  
diuers of our country men in these our dayes.  
5
Copérnico, Nicolau. “Moneto cudente ratio”. In: Wolowski, M. L. (Ed.). Traictie de la première invention des  
monnoies de Nicole Oresme et Traité de la monnoie de Copernic. Genève: Slatkine Reprints, 1976 [1526].  
Tradução em português: Sobre a moeda (1526). Tradução A. H. P. R. de Moura. Curitiba: Segesta, 2004 [1526].  
6 Richard Cantillon (c. década de 1680 – maio de 1734) foi um economista franco-irlandês e autor de Essai sur la  
Nature du Commerce en Général (Ensaio sobre a Natureza do Comércio em Geral), livro considerado por William  
Stanley Jevons como o "berço da economia política". Apesar da pouca informação existente sobre sua vida, sabe-  
se que em sua juventude se tornou banqueiro e mercador de sucesso.  
7
René-Charles Gonnard (1874-1966), doutor em ciências políticas e econômicas e posteriormente doutor em  
direito. Vilar faz referência aqui á obra L’Histoire des doctrines économique, que assim como numerosos outros  
artigos escritos por Gonnard estão impregnados de um nacionalismo virulento.  
8 Alfred Sauvy, nascido em Villeneuve-de-la-Raho (Pyrénées-Orientales) em 31 de outubro de 1898 e falecido em  
Paris em 30 de outubro de 1990, foi um economista, demógrafo e sociólogo francês.  
9
Ferdinando Galliani (2 de dezembro de 1728 - 30 de outubro de 1787, Nápoles) foi um economista italiano e  
figura de destaque do Iluminismo. Dentre suas obras se destacam: Della moneta (1750) e Dialogues sur le  
commerce des bieds (1770).  
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As palavras e as coisas no pensamento econômico  
"o nascimento enigmático desse conhecimento”?  
Reconheçamos que Michel Foucault, ao propor sua própria demonstração, teve um  
escrúpulo. Ele observou que a “análise da riqueza”, mais do que a gramática geral ou a história  
natural, sempre esteve ligada à prática e às instituições. Uma feliz reserva, mas rapidamente  
esquecida, pois imediatamente se repete que a prática e a teoria, no seio de uma “cultura” e num  
dado momento, dependem da mesma “episteme”, que define as condições das possibilidades  
de todo saber”. Assim, a reforma monetária de 1575 e a reforma de Law10 assentariam “na  
mesma base arqueológica”.  
Confesso que, se eu fosse consultar os textos da época, colocaria Oresme11 e Jacques  
Rueff12 na “fundação” da reforma de 157513. Mas Michel Foucault, sem dúvida, vê as coisas de  
forma diferente. É preciso ouvir suas justificativas.  
Moedas e preços no século XVI  
Ele também busca suas justificativas nos textos. Para o século XVI, nas obras publicadas  
por Le Branchu, o que não é inteiramente reconfortante. Porque se confiarmos nas palavras,  
teríamos que buscá-las em outro lugar que não em traduções medíocres. E é muito fácil atribuir  
às pessoas do século XVI preocupações exclusivamente monetárias (“ou quase isso”), se lermos  
a seleção de Ecrits notables sur la monnaie14 [Escritos notáveis sobre dinheiro].  
Aceitemos, porém, provisoriamente, ater-nos a Copérnico, ao Compendious  
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10  
O sistema de Law, idealizado pelo escocês John Law, foi implantado na França, sob a regência de Philippe  
d'Orléans, de 1716 a 1720, cujo objetivo consistia em liquidar a dívida deixada por Luís XIV. Uma de suas  
particularidades é desenvolver o uso do papel-moeda em substituição ao dinheiro metálico, de forma a facilitar o  
comércio e o investimento.  
11 Nicole Oresme, nasceu em Fleury-sur-Orne (então Alemanha) por volta de 1320-1321 e faleceu em Lisieux em  
11 de julho de 1382, foi filósofo, astrônomo, matemático, economista, musicólogo, físico, tradutor de língua latina  
e teólogo que estudou e viveu na França medieval. Ele foi bispo de Lisieux e conselheiro do rei Carlos V, o Sábio.  
Escreveu em 1355 o Tractatus de origine, natura, iure et mutationibus monetarum (Tratado sobre a origem,  
natureza, lei e mudanças do dinheiro).  
12 Jacques Rueff, nascido em 23 de agosto de 1896 em Paris e falecido em 24 de abril de 1978 na mesma cidade,  
foi um alto funcionário público e economista francês, que desempenhou um papel importante nas políticas  
econômicas realizadas na década de 1930 e, especialmente, a partir de 1958. É autor de vários livros e artigos de  
economia. Provável referência ao livro L’Ordre social, em que elementos da história da economia são tratados.  
13  
Em 1575-7, a França experimentou o auge de uma aguda crise monetária que uma reforma monetária sem  
precedentes tentou resolver. Sua principal medida consiste em abolir a conta em libras de tournois em favor de  
uma chamada moeda real, o ecu de ouro.  
14  
LE BRANCHU, Jean Yves; Écrits notables sur la monnaie, XVIe siècle, de Copernic à Davanzati; Paris:  
Librairie Félix Alcan, 1934.  
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Pierre Vilar  
examination, a Bodin15, a Malestroit16, a Davanzati, velhos conhecidos. Mesmo a propósito  
deles, Michel Foucault demonstra pouco, afirma muito. Para os homens desse tempo, diz ele,  
“assim como as palavras tinham a mesma realidade daquilo que diziam, assim como as marcas  
dos seres vivos estavam inscritas sobre seu corpo à maneira das marcas visíveis e positivas,  
assim os signos que indicavam as riquezas e as mediam deviam, eles próprios, trazer sua marca  
real dela”17.  
Curiosa definição da episteme econômica de um tempo em que, justamente, quase  
nenhuma moeda real trazia a marca de seu valor nominal, ainda que fixado por decreto. Nós é  
que ficamos surpresos com esse divórcio.  
Estou bem ciente de que o que impressiona Michel Foucault na controvérsia monetária  
de 1575 é que os homens entraram em uma luta para obter essa conjunção de valor e marca.  
Mas ele se esquece de enfatizar que, embora eles tenham conseguido, isso não durou nem trinta  
anos. Então, o "saber" monetário de toda uma "era" foi imposto apenas por meio da luta, e  
apenas por um curto período? Mas onde estava, então, o "a base" determinante, a "episteme"  
constrangedora, a coerência entre prática, teoria e "cultura" que havia sido postulada?  
De fato, o problema de 1575-1577, como o do tempo de Qresme, ou de Copérnico (ou  
de Locke, ou de Law, ou de Aftalion18), é o conflito, tão antigo como a moeda, entre os seus  
diversos papéis e as suas diversas formas; moeda-objeto (que é uma mercadoria), moeda-signo  
(que é “corrente” e fiduciária), moeda-nome (que é apenas uma medida de valor). Sobre isso,  
nunca diremos mais do que Marx disse, graças ao seu conhecimento sério, dos textos dos  
séculos XVII e XVIII. Mas se quisermos voltar mais longe, será uma episteme do "signo", uma  
episteme "do Renascimento" que encontraremos? Ou simplesmente, diante do mesmo  
problema, uma reflexão nova sobre fatos novos?  
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Copérnico queria uma moeda fixa, como a braça ou o alqueire, pois o dinheiro deve ser  
15  
Jean Bodin (Angers, 1530 — Laon, 1596) teórico político, jurista francês, membro do Parlamento de Paris e  
professor de Direito em Toulouse. O autor é reconhecido pelos seus estudos que foram de suma importância para  
o avanço dos conceitos de soberania e absolutismo dos Estados. “Os Seis Livros da República” é uma das grandes  
obras de Jean Bodin, considerada como o primeiro tratado político sistemático da época.[19] A obra foi escrita em  
meio às guerras de religião e pretendia resolver os impasses nas guerras civis e religiosas na França e, ao mesmo  
tempo, que fosse uma obra acessível.  
16  
Jean de Malestroit (século XVI) economista conhecido por seus debates sobre a moeda, mais tarde referido  
como Controvérsia sobre o Dinheiro, debates travados entre Malestroit e Jean Bodin. Cf. Malestroit, Jehan  
Cherruyt de (1567), “Mémoires sur le faict des monnoyes, proposez et leues par le Maistre des Comptes De  
Malestroit au Privé conseil du Roi tenu à Sainct Maur des Fossez le 16 jour de may 1567”, in: L. Einaudi (ed.),  
Paradoxes inédits du Seigneur de Malestroit touchant les monnoyes avec la response du Président de la Tourette,  
Turin: G. Einaudi, 1937, pp. 99-130.  
17 FOUCAULT, Michel; As Palavras e as Coisas; op. cit. p. 231.  
18 Albert Aftalion (1874–1956) economista francês nascido na Bulgária. Foi professor na Universidade de Lille e  
depois na Universidade de Paris. Autor de várias obras de economia, dentre elas: Les crises périodiques de  
surproduction; Paris: Librairie de Sciences Politiques et Sociales, 1913.  
Revista Libertas, Juiz de Fora, 23, n.1, p. 268-285, jan./jun. 2023. ISSN 1980-8518  
As palavras e as coisas no pensamento econômico  
medido. Malestroit localizou esta medida fixa no metal precioso. Bodin descobriu que esse  
metal, que confere "estimativa e preço às coisas", pode ele mesmo, pela abundância, mudar de  
valor. É essa descoberta que importa para nós. O parentesco das três posições, se formos buscar  
nas noções de relação, medida, comensurabilidade. nos levaria de volta a Aristóteles, descer às  
teorias do equilíbrio. O que há de grave em Foucault é que, por meio de imagens e comparações,  
ele define como típicos de um século problemas que são eternos porque são formais, enquanto  
se recusa a ver o que cada século, sob o ditado de “coisas” novas, impõe conquistas ao espírito.  
Ora, o que é novo no século XVI, é que este metal “precioso”, “raro, útil e desejável”,  
calibrado pelo seu peso, e única referência possível na prática do comércio internacional,  
começou a mudar de valor, não por oscilações momentâneas, localizadas ou distantes (com as  
quais os cambistas e comerciantes sempre jogaram), mas na Europa, diante de todos os  
produtos, de forma desigual, sem dúvida, mas rapidamente. Isso é o que perturbou o espírito  
das pessoas, perturbou seu “saber”. O que é emocionante é descobrir o limite imposto a essa  
agitação pelas ferramentas mentais do século: ou é medir o impacto, nas ferramentas mentais  
do século, do “fenômeno que se produziu”, nos mercados do México, de Potosi, nas gradas de  
Sevilha?  
Não vou censurar Michel Foucault (embora seu livro não seja de desencorajar o  
pedantismo) por não ter lido a tese inédita de Humbleton, o fragmento de Azpilcueta19 que foi  
publicado muito recentemente na França, ou qualquer um dos meus artigos que permaneceram  
desconhecidos por ele. Mas como ele estava confrontando o pensamento econômico de um  
século, pelo menos poderia ter complementado Le Branchu com Monroe, Grice Hutchison20,  
Hamilton21, Larraz22, ou seja, com os textos aos quais eles se referem. Talvez ele tivesse  
extraído deles argumentos para sua tese, porque, formalmente, eles pertencem ao seu século.  
Mas no fundo, eles não se contentam em simplesmente vincular a riqueza e o sinal de riqueza;  
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19 Martin d'Azpilcueta, nascido em Barásoain em Navarra em 13 de dezembro de 1491 e falecido em Roma em 21  
de junho de 1586. Achamado de "Doutor Navarro" ou "Navarra", foi um canonista e teólogo espanhol. Foi o  
primeiro a desenvolver a teoria quantitativa do dinheiro e um dos maiores intelectuais de seu tempo; ele pertence  
à Escola de Salamanca.  
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20  
Marjorie Grice-Hutchinson (Eastbourne, Inglaterra, 26 de maio de 1909 - Málaga, 12 de abril de 2003),  
economista britânica radicada em Málaga, especialista em pensamento econômico na Espanha, e muito  
particularmente na Escola de Salamanca e pensamento econômico medieval.  
21 Alexander Hamilton (Charlestown, 11 de janeiro de 1755 - Nova Iorque, 12 de julho de 1804) estadista, político,  
acadêmico, comandante militar, advogado, banqueiro e economista americano. Ele foi um dos “Pais Fundadores”  
dos Estados Unidos e um importante intérprete e influente proponente da Constituição federal americana, além de  
ter sido um dos principais fundadores do sistema financeiro dos Estados Unidos.  
22 José Larraz López (Cariñena, província de Saragoça, 1904 - Madrid, 1973) foi um jurista, economista, sociólogo,  
filósofo histórico e político espanhol. Seu discurso de entrada para a Academia Real de Ciências Porais e Política  
(Madrid), proferido em 5 de abril de 1943, foi intitulado La época del mercantilismo en Castilla (1500-1700) e  
tratou da Escola de Salamanca.  
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eles estão buscando a dinâmica concreta de sua relação. Que não venha Michel Foucault objetar  
que, de qualquer forma, trata-se de uma “análise da riqueza” baseada na troca, ou eu pedirei a  
ele colocar Cournot23 e Walras24 na mesma “base”. Pois, eles não partem da “produção”, até  
onde eu sei!  
Tudo gira, em Mercado25, em torno da distinção entre “estimativa” e valor da moeda. O  
real vale 34 maravedi26 tanto na Índia quanto na Espanha, mas “a estimativa é muito diferente  
aqui e ali. A prata vale muito menos nas Índias do que na Espanha... Estimativa, valorização  
que vem primeiro da grande abundância ou escassez desses metais; e como eles nascem e são  
colhidos lá, eles são mantidos lá por muito pouco...”  
Mercado examina então todos os fatores que influenciam a estimativa do dinheiro. No  
tempo e no espaço. Ele lamenta que essa medida de valor não seja “fixo, certo, permanente”,  
como a arroba ou a hora do relógio. Mas ele observa que, na Índia, o valor de uma “barra” de  
prata muda “pelas mesmas razões que o tecido”. Inversamente no caso dos tecidos, ele sabia  
que um certo veludo de Granada havia subido em 15 dias de 28 para 35 réis, porque alguém  
queria carregar uma caravela com ele. A comparação entre mercadoria e dinheiro não é uma  
construção intelectual que Malestroit “lê” de uma forma e Bodin de outra; é uma observação  
do mercado, interpretada por testemunhas com graus variados de penetração e posições  
diferentes.  
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Todas as mercadorias aumentarão de preço se forem muito necessárias e em  
pequena quantidade; e o dinheiro, na medida em que é algo que pode ser  
vendido, trocado ou objeto de qualquer outro contrato de troca, é uma  
mercadoria e, portanto, aumentará de preço, como já foi dito, de acordo com  
a grande necessidade dele e a pequena quantidade que se tem dele... Se todas  
as outras coisas forem iguais, em um país onde há falta de dinheiro, todos os  
outros bens vendáveis, e até mesmo o trabalho dos homens, serão oferecidos  
por menos dinheiro do que em um país onde há abundância de dinheiro. A  
experiência prova que na França, onde há menos dinheiro do que na Espanha,  
o pão, o vinho, o linho e o trabalho valem muito menos; e na própria Espanha,  
quando havia menos dinheiro, as coisas vendáveis, os braços e o trabalho dos  
homens eram oferecidos por muito menos do que desde que a descoberta das  
Indias a cobriu de ouro e prata. A causa disso é que o dinheiro custa mais caro  
onde falta e quanto falta, do que onde abunda e quando abunda; e se alguns  
dizem que a falta de dinheiro o rebaixa, é porque o excesso dele faz com que  
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23 Antoine Augustin Cournot, nascido em 28 de agosto de 1801 em Gray (Haute-Saône) e falecido em 30 de março  
de 1877 em Paris, foi um matemático e filósofo francês particularmente interessado na formalização de teorias  
econômicas. Ele é, portanto, um dos primeiros a formular um modelo de oferta e demanda.  
24  
Marie Esprit Léon Walras (Évreux, 16 de dezembro de 1834 - Le Châtelard, 5 de janeiro de 1910) foi um  
economista francês. Considerado por Joseph Schumpeter como "o maior de todos os economistas", ele foi o "pai"  
da primeira formulação completa da teoria do equilíbrio econômico geral.  
25 Tomás de Mercado (Sevilha, 1523-1575): economista, filósofo e teólogo dominicano, pertencente à Escola de  
Salamanca. Publicou, em 1568, Suma de tratos y contratos.  
26 O maravedí, ou maravedi, foi o nome de várias moedas ibéricas de ouro e depois de prata entre os séculos XI e  
XIV e o nome de diferentes unidades contábeis ibéricas entre os séculos XI e XIX.  
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tudo pareça mais barato, assim como um homem de pequena estatura, na  
presença de um homem muito alto, parece ainda menor do que um homem de  
sua própria estatura.  
Esse texto de Martin de Azpilcueta, que é anterior a Bodin e vai mais longe do que ele,  
pode ter encantado Michel Foucault com seu jogo de confrontos e sinais. Mas ele contém toda  
a experiência de um século (a palavra está lá) e todos os fundamentos de uma teoria psicológica  
apoiada em noções de equilíbrio: oferta, demanda, necessidade, escassez. Não estamos tão  
longe do marginalismo. Nem da matemática. “Todas as coisas sendo iguais”, “o valor do  
dinheiro é desigual, mas essa desigualdade é igualada pela quantidade desigual...” “Quantidade  
desigual é igual a apreciação desigual...”.  
Foucault apontou a fórmula em Bouteroue27. Mas se tivermos que procurar  
semelhanças, é claro que ela vem dos escolásticos. Mas até onde se estende o “domínio”? De  
Buridan28 a Jevons29?  
De fato, o que interessa a Michel Foucault é a imagem literária. Quando Davanzati  
escreveu em Florença, em 1586,  
A natureza fez todas as coisas terrenas boas; a soma delas, em virtude do  
acordo concluído pelos homens, vale todo o ouro que pode ser trabalhado;  
todos os homens, portanto, desejam tudo para adquirir todas as coisas... Para  
constatar a cada dia as regras e proporções matemáticas que as coisas têm  
entre si e com o ouro, teríamos de ser capazes de contemplar, do alto do céu  
ou de algum observatório muito alto, as coisas que existem e são feitas sobre  
a terra, ou melhor, suas imagens reproduzidas e refletidas no céu como em um  
espelho fiel. Então, abandonaríamos todos os nossos cálculos e diríamos:  
existe sobre a terra tanto ouro, tantas coisas, tantas pessoas, tantas  
necessidades; na medida em que cada coisa satisfaz essas necessidades, seu  
valor será tantas coisas ou tanto ouro.  
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Aqui está o comentário de Michel Foucault:  
As marcas da similitude, porque guiam o conhecimento, endereçam-se à  
perfeição do céu; os signos da troca, porque satisfazem o desejo, apoiam-se  
na cintilação negra, perigosa e maldita do metal. Cintilação equívoca, pois  
reproduz no fundo da terra aquela que rutila na extremidade da noite; aí reside  
como uma promessa invertida de felicidade, e porque o metal se assemelha  
aos astros, o saber de todos esses tesouros perigosos é ao mesmo tempo o saber  
do mundo30.  
Muito bonito. Mas Davanzati disse isso? Ele disse apenas que “em virtude do acordo  
concluído pelos homens” (ele em outro lugar enfatiza seu caráter convencional), o ouro era  
27 Bouteroue d'aubigny, Claude de; chevalier, intendente da Nova França 1668-1670. Referência ao livro do autor  
intitulado: Recherches curieuses des monnaies de France. Citado por Foucaul, cf. Palavras e as coisas, p. 243.  
28 Jean Buridan (em latim: Joannes Buridanus; 1300-1358) foi um filósofo e religioso francês.  
29 William Stanley Jevons (Liverpool, 1 de setembro de 1835-Bexhill, 13 de agosto de 1882) foi um economista  
britânico. Foi um dos fundadores da Economia Neoclássica e formulador da teoria da utilidade marginal.  
30 FOUCAULT, Michel; As Palavras e as Coisas; op. cit. p. 237.  
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chamado para medir valores. Surge então o problema: qual é a proporção do ouro existente e  
os valores a serem representados? Ele o coloca mal, com certeza, mas não de forma mais  
ingênua do que Locke ou Montesquieu, ou muitos outros quantitativistas do século XIX. Porque  
ele está tentando incluir o número de homens, a noção de necessidade e a relação entre as coisas.  
O que ele está procurando é a equação de Fisher. O que ele sonha é com um planejador mundial  
que conheça o suficiente os termos da equação para definir racionalmente o nível de preços ou  
a oferta monetária. Ele ainda está sonhando? É claro que é minha vez de traduzir Davanzati.  
Mas eu o traio menos do que Michel Foucault. Este último, ao discernir em uma de suas frases  
a imaginação do povo do século XVI, quer reduzi-la a ela, confiná-la a ela. Busco nele as  
sementes de um raciocínio futuro. E elas estão lá, sem a menor dúvida. A episteme analógica  
do século XVI reina, na verdade, em Michel Foucault mais do que em Davanzati. Pois quando  
este último recua das visões globais para a prática cotidiana, ele escreve, com simples bom  
senso:  
Daqui de baixo, mal descobrimos as poucas coisas que nos cercam e damos a  
elas um preço de acordo com a maior ou menor demanda que vemos em cada  
lugar e em cada momento. Os comerciantes ficam de maneira rápida bem  
cientes disso, e é por isso que eles sabem o preço das coisas de forma  
admirável.  
Michel Foucault interpreta isso da seguinte forma:  
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Nos confins do saber, lá onde ele se faz todo-poderoso e quase divino, três  
grandes funções se juntam: as do Basileus, do Philósophos e a do Metallikós.  
Mas, assim como esse saber só é dado por fragmentos e na fulguração atenta  
da divinatio, assim também, no que se refere às relações singulares e parciais  
entre as coisas e o metal, o desejo e os preços, o conhecimento divino, ou que  
se poderia adquirir ‘de algum observatório elevado’, não é dado ao homem.  
Salvo por instantes e como que por sorte, aos espíritos que sabem espreitar,  
isto é, os mercadores31.  
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Fazer com que um Florentino dizer que a ciência dos preços é dada aos comerciantes  
“por instantes e como que por acaso”, se isso é “arqueologia”, prefiro a história. Perguntemos  
a Davanzati o que ele quer dizer com “comerciante” e o que ele lhe empresta em termos de  
divinatio”:  
Se o valor do dinheiro caísse de 12 para 1, os preços das coisas subiriam de 1  
para 12. A pequena camponesa, acostumada a vender sua dúzia de ovos por  
um ás, e vendo em sua mão um ás reduzido a uma onça, diria: Senhor, ou o  
senhor me dá 12 desses ovos reduzidos a uma onça, ou me dá um ás de 12  
onças, ou lhe dou um ovo por um ás.  
Sem invocar os Metallicos, nem os Philosophos. Quanto ao Basileus, eis o que disse um  
comerciante, às vésperas da reforma de 1577:  
31 FOUCAULT, Michel; As Palavras e as Coisas; op. cit. p. 238,  
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O valor do denário32 deve ser entendido como aquele segundo o qual é  
corrente entre os mercadores e no comércio, por uso e observação comuns; e  
o que se diz que o valor do denário depende da autoridade pública deve ser  
entendido mais pelo valor pelo qual a moeda é exibida entre mercadores e  
outras pessoas do que pela vontade imposta pelo Príncipe, pois a lei que  
estabeleceu o preço do centavo tomou lugar como é pelo uso observado pelo  
povo, tanto que o não uso dele o abole.  
Essa é a afirmação de que o preço de mercado (que se trata de coisas mercadorias ou da  
moeda) tem precedência sobre as decisões reais. Desde a época dos escolásticos, os  
comerciantes e os “doutores” sempre concordaram com isso: “preço justo”, “lei natural” e  
“consenso popular” são termos que se referem ao preço de mercado.  
Se descartarmos as extrapolações líricas, o que resta da episteme econômica do século  
XVI de Foucault? Em minha opinião, não muita coisa. Não que a questão levantada seja sem  
interesse. Poderíamos ter mostrado em que medida tais imagens dominantes - religiosas,  
mágicas, astrológicas - ou essa confusão erudita, interditam, limitam, obscurecem, se misturam,  
com incidências diversas, com a trajetória de ideias fixadas desde a Idade Média, mas que lidam  
com fatos novos. A experiência dos teólogos (que Michel Foucault negligencia) é  
impressionante a esse respeito.  
O que é exato é que os homens do século XVI, na medida em que apreenderam esses  
novos fatos, eram levadas a considerá-los do simples ponto de vista da troca (a palavra era dada  
aos comerciantes, não aos produtores), e o mercado, “oferta e demanda”, tinha precedência  
sobre todas as outras considerações. O problema do preço de produção, do custo do trabalho,  
pode surgir ocasionalmente em um Saravia de la Calle33, assim como surgiu com Aristóteles ou  
Buridan. Ele é mal colocado, mal resolvido. Jamais insignificante. Mas, enfim, o fato de o  
“preço” ter precedência sobre o “valor”, a troca sobre a produção, é uma característica desta ou  
daquela “camada” ou “idade” arqueológica? Eu o vejo mais como uma linha que vem sendo  
traçada há muito tempo (desde sempre?) e que jamais foi interrompida. Pois ela é um dos modos  
de análise. É o caminho microeconômico e subjetivista, há muito tempo oposto (e agora  
frequentemente combinado) ao caminho dos cálculos globais e dos custos de produção. Esse  
último caminho foi aberto principalmente no final do século XVII na Inglaterra. Michel  
Foucault mal o mencionou, se é que o fez. Devemos acreditar que os espanhóis, franceses,  
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Pequena moeda de prata que era a de maior circulação no Império Romano. Mesmo após a sua extinção, o  
denário continuou a servir de unidade de conta no Império Romano. Posteriormente, diversos países adotaram o  
termo "denário" (ou uma variação) para designar as suas moedas nacionais, como o denier francês e o dinar usado  
em países árabes. A própria palavra dinheiro, em português (dinero, em espanhol e denaro em italiano) vem do  
latim denarius.  
33  
Luis Saravia de la Calle; (século XVI) Teólogo e economista espanhol. Ele é o autor de Instrucción de  
mercaderes (1544), que trata de questões mercantis, como a teoria quantitativa da moeda, e fornece dados sobre o  
estado da economia na Espanha.  
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ingleses e italianos do século XVI e da primeira metade do século XVII ignoraram a noção de  
produção? Que, aos olhos deles, ela “não existia”? Aqui, mais uma vez, Michel Foucault afirma  
e demonstra. Mas ele escolhe seus textos e, ainda mais frequentemente, fala por eles. Temo que  
ele possa ter perdido uma grande descoberta humana, no limite do século XVI e da "era  
clássica": justamente a da descoberta da produção.  
A noção de produção no alvorecer da “era clássica”  
Voltemos a uma de nossas primeiras objeções, à frase: “Não há economia política na era  
clássica” porque “na ordem do saber, a produção não existe”, contrastamos o fato de que, na  
mesma data em que Michel Foucault fixou o início da “era clássica”, as palavras “Œconomia  
política” apareceram no Traicté d'Antoine de Montchrestien34.  
O fato de a palavra “Œconomia”, etimologicamente associada à casa e ao seu bom  
funcionamento, ter sido elevada pela justaposição da palavra “política” ao nível da “polis”, a  
comunidade, não é pouca coisa. Ambas as palavras foram emprestadas de Aristóteles. Mas não  
tomamos emprestado da crematística, que se refere à riqueza. Negligenciar essa preferência e  
essa nova combinação não seria se esquivar de um problema em um livro em que as palavras  
estão sendo postas em questão?  
Fomos aconselhados a ter cuidado com eles, é verdade. E, sem dúvida, a Œconomia  
política de Montchrestien tem pouco em comum com a de Samuelson. Mas será que isso se  
deve ao fato de ignorar a produção? Ficaríamos quase tentados a dizer “pelo contrário”. Aqui  
está o sumário do primeiro livro de Montchrestien: “Artes mecânicas. Sua ordem e utilidade. A  
regulamentação das manufaturas. O emprego de homens. Os ofícios mais lucrativos e  
necessários para as comunidades. A manutenção de boas mentes e o cuidado que o príncipe  
deve ter com elas”.  
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Por prudência, vamos interpretar esse último ponto como um apelo discreto à  
generosidade do “Príncipe”, e não como a descoberta do custo rentável da educação! Quanto  
ao resto, acho mais difícil encontrar “riqueza” e “troca” do que “produção” e “trabalho”.  
“É preciso trabalhar para se alimentar e se alimentar para trabalhar”. Esse seria o ponto  
de partida que, “pelo fio de uma boa ordem do discurso particular do trabalho manual”, levou  
Montchrestien a falar primeiro sobre agricultura.  
Vamos nos apressar em afirmar que o estilo, o quadro de pensamento e, sobretudo, o  
quadro de referência de Montchrestien são aqueles de sua época. O que não quer dizer  
34 Antoine de Montchrestien (1575-1621) foi um soldado, dramaturgo, aventureiro e economista francês. Publicou  
em 1615 o Traicté de l’oeconomie politique, baseado em grande parte nas obras de Jean Bodin.  
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exatamente aqueles sugeridos por Foucault. A “episteme” descrita por Foucault é limitada aos  
aspectos que lhe interessam. O peso da Bíblia, de Platão, de Aristóteles, de Cícero, de Catão e  
de Columella também merece ser apreciado. Isso não impede que Montchrestien alcance certa  
precisão em sua definição de produção agrícola:  
Desde que a terra, amaldiçoada pela transgressão de nossos primeiros pais, foi  
condenada a suportar sarças e espinhoso penar e o labor nos foram  
transmitidos como que por direito de sucessão, de acordo com a seguinte  
condenação: 'Comerás o teu pão com o suor do teu rosto'. Portanto, vida e  
trabalho estão inseparavelmente ligados... Daí a agricultura laboriosa que luta  
continuamente contra a esterilidade (da terra), e a força, ao fazê-la bem, para  
dar alguma recompensa por tanto trabalho e pagar o desgaste de tantos  
empréstimos. Daí o cuidado necessário para plantar e manter as videiras e  
outras árvores frutíferas. Daí a água necessária para regar os prados para que  
as ervas germinem e cresçam. Em seguida o cuidado e a alimentação do gado,  
cuja carne comemos e cujas roupas tiramos para vestir. É principalmente  
nessas coisas que se ocupa a vida rústica, da qual a agricultura é o trabalho e  
a ciência.  
Sublinhei duas palavras que se juntam não por acaso, porque a noção da produtividade  
das tradições e do conhecimento é clara: “Entre os lavradores, não é aquele que tem mais terra  
que obtém o máximo de seu labor, mas aquele que conhece melhor a qualidade natural de cada  
um de seus solos, qual semente é mais adequada e em que época deve ser semeada...”.  
As “artes” são menos necessárias para a vida, mas sem elas a vida seria “carente e  
imperfeita”. A primeira das artes é a forja, “o elemento comum de seus elementos, a mão de  
todas as mãos que trabalham, o primeiro instrumento de invenção; e digamos que ela é o fim  
de todas as outras, que são equipadas com ela, o motor e o órgão do movimento...”.  
Pois é por meio do ferro, o ferro da ferramenta, que “a imaginação instigada pela  
pesquisa curiosa encontrou na natureza (os meios) para levar à perfeição tudo o que depende  
da operação artificial”.  
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Estamos muito longe do “brilho negro, perigoso e maldito” do metal de Davanzati,  
analisado por Foucault. Não vamos nos deixar levar por isso. Sem mencionar a descoberta da  
produtividade agrícola e uma exaltação da tecnologia metalúrgica. Afinal de contas,  
Montchrestien está retornando a lugares comuns. Todavia, quando ele faz desses lugares  
comuns – e enfatiza que isso não era feito na antiguidade – a matéria de uma ciência que ele  
chama de "Œconomia Política", é possível negar que ele a esteja baseando na produção?  
Acrescentemos: e sobre o trabalho, do qual ele dá, por meio de memórias literárias, uma  
definição que é ao mesmo tempo admirável e singularmente cínica:  
Nenhum animal nasce mais estúpido do que o homem: mas em poucos anos  
ele se torna capaz de grandes serviços. Qualquer um que consiga fazer bom  
uso desse instrumento vivo, dessa ferramenta móvel, que seja susceptível a  
qualquer disciplina, que seja capaz de qualquer operação, pode se gabar de ter  
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atingido o ponto mais alto de eficiência econômica em sua casa.  
Testemunhas Cato, Crassus e Cassius, que “não pouparam tempo, nem custos, nem  
diligência” para instruir e moldar seus escravos, transformando-os em um “comércio e  
mercadoria”. Então, aqui está desta vez, o custo rentável da educação técnica! A mais recente  
escola de história econômica americana se vangloria de ter demonstrado isso para explicar a  
rentatibilidade da posse de escravos às vésperas da Guerra Civil Americana.  
Mas se se tratasse de uma simples lembrança de leitura, o alcance da passagem, apesar  
de sua força na definição de homo faber, seria limitado. Mais curioso é o apelo que se segue:  
Montchrestien elogia a França e o cristianismo por terem ultrapassado o estágio do homem-  
ferramenta e do homem-mercadoria, mas parece estar procurando uma maneira de voltar para  
lá, em nome da eficiência social. "É verdade que a França tem essa glória, incomunicável a  
qualquer outro país, de ter sido, desde tempos imemoriais, o verdadeiro lar da liberdade, que a  
escravidão não tem lugar lá e que até mesmo o servo de um estrangeiro é libertado assim que  
põe os pés lá. Mas, uma vez que a servidão foi abolida por razões boas e cristãs, resta ao público  
tomar o cuidado de empregar os homens em artifícios e trabalhos que combinem o lucro privado  
com a utilidade comum”.  
A tese é que colocar as pessoas para trabalhar, o “berçário de artesãos”, “diversas  
oficinas para diversas manufaturas” seria a única maneira de vencer a vagabundagem, a  
bandalheira, o desemprego (que Montchrestien define perfeitamente) e a emigração.  
Traduzindo, a industrialização é a única maneira de vencer os efeitos do subdesenvolvimento,  
especialmente em tempos de expansão demográfica. Compreendo muito bem. Essa tradução é  
um crime. Eu uso nossas palavras. Estou usando nosso “saber”. Estou substituindo a minha  
“episteme” pela da “era clássica”. E esse anacronismo será justa e amargamente reprovado  
pelos melhores historiadores. Para dizer a verdade, eu estava me divertindo um pouco...  
No entanto... Eu pego os textos. Sob as palavras, procuro coisas. Com algumas nuances  
– fáceis de detectar – algumas coisas na velha economia põem problemas que nós nos  
colocamos. Nós os analisamos à nossa própria maneira. Montchrestien, à sua. Se nos  
encontrarmos, é a similaridade das coisas que nos conduz até lá. Onde elas diferem, não nos  
encontramos. Mas quando um homem procura novas palavras, quando ele distorce o significado  
de palavras antigas, esse é o sinal de coisas novas. Não é essa a lição mais esclarecedora da  
análise dos textos?  
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Portanto, não condenemos a priori (a aplicação pode ou não ser deformadora) a pesquisa  
vertical, linear e retrospectiva no âmago dos textos antigos. Mas não sejamos menos sensíveis  
às virtudes da análise horizontal, à confrontação de textos do mesmo período. Aqui nos  
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As palavras e as coisas no pensamento econômico  
aproximamos de Michel Foucault, mas em vez de ficarmos fascinados com as limitações  
comuns de forma, por que não descobrir com alegria as inovações comuns de conteúdo? Afinal,  
talvez seja isso que separa o historiador do filósofo formalista com sensibilidade literária. Se o  
último chama sua disciplina de “arqueologia”, isso não é, afinal, um grande inconveniente. Isso  
não tem grande importância.  
Voltemos, então, para o tempo de Antoine de Montchrestien. Vamos nos perguntar se  
ele foi o único, no início da “era clássica”, a refletir sobre o primado da produção?  
Em primeiro lugar, quando ele diz sobre a menor província da França que ela “fornece  
a Vossas Majestades seu trigo, vinho, sal, óleo, tecido, lã, ferro e lã, o que torna a França mais  
rica do que todos os peruanos do mundo”, ele está espontaneamente ecoando, sem se referir,  
aos pensamentos de Sully35: “Lavoura e pastagem são os dois seios dos quais se diz que a França  
se alimenta, e as verdadeiras minas e tesouros do Peru”.  
Quanta tinta foi derramada sobre os “Tesouros do Peru”! Mas não se engane pensando  
que esse desdém francês é simplesmente o fato de a raposa36 dizer que "eles são verdes demais".  
No alvorecer do século XVII, os espanhóis também condenaram a ilusão de riqueza que  
a conquista da Índia lhes deu. Assim Pedro de Valencia37:  
O mal vinha da abundância do ouro, da prata, do dinheiro, que sempre foi  
(mostrei em outro lugar) o veneno destruidor das cidades e das repúblicas.  
Acredita-se que o dinheiro é o que assegura a subsistência e não é. Heranças  
lavradas, rebanhos e pescas, é isso que faz subsistir as cidades e as repúblicas.  
(1608)  
281  
E Caxa de Leruela38, em1620, diz:  
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As riquezas e os tesouros que as monarquias retiram do exterior não podem  
compensar a insuficiência dos frutos naturais da pátria... Desde que os  
espanhóis colocaram sua felicidade temporal na aquisição desses metais,  
desprezando, como disse Columella, a melhor maneira de manter e aumentar  
o patrimônio sem crime, ou seja, lavrando e pastoreando, eles perderam  
35  
Maximilien de Béthune, duque de Sully, nascido em Rosny-sur-Seine em 13 de dezembro de 1559 e falecido  
em Villebon em 22 de dezembro de 1641, marechal da França (1634) foi um soldado protestante e companheiro  
de armas do rei Henrique IV, de quem se tornou um dos principais conselheiros. Cf. Les Œconomies royales de  
Sully, éditées par David Buisseret et Bernard Barbiche, tome I (1572-1594), tome II (1595-1599), Paris, Librairie  
C. Klincksieck, 1970-1988.  
36  
Referência à fábula “A raposa e as uvas”. Chegando uma Raposa a uma parreira, viu-a carregada de uvas  
maduras e formosas e cobiçou-as. Começou a fazer tentativas para subir; porém, como as uvas estavam altas e a  
subida era íngreme, por muito que tentasse não as conseguiu alcançar. Então disse: - Estas uvas estão muito azedas,  
e podem manchar-me os dentes; não quero colhê-las verdes, pois não gosto delas assim. E, dito isto, foi-se embora.  
37 Pedro de Valência (falecido em 1631) foi um prelado católico romano que serviu como Bispo de La Paz (1617–  
1631) e Bispo de Santiago da Guatemala (1615–1617).  
38  
Miguel Caxa (modernizado como Caja) de Leruela (Palomera, província de Cuenca, 5 de maio de 1562 -  
Palomera, província de Cuenca, por volta de 1632), foi um economista espanhol, jurista e magistrado. Autor das  
obras: Discurso sobre la principal causa y reparo de la necesidad común, carestía general y despoblación destos  
reynos, Madrid, 1627 e Restauración de la abundancia de España, o prestantíssimo, único y fácil reparo de su  
carestía presente, Nápoles, Lázaro Scorigio, 1631.  
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Pierre Vilar  
estupidamente ambas as riquezas ao mesmo tempo.  
Dirão: lugares-comuns, latim universitário. Sim, mas os mecanismos destrutivos da  
“inflação construída sobre os tesouros do Peru” já haviam encontrado seu analista sutil em  
1600, embora um deles tenha ficado surpreso diante de sua própria descoberta: Martin Gonzalez  
de Cellorigo39, em um capítulo intitulado “Que a abundância de dinheiro não sustenta nem  
enriquece os Estados”, não se contentou com afirmações; bem antes de Cantillon, ele havia  
esboçado o processo destrutivo:  
Com a massa de moeda que foi cunhada, elevaram-se os impostos, as  
anuidades reais e as capitações, cujas exigências só podem ser satisfeitas pela  
circulação no reino de uma quantidade de moeda capaz de dar às coisas um  
valor tal que seu preço corresponda ao que os contribuintes têm de cobrir e ao  
que é necessário para sustentar a monarquia e honrar os compromissos que ela  
assumiu. O mesmo se aplica a bens e compromissos que devem ser pagos no  
exterior e cujos preços subiram tanto pela razão geral que a abundância de  
moeda... Esse é o resultado da abundância de moeda, de ouro e de prata, e esse  
é o valor deles quando faltam as coisas necessárias para a vida humana, coisas  
cuja falta em um reino faz com que esse reino não tenha a verdadeira riqueza...  
Jamais houve tantos súditos ricos como hoje, e nunca houve tanta miséria  
entre eles, jamais houve um rei tão poderoso e dono de tanta receita, e jamais  
até o momento um rei subiu ao trono com tamanha diminuição e  
endividamento de seus Estados. E o que tem impedido que a riqueza se enraíze  
vem do fato de que ela permaneceu e permanece no ar, em papéis, contratos,  
impostos, letras de câmbio, moeda, prata e ouro, e não em bens capazes de  
frutificar e atrair para si, por serem mais dignos, a riqueza dos estrangeiros,  
sustentando assim a do país.  
282  
Assim, portanto, se a Espanha não tem moeda, nem ouro, nem prata, é porque  
os tem, e se é pobre, é porque é rica, o que torna verdadeiras duas afirmações  
contraditórias que, embora se apliquem ao mesmo sujeito, são ambas  
verdadeiras em nossa Espanha, de acordo com os vários aspectos que são  
considerados no corpo de toda a República....  
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O que aqui se abala é a episteme escolástica, cuja lógica se surpreende diante dessa  
dialética da “riqueza”. E Cellorigo, constatando “que de baixo para cima podemos calcular que  
entre os que trabalham e os que não fazem nada, a proporção é de um para trinta", conclui com  
a espantosa fórmula: “parece que queríamos fazer desta república uma república de homens  
encantados, vivendo fora da ordem natural das coisas.”  
Isso foi escrito em 1600. Dom Quixote foi publicado em 1605. Se ele anuncia a “era  
clássica”, se ele é, de acordo com Foucault, “uma escrita errante no mundo entre a semelhança  
das coisas”, Cellorigo já deu a razão.  
39  
Martin Gonzalez de Cellorigo: Economista espanhol, nascido em Oviedo no final do século XVI. Muitos  
detalhes sobre sua juventude são desconhecidos, embora se saiba que ele era um eclesiástico e advogado da  
chancelaria de Valladolid. Sua principal obra, Memorial da política necessária e útil, restauração da Espanha e  
seus estados e atuação universal desses reinos, foi publicada em Valladolid no ano de 1600.  
Revista Libertas, Juiz de Fora, 23, n.1, p. 268-285, jan./jun. 2023. ISSN 1980-8518  
As palavras e as coisas no pensamento econômico  
Contra a ilusão do Peru, contra o mito das Índias - e ao contrário do que Michel Foucault  
imagina, seguindo os passos de muitos economistas apressados, a geração de 1600-1620 nunca  
deixou de opor o trabalho à ociosidade, a produção à “riqueza”.  
O que é surpreendente é a velocidade da assimilação as coisas por parte dos espíritos. O  
declínio espanhol mal havia começado e já estava sendo interpretado em termos de suas causas  
mais profundas. A ascensão econômica da Inglaterra e de Flandres estava em seus primórdios  
e já assombrava as pessoas em outros países como um modelo a ser imitado.  
Certamente, a riqueza monetária, e sua forma metálica, continuam sendo o signo dos  
países vencedores, dos países perdedores. “Fazer dinheiro”, nas origens da economia e da  
sociedade burguesa, era um objetivo coletivo antes de se tornar uma palavra de ordem  
individual. Mas Antonio Serra40, de sua prisão em Nápoles, escreveu em 1613, dois anos antes  
de Montchrestien, seu Breve tratado sobre as causas que podem fazer abundar ouro e prata em  
reinos que não têm minas. O que ele recomendou? As mesmas receitas de Montchrestien, mas  
mais fundamentadas teoricamente, pois ele contrastou o rendimento decrescente e irregular da  
agricultura com o custo decrescente da produção industrial: “Ninguém, se puder semear 100  
quartos de grãos no solo, poderá tornar possível semear 150, enquanto para o fabricante, não é  
assim: ele pode multiplicar não apenas o dobro, mas cem vezes o que produz, e com uma  
proporção menor de despesa”. Aqui, a antecipação do pensamento é particularmente clara,  
isolada demais para que dela possamos extrair um argumento. Mas como negar que os  
primórdios da “era clássica”, na viragem que opõe a crise espanhola aos primeiros sucessos do  
Norte, nos mostram uma reflexão econômica onde a produção assume o protagonismo? O  
próprio Quixote é uma forma de dizer, a contrário. Uma consciência de uma anacronia, de um  
irrealismo. Isso em nada invalida a interpretação dada por Michel Foucault. A multiplicidade  
de sentidos é própria às obras-primas.  
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Mas, por mais claro que seja o agrupamento de pensamentos entre 1600 e 1620, não é  
proibido encontrar em meados do século XVI a noção de produção exaltada contra a de riqueza.  
Luis Ortiz41, “contador de Burgos”, “para que o dinheiro não saia de Espanha”, manda expulsar  
toda a ociosidade e aí reintroduzir o trabalho; trabalho produtivo (muitos jovens vão para  
40 Antonio Serra (Dipignano, meados do século XVI - Nápoles, início do século XVII) foi um economista italiano  
e filósofo da escola mercantilista. Serra é considerado o primeiro escritor de economia política na Itália e um dos  
primeiros na Europa. Foi o primeiro a escrever um trabalho de política econômica sobre o mercantilismo, uma  
forma primitiva de protecionismo da política comercial, em 1613, intitulado Piccolo trattato sulla ricchezza e sulla  
povertà delle nazioni.  
41  
Ortiz, Luís de, M. (século XVI) contador e alto funcionário do Estado. Autor de um dos tratados mais  
interessantes sobre questões econômicas espanholas do século XVI: o Memorial para que no salgan dineros del  
Reino, datado de 1º de março de 1558 em Valladolid.  
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Pierre Vilar  
Salamanca, ou para o exército, ou para a Índia); as mulheres devem fiar com uma roca, não  
com um fuso, porque produz quatro vezes mais; e se a Espanha conseguisse reter o seu dinheiro,  
teria de o dedicar a grandes obras de irrigação, para regularizar a produção agrícola. Quanto ao  
comércio global, todos os itens do balanço de pagamentos (não comerciais) são analisados por  
Luis Ortiz.  
Assim, já em 1557 (para não falar dos precursores) existe uma linha de reflexão no  
sentido da análise macroeconómica, das “contas nacionais”, entre aqueles que, por posição,  
partem do Estado, tal como existe uma “linha microeconômica”, representada pelos teólogos,  
porque esses partem do indivíduo.  
“Era clássica” e “clássicos” da economia  
“Era clássica” e “clássicos” da economia. Este artigo já está muito longo. Não vou seguir  
Michel Foucault nos meandros de sua demonstração ao longo do século XVIII. Isso exigiria  
muito desenvolvimento. Vamos deixá-los para mais tarde.  
Contentemo-nos com algumas observações:  
1) De início, como sempre, sobre a questão da cronologia; o mundo da "arqueologia" é  
o das cronologias precisas; e se Michel Foucault faz alguma alusão aqui e ali à conjuntura, é  
sempre de forma bastante lamentável. Além disso, ele às vezes justifica formas de raciocínio de  
pleno século XVIII coma ajuda de argumentos que empregou para o século XVI, enquanto  
acredita discernir, no início do século XVII, uma “reversão”, uma “inversão” que introduziria  
o “mercantilismo”, sem destruir as estruturas essenciais do “saber”. Vimos que essa “inversão”  
tinha suas raízes em meados do século XVI e não correspondia de forma alguma às definições  
de Michel Foucault (particularmente no que diz respeito ao lugar dado à produção).  
2) Da mesma forma, Michel Foucault tem seu trabalho dificultado quando precisa  
identificar o "saber" de Law com o de Cantillon, o de Condillac com o de Quesnay. Mas, seja  
por comodidade ou negligência, o que dificilmente é admissível é o seu silêncio sobre o final  
do século XVII na Inglaterra, sobre Graunt42, King43, Petty44, em uma época em que nasceram  
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42 John Graunt (Londres, 24 de abril de 1620 - Londres, 18 de abril de 1674) foi um cientista e um dos primeiros  
demógrafos britânico, precursor na construção de Tábuas de Mortalidade. Graunt publicou em 1662 o livro Natural  
and Political Observations upon the Bills of Mortality, que lança as bases para a demografia e torna-se uma das  
obras pioneiras no estudo atuarial de mortalidade.  
43  
44  
William Petty FRS (Romsey, Hampshire, 27 de maio de 1623 - Londres, 16 de dezembro de 1687) foi um  
economista, cientista e filósofo britânico. Pioneiro no estudo da Economia Política, Petty propôs a utilização da  
métodos quantitativos - por ele chamados de aritmética política - como meio de análise da riqueza de um país.[1]  
Ele antecipou também a importância da velocidade de transações no equilíbrio das contas nacionais, conceito  
posteriormente ilustrado na Teoria quantitativa da moeda.  
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As palavras e as coisas no pensamento econômico  
a preocupação estatística, a preocupação probabilística e a noção de custo de trabalho, tanto  
para o dinheiro como para as coisas. Esse silêncio, por si só, julgaria a seriedade do método.  
Há aqui um galocentrismo45 herdado não dos livros didáticos mais recentes, mas dos mais  
antigos.  
3) Como, em última análise, a episteme da “era clássica” deve opor-se (segundo as  
hipóteses de Foucault) à dos “clássicos” (no sentido corrente da palavra) da economia, as  
aquisições progressivas que levam a esta última são assim escamoteadas. E o próprio Smith é  
tratado por alusões. Quanto a Ricardo, será atribuída a ele uma descoberta de "historicidade"  
(pelo facto de ter anunciado a imobilização da história). A fim de admitir que nenhum “corte”  
existe entre ele e Marx.  
Pois trata-se de chegar na fórmula:  
“O marxismo está no pensamento do século XIX como um peixe n’água: o que quer  
dizer que noutra parte qualquer deixa de respirar”.  
Continuemos, pois há frases que devem ser saboreadas:  
Se (o marxismo) se opõe às teorias burguesas da economia, e se nessa  
oposição, projeta contra ela uma reversão radical da História, esse conflito e  
esse projeto têm por condição de possibilidade não a retomada de toda a  
História nas mãos, mas um acontecimento que toda a arqueologia pode situar  
com precisão e que prescreve simultaneamente, segundo o mesmo modo, a  
economia burguesa e a economia revolucionária do século XIX. Seus debates  
podem agitar algumas ondas e desenhar sulcos na superfície: são tempestades  
num copo d’água46.  
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Proponho que vá comemorar o quinquagésimo aniversário da Revolução de Outubro na Bacia  
de Luxemburgo. E verificar qual é a “arqueologia” que um “acontecimento” abala.  
Assim, a análise “arqueológica” de Michel Foucault, no campo da economia, termina  
tão infelizmente quanto começou. De bom grado deixo-lhe as de história natural e de gramática  
geral, esperando que as conheça melhor do que eu. Em todo caso, ele nos deixa a "doxologia",  
que me parece assemelhar-se a uma verdadeira análise histórica. Resta saber se esta análise,  
que através das palavras sempre se propõe a apreender as coisas, é compatível com uma  
pesquisa que subordina as coisas às palavras.  
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45 Galocentrismo: conceito que se aplica principalmente ao campo político e cultural. Refere-se a uma atitude onde  
a França é vista como o centro do mundo, com suma importância em vários aspectos da vida.  
46 FOUCAULT, Michel; As Palavras e as Coisas; op. cit. p. 360.  
Revista Libertas, Juiz de Fora, 23, n.1, p. 268-285, jan./jun. 2023. ISSN 1980-8518  
JAN-JUN/2023  
Dossiê temáꢀco  
O Tema desta edição da revista Libertas corresponde  
à temaꢀca do VII Seminário Internacional, da Faculda-  
de de Serviço social, realizado em setembro de 2022,  
cujo ꢁtulo foi: “Lutas Sociais, Ofensiva Ultraneoliberal  
e Serviço Social:Resistências e Arꢀculações Internaci-  
onais”. O evento teve como objeꢀvo refleꢀr sobre o  
diꢂcil momento histórico vivenciado nos anos de  
2019 a 2022, relaꢀvo ao período da pandemia do CO-  
VID19. Essa etapa da história mundial recente, carac-  
terizada também pelo recrudescimento da ofensiva  
conservadora, pelo desmantelamento de direitos so-  
ciais e das lutas pelos direitos, colocou-nos diante da  
necessidade de criar mecanismos para fomentar a in-  
terlocução nacional e internacional sobre as expres-  
sões da questão social na atual conjuntura. Nesse vo-  
lume da revista constam palestras realizadas pelos  
convidados, além da contribuição de outros autores  
sobre a temáꢀca trabalhada ao longo do evento.  
REVISTA DA FACULDADE DE SERVIÇO SOCIAL - UFJF  
PROGRAMA DE PÓS GRADUAÇÃO EM SERVIÇO SOCIAL